roseana cavalcanti da cunha - violência sexual infanto

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roseana cavalcanti da cunha - violência sexual infanto
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ROSEANA CAVALCANTI DA CUNHA
VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL:
horror, indignação e enfrentamento
João Pessoa-PB
2007
1
ROSEANA CAVALCANTI DA CUNHA
VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL:
horror, indignação e enfrentamento
João Pessoa-PB
2007
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ROSEANA CAVALCANTI DA CUNHA
VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL:
horror, indignação e enfrentamento
Dissertação apresentada ao Mestrado em
Educação da UFPB, como requisito para a
obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a
orientação do Prof. Dr. Charliton José dos
Santos Machado.
João Pessoa
2007
3
C 972v
Cunha, Roseana Cavalcanti da
Violência Sexual Infanto-Juvenil: horror, indignação e
enfrentamento / Roseana Cavalcanti da Cunha. –
João Pessoa, 2007.
129p.
Orientador: Charliton José dos Santos Machado
Dissertação (mestrado) – UFPB/CE
1. Direitos Humanos. 2. Violência Sexual infanto-juvenil.
UFPB/BC
CDU: 342.7 (043)
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5
Dedicatória
A todas as crianças e adolescentes violentadas sexualmente deste país, que precisam retirar de
si, da forma mais visceral, num grito, o que sobrou de suas infâncias, sobreviverem para se
implicarem na reinvenção do seu viver.
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Agradecimentos
À conspiração universal que na elegância e sutileza do seu movimento comunga com o meu
desejo de saber, na busca incessante de ser gente;
Aos meus pais Luis e Adelaide, pelo que sou;
Aos meus irmãos Marcus, Marcelo, Rosana e Roseli, pelo esteio fraterno;
Ao meu companheiro de vida Roberto, pelo apoio incondicional;
Às minhas filhas Jessica e Raissa, razão do meu viver;
Ao orientador Charliton pela leveza e respeito na condução da orientação;
À professora Jordeana Davi pela valiosa contribuição nas dúvidas que lhes foram
demandadas;
Aos professores Alder Júlio e Adelaide Dias pelas orientações no processo de qualificação;
À turma 24 do Doutorado pela acolhida carinhosa no PPGE;
À minha turma de Mestrado que na hibridez de sua constituição proporcionou uma rica
interlocução com a diversidade;
Aos Professores do PPGE, pelos subsídios teórico-metodológico durante o curso de mestrado;
Ao amigo Agostinho pela afinidade e preciosidade das nossas conversas nessa construção;
À amiga Argentina pela partilha com a dor do tema no Filme Anjos do Sol;
À amiga Neide Miele pela credibilidade e confiança que me depositou;
Às escolas pesquisadas, lugares de saberes em construção;
Ao Grupo de Estudos Paulo Freire (GESPAUF/Campina Grande/PB), pela valorosa
construção do saber freireano;
Ao Centro Paulo Freire Estudos e Pesquisas-Recife/PE, pela relação afetiva com os
contemporâneos de Paulo Freire e Paulo Rosas;
Ao Grupo de Pesquisa em Extensão Popular (EXTELAR), pela proximidade com a extensão
popular e a função social da Universidade;
À Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) - Delegação Paraíba, meu lugar de referência;
Às pessoas não citadas e que contribuíram de forma indireta com os seus relatos, suas
experiências e conversas para a constituição deste trabalho.
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“A criança é o princípio sem fim, o fim da criança é o princípio do fim. Quando uma
sociedade deixa matar as crianças é porque começou seu suicídio como sociedade. Quando
não as ama é porque deixou de se reconhecer como humanidade. Afinal, a criança é o que fui
em mim e em meus filhos, enquanto eu e humanidade. Ela como princípio é promessa de
tudo. É minha obra livre de mim. Se não vejo na criança, uma criança, é porque alguém a
violentou antes e o que vejo é o que sobrou de tudo que lhe foi tirado. Mas essa que vejo na
rua sem pai, sem mãe, sem casa, cama e comida; essa que vive a solidão das noites sem gente
por perto, é um grito, é um espanto. Diante dela, o mundo deveria parar para começar um
novo encontro, porque a criança é o princípio sem fim e o seu fim é o fim de todos nós”.
Herbert de Souza (Betinho). In: “Criança é coisa séria”. Rio de Janeiro: AMAIS Livraria e
Editora, 1991.
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Resumo
Esta dissertação analisa a violência sexual infanto-juvenil, tema contemporâneo,
multifacetado, expressão histórico-social engendrada nas relações cotidianas. Considerado um
fenômeno universal, como também, uma violação aos Direitos Humanos, possui raízes
culturais, históricas, sociais e psíquicas. Neste sentido, o estudo fundamentou-se nas reflexões
teóricas de Faleiros, Leal e Pilotti, particularmente, nas pesquisas desenvolvidas por estes
estudiosos acerca da violência sexual infanto-juvenil na sociedade brasileira do século XX.
Desenvolvido na abordagem metodológica qualitativa, analisou o lugar na educação no
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, através de entrevistas
realizadas com 22 educadores, em 3 escolas do município de Campina Grande-PB. Na
pesquisa, buscou-se identificar as concepções e práticas dos educadores, a partir das
categorias abuso e exploração sexual, fundamentais para a compreensão da violência sexual,
da relação entre a política educacional e as ações cotidianas da escola com esta problemática e
as maneiras dos educadores em lidar com tais questionamentos. Os resultados permitiram
identificar na pesquisa, as dificuldades em relacionar as práticas educativas cotidianas com as
questões macroestruturais que aparecem nas relações e desigualdades sociais. Como também,
o próprio reconhecimento dos educadores entrevistados acerca da necessidade de formação
para lidar com a questão, através de novas formas de intervenção. Embora reconhecendo que
a escola deve ter um papel decisivo no enfrentamento da violência sexual contra crianças e
adolescentes, os desafios para a construção de um processo educacional reflexivo,
participativo e dialogado encontra limites que precisam ser enfrentados. A responsabilidade
social da educação em relação à complexidade deste tema, faz emergir a reflexão sobre o
caráter protetivo e interventivo na construção da cidadania de crianças e adolescentes em
situação de violência sexual.
Palavras-chave: Violência Sexual; Educação; Criança; Adolescente.
9
Abstract
This dissertation analyses sexual violence among children and adolescents, which is a
contemporary issue as well as a historic and social expression of nowadays relations.
Considered as a universal phenomena and a violation of the Human Rights, it is influenced by
cultural, historic, social and psychological factors. In this sense, this study was based on the
theoretical reflections of Faleiros, Leal e Pilotti, especially on the researches developed by
these authors about sexual violence among children and adolescents in the Brazilian society of
the 20th century. Developed in a qualitative approach, this work analysed the role of education
against sexual violence suffered by children and adolescents through interviews with 22
educators, in 3 schools of the city of Campina Grande-PB. The research aimed at identifying
the conceptions and actions of such educators having as a starting point the categories of
sexual abuse, being these fundamental toward the comprehension of sexual violence. Also,
the relation between educational policies and the everyday actions at school facing this issue
and the way the educators deal with it were considered. The results enabled the identification
of the difficulties in relating the everyday educative actions with macro-structural issues,
which are present in the relations of social inequalities, as well as the acknowledgement of the
interviewed educators concerning the necessity of a formal instruction to deal with the issue,
through new ways of intervention. Even admitting that school ought to play a definite role in
cracking sexual violence against children and adolescents, the challenges in constructing a
reflexive, participative and dialogued process encounters limits which have to be dealt with.
The social responsibility of education in relation to the complexity of this theme arouses
reflection on the protective and interventive feature in the formation of the citizenship of
children and adolescents harassed by sexual violence.
Key-words: Sexual violence; education; children; adolescent.
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LISTA DE SIGLAS
ABRAPIA
Associação Brasileira de Apoio e Proteção à Infância e Adolescência
ANDI
Agência Nacional de Notícias da Infância
CEAI
Centro Educacional de Atividades Integradas
CEARAS
Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual
CECRIA
Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes
CEDECA
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan
CNAS
Conselho Nacional de Assistência Social
CONANDA
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
CPI
Comissão Parlamentar de Inquérito
CPMI
Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
DOU
Diário Oficial da União
ECA
Estatuto da Criança e do Adolescente
ECPAT
End Child Prostitution in Asian Tourism
EJA
Educação de Jovens e Adultos
EMBRATUR Instituto Brasileiro de Turismo
FEBEM
Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor
FÓRUM DCA Fórum da Criança e do Adolescente
FUNABEM
Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor
FURNE
Fundação Universitária de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INN
Instituto Interamericano Del Niño
INPS
Instituto Nacional de Previdência Social
LBA
Legião Brasileira de Assistência
LOAS
Lei Orgânica da Assistência Social
LOPS
Lei Orgânica da Previdência Social
MEC
Ministério da Educação e Cultura
NGO
Grupo para a Convenção sobre os Direitos da Criança
NUPECIJ
Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-Juvenil
OEA
Organização dos Estados Americanos
OIT
Organização Internacional do Trabalho
OMS
Organização Mundial de Saúde
OMT
Organização Mundial de Turismo
11
ONGS
Organizações Não-Governamentais
ONU
Organização das Nações Unidas
PAIR
Programa de Ações Integradas e Referenciais no Enfrentamento da Violência
Sexual Infanto Juvenil no Território Brasileiro
PESTRAF
Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de
Exploração Sexual Comercial no Brasil
PMCG
Prefeitura Municipal de Campina Grande
PNBEM
Política Nacional de Bem-Estar do Menor
PROAMA
Programa de Assistência à Mãe Adolescente
PROAMEV
Pró-adolescente, mulher, espaço e vida
RECRIA
Rede de Informações sobre a Criança e o Adolescente
SAM
Serviço de Assistência ao Menor
SEMAS
Secretaria Municipal de Assistência Social
SSP
Secretaria de Segurança Pública
UEPB
Universidade Estadual da Paraíba
UNICEF
Fundo das Nações Unidas para a Infância
WCF
World Childhood Foudation
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................
14
CAPÍTULO I
POLÍTICAS SOCIAIS PARA A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA..........................
26
1.1 Notas introdutórias acerca das políticas sociais no contexto brasileiro................
27
1.2 As Políticas Sociais voltadas para a infância no Brasil da repressão ao
direito..........................................................................................................................
36
1.3 A Política Educacional no contexto brasileiro......................................................
41
1.4 As Políticas de combate a violência sexual contra crianças e adolescentes:
processo de lutas e institucionalização.......................................................................
52
CAPÍTULO II
VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL: considerações histórica, ética e
política...............................................................................................................................
60
2.1 Violência: conceito, história e categorização........................................................
61
2.2 Violência...............................................................................................................
61
2.3 Sexualidade...........................................................................................................
64
2.4 Violência Sexual infanto-juvenil..........................................................................
68
2.5 O Abuso sexual.....................................................................................................
71
2.6 A Exploração sexual..............................................................................................
80
CAPÍTULO III
ABUSO E EXPLORAÇAO SEXUAL: afinal de que se trata?...................................
91
3.1 O contexto de Campina Grande............................................................................
92
3.2 O perfil dos Educadores........................................................................................
98
3.3 Uma interpretação da concepção dos educadores do município de Campina
Grande e sua interlocução com o diálogo freireano...................................................
105
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................
122
REFERÊNCIAS..............................................................................................................
126
APÊNDICES
ANEXOS
13
INTRODUÇÃO
14
Da construção do objeto aos passos iniciais da pesquisa
A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno colocado em pauta
na contemporaneidade; ocorre em escala mundial, sendo abordado nesta pesquisa no contexto
da educação. Este tipo de violência, considerada um fenômeno universal como também uma
violação aos Direitos Humanos, possui raízes culturais, históricas, sociais e psíquicas. Na sua
dinâmica as relações são permeadas pela chantagem, sedução, objetalização de crianças e
adolescentes, prevalecendo à assimetria como relações de poder.
O interesse por este tema partiu da experiência profissional, bem como das
inquietações mediante as respostas à problemática da infância e adolescência no tocante à
violência sexual.
A minha1 aproximação com a temática deu-se, através da inserção no Programa de
Assistência Multiprofissional ao Adolescente (PROAMA), a partir dos anos 90, no município
de Campina Grande-PB, desenvolvendo uma educação não formal, por conta de uma proposta
de orientação específica e não convencional. O trabalho consistia no acompanhamento
psicossocial às adolescentes no período da gravidez, parto e puerpério num enfoque social,
incluindo a mãe, o bebê e a participação do pai nesse processo. Experiência marcante em
minha vida na convivência com a imprevisibilidade, em que o inesperado das tensões,
ansiedades, desinformação, medos e incertezas apareciam com o não dito e com a surpresa,
mas também, com toda a herança cultural e transgeracional presentes nas falas por força dos
mitos e preconceitos.
Esta foi uma experiência profissional no campo dos Direitos Humanos, trabalhando
com o direito à vida, e exercício de uma prática educativa problematizadora diante das
contingências.
Ainda nessa perspectiva, tive a oportunidade de trabalhar com a educação popular em
20 municípios do Estado da Paraíba, no período de 1991 a 1994, com grupos diversos:
profissionais da saúde, grupos de mulheres, adolescentes, professores e alunos da rede pública
de ensino na perspectiva de socialização dos direitos. Esta experiência despertou-me para a
necessidade de construir o conhecimento, a partir do contexto, tendo o diálogo como
instrumento de (des) construção da realidade. Fez-me aproximar do saber popular,
1
No decurso desta introdução, serão realizadas formas de exposição em dois tempos verbais, ora na primeira
pessoa do singular, ora na terceira pessoa do singular. No primeiro caso, sempre que me referir às questões de
caráter pessoal. No segundo caso, opto pela impessoalidade da terceira pessoa do singular resguardando o rigor
acadêmico.
15
reconhecendo o seu valioso agalma2, construtor de um poder ético que poderá garantir o
questionamento do instituído.
Na educação formal, até o ano 2000, desenvolvia um trabalho de natureza pedagógica,
com a questão da sexualidade, acreditando que a mesma estava posta a serviço da felicidade
humana, desde que exercida com liberdade e responsabilidade. Tentava trazer a discussão da
sexualidade para o campo da educação, trocando experiências com os educadores. A partir
desse momento, percebi as dificuldades relacionadas ao preconceito, fazendo com que o ato
educativo fosse denunciador da história singular de cada educador.
No Programa de atendimento às vítimas de abuso e exploração sexual, no período de
2001 a 2005, um desafio se fazia presente, o enfrentamento da transgressão do direito à vida e
ao desenvolvimento da sexualidade. Esse programa se constituiu numa das primeiras
iniciativas do Estado, direcionada para esta problemática específica, que articula as áreas da
justiça, educação, saúde e assistência social. Contudo, trata-se, ainda, de iniciativa tímida,
considerando a gravidade da realidade brasileira nas suas características regionais. Estes
desafios residem na articulação institucional do arcabouço de proteção integral, como prevê o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Nesse sentido, a experiência vivenciada no atendimento à crianças e adolescentes
vítimas de abuso e exploração sexual, desde o acolhimento, a escuta, o acompanhamento até
os encaminhamentos familiares, sociais e jurídicos, alertava-me para a possibilidade de
suscitar um trabalho junto ao segmento de crianças e adolescentes que os orientassem no
sentido de poder usar sua assertividade junto a um possível abusador ou explorador.
Essas reflexões levaram-me a desenvolver um estudo monográfico acerca da relação
entre o Programa de atendimento às vítimas de violência sexual contra crianças e adolescentes
(Sentinela) e a escola, em 2002 na UFCG. Este estudo teve o objetivo de discutir as relações
entre a escola e o programa de atendimento, tendo em vista o seu rebatimento na dinâmica
escolar das crianças e adolescentes em sala de aula como meio formador de subjetividades.
A realidade encontrada nas escolas com profissionais capacitados, inclusive, pósgraduados, era a dificuldade para discutir e enfrentar as questões complexas da sexualidade
com crianças e adolescentes. A pesquisa apontou para a possibilidade da interação entre a
escola e um programa social numa perspectiva de prevenção, para a necessidade de
capacitação continuada não só dos profissionais que atuam diretamente no atendimento como
médicos, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes sociais, professores, mas também, de
2
Termo usado por Alcibíades para designar o precioso que o ingrato envoltório de Sócrates encerra (LACAN,
1967, p.257).
16
educação para todos os cidadãos e para a reflexão no sentido de dar respostas para as
situações decorrentes das mudanças na sociedade.
No intuito de ampliar esse debate, com a preocupação em repensar as políticas
públicas e as práticas educativas, propus esta pesquisa ao programa de pós-graduação em
educação, na linha de pesquisa de Políticas Públicas e práticas educativas aprovada em 2005.
Entendo que a formação do homem como uma tarefa social não se centraliza no estudante ou
no professor, mas também, no seu meio social, na sua cultura. E apresentava uma questão:
como a educação poderia contribuir para a discussão do enfrentamento à violência sexual
contra crianças e adolescentes sendo um tema pertinente à sua realidade?
A partir deste questionamento, esta investigação teve como objetivo geral analisar o
lugar na educação no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes,
evidenciando o município de Campina Grande-PB. Tomou-se como eixo norteador para as
reflexões e conseqüentes respostas às políticas existentes e a implicação da educação para
confrontar a problemática da violência sexual contra crianças e adolescentes. Os objetivos
específicos foram: 1) conhecer a concepção dos educadores acerca do conceito de abuso e
exploração sexual; 2) discorrer sobre a intersetorialidade das propostas elaboradas para o
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes; 3) assinalar a importância
da educação no processo de implicação com o tema da violência sexual contra crianças e
adolescentes; 4) relacionar a política educacional e às ações construídas no cotidiano da
escola para o enfrentamento desta problemática; 5) examinar as dificuldades encontradas
pelos educadores para a efetivação da política de combate à violência sexual contra crianças e
adolescentes no município.
Diante disto, as questões que se apresentavam eram as seguintes: Qual é o lugar da
educação no enfrentamento deste fenômeno? Que concepção os educadores têm a respeito das
categorias fundamentais para a compreensão da violência sexual? Qual a relação entre as
ações cotidianas da escola com esta problemática? Que dificuldades os educadores encontram
em sua prática para lidar com esses questionamentos?
Para tanto, tomou-se como referencial teórico autores brasileiros estudiosos da
temática da violência sexual infanto-juvenil como Leal (2002), Faleiros (1998), Azevedo &
Guerra (2000), Saffioti (1997), que apontam a preocupação com esta realidade, numa
produção bibliográfica recente, surgindo na metade dos anos de 1980 e sendo intensificada no
início dos anos de 1990, com a mobilização de setores da sociedade civil, através de algumas
organizações não-governamentais. Também baseou-se nas reflexões de Volnovich (2005),
17
Gabel (1997), Rizzini & Pilotti (1995), Áries (1981), entre outros. Ainda valeu-se de
documentos oficiais, como Leis, Decretos, Relatórios e Planos.
Privilegiou-se estes autores por entender que trazem à tona a realidade brasileira. Na
produção teórica de Faleiros, enfatizando o aspecto social, na ótica de Leal, abordou-se o
mercado enquanto inferidor da exploração sexual, enquanto que Azevedo & Guerra tratam a
questão numa dimensão mais psicológica e Saffioti apontando a questão de gênero.
Os outros autores referidos apontam experiências interessantes como Volnovich,
mostrando a importância da reflexão sobre as práticas institucionalizadas no Brasil e
Argentina e sua interface entre o político-institucional, o jurídico, o psicológico e social nos
casos de abuso sexual, Gabel com a experiência na França e sua interlocução com a escola,
Áries na trajetória histórica sobre a infância, Rizzini e Pilloti com uma análise histórica das
políticas sociais dirigidas à infância e adolescência na América Latina e no Brasil, desde o
século XVI.
Ao abordar o tema da violência sexual contra crianças e adolescentes, colocou-se em
evidência um processo de lutas ideológicas, cultural e econômica ao longo de todo o século
XX. Chega-se até o início da década de 1990, quando “adentrou a agenda brasileira como
resultado das CPIs do extermínio de meninos e meninas de rua em 1991; da violência contra a
mulher em 1992; da CPI da prostituição infanto-juvenil em 1993” (LEAL, 2002, p. 17),
trazendo uma visão de desconhecimento do fenômeno antes desse período.
Leal (2002) aponta que o enfrentamento da violência sexual de crianças e
adolescentes pela sociedade, família e o Estado, requer o reconhecimento da hipocrisia das
relações sociais marcadas pela violência histórico-estrutural e multicultural como seus fatores
de expansão, da falência civilizatória e da dificuldade no caminho de cumprimento dos
dispositivos legais propostos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O ECA define com absoluta prioridade, a garantia de proteção integral à crianças e
adolescentes, sendo legitimado após um processo de mobilização da sociedade civil.
Conforme Rizzini (1995), os postulados da Declaração Universal dos Direitos da Criança e a
inclusão na Constituição Federal de 1988, do artigo 227, versa sobre os direitos universais da
pessoa humana com a seguinte redação:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão (BRASIL, 2000, art. 227).
18
Este artigo da Constituição Federal é referendado no ECA, em seu artigo 4o,
instrumento legal que vem refletir as mudanças na contemporaneidade ao conceber crianças e
adolescentes como sujeito de direitos. Segmento este com pouca visibilidade na produção
acadêmica, em função do recente reconhecimento histórico da concepção de infância e a
preocupação com a educação (século XV e XVI), conforme indica Áries (1981, p.171), “o
colégio tornou-se então um instrumento para a educação da infância e da juventude em geral
[...] uma instituição essencial da sociedade” Assim, a educação pública, assegurada no artigo
205 da Constituição Federal, é preconizada no artigo 53 do ECA, afirmando que a criança e o
adolescente têm direito ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da
cidadania e qualificação para o trabalho. Este entendimento implica igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola, mudança na relação educador-educando, direito de
contestar critérios avaliativos, direito de organização e participação em entidades estudantis e
acesso à escola pública e gratuita.
De acordo com Ariés (1981), só a partir do século XVIII, a infância assume um lugar
central dentro da família, sendo as crianças, motivo de preocupação. Mas a infância enquanto
categoria de análise estrutural é considerada a-histórica por Pilotti (1995), quando aponta o
interesse dos estudos sobre a infância do ponto de vista de seu desenvolvimento individual,
descuidando dos aspectos históricos, sociais e culturais que exercem influência nas condições
de vida e mudanças na sociedade.
Já a adolescência passou a ser melhor distinguida, segundo Becker (1985), com a
ascensão da burguesia como classe dominante, a mudança na estrutura escolar, com a
formação primária e secundária, estabelecendo-se uma relação entre idade e classe escolar.
Após a Segunda Guerra Mundial, passou a ser foco de atenção com a influência nos anos de
1960, do movimento da contracultura.
Para dialogar com estes estudiosos, propôs-se, neste estudo, uma interlocução com a
teoria freireana. Este tema, sobre o qual Paulo Freire não faz qualquer alusão, não invalida
que sua base teórica e metodológica seja utilizada para pesquisá-lo. Um ponto importante
tangenciado pelo autor encontra-se na mediação pela categoria dialógica, numa perspectiva de
transformação social para o “ser mais” humano, na tentativa de superação das antinomias para
a libertação da condição de opressão a que são submetidas crianças e adolescentes em
situação de violência sexual, tendo em vista ser um fenômeno que envolve uma conspiração
silenciosa na sociedade.
19
Tendo o diálogo como algo que faz parte da própria natureza histórica dos seres
humanos, que coloca a palavra como possibilidade de encontro, de anúncio e de denúncia, de
desvelamento, do dizer de si mesmo, como elemento fundante na relação com o saber, abre-se
a possibilidade de construção de uma postura democrática nas relações em detrimento de uma
postura de poder que se concretiza nas relações assim caracterizadas.
Neste sentido, a contribuição freireana (1996) vem na perspectiva crítica da percepção
das situações de violência e injustiça que envolve a realidade concreta de quem sofre a
violência, seja ela qual for, para a possibilidade do movimento de mudança na sociedade,
tendo como premissa o diálogo que desafia a pessoa pensar-se como sujeito histórico social.
A relevância desta pesquisa, que questiona problemas antigos da nossa
sociedade, consistiu na reflexão acerca de um fenômeno imensurável pelas suas
implicações subjetivas e o reconhecimento de que os lugares da educação não se
restringem apenas à escola. Parte-se para um processo de democratização do
conhecimento, podendo trazer contribuições na perspectiva de práticas educativas
problematizadoras para o questionamento e a desconstrução do instituído, podendo
mobilizar o sistema de garantia de direitos em prol de crianças e adolescentes para que
se possa vislumbrar na sociedade contemporânea um movimento na busca incessante
de políticas públicas universais e garantidoras de direitos.
Nesse movimento pergunta-se pela escola cidadã, que para Gadotti (2000, p.48), passa
pelo questionamento de “qual é o papel da educação, na formação para a cidadania e para o
desenvolvimento”, quando ressalta as experiências concretas de renovação do ensino.
Renovação que, originada no movimento de educação popular como uma alternativa ousada
resulte numa escola de qualidade para todos. Sendo esta, “uma escola que, além de formar o
aluno para o mercado de trabalho e para a vida em sociedade, seja capaz de formá-lo para o
exercício pleno de seus direitos e deveres”, tendo como pressupostos o atendimento integral à
criança e ao adolescente, a participação comunitária e gestão democrática e a ampliação da
jornada escolar para alunos e professores de uma mesma escola. A escola cidadã seria a
escola pública, estatal e democrática, tentando superar a crise paradigmática mundial com os
desafios da universalização do ensino e de encontrar respostas teóricas para as transformações
da contemporaneidade. Para tanto, tomou-se como concepção de cidadania o entendimento de
Faleiros, quando aborda o imbricamento entre reprodução de força de trabalho e processo de
acumulação inserida numa rede de cidadania:
20
A cidadania compreende o reconhecimento dos indivíduos e coletivos como
sujeitos na construção da história, pela participação política, pelo exercício
da autonomia e pela garantia que lhes é dada, num Estado de Direito, das
condições e meios de vida tanto como direitos individuais (fruto do
liberalismo), quanto como direitos políticos (liberalismo e democracia), e
direitos sociais (socialismo e social-democracia), ao meio ambiente saudável
e à bioética (FALEIROS, 2000, p. 43).
Esta concepção permite perceber a necessidade de urgência, emergência e ampliação
das políticas sociais, entre elas a educação, para que a sociedade tenha acesso à leitura de sua
realidade, descobrindo caminhos nas escolhas para sua autonomia e liberdade.
A contribuição deste estudo para o Programa de Pós-Graduação em Educação da
UFPB dá-se pelo tema profundamente pertinente, trazendo a discussão sobre uma questão da
contemporaneidade. Ainda, pela articulação da educação com um fenômeno que rebate na
escola, mas, para o qual não há políticas públicas efetivas de formação para o seu
enfrentamento, sendo as ações existentes recentes, incipientes e assistemáticas para um
enfrentamento efetivo da problemática.
Do ponto de vista social, aponta para a reflexão no desvendamento da realidade que,
no contexto atual, insiste em negar os direitos sociais fundamentados como dever do Estado,
especificamente do segmento da criança e do adolescente naturalizando posturas até então não
consideradas atos de violência. Nesse sentido, entende-se como LEAL (2002, p. 28), ao
afirmar que:
A ousadia em denunciar este fenômeno ao Brasil e ao mundo não é apenas
para demonstrar a crise da modernidade, da ética e da democracia, mas
indicar que existe uma sociedade indignada com as respostas dos sistemas
de produção e valores.
Desenvolve-se, então, uma reflexão sobre a correlação de forças como forma de
interferir no comprometimento da sociedade e do governo na busca de novas práticas políticas
para superação deste problema.
Considerações metodológicas
Adotou-se, neste estudo, a abordagem qualitativa, entendendo a realidade de forma
dinâmica, contraditória e sempre em movimento. Sem rechaçar os dados quantitativos que
serviram de complementos para análise do real, potencializou-se uma análise mais abrangente
do fenômeno, relacionando-o com os aspectos estruturais, buscando superar a dicotomia
21
epistemológica entre qualidade-quantidade. Como é sabido, “a pesquisa qualitativa rejeita a
possibilidade de descoberta de leis sociais e está preocupada com a compreensão ou
interpretação do fenômeno social, com base nas perspectivas dos atores por meio da
participação em suas vidas” (TAYLOR & BOGDAN, 1984, apud SANTOS FILHO, 2002, p.
43).
Minayo (2000, p. 22) indica que a metodologia “inclui as concepções teóricas de
abordagem, o conjunto de técnicas que possibilitam a apreensão da realidade e também o
potencial criativo do pesquisador”. O potencial criativo insubstituível que juntamente com a
experiência poderão ter um papel fundamental na relativização dos instrumentais técnicos traz
à tona a singularidade do trabalho, com a marca do autor, na perspectiva de correlacionar a
realidade objetiva com a complexidade que o tema exige.
Esta pesquisa se caracterizou como estudo de caso, que para Trivinos (1987) tem por
objetivo aprofundar a análise de determinada realidade, dada à natureza e a abrangência do
que é abordado, quanto pelo suporte teórico que serve de orientação para a observação do
fenômeno e suas relações estruturais fundamentais. Ludke e André (1986, pp. 18-19) afirmam
que:
Os estudos de caso enfatizam a interpretação em contexto, em que a
manifestação geral de um problema, as ações, as percepções, os
comportamentos e as interações das pessoas devem ser relacionadas à
situação específica onde ocorrem ou à problemática determinada a que estão
ligados.
O universo desta pesquisa foram escolas públicas do município de Campina GrandePB. Comumente, a pesquisa qualitativa não se baseia em critério numérico para garantir sua
representatividade. Contudo, diante da amplitude de base investigativa, cento e trinta escolas,
levou-se a definição de uma escolha de três escolas. O critério de eleição destas escolas deuse em função de terem sido planejadas com o objetivo de atenderem crianças e adolescentes
em horário integral. Entende-se que a perspectiva do horário integral diminui o tempo de
exposição de crianças e adolescentes aos riscos sociais impostos num contexto de
vulnerabilidade numa sociedade violenta. Efetivamente, isto não vem ocorrendo, em função
da grande demanda das comunidades, como também, a falta de recursos para manter este
modelo de educação, em virtude da ausência de uma política educacional voltada para a
perspectiva da integralidade. Assim, passam as mesmas a funcionarem com três turnos de
alunos diferenciados, atendendo em média 600 alunos cada uma. O primeiro turno funciona
22
com o primeiro e segundo ciclo (1ª à 4ª série), o segundo turno com o terceiro e quarto ciclo
(5ª à 8ª série), sendo o terceiro turno com as turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Localizadas em bairros distantes entre si, com três realidades diferenciadas, e uma
estrutura física única que proporciona a socialização entre os alunos (refeitório, cozinha, pátio
central para atividades coletivas, estruturado como um círculo facilitando a possibilidade de
se trabalhar numa perspectiva dialogal com a comunidade escolar e salas de aula amplas). O
prédio é circulado por uma área favorável a atividades recreativas, possuindo uma área
coberta. Essas escolas são denominadas de Centro Educacional de Atividades Integradas
(CEAI), sendo elas:
1) CENTRO EDUCACIONAL DE ATIVIDADES INTEGRADAS DR. JOÃO
PEREIRA DE ASSIS, localizado no bairro do Catolé, considerado de classe média, atende
aos alunos do bairro do Tambor, localidade próxima à escola, ocupada de forma desordenada
e urbanizada recentemente pelo poder público municipal.
2)
CENTRO
EDUCACIONAL
DE
ATIVIDADES
INTEGRADAS
GOVERNADOR ANTONIO MARQUES DA SILVA MARIZ, localizado no antigo Velame,
hoje, bairro Jardim Borborema, zona próxima ao distrito dos mecânicos, constituindo-se numa
população exclusivamente de baixa renda ou sem nenhuma remuneração fixa, sendo o
segmento social-alvo atendido crianças vivendo entre o viver da rua e na rua e oriundas de
áreas circunvizinhas.
3) CENTRO EDUCACIONAL DE ATIVIDADES INTEGRADAS ELPÍDIO DE
ALMEIDA, localizado no bairro da Ramadinha II, periferia do município, até bem pouco
tempo conhecida como “Carandiru”, tendo suas salas de aulas numeradas pelos próprios
alunos, como se fossem “celas”. A única das três, sem funcionamento no horário noturno, em
função da impossibilidade de trabalho, com a crescente violência urbana, em especial o tráfico
de drogas na comunidade.
A escolha pela escola pública aconteceu, entre outras questões, em função da linha
de pesquisa Políticas Públicas e Práticas Educativas vinculada ao PPGE/UFPB, entendendo
que no âmbito das políticas educacionais, as mesmas são direcionadas para as escolas
públicas como fins dos objetivos de atendimento à população. Esta vive a realidade da
exclusão, evasão, repetência com a responsabilidade de formação dos “recursos humanos”
para a estrutura de produção imposta pela lógica neoliberal. Um outro ponto importante nessa
escolha é a gratuidade da escola pública, assumindo junto à população de baixa renda, seu
papel político e social enquanto uma das mais importantes instituições produzidas pela
sociedade, podendo assim, dentro do seu caráter contraditório, minar ou reproduzir o discurso
23
hegemônico, com a função estratégica de ser um dos agentes centrais de formação da pessoa
humana e de atuação das ideologias.
Os sujeitos desta pesquisa foram os educadores das escolas citadas, sendo escolhidos
22 educadores: 03 gestoras, 14 professores e 05 técnicos. Dentre os técnicos, 02 são
orientadores educacionais, 02 são supervisoras e 01 é assistente social.
Como instrumento e técnicas de coleta de dados, foi utilizada a entrevista semiestruturada (apêndice A) conduzida por roteiro flexível, estabelecido anteriormente, com o
uso do gravador, previamente autorizado e posteriormente transcritas. Segundo Triviños
(1987, p.146), a técnica de entrevista:
ao mesmo tempo que valoriza a presença do investigador, oferece todas as
perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a
espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação.
Ainda recorreu-se aos documentos que normatizam os direitos da criança e do
adolescente, tais como: Estatuto da Criança e do Adolescente; Plano Nacional, Estadual e
Municipal de Enfrentamento à Violência Sexual infanto juvenil (2000-2002); Plano Operativo
de Enfrentamento à Exploração Sexual e Tráfico de Crianças e Adolescentes (2003); Guia
Escolar do Ministério da Educação (2003), Plano Municipal de Educação, Relatórios do
Programa Sentinela do município de Campina Grande-PB, Filmografia, dentre outros.
O procedimento de tratamento e análise dos dados se respaldou na análise de conteúdo
identificada na aproximação com o objeto de estudo, permitindo a interpretação das condutas,
dos discursos e das práticas dos sujeitos envolvidos, inseridos num contexto social. Como
afirma Bardin, apud Trivinos (1987, p. 160), trata-se de:
um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das
mensagens, obterem indicadores quantitativos ou não, que permitam a
inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção
(variáveis inferidas) das mensagens.
Ainda conforme Bardin (1977, p.43) “a análise de conteúdo toma em consideração as
significações”, trabalhando com a semântica, procurando conhecer o que está por trás das
palavras. Assim, permite “na análise o contexto não só lingüístico, mas também histórico das
expressões, conceitos etc” (TRIVINOS, 1987, p.163). A escolha por esse procedimento de
análise deu-se pela complexidade da temática, entendendo que “do ponto de vista operacional,
24
a análise de conteúdo parte de uma literatura de primeiro plano para atingir um nível mais
aprofundado: aquele que ultrapassa os significados manifestos” (MINAYO, 2000, p. 203).
Considerações Éticas
Esta pesquisa obedece às recomendações da Resolução no 196 do Conselho Nacional
de Saúde, sendo submetida e aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa, do Centro de
Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba (CEP/CCS/UFPB), no dia 25/10/06,
Termo de consentimento livre esclarecido dos sujeitos, mantendo o sigilo dos entrevistados,
sendo identificados pela categoria profissional, que se encontra em (anexo B).
Este trabalho está organizado em três capítulos e considerações finais. Sua construção
foi pensada tendo como ponto de partida o problema da pesquisa no âmbito macro com as
questões conjunturais e estruturais que regem as ações da educação no campo de ação micro,
no cotidiano das práticas educativas. Expressa-se na compreensão do fenômeno da violência
sexual contra crianças e adolescentes sob a interpretação de educadores (sujeitos) no contexto
de Campina Grande.
O primeiro capítulo trata da contextualização do objeto enfatizando a política social na
conjuntura mundial, latino americana e brasileira, destacando os aspectos históricos no
reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e a política educacional
voltada para a infância e adolescência. Trata-se de entender como foram construídas no Brasil
as políticas para a infância e o entrelaçamento dessas questões com o fenômeno da violência
sexual contra crianças e adolescentes. Ressalta o contexto social e o caráter político da
educação.
O segundo capítulo aborda a problemática violência sexual infanto-juvenil,
considerando as perspectivas histórica, ética e política. Aponta diferenças entre as categorias
de abuso e exploração sexual, nas diversas regiões do país, como fenômeno multifacetado,
expressão histórico-social engendrada nas relações cotidianas. Discute as relações de poder,
desigualdade de gênero e meios de coerção. Abrange o campo da moral, da proteção aos
direitos humanos no círculo da violência sexual.
O terceiro e último capítulo dedica-se à análise da concepção de violência sexual
contra crianças e adolescentes extraídas das falas dos educadores, sujeitos desta pesquisa.
Aponta para os desafios e dificuldades em relacionar as práticas educativas cotidianas com as
questões macroestruturais no enfrentamento da questão, para o reconhecimento da
necessidade de formação e do papel decisivo da escola nesta articulação com a temática. No
25
desvelamento da questão, a partir da fala dos educadores incluindo gestores, professores e
técnicos da educação emerge a face da realidade das escolas no trato com questões subjetivas
que fogem ao planejamento didático-pedagógico. Revela os desafios e limites para a
construção de um processo educacional reflexivo, participativo e dialogado.
As considerações finais apresentam lições aprendidas no descortinamento de novos
estudos que possam contribuir para o avanço de um processo emancipatório humanizador. A
responsabilidade social da educação mostra o caráter protetivo e interventivo na construção da
cidadania de crianças e adolescentes em situação de violência sexual.
26
CAPÍTULO I
POLÍTICAS SOCIAIS PARA A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
27
1.1 Notas introdutórias acerca das políticas sociais no contexto brasileiro
Em geral, a literatura reconhece que a existência da política social é um fenômeno
associado ao padrão de acumulação capitalista moderno, que desde os fins do século XIX, e,
mais precisamente, depois da Segunda Guerra Mundial, foi distanciando-se do laissez-faire e
do legado das leis contra a pobreza, como defendia o liberalismo clássico. A partir deste
contexto econômico e social, a socialização da política e o reconhecimento da questão social
no contexto europeu passam a determinar a política social, considerada um esquema de
proteção social sob responsabilidade do Estado intervencionista.
Assim, a origem da Política Social é comumente relacionada à dinâmica contraditória
dos movimentos de massa social-democratas, ao estabelecimento dos Estados-Nação na
Europa ocidental e as estratégias do capital. Nesse processo, o sociólogo britânico T. H.
Marshall registra primeiro as conquistas pelos direitos civis no século XVIII. Os direitos
civis, considerados por Coutinho (2000) como direitos históricos, dizem respeito ao direito à
vida, à liberdade de pensamento e de movimento e o direito à propriedade. Também
chamados de direitos naturais inalienáveis por Locke, principal teórico da Gloriosa Revolução
de 1688. Esses direitos surgiram como demandas da luta contra o Estado absolutista, pela
burguesia que se encontrava em ascensão. No século XIX, dá-se a conquista pelos direitos
políticos e finalmente no século XX, pelos direitos sociais. Nessa seqüência, uma exceção é
anotada por Marshal, considerada como pré-requisito para a expansão de outros direitos que é
a educação popular, possibilitando a tomada de consciência em relação aos direitos e a
organização pela luta dos mesmos.
Para Coutinho (2000), os direitos sociais não interessam à burguesia. E a ampliação da
cidadania, sendo um processo que entra em choque com a lógica do capital, incita o mesmo a
resistir, recuar e fazer concessões, mas sem deixar de tentar suprimir os direitos conquistados.
Essas tentativas resultam, na maioria das vezes, em imposições coercitivas tendo como
principais recursos a violência e a opressão.
Com a questão social aflorada em virtude da crise estrutural e mundial em 1929,
sobretudo, na Europa (Inglaterra e Alemanha), o economista liberal Jonh Keynes propõe a
intervenção do Estado, como uma política anti-cíclica, que adota uma economia do pleno
emprego, o desenvolvimento do capitalismo através do consumo, universalização dos serviços
sociais e extensão da cidadania (além da civil e política), compreendendo o período de 1940 a
1970.
28
Assim, o surgimento e o desenvolvimento da Política Social são determinados pela
questão social e a crise econômica mundial, sendo identificada como:
Um complexo político-institucional denominado seguridade social
(inaugurado na Inglaterra, na década de 40), o qual por sua vez, constitui a
base conceitual e política do Estado de Bem-Estar ou do Welfare State,
como é internacionalmente conhecido (PEREIRA, 1998, p.61).
Nos anos de 1970, o Estado de Bem-Estar entra em crise com a diminuição dos ganhos
do capitalismo e com a crise do petróleo. A crítica dos neoliberais reside no paternalismo do
Estado, ao Estado Keynesiano, surgindo o movimento político e econômico com uma nova
roupagem do liberalismo clássico, ou seja, o neoliberalismo3. Este tem o objetivo de enxugar
o Estado, ou seja, com a visão de um Estado fraco, mínimo, reduzindo os gastos sociais,
focalizando as políticas sociais, privatizando as empresas estatais, fragilizando os sindicatos e
flexibilizando os direitos trabalhistas através da reestruturação produtiva. Com o avanço
tecnológico, resultando no fenômeno da globalização, tem-se como países expoentes os EUA
com Reagan nos anos de 1980 e a Inglaterra com Thatcher nos anos de 1990 (ANDERSON,
1995).
O modelo inglês, dentre todas as experiências neoliberais em países de capitalismo
avançado, considerado por Perry Anderson (2003), como o mais sistemático e ambicioso
pacote de medidas, chegou ao seu apogeu com um amplo programa de privatização.
Diferentemente, o modelo norte-americano centra seu alvo na competição militar, lançando-se
numa corrida armamentista, deixando o país com o maior déficit público da sua história. A
onda neoliberal acaba sendo hegemônica, sobretudo, nos países do ocidente, favorecendo a
acumulação rentista, através do capitalismo especulativo, a fragmentação social, o
desemprego maciço e a dissolução dos laços sociais.
Durante a segunda recessão nos anos de 1990, no ocidente, do outro lado do mundo,
acontecia a queda do Socialismo real na Europa oriental e na União Soviética, ganhando novo
fôlego e vitalidade o projeto neoliberal. A América Latina, “terceira grande cena de
experimentações neoliberais” (ANDERSON, 2003, p. 19), passou a ser considerada a
primeira experiência neoliberal sistemática do mundo com os resultados nos anos de 1980, do
Chile, abolindo a democracia, vivendo uma ditadura e da Bolívia para deter a hiperinflação.
Diante das experiências vividas por esses dois países, os anos de 1990 são marcados
pelas vivências no México, Argentina e Peru, obtendo êxito em curto prazo, diante do
3
Conjunto particular de receitas econômicas e programas políticos que começaram a ser propostos nos anos 70.
29
fracasso da Venezuela, sendo o único país da América do Sul a escapar da ditadura militar. O
fenômeno hegemônico do neoliberalismo numa avaliação provisória realizada por Anderson
(2003), por ser um movimento ideológico inacabado, fracassou economicamente, por não
conseguir a revitalização do capitalismo avançado. Contudo, do ponto de vista social, político
e ideológico conseguiu mais desigualdades, disseminando a idéia de que não há saídas,
submetendo à adaptação às suas normas, como alternativa para a sobrevivência. Assim, os
sucessos ideológicos e políticos se sobressaem aos econômicos, mas ao mesmo tempo, a crise
econômica propicia o controle inflacionário reforçando os efeitos ideológicos e políticos.
Em relação à proteção social, o processo de globalização e desregulação da economia,
conforme Pereira (1998), indicou uma outra forma de divisão de responsabilidades entre o
Estado, mercado e sociedade, evidenciando-se um recrudescimento na proteção social dos
cidadãos rejeitados pelo mercado de trabalho.
Esses princípios de desregulação estatal estão presentes no Consenso de Washington4
no final dos anos de 1980 e deixa
a impressão amarga de que a América Latina possa haver se convertido, com
a anuência das suas elites, em um laboratório onde a burocracia internacional
baseada em Washington – integrada por economistas descompromissados com
a realidade política, econômica e social da região – busca pôr em prática, em
nome de uma pretensa modernidade, teorias e doutrinas temerárias para as
quais não há eco nos próprios países desenvolvidos onde alegadamente
procura inspiração (BATISTA, 2001, p. 48).
Na análise de Fernandes (2003 apud SADER e GENTILI, 2003), os pilares
fundamentais do neoliberalismo são três: a acelerada reversão das nacionalizações, com as
privatizações; a desregulamentação das atividades econômicas e sociais pelo Estado; a
reversão de padrões universais de proteção social.
Destaca duas conseqüências negativas deste projeto: a primeira, no ordenamento
democrático das sociedades e a segunda, na capacidade soberana de desenvolvimento dos
países por seus povos.
As posições sustentadas por Anderson (2003), Pereira (1998), Batista (2001), e
Fernandes (2003 apud SADER e GENTILI, 2003), parecem complementares em suas
análises, destacando a realidade do desmonte dos direitos sociais. Neste sentido, as questões
4
Encontro realizado em Washington (EUA), com formato acadêmico e sem caráter deliberativo, entre
funcionários do governo americano e organismos financeiros (FMI, Banco Mundial e BID), especializados em
assuntos latino-americanos com o objetivo de proceder uma avaliação das reformas econômicas empreendidas
nos países da região (BATISTA, 1994).
30
sociais como educação, saúde, distribuição de renda, redução da pobreza, ficaram de fora das
discussões, nos poucos espaços remanescentes para formulação de políticas públicas, diante
da avassaladora onda neoliberal.
No quadro de transformações por que passa o mundo, contextualizar as políticas
sociais num país, com características complexas e particulares como o Brasil, sugere a
retomada da realidade do continente latino-americano, para compreensão da dinâmica das
relações internacionais de poder que estão em jogo no atual contexto de desregulamentação
dos Estados nacionais, de ênfase na pauperização do capital e promoção de tecnologias
poupadoras de mão-de-obra.
Para refletir o surgimento e desenvolvimento da política social no Brasil, faz-se
necessário destacar a formação do capitalismo neste país. Sabe-se que o caminho para o
capitalismo se deu numa via não clássica, pois, aqui, não fomos o berço da Revolução
Industrial. Behring e Bochetti (2006) chamam a atenção para as marcas históricas do nosso
país como: colonização, subordinação e dependência ao mercado mundial, peso do
escravismo – último país do mundo a abolir o trabalho escravo e uma economia agrária
exportadora.
Tomando como ponto de partida para essa discussão o contexto latino-americano,
esse quadro é agravado pelo empobrecimento de amplos setores da sociedade, diante da
“onerosa hegemonia evidenciada pelo pensamento econômico neoliberal das classes
dominantes” (TORRES, 2001, p.160). Também, sofre os efeitos do ajuste estrutural, trazendo
conseqüências nefastas, como o aumento da violência e a marginalização das massas.
Paralelamente, setores da sociedade civil se empenham em mobilizar as forças de
resistência contra o expansionismo imperialista avassalador, reivindicando políticas públicas
na direção da garantia dos direitos sociais.
Candau (2000) aponta que é nesse contexto de mobilização social e afirmação da
sociedade civil5, da preocupação com a construção de uma cidadania e de uma nova cultura
política que a atenção para a questão dos direitos humanos toma relevância, sobretudo, no que
se refere à educação em direitos humanos, que é “chamada a contribuir para a construção de
uma sociedade verdadeiramente democrática”.
É importante a análise de alguns elementos para entender a reprodução da pobreza no
contexto latino-americano, na visão de Pilotti (1995), tais como: a dinâmica demográfica, que
5
Lugar de movimento, de contradições e forma de articulação social onde se revelam as possibilidades de
construção de hegemonia das classes subalternas e “a elevação intelectual, moral e política dos dominados”
(AMARAL, 2006, p.84).
31
favorece a transmissão da pobreza entre as gerações; o processo de urbanização, concentrando
grande parte da pobreza nas áreas urbanas; o número muito alto de lares sem a presença do
pai e com pouco espaço e o clima educacional baixo. Somadas a estes elementos, ainda
incidem nesta realidade a incapacidade estrutural de geração de emprego na economia, com
um contingente populacional fora da qualificação formal. O desemprego estrutural causa a
exposição no mercado da informalidade, sem possibilidades de competitividade no mercado,
pela fragilidade e vulnerabilidade dos cidadãos.
Abordando a situação da infância na América Latina, Pilotti (1995, p.15) nos adverte
sobre o contexto de miséria e pobreza que agrava as profundas desigualdades existentes nas
sociedades latino-americanas. Afirma que “a maioria das crianças é pobre e a maioria dos
pobres é criança”, outorgando a pobreza um caráter estrutural, agravada pelas crises mundiais
periódicas e as políticas de ajuste para resistência à crise da dívida. Esta situação ocasiona a
diminuição do orçamento social, trazendo como conseqüência mais grave, o debilitamento na
transformação social entre as sociedades latino-americanas.
Há também o aumento do risco para a infância com a deterioração da escola pública, o
corte de subsídios etc, mudando assim, o cenário social com características de uma conjuntura
em crise, através das múltiplas manifestações de violência. E adverte: “a preocupação com a
situação da infância começa a se afastar de seu enfoque tradicional, caritativo e assistencial,
para elevar-se à categoria de urgência social com evidentes repercussões políticas”.
(PILOTTI, 1995, p.15).
Na América Latina quase todos os países ratificaram a Convenção sobre os Direitos da
Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1989, numa realidade onde
quase 100 milhões de crianças vivem privações. Este quadro presente nas cenas públicas e
privadas do contexto latino-americano como conseqüência da extrema pobreza de caráter
estrutural foi agravado pelas crises mundiais. A Convenção conjuga num só documento legal,
direitos civis, políticos e sociais com direitos econômicos, considerados imprescindíveis à
proteção integral da criança e do adolescente. Neste sentido, cria o Comitê dos Direitos da
Criança como meio de colocar em prática os preceitos da Convenção pelos Estados
participantes. Portanto, a convenção é considerada como passo decisivo de novo paradigma
para as políticas em relação à infância, coincidindo com a volta dos processos democráticos
na América Latina.
Concretamente, esses rebatimentos foram construídos com a interferência dos
movimentos da sociedade, influenciando a definição dos conteúdos educativos, na história da
América Latina, através de diversos mecanismos, resultando em reformas nos sistemas
32
educativos sem uma proposta transformadora e hegemônica. Estas reformas que provocaram
uma inegável significação cultural com a ampliação quantitativa das políticas educacionais,
fazendo com que a população freqüentasse a escola, não foi suficiente para mantê-la no ciclo
de educação elementar.
Borón e Torres (1996) chamam a atenção para o paradoxo na relação direta, entre a
pobreza e a democracia, na contemporaneidade. O primeiro, de natureza ética, representada
pelas políticas neoliberais impostas, com os custos da estabilização e do ajuste estrutural; o
segundo, de natureza econômica, com a necessidade de melhorar a “racionalidade”
macroeconômica do capitalismo latino-americano; e o terceiro os efeitos do ajuste
(estrutural), fundamentada na ideologia das novas democracias. Sendo consideradas como
tendências ameaçadoras a liberdade, redundando num aumento da desigualdade social, da
miséria, entrando num círculo vicioso e sem perspectivas de saída.
Para Borón (1994, p. 38) as demandas sociais de setores da sociedade civil aumentam
com as injustiças provocadas pelo ajuste e recomposição da crise capitalista, expondo a
vulnerabilidade e fragilidade de uma “democracia reduzida a uma fria gramática do poder e
purgada de seus conteúdos éticos”. Essa vulnerabilidade se apresenta no perigo do
esgotamento de seus conteúdos e propósitos, com
o aumento da violência e criminalidade, a decomposição social e a anomia, a
crise e a fragmentação dos partidos políticos, a prepotência burocrática do
executivo, a capitulação da justiça a corrupção do aparato estatal e da
sociedade civil, a ineficácia do Estado o isolamento da classe política, a
impunidade para os grandes criminosos e “mão dura” para os “pequenos
delinqüentes” (Grifos do autor e nosso, BORÓN, 1994, p. 38).
Por outro lado, ainda na visão de Bóron (1994), as características das novas
democracias latino-americanas como a liberdade, a tolerância e o pluralismo possibilitando a
avalanche de reivindicações da sociedade civil, rebatem na capacidade Estatal de produção e
sustentação de políticas que venham superar os efeitos da crise, com suas contradições e
antagonismos sociais. Neste sentido, vislumbra uma tendência deslegitimadora de uma
democracia que ainda não se firmou, podendo correr riscos de desestabilização.
Na visão de Cohn (1999), o enfrentamento à pobreza vem sendo disputada pelas
diferentes forças políticas, enquanto a desigualdade aumenta, condenando as políticas sociais
aos limites estreitos de alívio e não superação da pobreza.
Portanto, a construção das políticas sociais na América Latina vem acompanhada,
particularmente por uma cultura política centralizada, clientelista, autoritária, tornando-se
33
urgente a preservação da democracia em processo de construção e enfretamento das
dificuldades postas para o exercício dos direitos e deveres próprios a uma sociedade
democrática. Traz-se para esse contexto, a afirmação de um estudioso dos processos
democráticos da América Latina, ao analisar a situação da América Latina hoje, “a
democracia latino americana envelheceu precocemente porque não teve uma alma social”6.
Pode-se dizer que Torres (1996), Borón (1994) e Cohn (1999) apontam em suas
análises o agravamento da questão social provocada pela política macroeconômica adotada, a
partir dos anos 90, distanciando a necessidade de valorização social do cidadão no acesso ao
capital cultural, científico e político.
No Brasil, o processo histórico de implantação dos direitos sociais precedeu, segundo
Carvalho (2003, p.24), os direitos civis e políticos. Até ao final da primeira república, “os
direitos civis beneficiavam a poucos, os direitos políticos a pouquíssimos, dos direitos sociais
ainda não se falava, pois o acesso aos serviços públicos estava a cargo da Igreja e de
particulares”, se caracterizando por ações filantrópicas, de ajuda e caritativas.
Assim, a política social, definida por Faleiros (2000, p. 43) distancia-se destas ações
e consiste em um “processo de reprodução da força de trabalho através de serviços e
benefícios financiados por fundos a eles destinados”. Sendo, ainda, um mecanismo de
distribuição de renda, transformado em forma de benefícios, proteção e serviços numa
dimensão legitimadora da relação Estado e sociedade civil, que não afetam de forma direta as
relações de produção capitalista.
Ainda na análise de Faleiros (2000), essa construção no Brasil foi mediada por um
eixo articulador na sua relação Estado, sociedade e economia e assinalada por vários
momentos distintos no seu processo histórico.
O primeiro momento dos anos 1930 aos de 1960, modelo getulista de proteção
social, foi enfatizado na divisão das categorias, em troca do controle social das classes
trabalhadoras. Caracterizou-se pela sua fragmentação, limitação, pela desigualdade, pelo
corporativismo, pelas relações personalizadas entre presidente, ministro e dirigentes sindicais,
prejudicando as relações de garantia da cidadania e a implementação dos benefícios. Estes
benefícios foram criados pelo Ministério do Trabalho em 1930, extensivos aos trabalhadores
marítimos, estivadores, bancários e industriários, deixando a grande maioria da população de
trabalhadores rurais fora do sistema estatal de previdência até 1970. No ano de 1942, com a
6
Fala de Emir Sader no I Seminário Internacional Direitos Humanos, Violência e Pobreza: a situação de crianças
e adolescentes na América Latina Hoje, no Rio de Janeiro, em outubro de 2006, na Conferência “A gestão da
Miséria e a Questão da Cidadania na Contemporaneidade”.
34
criação da Legião Brasileira de Assistência (LBA), para atendimento às famílias dos
pracinhas, anos depois à maternidade e a infância, busca-se a legitimidade junto aos pobres.
Em 1960, foi aprovada a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), definindo a unificação
dos benefícios dos vários Institutos de Aposentadorias e Pensões, regulamentando a
aposentadoria para mulheres e homens. Esse contexto político populista, com uma ideologia
difusa, predomina até o golpe militar de 1964, passando do nacionalismo de Vargas, ao
desenvolvimentismo de Kubitschek, ao moralismo em Quadros e ao reformismo em Goulart.
O segundo momento, os anos de 1964 até 1980, compreendeu o período da ditadura
militar, caracterizado pela forte censura, ausência de eleições, repressão com uso da violência
e controle do Congresso Nacional pelo poder militar. Em 1966, com uma política
centralizadora, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Este Instituto era
administrado pela tecnocracia e buscava legitimar e modernizar o modelo getulista na
ampliação da previdência durante os anos da década de 1970. Com a criação do Ministério da
Previdência e Assistência Social, o benefício é estendido aos trabalhadores rurais, empregados
domésticos, jogadores de futebol, ambulantes e idosos pobres com mais de 70 anos.
Considerado um modelo repressivo, centralizado, autoritário, desigual, que dava continuidade
ao favorecimento de pequenos grupos, contraditoriamente, neste contexto, como forma de
legitimação do modelo, registra-se uma expansão das políticas sociais, na perspectiva da
modernização conservadora.
O terceiro momento – abertura do regime militar, é marcado pela anistia em 1979,
pela eleição para governadores em 1982 e a luta pelas eleições diretas para a Presidência da
República. As políticas referentes à Previdência, a assistência social e a saúde são incluídas
na Seguridade Social, passando a ser direitos do cidadão e dever do Estado. Este contexto se
apresenta contraditoriamente com o Congresso definindo o conceito de cidadania,
incorporando direitos sociais e o governo promovendo o desmonte das políticas sociais e
direitos garantidos, para se manter no poder, após a morte de Tancredo Neves. Considerado
como um momento progressista, assinalado pelo processo constituinte, com a promulgação da
Constituição de 1988, assegura postulados para o ECA, constituindo-se num rompimento
lento e gradual com a ditadura militar. A saúde e a assistência social passam a ser direitos do
cidadão e dever do Estado. Portanto, na concepção de Faleiros (2000), este momento foi
vivenciado no conflito entre uma política clientelista, cooptadora e fragmentada, com um
modelo de garantia de direitos, descentralizado e participativo.
No quarto momento das reformas neoliberais dos anos de 1990, o país elege o
primeiro Presidente da República, após a ditadura militar, Fernando Collor. Neste governo, a
35
estratégia governamental para as políticas sociais foi marcada pela formulação de uma agenda
de reformas, visando à revisão constitucional, no sentido de obstruir a consumação dos novos
direitos garantidos naquela Carta. Este mesmo governo contribui com a abertura econômica,
aceleração do processo de privatização, demissão de funcionários, ocasionando a volta da
inflação e do esquema de corrupção, levando-o ao seu impeachment. Em 1993, tardiamente é
aprovada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), tornando a assistência social como
um dever do Estado e um direito do cidadão. Em 1994, com a adoção da nova moeda, o Real,
consegue-se estabelecer o controle inflacionário, mas, por outro lado, mantêm-se estagnada a
desigualdade de renda no país, caracterizando o período como de contra-reforma do Estado
brasileiro. Eleito novo presidente, que mantém maior abertura da economia aos capitais
internacionais, privatização do patrimônio público, a redução dos direitos sociais e
desregulamentação das leis trabalhistas.
Neste processo, o modelo político de favorecimento do mercado e redução do Estado
favorece a reeleição, submete o país ao Fundo Monetário Internacional, comprometendo a sua
autonomia. Assim, com a priorização da especulação em detrimento do trabalho e a crise
instalada, o modelo neoliberal prevê que a garantia do Estado de direito é sabotada pelo bemestar individual.
Diante dessas considerações e da constatação de que os interesses da classe
dominante se sobrepõem historicamente, se contrapondo ao que legalmente foi conquistado,
revela-se uma práxis contraditória no que diz respeito às políticas sociais básicas. Então,
pergunta-se: como conviver com a carência cidadã para a maioria, ficando esse direito como
privilégio de poucos?
Constata-se na visão de Coutinho (2000), que a presença e o reconhecimento legal
dos direitos nas Constituições não dão garantias da efetivação e materialização dos mesmos,
como é o caso do Brasil. Mas, considera a importância desse reconhecimento como facilitador
na luta para transformá-los um dever do Estado. Na opinião de Dias (1996, p.134), “herdando
um país acostumado a obedecer, cheio de súditos e vazio de cidadãos, a burguesia não vê por
que levar a sério a lei e a cidadania”, faz-se necessário tomar o campo da cidadania como
espaço de luta nas contradições inseridas no jogo democrático. O movimento social quando
colocado no centro da luta social tomou forma de articulação, mostrando a força real da
sociedade civil. Mesmo com a imposição do mercado, aceitar a desigualdade como natural
implica na aceitação da “redução da democracia à obediência às regras do jogo” (DIAS, 1996,
p.137).
36
Retomando Pilotti (1995, p. 45), quando articula o quadro social que interfere nos
alicerces da convivência democrática, e apoiando-se nas palavras de Sader, questiona-se:
“Democracia é coisa de gente grande?”. Assim, pergunta pela prioridade da infância
brasileira, quando aponta que, “A democracia só perdura quando é efetivamente socializada
como valor cultural fundamental para jovens e crianças”. Destaca que numa sociedade
democrática, os cidadãos que sofreram violência na infância terão indubitavelmente
dificuldades para exercer seus direitos e deveres.
Na análise de Coutinho (2000), Dias (1996) e Pilotti (1995), a democracia e a
cidadania aparecem como eixo comum no contexto da contradição, como a via possível de
mudança desse quadro desolador. Dando continuidade a essa lógica histórica, faz-se
necessário trazer para o debate a contextualização das políticas sociais brasileiras para o
segmento infanto-juvenil.
1.1 As Políticas Sociais voltadas para a infância no Brasil: da repressão ao direito
No Brasil, a história das políticas para a infância e a adolescência foi marcada pelo
controle e repressão numa perspectiva saneadora, ou seja, a infância foi constituída nas
práticas discursivas e institucionais como objeto de intervenção higiênica e disciplinar. Este
eixo saneador que tinha como prática constante o recolhimento de crianças na rua, atinge seu
nível trágico na década de 1980 com a organização dos grupos de extermínio, com a anuência
da sociedade civil.
Inserida hoje num outro contexto, sendo considerada objeto da política, enquanto
Política Social Especial – Criança e Adolescente baseiam-se no paradigma da proteção
integral e da defesa de direitos. Implica em estratégias de intervenção do Estado
diferenciadas, sobretudo na política educacional, no que diz respeito ao controle, repressão,
proteção, legitimação, mobilização e preparação escolar.
O Estado brasileiro foi se constituindo num processo histórico de descaso para com a
infância, condenando-a ao trabalho precoce e a um futuro subalterno. Dessa forma,
repassando através das gerações, a submissão e a contradição de um discurso legitimado e
uma prática de ignorar as leis em relação à proteção de crianças e adolescentes. Nesse sentido,
fica clara a separação de classes ou da exclusão ao exercício da cidadania para muitos quando
nomeia pivetes e menores para os pobres e crianças para os ricos.
Há uma dificuldade na construção de novos sujeitos sociais, pelo grau de miséria e
orfandade da massa de pobres no Brasil. Os cidadãos estão sem cobertura social, sem
37
capacidade de organização e legitimidade, rebatendo diretamente nas políticas para a infância.
As iniciativas, ainda com teor assistencialista, causam um vácuo entre os modelos de
sociedade existente e em construção, num momento, que Sader (2006) chama de “gestão da
miséria”.
Esta herança cultural encontra eco no processo histórico quando tardiamente, no final
do século XVIII, foi tomada a primeira medida pelo poder público e privado relacionada à
infância, com a Roda dos Expostos, em função da alta taxa de mortalidade infantil.
No Brasil colônia foi instalada a Roda dos Expostos pela Irmandade da Misericórdia,
por designação do império português. De acordo com Marcílio (2006) a Roda dos Expostos
inventada na Europa Medieval, como assistência caritativa e missionária, foi o meio
encontrado para preservar o anonimato do expositor e enfrentar o fenômeno do abandono de
crianças. Considerada uma das instituições brasileiras que teve vida longa, pois atravessa três
regimes da história do Brasil. Criada na Colônia quando foram implantadas em Salvador, Rio
de Janeiro e Recife, multiplica-se no Império para São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito
Santo e Santa Catarina com a Lei dos Municípios7. Perde o caráter caritativo e passa a
filantropia, modelo assistencial fundamentado na ciência, substituindo a caridade. Mantêm-se
na República até a década de 1950, sendo “as últimas do gênero existentes nessa época em
todo o mundo ocidental” (MARCÍLIO, 2006, p. 68). Foram fechadas as do Rio de Janeiro em
1938, a de Porto Alegre em 1940 e as de São Paulo e de Salvador em 1950.
Segundo Rizzini (1995), estudiosa da história da infância no Brasil, a preocupação
com a infância no Brasil aparece na postura jesuítica de valorização das crianças,
reproduzindo o movimento europeu sobre a concepção de infância. No período da
independência, a questão dos indivíduos menores de idade, aparece associada à primeira lei
penal do Império, o Código Criminal de 1830, considerada avançada para a época, quando até
então vigorava medidas punitivas bárbaras. Na passagem para a República, surge uma
crescente preocupação com a infância com o enfoque religioso e caritativo, passando por um
período importante do ponto de vista legislativo para infância, adquirindo uma dimensão
política no sentido da urgência de intervenção.
No que diz respeito às políticas direcionadas especificamente à infância, Carvalho
(2000) ressalta a transição da assistência e da filantropia à política social, quando a Igreja
assistia às crianças e adolescentes abandonadas pelas suas famílias ainda no século XII, por
toda a Europa, onde aconteciam a proliferação dos asilos e a constante transferência para
7
Coleção das Leis do Império do Brasil de 1828. Parte I. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1878, p.85-6
(MARCÍLIO, 2006, p. 62).
38
conventos e hospitais das crianças que nasciam na pobreza, até as primeiras medidas do
Estado numa articulação entre a ação social e a manutenção da ordem nas cidades.
No Brasil, a partir dos anos de 1930, Carvalho (2000) destaca que as questões
relativas à infância tornam-se uma preocupação pública. Após a criação do Código de
Menores de 1927, pelo juiz de menores da Capital da República, Mello de Mattos, por força
do Decreto no 17.943-A, inicia-se um sistema público de atenção a este segmento sob a
proteção do Estado. Vigente a partir do governo militar, fundado num corpo doutrinário da
situação irregular, ancora-se numa lógica política e de produção do direito, simbolizando o
reconhecimento do problema como uma questão social. Ao mesmo tempo, segrega setores da
sociedade estigmatizando-os numa cultura que justifica a negação de direitos.
Desde o início do século XX, a assistência à infância foi pensada como alega Rizzini
(1995) por uma elite incomodada com a expansão do problema. Mesmo sem o abandono das
práticas anteriores, a criação de instituições visando à formação profissional de crianças e
adolescentes recolhidos, rompe com a forma de concepção repressiva para uma visão
educativa e recuperativa. Este parâmetro norteou as tentativas que não obtiveram sucesso pela
concepção arraigada na nossa sociedade onde “o menor” na rua, fora da escola e no ambiente
de trabalho representava perigo, reforçando a cisão entre menor e criança.
Com a criação do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), ligado ao Ministério da
Justiça e do Interior, em 1941, preconiza-se uma assistência social em todo o território
nacional,
numa
perspectiva
corretiva,
protecionista,
repressora,
com
assistência
psicopedagógica aos “menores considerados carentes e delinqüentes”. Contudo, os recursos
financeiros não se materializaram, sendo seu objetivo restrito à questão da ordem social que
da assistência. Assim, “as escolas de reeducação aplicavam como instrumento de correção a
coerção, a disciplina e os maus tratos” (CARVALHO, 2000, p.186), contribuindo para a sua
extinção em 1964, após críticas da sociedade civil e do próprio Estado. Considerado como
fábrica de delinqüentes, escolas do crime, lugares inadequados, o SAM com uma implicação
mais próxima da ordem social do que da assistência era articulado às Delegacias de Menores e
ao Juizado.
Os castigos corporais bárbaros, a venda de menores às organizações criminosas, o
envio de meninas a prostíbulos, as denúncias de violência sexual impostas às meninas e
meninos, a exploração do trabalho doméstico efetuada por funcionários são alguns dos
aspectos do sistema perverso que se institucionalizou com o SAM (RIZZINI, 1995).
A condução dada à política da infância na concepção de Faleiros (1995), considerada
como “política do menor”, teve longa e profunda influência na vida de crianças e adolescentes
39
pobres, tornando-se uma questão nacional, com uma ligação entre repressão, assistência e
defesa da raça, refletida nas instituições de atendimento a este segmento.
Não foi diferente com a Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM),
em 1965, com vistas à formulação e implantação da Política Nacional de Bem-Estar do Menor
(PNBEM). Baseada na influência da ideologia de Segurança Nacional, assume um caráter
assistencialista e repressor, visando à integração à comunidade e colocação em famílias
substitutas, moldando-se, também, à tecnocracia e ao autoritarismo. Sua estratégia de controle
social e de um modelo verticalizado de ação suscita a continuidade de uma política repressiva
articulada ao sistema de controle social e político vigente. Nos Estados, os órgãos executores
recebiam a denominação de Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Com o
fracasso da FUNABEM tornou-se mais transparente a inabilidade da ditadura para a infância
e o despontar do paradigma corretivo para o educativo.
A política de assistência ao “Menor” pós-1964, centralizada na decisão e orientação
da política e em instituições de caráter normativo descentralizadas, é refletida por Carvalho
(2000, p.186-187), como um “modelo de gestão tecnocrático e centralizador do regime
político autoritário”, inviabilizando projetos adequados às realidades regionais.
Em 1975, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do “Menor Abandonado”,
torna nacional a questão da infância. Divulga um número de “1.909.570 abandonados e
13.542.508 carentes” (FALEIROS, 1995, apud PILOTTI & RIZZINI, 1995, p.79) em 87,17%
dos municípios brasileiros, tendo como justificativa situação de extrema pobreza. Essa
estratégia denunciadora incita um movimento de discussão no arcabouço jurídico, tendo como
resultado o novo Código de Menores de 1979, adotando a doutrina da situação irregular,
tornando a questão num processo reducionista mais jurídico e assistencial não alterando a
situação da criança brasileira. A mortalidade infantil atinge um índice de 67,3% e o número
de crianças fora da escola chega a 26% (Centro de Defesa da Qualidade de Vida, 1979, apud
FALEIROS, p. 81).
O código de menores de 1979 trazia em seu cerne uma política de segurança, com
uma prática institucional de reintegração, fortalecendo a relação entre abandono, pobreza e
marginalidade, comenta Sá (2006). Com a doutrina da situação irregular, as condições sociais
reduzidas à ação dos pais, dando-se ao juiz o poder de decisão sobre a assistência, proteção ou
vigilância sobre o “menor”.
O período da transição democrática constituiu-se num movimento em favor da
criança e do adolescente nos anos de 1980, com o processo constituinte, com a participação de
setores da sociedade civil, exercendo importante contribuição, através dos movimentos
40
sociais, redundando na aprovação do ECA. Mas, encontra como entrave, conforme destaca
Carvalho (2000, p.187), “os mesmos dispositivos operacionais do período autoritário”,
atravessando o contexto da chamada transição democrática. Há uma mudança radical no
discurso com a Constituição Federal de 1988, o ECA e o reordenamento institucional
preconizado pelo mesmo.
Com a regulamentação do Artigo 227 da Constituição Federal pelo ECA, Lei Federal
n.º 8.069 de 1990, baseado no paradigma da proteção integral e da defesa de direitos, surgiu
uma nova forma de conceber a criança e o adolescente no Brasil. Esse novo paradigma
considera este segmento como sujeitos de direitos e não mais como objetos de intervenção,
controle social e repressão. Destaca-se o ECA, seu Artigo 5º, quando garante:
Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punindo na forma da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais (BRASIL, 2002, art. 5°).
Reconhecida como prioridade absoluta, “crianças e adolescentes passaram a ser
considerados seres humanos que deveriam ter prioridade absoluta da família, da sociedade e
do Estado” (CARVALHO, 2000, p.189).
Na análise de Carvalho (2000), as mudanças decorrentes desta concepção tiveram
um rebatimento nos métodos de intervenção e na gestão da política da criança e do
adolescente. Em relação aos métodos de intervenção, estes não devem ter mais a conotação
punitiva e corretiva dos antigos Códigos de Menores, sendo consideradas as fases de
desenvolvimento biopsicossocial, numa postura de respeito. Na gestão da política, a mudança
acontece no reordenamento institucional da relação entre a União, os Estados e os Municípios,
eliminando a prática das políticas verticalizadas, centralizadoras e que não correspondem as
realidades locais.
Neste sentido, a construção do regime de co-gestão com representações do Estado e
Sociedade Civil, nos Conselhos Paritários e deliberativos em todos os níveis (municipal,
estadual e federal), dá o tom da configuração do sistema de garantia de direitos no que se
referia à política de atendimento na sua formulação, vigilância e controle como na defesa e
responsabilização.
A operacionalização dos novos parâmetros, na relação entre Estado e Sociedade na
gestão dessa política específica, presentifica-se nos meios legais e institucionais.
Os
Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente responsáveis pela formulação, zelo,
41
orçamento e avaliação, nos Fóruns de Defesa e outras organizações por parte da sociedade
civil, exercem a sua função de vigilância e controle dessas políticas. O Ministério Público, os
Centros de Defesa, a Defensoria pública, a Segurança Pública e o Conselho Tutelar
constituem-se órgãos públicos de defesa da criança e do adolescente, na perspectiva da defesa
e responsabilização das violações e omissões da sociedade civil e do Estado.
Uma cisão, que apesar dos avanços significativos com o ECA, ainda se vive na
prática, é discutida por Rizzini (1995), como categorias distintas: o menor e a criança. O
menor na esfera policial-jurídica sob o controle do Ministério da Justiça e a criança na esfera
médico-educacional sob a coordenação do Ministério da Educação e Saúde.
Portanto, apesar de todos esses aparatos legais constituídos, os direitos da criança e
do adolescente vêm sendo constantemente violados no Brasil, revelendo uma distância muito
grande entre a lei e a realidade.
O entendimento e a exposição desse quadro inserido na história de uma conjuntura
social que proporciona a continuidade e o agravamento da condição de opressão no mundo
inteiro constitui-se fundamento para a discussão das raízes históricas e os seus reflexos no
contexto educacional.
1.2 A política educacional no contexto brasileiro
A história da educação no Brasil está associada à chegada dos jesuítas, trazendo
consigo o sentimento de infância em desenvolvimento na Europa pós-medieval. Azevedo &
Guerra (2001) apontam para a fundamentação do projeto pedagógico catequético, orientação
que servia aos interesses colonizadores, com vistas à educação da criança índia. Projeto este,
que trazia em seu âmago, a modalidade da Pedagogia Tradicional, consolidando-se enquanto
pedagogia de ascese moral e do medo, onde incluía a punição corporal, adaptando-se as várias
situações da infância, dando ênfase no valor da disciplina, “ordem, castigos e ameaças com
um gosto de sangue” (AZEVEDO & GUERRA, 2001, p. 57), marca registrada importada para
o Brasil Colonial, pelos primeiros padres da Companhia de Jesus, em 1549.
Sendo considerados os primeiros educadores oficiais em terras brasileiras, os jesuítas
iniciaram a intervenção pedagógico-doutrinária, muito mais no sentido do processo de
aculturação, catequização do que de escolarização. Os curumins não eram reconhecidos como
sujeitos com capacidade intelectual na construção do conhecimento, mas sim como
modeláveis na intermediação com os índios adultos.
42
A trajetória do sistema educacional jesuítico estava ancorada num plano geral de
estudos denominado Ratio Studiorum8, baseado “na meditação, a concentração, a disciplina
do espírito e a subjugação dos sentidos” (PRIORE, 1991, apud AZEVEDO; GUERRA, 2001,
p.57), revelando pontos comuns com a severa pedagogia de Santo Agostinho9.
O Ratio Studiorum trouxe para o Brasil a inovação dos colégios, que se estendeu por
todo o território brasileiro como indica Farias (2005), de Salvador até São Vicente (século
XVI) e de Pernambuco ao Pará (século XVII). A orientação do Ratio ia além dos cursos
elementares estendendo-se ao ensino médio no Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia. O ensino
superior destinava-se ao clero, ficando os jovens com a única possibilidade de continuidade
dos estudos na Universidade de Coimbra, em Portugal. A infância pobre ficava destinada ao
não acesso à escola, juntamente com os negros e as mulheres. Só a partir do século XVI,
autorizado pelo rei de Portugal, os mulatos tiveram direito à educação escolar.
Do
século
XVI ao fim do século XVIII, as necessidades especiais inerentes à infância como alimentação,
higiene e educação eram indiferentes à sociedade brasileira.
Com a expulsão dos jesuítas, depois de dois séculos de monopólio da educação, em
1759, houve um retrocesso no campo educacional brasileiro, sendo ignorado todo o sistema
estruturado, com o objetivo de apagar as marcas históricas que incomodava a metrópole
portuguesa, terminando praticamente a história da educação colonial.
Confrontando a história da educação no Brasil com a história da infância brasileira,
alguns pontos em comum são colocados como “o abandono no qual foi deixada a educação
elementar, comprometendo, dessa forma, a real expansão e universalização desse nível de
instrução para toda a população” (FARIAS, 2005, p.47). Assim, deixados em segundo plano
ao longo da história, a infância e a educação para este segmento, contribuiu para que muitos
ficassem fora do processo de escolarização.
Não há dados, na avaliação de Carvalho (2003), sobre a alfabetização ao final do
período colonial, apenas 16% da população era alfabetizada, meio século após a
independência, em 187210, dificultando “o desenvolvimento de uma consciência de direitos”
com “o descaso pela educação primária” (CARVALHO, 2003, p. 22), pois, não havia
interesse em difundir essa “arma cívica” (CARVALHO, 2003, p. 23).
8
Regras pedagógicas de Santo Inácio de Loyola e as experiências no campo da educação, publicado em 1599,
pelo Pe. Geral Cláudio Aquaviva (AZEVEDO, 1996).
9
Santo Agostinho (354-430), considerado como um dos “Pais da Igreja” adotou a necessidade dos dogmas e da
disciplina na nova religião (GADOTTI, 2002).
10
Em termos quantitativos havia 107.483 matrículas no ensino primário em todas as províncias para uma
população livre de 8.830.000 pessoas, com 1.200.000, aproximadamente, em idade para receber instrução
escolar, segundo dados de 1867 (AZEVEDO, 1963, p. 574 ).
43
No período que corresponde de 1850-1930, “o sistema educacional cresce, mas
cresce lento, sem alterações qualitativas planejadas, reproduzindo, assim, as velhas relações
com solução de continuidade” (SÁ, 1979, p. 51). A busca por um novo projeto educacional
continuava, acontecendo o movimento denominado “entusiasmo educacional”, “para preparar
cidadãos para uma sociedade democrática e igualitária” e outro movimento “preconizava o
aprimoramento técnico e interno do sistema” (SÁ, 1979, p. 51), propondo alterações
administrativas, didáticas e no currículo.
Mesmo assim, a educação continuava seletiva, intelectualista, representando os
interesses das classes sociais urbanas, deixando fora à grande massa do sistema escolar, dando
continuidade às antinomias presentes no sistema educacional11.
Azevedo e Guerra (2001) numa análise da educação sob uma perspectiva da
violência cultivada em todo percurso histórico brasileiro ao longo dos cinco séculos, traz em
períodos distintos como a violência foi culturalmente internalizada como legitimamente
educativa.
Segundo os autores, nos séculos XVI e XVII, a pedagogia do amor correcional, mais
voltada para a infância de faces índias, primeiras crianças brasileiras, percebidas pelos jesuítas
como ainda não contaminadas com os costumes pecaminosos de sua cultura em função da
tenra idade. Momento oportuno para a catequese, para a submissão e também para a
iluminação, sendo, portanto, os pequenos indígenas alvos de catequização do que a própria
instrução.
Nos séculos XVI à XVIII, a pedagogia da palmatória12 teve suas raízes nas senzalas,
afirmando-se dentro da dialética do nosso processo colonizador escravocrata e na esteira da
tradição grego romana, e centrando sua atenção na infância de faces negras, trazendo a mesma
concepção da pedagogia correcional, somada a um detalhe para deixar clara a condição de
subalternidade, a humilhação. A palmatória foi utilizada nas salas de aula brasileiras pelo
menos até a década de 1960.
A partir de fins do século XIX, a pedagogia da palmada, baseada nas teorias
psicológicas da infância, visando à modelagem do comportamento, muda a estratégia punitiva
com um castigo corporal menos ostensivo, tendo como destinatários crianças de faces
brancas.
11
Tínhamos em 1900, 9.750.000 habitantes de mais de 15 anos, dos quais 3.380.000 eram alfabetizados e
6.370.000 analfabetos. Em 1950, 14.900.000 eram alfabetizados e 15.350.00 analfabetos (ANÍSIO TEIXEIRA,
1957, p. 28-29)
12
Objeto feito de madeira pesada com cerca de 10 cm de diâmetro e 3 cm de altura, para corrigir as escravas e os
moleques.
44
Nessa perspectiva, as políticas educacionais brasileiras carregam um fardo histórico
de negligência, violência e mortalidade. Propondo uma reflexão nada animadora para o
período atual indaga-se: será que houve tanta mudança na contemporaneidade? A questão da
violência na escola é um fenômeno preocupante hoje no contexto educacional. Que políticas
estão sendo gestadas para o balizamento dessas especificidades na educação?
Coraggio (2003 apud TOMMASI, 2003) aponta que os sentidos da política social no
contexto das políticas educativas podem ser interpretados de três formas, sendo a primeira, no
propósito de orientar a continuidade do processo de desenvolvimento humano com o aumento
da expectativa de vida, mas, por outro lado, deixando os setores médios urbanos mais pobres.
A segunda tem a intenção de compensar os efeitos da globalização, focalizada nos mais
pobres, como complemento de garantia da continuidade do ajuste estrutural, que se convertem
em políticas econômicas e sociais ineficientes, favorecendo o clientelismo político,
diminuindo, portanto, a luta democrática pela cidadania. A terceira como instrumentalização
da política econômica, na reestruturação, descentralização e redução do governo, transferindo
competências estatais para a sociedade civil e a internalização dos critérios e valores do
mercado nas funções públicas, favorecendo a mercadorização da educação.
O entrelaçamento desses sentidos confunde os agentes educativos no que diz respeito
ao senso comum, ao campo de ação e no discurso técnico, tornando as políticas sociais numa
iniciativa avassaladora, não encontrando resistência no contexto do mercado global.
Nesse sentido, as receitas impostas pelas agências internacionais de crédito quase
sempre fogem do controle e da responsabilidade democrática. Tem-se como exemplo o
impacto das ações do Banco Mundial, no mundo em desenvolvimento, impondo políticas
homogêneas para a educação com as reformas educativas e subordinando as políticas sociais
ao objetivo econômico da competitividade.
As reformas têm seu movimento inicial nos debates políticos em que as questões
educacionais ganhavam interesse pelo papel ideológico que assumia diante da modernização
do país, no período entre 1910-1920 como indica Shiroma (2000). O momento político
colocava a reforma da educação e do ensino como condição salvacionista da reforma social.
Com a Revolução de 1930 e a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde
Pública, a União passa a exercer diretrizes gerais aos sistemas estaduais de ensino, com uma
política nacional de educação até então inexistente. Travava-se de uma disputa entre os
intelectuais e educadores “renovadores” e o conservadorismo da Igreja Católica, através do
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932. Por conseguinte, demarcava-se a
45
finalidade da educação como lugar de ordenação moral e cívica e submissa aos desígnios do
Estado.
Dessa forma, “o debate educacional foi caracterizado por reduzida circulação de
idéias” (SHIROMA, 2000, p. 26) na década seguinte. Com a promulgação da nova
Constituição em 1946 fica assegurada a educação em todos os níveis como direito de todos.
Entre a elaboração de uma proposta em que a consolidação desse direito foi apresentada, até a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1961, depois de
longos treze anos. Mesmo assim, os equívocos se fazem presentes em função dos interesses
da elite. O Movimento da geração de 1930 volta-se em defesa da escola pública priorizando
os aspectos sociais da educação. Ainda conforme Shiroma (2000), os “movimentos de
educação popular” surpreenderam pela repercussão na sociedade com a participação de
militantes e intelectuais envolvidos com as questões educativas. Destacaram-se os
Movimentos de Cultura Popular com Paulo Freire, que tinham como foco a alfabetização
como meio da “conscientização política” e como mediação diante da dominação social.
Com o golpe militar e a extinção desses movimentos pela via da repressão, a reforma
dos anos de 1960-1970, adequou-se ao novo regime, vinculando a formação ao mercado de
trabalho e controlando política e ideológica à vida intelectual do país. Há uma diminuição dos
recursos para a educação, atingindo os mais baixos índices na história recente. Constata-se a
dasarticulação da escola pública de 2° grau já precária, com sua função profissionalizante.
Os dados de meados da década de 1980 do quadro educacional brasileiro colocado
por Shiroma (2000, p. 44) eram:
50% das crianças repetiam ou eram excluídas ao longo da 1ª série do 1°
grau; 30% da população eram analfabetos, 23% dos professores eram leigos
e 30% das crianças estavam fora da escola. [...] 8 milhões de crianças no 1°
grau tinham mais de 14 anos, 60% de suas matrículas concentravam-se nas
três primeiras séries que reuniam 73% das reprovações. [...] 60% da
população brasileira viviam abaixo da linha da pobreza.
A “Nova República” mantém o modelo herdado do regime militar. As bandeiras de
luta se ampliam recorrentes à proposta de 1930, com a erradicação do analfabetismo,
universalização da escola pública e a formação de um aluno crítico que ao ser incorporadas
foram mudadas em seu sentido original
Nos anos de 1990, atribui-se à educação a perspectiva de sustentação da
competitividade na dominação dos códigos presentes na modernidade. Por outro lado, a
política educacional dispersou-se em reformas do sistema educacional brasileiro com a
46
formação de instâncias tripartites para discutir os caminhos da educação. A educação infantil
é incorporada à educação básica e a separação formal entre o ensino médio e técnico foi
estabelecida.
Na concepção de Shiroma (2000) observa-se uma redução dos gastos públicos para a
educação, reafirmando a questão da educação enquanto pública mas não estatal, ficando o
Estado no lugar de avaliador e articulador de políticas e não como o Estado promotor de bemestar social.
Nessa analogia, entre “sistema de mercado e sistema educativo”, Coraggio (2003,
apud TOMMASI, 2003, p.102) chama a atenção sobre o enfoque mercadorizável dado pelo
Banco Mundial à educação, deixando a atividade educacional dependente do mercado, da
concorrência, da negociação entre fornecedores e consumidores dos serviços educacionais.
Define assim, conteúdos, pedagogias, formas de estruturação, quantidade, áreas e preços
referentes à educação, fazendo uma varredura na realidade histórica da sociedade, correndo o
risco de aceitação de uma política externa sem nenhuma discussão dessas propostas.
Sendo “a educação considerada um bem semi-público” Coraggio (apud
TOMMASI,2003, p.104), a oferta não poderia ser determinada pelo mercado, mesmo sabendo
que a mesma pode aumentar a produtividade dos trabalhadores, mas as negociações no
mercado de trabalho, na maioria das vezes, acontecem em situações ou condições
desfavoráveis em relação à produtividade.
Essas questões encontraram eco na história, tomando como foco a transição
democrática no Brasil considerada por Ciavatta (2002 apud FÁVERO; SEMERARO, 2002)
como a mais longa que se conhece. Esta transição tem efeitos mais demorados na educação do
que na política institucional dos anos 80. Registram-se dois movimentos que refletem
momentos diferentes na conjuntura histórica que se dá em sentido contrário e se entrecruzam.
Um primeiro de ações pouco efetivas que parte das elites, intelectuais e governantes com os
recursos destinados à educação para os problemas emergentes como “analfabetismo,
exclusão, repetência, más condições do aparelho escolar, baixos salários, desqualificação do
magistério” (CIAVATTA, 2002 apud FÁVERO; SEMERARO, 2002, p.).
Um outro vindo das demandas sociais que reivindicam nos anos de 1910 uma
educação diferente da escola burguesa, nos anos de 1920 e 1930 uma educação elementar, nos
anos de 1940 e 1950 as escolas secundárias e nos anos 1960 e 1970, o ensino superior.
Demandas que, ampliadas nos anos de 1980, para todos os níveis educacionais,
estendem-se para creches, acesso à profissionalização e melhoria nas condições das escolas.
47
As demandas pela educação básica voltam nos anos de 1990 com a cobrança pelo ensino
superior público e gratuito.
Ainda conforme Ciavatta (2002), as políticas e planos educacionais não
incorporaram os setores populares ao seu projeto, não consolidando uma sociedade
democrática. As políticas educacionais acompanham as diferentes conjunturas históricas dos
movimentos da sociedade e os processos sociais pelos quais tem orientado a educação
brasileira em que três movimentos são destacados: as políticas e planos educacionais que
expressam as questões educacionais como um todo, em que aconteceram as reformas
educacionais dos anos 1920, numa tentativa de mudar as estruturas sociais vigentes até então;
as políticas educacionais que refletem a relação educação e desenvolvimento econômico,
caracterizando-se por um projeto de educação direcionado para a preparação da força de
trabalho; as políticas mais fragmentárias que se inserem progressivamente nas políticas
sociais executadas nos anos 1990, dando ênfase no resgate da educação fundamental na
essência das políticas educacionais.
Reconhece-se nas políticas sociais o caráter anti-social das políticas econômicas, que
não consolida benefícios para a população. Restringe-se o entendimento de políticas sociais e
educacionais, resultando em programas descontínuos, descomprometidos com as questões
educacionais, através de ações pontuais que não têm o propósito da mudança, mas sim, uma
perspectiva adaptativa às leis do mercado.
Neste sentido, a dimensão política realizada nas práticas sociais é considerada
educativa por Ciavatta (2002), por entender que:
A democracia deve ser o norte da política educacional. A educação pode não
ser democrática, mas a prática da democracia é, em si, educativa. A prática
social tem de se converter numa prática democrática, e esse movimento é um
movimento pedagógico na sociedade e da sociedade (CIAVATTA, 2002, p.
102.)
Para Ciavatta (2002), Shiroma (2000) e Coraggio (2003), a educação deveria ter
como eixo central a democracia, com experiências que trabalhem o contexto escolar,
articulada com a realidade social, trazendo avanços políticos para a sociedade com a
participação coletiva.
Em se tratando da relação entre democracia e educação nas sociedades ocidentais,
Torres (2001, p.179-180) aborda a noção de democracia como representação política, e
apoiado na reflexão de Bobbio, mostra como torna-se complexa esta conexão. Segundo ele,
48
há quatro fatores que devem ser considerados, ao fazer estas considerações: primeiro, “as
condições objetivas do capitalismo moderno são cada vez menos democráticas, e as grandes
organizações [...] acham mais difícil respeitar as regras do jogo democrático”; segundo, o
Estado, encarregado de prover e supervisionar estas regras, “cresceu em tamanho, tornando-se
mais hierarquizado e, certamente, menos democrático”, inviabilizando a participação dos
cidadãos; terceiro, “as sociedades capitalistas adquiriram um tão alto grau de complexidade
que os problemas exigem cada vez mais soluções técnicas, as quais por sua vez só podem ser
satisfeitas apelando-se para uma tecnocracia especializada”. O autor chama a atenção para a
importância deste item para a educação e faz um paralelo entre democracia e conhecimento
especializado. Destaca que “o protagonista da sociedade industrial é o cientista, o especialista,
o perito; o protagonista da sociedade democrática é o cidadão comum, o homem da rua, o
quisque e populo”. Por último, resgata uma preocupação de Paulo Freire quando sugere que
“a democracia (e a educação democrática) pressupõe o pleno e livre desenvolvimento das
faculdades humanas”, de forma que o efeito da massificação diminui o sentido da
responsabilidade individual, fulcro fundamental para a implicação subjetiva, a tomada de
decisões e da educação democrática.
Neste sentido, Torres (2001) chama a atenção para a contribuição de Freire, enquanto
“uma antropologia política da educação”, que reflete sobre a educação democrática em dois
níveis: primeiro, aborda o dilema da democracia, a constituição do cidadão democrático;
segundo, a questão de cruzar as fronteiras em educação, assumindo a natureza política da
educação.
Será que as políticas educacionais são pensadas com o objetivo de proporcionar
conhecimento crítico, reflexivo, questionador? Ou ainda são direcionadas para o uso da força
de trabalho como mercadoria?
As inquietações provocadas por esses questionamentos levam a destacar as
contribuições de Freire, colocadas em pauta por Torres (2001, p.184), indo de encontro à idéia
neoliberal de massificação dos cidadãos, vindo Freire contradizer em Pedagogia do Oprimido,
quando convida a refletir sobre a singularidade do ser, ao dizer que “os sujeitos pedagógicos
do processo educacional não são cidadãos homogêneos, mas sim indivíduos culturalmente
diferenciados”. Dando continuidade ao pensamento freireano, as formas de teorizar sobre a
educação “enfatizam as implicações políticas do trabalho pedagógico”, considerando que na
relação pedagógica haverá as noções de opressão e dominação como parte integrante dos
cenários das salas de aulas. Mostra como é importante incorporar a sabedoria popular,
fazendo um convite ao diálogo, como [...] “instrumento democrático para abordar os
49
complexos conflitos culturais no contexto do desenvolvimento desigual e combinado da
educação latino-americana”.
Freire ainda considera que “as conexões entre educação e política não podem ser
teorizadas unicamente em termos das interseções entre poder e educação, nem exclusivamente
em termos das relações entre poder e conhecimento”, mesmo esclarecendo “o caráter político
da educação”, chama a atenção para as relações entre educação e capacitação cidadã [...]
“enfatizando, sobretudo, os fundamentos históricos, normativos e ontológicos da educação
democrática e dos direitos e responsabilidades da cidadania”. (TORRES, 2001, p.185-186).
Torres (2001, p.187) continua a discussão com Freire sobre educação e democracia
revelando uma nuance significativa que é a da utopia, implicada numa dupla função: anunciar
e denunciar. Nesse prisma, a educação “é vista como um fator instrumental para ajudar o
homem e a mulher a refletirem sobre sua vocação ontológica de sujeito, para ajudar a
construir uma consciência crítica de sua realidade”. Considerando que, não existe uma
revolução educacional sem uma revolução política, para a possibilidade de o povo começar a
pronunciar a palavra, o mundo, diversificado e multicultural.
Nas relações entre o Estado e a educação a noção de democracia suscita a discussão
sobre a cidadania no sentido da responsabilização na construção de um “sujeito pedagógico”,
apontando para a reflexão que:
O processo de construção do sujeito pedagógico democrático é um processo
de educação cultural, que envolve também a manipulação de princípios de
socialização pedagógica e democrática em sujeitos que nem são tabula rasa
em termos cognitivos ou éticos, nem estão plenamente equipados para o
exercício de seus deveres e obrigações democráticas (TORRES, 2001, p.23).
Contudo, essa construção é baseada em princípios de cidadania, formação de
competência e colaboração, formadores de uma cultura política tendo em vista uma política
de solidariedade nacional.
Conforme afirma Faleiros (2000), “a cidadania compreende o reconhecimento dos
indivíduos e coletivos como sujeitos na construção da história, pela participação política, pelo
exercício da autonomia e pela garantia que lhes é dada, num Estado de Direito, das condições
e meios de vida, tanto como direitos individuais (fruto do liberalismo), quanto como direitos
políticos (liberalismo e democracia) e direitos sociais (socialismo e social-democracia), ao
meio ambiente saudável e a bioética, que no contexto atual estão sendo desmontadas em nome
do ajuste fiscal impostos aos Estados dependentes.
50
O campo educacional, considerado um lócus privilegiado para ser utilizado como
regulação, controle e técnica de governo, não pode ser compreendido deslocado de uma
dinâmica internacional. As políticas direcionadas para a educação dependem da estrutura
política, econômica, social e cultural da sociedade. Para direcionar na sociedade um processo
de mudança cultural em longo prazo faz-se necessário uma abertura democrática capaz de
construir e propor ações educativas emancipatórias. Propiciando a continuidade não só de
formação como também inovações, aprendizagens contínuas num movimento de criatividade,
elaboração do pensamento crítico, responsabilidade, implicação com o seu viver, na sua
reinvenção, independência e cooperação. Elementos que inseridos na natureza histórica de
cada ser humano, mantém o desafio de não desvinculá-lo da sua realidade.
Traz-se novamente aqui as reflexões freireanas, quando da sua epistemologia da
curiosidade, mostrando a necessidade de explorar as relações entre educação, política e poder,
para poder compreender e agir sobre os dilemas educacionais do nosso tempo. Porém, ainda
coloca a importância da subjetividade, em que pode-se localizar as discussões em torno da
violência sexual contra crianças e adolescentes, quando diz que “a subjetividade joga um
papel importante na luta histórica” (FREIRE, 2003, p. 98).
Em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes, algumas medidas
foram adotadas pelo MEC, na tentativa de trazer à tona a discussão sobre o tema para o
âmbito escolar. Essas medidas baseiam-se nas propostas existentes no Plano Nacional de
Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil, que aponta para a importância da
prevenção e sensibilização no que se refere à educação. Entre essas medidas estão o Guia
Escolar: Métodos para identificação de sinais de abuso e exploração sexual em crianças e
adolescentes, editado em parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, em 2003
(Anexo B), como meio de favorecer as ações de prevenção, envolvendo a escola para
participação na rede de proteção da infância e juventude, como também a participação ativa e
qualificada dos professores na quebra do ciclo da violência, envolvendo a família e a
comunidade na construção de uma ação eficiente na escola. Esse Guia pode ser utilizado para
orientação técnica, como também, instrumento de sensibilização e mobilização da
comunidade escolar. Com um número de exemplares reduzidos esse Guia não chegou às mãos
da maioria dos professores do país, encontrando-se no momento sob a perspectiva de uma
revisão e reedição.
Uma outra iniciativa é o Programa Escola que Protege, em 2006, que tem a intenção
de dar conta, a partir do cotidiano escolar, das múltiplas formas de violência que se observa
51
no interior da escola e da sociedade, criando uma nova institucionalidade, dialogando com
outras áreas e focando a formação de professores.
Percebe-se nessas iniciativas ações pontuais que não podem ser caracterizadas ainda
como políticas públicas da educação para todo o país. Neste sentido, Libório (2004, p. 30),
indica que “dentro da instituição escolar, a violência pode estar sendo expressa pelos altos
índices de analfabetismo entre adultos e adolescentes com mais de 14 anos [...] e pelo
fenômeno do fracasso escolar [...] demonstrando o fracasso dos processos de produção junto a
crianças e adolescentes”.
Com esta preocupação cabe indagar: será que é possível a aplicabilidade de tais
iniciativas sem levar em consideração as diferentes realidades nas diversas regiões de nosso
país?
Esta indagação faz refletir as práticas educativas, em que Freire (2003, p. 96) vem
discutir que, “não há prática educativa, como de resto nenhuma prática, que escape a limites.
Limites ideológicos, epistemológicos, políticos, econômicos, culturais”, não negando a
importância da educação, nem tampouco a solução mágica para os problemas sociais.
Aponta para a responsabilidade que a prática educativa progressista, libertadora,
exige de seus sujeitos “a ética ou a qualidade ética da prática educativa libertadora vem das
entranhas mesmas do fenômeno humano, da natureza humana constituindo-se na história,
como vocação para o ser mais” (FREIRE, 2003, p. 91).
As políticas educacionais encontram-se inseridas no contexto da implementação das
políticas sociais realizadas pelo Estado. Por essa leitura questiona-se: qual o papel do Estado
nesse processo?
Numa compreensão histórica mais ampla, é possível identificar a lenta
desresponsabilização do Estado terceirizando a execução da educação para a sociedade civil
como aponta Shiroma (2000). Alguns aspectos são colocados por esta autora como
reforçadores da gestão empresarial na gestão educacional e do “apartheid educacional” na
expressão de Roberto Leher (2001).
Ainda na concepção de Shiroma (2000), o Estado busca uma flexibilidade
administrativa quando descentraliza decisões operacionais específicas e controla decisões
estratégicas. Também propõe autonomia, mas a delimita à autonomia financeira. Há uma
política de mercantilização do ensino que encontra eco no arrocho salarial favorecendo o
mercado capitalista que encontra na educação um de seus nichos.
Portanto, o caráter contraditório da educação num sistema social neoliberal exprime
os seus limites, mas não pode negar a oportunidade de se aprender a reconhecer os direitos, a
52
subjetividade, o pensamento crítico e a autonomia. No movimento das lutas sociais pode-se
acompanhar a proposição de políticas e seu processo de institucionalização.
1.4 As políticas de combate à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes: processo
de lutas e institucionalização no Brasil
O longo processo para implantação de ações de combate à violência sexual no país
tem o seu marco histórico em 1993, com a instalação da CPI da Prostituição Infanto-Juvenil
na Câmara Federal, denunciando a realidade da exploração sexual de crianças e adolescentes
em diversos estados. Esta CPI revelou que 50% dos estupros são incestuosos, o que implica
uma transgressão do dever de proteção que se inscreve na família como instituição. Desde
então, tem sido formada e fortalecida uma rede nacional e internacional para o enfrentamento
do fenômeno.
Dois anos depois, em 1995, foi realizada a 1ª Campanha Nacional de Combate ao
Abuso e à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, a partir da Campanha Estadual desenvolvida
pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (CEDECA), no Estado
da Bahia. Ainda neste mesmo ano, o Brasil é representado por uma delegação composta dos
segmentos de defesa da criança no Encontro Mundial de Mulheres, realizado em BeijingChina, onde foi aprovada a realização de um Congresso Mundial, em Estocolmo/Suécia, que
discutisse o fenômeno da exploração sexual e comercial de crianças e adolescentes. Constituiu
a comissão organizadora do evento, o governo de Estocolmo, o Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF), o End Child Prostitution in Asian Tourism (ECPAT) e Grupo para
a Convenção sobre os Direitos da Criança (NGO), marcando o início da mobilização global
contra a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes.
O Brasil realiza em março de 1995, no Distrito Federal, o Seminário Nacional sobre
Exploração Sexual Infanto-Juvenil, com o objetivo de mostrar a real situação sobre o
fenômeno por meio de depoimentos de organismos governamentais e não-governamentais
atuantes na área e elaborar propostas concretas na luta contra a exploração sexual de crianças
e adolescentes (UNESCO/CECRIA, 1995). Este seminário, preparatório ao Seminário LatinoAmericano, além de um espaço de denúncia, abriu um diálogo com vários setores da
sociedade civil e política brasileiras trazendo o debate para o âmbito internacional, com vistas
à prevenção, ao atendimento e à capacitação de recursos humanos para o enfrentamento do
problema.
53
Assim, a comissão organizadora do Congresso Mundial propõe que o Seminário
Latino-Americano se transformasse na Consulta Regional das Américas, preparatória para o
Congresso Mundial contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Nesse contexto, ocorre no Brasil o Seminário Contra a Exploração Sexual de
Crianças e Adolescentes das Américas, tendo como eixos fundamentais a discussão e a
proposição de políticas públicas para o enfrentamento do fenômeno da violência sexual, o
intercâmbio de experiências e a articulação de ações governamentais e não-governamentais
em âmbito nacional e internacional. Suas conclusões foram apresentadas na “Carta de
Brasília”, sendo encaminhadas ao Congresso Mundial como produto da Consulta Regional
das Américas.
No Congresso Mundial na Suécia, em 1996, primeiro encontro desta natureza no
mundo, contribuiu
na construção de uma Declaração e uma agenda de Ação, ratificadas pelo
Brasil, às quais reafirmam, como princípios e como instrumentos, a
aplicação da “Convenção sobre os Direitos da Criança” no combate à
exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e estabelecem como
eixos de atuação a prevenção, a articulação e a mobilização, o atendimento, a
defesa e a responsabilização e o protagonismo juvenil(SENAI – DF, 2002,
p.5).
Este documento reafirma o respeito à construção da autonomia para que o jovem
pudesse desempenhá-la de forma crítica e criativa o que será exercitada na vida adulta.
Em 1997, a pedido da ECPAT Internacional, o CEDECA-BA realiza em Salvador, o
I Encontro do ECPAT no Brasil, para inserção do Programa no país, constituindo o Grupo
ECPAT, composto de nove instituições13. Logo em seguida, o CEDECA-BA, representante
da ECPAT no Brasil, realiza o II Encontro do ECPAT em Salvador. Neste Encontro foi
sistematizado, pelas representações governamentais e não-governamentais, o documento que
serviu de base para a elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual
contra Crianças e Adolescentes. Neste mesmo período o Instituto Brasileiro de Turismo
(EMBRATUR) executa a Campanha de Combate ao Turismo Sexual Infanto-Juvenil.
Resultado desse processo de denúncia, luta e demandas, a Política Nacional de
Assistência Social, aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), por meio
da Resolução n.º 207, de 16 de dezembro de 1998 e publicada no Diário Oficial da União
(DOU) de 16 de abril de 1999, reconhece que entre os destinatários da Política de Assistência
13
ABRAPIA, ANDI, Campanha Nacional pelo Fim da Exploração/DF, CEDECA-BA, CEDECA EMAÚS/PA,
INESC, INTERPOL, Pacto da Cidade de Fortaleza/CE, Rede de Pernambuco.
54
Social encontram-se vários indivíduos ou segmentos sociais em situações conjunturais ou
circunstanciais de vulnerabilidade, exclusão ou de risco social. Nesse sentido, estão inseridas
as crianças e os adolescentes submetidos ao abuso e à exploração sexual comercial, bem como
suas famílias.
A partir deste marco, o Ministério da Previdência e Assistência Social, intensificou o
enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, por meio de campanhas,
projetos, programas, estudos, capacitações, da implantação de serviços especializados nos
setores de saúde, assistência social, segurança, educação, das varas e promotorias da infância
e da juventude, da ação do legislativo e da mídia.
Foi neste contexto, que em 2000, foi instituído o Plano Plurianual do Governo
Federal-FHC (2000-2003) Avança Brasil. Neste Plano é proposto o Programa Brasil Criança
Cidadã, entendido como um conjunto de ações de atendimento às crianças e aos adolescentes
vitimados sexualmente, coordenado pela Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS),
executado através das Agendas Sociais apresentadas por 21 Estados da Federação, atingindo
242 municípios brasileiros. É, também, estabelecido o convênio entre a EMBRATUR e a
Associação Brasileira de Apoio e Proteção à Infância e Adolescência (ABRAPIA).
A ABRAPIA disponibiliza em seu site14 dados sobre denúncias de abuso e
exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, registradas no período de janeiro a
dezembro de 2002, num universo de 1.793 denúncias. Destas, 799 foram de exploração
sexual, correspondendo a 44,56% e 994 de abuso sexual, sendo 55,44%. No Nordeste, esse
número correspondeu a 26,09%, com 401 denúncias, 16 delas na Paraíba, equivalente a
1,04%.
A criação de banco de dados e sistemas de informação como a Rede de Informações
sobre Violência Sexual de Crianças e Adolescentes (RECRIA), constitui-se em uma web site
que, sob a responsabilidade de uma organização não-governamental, disponibiliza as
informações que revelam a ocorrência desses fenômenos no Brasil. Fica a cargo do Ministério
da Justiça/ Secretaria de Estado de Direitos Humanos/Departamento da Criança e Adolescente
e Ministério do Esporte e Turismo/EMBRATUR, a entrada oficial do governo tardiamente
nas ações de prevenção e combate, após longos 10 anos de aprovação do ECA.
Segundo a Recria o número de crianças e adolescentes no Brasil é de 57.624.291,
equivalente a 35,9% da população, sendo 18.837.527 no Nordeste, correspondendo a 40,6%
deste total (IBGE/PNAD, 1999). Ainda, segundo a Recria, o mapa da violência sexual no
14
Atualmente desativado e transferido para o observatoriodainfancia.com.br.
55
Nordeste Brasileiro é caracterizado pelo turismo sexual, exploração sexual comercial em
prostíbulos, pornoturismo, prostituição de meninas e meninos de rua, prostituição nas estradas
e aliciamento de meninas nas áreas rurais.
A mobilização de setores da sociedade civil pressionou o país com denúncias
realizadas tardiamente, levando o Estado a reconhecer a existência do trabalho infantil e da
violência sexual contra crianças e adolescentes. Este movimento culmina com a elaboração de
ações e políticas a serem executadas, demonstrando mais uma vez como as questões da
infância foram secundarizadas ao longo da história.
O Brasil ratificou em 2000, junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), a
Convenção 182, sobre “As Piores Formas de Trabalho Infantil”. Esse instrumento normativo
teve em seu foco, práticas tais como a escravidão infantil, o trabalho forçado, o tráfico de
crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, a prostituição, a pornografia e diversas
formas de trabalho perigoso e explorador. Esta Convenção convoca a adoção de medidas
imediatas e eficazes para assegurar com toda urgência a proibição e a eliminação dessas
formas abomináveis de exploração infantil.
Outra conseqüência da mobilização da sociedade civil, neste mesmo ano, foi a
elaboração do Plano Nacional de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil. Este
Plano aponta para uma política a ser executada pelo Programa de Combate ao Abuso e
Exploração sexual de crianças e adolescentes (Sentinela), vinculado ao Ministério da
Previdência e Assistência Social. A sua execução seria de forma descentralizada pelos
municípios, sendo necessária a apresentação de dados que justificassem sua implantação.
A elaboração do Plano ocorreu em junho de 2000, na cidade de Natal-RN, no
Encontro para discussão do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual InfantoJuvenil, com a participação de representantes dos poderes Legislativo, Judiciário, Ministério
Público, órgãos dos Executivos Federal, Estadual e Municipal, e organizações não
governamentais nacionais e internacionais. Este documento, o PLANO NACIONAL DE
ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL, a partir de
iniciativa da sociedade civil é validado por 160 instituições sociais.
O Plano constitui-se num instrumento de denúncia, levantamento da situação, de
garantia e defesa de direitos de crianças e adolescentes. Também pretende “criar, fortalecer e
implementar um conjunto articulado de ações e metas fundamentais para assegurar a proteção
integral à criança e ao adolescente em situação ou risco de violência sexual” (BRASIL, 2001,
p.13).
56
A partir desse contexto, a política de atendimento a crianças e adolescentes em
situação de violência sexual, passa a ter mais uma referência junto ao ECA,
Ambos construídos com a participação efetiva da sociedade civil organizada
em parceria com o governo, sendo estes os instrumentos norteadores para os
avanços sociais referentes à infância e adolescência na implantação de
políticas públicas descentralizadas, nas quais os municípios aparecem
indicando práticas políticas inovadoras(MALLAK; VASCONCELOS, 2002,
p.11).
O Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-juvenil estrutura-se
em torno de seis eixos estratégicos, sendo definidos em cada um deles os objetivos e metas a
serem alcançadas, as ações a serem executadas, os prazos e as parcerias. É importante
ressaltar que o Plano é orgânico e integrado, o que significa que sua operacionalização
implica, obrigatoriamente, em ações articuladas dos diferentes eixos:
Tabela 1 – Eixos de operacionalização do Plano Nacional
Diagnóstico e sistematização de dados sobre a
Análise da situação
violência sexual.
Arcabouço jurídico e serviços de notificação
Defesa e Responsabilização
integrados
Promoção e fortalecimento da articulação entre
Mobilização/Articulação
governo e sociedade
Educação para o fortalecimento da auto-defesa
Prevenção
Estimular e garantir a participação de c/a na
Protagonismo
defesa de seus direitos.
Implementação de serviços especializados
infanto
juvenil
Atendimento
Fonte: (BRASIL, 2001).
O Plano Nacional está fundamentado na exigibilidade do dever da família, da
comunidade e do Estado, como prevê a Constituição Federal de 1988 no seu Artigo 227, § 4o
e a Lei no 8.069/90. Sustenta-se pela junção de forças e atores governamentais, nãogovernamentais e organismos internacionais que, mediante manifesta vontade política,
operacionaliza o enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, por meio de metodologias
e estratégias adequadas, construídas sobre bases de consenso entre todos.
Sendo assim, trata-se de um documento legitimado e de referência para as políticas
públicas nos níveis federal, estadual e municipal. Foi deliberado pelo Conselho Nacional dos
57
Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), na assembléia ordinária de 12 de julho
de 2000, constituindo-se uma diretriz nacional no âmbito das políticas de enfrentamento da
violência sexual contra crianças e adolescentes. Foi revisado em 2006, em Encontro
organizado pelo Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual, em Brasília/DF.
Após a aprovação do Plano Nacional, ocorreram várias mobilizações e articulações
para que o Estado implementasse uma Política de enfrentamento à violência sexual contra
crianças e adolescentes. Em 2001, como uma deliberação concreta do Plano, articulando
assistência social, educação, saúde e justiça, foram implantados em 26 estados da Federação,
com cobertura inicial em 315 municípios, 324 Centros ou Serviços de Referência com vistas
ao atendimento social especializado de crianças, adolescentes e famílias envolvidos em
situações de violência sexual. Trata-se de um conjunto de ações no âmbito da política de
assistência social, tendo como finalidade oferecer um atendimento técnico, multiprofissional
ao seu público alvo e fazer os encaminhamentos adequados à realidade constatada pelas
instâncias legais. Necessitando, portanto, de uma rede articulada de serviços para garantir a
proteção integral às crianças e adolescentes vítimas da violência.
No ano de 2001, no âmbito da EMBRATUR, foi criado o Comitê Executivo da
Campanha Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, para as ações de
mobilização e articulação socioinstitucional.
A ECPAT Internacional cria, também, o Código Mundial de Conduta para
Operadores de Turismo e membro da Secretaria Executiva da Task Force/OMT, em 2002,
sendo a EMBRATUR escolhida pelo OMT como gerente Internacional do Código. O referido
código foi representado por governos, organizações não-governamentais, setor privado além
de outras instituições. Teve o objetivo de regular ações mundiais em torno da adoção de
parâmetro de comportamentos pró-ativos voltados ao Combate à Exploração Sexual InfantoJuvenil, além de privilegiar ações no combate ao turismo sexual. Ainda é renovado o
convênio entre a EMBRATUR e a ABRAPIA para manutenção do serviço telefônico 0800,
através do disque-denúncia e executado o convênio entre a EMBRATUR e a Agência
Nacional de Notícia para a Infância (ANDI), prevendo a divulgação de notícias, por meio de
boletins diários de notícias sobre crianças e adolescentes (programas, projetos) sendo
selecionadas notícias de 10 revistas e mais de 72 jornais de todo o país dando visibilidade aos
problemas vivenciados pelo segmento infanto-juvenil.
Neste mesmo ano, o Plano Nacional dos Direitos Humanos, inclui em seu Art. 142, o
direito da criança e do adolescente ao desenvolvimento integral da sexualidade como Direito
Humano. Outra medida importante diz respeito ao lançamento do Relatório da Pesquisa sobre
58
Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial no
Brasil (PESTRAF). Este relatório resulta de pesquisa realizada por organizações sociais e
universidades em todo o território nacional, apontando os fatores que incidem no tráfico de
crianças para fins de exploração sexual, bem como mapeando as rotas de tráfico interno e
contrabando para outros países, lançado pelo Ministério da Justiça. O referido relatório aponta
a realização de Encontro Internacional entre o Brasil e a República Bolivariana da Venezuela,
para a definição de um Plano Regional de Enfrentamento ao Tráfico e Contrabando de
Crianças e Adolescentes para fins de exploração sexual.
Ainda no ano de 2002 foi assinado um convênio entre a Secretaria de Estado de
Assistência Social, Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Agência Americana para o
Desenvolvimento (USAID), visando ao desenvolvimento de Ações Integradas de
Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil no Território Brasileiro. A prioridade no
fortalecimento das ações desenvolvidas pelo Programa de enfrentamento à violência sexual de
crianças e adolescentes e pelos Conselhos Tutelares foi realizada em sete cidades brasileiras,
apontadas no relatório da PESTRAF como integrantes das rotas de tráfico e contrabando de
crianças para fins de exploração sexual.
Na posse do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, (2003-2006), que em seu discurso
declara a questão da violência contra crianças e adolescentes prioridade absoluta de seu
governo, é instaurada, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI). Esta comissão
investigou as redes de exploração sexual de crianças e adolescentes no país. Em mais de um
ano de trabalho visitou 22 Estados, realizou 34 reuniões e audiências públicas, promoveu 20
diligências, ouviu 285 pessoas, recebeu 832 denúncias e analisou 958 documentos, revelando
que “a exploração sexual é um fenômeno muito mais complexo do que imaginávamos. Um
problema que está disseminado por todo o país, desde as grandes cidades até os municípios
mais longínquos” (SABOYA, 2004, p. 8).
A importância desta CPMI consiste, em dar visibilidade ao tema, chamando a
“atenção da sociedade para uma questão que ainda está cercada de tabus, preconceitos e
silêncio”, como também assume o papel de “instância estimuladora da mobilização social”
(SABOYA, 2004, p.8).
O relatório final apresenta propostas para a mudança na atual legislação sobre a
temática com as seguintes recomendações: sugestões para o aperfeiçoamento das políticas
públicas de prevenção e de atendimentos às vítimas de violência sexual e aos seus familiares e
o encaminhamento às autoridades competentes das investigações.
59
A partir desta contextualização macro estrutural, passa-se a focalizar o fenômeno da
violência sexual infanto-juvenil, objeto de pesquisa deste estudo, como estratégia de
conhecimento na aproximação com a natureza complexa do problema.
60
CAPÍTULO II
VIOLÊNCIA SEXUAL INFANTO-JUVENIL:
considerações histórica, ética e política
61
2.1 Violência: conceito, história e categorização
Diante da reconfiguração global hegemonizada por valores neoliberais, os dilemas
humanos se complexificaram, deixando a sociedade impactada perante fenômenos que
causam indignação e perplexidade.
Nessa conjuntura contemporânea, a violência tem-se apresentado numa dimensão
estrutural, pelas mediações materiais e culturais, apoiadas do ponto de vista socioeconômico e
político na derrocada dos paradigmas clássicos, a partir de um conhecimento e de uma política
mundial centrada no mercado, propondo o enfraquecimento do Estado, a diminuição do
interesse da sociedade em aprovar à ordem civilizada associada aos ganhos e na crise das
relações sociais referenciais.
As implicações históricas da violência passaram a encontrar eco na dominação
econômica, política, cultural e simbólica. Presentes na dominação do adulto sobre a criança e
adolescente, na dominação de gênero, geralmente da raça branca sobre a criança, a mulher e o
negro no processo de socialização.
Assim, a violência perpassa as classes sociais, ligando-as às condições sócioeconômica e cultural, o que faz comportar uma variedade de definições. No caso em estudo
desta dissertação, o recorte do fenômeno da violência sexual infanto-juvenil envolve temas
polêmicos, tais como a violência, a sexualidade e a especificidade do segmento infantojuvenil. Dessa forma, para apreender a questão necessita-se inicialmente, percorrer o caminho
de cada um desses temas como meio de aproximar-se da sua complexidade.
2.2 Violência
A palavra violência oriunda do latim vis, que tem o sentido de violência, de força e
de vigor, pode ser considerada como a natureza, a substância e a essência. Para Couto (2005),
a violência poderia ser tomada como algo natural enquanto essência da humanidade para
justificar os seus fenômenos que se explicitam na violência política, psicológica ou de gênero.
Neste sentido, a concepção de violência como independente do domínio humano foi
interpretada pela religião em sua ortodoxia como um mal externo ao sujeito, manifestando-se
através de fenômenos de possessão e pecado. Também interpretada sob considerações
medievais relacionadas ao psicopatológico, resultante de acesso de loucura, desvinculando-se
do bom senso e da racionalidade.
62
Ainda conforme Couto (2005), a discussão sobre a violência em termos jurídicos
atuais, baseada no Código Penal Brasileiro, em seu art.224, alínea c, suscita o seguinte
entendimento:
A violência pode ser considerada como constrangimento moral exercido
sobre alguém através de ameaça ou como ofensa à integridade corporal e à
saúde de outrem, podendo disso decorrer lesões corporais de maior ou de
menor gravidade. Presume-se a violência se a vítima não pode oferecer
resistência (COUTO, 2005, p.22).
Na concepção de Arendt (1985), a violência é desvinculada do mal e relacionada ao
seu oposto, o poder. Desvincula-os, ainda, da condição de fenômenos naturais, como parte do
processo vital e associa-os à política, aos negócios humanos e as relações intersubjetivas.
Afirma que nas relações sociais e intersubjetivas a diminuição do poder leva à violência. Na
visão desta autora:
A violência, sendo instrumental por natureza, é racional até o ponto de ser
eficaz em alcançar a finalidade que deve justificá-la. E já quando agimos,
jamais saberemos com certeza quais serão as eventuais conseqüências, a
violência só pode manter-se racional se buscar objetivos a curto prazo. A
violência não promove causas, nem a história nem a revolução, nem o
progresso, nem a reação, mas pode servir para dramatizar reclamações
trazendo-as à atenção do público (ARENDT, 1985, p.44).
Arendt (1985) destaca que ninguém se mantém ignorante sobre o papel da violência
nas atividades humanas na história e na política e que existe uma vasta literatura sobre os
conflitos armados, sobre os instrumentos da violência, mas não à violência enquanto
fenômeno. Menciona um elemento adicional de arbitrariedade no seio da violência que é a
intromissão do inesperado que a tudo permeia ao aproximar-se dos seus domínios,
considerado, do ponto de vista científico, suspeito e não podendo ser eliminado por
simulações, teorias ou nenhum outro artifício. “A prática da violência como toda ação,
transforma o mundo, mas a transformação mais provável é em um mundo mais violento”
(ARENDT, 1985, p.45).
Para Chauí (1985, apud COUTO, 2005, p.24) a violência “é a ação que trata o ser
humano não como sujeito, mas como objeto, culminado com a violência perfeita”. Sendo o
que caracteriza a violência perfeita é a interiorização da vontade e da ação alheia passando
despercebida o reconhecimento e a perda da autonomia.
Diante desta abertura do que seja a violência, passa-se à articulação de uma forma
63
mais ampla com os contextos macro histórico-político e social para melhor entendimento com
o micro, ou seja, com aquilo que acontece nas relações sociais e a violência que se vasculariza
nas relações interpessoais.
Por essa compreensão, na avaliação de Libório (2003), as categorias explicativas
para o entendimento da violência são: a violência estrutural, estando presentes a exclusão
social, a globalização e as leis do mercado; a violência social, aparecendo de forma mais
expressiva nas dimensões de gênero, raça/etnia e geracional; a violência interpessoal,
presentificada nas relações interpessoais, intra e extrafamiliares e os aspectos psicológicos.
A violência estrutural é entendida como “a violência inerente à própria forma de
organização socioeconômica e política de uma determinada sociedade, em condições sociais e
históricas definidas” (LIBÓRIO, 2004, p. 26), sendo essenciais na sua compreensão a
exclusão social e as contradições entre mercado e Estado.
Na concepção de Leal (2001), existe uma relação estreita entre a violência estrutural
e a globalização, aumentando as desigualdades sociais, promovendo o desemprego, novas
pobrezas, exclusão social, resultantes das políticas de crescimento econômico desigual nas
regiões brasileiras. Assim, o acirramento entre capital e trabalho, provoca a busca pela
sobrevivência criando e recriando formas de relações trabalhistas precárias no capitalismo, em
atendimento as exigências dos organismos internacionais (Banco Mundial e FMI), que
historicamente promovem políticas que favorecem ainda mais o capital em prejuízo para os
ganhos históricos do trabalho.
Nesse contexto, a exclusão se configura no processo de privação dos direitos
fundamentais numa estrutura social injusta, levando a população com baixa escolaridade ao
mercado de trabalho informal, deixando homens, mulheres e jovens em situação de pobreza
absoluta de sobrevivência e em situação de vulnerabilidades.
A violência social, inserida no contexto da violência estrutural, é apontada por
Libório (2004. p. 28), como “aquela violência dirigida especificamente a determinados grupos
sociais considerados como detentores de menor poder político, econômico e social no seio da
sociedade”.
Para Leal (2002), a violência social constitui-se tanto em nível local como global,
numa violência contra as diferenças, referindo-se a gênero, raça/etnia, geração e outros.
Faleiros (2000) concebe este tipo de violência, através da leitura histórica, referindo-se ao
desenvolvimento econômico social e cultural marcados pela colonização e escravidão,
resultado de uma herança social imaginária da dominação e exploração das categorias sociais
marginalizadas pela raça/etnia, gênero e idade.
64
A violência interpessoal “se concretiza no interior das relações interpessoais mais
diretas, e pode ser de caráter intra e extrafamiliar” (LIBÓRIO, 2004, p. 30). Estando
vinculada diretamente à violência estrutural e social, a violência interpessoal vulnerabiliza
mulheres, crianças e adolescentes, num processo de fragilização e desproteção às suas
necessidades básicas, podendo estar associada às conseqüências do que ocorre nas relações
macro com a exclusão social e as desigualdades, que envolvem questões de poder, tornandose mais suscetível quem menos exerce o poder. Por outro lado, pode-se pensar a gênese da
violência nas micro-relações e no seu caráter cíclico, ou seja, o sujeito e o seu contexto
encontram-se imbricados nos laços culturais e nas práticas sociais.
Os aspectos psicológicos enfatizados por Libório (2003), dizem respeito à formação da
identidade pessoal e social, ao processo de estigmatização, a formação de auto-imagem e
auto-estima, o processo de vulnerabilização e situação de risco. Levando-se em consideração
que crianças e adolescentes são pessoas em processo de formação, de crescimento e
desenvolvimento, as questões emocionais não poderão estar desvinculadas das estruturais e
sociais, tendo em vista as vivências com o ambiente em que estão inseridas e a dificuldade de
discernimento em função da imaturidade diante de situações diversas e confusas.
Em sintonia com Faleiros (1998) e articulando com as concepções de Leal (2002) e
Libório (2004), entende-se aqui que a violência atravessa um fio condutor nessa
problematização com os modelos de sociedade, não sendo possível separar da história, da
cultura e dos modos de produção.
Violência, aqui não é entendida como ato isolado, psicologizado pelo
descontrole, pela doença, pela patologia, mas como um desencadear de
relações que envolvem a cultura, o imaginário, as normas, o processo
civilizatório de um povo (FALEIROS, E, 2000, p. 8, apud FALEIROS,
V, 1998).
Neste quadro, marcado pela antinomia entre o processo de democratização e as
aspirações e expectativas de mobilidade social como garantia de direitos para o exercício da
cidadania, a violência cresce em sua banalização, desrespeitando crianças e adolescentes,
deixando em aberto uma ferida social na perda dos referenciais éticos.
2.3 Sexualidade
Quanto à sexualidade, toma-se aqui na dimensão histórica, posto que, numa
65
dimensão mais social, no apagar das luzes do século XIX, a teoria freudiana já propunha a
discussão da sua existência e manifestação, ainda que, de forma diferente, durante toda a vida
humana.
Freud mostra que a anatomia não determina a sexualidade do sujeito, mas, que ela
tem conseqüências psíquicas para cada um de maneira particular e não de uma forma
universal. O estudioso surpreendeu o mundo acadêmico e científico da sua época ao afirmar a
existência da sexualidade infantil, rompendo com o paradigma de sua inocência. Seu texto
sobre a teoria sexual infantil, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, lançado em 1905,
chocou a sociedade científica, causando um corte epistemológico no pensamento reinante
sobre a sexualidade na infância. Esta obra aponta para o discurso sobre a pulsão15 sexual e a
descoberta do Édipo16. Esse processo precedido pela curiosidade primária, pulsão de
conhecer, tanto epistemologicamente, como pelas outras buscas de saber, não é diferente
daquela que mantém o pesquisador no laboratório tentando o desvendamento de enigmas.
Desse trabalho epistêmico procedem as elaborações de saber com um viés simbólico,
inconsciente e imaginário que procura recobrir o real ao qual se refere.
Ressalte-se que as idéias pedagógicas da época, ainda concebiam a criança na visão
de Rousseau, com uma natureza infantil ingênua. A infância era exaltada apenas como
período da manifestação da essência humana. Portanto, poderia ser modelada, cumprindo o
processo educativo sua função adaptativa. Caminhando na contramão dessas idéias, a noção
de pulsão em Freud, como algo que sempre escapa ao controle, descarta a possibilidade
plástica e adaptativa da educação, ou seja, entende a construção do saber como algo em
constante transformação, na perspectiva do vir-a-ser.
Nesse sentido, pode-se dizer que Freud rompeu também com a teoria da
hereditariedade-degenerescência17, convocando “em torno do desejo toda a antiga ordem do
poder” (ROUDINESCO, 2003, p.93), que pretendia controlar e gerar o cotidiano da
sexualidade. Com isso, houve um movimento na sociedade na tentativa de libertar o sexo das
coerções corporais e penais impostas nos séculos anteriores, passando a sexualidade de
socialmente reprimida para uma sexualidade admitida, mas sempre cercada pela culpa.
Portanto, a psicanálise foi “ao mesmo tempo o sintoma de um mal-estar da sociedade
15
Satisfação acéfala no real. “Representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e
alcançam a mente” (FREUD, 1915, Vol. XIV, p 142).
16
Constitui o momento estrutural fundamental da história de um sujeito, drama inconsciente, determinando suas
escolhas, tornando-o sujeito societário, entrando no registro simbólico da Cultura e da Linguagem, mediado pela
interiorização das regras sociais.
17
Oriunda do darwinismo social, foi uma referência importante para todos os saberes do final do século XIX,
que pretendia submeter a análise dos fenômenos patológicos ao exame dos estigmas, tendo como conseqüência a
decadência da civilização.
66
burguesa [...] e o remédio para esse mal-estar” (ROUDINESCO, 2003, p.93).
Em Lacan, a sexualidade vai sendo construída através do processo de “sexuação”,
em que cada sujeito subjetiva seu sexo levando em conta as identificações do sujeito e o
falo18, disposto na dialética da demanda de amor, da experiência do desejo, relacionado com a
ordem do logos, visto que é perpassada pela linguagem e pela mesma subvertida.
No reconhecimento de um conceito de sexualidade legitimado na segunda metade do
século XX, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), entende-se sexualidade como algo
que transcende a divisão, que se estrutura subjetivamente numa dialética ética e cultural que
se inscreve na civilização, deixando em aberto outros campos do saber, como indica a OMS.
A sexualidade humana forma parte integral da personalidade de cada um. É
uma necessidade básica e um aspecto do ser humano que não pode ser
separado de outros aspectos da vida. Sexualidade não é sinônimo de coito, e
não se limita à presença ou não do orgasmo. Sexualidade é muito mais do
que isto. É energia que motiva encontrar o amor, contato e intimidade e se
expressa na forma de sentir, nos movimentos das pessoas e como estas
tocam e são tocadas. A sexualidade influencia pensamentos, sentimentos,
ações e integrações e, portanto, a saúde física e mental. Se saúde é um direito
humano fundamental, a saúde sexual também deveria ser considerada como
direito humano básico. A saúde mental é a integração dos aspectos sociais,
somáticos, intelectuais e emocionais de maneira tal que influenciem
positivamente a personalidade, a capacidade de comunicação com outras
pessoas e o amor (OMS- 1975).
Contudo, as discussões acerca da sexualidade nos espaços educativos ainda são
cercadas de uma censura muito sutil, num discurso considerado da ordem da indecência, num
campo que durante muito tempo se pretendia assexuado e imune a qualquer forma de
manifestação da sensualidade.
Em se tratando dessa questão, certamente, a sociedade ocidental ainda nega a
sexualidade da criança e do adolescente e não admite discuti-la, sobretudo, quando se trata da
violência sexual contra crianças e adolescentes em que a sexualidade é publicizada e o
processo de angelificação da criança internalizado pela maioria se transforma em processo de
demonização. Nesse cenário, a sociedade coloca os conflitos de natureza sexual a partir do
direito de exercer plenamente a sua sexualidade e de suas diferentes formas de vivenciá-la.
Assim, a idéia da sexualidade vinculada ao âmbito do privado é reforçado pelos discursos
institucionais, dificultando a compreensão da liberdade de expressão de crianças e
adolescentes protegidos das situações de violência.
18
Ordenador significante para os dois sexos.
67
O combate à violência e a preocupação com a criança e adolescente toma uma
importância fundamental conforme coloca Fuks (2005), tanto pela gravidade como pelas
questões sociais e políticas que se articulam, numa perspectiva assistencial e sua incorporação
na luta pelos direitos humanos.
Destarte, a violência apresenta-se como obstáculo à efetivação do ECA em face da
violação dos direitos, preconizada em seu artigo 5°. Dentre as formas de violências praticadas
contra crianças e adolescentes em nosso país, Carvalho (2000) destaca: 1- a violência social
que viola os direitos fundamentais de não satisfação das necessidades vitais: saúde, educação,
lazer, cultura, convivência familiar e comunitária; 2- a violência doméstica ou intrafamiliar,
que se apresenta numa desigualdade de poder, negando o valor da liberdade num processo de
vitimização; 3- a violência da exploração sexual contra crianças e adolescentes, uma das mais
perversas faces da violência contra crianças e adolescentes; 4- a violência institucional contra
adolescentes autores de ato infracional nas instituições de internamento, a qual predomina a
política da vigilância e punição em detrimento ao direito fundamental de estudar e a
integridade física e mental; 5- a violência contra as crianças e adolescentes em situação de
rua; 6- a violência da exploração do trabalho infantil: submete crianças e adolescentes ao
mercado de trabalho no país inserido no capitalismo globalizado, com o trabalho precoce para
assegurar a sobrevivência do grupo familiar.
Nessa perspectiva de Carvalho (2000), a abordagem neste estudo enfatizará a
violência doméstica ou intrafamiliar e a violência da exploração sexual contra crianças e
adolescentes. Por se tratar de uma violência considerada intersubjetiva, de natureza
interpessoal e que perpassa todas as classes sociais, a violência doméstica na visão de Guerra
(2005, p.31) “apresenta uma relação com a violência estrutural”. Pertence à esfera do privado
e se reveste na caracterização do sigilo. Sendo assim, para esta autora, a violência doméstica
comporta quatro tipos reconhecidos: violência física, violência sexual, violência psicológica e
negligência.
A violência física sendo considerada aquela em que o uso da força física e do poder
disciplinador por parte dos pais ou responsáveis contra os filhos, no âmbito familiar, esteve
sempre presente de forma endêmica na nossa sociedade e foi incorporada como método de
educação e controle sobre as crianças.
A violência psicológica ou tortura psicológica acontece com a depreciação ou
ameaças de abandono pelo adulto em que a criança pode se tornar medrosa, ansiosa com
dificuldades de auto-aceitação trazendo-lhe sofrimento mental, representando formas de
sofrimento psicológico. Carvalho (2000) destaca a interferência negativa sobre a criança e sua
68
competência social, num comportamento destrutivo, estando muitas vezes associada a outros
tipos de violência.
A negligência aparece em forma de omissão no provimento das necessidades físicas
e emocionais de crianças e adolescentes. Portanto, para Guerra (2005) e Carvalho (2000) a
negligência configura-se na falha dos pais ou responsáveis em termos de alimentação,
vestuário, medicação, educação e acidentes.
A violência sexual toma forma como uma violência praticada geralmente por adultos
da confiança da criança ou do adolescente, utilizando-se da sedução ou ameaça para atingir
seus objetivos, pode ser em sua maioria uma relação incestuosa. É comum a prática de atos
libidinosos que não deixam marcas físicas, mas podem trazer graves conseqüências
emocionais às suas vítimas.
Esta última, a violência sexual contra crianças e adolescentes, priorizada neste estudo
e ampliada a sua compreensão com a concepção de outros teóricos, incorpora a discussão
sobre a exploração sexual no segmento infanto-juvenil por ser uma categoria pertinente ao
estudo da violência sexual.
2.4 Violência Sexual Infanto-juvenil
A violência sexual infanto-juvenil é um fenômeno complexo e para compreendê-la é
necessário contextualizá-la em suas múltiplas dimensões histórica, econômica, cultural,
psicossocial, política e ética. Neste sentido, a visibilidade dada hoje ao tema, sobretudo ao
abuso sexual, acontece em função de uma tentativa de ruptura do pacto silencioso construído
ao longo dos séculos e, lentamente derrubado, respaldado pelas mudanças de procedimentos
na jurisprudência. Estas, por sua vez, refletindo novas relações sociais, resguardando não só
as mulheres, como também as crianças e adolescentes.
Para Gonçalves (1999, apud TORRACA, 1999), a violência contra a criança esteve
sempre presente na história da humanidade desde tempos imemoriais, como a matança de
crianças ordenada por Herodes, registrada em livros religiosos como a Bíblia e o infanticídio
relativamente comum na Roma Antiga e na Grécia, onde os gregos eliminavam sumariamente
recém-nascidos portadores de deficiência física.
Segundo Áriès (1978) a descoberta da infância enquanto sujeito social começou no
século XIII e sua evolução pode ser percebida na história da arte e da iconografia dos séculos
XV e XVI, mas, foi só a partir do final do século XVI e durante o século XVII que os sinais
de seu desenvolvimento tornaram-se numerosos e significativos.
69
Ainda no final do século XVI e início do século XVII, com a reforma moral e
religiosa, houve uma mudança na concepção da infância, sobretudo, em relação à sua
sexualidade. Destaca-se, neste contexto, a ausência de um sentimento de infância, surgindo
então à noção da inocência, fragilidade e debilidade infantil. Portanto, o “sentimento de
infância” (ÁRIES,1978) foi seguido, no século XVIII, pelo sentimento familiar, favorecendo
o aparecimento de sentimentos novos dentro do grupo, uma afetividade exarcebada que
passava a representar as cenas de família.
Como afirma Gonçalves (1999, p.135), “no século XIX, milhares de crianças
francesas morreram em decorrência do filicídio (AZEVEDO; GUERRA, 1997); ainda hoje,
em algumas tribos africanas, meninas são iniciadas sexualmente por familiares (LEVETT,
1989), e recém-nascidos são vendidos como escravos para tribos vizinhas (RADBILL,
1988)”. Considera ainda que, na segunda metade do século XX, a violência foi qualificada
como o “mal do século” e apontada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um
“fenômeno endêmico”, despertando à atenção da opinião pública e dos pesquisadores sobre as
várias formas pelas quais ela se manifesta.
Neste sentido, a infância, concebida como período de educação e formação, é um
dado social relativamente novo e contemporâneo do século XX. A concepção da infância é
resultado de um processo histórico construído socialmente em categorias etárias, de posição e
inserção social.
No caso do Brasil, a história social da infância revelou-se num quadro de negligência
baseado no pátrio poder autoritário, em concepções socializadoras e educativas, por meio dos
castigos físicos; na impunidade dos vitimizadores de crianças e adolescentes e na omissão das
políticas públicas destinadas às crianças e adolescentes. Assim, problemas que mesmo
perpassando todas às classes sociais, se incidiram nas classes sociais econômicoculturalmente menos favorecidas.
Somente a partir da última década do século XX, com a pressão de normativas
internacionais, a exemplo da Convenção Internacional dos direitos da criança e com o
ECA/90, que compreende a criança como sujeito de direitos inserida num contexto cultural de
poder, dominação, discriminação e exploração com elementos sociais de pobreza/miséria,
iniqüidade, disparidade geográfica, degradação rural, desorganização urbana e desestruturação
familiar, dificultando a possibilidade do exercício da cidadania e a garantia de seus direitos.
A violência sexual contra crianças e adolescentes, segundo Passeti (2004, p. 374),
“deixou de ser vista como uma característica inerente a pais pobres e famílias desestruturadas
quando as estatísticas revelaram que são os pais em todos os níveis sociais, os principais
70
violentadores físicos e sexuais de seus filhos, tanto em países ricos como em países pobres”.
Segundo dados do Relatório UNICEF-Situação da Infância Brasileira 2006, estimase que 20% das mulheres e 10% dos homens de todo o mundo tenham sofrido violência
sexual na infância, chegando a apenas 6% a estimativa de agressores punidos. Ainda segundo
o referido Relatório, o número de Delegacias de Proteção à criança e ao adolescente (DPCA)
até o ano de 2003, era de vinte e quatro em dezesseis Estados e no Distrito Federal e o número
de Varas Especializadas em todo o país era apenas quatro. Só a partir de 1988, a violência
passou a ser considerada uma questão de saúde pública e o Ministério da Saúde lançou a
Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Violência e Acidentes, criando em
2004 os Núcleos de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde, sendo instalados 65
núcleos em todo o Brasil.
Essas mudanças se justificam pela evidência na visibilidade que a violência sexual
contra crianças e adolescentes tem tomado a partir das duas últimas décadas do século XX,
como aponta Landini (2005), ao afirmar que esta questão não era desconhecida para os
especialistas nem para o público leigo durante as décadas anteriores. Dentre as mudanças,
uma das mais significativas ocorridas ao longo deste século, argumentadas por esta autora,
refere-se às atenções que antes eram voltadas para os danos morais por causa da honra,
passando a ser vista como repressão, atraso moral ou expressão do patriarcalismo, voltando-se
para os danos psicológicos. A escola positivista que sustentava a defesa dos “crimes contra a
honra” vê-se diante do inesperado fomento ao debate da sexualidade e das questões ligadas a
juventude.
Por conseguinte, perderam espaço os crimes “morais” e ganharam as manchetes o
abuso sexual e a pedofilia, vinculadas à própria estrutura da sociedade brasileira. Além do
que, alguns fatores interferem na dinâmica social como o deslocamento do discurso científico
para dentro dos movimentos sociais e da mídia de massa e uma reação à liberdade sexual.
Do ponto de vista da sociologia Landini (2005) sinaliza para a teoria processual de
Elias como a abordagem que proporciona uma leitura da mudança conceitual em relação à
violência sexual, havendo uma variação histórica na definição dos conceitos de violência
sexual que pode ser relacionada à própria estrutura da sociedade. Essas mudanças
relacionadas aos tipos de violência consideradas inaceitáveis, aparecem no exemplo da
criminalização da pornografia infantil a partir de 1990, na substituição do termo defloramento
do Código Penal de 1890 pela sedução e pelo atentado ao pudor mediante fraude, figuras
jurídicas do Código Penal de 1940. Entretanto, esse lento movimento na jurisprudência,
aponta para o fortalecimento da medicina legal, proporcionando maior assistência à vítima.
71
A abordagem da psicologia colocada por Landini (2005) afasta-se das questões
morais e justifica suas conclusões, a partir de teorias e dados empíricos sistematizados
priorizando as conseqüências psicológicas e, portanto, individuais desses crimes. Assim, a
questão da violência sexual deixou de ser um problema moral para ser uma discussão médica,
jurídica e psicológica. Sendo assim, os campos profissionais passaram a intervir na realidade a
partir de seus conhecimentos, engendrando outras questões como o crescimento da
sensibilidade em torno dos crimes contra crianças e adolescentes.
Após a legitimação da criança enquanto sujeito de direitos, instituído na Constituição
Federal em 1988, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, em
1989 e no ECA, em 1990, foi recente a inclusão dessa questão na agenda pública, exigindo do
Estado políticas públicas, recursos e instalação de capacidade técnico-política para atender às
vítimas da violência sexual, a fim de libertarem estas vozes sufocadas pela coação e fazerem
valer os seus direitos.
O ECA em seu art. 2° considera “criança para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze
anos de idade incompletos, e adolescente a pessoa até doze anos e dezoito anos de idade”. A
violência sexual fere diretamente o Artigo 17° do ECA, que garante:
O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física,
psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos
espaços e objetos pessoais.
Mesmo com essa prerrogativa, no Brasil não há uma legislação específica sobre
“crimes sexuais contra crianças e adolescentes”, sendo a vigente, limitada e desatualizada, que
juntamente com a impunidade, a cumplicidade da família e da sociedade, a lentidão no
processo judicial e a concepção de repressão da Polícia dificultam a garantia dos direitos.
A violência sexual encontra-se assim, desmembrada em duas dimensões de um
mesmo fenômeno, constituindo-se em categorias diferentes que devem ser compreendidas no
contexto da violência sexual, como o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e
adolescentes.
2.5 O abuso sexual
Em relação a esta categoria, existe uma literatura incipiente por se tratar de uma das
mais difíceis de ser notificada, em função do silêncio que a cerca. Trata-se de uma relação de
72
força imposta pelos pactos de silêncio mantidos por familiares, amigos, vizinhos,
comunidades e profissionais que negam as evidências e sinais em nome de interesses de
diversas ordens, servindo para ocultar a extensão do fenômeno do abuso sexual.
É importante ressaltar conforme Guerra (2005), o primeiro estudo científico nessa
área, a partir da observação de casos de violência física, realizado pelo professor de medicina
legal Tardieu em 1860, na França. Por referir-se a práticas sexuais inadequadas para a idade e
desenvolvimento psicossexual da criança, esse fenômeno chamava sua atenção, nos quais ele
colocava a força da negação à sexualidade e ao abuso de poder em relação aos mais fracos. Os
estudos de Tardieu foram gestados num momento de grande conservadorismo em relação às
idéias sobre a infância e a família. Seu trabalho não teve repercussão, pois indicava a
possibilidade da associação da violência doméstica com problemas sociais, revelando a
crueldade da família, num governo autoritário, sendo prioridade ocultar as mazelas sociais e
preservar a família.
Em sua análise sobre a questão do abuso sexual, Gabel (1997, p. 10)) destaca que
etimologicamente o termo abuso sexual “indica a separação, o afastamento do uso [...]
normal, sendo ao mesmo tempo um uso errado e um uso excessivo”. O que não significa que
houvesse um uso permitido. Atenta para a noção da ultrapassagem de limites, transgressão,
abuso de poder, abuso de confiança e intencionalidade. Supõe ainda uma disfunção em três
níveis: o poder exercido pelo grande (forte) sobre o pequeno (fraco); a confiança que o
pequeno (dependente) tem no grande (protetor); o uso delinqüente da sexualidade, ou seja, o
atentado ao direito que todo indivíduo tem de propriedade sobre o seu corpo.
Corroborando com essa questão, Faleiros (2000, p. 7) entende que o abuso sexual é
uma:
Situação de uso excessivo, de ultrapassagem de limites: dos direitos
humanos, legais, de poder,de papéis, de regras sociais e familiares. Ocorre
num contexto de dominação, no qual o violentado encontra-se subjugado ao
violentador, sem condições de opor-se.
Abordando um assunto tão delicado e complexo, é indispensável colocá-lo em sua
real dimensão, enquanto manifestação de uma violência contra o ser humano. O abuso sexual
“é uma das formas de maus-tratos que mais se ocultam: a criança tem medo de falar e quando
o faz, o adulto tem medo de ouvi-la” (GABEL, 1997, p. 11). A etiologia e os fatores que
determinam o abuso sexual contra a criança e o adolescente envolvem questões culturais, de
relacionamento, como também questões da sexualidade que dificultam a notificação e
73
perpetuam o silêncio na complexa dinâmica familiar.
Leal (2002, p. 38) indica que o abuso sexual de crianças e adolescentes é considerado
pela Agência Nacional de Notícias da Infância (ANDI), (op.cit., p.44), como “ato ou jogo
sexual em que o adulto submete a criança ou o adolescente (relação de poder desigual) para se
estimular ou satisfazer sexualmente, impondo-se pela força física, pela ameaça ou pela
sedução, com palavras ou com a oferta de presentes” e pelo (UNICEF, 2002, p. 7), como
fenômeno que “não tem implicações comerciais, na medida que não intervém nas forças de
mercado nem se produz nenhum benefício secundário, do ponto de vista material”.
No abuso sexual, não é o toque, nem a violência física e nem a falta do
consentimento que vão defini-lo satisfatoriamente, mas todo o processo no qual se manifesta.
A sexualidade estaria vinculada ao desrespeito ao indivíduo e aos seus limites, à troca de sua
postura de sujeito a uma de objeto. O outro é destituído do seu lugar de ser desejante e
forçado a ser objeto de um jogo perverso. É inegável que o abuso sexual pode ocorrer sem
deixar seqüelas visíveis, mas as seqüelas afetivas são mais difíceis de identificar e não são por
este motivo, de menor gravidade. Esta violência deixa marcas profundas no psiquismo das
vítimas, o que se agrava pela conotação sensacionalista que é dada aos casos que chegam a
público. A esse respeito Gabel (1997, p. 9) aponta que:
Quando o abuso sexual contra crianças e adolescentes é seguido de violência
física, há seqüelas visíveis: equimoses, lacerações, infecções, mas as
seqüelas mais graves e difíceis de avaliar são as afetivas: sentimento de
culpa, angústia, depressão, dificuldades de relacionamento e sexuais , etc.
Talvez a gravidade do traumatismo esteja fundamentada em torno da
vulnerabilidade, da idade da criança, da repetição, do tipo do abuso ou do silêncio em torno da
criança, que tem que lidar com a dor de ter sido violentada em seu corpo e suas emoções. Para
Azevedo; Guerra (2000), a gravidade para a vítima, a curto e longo prazo, pode chegar à
gravidez precoce, suicídio etc. O abuso sexual afeta, ao mesmo tempo, a saúde física e mental
e o direito individual de se dispor da própria sexualidade e privacidade.
O abuso sexual pode ser considerado em duas manifestações do fenômeno: intrafamiliar e extra-familiar. O intra-familiar acontece quando o violentador faz parte do grupo
familiar, considerando-se não apenas a família consangüínea, mas também as famílias
adotivas e substitutas, ou ainda amigo da família. Por serem conhecidos da criança ou da
família aproveitam-se da confiança, do lugar privilegiado para exercer seu poder de sedução.
A maioria está numa posição de poder sobre as crianças e adolescentes em conseqüência da
74
idade, da autoridade ou de ambas e, aproveitam-se da incapacidade de tomar decisões em
relação à sexualidade. Entende-se que não há consentimento porque a criança ainda não
desenvolveu a compreensão que lhes permita uma reação livre e consciente em relação ao
comportamento do adulto. O extra-familiar geralmente ocorre com uma pessoa estranha ao
relacionamento familiar da criança ou adolescente, como nos casos de estupro, com
conseqüências tão graves quanto o abuso intra-familiar.
A noção de abuso sexual revelada na contemporaneidade não se vincula a uma
discussão estática, pois não é uma realidade só de meninas, há meninos envolvidos, inclusive
crianças hermafroditas, mas as pesquisas não avançaram o suficiente. A subnotificação ainda
é uma realidade frente às dificuldades culturais e sociais em relação à denúncia quando se
trata de crianças do sexo masculino.
Butler (1979) em sua pesquisa e escuta às crianças vítimas de abuso sexual
intrafamiliar, nos Estados Unidos, mais particularmente os casos de incesto, coloca o
sentimento de se sentirem traídas pelos adultos em suas famílias, que lhes negam a segurança
emocional, física e sexual. Sufocam os seus verdadeiros sentimentos de profunda insegurança
e confusão, desconfiam de suas percepções, negam sua própria realidade, sentem-se
humilhadas, num estado de descrença e incapazes de livrarem-se da situação. Muitas sentiam
que o adulto fazia algo errado, sendo em muitos casos a única forma de amor, afeição e
atenção que obtinham. Essa situação somada ao sentimento de culpa e ao medo de não
acreditarem no que dizem deixam-nas sentirem-se sem saída, condenadas à prisão do abuso. E
quando a atividade sexual prolonga-se durante anos a criança sente o peso da responsabilidade
de ocultar a verdade de todos, o que proporciona ao abusador a liberdade de aumentar o grau
de intimidade.
Dessa forma, sustentam o segredo da família e mantêm o círculo da impunidade:
Se essas vítimas têm medo de ser punidas por um ou por ambos os pais,
medo das repercussões sobre o sistema familiar se contarem, medo de que
não lhes dêem crédito, medo de perder o único amor e atenção que recebem,
por maiores que sejam as preocupações que isso causa, ou se atribuem a
culpa a si mesmas pelo que aconteceu, o segredo continua a salvo com elas,
e a família se fecha ainda mais sobre si mesma (BUTLER, 1979, p. 38).
A autora acima citada chama a atenção sobre o silêncio nos casos de abuso sexual
com a negação virtual sobre a sua existência, maneira pela qual as famílias tentam enfrentar o
impacto do horror de saber sobre algo tão terrível que não pode ser dito. Ao que é precedido
na maioria das famílias pela incomunicabilidade e o constrangimento que cercam as questões
75
da sexualidade e intimidade. Essas atitudes negativas em relação à sexualidade continuam
sendo perpetuadas sutilmente pela cultura com expectativas culposas e irrealistas. No
momento em que se vivencia a questão da violência sexual, esconder de si mesmas a verdade
sobre o abuso sexual funciona como uma tentativa de se manterem intactas para não
ameaçarem a unidade da família e sua base econômica.
Na análise de Faiman (2004), que reflete sobre os aspectos do funcionamento mental
envolvidos em situações de abuso sexual intrafamiliar, em sua experiência no atendimento no
Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS), da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo, indica que o atendimento deve ser dirigido a toda
família. Trabalha com a base conceitual da psicanálise que coloca a interdição dos impulsos
incestuosos como:
Importância central no desenvolvimento psicológico, sendo considerada
como o paradigma da possibilidade de reconhecimento, pelo sujeito, de que
existem limites para a realização de seus desejos, para sua conduta, e que
balizam seu reconhecimento de si (FAIMAN, 2004, p. 19).
Nessa ordem, a psicanálise coloca que a “interdição ativa pelas figuras parentais
asseguraria à criança as condições de um desenvolvimento psíquico saudável e a sua
integração à comunidade cultural humana” (FAIMAN, 2004, p. 11) e reflete sobre a
responsabilidade dos pais ao apresentar para os filhos a Lei que rege a cultura humana,
entendida como o paradigma de limite, diferenciando a ordem do caos. A consumação do
incesto exerce um efeito nocivo sobre a capacidade da criança de fantasiar, sendo vivido
como um desnudamento da fantasia e uma invasão no mundo mental, ou seja, pode-se pensar
nas manifestações desse tipo de dificuldade, no empobrecimento da fantasia e da atividade
reflexiva presentes nos distúrbios do sono onde a criança manifesta angústia e agitação.
Ainda na análise de Faiman (2004) a ocorrência do incesto traduz uma falha no que
diz respeito às normas sociais, caminho percorrido por Freud, na construção da teoria
psicanalítica, entendida como uma renúncia necessária à civilização envolvendo
representações mentais e o processo de simbolização. Para essa compreensão, na origem da
estruturação psíquica o paralelo entre o desenvolvimento ontogenético e filogenético reproduz
o trajeto percorrido pela espécie humana, propondo elucidar as origens das organizações
sociais e suas regras de convívio. Para isso, as limitações impostas à satisfação sexual e aos
impulsos agressivos, entre eles, a proibição do incesto e do assassinato, são considerados a
base de estruturação de uma comunidade.
76
Sendo assim, a compreensão do incesto como uma situação anticivilizatória por
natureza, encontra ancoramento na antropologia, nos estudos de Lévi-Strauss, que entende a
questão do interdito ou o estudo das bases da interdição do incesto, como a passagem do
homem de um registro natural para o registro da cultura, marcando o homem como um ser de
cultura, da civilização.
A partir das análises de Guerra (2005), Gabel (1997), Faleiros (2000), Leal(2002),
Azevedo e Guerra (2000), Butler (1979) e Faiman (2004), pode-se depreender a gravidade do
abuso sexual de crianças e adolescentes e a imprevisibilidade das conseqüências em suas
vidas.
Para Fucks (2005, p.15), o “abuso sexual no contexto familiar [...] é hoje objeto de
investimento significativo em diversos lugares do mundo”. Associado ao combate à violência
e à preocupação com a criança, a mulher e a família, adquire significação fundamental pela
articulação com as questões sociais e políticas.
Fucks (2005) traz à tona dois processos fundamentais de produção de crianças
vítimas, bastante discutidos no Brasil: o processo de vitimação e vitimização. No primeiro,
considera-se que as crianças são vítimas da violência estrutural que caracteriza as sociedades
marcadas não só pela dominação de classe como também pela extrema desigualdade
distributiva, colocando-as em situação de alto risco. Já no segundo, evidencia-se numa
dimensão mais pessoal ou interpessoal, exercida em todas as classes sociais, vitimizando
crianças pobres, mas, também, de classe média e alta não deixando de responsabilizar toda a
engrenagem social. Na visão desta autora, esses processos se sobrepõem e se combinam, mas
estão atravessados por relações sociais de poder. Sendo assim, a vítima passa a ser cúmplice
de um pacto silencioso, em que sua palavra passa a ser censurada sob o medo da coerção,
revelação e das punições.
A esse respeito, muito ainda precisa ser feito, haja vista a ausência de serviços de
família acolhedora no Brasil, comprometendo o processo de atendimento, uma vez que o
agressor geralmente faz parte da família. Nesse caso, em relação à denúncia, o ECA em seus
artigos 245, 13 e 136, inciso IV, indica o fluxo a ser seguido na revelação de maus-tratos
contra crianças e adolescentes entre os quais se inclui o abuso sexual. Por exemplo, o artigo
245 determina que profissionais e gestores de estabelecimentos de atenção à saúde e de ensino
fundamental, pré-escola e creche devem comunicar à autoridade competente as situações de
maus-tratos de que tenham conhecimento ou suspeita. Já o artigo 13 define como obrigatória a
comunicação ao Conselho Tutelar dos casos de maus-tratos.
Um dos maiores desafios a ser enfrentado pela vítima de abuso sexual constitui-se na
77
sua revelação. Torna-se então o primeiro e o mais decisivo passo para romper com o pacto de
silêncio imposto pela situação de abuso sexual e para o seu enfrentamento. O segredo de
família mais bem guardado esconde “um fenômeno coberto por um pesado e espesso véu” [...]
em que a vergonha e a culpa que o acompanham “tornam seu desvelamento extremamente
penoso e, por esta razão, frequentemente postergado” (SAFFIOTI, 1997, p. 170).
O desvelamento de uma situação de abuso sexual, ou seja, o momento de romper
com uma situação de silêncio, de desocultamento, pode ser constituída por dois fatos na
concepção de Faleiros (2003), a revelação e a notificação e por dois momentos, o privado e o
público. A revelação é concebida num primeiro momento como privada, ou seja, feita para
alguém de quem se espera ajuda e ações. Num segundo momento, a revelação é pública onde
se concretiza a denúncia e o registro da mesma em instituição governamental ou não
governamental. Em seguida, a denúncia entra no processo de notificação, no registro policial,
em Boletim de Ocorrência e em imediata instauração do Inquérito Policial.
Ainda segundo esta autora, existem dois tipos de porta de entrada que fazem parte do
percurso da denúncia: as da queixa e as da notificação do crime. As portas de entrada da
queixa são de acesso público, conhecidas da população, têm a função de ouvir a queixa, fazer
o acolhimento, dar apoio e informação sobre as providências a serem seguidas, fazer o
encaminhamento, servindo de trânsito entre a queixa e a notificação. Assim, recebe a
revelação pública da situação de abuso sexual. Enquanto que, as portas de entrada da
notificação investigam a queixa, indiciam ou não o acusado, encaminham o Inquérito Policial
ao judiciário como também encaminham as pessoas envolvidas na situação para o
atendimento e notificam aos órgãos de Defesa de Direitos como o Ministério Público,
Conselho Tutelar e Vara da Infância e da Juventude. Portanto, registram oficialmente a notícia
de crime.
Doravante, perante a complexidade do fenômeno, faz-se necessária para o seu
enfrentamento uma articulação denominada por Eva e Vicente Faleiros (2001) “em rede”.
Sendo uma perspectiva de trabalho recente, as redes são entendidas como organizadas “a
partir da articulação de atores/organizações/forças existentes no território, para uma ação
conjunta multidimensional, com responsabilidade compartilhada (parcerias) e negociada”
(FALEIROS, E, 2003. p.24).
A partir desse entendimento, surge como resultado da pesquisa realizada por Eva
Faleiros e Vicente Faleiros (2001) no Distrito Federal, os distintos caminhos percorridos pela
denúncia: 1- O Fluxo da Defesa de Direitos que se ocupa com a garantia da cidadania, sendo
composto por Conselhos Tutelares, Varas da Infância e da Juventude, Ministério Público,
78
Defensoria Pública e Centros de Defesa e que têm como função central a defesa e a garantia
dos direitos dos envolvidos na situação de abuso sexual notificada e a proteção de violações a
esses direitos. Portanto, determina com força de lei, ações de atendimento e de
responsabilização; 2- O Fluxo de Responsabilização dedica-se ao processo legal, da sanção
tendo como funções a responsabilização judicial dos autores de violações de direitos e
proteção da sociedade. As instâncias são: Delegacias de Polícia, Delegacias Especializadas
(de Proteção à Criança e ao Adolescente), Instituto Médico Legal, Varas Criminais, Vara de
Crimes contra a Criança e o Adolescente, Delegacia da Criança e do Adolescente e Vara da
Infância e da Juventude (quando o abusador é menor de idade); 3- O Fluxo de Atendimento
trata das pessoas e dos danos sofridos, inclusive as dores subjetivas. Tem a função de dar
acesso a políticas sociais e a direitos de proteção, prestar serviços, cuidar e proteger, como
também, prestar informações e cumprir as determinações dos fluxos de defesa de direitos e de
responsabilização.
No entanto, a pesquisa realizada por Eva Faleiros no período 2001-2002, ampliada
para o Brasil envolvendo as cidades de Belém-PA, Recife-PE, Vitória-ES, Goiânia-GO e
Porto Alegre-RS, correspondendo a cada macro-região brasileira, aponta como resultados a
evidência das relações de poder. Dentre elas, a relação de poder de idade entre abusador e
vítima, onde 70% das vítimas são crianças, com idade abaixo de 12 anos, com incidência
maior na faixa etária de 7 a 9 anos, correspondendo a 25,4%. Muitos dos abusos sexuais
ocorrem durante anos, sendo a idade das vítimas notificadas quando ocorre a denúncia. A
relação de poder de gênero aparece com 95,7% dos abusadores do sexo masculino,
confirmando pesquisas nacionais e internacionais sobre abuso sexual. A relação existente
entre abusadores e vítimas aponta para 60,4% de abusadores familiares das vítimas) (13 pais,
6 padrastos, 2 avôs, 2 irmãos, 1 madrasta, 1 tio, 1 cunhado e 1 tio-avô).
Outro fator importante apontado nesta pesquisa foram os entraves à resolubilidade,
entre os quais se destacam: os dificultadores contextuais, que aparecem nas questões legais,
de princípio/estruturais, culturais e comunicacionais; e os obstáculos operacionais, presentes
nas questões financeiras, materiais e metodológicas.
Os dificultadores contextuais são considerados: os de princípio/estruturais com o não
cumprimento do preceito constitucional e do ECA da prioridade absoluta para crianças e
adolescentes, revelada na ausência de políticas públicas efetivas voltadas para o atendimento
das famílias, vítimas e abusadores, na insuficiência orçamentária na área da criança e do
adolescente; os socioculturais que dificultam as denúncias, fortalecendo o pacto de silêncio, a
cultura do medo e da impunidade e a não credibilidade nas leis e nas instituições; os
79
comunicacionais com o desconhecimento de leis, serviços, dados, pesquisas, a desarticulação
das ações e a falta de responsabilidade social sobre um crime endêmico.
Enquanto que os obstáculos operacionais são identificados como: financeiros e
materiais, com a insuficiência de recursos financeiros dificultando o funcionamento da rede
de serviços, com uma infra-estrutura inadequada e desatualizada; os metodológicos na
descontinuidade e fragmentação das ações, carência de rotinas definidas de referência e
contra-referência, burocratização dos serviços, insuficiência de recursos humanos
especializados e ineficiência dos serviços do sistema de garantias, previsto no ECA.
Os resultados dos descaminhos da denúncia realizada por Eva Faleiros (op.cit.)
expõe a dura realidade brasileira com sua fragilidade de articulação. Ficando evidenciado a
hegemonia do Fluxo de Responsabilização como o mais atuante na prevalência da concepção
criminológica e punitiva, a desmobilização do Fluxo de Atendimento com menos recursos
deixando em situação crítica o seu reconhecimento e o comprometimento do Fluxo de Defesa
de Direitos pela não integração plena dos instrumentos definidos e preconizados pelo ECA,
comprometendo o exercício de suas funções.
Segundo dados da ABRAPIA no observatório da infância (2007), as denúncias
efetuadas no período de fevereiro de 1997 a fevereiro de 2003 em todo o Brasil correspondem
a 1.547 casos. Desse número 378 (24,42%) são referentes ao Nordeste, 91 (5,8%) no Centro
Oeste, 109 (7,04%) na região Norte, 795 (51,36%) no Sudeste e 174 (11,24%) na região Sul.
O Estado da Paraíba aparece com 15 casos correspondendo a 0,97%.
Dentre os primeiros municípios do Nordeste que se destacam no número de
denúncias são o Recife (PE) com 24 denúncias (1,55%) e Fortaleza (CE) com 67 denúncias
(4,33%).
Com efeito, “O saber sobre o abuso sexual deve ser acompanhado por um
compromisso político em defesa das crianças e adolescentes, patente na Convenção de
Direitos da Criança, assim como no ECA” (VOLNOVICH, 2005, p. 54).
O abuso sexual é incluso na legislação penal brasileira na categoria dos crimes
contra os costumes, sendo considerado como atentado violento ao pudor (arts. 213 e 214 do
Cód. Penal). Em suas disposições gerais a hipótese do agente causador ser pai adotivo,
padrasto, irmão, tutor, curador ou empregador da vítima (art. 266 do Código Penal) leva ao
aumento da pena. Na Parte Geral do Código, editada com a lei 7.209/84, o art. 61 n° II, letras
e e f estabelece como circunstância agravante a condição de parentesco. Nos crimes sexuais
essa relação é causa de aumento de punição.
80
2.6 A exploração sexual
A exploração sexual de crianças e adolescentes tem sido um tema que causa
indignação e mobilização na atualidade em função da sua complexidade e da preocupação
com a cidadania de um segmento que atinge o status de sujeito de direitos do ponto de vista
legal.
Constitui-se em um dos graves problemas reconhecido pela sociedade. No
entendimento de Faleiros, a exploração sexual configura-se em:
Uma relação de poder e de sexualidade mercantilizada, que visa a obtenção
de proveitos por adultos, que causa danos bio-psico-sociais aos explorados,
que são pessoas em processo de desenvolvimento. Implica o envolvimento
de crianças e adolescentes em práticas sexuais coercitivas ou persuasivas, o
que configura uma transgressão legal e a violação de direitos à liberdade
individual da população infanto-juvenil( FALEIROS, 2000, p. 72).
Conforme dados da Pesquisa Nacional da DIEST/CBIA sobre a Exploração Sexual
de Meninas Adolescentes realizada nos anos de 1990 e no período mais recente, já apontava
dados preocupantes. “A exploração sexual infanto-juvenil se apresenta em todas as unidades
federadas do País”, (PINTO, 1995, p. 37). A faixa etária mais visível estava entre 12 e 16
anos, mas encontrava-se a presença de meninas entre quatro e sete anos usadas sexualmente
das mais diversas formas.
Considerado um fenômeno de conhecimento público, ou seja, de todos, porém não
alcança visibilidade institucional por se tratar da esfera privada do mercado. Existe um
comércio vendendo o corpo de crianças e adolescentes para uma demanda consumidora, em
sua grande maioria masculina, utilizando os serviços sexuais de crianças e adolescentes. Ou
seja, há uma mercantilização da relação de trabalho de meninas, meninos, jovens travestis
nesse processo. A exploração sexual de crianças e adolescentes:
Vem se caracterizando como uma das mais perversas faces da exclusão
social, por envolver um segmento da população que menos condições tem de
se defender e cujos direitos, previstos pela Constituição Federal e pelo ECA,
deveriam estar sendo prioritariamente assegurados (PAIVA, 1996, apud
BRAZ, 1996, p. 227).
Este problema se constitui em uma questão histórica mundial, existente desde os
primórdios da humanidade. Mesmo sendo um problema de extensão mundial, essencialmente
81
característico do capitalismo, pois está fundamentado no lucro, que, também, vem marcando a
realidade brasileira, sendo aí incluídos a prostituição infantil, o turismo sexual, a pornografia
e o tráfico para fins sexuais. Segundo Leal (2002, p. 38) “O Instituto Interamericano del
Nino/Organização dos Estados Americanos (IIN/OEA), classificou em 1998 a exploração
sexual comercial em quatro modalidades: tráfico para fins sexuais, prostituição, turismo
sexual e pornografia, sendo essa classificação incorporada nas agendas internacionais
relativas à exploração sexual comercial de crianças e adolescentes”.
O tráfico e venda de crianças para propósitos sexuais é o tráfico que
consiste em todos os atos envolvendo o recrutamento ou transporte de
pessoas entre ou através de fronteiras e implicam em engano, coerção,
alojamento ou fraude com o propósito de colocar as pessoas em situações de
exploração, como a prostituição forçada, práticas similares à escravização,
trabalhos forçados ou serviços domésticos exploradores, com uso de extrema
crueldade.
A prostituição infantil é o uso de uma criança em atividades sexuais em
troca de remuneração ou outras formas de consideração.
O turismo sexual é a exploração sexual comercial de crianças por pessoas
que saem de seus países para outros, geralmente países em desenvolvimento,
para ter atos sexuais com crianças.
A pornografia infantil é qualquer representação através de quaisquer meios
de uma criança engajada em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas
ou qualquer exibição impudica de seus genitais com a finalidade de oferecer
gratificação sexual ao usuário, e envolve a produção distribuição e/ou uso de
tal material (ECPAT, 2002).
Essas categorias se entrecruzam, alimentando uma rede e um círculo vicioso difícil
de ser interrompido, podendo ter conseqüências no que diz respeito ao aumento da
prostituição. Segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 1996),
cerca de 2 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 15 anos estão prostituídos no mundo,
ficando assim a prostituição em terceiro lugar como um grande negócio no mundo em termos
de volume de dinheiro, perdendo somente para o comércio de armas e para o tráfico de
drogas.
A exploração sexual de crianças e adolescentes tem características diferentes de um
país para outro, conforme levantamento realizado por Paiva; Pereira (1996),
tendo sua
incidência mais forte no Terceiro Mundo (América Latina, América Central, Ásia, África) e,
até mesmo, de alguns países do Leste Europeu, mas quase sempre com laços orgânicos de
pessoas e grupos dos países ricos onde se localizam poderosas redes de tráfico humano.
Na América Latina, de acordo com estas autoras, o Brasil, o Chile e a Venezuela são
os países onde a situação é mais grave, predominando o comércio do sexo originado da
82
exploração de crianças que precisam tirar das ruas sua sobrevivência. No Brasil, as regiões
Sul e Nordeste vivenciam a gravidade do sexo-turismo.
Na Europa, o comércio de sexo tem como base as redes de tráfico internacional,
vindas da América Latina, África do Oeste, englobando Europa do Norte, Ocidental e Leste
Europeu como Ucrânia e Bósnia, onde o crescimento do problema é alarmante.
Na África, a exploração sexual acontece via serviços domésticos em hotéis,
restaurantes e bordéis. Os campos de refugiados e suas comunidades vizinhas são demandas
em potencial, originários das guerras em Moçambique, Sudão, Libéria, Ruanda, Somália,
Angola e Zâmbia, em grande parte ligadas ao caráter colonialista de suas relações com as exmetrópolis.
No Oriente Médio, além do “trabalho doméstico”, materializa-se e “legitima-se” a
exploração de crianças e adolescentes através do casamento precoce, prática comum naquela
região.
Já na Ásia o fenômeno é ainda mais grave, por sua extensão territorial, sendo
segundo várias ONGs, a Tailândia (colonizada pela França), a primeira no ranking mundial
com os maiores números em termos de prostituição. O quadro é o mesmo em todo o mundo,
onde o determinante em qualquer instância é sempre o interesse comercial e o lucro.
O Brasil também enfrenta esta realidade da exploração sexual de crianças e
adolescentes, diferenciado pela particularidade regional. Um estudo feito pelo CECRIA, em
março de 1996, conferiu uma análise qualitativa às conclusões da CPI da Prostituição InfantoJuvenil, em 1993, que investigou os casos de prostituição infantil em nosso território, dando
visibilidade ao fenômeno. A partir daí as instituições que lutam contra a exploração sexual
passaram a atuar na formulação de políticas públicas.
Nas regiões Norte e Nordeste, o fenômeno acontece de várias formas. No Amazonas
em função da Floresta Amazônica, tão cobiçada pelas grandes potências e multinacionais, o
turismo é a principal via de exploração sexual. No Pará, a situação é extremamente grave nos
garimpos e áreas de mineração, nos quais a venda de crianças e adolescentes a garimpeiros
pelos próprios pais ou responsáveis é freqüente e comum. Em Rondônia, o número de
prostíbulos que usam o cárcere privado é alto e há também o tráfico para os garimpos.
Em Belém e nos Estados do Rio Grande do Norte e Ceará, as meninas moram nas
ruas e têm no consumo de drogas uma de suas principais causas. No Recife e em Salvador,
predomina o sexo-turismo. Em Sergipe, meninas analfabetas, em sua grande maioria, são
mantidas em prostíbulos em regime de escravidão.
Na região Centro-Oeste, não é muito diferente das demais regiões do país,
83
especialmente, em Brasília, onde os pontos de prostituição são muito acessíveis e com
anúncios em classificados de jornais oferecendo todos os tipos de “serviços”.
Nas regiões Sul e Sudeste, a rede de comércio de sexo também conta com a
participação de policiais, agências de viagens, hotéis e caminhoneiros, sobretudo, em São
Paulo, onde as vítimas, em sua maioria, vêm de outros Estados, com a ilusão de conseguirem
empregos e terminam sendo aliciadas por agenciadores e cafetões.
Na Paraíba, as meninas e adolescentes são usadas na exploração sexual pelos
próprios pais como forma de sustento da família, nas ruas ou em programas a bordo de navios
de carga e barcos de pesca.
Segundo o Jornal da Paraíba (2007), na série Infância em Risco, exibida entre os dias
12 e 20 de novembro, a exploração sexual de crianças e adolescentes no Nordeste conforme
pesquisa da Universidade de Brasília (UNB) e apoio do UNICEF corresponde a 32% dos
casos de violência no Brasil, em 298 municípios da região Nordeste.
Na Bahia, os números de ocorrências dos crimes sexuais contra crianças e
adolescentes para cada 100.000 habitantes são mais altos nas seguintes cidades: segundo fonte
da Polícia Civil do Estado, Itaberaba 27,3; Barreiras 17,2; Salvador 16,8; Ilhéus 16,1.
Em Fortaleza (CE), o que antes se limitava aos pontos turísticos e ao contato com
estrangeiros, hoje se espalha por toda a cidade. A proximidade das crianças e adolescentes
junto aos exploradores, que se encontram inseridos numa rede constituída por pessoas da
vizinhança, bares, taxistas, inibe as denúncias e dificulta a penalidade. Há quatro anos o
registro de casos era 12 por mês, hoje chega a cinco vezes mais. O perfil das meninas é
parecido: são pobres, de famílias desestruturadas e muitas vezes, usuárias de drogas.
Em Sergipe, 73% das crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual têm renda
familiar entre 0 a 1 salário mínimo, estando a pobreza como ponto de partida para a entrada
na rede de exploração sexual e comercial. Aparecendo a orla da capital como principal ponto
da exploração sexual de crianças e adolescentes. No ano de 2006, foram denunciados 55 casos
e em 2007, até o mês de setembro, 16 casos, segundo fonte do Ministério Público do Estado.
Em Alagoas, o limite entre o abandono e a pobreza é alto, por conseguinte, no
interior do Estado o número de denúncias de abuso sexual também acompanha dados
preocupantes. A maioria dos agressores são os pais e padrastos. Só em São Luiz do Quitunde,
no litoral norte do Estado, 40 casos foram registrados. Segundo o Ministério Público Estadual
as vítimas não recebem assistência das instituições responsáveis pela defesa da criança e do
adolescente. Existem grupos organizados para explorar as meninas que migram
constantemente para a capital do Estado.
84
O Rio Grande do Norte possui uma única Delegacia Especializada na apuração de
crimes contra crianças e adolescentes, localizada na capital, com uma estrutura deficiente para
apurar todas as denúncias do Estado. Em 2006, das 790 ocorrências registradas, 154 eram de
exploração sexual e, em 2007, até o mês de setembro, das 697 ocorrências, 133 foram casos
de corrupção, aliciamento e exploração sexual. Do total de casos a prostituição infanto-juvenil
ocupa o segundo lugar no Estado só perdendo para o atentado violento ao pudor. Ressalte-se
que o Estado possui um código de conduta para combater o turismo sexual com um trabalho
realizado junto às empresas.
No Recife (PE) a exploração sexual de crianças e adolescentes anda lado a lado com
o tráfico de drogas. Alguns locais são destacados como a central de abastecimento de
Pernambuco, freqüentado por comerciantes e caminhoneiros, onde crianças e adolescentes
circulam no local ainda de madrugada, muitas vezes trazidas pelas mães, acontecem cenas de
assédio sexual que são testemunhadas e silenciadas. Na Avenida Artur de Lima Cavalcanti
que corta a cidade, considerado local de venda de drogas e também de prostituição, a oferta é
feita abertamente. Na favela João de Barros em Santo Amaro, área central do Recife, onde
funciona um dos principais pontos de tráfico de drogas da cidade, as negociações para
exploração sexual são feitas diretamente com as mães. Segundo a Gerência de Proteção à
criança e adolescente, 14% das queixas que chegam dizem respeito à exploração sexual. Este
ano de 2007, já foram registrados 480 casos. A Secretaria de Defesa Social do Estado admite
que a situação seja sistêmica, tem ligação com o tráfico de drogas e a polícia sozinha não
consegue resolver, sendo necessárias ações públicas integradas para resolver a questão.
No Maranhão, conforme mapeamento realizado pela Polícia Rodoviária Federal, em
todas as rodovias do país, constatou-se como áreas de risco para a infância a BR-135, a BR222 e a BR-316, com muitos casos de exploração sexual. Estimulada pela pobreza, o
aliciamento acontece geralmente nos horários noturnos, nos postos de combustível, com a
conivência dos caminhoneiros. A OIT que evidencia a existência de dois milhões e
quatrocentos mil vítimas de exploração sexual no mundo, revelou que 35% dos casos são de
crianças e adolescentes e propôs um pacto com os municípios brasileiros para combater os
crimes de exploração sexual na infância.
A Paraíba atualmente ocupa o primeiro lugar no Brasil em número de casos
arquivados, com 27 municípios fazendo parte da rota da exploração sexual contra crianças e
adolescentes. Em Sapé, situada a 55 Km da capital, foi descoberto um esquema de
aliciamento envolvendo vereadores e empresários do município. Em 2006, o Programa
Sentinela de João Pessoa recebeu 148 denúncias e, em 2007, foram 77 denúncias até o mês de
85
setembro. A praia de Cabo Branco foi identificada pelo Ministério Público como uma das 11
áreas de risco, de forma tão concreta, que existe, inclusive, uma tabela de preços identificada
pelo Conselho Tutelar. Dos 80 crimes denunciados pela CPMI, 10 estão na Paraíba.
Uma das conseqüências da exploração sexual apontada na série Infância em Risco, é
exatamente, o afastamento da sala de aula, com um histórico de faltas, notas baixas e
repetência. Uma escola pública de João Pessoa resolveu enfrentar o problema. Na fala da
diretora Lúcia Maria Teixeira, a escola passou a fazer visita à família, tentando trazer a
criança de volta à escola e acompanhá-la durante todo o processo da violência.
Com esta reportagem, a mídia coloca em evidência uma problemática nacional, a
possibilidade de resgate de crianças e adolescentes da exploração sexual pela educação. E por
que não tornar esse espaço, lugar de uma política pública para uma cidadania possível para as
próximas gerações?
Conforme a publicação da Matriz Intersetorial de Enfrentamento da Exploração
Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes, publicada pelo site caminhos da Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul, são 927 municípios no Brasil citados como rotas de tráfico e
exploração sexual de crianças e adolescentes.
No Estado da Paraíba, os municípios citados neste documento foram Alhandra,
Areia, Bayeux, Cabedelo, Cachoeira dos Indios, Cajazeiras, Campina Grande, Catingueira,
Conceição, Conde, Coremas, Desterro, Guarabira, Itabaiana, João Pessoa, Mamanguape,
Monteiro, Patos, Pirpirituba, Pombal e Princesa Isabel.
O Relatório da CPMI de 2000 apresentou dados da Paraíba indicando a publicação
de pessoas indiciadas, porém não havendo por parte da justiça, a devida apuração dos fatos
pelo Ministério Público Estadual. Muitos dos indiciados, foram, inclusive eleitos para
prefeitos, vice-prefeitos, deputados e vereadores nas últimas eleições.
A contradição da sociedade entre a aceitação da existência do fenômeno e a sua
omissão revela, conforme LEAL (2003), que o mercado do sexo infanto-juvenil atende uma
demanda consumidora que não reconhece a sexualidade como direito, posto no ECA.
Foi identificada na BR-230 (Paraíba) uma nova rota de prostituição infantil
que inclui Patos, Campina Grande e João Pessoa. Foi surpresa encontrar no
rol de seletos clientes inúmeros políticos, juízes e comerciantes de Patos e
das redondezas. Pior: o envolvimento dessas “autoridades”, que deveriam
criar políticas juvenis, é um dos maiores entraves para o andamento das
investigações (LEAL, 2003, p. 13).
O segmento infanto-juvenil vê-se submetido a uma sociedade que historicamente reafirma
86
práticas vitimizadoras, fortalece o discurso institucional de que a sexualidade pertence ao âmbito do
privado, tratando a mercantilização de corpos de crianças e adolescentes entre o legal e o ilegal nas
esferas de poder.
A participação da sociedade civil tem sido muito importante para a formação de uma
rede integrada de ações, sobretudo, na perspectiva de denúncias, cobranças e
acompanhamentos dos casos. Nesse campo, são emblemáticas as atuações de algumas ONGs,
em função do compromisso com a questão:
A CASA DE PASSAGEM em Recife-PE, nasceu nas ruas do centro do Recife, no
final dos anos de 1980, sendo pioneira no trabalho com as meninas que ali viviam,
promovendo o acesso aos direitos sociais e políticos, articulando seu trabalho com o
protagonismo infanto-juvenil no âmbito comunitário.
O COLETIVO MULHER VIDA em Olinda-PE, desde a sua fundação em 1991, vem
desenvolvendo um trabalho de educação popular junto às mulheres adultas da periferia do
grande Recife, com o objetivo de prevenir e propor políticas públicas de combate à violência
doméstica e sexual contra a mulher, levando a questão a ser tratada como caso social e não
particular.
O CECRIA em Brasília-DF, criado em 1993, constituindo-se em um centro de
pesquisa, capacitação, promoção, formação e articulação de ações governamentais e não
governamentais, em nível nacional e internacional para a defesa dos direitos da mulher, da
criança e do adolescente, orientado pela concepção dos direitos humanos definido na
legislação nacional e normas internacionais.
O Projeto AXÉ em Salvador-BA, criado em 1990, quando iniciou suas atividades
vinculado ao MNMMR, prestando serviços de educação e defesa de direitos às crianças e
adolescentes em circunstâncias especialmente difíceis.
O Projeto MENINAS DE SANTOS em Santos-SP, iniciado em 1993, que tem
oferecido assistência às meninas vítimas de exploração sexual, freqüentemente usadas para o
repasse de drogas, sem moradia ou vínculo familiar.
O projeto CASA ROSA MULHER em Rio Branco-AC, oferece assistência a
mulheres e adolescentes vítimas de violência doméstica, prostituição e risco pessoal e social.
Primeira experiência de política pública direcionada para este fim, no Estado do Acre,
iniciando suas atividades desde 1994 e se consolidando como referência no Estado. Tem
como um dos importantes parceiros o Centro de Defesa dos Direitos Humanos e Educação
Popular do Acre.
No entanto, toda essa mobilização ainda se trata de iniciativas tópicas, longe de
87
combater a rede existente que está articulada com as macro-políticas nacionais e
internacionais, mas constituem-se espaços de denúncia, mobilização e cobrança do papel do
Estado na sua função de proteção a crianças e adolescentes.
O papel dos Movimentos Sociais no empenho pelos direitos da criança e do
adolescente que toma para si a prerrogativa na luta contra a violência sexual torna-os
responsáveis pelo crescimento de sua visibilidade, sobretudo, nas últimas décadas do século
XX. As transformações ocorridas a partir deles são conseqüências da ofensiva civilizatória no
enfrentamento da violência sexual que sai do seu papel secundário e alcança autonomia no
ponto de encontro com os movimentos sociais internacionais. Atualmente tem havido uma
intensificação das ações e fortalecimento dos movimentos já existentes que no embate de
idéias e forças engendram mudanças.
Mais recentemente, conforme a Revista do Terceiro Setor (RETS, dezembro/2006),
em 28 de novembro, foi lançada em todo o Brasil pela World Childhood Foundation Brasil
(WCF – Brasil), uma campanha intitulada “Na mão certa”, com o objetivo de combater a
exploração sexual infantil nas rodovias brasileiras. Esta campanha tinha como objetivo
mobilizar os setores públicos, privado e a sociedade civil nessa luta, informando aos
caminhoneiros a importância de suas ações como segmento que pode ser sensibilizado como
agentes de transformação dessa realidade nas estradas brasileiras.
De acordo com a OIT, mais de 100 mil crianças e adolescentes são exploradas
sexualmente no Brasil. A polícia federal revelou em seus dados recentes a existência de 1.222
pontos de exploração nas rodovias federais brasileiras, alguns localizados em regiões
fronteiriças, onde acontece o tráfico internacional de drogas e de pessoas. A SEDH realizou
uma pesquisa registrando a ocorrência de exploração sexual comercial em 937 municípios
brasileiros, em sua grande maioria, localizados nas regiões Nordeste e Sudeste.
De uma forma geral, em todo o Brasil, o fenômeno é acompanhado pelo consumo de
drogas e, para manter o vício, crianças e adolescentes, suportam a violência e a degradação
humana inerentes à prostituição.
Uma das estratégias de denúncia e discussão desta problemática tem sido a
filmografia, instrumento de utilidade pública para ampliação do debate. Tendo como
exemplo, o Filme “Anjos do Sol”, um filme impactante, com cenas de faroeste, trazendo a
sensação de nunca ter-se saído da barbárie, mesmo estando em pleno século XXI. Gravado no
ano de 2006, baseado nas pesquisas realizadas no Brasil, inclusive nos relatos da CPMI,
revela a engrenagem do universo da prostituição infantil no Brasil. As cenas de coerção, de
impedimento da fala, da impossibilidade de escolha, da ausência de liberdade, da negação da
88
cidadania são presentes no desenrolar do mesmo. O cerceamento de crianças e adolescentes,
sendo leiloadas contradiz o lema de prioridade absoluta neste país, legitimada pela
Constituição Federal de 1998. O que esperar de um pai e uma mãe que não cumpre seu papel
de proteção? Como desistir de uma filha tão cedo? Desistir emocionalmente, libidinalmente,
entregando-a ao próprio desamparo, ao desamparo estrutural, à própria sorte. A nobreza dos
sentimentos, o respeito ao outro, a sacralidade do corpo, a descoberta do desejo, a escolha, o
jogo de sedução, esse direito é roubado sem permissão.
O que esperar de um país que trata as suas crianças como objeto, mercadoria? Não há
registro das pessoas, não há a construção de uma identidade, é como se essa identidade não
tivesse uma referência, fosse fluida, podendo ser mudada a qualquer momento. E o transporte
de pessoas é feito como se fossem coisas, objetos, mercadorias, animais. Sendo assim, podem
ser vendidas, trocadas, negociadas, usadas, não tem dono e ao mesmo tempo é de todos.
Parafraseando a música do Tribalistas, no álbum de 2002, “não é de ninguém”. Não sendo de
ninguém, qualquer um pode se apropriar, ou seja, é de quem dá mais nos leilões, sendo um
produto altamente rentável, pois, comparado com o material concreto do narcotráfico e do
comércio de armas no mundo inteiro o corpo é exposto a uma carga de trabalho de até 16
horas/dia ininterruptamente. E para manter a hegemonia do capital, os corpos de crianças
adolescentes são mercantilizados como coisas ou objetos valiosos. O corpo é tocado sem
permissão, nem autorização, como se fosse uma coisa insensível, que não sente dor, podendo
ser invadido a qualquer momento por qualquer um.
E aí há a possibilidade e a facilidade de entrada no circuito da rede internacional do
tráfico de seres humanos, de onde não há saída, ou seja, as saídas podem ser fatais: o suicídio,
a loucura e a doença.
Observa-se neste filme, as formas de desumanização para a manutenção do sistema
capitalista, contrariando as referências de valores sociais internalizados para a convivência em
uma sociedade justa. A ausência do Estado na implementação, execução e fiscalização de
políticas públicas para a infância e adolescência, bem como, a cumplicidade da sociedade. As
políticas implementadas para o enfrentamento dessa questão ainda são tímidas, ineficientes e
ineficazes, indo na contramão de uma rede poderosa de interesses econômicos.
Será que só essas crianças e adolescentes encontram-se abandonadas? Onde está o
Estado que coloca no papel um documento modelo para o mundo, o ECA e não o faz
cumprir?
Faleiros (1995, apud BONTEMPO et. al., 1995), quando aborda o papel do Estado
no enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes, critica a ausência de
89
política social para a infância no contexto histórico brasileiro e a inexistência da criança nesse
mesmo contexto. Justifica esta afirmativa com a posição de objeto em que a criança era
colocada em função das grandes linhas políticas. Considera como a primeira linha política a
de manutenção da ordem, pela repressão quando a criança era vista como ameaça no período
Republicano sendo chamada de menor.
Nesse momento histórico, a formulação de juizados, instituições, reformatórios,
usando o isolamento, a contenção e a presença da polícia para reprimir “o menor” sob
suspeita tinha como objetivo de proteção não da criança, mas da ordem social. A segunda
proposta política era a proteção à indústria e ao capital com o encaminhamento da criança
pobre ao trabalho precoce e subalterno existindo enquanto mão-de-obra, enquanto objeto de
trabalho. A terceira política é a de preservação da raça, da higiene e da saúde pública sendo a
criança objeto de controle como se através dela se propagasse as doenças. Dessa forma,
evitam-se perigos à segurança nacional e a criança, mais uma vez, fica no imaginário da
sociedade como objeto de controle para tornar a vida das elites suportável.
Entretanto, o papel do Estado no enfrentamento da exploração sexual de crianças e
adolescentes na visão de Faleiros (1995), na garantia de direitos e da prevenção, se dá da
seguinte forma: 1- ‘Política de Negociação’ inserida na dimensão cultural e social em que a
criança possa assumir seu lugar de sujeito de direitos. Na sua visão não podemos ser donos da
criança, que não é propriedade, mas precisa ser protegida e ouvida. 2- ‘oferecer chances’
com uma política de possiblidades de lazer, cultura, expressão, de identidade, como processo
civilizatório. 3- considerada como ‘prevenção’ com participação, mudando as relações antes
que elas aconteçam. 4- ‘vigiar e punir’ os traficantes, os exploradores, o narcotráfico,
tornando um instrumento constante de acompanhamento das violações e negligência em
relação à criança. 5- proteção especial como ser em desenvolvimento. 6- a educação, a
escolarização porque na escola “a criança tem a possibilidade de transformar o seu
conhecimento e a sua relação com o mundo. É o lugar da aprendizagem” (FALEIROS, 1995,
p. 102).
Nesse sentido, cabe indagar: como o sistema jurídico brasileiro aborda a questão da
exploração sexual de crianças e adolescentes? A atual legislação penal consegue atender esse
preceito constitucional?
Encontra-se assegurada na Constituição Federal de 1988, inciso VII, parágrafo 4°: “A
lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do
adolescente”.
No que se refere à exploração sexual o Código Penal trata deste assunto praticamente
90
nos crimes contra os costumes. Veronesi (1995) indica como primeiro tipo penal a relação
com a prostituição infantil, sendo o estupro considerado pelo código como um crime contra a
liberdade sexual, colocado em seus artigo 213. Critica o arcaísmo do mesmo ao se referir só à
mulher e não à pessoa. Outro crime relacionado com a exploração sexual é o denominado
corrupção de menores, exposto em seu artigo 218, que a seu ver trata da moral sexual dos
maiores de 14 e menores de 18 anos, porém não há crime.
O código penal ao tratar as questões relativas à prostituição não dá a devida
importância à prostituição masculina nem tampouco à prostituição infantil. Prescreve a
violência presumida quando a idade é menor de 14 anos, deixando a faixa etária entre 14 e 18
anos fora dessa leitura. Portanto, na leitura de Veronesi (op.cit) a negligência de nosso País
em relação à prostituição infantil constitui-se um desrespeito à Constituição Federal e a
negação aos direitos fundamentais da pessoa humana. A negativa da cidadania imposta
aqueles que são merecedores de proteção especial e integral por estarem em processo de
desenvolvimento.
Os desafios colocam a sociedade diante do horror do abuso e da exploração sexual de
crianças e adolescentes enquanto tentativa de afastamento da barbárie e aproximação do
processo civilizatório. As relações de violência sexual postas na sociedade podem ser
transformadas em relações sociais democráticas, na construção de uma cidadania que respeite
o direito a uma sexualidade, protegidos da violência sexual como reconhecimento do direito
de crianças e adolescentes.
No entanto, os meios democráticos para essa transformação pela via das políticas
públicas encontram um descompasso entre o Estado de Direito e o fortalecimento do
neoliberalismo. Esta tensão tem resultado no aumento da tensão e contradição entre as
políticas públicas e as medidas repressivas visando o controle social.
Feitas estas considerações acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes,
abordaremos no terceiro capítulo, a concepção dos educadores acerca da violência sexual, das
categorias do abuso e exploração sexual e a importância da educação no enfrentamento desse
problema.
91
CAPÍTULO III
ABUSO E EXPLORAÇÃO SEXUAL: afinal do que se trata?
92
3.1 O contexto de Campina Grande
O município de Campina Grande tem uma população de crianças e adolescentes
estimada em 2004 pelo IBGE, de 73.354, na faixa etária entre 5 e 14 anos, o equivalente a
20% da população. É uma cidade pólo, congregando todo o compartimento da Borborema
com trinta e seis municípios em sua circunvizinhança (PLANO MUNICIPAL, 2001/Anexo
A). Referência para os mesmos e municípios de estados vizinhos, tem experimentado nos
últimos dez anos, incremento na área do turismo de eventos, a exemplo do Encontro da Nova
Consciência; a Micarande (carnaval fora de época); o Maior São João do Mundo e o Festival
de Inverno, com repercussão nacional e conseqüentemente, o aumento do afluxo de turistas ao
município.
Neste município, o sistema de garantia de Direitos constitui-se de três Conselhos
Tutelares implantados, restando dois para ser implantados, uma Delegacia Especializada, a
Curadoria da Infância e um Juizado da Infância. Além das entidades governamentais de
atendimento, existem ONGs que trabalham com o atendimento ao público de crianças e
adolescentes vitimados sexualmente, tais como a “Menina Feliz” e a “Pró-adolescente, mulher
espaço e vida (PROAMEV)”.
A Rede de Atendimento à criança e ao adolescente constitui-se num fórum de
discussões com as entidades que atendem crianças e adolescentes no município sejam
governamentais ou não-governamentais, para socializar e pensar as ações para esse segmento.
São instituições de todas as instâncias (educação, saúde, justiça, assistência social), incluindo
o sistema de garantia de direitos.
Entre a legitimação do ECA, em 1990, e a proposta de uma política pública
direcionada para o problema da violência sexual contra crianças e adolescentes em 2000, com
a construção do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-juvenil, uma
década é atravessada pelo agravamento do problema e o Brasil faz uma tentativa de
implementação desta política de atendimento nos primeiros municípios. Estando inserida
nesse rol, Campina Grande, na Paraíba, por ter chamado a atenção na mídia nacional para o
grave problema.
Conforme o relatório elaborado pela Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) da Câmara dos Deputados (PB) [...] a Paraíba ganhou destaque por
sediar um comércio sexual que explora crianças de até cinco anos de idade
(PLANO MUNICIPAL, p.14).
93
No município de Campina Grande-PB, lócus empírico da investigação desta pesquisa,
o programa de atendimento às vítimas de violência foi implantado em 2001, sendo
administrado pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS), órgão gestor da
Política de Assistência Social. Em seus atendimentos durante o ano de 2006, consta um
número de 36 casos de abuso sexual e 07 casos de exploração sexual. Em 2007, até 29 de
novembro, foram registrados 22 casos de abuso sexual e 07 casos de exploração sexual.
Durante o período de implantação, execução e acompanhamento da primeira
experiência em política pública nesta temática específica, Campina Grande foi indicada para
fazer parte de um Programa piloto no país, envolvendo apenas sete municípios. Trata-se do
Programa de Ações Integradas e Referenciais no Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil no Território Brasileiro (PAIR), com o objetivo de integrar políticas para a construção
de uma agenda comum de trabalho, entre Governo, Sociedade Civil e Organismos
Internacionais, visando ao desenvolvimento de ações de prevenção e atendimento a crianças e
adolescentes vulneráveis ou vítimas da exploração sexual e tráfico para esses fins.
Tendo como suporte técnico o Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CEDECA-BA) e a Escola de Conselhos da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul (UFMS-MS), o programa conta com uma assessoria técnica das Ongs que
desenvolvem um trabalho de referência na América Latina como: Aldeia Juvenil/UCG/GO,
ASPPE-Santos-SP, CECRIA-DF, Fundação Orsa-SP e Projeto Camará-São Vicente-SP.
O PAIR tem como referência metodológica o Plano Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual Infanto-Juvenil e um marco conceitual baseado no art. 86 do ECA:
A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á
através de um conjunto articulado de ações governamentais e nãogovernamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Este programa tem como metas estratégicas desenvolver ações referenciais de
enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes de forma a estimular a
reaplicação das experiências produzidas em outras regiões do país, tendo como modelos os
Planos de Ação desenvolvidos em sete municípios, considerados estratégicos por sua posição
geográfica e/ou pelos índices de violência sexual infanto-juvenil, tráfico de seres humanos e
transmissão do HIV/AIDS que apresentam; criar e/ou fortalecer redes de prevenção, proteção
e defesa jurídica para crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual e tráfico,
despertando uma consciência da sociedade e dos formadores de opinião.
94
Os Estados atendidos foram: Acre – Rio Branco, Amazonas – Manaus, Bahia - Feira
de Santana, Mato Grosso do Sul – Corumbá, Paraíba - Campina Grande, Roraima –
Pacaraima e São Paulo – São Paulo, como mostra a figura abaixo.
Figura 1 – Mapa dos Estados contemplados pelo PAIR
Fonte: PAIR (2004).
Em 2005, foram acrescidos alguns municípios, como é o caso de Belo Horizonte –
MG substituindo São Paulo, que já contava com uma articulação fortalecida e um trabalho em
todo o Estado realizado pelo movimento social Pacto São Paulo com apoio da Fundação Orsa
e do Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância do ABCD (CRAMI). Também
por não poder atender a toda a cidade devido a sua complexa dimensão geográfica.
Posteriormete Fortaleza – CE e São Luiz – MA por apresentaram indicadores de violência
sexual, apontando para a necessidade de maior atenção pública, em face da localização
geográfica e a dimensão que representou, por exemplo, internacionalmente, o caso dos
meninos emasculados19 em São Luiz no Maranhão, em que a Organização das Nações Unidas
(ONU) condena o Estado Brasileiro por essa conduta.
Através de convênio celebrado entre a Administração Municipal e a Secretaria
Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, o município se comprometeu,
desde 2001, a implantar e desenvolver um programa que assegurasse o enfrentamento das
inúmeras questões relativas à violência sexual contra crianças e adolescentes.
19
Caso acontecido no Brasil nos Estados do Maranhão e Pará onde crianças e adolescentes do sexo masculino
foram mortas e tiveram a genitália externa extirpada.
95
A constituição do Plano Municipal foi iniciada em agosto de 2001, tendo como
referencial teórico o Plano Nacional e o Estatuto da Criança e do Adolescente-Lei n°
8.069/90; tomando forma definitiva em setembro de 2003, quando se concluiu o Diagnóstico
Participativo e o Relatório da Sondagem que apresentaram subsídios mais fundamentados
para a sua consolidação.
Com a realização do Seminário de Construção do Plano Operativo, de 09 a 11 de
setembro de 2003, houve a escolha (eleição) dos membros da Comissão Municipal do PAIR,
nomeada, através de portaria do Executivo Municipal e sendo composta por uma executiva e a
comissão geral com componentes indicados, por meio dos eixos do Plano Operativo, a saber:
análise da situação, defesa e responsabilização, atendimento, prevenção, mobilização,
articulação e protagonismo infanto-juvenil.
Em março de 2004, quando da realização do Curso de Capacitação para o
Enfrentamento da Violência Sexual contra crianças e adolescentes promovido pela Secretaria
Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, pelo Ministério da Assistência
Social, pelo POMMAR/USAID-Partners of the America e OIT e outros parceiros, houve a
participação efetiva de aproximadamente 250 representantes de todos os segmentos
envolvidos com esta problemática, representando um marco histórico para a cidade. No
entanto, cabe uma reflexão acerca da participação dos educadores que não foram liberados
pela Secretaria de Educação para participarem da Oficina de Educação para o trabalho com o
Guia Escolar. Segundo o depoimento do Secretário de Educação, naquela ocasião, “o aluno
precisaria apenas aprender a ler, escrever e contar”, indicando uma concepção restritiva da
educação nesse processo. Por esta compreensão que advêm do dirigente educacional, cabe
questionar: quais as conseqüências no processo de aprendizagem de uma criança que está
sendo violentada sexualmente? Será que isso passa despercebido no cenário da educação?
Na ocasião ocorreu a realização de aulas teóricas, oficinas com temas específicos,
apresentações culturais, a construção do Plano Operativo e a elaboração do Pacto de Campina
Grande (não enviado até o momento pela Comissão Nacional) para o enfrentamento ao abuso,
exploração sexual e tráfico de crianças e adolescentes que foi assinado por várias autoridades,
firmando o compromisso e a responsabilidade com as ações que possibilitassem o
enfrentamento da violência sexual neste município; além de ter estabelecido um conjunto de
recomendações para os distintos atores que compartilhavam esta importante parceria.
Concomitantemente, tramitou no Congresso Nacional a Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito-CPMI, cujo objetivo foi a de identificar as pessoas envolvidas com o abuso, a
exploração sexual e o tráfico de crianças e adolescentes no território nacional; concluindo seu
96
trabalho na identificação de 250 nomes com envolvimento em distintas formas de violência
sexual contra crianças e adolescentes.
Em particular, a Paraíba conta com um considerável número de pessoas supostamente
envolvidas, recaindo o maior contingente sobre o município de Campina Grande. Seguindo
orientação conclusiva da CPMI, a Comissão Municipal, ao término dos trabalhos daquela
Comissão Parlamentar, solicitou providências junto ao Ministério Público Estadual, para
investigação e providências cabíveis em relação aos envolvidos. As providências foram
solicitadas via Fórum da Criança e do Adolescente (Fórum DCA-PB), que encaminhou
solicitação ao Ministério Público Estadual e até a presente data não obteve resposta.
Em função do PAIR, o município foi contemplado com alguns programas na área do
enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, a seguir:
- PROJETO EDUCAR (Instituto Companheiros das Américas) em parceria com a
Secretaria Municipal de Educação, tendo como objetivo assegurar a inclusão de crianças e
adolescentes vítimas de exploração sexual na escola de referência. Este projeto vem sendo
gradativamente implantado na Escola Municipal Roberto Simonsen, no populoso bairro São
José, com a participação de educadores sociais dos programas governamentais, através das
Secretarias de Educação e Assistência Social do município. O programa EDUCAR contou
com uma Comissão Articuladora Interinstitucional que teve como objetivo realizar o
acompanhamento do mesmo no sentido de que a criança e o adolescente fossem atendidos na
sua integralidade. No momento o projeto encerrou seu prazo de execução e o município não
deu continuidade.
- PROJETO OIT (Organização Internacional do Trabalho) em parceria com a
Universidade Estadual da Paraíba UEPB/Fundação Universitária de Apoio ao Ensino e a
Pesquisa (FURNe) e o Núcleo de Pesquisa e Extensão Comunitária Infanto-juvenil
(NUPECIJ/UEPB), para o enfrentamento da violência sexual enquanto uma das piores formas
de trabalho infantil, visando assegurar a inserção de jovens no mercado de trabalho e a
capacitação/qualificação de agentes sociais. Este projeto foi concluído, sendo realizado alguns
Seminários de Inclusão Social e Políticas Públicas tendo como tema central a exploração
sexual infanto-juvenil. Foi realizado, também, um diagnóstico sobre a situação de crianças e
adolescentes exploradas sexualmente, com metodologia desenvolvida pela OIT e UNICEF,
sendo o seu resultado divulgado no Relatório Final de Campo e numa cartilha referente à
problemática da exploração sexual no município: “QUERO MINHA CIDADE LIVRE DA
EXPLORAÇÃO SEXUAL DE MENINAS, MENINOS E ADOLESCENTES”. Além de
iniciar um processo de articulação com a mídia para sensibilização de profissionais de
97
comunicação com a temática, haja vista haver no município um Plano de Comunicação que
pretendia fortalecer as relações na área de comunicação e engajar os profissionais nas
atividades de enfrentamento. Tanto o diagnóstico como a referida cartilha foram distribuídos
com todos os veículos de comunicação existentes no município.
- EQUIPAMENTOS DOS CONSELHOS TUTELARES NORTE E SUL - Dos três
Conselhos Tutelares no município, os dois acima, foram contemplados com computadores e
assessórios, máquina fotográfica digital, fax e veículos concedidos pelo Projeto Escola de
Conselhos da UFMS/FADEMS, através de parceria e convênio com a Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República.
- PROJETO DOS NÚCLEOS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA em convênio com o
Ministério da Saúde e em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde para implementação
de cinco núcleos preventivos da violência com os profissionais de saúde nos distritos de saúde
do Município, onde já ocorreram a sensibilização e o processo de capacitação, tendo em vista
a implantação dos núcleos. Este convênio permitiu a impressão de 1000 exemplares do ECA,
que foram distribuídos com as escolas, através da Secretaria de Educação, com o Conselho
Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente e os Conselhos Tutelares. Além disso, o
ECA também foi distribuído para a SEMAS, para as Associações Comunitárias, Clube de
Mães e entidades não-governamentais.
Recentemente, o PROGRAMA ESCOLA QUE PROTEGE, através da SECAD/MEC
e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFCS), se articularam com o objetivo de focar a
formação de professores para trabalhar com as questões associadas às violências,
antecipando-se a elas, numa relação mais próxima escola-comunidade, numa parceria com a
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Observou-se na implantação desse programa a
desmotivação por parte dos educadores na participação do processo de formação que envolvia
representações das escolas estaduais e municipais de Campina Grande e de municípios
vizinhos. Fato notório foi o esvaziamento entre o início e a conclusão do curso, apontando,
também, a dificuldade de liberação dos professores de suas atividades de sala de aula. Nesse
caso, cabe ressaltar que o público alvo, tendo o professor como ator principal no processo de
enfrentamento, geralmente encontra barreiras para ausentar-se de sala de aula por não haver
prioridade política para tal questão, em função do comprometimento com os conteúdos
obrigatórios a serem cumpridos no ano letivo.
Os objetivos construídos no Plano Operativo no eixo prevenção, relativos à educação
foram: favorecer no processo educativo crianças/adolescentes e suas respectivas famílias
sobre seus direitos, visando ao fortalecimento da sua auto-estima e a defesa contra a violência
98
sexual; enfrentar os fatores de risco da violência sexual; promover o fortalecimento das redes
familiares e comunitárias para a defesa de crianças e adolescentes contra a situação de
violência sexual; implantar uma política de formação continuada, junto aos diferentes atores
sociais envolvidos com a temática na prevenção da violência sexual; promover a prevenção à
violência sexual na mídia e em espaço cibernético. Estes objetivos foram construídos tomando
como base o Plano Nacional e o Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual
infanto-juvenil.
O Plano Municipal de Educação do município não contempla os objetivos do Plano
Operativo de enfrentamento da violência sexual infanto-juvenil, haja vista não prever
nenhuma ação nessa perspectiva e no momento encontrar-se em processo de revisão. Sendo
assim, as ações no âmbito da educação não encontram respaldo legal nos documentos que
legitima a educação no município, deixando transparecer o hiato entre o legal e as propostas
políticas para a educação pela via da articulação entre os Conselhos Tutelares e o Conselho
Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente, a intersetorialidade na Rede de
Atendimento a Criança e o Adolescente e as parcerias.
3.2 O perfil dos educadores:
Quanto ao tempo de serviço dos educadores20 na rede municipal de ensino, pode-se
apontar, segundo os depoimentos dos sujeitos, o seguinte perfil: 13,63% possuem tempo de
serviço correspondente ao período de 0 a 10 anos, 50% de 10 a 20 anos de serviço, enquanto
que 36,36% têm o correspondente ao período de 20 a 30 anos de serviço.
Em relação à função que exerce na escola, 4,54% equivalente à função de gestora,
9,09% na função de orientadora educacional, 4,54% de assistente social, 9,09% como
supervisora educacional e 72,72% como professores, sendo que no momento uma educadora
está ocupando o cargo de gestora, revelando a predominância dessa categoria profissional.
Há uma predominância do sexo feminino, sendo 82% do universo dos sujeitos,
revelando a permanência de uma cultura de gênero, em que, historicamente, se convencionou
que a tarefa de educar crianças e adolescentes é “naturalmente” feminina. Quanto à formação,
foi constatado que todos são do nível superior e um encontra-se no processo de formação
doutoral na UFPE.
20
Ainda prevalece a concepção de que o profissional da educação é o professor. Compõem a equipe de
educadores da Rede Municipal de Ensino do Município de Campina Grande os seguintes profissionais:
psicólogo, assistente social, orientador educacional, supervisor educacional e professor.
99
Faz-se necessário destacar as condições de trabalho e salário enfrentados por estes
trabalhadores. Sabe-se que historicamente o investimento na educação é muito pouco,
submetendo os seus trabalhadores a péssimas condições de trabalho, baixíssimos salários,
baixo investimento em capacitação continuada, inseridos num sistema de transmissão
bancária e sem um aparato instrumental pedagógico para exercerem a função social que as
contingências lhes demandam.
3.3 Uma interpretação da concepção dos educadores do município de Campina Grande
e sua interlocução com o diálogo freireano
O conhecimento do ECA
Em se tratando do ECA, apenas uma pequena parte dos educadores afirma não
conhecer o Estatuto, enquanto a maioria dos educadores diz conhecer em parte, destacando
apenas as questões consideradas fundamentais. No caso dos que dizem conhecer o ECA,
destacam as questões específicas dos direitos, como pode se constatar nos depoimentos a
seguir: “eles estão muito eufóricos de direitos” (Entrevista n° 16), ou então que “ele
promoveu mais a delinqüência porque deu muitos direitos e a liberdade sem limites [...] acho
que aumentou o número de meninos de rua, saem de casa, não respeitam pai e mãe e se
sentem os donos do mundo” (Entrevista n° 07). Ou ainda: “essa lei de ‘menor’ fazer as coisas
e não pagar por aquilo, eu acho que deveria ter uma punição” (Entrevista n° 12).
Como se pode observar, em sua maioria, os entrevistados apesar de afirmarem
conhecer o ECA, demonstram em suas falas ter uma visão incipiente das suas diretrizes,
revelando opiniões fortalecidas pelo conservadorismo, ou seja, uma leitura incompatível com
os fundamentos legais do estatuto.
Poucos são os que pensam ser um documento necessário, mas, mesmo assim,
concordam com os demais sobre a interpretação dos direitos:
Um documento amplo, maravilhoso, bem embasado, do ponto de vista da
proteção. O que me chama mais atenção é esta garantia plena, e nos
encontros com a curadoria ele diz que a escola tem condições de a partir do
documento ter seus pontos de decisão, mas acho que o educador fica
desarmado, se a escola já fizesse um trabalho nesse sentido seria mais fácil,
teria mais embasamento para se defender, mas concordo com a afirmação
que é também um documento que só dá direitos. O Estado realmente deve
garantir através da lei, é uma questão jurídica, ele é embasado de pontos
técnicos. O lado educacional, o lado da formação educativa, de metodologia
100
educativa é que é mais solta, deixa vago, ficando a escola sem defesa.
(Entrevista n° 14, grifos nossos).
Pode-se perceber nestes depoimentos o desconhecimento dos educadores em relação
ao conteúdo da legislação vigente, particularmente, no que diz respeito diretamente ao
segmento infanto-juvenil, público alvo dessas escolas. Relacionando com o tempo de serviço
dos educadores na educação, observa-se que a maioria está inserida na educação num período
anterior à implementação do ECA, posto que o mesmo já completou 17 anos de vigência. A
implicação dessa reflexão remete, significativamente, ao fato de haver uma grave lacuna na
diretriz curricular dos cursos de formação, haja vista não conter uma problematização dessa
política, em função do lento processo de incorporação das leis que vão sendo legitimadas sem
a cultura institucional do devido aprofundamento, isso sem contar, ainda, com a internalização
dos novos paradigmas na vida social das pessoas.
Outros depoimentos são relevantes, na medida em que refletem sobre a compreensão
dos entrevistados acerca da lei como elemento que se impõe à sociedade apenas por uma
direção, uma ordem: “os direitos são importantes [...] acho que o que está lá e não é
conhecido, são os deveres, o que vem aumentar a violência” (Entrevista n° 09), “os
adolescentes acham que só têm direitos e deixam de cumprir os deveres” (Entrevista n° 08).
Cabe aqui analisar que o ECA prevê responsabilizações que são internalizadas pelas
regras sociais, sendo dever dos pais orientá-los. Além de definir direitos e deveres, determina
formas e instrumentos que poderão ser utilizados no cumprimento de suas regras.
Ao transgredi-las, as medidas sócio-educativas levam em consideração o ser em
desenvolvimento e em formação, bem como o seu caráter educativo das repreensões, não
perdendo de vista a possibilidade de continuidade na convivência social. Todavia, sabe-se que
a realidade brasileira não é essa, legitimando a dificuldade de assimilá-las nos atos cotidianos,
predominando o senso comum na herança transgeracional, no processo histórico de uma
cultura de violência, como se faz refletir na fala da entrevistada a seguir: “a gente sabe que a
lei está no papel, mas praticamente não é cumprida” (Entrevista n° 18).
Nesta fala, contraditoriamente, o ECA é considerado um avanço jurídico e social
legitimando a cidadania como um direito e a sua promoção como dever do Estado e da
sociedade. No entanto, aponta para os preconceitos, a marginalização e o descaso com que são
tratadas historicamente as leis no país, tendo na sociedade arraigada a cultura do absoluto
descrédito quanto a sua concreta funcionalidade institucional. Neste debate, “a premência da
101
problemática infanto-juvenil e a disponibilidade de uma legislação avançada [...] não bastam
para que se desencadeie ‘a grande mutação’ pretendida” (VOGEL, 1995, p.327).
A ampliação da cidadania de crianças e adolescentes garantida a partir do ECA, altera
a relação Estado-sociedade-familia na definição e divisão de responsabilidades. Portanto, a
garantia dos direitos e o cumprimento dos deveres exige compromisso partilhado na
efetivação das políticas, exigindo do profissional da educação o conhecimento do ECA, para
colocar-se frente às contingências cotidianas. Estas mudanças como lembra Carvalho (2000)
rebatem nos métodos de intervenção passando da postura punitiva, que marca historicamente
a abordagem na educação, para uma postura de respeito.
Capacitação acerca da Violação dos direitos da criança e adolescente
Quanto à capacitação docente, a maioria dos entrevistados afirmou nunca haver
participado desse processo relacionado às questões temáticas de violação dos direitos da
criança e do adolescente. No caso da minoria, que afirma ter participado, declarou que a
condução temática foi “muito superficial, nada muito concreto”. A participação na
capacitação geralmente é condicionada ao repasse das informações para os demais educadores
que não tiveram a oportunidade de se ausentar da escola. Esse repasse nem sempre é realizado
com a mesma qualidade por se tratar de temas ainda recentes na formação do educador.
Neste caso, remetem à especificidade da violência sexual que não é trabalhada nas
capacitações, alguns se referem à dificuldade ao afirmarem “eu não sei lidar com isso”, outros
colocam a necessidade de trazer para cena das discussões na escola, outros citam a atividade
realizada pelo programa de atendimento às vítimas de violência sexual como pequenas
apresentações com “os bonequinhos de fantoches” nas visitas às escolas.
Nas Jornadas Pedagógicas, evento promovido pela Secretaria de Educação do
Município, na primeira semana que antecede o ano letivo, segundo o entrevistado a seguir,
são abordadas questões mínimas, de forma tópica, pontual: “uma capacitação direcionada a
isto mesmo não, mas sempre se toca nisso nas semanas pedagógicas” (Entrevista n° 19).
Ainda não faz parte do calendário o trabalho a respeito do tema em momentos de
campanhas nacionais, nem como tentativa de um processo contínuo de prevenção com a
comunidade escolar. O descompromisso institucional é observado na seguinte fala:
A secretaria deveria se preocupar mais com essa questão, dar mais ênfase,
oferecer mais condições aos profissionais da própria escola, orientando e
102
subsidiando também, porque as vezes diante de uma situação dessa, a escola
deixa passar porque não tem orientação, não sabe nem como agir. Nós
precisamos de orientação (Entrevista n° 17).
Observa-se o distanciamento da escola com as questões contemporâneas deixando em
aberto um fosso que aumenta com a rapidez dos fatos e acontecimentos sociais que não
fizeram parte da formação acadêmica dos educadores nem de sua formação permanente. A
importância do conhecimento do tema pelos educadores não se dá pela acumulação de
competências ou como mais uma atribuição, mas para que conheçam, compreendam, saibam
identificar seus sinais e possam fazer um encaminhamento e uma denúncia para os órgãos
especializados de forma consciente e levando em consideração a proteção de crianças e
adolescentes.
O conhecimento acerca da violência sexual infanto-juvenil poderia viabilizar um
trabalho na escola com possibilidades de prevenção, como sugere o Plano Nacional de
Enfrentamento da violência sexual Infanto-juvenil que coloca a Educação como instância
articuladora no eixo Prevenção e referendada no Plano Municipal de Enfrentamento da
Violência sexual infanto-juvenil e no Plano Operativo.
A necessidade do cumprimento dos conteúdos na política nacional como forma de
continuidade de acesso aos fomentos internacionais pressiona para que se delegue a um
segundo plano questões inerentes à vida de crianças e adolescentes que interferem na
assimilação do processo de aprendizagem e impedindo o educador de participar de
oportunidades que proporcionam a preparação para o enfrentamento dessas situações,
sobretudo em sala de aula.
O que se expressa no seguinte depoimento:
Ou por falta de oportunidade de ir, porque quando a gente está em sala de
aula, não pode participar de tudo, né? Mas aqui não, só assim por alto,
estudar mesmo, fazer curso, não. Sei que tem um trabalho, né? Questões de
sexualidade, a gente tem aqui o grupo, como trabalhar a sexualidade, tem um
GT sobre sexualidade, mas as questões de violência sexual não, de qualquer
forma ele é pautado também, porque muitas questões de sala de aula, esse
tema permeia (Entrevista n° 13).
Como se percebe no depoimento acima, apesar de preocupados com as questões que a
escola e o profissional educador deve enfrentar nesse processo, os entrevistados deixam
103
antever o descaso institucional à referida problemática, algo que reforça a compreensão de
que a política neoliberal tem, cada vez mais, negado à escola e aos educadores, o papel
educativo na mediação e atualização dos problemas históricos, negando, também, a
singularidade do trabalho pedagógico.
As capacitações, na maioria das vezes, terminam sendo momentos pontuais no
processo formativo do educador com cursos, palestras, conferências etc., que são concebidas
na perspectiva de informações acumulativas de saber diante de uma questão social. Perde-se a
construção de uma reflexão sobre as suas próprias práticas num movimento permanente de
ação-reflexão-ação como sugere Freire, de transformação no projeto societário da escola.
Nesse contexto o profissional da educação não pode ser excluído de seu lugar político na
alternativa da formação como uma das estratégias no campo da educação para o
enfrentamento do problema.
Entendimento sobre violência sexual contra crianças e adolescentes
No que diz respeito ao entendimento sobre a violência sexual contra crianças e
adolescentes, a pesquisa revela que a minoria dos sujeitos entrevistados destacou o ato sexual
violento, o desrespeito, o assédio, a agressividade consideradas uma das faces da violência
que, muitas vezes, precede a violência sexual ou faz parte do seu contexto. Enquanto que a
maioria dos educadores, além dessa concepção, atribui alguns aspectos que contribuem para a
caracterização da violência sexual, tais como: as condições de moradia, a exemplo da fala a
seguir: “a criança convive num ambiente muito pequeno onde é um quarto pra toda família,
onde os pais têm uma vida sexual ativa que a criança presencia” (Entrevista n° 02).
Nesta fala a dimensão econômica e psicossocial é vista como um dos aspectos
pertinentes a forma complexa como se apresenta o fenômeno num lugar onde a criança estaria
resguardada de qualquer ameaça.
A questão da subjetividade através do olhar, das palavras ditas, das situações de
constrangimento a que são submetidas às crianças e adolescentes, aparecem nas falas de
alguns
entrevistados. Destaca-se, ainda, nos depoimentos a falta de informação, as
conseqüências psíquicas que a criança leva para o resto da vida, as situações que lhes são
impostas na tentativa de conseguir emprego, a situação de não permissão por parte da criança
ou adolescente, os gestos obscenos que lhes são dirigidos por parte dos adultos e a influência
da mídia: “é o incentivo que é dado de forma pejorativa pelos meios de comunicação”
(Entrevista n° 21) e “até mesmo um programa de televisão considero uma violência sexual
104
para uma criança” (Entrevista n° 22). Dos entrevistados, apenas 10% dos sujeitos conseguem
articular a violência sexual com a questão social e a estrutural familiar, a falta de políticas
públicas e de acompanhamento social das crianças, a partir do seu nascimento e a
responsabilização do Estado como declara a entrevistada:
A princípio eu acho que é de um diagnóstico cultural, você tem um tipo de
violência que é produzida pelo próprio Estado, que é a falta de moradia, de
saneamento, o desemprego, as questões relacionadas mais de gênero [...] são
produzidas pelo próprio Estado, eu acho que isso é o que mais contribui para
que isto venha a se efetivar, essa violência com as crianças, esse é o primeiro
ponto. O segundo ponto é a questão da família, a família vive desestruturada,
na maioria das vezes desagregada [...] E o terceiro ponto é a educação,
trabalhando a educação em parceria com a família e a sociedade, essa
sociedade com um Estado que tem que começar a dar a sua contribuição.
Acho que essas ações estão dissociadas, não estão interligadas e se isso
acontecer temos como mudar esse quadro (Entrevista n° 11).
A partir desta fala consegue-se articular a questão da violência com a discussão
macroestrutural como nos lembra Libório (2004) ao se referir à organização socioeconômica e
política da sociedade. No primeiro momento, a fala da educadora indica a responsabilização
estatal ampliando sua análise sobre o fenômeno, denotando uma visão que vai além dos muros
da escola. Num segundo momento, aponta a família como ponto de referência para o
educando no seu processo de socialização e por último, considera a educação como
articuladora de um movimento transformador entre Estado, família e sociedade. Trata-se de
uma posição questionadora que coloca o educador enquanto ator responsável pelo processo de
mudança social lembrado por Freire (2003) quando se refere ao caráter político da educação e
seu papel reprodutor ou contraditório diante do sistema.
Somente um educador, apesar de atribuir a violência sexual como “qualquer ato que
venha a desrespeitar a idoneidade da criança e do adolescente”, aponta, também, as vítimas
como sendo em parte responsáveis pelo ato em si, particularmente, pela forma de vestir-se e
expressar-se. E ainda questiona: “quase sempre o adulto recebe toda a carga de culpa quando
o ato sexual chega a se completar, mas será que o adolescente não contribui para que isso
aconteça?” (Entrevista n° 21).
Observa-se neste questionamento, ainda, uma concepção histórica de culpabilização
de um ser em formação que ainda não dispõe de conhecimento ideológico para uma postura
de maturidade que é esperada do adulto. Assim, a posição que lhe é atribuída expõe uma
ambigüidade enquanto vítima e culpada. Na condição da expectativa que poderia ter do
educador, pode se entrever o distanciamento da escola com a vida da criança e do adolescente
105
e a reprodução de um discurso moralista e repressor. Com essa concepção estigmatizante
perpetua-se a responsabilização de crianças e adolescentes pela sua própria condição de
explorados, contribuindo para a manutenção da violência sexual contra eles.
De modo geral, observa-se que neste tipo de argumento há um conservadorismo
histórico preservado ao longo do século XX. Esta justificativa encontra-se destacada por
Landini (2005) sustentada na expressão patriarcal, no atraso moral e na repressão vinculada à
realidade social do período. A partir do entrelaçamento de diversos campos do saber, que
passam a intervenção nos mais diversos espaços públicos proporcionando uma mudança
conceitual em relação à violência sexual, este processo vem sendo lentamente alterado.
Concepção acerca do abuso sexual e exploração sexual
Quanto às concepções a respeito das categorias abuso sexual e exploração sexual,
deparou-se na pesquisa com posicionamentos diversos denotando uma marca histórica de
distanciamento em relação a temas considerados tabus em nossa sociedade.
A maioria dos sujeitos apresentou um entendimento que o abuso sexual se expressa
como forma de contato físico no âmbito da vida privada “o abuso começa dentro de casa, no
seio familiar”(Entrevista n° 05) trazendo a desacralização da família como lugar seguro para
as crianças e adolescentes.
Outras concepções expressam ainda a noção do contato físico “o abuso sexual acho
que é quando é pra satisfazer as necessidades” (Entrevista n° 02), “o abuso é todo ato em
relação ao corpo da criança” (Entrevista n° 06), e “o abuso sexual a meu ver é quando você
faz uso de uma criança ou adolescente de forma violenta para sentir prazer” (Entrevista n° 21)
mostrando de certa forma uma sensibilização para a questão enquanto ponto de partida para a
discussão ou informação sobre o mesmo.
Numa definição mais ampla aparece o componente da opressão na seguinte fala:
é quando a criança ou jovem é abusada na sua inocência, na maioria das
vezes em casa ou por alguém conhecido e é uma coisa que acontece às vezes
com a própria família e é coagido a não denunciar por medo, por vergonha
(Entrevista n° 03).
É importante ressaltar nesta fala a possibilidade da denúncia e como a mesma é
induzida ao não dito pela pressão da própria família. Na pesquisa de Butler (1979) e Faiman
(2004) constata-se a perspectiva da impunidade diante do silêncio e a perpetuação do abuso
106
pelo constrangimento. Revelando-se para Saffioti (1997) como um dos maiores desafios para
o rompimento dos segredos de famílias que mantém o abuso sexual guardado no registro do
privado.
Noutra fala percebe-se o componente da sedução como fator que pode preceder o
abuso sexual “o abuso é aquela maneira de estar usando a pessoa de forma psicológica,
induzindo” (Entrevista n° 15).
Enquanto que uma minoria tem dúvidas quanto a este conceito “[...] difícil, é parecido.
É como o roubo e o furto”. (Entrevista n° 12); outro não sabe explicar e outro diz que: “o
abuso é quando algum sujeito ameaça a criança através de violência física ou psicológica para
obter benefício próprio” (Entrevista n° 11).
Observa-se nestas falas, mais uma vez, a força que exerce o senso comum nas
concepções dos entrevistados, demonstrando a falta de políticas públicas e a deficiência na
formação permanente do educador para lidar com questões específicas, mas que se expressam
com gravidade na estrutura da sociedade na contemporaneidade. Também presente a noção de
assimetria nas relações de poder destacada por Gabel (1997) no poder exercido pelo adulto
sobre a criança, na confiança que a criança ou adolescente deposita no adulto e no atentado à
propriedade sobre o corpo como direito de todo indivíduo.
Mesmo diante de dúvidas conceituais, as falas revelam um saber, ainda que incipente
sobre o abuso sexual que se aproxima dos conceitos e abordagens realizadas pelos estudiosos
da temática.
Em relação à exploração sexual, a maioria entende que há uma articulação com os
interesses financeiros e mercantilistas, o que demonstra um conhecimento que diferencia do
abuso sexual revelado em alguns depoimentos: “a exploração é quando ele comercializa essa
criança, ou vende o corpo dela ou trafica para outro tipo de ponto de encontro” (Entrevista n°
11), ou ainda “exploração é quando o adolescente usa o corpo como se fosse um meio de
vida” (Entrevista n° 17).
Alguns aspectos são abordados como a conivência familiar “exploração sexual já
envolve dinheiro [...] às vezes até com a conivência da família”(Entrevista n° 01), problema
que passa a tratar a pobreza no cenário familiar como justificativa para a entrega ou incentivo
dos filhos à exploração sexual.
Enquanto uma minoria aponta indefinições em relação a este conceito, indicando o
espaço da casa como referência de segurança e a exploração como o que vai além dela: “a
exploração transpassa, sai de dentro de casa” (Entrevista n° 05), o que mostra a contradição
107
do fenômeno em relação ao aspecto abordado no parágrafo anterior. Deste modo há uma
explicitação da própria natureza contraditória deste fenômeno.
Uma outra fala traduz a relação determinante entre o abuso e a exploração sexual
expondo uma vinculação de causa e conseqüência entre as duas categorias:
A exploração é uma decorrência da criança abusada, por não ter instrução,
uma pessoa ou órgão que a defenda, caindo na prostituição. São explorados a
partir daí por conta de um abuso na infância que não foi atendida com
respeito, não foi socorrida a tempo e aí ela pode achar que não tem mais
retorno. E tem a exploração sexual que permite o jovem ou adolescente fazer
aquilo porque quer, ou por dinheiro, ou por ajudar a família ou por não ter
outro método de sobrevivência. Por todas as questões já colocadas, as vezes
o pai ou a mãe joga na rua e são explorados por isso. Sabemos que tem um
órgão que acolhe, que encaminha, mas é um processo lento, mas para o
jovem eles querem tudo rápido e por não terem paciência acabam voltando,
rescindindo e fazendo a mesma coisa, é como as drogas. A questão da
exploração sexual acho que é essa, ou fazem por consciência ou
inconscientemente por conta da questão social (Entrevista n° 03).
Este depoimento remete a Libório (2003) que aponta para a discussão teórica da década de
1980, quando autores canadenses utilizaram o início da pesquisa, a partir desse pressuposto da relação
direta abuso-prostituição. Brannigan e Van Brunschot relatam num estudo nacional no Canadá um
resultado de 20 a 70% de adolescentes prostituídas que vivenciaram o abuso sexual. Outros trabalhos
realizados pelos mesmos autores demonstram a discordância na significância do abuso sexual com
preditor da exploração sexual. Chegam à conclusão que o abuso sexual pode contribuir para que a
exploração sexual aconteça, porém, não com exclusividade.
A pesquisa realizada no Brasil por Leal (2003, p. 53) sobre o tráfico de mulheres, crianças e
adolescentes para fins de exploração sexual comercial revela que as adolescentes em situação de
tráfico trazem “na sua história de vida, algum tipo de experiência relacionada com o trabalho
doméstico, com o comércio, com a exploração e o abuso sexual, com a gravidez precoce e com o uso
de drogas”. Estando as violências sexuais como um dos fatores que vulnerabilizam sóciopedagogicamente crianças e adolescentes no âmbito da família e da sociedade.
Relacionar a exploração sexual de crianças e adolescentes ao mercado financeiro
coloca os educadores diante da realidade social perversa imposta pelo capital, pelo avanço das
forças do mercado, pelo crescente contingente populacionail, a exemplo das crianças e
adolescentes. A imposição aparece de forma sutil e a maioria não consegue articular essa
concepção com a questão social multidimensional, que envolve uma conjuntura mundial
marcada pela diminuição da presença do Estado na promoção das políticas sociais. Recorre-se
a Leal (2001) para justificar tal constatação considerada na contradição entre mercado e
Estado.
108
De modo geral, as concepções em torno das categorias principais da violência sexual
infanto-juvenil encontram-se no imaginário dos educadores como algo a ser enfrentado no
cenário educacional de forma institucional. Fato que respalda o educador enquanto ator
importante neste processo de construção histórica da transformação social. Para que isso
aconteça faz-se necessário a sua inserção e compreensão nesta realidade para transformá-la na
mediação dentro de uma dimensão política.
Situações vivenciadas pelos educadores e as diversas formas de enfrentamento
Quanto à vivência no cotidiano escolar, experienciada pelos educadores que se
depararam com a situação de violência sexual vivida pelos alunos, chegam a um número de
31,81%. É o exemplo da fala a seguir: “tive uma aluna que estava mostrando os seios e disse
aos coleguinhas que por um real mostrava mais do que os seios” (Entrevista n° 19). A escola
perde a oportunidade de trabalhar questões do dia-a-dia da sala de aula pela via do diálogo
baseada em valores sociais que possam balizar as relações humanas como respeito,
solidariedade etc. Que instrumentos faltam a essa organização social enquanto responsável
pela normatização de valores imprescindíveis para a convivência em sociedade? Como ajustar
as propostas pedagógicas às necessidades da comunidade escolar no seu fazer diário de
transmissão cultural? Questões que precisam ser pensadas a partir destes estudos que trazem a
face da realidade escolar diante do imensurável da subjetividade de uma coletividade.
Outros
depoimentos
também
são
sintomáticos
quanto
às
dificuldades
do
enfrentamento do educador e da escola:
Uma aluna foi violentada pelo cunhado, mas ela diz que, antes ninguém
tivesse sabido, porque a família toda ficou contra ela. Ninguém acreditou
nela. Acho que o que mais chocou aquela criança foi a passagem de vítima a
ré, e isso aconteceu ela tinha 9 anos, ela foi minha aluna com 11 anos. A mãe
chegou a óbito de tanta pressão familiar (Entrevista n° 04).
Nesta situação, o educador se depara com uma criança e um adolescente, que além da
violência sexual sofrida, enfrenta as conseqüências daí advindas como o desmoronamento
familiar e a culpa que lhes é imposta pelos próprios familiares. O sentimento de traição e
negação à segurança lhes aprisionam a situação e ao silêncio, como lembra Butler (1979)
trazendo-lhes seqüelas imprevisíveis. A legitimidade de sua palavra lhes sendo negada,
também é negada a sua condição de cidadania, restando-lhes, apenas, a condição de coisa
109
indicada por Freire na coisificação do sujeito num processo de submissão na relação de poder
vivida.
Na experiência de um colega, em outra escola, era normal os pais abusarem
das filhas, eram crianças assustadas o tempo inteiro, quando os pais vinham
buscá-las na escola ficavam ansiosas e toda a comunidade sabia que os pais
abusavam das filhas (Entrevista n° 22).
Neste caso específico, a omissão da comunidade escolar constitui-se de exposição à
violência, sendo inaceitável deixar crianças e adolescentes à mercê da violência sem
considerar seus direitos sociais.
Na minha convivência na escola aconteceu um caso onde percebemos a
mudança de comportamento de uma adolescente que estava sendo violentada
sexualmente pelo padrasto, ela com medo não dizia a ninguém, a professora
com muito jeito conseguiu detectar que a mudança de comportamento
bruscamente da menina era por isso (Entrevista n° 16).
A referência do professor para o educando aparece neste caso como a pessoa em quem
a criança confia. Fato que exige deste profissional uma postura competente, humanitária e
protetora, sem ser assistencialista, mas enquanto atitude imprescindível no cotidiano social.
Tivemos um caso em que duas alunas se insinuavam para os caminhoneiros
em troca de dinheiro, não acontecia o ato sexual, mais a mãe acompanhava e
ficava com o dinheiro. A escola chamou a mãe que negou e ameaçou levar
para o Conselho Tutelar, mas o depoimento das alunas era firme e depois de
algum tempo elas deixaram a escola e não tivemos mais notícias (Entrevista
n° 18).
A exploração sexual com a conivência da família traz um quadro de dificuldades em
que a escola passa a ser vista como instância que pode impedir um processo de
vulnerabilização e conivência.
Observa-se nestes depoimentos a vulnerabilidade em que as crianças se encontram no
seio da família, a negligência com que são tratadas essas questões, haja vista se conceber que
no âmbito intra-familiar e na companhia dos pais, a criança estaria resguardada da violência
na sociedade. Faz-se necessário ressaltar as observações elaboradas por Gabel (1997), Butler
(1979) e Faiman (2004) no que se refere às conseqüências emocionais na vida de crianças e
adolescentes vítimas da violência sexual que não podem ser mensuradas pela subjetividade e
complexidade com que se concretizam.
110
No que diz respeito à omissão nos casos de denúncia aos órgãos competentes, de
acordo com a legislação vigente considera-se infração administrativa com penalização de três
a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência aos profissionais
que se abstém de fazê-la:
Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à
saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à
autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo
suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente (art.
245, ECA).
Considera-se a importância do rompimento do ciclo de violência e do silêncio através
dos atores sociais que convivem com crianças e adolescentes, na perspectiva da denúncia
institucional e não pessoal. Portanto, a necessidade de implantação de uma política
institucional que possa dar condições dos educadores lidarem com essas questões urgentes
que precisam de ações imediatas para o seu enfrentamento e prevenção aparecem como
inadiáveis.
No entanto, a maioria dos educadores entrevistados nunca experienciou essa situação.
Alguns revelavam uma experiência não diretamente, mas com insinuações do tipo: “fulano tá
fazendo enxerimento” (Entrevista n° 15), “o que existe é que os meninos pegam nos seios, na
bunda, na vulva das meninas e elas pegam no pênis dos meninos, depois vêm reclamar. A
gente não sabe nem como agir, eu sinto dificuldade” (Entrevista n° 08).
As atitudes tomadas pelos educadores no contexto da escola, ao lidar com essas
situações em sala de aula ou em outros lugares da escola, são, por via de regra, buscar ajuda
na direção da escola, para que a mesma possa tomar medidas enérgicas, no sentido de
convocar a família da criança ou adolescente e apoio, com a perspectiva de conter o problema
identificado no cotidiano escolar.
Percebe-se nas falas, por um lado, uma perplexidade dos educadores, que impactados
não encontram bases relacionais para o enfrentamento do problema. Por outro, identifica-se a
ausência e, ao mesmo tempo, a necessidade do diálogo diante de situações em que o silêncio é
quase uma regra. Ou seja, o diálogo como condição essencial, seria a forma de romper com a
conspiração silenciosa imposta pelos adultos sobre as crianças, como se elas fossem
propriedades dos pais ou dos responsáveis. Em outras palavras, a partir do diálogo poderia se
interromper um ciclo de poder simbólico instituído.
111
Freire (1992), com a pedagogia do diálogo, oferece uma contribuição eminentemente
política ao que considera não só um encontro que se realiza na práxis, mas um diálogo que
possa ser estabelecido nas relações sociais. Preocupado com as práticas educativas e o diálogo
estabelecido entre a escola e as famílias no Estado de Pernambuco, ainda nos anos de 1950,
realizou uma pesquisa que teve como pano de fundo a violência e sua repercussão no contexto
da escola. Desenvolvida sobre a convivência familiar dos alunos apontava para “a questão dos
castigos, dos prêmios, as modalidades mais usadas de castigo, os seus motivos mais
freqüentes, a reação das crianças aos castigos, sua mudança ou não de comportamento no
sentido desejado por quem castigava etc.” (FREIRE, 1992, p. 21). Assustou-se com “a ênfase
nos castigos físicos realmente violentos, na área urbana do Recife, na Zona da Mata, no
Agreste e no Sertão” (FREIRE, 1992, p. 21), desenvolvendo uma reflexão sobre as
conseqüências políticas dessas relações que se alongam nas vivências escolares, reproduzindo
uma ideologia autoritária, num contexto democrático frágil, subjugado ao contexto da
sociedade global.
Na perspectiva de mudança da posição de objeto oprimido diante do mundo, Freire
aponta em Educação como Prática da Liberdade, a reflexão ao que considera uma das maiores
tragédias do homem moderno, o seu rebaixamento da condição de sujeito a “puro objeto,
coisifica-se” (FREIRE, 2003, p. 51). Em Pedagogia do Oprimido discute o lugar que o
oprimido ocupa nas relações sociais e sinaliza que, “os oprimidos, como objetos, como quase
‘coisas’, não têm finalidades” (FREIRE, 1981, p. 50). Referencial este baseado numa ética
que para Freire é a “ética universal do ser humano” [...] “enquanto marca da natureza
humana” e na “sua vocação ontológica para o ser mais” (FREIRE, 1996, p.18), discutida em
Pedagogia da Autonomia, enquanto gestada socialmente na História e inseparável da prática
educativa.
Portanto, a mudança se faz necessária num sentido muito mais amplo no que se refere
as responsabilidades sociais, envolvendo a participação conjunta da rede de atendimento a
criança e adolescente. Diante de situações complexas, multifacetadas, a postura profissional
cuidadosa dos atores sociais envolve atenção, sensibilidade e ética. Neste sentido, a
mensagem da prática teórica freireana é lembrada por Rosas (2002, p. 336) apontando para o
educador enquanto sujeito de transformação, “desde os primeiros tempos, implicava o
objetivo político da transformação social como condição para o agir do educador”. No
entanto, algumas questões precisam ser colocadas para reflexão no sentido de entender por
que essa transformação é difícil de acontecer? Quais são as condições de trabalho dos
educadores? Qual é o lugar dos educadores enquanto sujeitos na construção histórica dessa
112
transformação social? Como mudar esta realidade sem compreendê-la? Como entender a
criança e o adolescente enquanto sujeitos de direitos se o reconhecimento do profissional da
educação no meio social ainda encontra resistências pela própria conjuntura de desvalorização
de suas funções?
Encaminhamentos realizados pela escola
Quanto aos encaminhamentos realizados pela escola na identificação do abuso sexual,
são destacados os seguintes procedimentos: assistência da equipe técnica, contato com a
família, contato com o GT Violência da Secretaria de Educação e o Conselho Tutelar como
revela esta educadora entrevistada: “a primeira coisa que a escola faz é chamar a família,
conversar e trabalhar junto com o Conselho Tutelar” (Entrevista n° 02).
Os encaminhamentos partem de uma ação anterior que requer uma articulação da rede
de atendimento à criança e ao adolescente em sua função protetiva de agilizar eficazmente o
sistema de garantia de direitos.
Nas entrevistas a seguir, algumas iniciativas são observadas:
Ligamos pra coordenadora do GT Violência, entramos em contato com a
mãe ela veio na escola e as negociações foram feitas na Secretaria [...]
parece que a família quando vê que a escola está se intrometendo demais,
eles procuram um jeitinho de se afastar. A mãe tirou a menina da escola
dizendo que a menina tinha que estudar em outro lugar (Entrevista n° 01).
Nesta ação constata-se a articulação que transcende os muros da escola na tentativa de
apreender o que escapa ao seu espaço de interlocução interna dialogando com outras
instâncias na perspectiva do trabalho em rede.
O diálogo com a escola foi sendo construído e procura-se contato com o pai,
com a mãe, e tentamos trabalhar no dia a dia algumas questões. Às vezes há
uma dificuldade com a própria família ou com a comunidade ou com a
própria adolescente e você percebe no comportamento do dia-a-dia algo
estranho. Que a criança está um pouco triste, isolada, cai o rendimento, não
interage com a escola, ou tem atitudes violentas. Às vezes a gente não
consegue saber exatamente, porque não responde, mas percebemos que o
objetivo maior é fazer com que os pais compreendam que ajudar o filho é o
mais importante [...] a gente tem que estar trocando estas experiências em
comunhão com outros professores e perguntar: Você está percebendo o
comportamento de fulano? Com o professor de matemática ou com outro. E
a gente sai fazendo essa ponte na procura de ajuda” (Entrevista n° 11).
113
Ressaltam-se nestes depoimentos a importância da escola como espaço de
identificação e denúncia e a mediação realizada entre os educadores e a família, tendo o
diálogo como elemento necessário de superação das históricas lacunas que existem entre a
escola e a sociedade. Todavia, existem situações que fogem da perspectiva relacional entre
escola/família/sociedade, como demonstra a entrevistada a seguir: “tivemos um caso na escola
em que o esposo tinha relações com a esposa, com a enteada e com a prima. E o papel da
educação é só a gente ficar sabendo e ficar por isso mesmo?” (Entrevista n° 06), “o caso foi
repassado para a direção da escola e não foi dado nenhum encaminhamento por medo. A
família era violenta, tinha envolvimento com drogas e a escola recuou” (Entrevista n° 17). E
na entrevista seguinte: “não foi tomada nenhuma iniciativa. É um tema pouco explorado na
escola, não temos onde buscar uma ajuda. A diretora e os professores sabiam, todos ficavam
horrorizados, mas havia um temor, era um bairro perigoso” (Entrevista n° 22).
Neste sentido, a negligência, a omissão, as relações de poder e o autoritarismo
instituído nas famílias, por absoluto descontrole social, aprofundam as condições de violência
da sociedade para com as crianças e adolescentes. Somado a isso, o profundo
desconhecimento dos educadores sobre os instrumentos legais que deveriam ser acionados
para enfrentar os problemas dessa natureza social, levando-os a entrar em contato com o
“horror” sem um firme posicionamento de consciência de seu papel e do papel da escola.
Nesta perspectiva, retoma-se em Freire (1986) uma reflexão sobre os temores da
transformação que ronda a sala de aula:
Quando falamos do medo, devemos estar absolutamente seguros de que
estamos falando sobre algo muito concreto [...] não posso permitir é que meu
medo seja injustificado, e que me imobilize [...] o medo pode estar voltado
para as forças da sociedade que estão lutando contra o status quo (FREIRE,
1986, p. 70).
A dificuldade entre o horror e o enfrentamento do fenômeno da violência passa por
um movimento que se localiza no meio social, desses dois movimentos que transparece na
indignação diante da violência e, em reconhecer esse medo, reconhecer a humanidade de ser
gente. Para que o medo não seja um impedimento, Freire destaca que:
114
Em vez de racionalizar o medo, você o entende criticamente. Então, o
reconhecimento do medo que limita sua ação permite que você chegue a
uma posição muito crítica, na qual você começa a atuar conforme as relações
dialéticas entre táticas e estratégias (FREIRE, 1986, p. 71).
Pela leitura que sugere Freire, percebe-se na atual conjuntura da escola, a exemplo do
que foi verificado nesta pesquisa, que o medo é um fenômeno cultural e histórico, que
contribui para o poder dominante reforçar o abandono, o imobilismo e a omissão. Ao
reconhecê-lo encontra-se o seu contraponto no diálogo, enquanto posição epistemológica, que
implica na tensão entre autoridade e liberdade. Um diálogo que priorize o desenvolvimento de
relações respeitosas e democráticas na comunidade escolar.
Dificuldades encontradas no cotidiano profissional
Quanto às dificuldades destacadas no cotidiano profissional, ao deparar-se com essa
temática da violência sexual contra crianças e adolescentes, a maioria dos sujeitos evidenciou
falta de formação permanente dos profissionais da educação, sobretudo, o professor que se
depara com mais freqüência com o aluno em sala de aula. No depoimento a seguir, esta
questão é ressaltada:
Dentro dessa área, estudar mais, saber o que diz com relação à literatura, ter
mais respaldo teórico, porque até então só tenho o conhecimento de mundo,
o que leio em jornal, em revista, o que escuto [...] acho que dentro da
educação precisamos ter a informação primeiro, preciso saber qual a função
da escola e saber encaminhar para o órgão especializado (Entrevista n° 03).
A evidência de distanciamento da formação para este desafio analisado aparece,
também, em outras falas: “nós temos muita dificuldade, não temos profissional que tenha
formação pra isso e, infelizmente, aqui não temos preparação” (Entrevista n° 05); “tem
momento que não sei como fazer, nem o que dizer [...] a maneira de chegar até eles”
(Entrevista n° 12).
Observa-se nas falas a carência e o despreparo do professor para a reflexão e os
desafios a enfrentar. Dessa forma, por absoluta ausência do Estado, o conhecimento, a
experiência de vida e as informações dispersas são as únicas possibilidades que dispõe o
educador para enfrentar no trabalho pedagógico o fenômeno da violência contra crianças e
adolescentes.
115
Será a formação a única alternativa no campo da educação para o enfrentamento dessa
questão? Entendida como uma das possibilidades diante da complexidade estrutural e
macrossocial pergunta-se: Como estão sendo efetuadas as capacitações na educação? Num
modelo bancário?
Neste sentido, mais uma vez se recorre aqui a Freire (1982), quando este considera a
formação de professores como um eixo central na escola, refletindo sobre a necessidade dos
encontros, sobre a prática de todos, sobre a necessidade de se conhecerem, sobre a troca de
experiências, sobre a necessidade de estudos: “os professores poderiam se reunir por
disciplinas, por problemas gerais, e ao mesmo tempo tentar uma vinculação da escola, não
apenas com as famílias, mas com as instituições da área, discutindo a problemática políticopedagógica dessa área” (FREIRE, 1982, p. 48). O autor continua sua reflexão sobre a função
social e política da escola e destaca que “um trabalho como esse estimula uma criatividade,
estimula uma curiosidade, e estimula, sobretudo, o direito das massas populares dizerem
‘porque’?” (FREIRE, 1982, p. 48.).
As dificuldades aparecem, ainda mais, em outros depoimentos direcionados para a
relação da escola com as famílias, por considerarem essas questões difíceis de serem
construídas, pois, ainda é em nossa cultura, um elemento considerado tabu. Nesse território,
que distancia o mundo público e privado, prevalece o discurso da omissão como regra, sob o
repetido argumento dos riscos que pesam sobre o profissional da educação que revela ou
denuncia a violência originada no espaço doméstico, como se percebe na fala seguinte: “que
segurança nós temos? Como o Estado dá cobertura a gente ao denunciar um caso de violência
sexual?” (Entrevista n° 06).
No sentido crítico do debate entre o real e o legal, cabe ressaltar o artigo 227 da
Constituição e do próprio ECA, quando se refere a função e o dever da família, da sociedade e
do Estado a esse respeito. Todavia, se percebe no depoimento a seguir, a crítica e a angústia
do entrevistado para com a demora na tomada de iniciativas consideradas necessárias no
enfrentamento da questão:
Não há um comprometimento maior por parte da Secretaria. Não adianta a
escola ter alguns pontos de partida e não haver um apoio necessário, porque
os encaminhamentos geralmente são feitos para o Conselho Tutelar, mas não
há um projeto específico para esse problema. Deveria ter uma atenção mais
específica. Seria interessante um programa preventivo construído pela
própria Secretaria de Educação, existe um GT Violência, mas, até agora eu
não vi uma ação efetiva nas escolas. Deveria ter um direcionamento com
relação a isso e não ficar apenas nos seminários ou palestras pontuais
(Entrevista n° 11).
116
O Grupo de Trabalho sobre violência (GT Violência) da Secretaria de Educação do Município
de Campina Grande foi criado em 2004, fruto de reivindicação das escolas e a partir de um diagnóstico
realizado pelos educadores acerca das dificuldades emergentes encontradas nas escolas. Foram
elencadas algumas dificuldades consideradas por educadores como sendo prioritárias, tais como:
sexualidade, relações interpessoais e violência. A partir daí foram criados grupos de trabalho para as
temáticas específicas, sendo um deles o GT Violência. O grupo iniciou com um trabalho de visita às
escolas onde o índice de violência era de maior constatação, mantendo um primeiro contato com a
comunidade escolar (pais, professores técnicos e alunos), na tentativa de refletir sobre o entendimento
desses sujeitos sobre violência, no sentido de pensar estratégias conjuntas para os problemas
identificados na escola. Nessa conjuntura, surgiram discussões coletivas e depoimentos relacionados
às formas diversas de violência vivenciadas pela comunidade, desde a violência doméstica na relação
com os filhos, com companheiras e companheiros, à violência estrutural e sistêmica.
Ainda no que diz respeito a estas questões, aparece nos depoimentos o problema da
insuficiência de profissionais para as escolas no acompanhamento ao fenômeno social
pesquisado, pois, a escola não possui uma equipe técnica permanente (Assistente Social,
Psicólogo, Orientador e Supervisor Escolar), em função do reduzido contingente na Secretaria
de Educação do Município, visto que, os mesmos são responsáveis por várias escolas ao
mesmo tempo. Sabemos que esta redução de profissionais é determinado pela reforma do
Estado, implantada a partir dos anos 90 no Brasil, como um dos requisitos do capitalismo
contemporâneo de redução de seu papel.
Assim, os educadores constatam que é necessário e urgente, mediante o papel social
que a escola deve exercer, de uma equipe profissional de apoio permanente e capacitada para
atender exclusivamente cada escola, como forma de se colocar na agenda dos acontecimentos
da sociedade e que tem seus rebatimentos no cotidiano escolar. Com esse compromisso,
segundo os educadores, poderia a escola se aproximar mais da comunidade, no trabalho
contínuo junto às famílias, na identificação da rede de atendimento à criança e ao adolescente,
fazendo uma ponte de apoio entre sociedade e escola.
No caso dos CEAIS, escolas que atendem em média 600 alunos diariamente, foram
constatados pelos entrevistados que os casos de violência contra crianças e adolescentes
tomam uma dimensão que impossibilita o trabalho e a eficácia do enfrentamento. Havendo
uma concepção restrita quanto à centralização do profissional da educação no professor,
quando ele precisa assumir os conteúdos e a sala de aula. O contato com as famílias, a
articulação da escola com outras instituições, a mobilização na comunidade e o
117
acompanhamento dos casos surgidos na escola são competências além do professor, também
da equipe técnica, como demonstra o entrevistado seguinte:
Existe uma barreira muito grande, principalmente com relação a família [...]
a própria falta de politização da sociedade, por outro lado existe uma
distância muito grande entre a comunidade e a escola, penso que se essa
distância não fosse tão grande, a escola poderia fazer primeiro um trabalho
com os pais e a comunidade e o corpo discente (Entrevista n° 21).
Este espaço de relação entre escola e comunidade remete às posições colocadas por
Anderson (2003), Pereira (1998) e Batista (2001) que apontam para o desmonte dos direitos
sociais, sendo a educação incluída nesse rol de estratégias de diminuição do Estado.
A desvalorização do cidadão como partícipe da construção e transformação do seu
espaço social redunda em outras expressões da violência como a depredação do patrimônio
público, fato constatado, inclusive, pelo abandono das escolas onde os filhos estudam. O
sentido de vencer o saber pelos atos de violência, distanciam, ainda mais, o acesso ao
conhecimento formal e elaborado, por absoluta falta do diálogo.
Em Educação e Mudança FREIRE enfatiza (1979, p.28) a questão do saber popular
como algo que deva ser colocado na condição do sentido da mudança: “o homem deve ser o
sujeito de sua própria educação” e pelo viés do desejo, a vontade de saber aponta para a
implicação subjetiva intransferível para cada um, refletindo também no compromisso do
profissional com a sociedade, sua responsabilidade no seu fazer diário construindo e vivendo
um processo de transformação.
Importância da educação no enfrentamento da violência sexual contra crianças e
adolescentes
Na reflexão a respeito da importância da educação no enfrentamento da problemática
da violência sexual contra crianças e adolescentes, é unânime a compreensão de que a
educação se constitui no melhor meio de conhecimento para este enfrentamento. Neste
sentido, a contribuição para a transformação da sociedade pela educação é lembrada por
Rosas (2002, p.336) quando se refere a uma frase de Freire “a educação sozinha não
transforma a sociedade; mas, sem ela, a transformação não acontece”, e ainda reforça “não
nos satisfazia a proposta de ‘promoção social’, pois ainda que pudesse beneficiar indivíduos,
118
não mudaria a estrutura responsável pelo poder dos opressores sobre os oprimidos” (ROSAS,
2002, p. 335). É o que se percebe na fala da entrevistada seguinte:
Acho que é de suma importância. Desde que eu me entendo, que a gente
estuda se diz que a educação vai transformar e eu creio que não é a educação
que as pessoas tem como objetivo de alcançar algo, mas eu creio na
educação enquanto humanização, enquanto você se tornar uma pessoa mais
humana, uma pessoa mais sensível, uma pessoa que lê, que estuda com o
intuito de transformar aquele meio social, então eu creio que a educação
pode funcionar [...] Eu acho que a educação seria transformar, sensibilizar,
mas, não dessa educação formal, mas uma educação que humanize, uma
transformação de consciência, que eles tenham consciência e saibam quem
eles são, dos direitos e deveres que eles tem. Então, ao se identificar mais
como pessoas e se respeitar, o maior passo da educação é esse, se reconhecer
enquanto pessoa que são gente, que pensam e aí vão respeitar o outro.
(Entrevista n° 03).
Ao analisar esta fala de conteúdo humanista, que enfatiza o caráter social da
aprendizagem, sem perder de vista o aspecto individual, percebe-se a preocupação com o ser
do educando inserido num contexto existencial que não pode ser separado do seu momento de
aprendizagem formal. Remete-se ainda mais uma vez às reflexões teóricas de Freire (1982),
quando associa o ato do conhecimento ao ato social:
Mas numa sociedade que fosse diferente, ou que pretendesse ser diferente;
numa sociedade que encarnasse um outro sonho, um sonho em que as
relações sociais, por exemplo, fossem relações não de competição, mas de
solidariedade, de companheirismo, então necessariamente a educação seria
diferente. Não digo isso de forma mecânica, mas se supõe que, na medida
em que uma sociedade vai fazendo girar a sua produção de tal maneira que
as relações sociais de produção – ou em torno dessa produção – se dêem em
termos de solidariedade e não de competição, espera-se que, dentro das
escolas, a produção do conhecimento e o exercício de conhecer o
conhecimento que já existe se dêem não em termos competitivos, mas sim de
solidariedade (Freire, 1982, p. 104).
Partindo dessa reflexão de Freire, encontram-se aqui outras falas que apontam também
como sendo a escola o lugar da educação no processo de reflexão na sociedade:
A educação é um lugar de formação de opinião, você está formando
indivíduos. Também de criar um ambiente de qualidade de vida, acho que a
educação tem esse papel, não só de viver e aprender, mas, também, construir
junto com o aluno quem ele é dentro desse processo e, segundo, é a ação
preventiva também (Entrevista n° 11).
119
Ressalta-se a dimensão política deste argumento, como instrumento da aprendizagem no
movimento do conhecimento, reconhecendo que a transformação pode ser considerada um
acontecimento educativo. Sendo a escola um espaço privilegiado por ser lugar de construção de
subjetividades, observa-se neste depoimento a preocupação com o trabalho de prevenção nos
espaços educativos, sendo uma estratégia fundamental que pode se utilizar o Estado, como
reforça Gabel (1997):
A ação preventiva promove uma sensibilização nas escolas, junto das
crianças, de pais e profissionais da infância; vemos o interesse de uma
reflexão coletiva em torno de um apoio fílmico; a informação didática
parece, portanto adquirir crescente interesse ante o olhar social que ela
obriga a dirigir-se para uma área até então proibida e secreta (GABEL, 1997,
p. 200).
Nessa interlocução com os espaços educativos através do diálogo, da sensibilização
das escolas, Gabel apontou que na França houve um aumento considerável das denúncias,
mostrando, sem dúvida, o resultado de crianças com maior liberdade de expressão, fazendo
uso da sua assertividade e de adultos mais dispostos a ouvi-las, contraditoriamente na
diminuição do número de casos e na construção coletiva do fortalecimento de uma rede local
de proteção às crianças e adolescentes violentados sexualmente.
Numa outra perspectiva, a escola aparece como o lugar de formação para a vida:
A educação não é só o ato de aprender, mas no sentido amplo, de dar
cidadania ao indivíduo, de abranger não só a documentação, mas toda uma
aprendizagem para a vida do indivíduo, além da educação formal, além dos
conteúdos, essa formação de socialização, do melhoramento da pessoa, do
desenvolvimento do indivíduo (Entrevista n° 14).
Ressalta-se no conteúdo desta fala a preocupação com a construção do sujeito para a
vida na coletividade não esquecendo a sua singularidade enquanto ser na mediação com a
realidade. Para Freire, a questão educacional tem como fulcro fundamental à consciência
social no sentido de uma opção política. Sair da condição de objeto de manipulação para o
exercício constante da crítica e da transformação do sujeito da ação social, ou seja,
protagonista da sua história. Aponta em Pedagogia do Oprimido que:
A prática da liberdade só encontrará adequada expressão numa pedagogia
em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e
conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica (FREIRE,
1981, p. 3).
120
Nesse sentido, Freire (1981) quando atenta para a concepção de educação “bancária”
como o ato de depositar e transferir valores e conhecimentos aos educandos, coloca-os numa
dimensão que denomina de “cultura do silêncio”, deixando de ser construção de saber, ou
“experiência feito”, para ser experiência transmitida.
Acho que o processo de educação é primordial em tudo [...] como não temos
nenhuma política séria que viabilize o trabalho em sala de aula questões
como essa, não vejo saídas a curto prazo [...] já que não se trabalha na base,
e a base é a educação (Entrevista n° 21).
A partir desta colocação denota-se a necessidade da contribuição da escola inserida
numa rede de proteção à infância e adolescência com uma participação qualificada e eficiente.
Ação que se configura numa ação conjunta com os diversos segmentos sociais na difícil
intervenção do problema para a demanda de políticas específicas nesta área.
As falas dos educadores são reveladoras da importância da educação no resgate de
crianças e adolescentes da violência sexual como instituição responsável dentro de um
sistema macro pela cidadania e rompimento do pacto de silêncio imposto pela sociedade no
espaço escolar.
Material educativo para auxílio instrumental do educador
Quanto ao material disponível na escola para que possa servir de consulta ou
orientação para os educadores trabalharem com o tema, é quase unânime o desconhecimento a
esse respeito. A grande maioria afirma não haver nenhum livro ou qualquer material didático
de orientação dessa natureza crítica: “nós não temos na escola nenhum material que nos
ajude” (Entrevista n° 17), “não temos o Guia Escolar nem no núcleo, nem na escola”
(Entrevista n° 14), “aqui a gente tem uns documentos como o Estatuto, mas em relação à
violência sexual não” (Entrevista n° 05).
Diante disso, percebe-se que além do reconhecimento de suas limitações em relação à
temática da violência sexual contra crianças e adolescentes, não há instrumentos didáticos que
possam auxiliar o educador nessa discussão eminentemente ética e que lhes confronta com
seu papel social.
Na constatação da carência de material didático, instrumento pelo qual pode ser
realizado um trabalho de prevenção, orientação técnica, sensibilização e mobilização de
121
alunos, educadores e comunidade, pergunta-se: Como quebrar o ciclo de violência na escola?
Como ser agente de defesa dos direitos dos educandos?
Após essa análise, pode-se dizer que pensar e refletir a ausência do papel da escola no
enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes é algo inevitável, fato que impõe
impactos negativos no êxito educacional de crianças e jovens que não estudam nem
trabalham, tornando-se marginais do mercado de trabalho, realizando em sua grande maioria
atividades nas ruas para sobrevivência pessoal e o sustento familiar, inclusive, a exploração
sexual.
Portanto, esta pesquisa se colocou como ponto de partida, propondo-se a contribuir e
reivindicar políticas de Estado para o âmbito da escola, em especial, que se fortaleçam os
instrumentos intelectuais para reflexão e formação dos profissionais da educação,
fortalecendo o caráter público e democrático e a perspectiva de inclusão do crescente
contingente populacional, em especial, das crianças e adolescentes, abandonadas e exploradas
pela força do mercado.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A contribuição deste trabalho aponta para a discussão de um fenômeno que toma uma
dimensão de cunho social nas últimas décadas. Tomando como eixo norteador a educação e o
seu lugar no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, reconhece o
seu papel decisivo na construção da subjetividade de crianças e adolescentes.
Embora se constatem iniciativas governamentais e da sociedade, o atendimento e o
enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, ainda é incipiente e frágil,
considerando a descontinuidade das ações, a ineficácia das políticas públicas e o reduzido
investimento financeiro. O perfil dos trabalhadores e a incipiente capacitação dos
profissionais que trabalham na área ainda é um problema que dificulta a implantação de uma
Política pública efetiva de combate à violência sexual.
Há um hiato entre a legitimação do direito e sua aplicabilidade, constituindo-se num
grande desafio a ser concretizado. Trata-se de uma questão que necessita de Políticas públicas
efetivas em todas as áreas: educação, justiça, assistência social, saúde etc, em que há limites
neste contexto de desmonte dos direitos, de contra reforma do Estado. Ação política esta, que
não pode estar desvinculada de uma articulação estadual, nacional e internacional. Contudo, a
fluidez de informações, a ousadia na investigação, o acionamento do sistema de proteção, os
encaminhamentos a serem realizados visando à proteção da criança e do adolescente carecem
de sistema operante rápido e competente, num imbricamento global com perspectivas de
construção de uma rede de proteção à criança e ao adolescente no mundo inteiro.
Outro fator importante na dificuldade do enfrentamento desta problemática é a
impunidade e o desrespeito à infância brasileira, já retratada em seu percurso histórico e
presente também nas políticas educacionais.
Constata-se a diversidade dos desafios no enfrentamento da violência sexual contra
crianças e adolescentes, desde a formação dos educadores concernente à concepção das
categorias inerentes à violência sexual com seus equívocos conceituais até a relação das
práticas cotidianas com as questões macroestruturais que incidem sobre as mesmas. A
educação nesse contexto, considerada como uma das possibilidades de sensibilização,
transformação e humanização, pode exercer a reflexão e o enfrentamento através da
especificidade do trabalho pedagógico.
O resultados encontrados mostram que o fenômeno acontece com características locais
não perdendo de vista a política internacional que capilariza sua intervenção para todos os
123
lugares do mundo pela via da globalização, rebatendo na vida de todos os cidadãos, mesmo
que estes não tenham consciência desta articulação e sua forma invisível de envolvimento.
O contexto local mostra o caminho percorrido no Brasil para a manutenção do modelo
neoliberal, numa ótica do workfare, incidindo sobre a política educacional, com índices de
evasão e repetência, afastamento da escola em função da violência sexual sofrida,
contribuindo para a instalação da barbárie com a mundialização do capital.
Várias são as estratégias encontradas ou que poderão ser criadas para o enfrentamento
dessa questão nas diversas áreas. Uma das quais considera-se prioritária como porta de
entrada para o acesso aos direitos é a educação como instrumento de transformação,
envolvendo a Rede de Atendimento à Criança e Adolescente existente no município.
Trabalho este que se estende e se articula num processo educacional, construído junto
às escolas, organizações não governamentais, programas de saúde e instituições outras,
situando a ética como um dos valores axiais do ser humano, como nos lembra Paulo Freire,
referenciado na “ética universal do ser” e na “vocação ontológica para o ser mais”.
Por que associar a violência sexual ao contexto da educação em escolas? É necessário
ouvir a fala dos professores? O que a educação tem a ver com isto? Que diálogo poderá
acontecer na escola ou outras instituições, ou espaços educativos para a construção de um
processo de interdição da violência sexual? Será possível? Que práticas educativas poderão
ser utilizadas numa política pública de prevenção?
Para a subjetivação acontecer do ponto de vista educacional é necessário se trabalhar
numa perspectiva de educação baseada numa concepção crítica, dialógica, humanista e aberta
às questões da realidade de seus educandos.
A educação popular definida por Paulo Freire é democrática, não separa o conteúdo
da realidade, respeita os educandos, levando em consideração seu saber, trabalha a boa
qualidade do ensino, aproxima a comunidade e os movimentos populares para com eles
aprender e ensinar, capacitar os (as) professores(as), na superação dos preconceitos,
estimulando a presença organizada das classes populares, enfim, realizando-se como prática
eminentemente política.
É ainda aquela que oportuniza aos educandos identificar no próprio meio onde vivem
a sabedoria de sua força, na qualidade do saber popular que se expressa de forma ativa, no
sentido de legitimá-la, desmitificando a relação entre saber popular e as expressões que
trazem a conotação de passividade.
Neste sentido, em tempos de expectativas e perplexidade, o educador se depara com
as mais inusitadas situações, nos variados espaços educativos, situações decorrentes do
124
cotidiano de crianças, adolescentes e suas famílias que vivem em condições de exploração e
de dominação no capitalismo, sob suas múltiplas formas. Ou ainda em situações em que as
regras sociais e familiares não são claras, refletindo na escola ou nos espaços não formais a
falta de limites e a perda de referenciais valorativos de solidariedade, respeito e amorosidade.
Qual a contribuição da educação popular para a reflexão acerca da violência sexual
contra crianças e adolescentes? As crianças e adolescentes estão nos espaços educativos
sejam nas escolas ou fora delas, portanto, a violência sexual sofrida por elas as acompanham
mesmo que em silêncio, mas escapando pelo não dito, seja no comportamento, ou na
construção do processo de aprendizagem, ou na sua forma de estar no mundo. Assim, a
educação popular, através de práticas e mediações educativas democráticas, possibilita a
liberdade de informação, participação, busca de alternativas para colocar em pauta este tema
da atualidade como expressão de uma cultura onde crianças e adolescentes convivem com a
violência, mas são impedidas de falar sobre ela pelo muro de silêncio que lhes é imposto
simbolicamente.
O grande desafio é entender que esta não é uma questão isolada, o entrelaçamento das
questões, o enfrentamento do problema passa pela garantia de políticas sociais.
Assim, ainda que a violência sexual seja um fenômeno histórico-social imiscuído nas
relações cotidianas, revelando a existência das relações de poder, da desigualdade de gênero e
de meios de coerção, abrange o campo da moral e da proteção aos direitos humanos e sexuais,
comprometendo o crescimento e o desenvolvimento de crianças e adolescentes, produzindo
seqüelas e uma matriz reprodutora que insere futuros agressores no círculo da violência.
Como sugere Freire, para o sujeito irromper é preciso acontecer rupturas
epistemológicas, desequilibrar certezas e convicções, fazendo com que cada um descubra
diante da contingência sua capacidade criadora e a esperança crítica que move para a
transformação.
Diante das contradições em que o objeto deste estudo está posto, defende-se a
alternativa do diálogo para mediação dos conflitos existentes. Nesse processo, o educador é
ator fundamental enquanto ser social de mudança.
Este estudo mostra a possibilidade da construção de uma trabalho pedagógico com
interlocução, reflexão, participação e proposição, para desconstruir uma escola que reproduz a
violência e construir uma escola de direitos que possa descortinar a realidade e ampliar sua
participação na sociedade, enquanto formadora de valores.
Acredita-se ser este um ponto fundamental para este estudo, ainda em construção, de
caráter propositivo na perspectiva de uma contribuição diante de um tema pouco discutido na
125
academia. Coloca-se, desde já, a iniciativa de continuidade deste estudo, com teorização mais
fecunda a respeito da violência sexual contra crianças e adolescentes, através da interlocução
com outros saberes.
126
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130
APÊNDICES
131
APÊNDICE A – Roteiro de Entrevista Semi-Estruturada
1. Há quanto tempo você trabalha na educação?
2. Qual a função que você exerce nesta escola?
3. Você conhece o Estatuto da Criança e do Adolescente?
4. Voçê já participou de alguma capacitação sobre violação dos direitos da criança e do
adolescente?
5. Nessa capacitação a temática da violência sexual contra criança e adolescente foi
abordada?
6. O que você entende por violência sexual contra crianças e adolescentes?
7. Que entende por abuso e exploração sexual?
8. Na sua experiência no magistério algum aluno(a) já passou por essa situação?
9. Como você lidou ou lidaria com essa questão?
10. Que encaminhamentos foram dados diante desta problemática?
11. Quais as dificuldades que voçê destacaria no cotidiano profissional para trabalhar com
esta temática?
12. Como você avalia a importância da educação para o enfrentamento da problemática da
violência sexual contra crianças e adolescentes?
13. Quais são os documentos/ orientações/ referências que vocês possuem para trabalhar com
esta temática?
14. Você gostaria de acrescentar mais alguma informação?
132
APÊNDICE B – TERMO DE CONSENTIMENTO
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Título do Projeto: Violência Sexual Infanto Juvenil e Educação
Pesquisador Responsável: Roseana Cavalcanti da Cunha
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezado (a) Senhor (a)
A pesquisa que tem como objetivo Analisar o papel da educação no enfrentamento
da violência sexual contra crianças e adolescentes no município de Campina Grande-PB,
justifica-se pela importância do tema na contemporaneidade questionando problemas antigos
que tem tomado visibilidade na última década e para a educação com a perspectiva de
repensar as políticas públicas, partindo para um processo de democratização do conhecimento
com práticas educativas problematizadoras para a transformação social.
Neste sentido, estamos solicitando a vossa senhoria consentimento e colaboração, de
forma voluntária, para conceder-nos esta entrevista garantindo o vosso anonimato; podendo
vossa senhoria, sem qualquer censura ou advertência, recusar-se a fazê-lo.
Ao mesmo tempo, colocamo-nos à inteira disposição para a qualquer momento,
oferecer esclarecimentos e informações sobre a pesquisa, através do telefone 9312-3608, email: [email protected] (Roseana Cavalcanti da Cunha- Pesquisadora – Mestranda em
Educação/PPGE/UFPB).
Esperamos contar com o seu apoio, desde já agradecemos a sua colaboração.
Campina Grande, ______ de ________________ de 2006.
Entrevistado (a)
Roseana Cavalcanti da Cunha
Pesquisadora Responsável
133
ANEXOS
134
ANEXO A - Plano Municipal de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil do
município de Campina Grande-PB
135
136
ANEXO B – Guia Escolar – Métodos para identificação de sinais de abuso e exploração
sexual em crianças e adolescentes
137
138
ANEXO C – PLANO NACIONAL DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA SEXUAL
INFANTO-JUVENIL
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