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“Esta democracia tão perfeita fabrica seu inconcebível inimigo, o terrorismo.
De fato, ela prefere ser julgada a partir de seus inimigos e não a partir de seus resultados.
A história do terrorismo foi escrita pelo Estado; logo, é educativa.
As populações espectadoras não podem saber tudo a respeito do terrorismo, mas podem
saber o suficiente para ficar convencidas de que,
em relação a esse terrorismo, tudo mais deve lhes parecer aceitável,
ou, no mínimo, mais racional e mais democrático.”
Guy Debord
Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo – 1988
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ÍNDICE
EXPLICAÇÕES E AGRADECIMENTOS.................................................
04
AS EXIGÊNCIAS DOS TEMPOS ATUAIS - Jorge Paiva.......................
05
O EMBATE DOS BÁRBAROS - Anselm Jappe........................................
08
A IMPOTÊNCIA DO ONIPOTENTE - Ernst Lohoff....................................
11
ECONOMIA TOTALITÁRIA E PARANÓIA DO TERROR - Robert Kurz....
14
ECONOMIA POLÍTICA DO TERROR - Robert Kurz .................................
19
PRA PENSAR O IMPENSÁVEL - Editorial do Jornal Crítica Radical.........
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FORTALEZA DA FARSA OU DA EMANCIPAÇÃO HUMANA? – Jornada.....
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EXPLICAÇÕES E AGRADECIMENTOS
Com você, caro(a) leitor(a), o caderno especial N° 1 “Economia do Terror e
Terror da Economia” do jornal Crítica Radical.
Nossa intenção era inaugurarmos a série destas publicações com o caderno
Marx X Marx. Os atentados nos Estados Unidos e suas conseqüências no mundo,
no entanto, exigiam uma análise imediata e fundamentada acerca da nova
dimensão da crise atual. O caderno Nº 2 sairá brevemente.
Esta publicação não seria possível sem a colaboração de Anselm Jappe,
Ernst Lohoff e Robert Kurz pelos artigos; de Tito Lívio e Cleide Damasceno pelas
traduções; do Zé Carlos pela arte; de Jurandir e Sílvio pelos fotolitos e chapas; de
Bil, Carlinhos, Paulo César e Chico pela impressão; de Zé Maria, Maria de Jesus,
Eliete e equipe pelo acabamento; de Raimundo Ferreira, Rebeca e demais
componentes da gráfica Encaixe pelo carinho para confecção desta brochura; de
César Ferrer pelas fotos, de Paulo Barbosa pela logomarca e de Klévisson pelas
ilustrações.
Com esta série pretendemos um rico diálogo, um profundo debate, para
percebermos não só a complexidade da crise atual mas nos engajarmos na
batalha pela construção da sociedade da emancipação humana.
Um abraço
Jorge Paiva
Fortaleza, 08 de outubro de 2001.
34 anos do assassinato de Che.
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AS EXIGÊNCIAS DOS TEMPOS ATUAIS
Jorge Paiva
“Quando a razão crítica cala, surge em seu
lugar a loucura assassina”
Robert Kurz.
“Só há uma força que, no tocante a fanatismo
e ânsia destrutiva, pode igualar- se ao fundamentalismo islâmico:
o fundamentalismo do mercado”
Anselm Jappe.
A economia do terror e o terror da economia polarizam o mundo atual.
Mantida esta situação, ela se torna adequada para a farsa de reedições das
premissas das guerras anteriores. Mas o desfecho da crise atual, com sua guerra
santa, pode possibilitar a emancipação humana.
No final do século XX o capitalismo se modificou. Ora, se o objeto da crítica
se modifica, é claro que a própria crítica tem que mudar. No início do mesmo
século ocorreu algo semelhante. Naquela época, a transformação do modo de
produção capitalista alterou o sistema de referência dos conflitos sociais. Com
isso, imperialismo, economia de guerra, fordismo, taylorismo, etc, polarizaram a
humanidade. Isto obrigou uma transformação também do marxismo. Hoje, a
ruptura da nossa época, no início do século XXI, exige uma transformação ainda
mais profunda e radical.
As novas forças produtivas da microeletrônica são as responsáveis pela nova
crise do capitalismo. A riqueza material produzida, agora, é fruto de um sofisticado
complexo tecnológico. O dispêndio do trabalho humano abstrato perdeu a corrida
para a ciência. Antes, o fordismo marcava o apogeu do sistema. Agora, a
informatização marca a sua entrada definitiva em crise. Eis o aspecto central que
explica a causa e a natureza da crise do munmundo global. Não se trata de um
aspecto particular mas determinante do colapso da modernização. O conteúdo
material da produção se tornou incompatível com a forma imposta pelo valor.
Este estágio foi prospectado lógica e genialmente por Marx. Ele foi o único
teórico moderno que desenvolveu os primeiros estudos para uma crítica radical da
modernidade, com uma reflexão profunda acerca da metafísica do dinheiro. Mas
este aspecto fundamental do seu pensamento não foi capaz de sustentar-se. A
resposta para isto encontra-se no próprio Marx.
O Marx exotérico critica, de modo redutor, a subordinação da classe operária
ao capital na forma fenomênica imediata da mais-valia como trabalho não
remunerado. O Marx esotérico critica, pelo contrário, a categoria fetiche básica do
valor como o fundamento da produção capitalista. Conclusão: não se pode
superar a mais-valia em nome da emancipação dos trabalhadores, com o valor
permanecendo como base ontológica. Ao contrário, o “ modo de produção
baseado no valor” (Marx) só pode ser superado com a superação da própria
forma-valor fetichista. Portanto, duas teorias diferentes. Uma, a teoria da
modernização do capitalismo. Outra, a teoria de sua superação. Isto não passou
desapercebido para Marx. Por exemplo: ``tortura-nos (...) não só o
desenvolvimento da produção capitalista, mas também a carência de seu
desenvolvimento’’ (prefácio da 1ª edição de O Capital, LI, v.1, pág. 12, Nova
Cultural, 1985).Com isso, “Marx esboça todo o programa histórico do movimento
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operário. Os países continentais da Europa eram subdesenvolvidos em relação à
Inglaterra. E o capitalismo como tal ainda o era em relação a si mesmo. O capital
não ingressou na história em estado puro, e sim como uma miscelânea de
momentos capitalistas, pré-capitalistas, modernos e pré-modernos. Mas o
marxismo e o movimento operário passaram a atuar apenas como pontas de lança
do próprio avanço capitalista do sistema. Ao abandonarem a crítica radical do
valor e do fetichismo de Marx, contribuíram para a vitória global do capital”. (Rosa
Fonseca)
Mas, no final do século XX e início do século XXI a situação modificou-se. O
conceito de desenvolvimento perdeu o seu fascínio. A teoria crítica da sociedade é
vista como obsoleta. Não só a marxista, mas a teoria em geral. “ Seja como for, a
pós-modernidade envolveu tudo o que na história da modernização até hoje foi
tido como teoria, com a suspeita de um “propósito totalitário” das chamadas
“grandes narrativas” ou “grandes teorias”. Não se quer mais considerar o conjunto
da sociedade e por isso repudiam-se “grandes conceitos” em troca do conforto da
“indeterminação” teórica. A teoria crítica é substituída pelo jogo intelectual
descompromissado. De onde vem essa surpreendente guinada, esse
“desarmamento da teoria”? Impõe-se a suspeita de que a reflexão teórica calou-se
por que a dinâmica social a ela subjacente extinguiu-se. Em escala planetária, não
há mais sociedade tradicional da qual se possa desfazer-se. E parece que
também não há mais lugar para um novo estágio de desenvolvimento social no
interior da modernidade, porque o processo de valorização econômica começa a
esgotar-se. O processo segue adiante, mas somente como processo negativo,
como processo de crise que não pode mais ser preenchido por esperanças
positivas”. (Robert Kurz). Marx tinha razão quando afirmava que o
desenvolvimento técnico seria incompatível com a moderna metafísica do
dinheiro.
Nada mais pertinente, portanto, para a introdução deste caderno do que o
trecho dos Grundrisse, onde há 143 anos passados, Marx dimensionava as
barreiras históricas do sistema produtor de mercadorias: “A troca do trabalho vivo
pelo trabalho objetivado, isto é, a manifestação do trabalho social sob a forma
antagônica do capital e trabalho assalariado - é o último desenvolvimento da
relação valor e da produção baseada no valor”.
Assim, presenciamos uma crise da própria forma-valor e não apenas de seus
aspectos secundários. “ Fazem parte dela: a crise ecológica; a impossibilidade, na
época da globalização, para a política e para os Estados nacionais de continuarem
a funcionar como instâncias reguladoras; a crise do sujeito constituído pelo valor,
particularmente visível na crise da relação entre os sexos. Mas o que produz o
efeito mais tangível é o esgotamento da sociedade do trabalho. Só uma parte
insignificante de trabalho é ainda necessária para fazer avançar a produção; no
entanto, para poder operar em condições suficientemente rentáveis, são
necessários altíssimos investimentos de capital fixo que não são possíveis senão
nos países e nos setores mais avançados. E, dado que a mundialização efetiva,
não só das trocas mas também da produção, obriga o mundo inteiro a se alinhar
pelos níveis de produtividade dos centros mais evoluídos, uma grande parte do
mundo, de agora em diante, é perdedora nessa competição. As capacidades
produtivas de tais países, ainda que em condições de criar bens de uso, não
consegue mais empregar o trabalho vivo de modo a produzir valor de troca no
mercado mundial, e são, conseqüentemente, desmantelados. Esses países e
setores ficam fora dos circuitos globais do valor, mas exercem uma pressão
ameaçadora sobre os raros vencedores provocando guerras intermináveis, máfias
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e tráficos abomináveis dos poucos materiais comercializáveis ainda em seu poder”
(Anselm Jappe).
Por isso, a economia de guerra e a cruzada militar aprofundarão os impasses
do capitalismo. Portanto, que os(as) excluídos, explorados, oprimidos,
discriminados, perseguidos, censurados, proibidos,... com o jornal Crítica Radical,
construam o sonho de uma vida e produção para a felicidade humana. Afinal,
quem não tem este sonho não tem nada.
Assim, tornaremos realidade o sonho dos(as) revolucionários(as) que nos
antecederam e, em particular, do maio parisiense, o sonho de 68. Antes havia um
pequeno sonho, enquanto o campo imanente ao sistema era grande. Hoje, o limite
objetivo e absoluto do sistema de produção capitalista foi alcançado.
Sem dúvida, o sonho suscitado pela teoria crítica radical e sua práxis
correspondente pode, não só abrir a fresta da porta, mas devassar o quarto
proibido.
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O EMBATE DOS BÁRBAROS
Bilionários de barba e bilionários sem barba
Anselm Jappe
Os rios sempre correm para o mar, e a
globalização capitalista vai e volta para o seu próprio
centro, para o centro do centro. Se tudo está
globalizado, se os mercados nunca dormem e as
mercadorias ocidentais penetram até nos lugares mais recônditos do mundo,
como é que alguém pode se admirar de também a guerra e o terror não pouparem
ninguém? É claro que os atentados de Nova Iorque e Washington impressionam
pelo número de vítimas, por seu caráter espetacular e pelo desejo incondicional
dos autores de praticar a maior carnificina possível. Mas, no fundo, apenas
aconteceu nos Estados Unidos aquilo que a grande maioria dos países vem
experimentando nos últimos sessenta anos, desde a Guatemala até o Camboja,
desde a Sérvia até o Vietnã, desde o Iraque até a Biafra, sem se falar na Segunda
Grande Guerra Mundial. Embora se tenha consciência de que 6.000 mortos
representam um terrível quadro, não se pode furtar à incômoda sensação de que
americanos, ainda mais se trabalharem em Manhattan, ao que parece são mais
iguais que outras pessoas.
Centenas de milhares de argelinos mortos, duzentos mil tchetchenos, meio
milhão de sudaneses, um milhão de ruandeses, ou seja qual for o número exato
de vítimas, afinal ninguém as contou, nenhum destes grupos de mortos mereceu
um minuto de silêncio nem a interrupção da programação televisiva. Ninguém
falou do “mais sério ato de guerra desde 1945”, e nenhuma dona-de-casa
européia afundou, horrorizada, em sua poltrona diante da TV quando os russos
arrasaram Grosny. Nenhum alemão e nenhum italiano afirmou “esse dia mudou a
minha vida” quando os sérvios cometeram atos assassinos em Tuzla, nem quando
os croatas perpetraram seus crimes na região da Krajna, na atual Eslovênia.
Nenhum presidente europeu fez pronunciamento especial na TV quando a guerra
Irã-Iraque atingiu o seu ponto culminante. Na verdade, todos os mortos merecem
respeito, e com certeza não são os Bushs e os Putins que nos farão crer que a
morte de inocentes os emocionou tanto a ponto de fazê-los derramar lágrimas.
Ademais, essa comoção em escala mundial envolvendo as vítimas do World
Trade Center lembra um pouco as ondas de simpatia em torno de Lady Diana ou
de outros colunáveis normalmente presentes nas páginas da imprensa
sensacionalista, enquanto, em contrapartida, ningém costuma demonstrar
interesse por um navio naufragado repleto de imigrantes nem por um campo de
refugiados bombardeado. As vítimas de Nova Iorque causam todo esse abalo aos
europeus talvez por eles não mais poderem crer que, logo ali na Turquia, há povos
se digladiando. Existe um ciclone em movimento, e seria uma sandice acreditar
ser possível viver eternamente em seu centro imóvel, sorrindo de felicidade em
meio ao acúmulo de dejetos e destroços globais. Nunca houve 6.000 mortos em
um atentado, mas com certeza os houve em bombardeios “normais” contra
grandes cidades. O que causa bastante indignação junto à opinião pública
ocidental é a atrevida ruptura que se deu no monopólio de violência antes
meramente estatal. Em outras palavras: terroristas arvoram-se em fazer coisas
normalmente permitidas apenas a qualquer Estado ocidental. Será que isso
significa: bem feito para os americanos, afinal por que eles têm o direito de viver
melhor, ainda mais sabendo-se que, nas guerras travadas em outras partes do
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mundo, eles normalmente eram o culpado principal ou o cúmplice? Não. Mas não
se pode negar que as vítimas não sucumbiram a um “fanatismo religioso” que
possa simplesmente ser extirpado do jardim como uma erva daninha. Muito mais
que isso, elas foram mortas por uma lógica cujos representantes e beneficiários
principais são o país em que se encontravam naquele momento.
Só há uma força que, no tocante a fanatismo e ânsia destrutiva, pode igualarse ao fundamentalismo islâmico: o fundamentalismo de mercado. Por mais que
queiram crer em sua Idade Média idealizada, os islamitas não apareceram
montados em cavalos e munidos de sabres de lâmina curva como na época de
suas grandes conquistas. Talvez naquela época se pudesse falar em “choque de
civilizacões”. Nos dias de hoje, porém, o islamismo é mais um ramo da
globalização mundial oca de sentidos que sempre necessita revestir-se, de acordo
com o local, de diferentes pseudoconteúdos.
Um bilionário de barba que, segundo consta, está escondido em uma
caverna afegã, enfrenta bilionários sem barba instalados em arranha-céus,
primeiramente matando os empregados destes últimos, pois, como diz o
provérbio, quando os reis se engalfinham, algo deverá sobrar para os
camponeses. Os talibãs que decepam mãos e fazem todas as mulheres
esconderem-se em verdadeiros sacos podem ser colocados no mesmo patamar
que os talibãs da mão invisível que jogam na sarjeta mães indigentes três horas
após darem à luz. Uns ordenam que os familiares das próprias vítimas executem
em estádios os condenados à morte, já os outros transmitem as execuções pela
televisão, porque isso, supostamente, fará algum bem aos familiares das vítimas.
Uns proíbem instrumentos musicais por motivos religiosos, enquanto os outros
ensinam nas aulas de biologia escolares a doutrina bíblica da criação. Dito isso,
estariam erradas até mesmo as boas almas que, visando à eliminação das
“causas do terror”, exigem de pronto “mais justiça para o Hemisfério Sul”. Antes de
mais nada, vemo-nos aqui diante de duas maneiras de reivindicar poder mundial,
ambas marcadas por pateticismo religioso. Um detalhe significativo é o fato de os
terroristas camicases pelo visto não serem órfãos oriundos de um campo de
refugiados, mas sim pessoas descendentes de famílias bem situadas. Uma nova
“geração de Langemark”. Nos últimos tempos, cada vez mais tem-se confirmado
aquela parte da teoria de Marx em que ele atribui o fim do capitalismo não à ação
de um sujeito externo, isto é do proletariado, mas sim ao desdobramento das
próprias forças produtivas. Talvez aqui estejamos diante de tal fenômeno.
Não foi o Islã que, enquanto contra-sujeito, descarregou um golpe, mas sim,
um personagem alienado das moderníssimas forcas de produção, quase uma
astúcia da irracionalidade. Tudo parece ter sido utilizado pelos organizadores do
atentado: computador e internet, paraísos fiscais e simuladores de vôo, telefonia
via satélite e especulação nas bolsas. Com a pequena diferença de que, ao
contrário dos fãs da new economy, conhecem bem os limites de eficácia destes
meios, sabendo substituir, no momento certo, a bomba controlada a laser pelo
canivetinho e o telefone via satélite pelo bilhetinho escrito à mão.
Construir arranha-céus para neles amontoar 50.000 pessoas como sardinhas
em latas e planejar atentados a estes arranha-céus são partes integrantes de uma
mesma freqüência intelectual. A idéia de um arranha-céu totalmente à prova de
desabamento (pelo menos foi o que afirmou o seu construtor em uma antiga
entrevista retransmitida pelos canais de TV americanos enquanto as torres vinham
abaixo) compõe a essência do capitalismo industrial da mesma maneira que a
visão do insubmergível Titanic. Nesse sentido, a ilusão quantitativa encarnada
pelo capital transformado em aço e vidro vai provocar, de maneira direta, a ilusão
quantitativa daqueles que medem seu sucesso pelo mero número de “inimigos”
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abatidos. Por sua vez, a distribuição de videogames estúpidos e filmes de
catástrofes e ficção científica em escala mundial, talvez a única possibilidade de
preencher o vazio da sociedade de consumo, logicamente deve ter servido como
modelo de geração de realidade via simulação. O suposto culpado pouca
semelhança apresenta com os califas que criaram o grande império árabe,
lembrando muito mais os conquistadores globais enlouquecidos presentes nas
revistas em quadrinhos baratas, que talvez, ao invés do Corão, representem sua
leitura predileta. Por último, sem a onipresença dos meios de comunicação talvez
não houvesse nem mesmo surgido a idéia desse atentado que, ao que tudo
indica, até mesmo na forma do seu desenrolar, foi concebido para a televisão.
Um dos mentores da era moderna capitalista, Jeremy Bentham, proclamou
como objetivo “a maior felicidade possível do maior número possível”. Sabe-se
atualmente que o governo de Roosevelt estava informado da intenção japonesa
de atacar Pearl Harbour. Deixou que tudo acontecesse para motivar a hesitante
opinião pública americana a aceitar a entrada do país na guerra. Mas se agora a
única potência do planeta quer se vingar do país mais desgraçado do mundo, com
certeza ela está se vendo diante de um surpreendente impasse: a inexistência de
meios coercitivos. Não há mais nada a atacar naquele infeliz país, contra o qual
todo o mundo parece ter-se conjurado nos últimos vinte anos. Não se pode mais
bombardeá-lo com a intenção de remetê-lo à Idade da Pedra, pois nela já se
encontra. E tal fato o dota, ou a seus déspotas, de uma invulnerabilidade ímpar.
Lá não há alvos de ataque estratégico, aeroportos ou ferrovias, não há estradas
asfaltadas nem fábricas, não há usinas hidrelétricas nem represas. Aonde quer
que sejam lançadas bombas, só serão atingidos barracos miseráveis. Após tudo o
que já sofreram, alguns milhares de mortos a mais não terá muita importância. E
aconteça o que acontecer, a população, que já se encontra apática, dificilmente
irá se levantar contra os novos dominadores. Exatamente por esse motivo é
provável que os EE.UU. prefiram apostar em uma “longa guerra” contra o
terrorismo “em todas as suas ramificações” e contra todos os aliados e cúmplices
dos terroristas. Para tanto, em caso de dúvida, serão designados todos os
opositores da economia de mercado e da democracia ocidental.
Talvez em breve a cabeça de Osama bin Laden seja apresentada a Bush em
uma bandeja de prata, e talvez essa ainda fosse a melhor solução. Porém, é mais
que duvidoso que com isso a globalização vá parar de produzir novos monstros. E
afinal de contas talvez o presidente italiano, o velho Carlo Azeglio Ciampi,
infelizmente até tivesse razão quando, em um pronunciamento televisivo feito logo
após os atentados, em vez de “tranqüilizar” os seus concidadãos, simplesmente
apresentou, com tristeza, o seguinte questionamento: “Quem sabe que terríveis
carnificinas ainda estão sendo preparadas em surdina.”
Anselm Jappe é ensaísta, integrante do coletivo de autores da revista Krisis da Alemanha
e autor de Guy Debord (Vozes).
Tradução de Tito Lívio Cruz Romão
Tradutor/intérprete de alemão, professor de alemão do Departamento de Letras
Estrangeiras da Unversidade Federal do Ceará; especialista em interpretação simultânea
pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), mestre em tradução pela Universidade de
Mainz (Alemanha) e doutorando em tradução/interpretação pela Universidade de Viena
(Áustria).
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A IMPOTÊNCIA DO ONIPOTENTE
Ernst Lohoff
Raras vezes os representantes da união democrática
mundial demonstraram tanto caos e confusão como depois dos
golpes certeiros dos pilotos camicases em N.Y e Washington.
Contudo uma das frases de maior circulação, desde o 11.9, é
‘adiantar-se’. Esse dia mudou o mundo”, opinou- entre outros- o
líder evangélico do povo alemão Johannes Rau. O
desabamento do World Trade Center marca efetivamente em
toda sua simbologia um momento histórico crítico.
De uma forma direta o aspecto militar é certamente visível.
Desde o desaparecimento de contrastes entre leste e oeste a
restante ‘Potência Mundial’ viu-se não apenas legitimada a
,sozinha ou junta com seus novos parceiros europeus ,brincar de policiais do
mundo; como representante de uma de suas próprias invulnerabilidades, da
incontestável prepotência proveio a administração dos Estados Unidos, coube-lhe
no cenário internacional algo como um autêntico monopólio de violência. As
guerras da ordem mundial dos anos 90 pareceram comprovar essa reluzente
recepção. A segunda guerra do Golfo iguala-se a um tiro ao alvo de alta tecnologia
e a guerra do Kosovo mostra ainda que nenhum dos exércitos atuais desprovidos
de tecnologia tem a mínima chance de defesa contra a máquina de guerra de alta
tecnologia norte-americana. Essa idéia extravagante açoita ,agora, a dialética do
desamparo. Duas dúzias de atentados suicidas demonstram que os centros da
sociedade de consumo são altamente vulneráveis. Algumas tesouras de tapeçaria
e utensílios de barbear na hora errada, no lugar errado, nas mãos erradas ,bastam
para reduzir Manhattan a cinzas e escombros e matar milhares. Nesse campo a
máquina de guerra norte-americana gostaria de ser invencível, mas o próprio
“País da Liberdade” mostra-se como um único, gigantesco prato de Targets1 que
está apenas esperando pelo próximo grupo de fanáticos políticos.
Nenhuma manhã ruim sem uma noite de bons sonhos. Os detentores do
poder político do oeste propagam e protegem abertamente o prometedor processo
de globalização, a acelerada decomposição do referencial público e não apenas
isso; eles formaram e formam ao mesmo tempo idéias totalmente ilusórias sobre
o caráter dessa evolução. Enquanto eles intensificam, na marca do mercado
totalitário, a expansão do mercado mundial por capital, mercadorias, e pessoas
proprietárias de dinheiro, eles imaginam a internalização da ilimitada livre
concorrência para um belo mundo de contínuo caráter pacífico. Essa consciência
alucinada calcula uma ameaça dessa ordem apenas como algo vindo de fora. A
ameaça provém, em princípio, de pessoas e regiões que sob todos os pontos de
vista perderam a anexação ao novo comércio mundial e seus modelos. Em
conformidade com isso eles aparentam o antecipado cenário conflituoso dos
dominantes. Como inimigos em potencial, as ainda restantes ditaduras
vanguardistas e alguns homens provincianos tem de sofrer e como forma de
explicação será tomada como referência a íntima guerra internacional.
Metodicamente combatentes, que se distingam da população civil americana,
devidamente armados devem atacar os Estados Unidos por fora. No projeto
Guerra nas Estrelas, o plano de defender o território americano, de uma vez por
todas, de um possível ataque e de todas as concebíveis nações vis Nenhuma
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manhã ruim sem uma noite de bons sonhos. Os detentores do poder político do
oeste propagam e protegem abertamente o prometedor processo de globalização,
a acelerada decomposição do referencial público e não apenas isso; eles
formaram e formam ao mesmo tempo idéias totalmente ilusórias sobre o caráter
dessa evolução. Enquanto eles intensificam, na marca do mercado totalitário, a
expansão do mercado mundial por capital, mercadorias, e pessoas proprietárias
de dinheiro, eles imaginam a internalização da ilimitada livre concorrência para um
belo mundo de contínuo caráter pacífico. Essa consciência alucinada calcula uma
ameaça dessa ordem apenas como algo vindo de fora. A ameaça provém, em
princípio, de pessoas e regiões que sob todos os pontos de vista perderam a
anexação ao novo comércio mundial e seus modelos. Em conformidade com isso
eles aparentam o antecipado cenário conflituoso dos dominantes. Como inimigos
em potencial, as ainda restantes ditaduras vanguardistas e alguns homens
provincianos tem de sofrer e como forma de explicação será tomada como
referência a íntima guerra internacional. Metodicamente combatentes, que se
distingam da população civil americana, devidamente armados devem atacar os
Estados Unidos por fora. No projeto Guerra nas Estrelas, o plano de defender o
território americano, de uma vez por todas, de um possível ataque e de todas as
concebíveis nações vis através de mísseis de defesa tornou-se um projeto
político-militar para o futuro.
No dia 11.09 irrompeu sobre os Estados Unidos um novo modelo de uma
violenta realidade que maculou todos os conceitos de defesa deste país. Um tipo
pós-moderno de inimigo passa sobre os sistemas de defesa militares, nos quais
ele desmascara a separação entre exterior e interior como ficção e transforma
com métodos primitivos a onipresente alta tecnologia em aniquilamento total das
armas. Não os pérfidos chefes de estado ou líderes revolucionários que por seu
reconhecimento como sujeitos políticos lutam e atacam o poder supremo, mas
sim cidadãos anônimos com algo peculiar, uma interpretação diferente da dos
usuais turistas sobre o valor real dos aviões de transporte.
A Superpotência completamente atingida reage à sua dolorosa imaginação
agora com exacerbada negação. ‘Quem tem o poder define o que deve ser
considerado como realidade’. Dessa “ONG” ,de outro modelo, de pessoas
desprezíveis, é dirigida uma organização terrorista pelo mentor de nome Osama
Bin Laden . Já que o governo dos Estados Unidos precisa de uma nação vil para o
seu modelo de guerra, ele também acha o que procura; para ele basta a
circunstância que atentados raramente recaiam sobre águas internacionais e
detenham-se geralmente a terra firme. Os Estados Unidos tem o sagrado direito
de invadir todos os Estados que eles possam supor ter manchado o seu território
com terrorismo e de chamar tal procedimento de legítima defesa. Mas antes de
tudo a força de combate contra o oeste é mistificada em um arcaico poder. A
pretensa guerra moral com o islamismo, compreensivelmente um genuíno produto
da época de globalização, cai como uma universal caça às bruxas para a
tenebrosa Idade Média.
Depois do tiro certeiro “no coração da civilização ocidental”, o qual é de se
procurar, portanto, no Pentágono e centro financeiro nova iorquino, a mobilização
geral contra o fundamentalismo islâmico foi executada dentro de poucas horas. A
rápida, primeira reação de reflexo mostra que a população já estava preparada há
muito tempo para o chamado. Toma-se “Independence Day“ de Roland Emmerich,
combina-se o filme com “ O choque das civilizações” de Huntington e está pronto o
roteiro no qual a sociedade norte-americana se orienta e do qual a administração
norte-americana gostaria de ordenar o mundo. Sob o otimismo capitalista e
futurista da vencedora globalização ocidental encontra-se ,ainda, uma segunda
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camada da opinião popular, na qual medo e prazer ,no final, amalgamam-se. Com
o atentado de Oklahoma já tornou-se claro que o caldo entornaria. Mas para a sua
grande saída o fundamentalismo branco precisa de um adversário e parceiro
definidos como inimigo. No caso do homicida Mac Veigh a grande maioria não
queria o reflexo de sua própria imagem, mas sim reconhecer apenas um único
criminoso. Primeiramente o confronto com os companheiros da empreendedora
competição islã despertou o ‘ adormecido’ . O confronto enobrece o “fanático
armado” e o cerca com a auréola da mais alta superioridade.
Segundo Martin van Creveld, um ilustre historiador militar de Israel, conflitos
armados regularmente implicam em discretos processos de reconciliação.
Inimizade une. Quanto mais demorado é um conflito, mais semelhanças
estruturais verificam-se entre os adversários. Sobre a planície ideológica inicia-se
a cruzada ocidental anti-islã já com um alto grau de permutabilidade. Quem se
impressiona com as sucessivas divulgações de Bush pela luta contra o “ Império
dos Malvados “ e com a propaganda contra o “grande e o pequeno Satanás “
(Estados Unidos e Israel ) pergunta-se
-------------------------------------------------1 Sigla para Trans-European Automated Real-time Gross settlement Express Transfer System.
Sistema de autorização de pagamento de grandes quantias do Banco Central Norte-Americano
irrefutavelmente porque ambos os lados se valem do mesmo pensamento. Porém
a unanimidade de uma imagem de mundo maniqueísta para os dois lados ameaça
iniciar um profundo processo de convergência.
Uma cruzada antiislâmica com o objetivo de ‘arrancar o mato’ inicia-se. A
execução de um potencial atentado suicida no seu refúgio afegão providencia
‘mato novo’. Para isso está feita a nova e distintiva ditadura da segurança, para
submeter essa sociedade a um severo regulamento e ao mesmo tempo dar uma
violenta impulsão à etnia das contradições sociais nos centros de mercado
mundial. Enquanto a prosperidade capitalista estava substancialmente na “mão
invisível do mercado” com participação ativa na gloriosa civilização comercial
ocidental encontrava-se um ciclo justo. A luta contra o terrorismo islâmico
internacional forma o quadro ideal para uma nova interpretação dos valores
universais do ocidente através de sinais racistas-culturais. Mas isso condiz com as
mutantes condições político-econômicas. Encontra-se agora a distintiva crise do
comércio financeiro no seu adequado pedantismo político?
Ernst Lohoff é ensaísta, co-editor da revista Krisis e autor de várias obras na Alemanha.
Tradução de Cleide Gomes Damasceno
Estudante da Faculdade de Letras da UFC.
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ECONOMIA TOTALITÁRIA
E PARANÓIA DO TERROR
O instinto assassino da razão capitalista
Robert Kurz
Na história da humanidade, catástrofes de grande
porte e simbologia sempre serviram de pretexto para
um momento de sensibilização em que
os poderosos do mundo se despojam de suas
arrogâncias, as sociedades fazem um auto-exame
de consciência e reconhecem seus limites. Nada
disso se tem podido observar na sociedade capitalista
mundial após o ataque camicase perpetrado contra os centros nervosos dos
EE.UU. Chega quase a parecer que o bárbaro atentado, originado das trevas da
irracionalidade, não apenas destruiu o World Trade Center, mas também o último
quântum de discernimento presente na opinião pública da democracia mundial em
vigência. E não querendo identificar-se no reflexo do terror, esta sociedade acaba
revelando-se ainda mais prepotente, tacanha e irrefletida que antes. Seguindo
essa linha de raciocínio, quanto maior a força utilizada para chamar-lhe a atenção
de seus próprios limites, maior será a violência com que clamará por poder e
maior a obstinação com que cultivará sua unidimensionalidade.
Após o atentado terrorista, as elites administrativas, os meios de
comunicação e a massa populacional do sistema global de “economia de mercado
e democracia” vêm-se comportando como se fossem todos atores e figurantes de
uma encenação real do filme Independence Day. Hollywood pressentiu um
acontecimento apocalíptico, filmando-o como representação de kitsch patriótico e
moral caipira. Desta maneira, a indústria cultural banaliza a realidade da
catástrofe, roubando-lhe seu alto teor de realidade, antes mesmo de ela vir a ser
real. Como o luto e a perplexidade espontâneos são encobertos pelos falsos
rituais de um modelo programado de reação, torna-se impossível compreender
que há uma ligação intrínseca entre o terrorismo e a ordem dominante.
O enrijecimento da consciência oficial democrática, substituída por uma
insensibilidade encolerizada, torna-se patente quando o ator amador presidente
dos EE.UU. conjura para uma “batalha monumental entre o bem e o mal”. Através
desta cosmovisão ingênua, são projetadas as próprias contradições internas. Não
é nada mais nada menos que o esquema elementar de toda ideologia: em vez de
procurar descobrir o complexo de interligações em que o próprio indivíduo está
envolvido, tenta-se, a todo custo, encontrar uma causa externa para os
acontecimentos e definir um inimigo forâneo. Só que, ao contrário dos mundos de
sonhos pubescentes de Hollywood, não haverá, na dura realidade da sociedade
mundial destroçada, um happy end.
Coerentemente, no filme Independence Day, são seres extraterrestres que
atacam o “próprio reino de Deus”, sendo, é claro, repelidos heroicamente. Agora
certamente caberá ao islamismo militante encarnar este papel do alien
extraterrestre, extracapitalista e extra-racional, como se se tratasse de uma cultura
estranha recém descoberta que se revela uma tenebrosa ameaça. Em busca da
fonte do mal, folheia-se o Corão, como se lá se pudessem encontrar as causas
dos delitos antes inexplicáveis.
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Ainda tomados pelo estupor, intelectuais ocidentais espantados têm o
descaramento de definir o terrorismo como expressão de uma consciência “prémoderna” que esqueceu de viver o estágio iluminista, vendo-se assim obrigada a
“satanizar”, através de atos de ódio cego, a maravilhosa “liberdade de
autodeterminação” ocidental, o mercado livre, a ordem liberal e tudo o que há de
bom e bonito na civilização do Ocidente. Como se nunca houvesse existido uma
reflexão intelectual acerca da “dialética iluminista”, e como se o conceito liberal de
progresso na desastrosa história do século XX há muito não houvesse caído em
descrédito, vê-se retornar como um fantasma, em meio à confusão formada em
torno de um novo tipo de ato insano, a filosofia da história, de cunho burguês, dos
séculos XVIII e XIX, caracterizada por arrogância e ignorância em patamares
equivalentes. Na tentativa obstinada de imputar a nova dimensão do terror a um
ente externo, a argumentação democrática ocidental acaba sucumbindo,
alcançando um patamar inequivocamente inferior a qualquer nível intelectual.
Todavia, não se constitui fácil empreitada definir o fato de haver uma
interligação intrínseca entre todos os fenômenos existentes na sociedade
globalizada. Após quinhentos anos de sangrenta história colonial e imperial, após
cem anos de industrialização estatal-burocrática fracassada, seguida de um
processo de modernização de caráter reparador, após cinqüenta anos de
integração destrutiva no mercado mundial e dez anos sob o jugo absurdo do novo
capital financeiro transnacional, na verdade não existe mais nenhuma paragem
oriental exótica que se possa definir como estranha e extrínseca. Tudo o que hoje
acontece é, direta ou indiretamente, produto do sistema mundial coercitivamente
uniformizado. O ventre em que se gera o megaterror é o próprio one world do
capital.
Foi a ideologia militante do totalitarismo econômico ocidental que aplanou o
caminho para os também militantes desvarios neo-ideológicos. O término da era
do capitalismo de Estado e suas idéias foram tomadas como pretexto para
finalmente fazer silenciar a teoria crítica. Como não se podia mais tematizar as
contradições da lógica capitalista, elas passaram a ser declaradas inexistentes,
enquanto era proclamada irrelevante a questão da emancipação social para além
do sistema de produção de bens. Com a suposta vitória definitiva do princípio de
mercado e concorrência, a capacidade de reflexão das sociedades ocidentais
começou a extinguir-se. Cabia às pessoas deste mundo tornar-se idênticas com
funções capitalistas, embora a maioria delas já estivessem taxadas de
“supérfluas”.
Enquanto os mecanismos usados pelo capitalismo financeiro para a
contenção de crises do shareholder value empurravam bilhões de pessoas para a
miséria e o desespero, a maior parte da intelligentsia global entoava, como que
por puro escárnio, a canção do otimismo democrático e de economia de mercado.
Agora acabam de receber a fatura. Quando a razão crítica cala, surge em seu
lugar o ódio assassino. A insustentabilidade objetiva dos modos de produção e de
vida dominantes passa então a impor-se não de maneira racional, mas sim
irracional. Por conseguinte, com o retrocesso da teoria crítica deu-se a ofensiva do
fundamentalismo religioso e étnico-racista. Enquanto não se proceder à
reestruturação de uma crítica fundamental e emancipatória acerca do capitalismo,
os surtos de paranóia social e ideológica serão o único parâmetro da dimensão
em que atingiram a maioridade as contradições da sociedade mundial. Nessas
circunstâncias, a nova qualidade do megaterror nos EE.UU. indica que a crise do
sistema capitalista globalizado, oficialmente ignorada e minimizada, ganhou uma
nova dimensão.
15
Aquilo que vem surgindo como fúria alienígena do terror não apenas cresceu
no fértil solo do one world da economia de mercado, como também foi criado
pelos aparatos de poder repressivos pertencentes às próprias democracias
ocidentais que agora lavam as mãos. Trata-se de bala perdida da própria Guerra
Fria e dos conflitos democráticos que a sucederam, travados em torno da nova
ordem mundial. Saddam Hussein recebeu armamentos do Ocidente no confronto
com o regime de mulás do Irã, que por sua vez havia surgido das ruínas
modernistas do regime do xá. O talibã foi mimado, adestrado e armado com
eficientes mísseis antiaéreos, porque, naquela época, tudo o que estivesse
voltado contra a União Soviética fazia parte do império do “bem”. Pelo mesmo
motivo, o tal cabeça-de-vento presunçoso chamado Osama bin Laden,
recentemente elevado à categoria de mito, adentrou a arena mundial da paranóia
armada primeiramente como “baby” dos servicos secretos ocidentais. O
imperialismo de “segurança” da OTAN, que insiste violentamente em manter sob
controle a humanidade não mais reproduzível através do capital, atualmente
serve-se também de regimes simpatizantes que praticam torturas e diversas
formas de insanidades na Turquia, na Arábia Saudita, no Marrocos, no Paquistão,
na Colômbia, dentre outros. Mas como este mundo está realmente fora dos eixos,
um monstro atrás do outro vai se emancipando. O “baby” de hoje já é o
“inconcebível monstro” de amanhã.
Todavia, os príncipes do terror, os guerreiros de Deus e as milícias de clãs
não representam, em absoluto, forças instrumentalizadas apenas externamente
pelo Ocidente – forças essas que já começam a fugir-lhe ao controle. O estado de
espírito deles também não é “medieval”, mas sim pós-moderno. As semelhanças
estruturais entre a consciência da “civilização” calcada na economia de mercado e
a consciência dos terroristas islâmicos podem não surpreender muito, se
refletirmos que, no caso da lógica do capital, trata-se de uma finalidade irracional
em si que nada mais representa que religião secularizada. Também o totalitarismo
econômico divide o mundo em “fiéis” e “infiéis”. A “civilização” dominante do
dinheiro não pode analisar a origem do terror de modo racional, uma vez que teria
de questionar a si própria. Assim, o Ocidente, presumivelmente esclarecido pelo
iluminismo, define o islamismo como “obra do diabo” da mesma forma que este o
faz em relacão ao Ocidente. As irracionais representações dicotômicas do “bem” e
do “mal” são tão semelhantes que parecem rídiculas.
Por sua natureza, o que se passa nas cabeças dos líderes terroristas não é
mais bizarro que a maneira como os executivos-chefes da economia de mercado
global apreendem e adaptam o ser humano e a natureza, utilizando a coerção
destrutiva do calculismo abstrato típico da administração empresarial. O terror
religioso ataca tão cega e insensatamente quanto a “mão invisível” da
concorrência anônima, sob cujo regimento permanentemente milhões de crianças
morrem de fome, e isto apenas para citar um exemplo que, devido ao culto de
consternacão celebrado em nome das vítimas de Manhattan, acaba mergulhado
em uma estranha luz de esquecimento.
Se os meios de comunicação deixam entrever nas entrelinhas uma certa
admiração secreta pelas imprevísiveis habilidades técnicas e logísticas dos
terroristas, também sob esse aspecto se evidenciam uma certa afinidade e
simpatia. Ambos os lados são partidários, de igual para igual, da “razão
instrumental” moderna. Pois para ambos é correta a afirmação contida em “Moby
Dick”, de Melville, feita pelo terrível Capitão Ahab: “Todos os meus meios são
racionais, apenas o meu fim é insano.” A economia do terror equivale
simetricamente ao terror da economia. Desta forma, o autor do atentado suicida
revela-se a continuação lógica do indivíduo solitário em meio à concorrência
16
universal sob as condicões da total falta de perspectivas. Aqui, o que vem à tona é
o instinto assassino do sujeito capitalista. Uma prova de que esse instinto
assassino é inerente ao próprio sujeito capitalista, tendo sua origem não apenas
através do desespero social, mas também através do desespero mental
provocado pelo sistema totalitário de mercado, são as chacinas cometidas
periodicamente por estudantes de classe média de escolas dos EE.UU., bem
como o atentado de Oklahoma que, notoriamente, foi um autêntico produto da
loucura interna estado-unidense. O ser humano reduzido a funções econômicas
acaba chegando às raias da loucura, exatamente como também acontece com o
ser humano que se vê rechaçado como “existência supérflua” pelo processo de
reciclagem. A razão instrumental destitui os seus filhos.
Uma vez que o núcleo irracional de sua ideologia assemelha-se ao
fundamentalismo islâmico como duas gotas são idênticas, o capitalismo só pode
lançar agora o desafio para a cruzada religiosa, para a “guerra santa” da
“civilização” ocidental. SomenSomente aquelas vítimas que desempenham os
papéis de colunistas sociais de celebridades norte-americanas, brokers na área de
Manhattan e cidadãos da liberdade ocidental valem como verdadeiras vítimas e
são carpidas em cultos e missas em sufrágio de suas almas. Em contrapartida, as
mortes de civis iraquianos e criancas sérvias, estraçalhados por bombas lançadas
a dez quilômetros de altura para não causar nenhum dano à valiosa pele dos
pilotos norte-americanos, não são relacionadas como vítimas humanas, mas sim
como “danos colaterais”. O apartheid global não recua nem mesmo diante dos
mortos. O conceito ocidental de direitos humanos encerra como requisito tácito a
venalidade da pessoa e a solvência. Quem não pode satisfazer a esses critérios
na verdade não é mais um ser humano, mas sim uma porção de biomassa. É
assim que o fundamentalismo ocidental divide o mundo por um lado em “império”
presumivelmente civilizado e, por outro, nos “novos bárbaros”, como já constatava
o publicista francês Jean Rufin no início dos anos 90.
O império está tremendo. Em poucos meses ridicularizou-se o mito da
invulnerabilidade econômica através do colapso da “new economy”. E agora foi-se
o mito da invulnerabilidade militar junto com as chamas que atingiram o
Pentágono. O pensamento utilitarista das elites administrativas tenta tirar proveito
até desta catástrofe. Pois, de chofre, em meio à queda dos mercados financeiros,
dispõe-se de material suficiente para uma “lenda de punhalada pelas costas”. Se
outras bolhas financeiras vierem a estourar e a economia de mercado mundial vier
a sofrer um colapso, não será por obsoletismo da ordem dominante, mas sim
devido ao “choque externo” do atentado terrorista. Pelo menois foi o que afirmou
Wim Duisenberg, presidente do Banco Central Europeu (BCE). A falência
sistêmica é redefinida tomando como base a maldade externa dos “infiéis” de
outros credos. Tal atitude não consegue, todavia, apagar o acontecido.
Ao mesmo tempo, assiste-se a uma onda de propaganda de guerra tão
histérica quanto patética, como se estivéssemos nos idos de 1914. Em toda parte,
inúmeros voluntários se apresentam. Enquanto isso, em meio ao crash, sobem as
ações da indústria armamentista, e quase já se vê crescer uma certa esperança
por uma conjuntura cruzadista. Só que não se vêem grupos clandestinos de
homens armados com facas e canivetinhos de tecer tapetes provocando uma
mobilização das massas e uma arregimentação de todas as forças sociais. O
terror não representa nenhum contra-império externo no mesmo nível de Estado e
economia de guerra. Ele é a nêmesis interna do próprio capital globalizado. Por
este motivo, não pode provocar um novo boom armamentista. Também do ponto
de vista militar a cruzada esbarrará no nada. Ainda não se sabe se possíveis
“ataques de retaliação” dos EE.UU. irão, como já ocorreu em outras
17
oportunidades, dizimar populações a uma altura de dez quilômetros ou se tropas
terrestres vagarão, sob pena de grandes prejuízos, através de longínquas regiões
montanhosas, como o exército da União Soviética precisou experimentar. Mas a
partir da pseudoguerra contra os demônios da crise mundial criados por si próprio
o capitalismo não poderá mais sugar nenhum alimento para a sua sobrevivência.
Podem-se ouvir também vozes sensatas, desde bombeiros em Nova Iorque
até jornalista e políticos, que pelo menos afirmam ser uma guerra totalmente sem
sentido. Essa sensatez, todavia, ameaça cair em total abandono e ser engolida
pela nova onda de irracionalidade, caso não se encontre espaço para uma análise
das circunstâncias da crise. Só há um caminho para se eliminar o solo fértil que
nutre o terror: a crítica emancipatória ao totalitarismo global da economia.
Robert Kurz é ensaísta, co-editor da revista Krisis da Alemanha e autor de O Colapso da
Modernização (Paz e Terra) e Os últimos combates (Vozes).
Tradução de Tito Lívio Cruz Romão
***
18
ECONOMIA POLÍTICA DO TERROR
O processo de crise global e a questão do poder mundial
Robert Kurz
No mesmo ritmo selvagem das cotações das bolsas de
valores, oscilam agora as opiniões acerca dos efeitos que o
atentado terrorista nos EE.UU. poderá acarretar à economia
mundial. Como lidamos com um sistema de economia real,
é claro que o interesse demonstrado por todo e qualquer
acontecimento refletirá diretamente no processo de
reciclagem capitalista enquanto esfera central de todo
pensamento e ação.
Com toda a seriedade, os pensadores econômicos de
curta duração e os pragmáticos de um business as usual
esperam poder ver, após rápida conclusão das atividades voltadas ao luto, um belo
reflorescimento através de investimentos em tecnologia de segurança, na
“reconstrução” de Manhattan e em conjuntura armamentista. Deste modo, Osama
bin Laden teria salvado a economia mundial e até mereceria ser agraciado com
algum prêmio Nobel (que assim finalmente estaria fazendo jus, por completo, à área
profissional de seu criador). Por outro lado, os pessimistas da atual conjuntura e os
carpideiros dos mercados financeiros em declínio há quinze meses temem que os
chocados consumidores americanos, por desespero, comecem a economizar, em
vez de se empanturrar de mercadorias do mundo e assim continuar mantendo o
moinho planetário em movimento. Caso isso venha a acontecer, a luz da conjuntura
mundial será apagada, e o senhor barbudo terá arruinado o lindo capitalismo, diz a
providencial lenda.
Ambas as coisas não fazem sentido. Na verdade, o sistema mundial de
produção de bens, independentemente de seus loucos à espreita e das façanhas
destes, encontra-se numa situação bastante precária. Economia capitalista não
significa 90 % de psicologia, mas sim, ao contrário, 90% de processo objetivado.
Sob essa ótica, a acumulação real global há muito esbarrou em seu limite
interno absoluto. Devido à superacumulação, forçosamente vieram à tona as bolhas
financeiras dos anos 90, em cujo centro reside o endividamento da economia
estado-unidense. Agora essa conjuntura de bolha se encontra exaurida, como bem
evidenciaram o colapso da chamada new economy e a falência latente dos valorespadrão. Não importa o estado de espírito em que se encontrem os já fortemente
endividados consumidores e empresários norte-americanos; o que importa é que
não mais poderão gastar nem poupar aquele dinheiro de que já não dispõem.
Mais cedo ou mais tarde deverão aparecer os efeitos de uma depressão
global, e os limites do sistema deverão evidenciar-se também na superfície do
mercado, o que, é claro, ideólogos e elites administrativas não estão querendo
admitir. Com a medida sem precedentes de nada menos de sete reduções de taxas
de juros num espaço de oito meses, o Fed, o banco central dos EE.UU., tentou reter
a queda das taxas cambiais e assim salvar a conjuntura impulsionada pelo “capital
fictício”. Não veio o êxito retumbante. Além disso, esse keynesianismo de bolsas de
valores só poderia promover uma depressão a longo prazo e sob o preço de uma
inflação galopante, o que, no final das contas, tornaria a queda ainda mais
espetacular.
19
Em virtude do grau de maturidade atingido pela crise, pode-se afirmar que
quase todo tipo de acontecimento negativo poderá desencadear o grande e temido
desastre no âmbito do capitalismo financeiro. Não se deve esquecer que a
economia capitalista também consiste em 10% de psicologia.
Sob esse ponto de vista, o atentado camicase, visto em sua dimensão quase
metafísica enquanto ato de forte simbologia, mostrou-se bastante adequado para
servir não como a causa, mas como o pretexto do crash final. Não se deve esquecer
que, nas últimas semanas, devido à crise financeira mundial, a Wall Street teve de
permanecer mais de três dias fechada. Mister Greenspan decretou a nona redução
sucessiva das taxas de juros como “uma massagem na alma monetária” (v. jornal
suíço Neue Zürcher Zeitung), sendo de pronto imitado pelo BCE e por quase todos
os grandes bancos centrais. Para se lograr um retorno da tranqüilidade, estimulamse rituais patrióticos contra a figura de um inimigo invisível, que na prática não chega
a ser mais terrível que a decantada “mão invisível” da cega lógica sistêmica, rituais
esses que deverão prestar a mesma contribuição que os conhecidos apelos
lançados aos pequenos investidores já há muito bombardeados monetariamente,
conclamando-os para que ajam com precaução.
Não obstante, o nível das cotações sofreu uma rápida queda em todo o mundo.
Dizem que se evitou o pânico. Nessa situação, porém, isso também só significa que
8% de perdas nas cotações em apenas um dia quase já podem ser vistos como
êxito. Através de uma possível reaquisição de suas próprias ações, como já se
anunciou, multinacionais de nomeada, dentre as quais a Microsoft e a Hewlett
Packard, só conseguirão suster as cotações, e isso de maneira provisória, se
levarem em conta o preço de mais endividamento. As companhias aéreas, que
tiveram um prejuízo de 50% no valor de seus títulos, são as empresas diretamente
mais afetadas. Todavia, também essa queda, acompanhada das conseqüentes
demissões em massa, já estava programada há meses. Quando as colunas de
fumaça da catástrofe tiverem se dissipado, do ponto de vista econômico só se
enxergará a mesma tendência de crise de antes, com a diferença de que
apresentará alguns graus a mais de agudeza.
A possibilidade de o atentado camicase ter sido a força motriz de um sismo
financeiro já impossível de ser debelado continua bastante atual, só que sob outro
aspecto. É que a ação de uma força motriz desse porte não pode ter efeito apenas
diretamente sobre os mercados de ações, mas também indiretamente sobre os
mercados cambiais. Dentre os paradoxos da globalização, ressalte-se o fato de a
fragmentação molecular da economia industrial em estruturas transnacionais
(terceirização, exportação de capital em função de racionamento etc.) permanecer
atrelada aos nomes das moedas nacionais. A metafísica do dinheiro não pode ser
representada de outra maneira que nas formas nacionais de cada moeda, sendo,
portanto, praticamente impossível se pensar na existência de uma moeda mundial
direta, da mesma maneira que não é possível a existência de um estado global, a
menos que um retorno ao padrão do ouro fosse praticável. Só que, no estágio
atingido pelas forças produtivas, o sistema mundial não pode mais ser reproduzido
monetariamente nesta forma “arcaica”. Faz-se necessário, portanto, uma moeda
forte, reconhecida internacionalmente e atrelada a uma nação, uma moeda que
funcione como meio de transação, comércio e reserva no âmbito do capitalismo
financeiro e que possa ser tomada como base para todas as outras moedas.
Indubitavelmente, o dólar continua a ser a moeda forte global, uma vez que
esse status está intimamente ligado à posição de potência mundial, não sendo
superado nem pelo yen nem pelo euro. Pode-se perceber claramente que a
crescente globalização está ultrapassando os limites das economias e estados
nacionais, sobretudo através do colapso em série das moedas de países periféricos
20
que foram totalmente “dolarizados” ou cuja soberania monetária foi liquidada por
meio de um atrelamento passivo à moeda norte-americana. Em função do processo
de crise sistêmica atualmente em curso, mas também devido a influências externas,
a globalização acaba beirando os limites do sistema, daí resultando que só se possa
sustentar enquanto o dólar se mantiver na posição que ocupa.
Da mesma maneira que o restante do mundo, também os EE.UU. estão sendo
corroídos pela crise interna de acumulação. Isso se reflete no fato de que a posição
por eles ocupada como potência mundial há muito não conta mais com bases
econômicas, e sim meramente militares. Contrariando todas as lendas em torno da
new economy recém desaparecidas com a fumaça, a produtividade real da
economia estado-unidense situa-se abaixo da européia e da japonesa. Prova disso
é o seu endividamento externo sem par na história. Em virtude do enorme consumo
de poder mundial, o ponto de partida dessa derrocada deu-se com o abandono da
conversibilidade do dólar por seu lastro em ouro no governo do presidente Nixon no
ano de 1973. Desde essa data, o “ouro” da moeda norte-americana é medido em
função da potência militar dos EE.UU. Já no tocante ao sistema monetário
internacional, paralelamente ao crítico processo de uma economização da política,
vemo-nos diante de uma politização ou quase militarização da economia no nível
do sistema monetário mundial. Apenas por esse motivo, o capital monetário do
mundo continua a fluir para os EE.UU., possibilitando-os absorver e administrar os
bens excedentes do mundo, sobretudo porque a máquina militar da última potência
mundial pode atuar como policial internacional, e o país goza da fama de “porto
seguro” em um mundo desestabilizado pelas crises.
Pode-se então medir o forte golpe representado pelo ataque camicase contra
esse prestígio tão necessário no setor de economia mundial. Já nas primeiras
reações o preço do ouro estava subindo, da mesma maneira que o yen e o euro,
em relação ao dólar. E isso para desespero dos japoneses que só conseguem se
sustentar graças ao frágil junco em que se apóia seu superávit de exportações.
Naturalmente, também há muito já havia amadurecido a despencada do dólar. Por
conseguinte, agora fica ainda mais forte a pressão para se restabelecer o status quo
ante. Em vista desse fato, um golpe militar tem uma dimensão econômica direta e
até decisiva.
O que incomoda é o fato de essa situação revelar-se uma faca de dois gumes,
representando, com isso, um grande risco. Caso os EE.UU. optem por não
bombardear, ficará a acusação de possuírem pouca força ofensiva enquanto policial
do mundo, além de terem sido obrigados a engolir duros golpes em sua própria
casa. E uma simples extradição de Osama bin Laden sem a demonstração de um
golpe militar talvez fosse muito pouco para uma reabilitação. Mas caso optem por
bombardear, haverá montes de vítimas civis, inúmeros fugitivos e nova
desestabilização. É claro que, para manter a âncora monetária global, cada vítima
humana será encarada como algo inevitável. Resta saber, porém, se os mercados
financeiros desta vez aceitarão como “vitória” o simples bombardear a uma altura
segura.
Em virtude da situação qualitativamente nova representada pelo inimigo, ou
seja, a sua não vinculação a um determinado Estado, talvez seja necessário
também comprovar a capacidade de um ataque com tropas terrestres, o que,
conforme a experiência mostrada pela União Soviética, pode acabar em um grande
desastre naquelas montanhas do Afeganistão pouca afeitas a sistemas high-tech.
Isso sem se falar no perigo de insuperáveis reações em cadeia de ordem políticomilitar no crítico arco geográfico islâmico que vai do Paquistão à Mauritânia.
O tiro, portanto, também pode sair pela culatra, e o acionamento retardado
do dispositivo do terror como força motriz do crash financeiro já anunciado pode
21
ainda estar por vir. Os atores movidos pela lógica tácita do capital financeiro, uma
lógica que não se dispõe a negociar, estão à espreita, esperando uma reação
estado-unidense, prontos tanto para fugir em direção ao despenhadeiro mais
próximo quanto para respirar aliviados por algum tempo.
Tradução de Tito Lívio Cruz Romão
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22
PRA PENSAR O IMPENSÁVEL
EDITORIAL DO JORNAL CRÍTICA RADICAL (Nº 0)
20/02/2001
Com você o número experimental do
jornal crítica radical. Um nome que
expressa uma feliz combinação entre o
projeto do jornal e a teoria que o
fundamenta: a teoria crítica radical.
Mas, será que esta rara correspondência
poderá se transformar numa nova força
persuasiva capaz de acabar com a paralisia da teoria crítica, dos movimentos
sociais e da contracultura antes e depois de 68? Capaz de forjar uma nova teoria
que possibilite uma prática emancipatória? Uma força capaz de superar a crise da
reprodução da sociedade capitalista atual?
Afinal, muita água já bateu contra esse rochedo. Muitas vidas consumidas.
Infinitos ideais destruídos. A Terra comprometida. Inúmeras ilusões desfeitas. Em
pleno século XXI o reinado absoluto do neoliberalismo com suas mazelas da vida
da morte e da morte em vida. Com isso, no dia a dia, a persistência de um quadro
de horror, terror, acomodação, passividade, modismo, ceticismo, sectarismo,
covardia, conformismo, ansiedade, incerteza, guerra, cooptação, domesticação,
opressão, exploração, discriminação, corrupção, espetáculo, xenofobia,
patriarcalismo, exclusão, apartheid, catástrofe, enfim, barbárie.
Será que diante disso seremos capazes de uma reflexão e ação que sejam
portadoras de uma chama infinita de esperança, energia psíquica e ousadia
revolucionária que despertem e multipliquem a consciência, a vontade, a paixão, o
tesão e a fantasia de milhões de seres humanos que anseiam pela
felicidade?
A crise da reprodução da sociedade atual reclama uma teoria e prática
revolucionárias e inovadoras. E se uma transformação de novo tipo poder vir nas
asas do tempo, é preciso elaborar uma proposta que vá ao seu encontro. Que a
torne compreensível. Que lhe possibilite os múltiplos caminhos. Que contribua para
a construção do sujeito. Que apaixone a humanidade. Eis aí, caro(a) leitor(a), a
tarefa primordial do jornal crítica radical. Um jornal que vai realizar um fértil debate
de idéias com o nosso tempo.
Por isso nas páginas deste jornal você vai se deparar com verdadeiros
desafios. Sempre com novas descobertas. Ficará sensibilizado(a) com temas que
explicam a natureza da crise e o que fazer para superar o capitalismo e sua
modernização - o socialismo. Em razão disso, você vai ser colocado diante de
questões fundamentais de nossa época. Questões que lhe abrirão novos horizontes
porque respondem indagações que ficam sem respostas, como em Davos e em
Porto Alegre.
Esse jornal vem, portanto, para enfrentar através de uma abordagem contagiante
e contestatória, os tabus da modernidade e da pós-modernidade. Para contribuir
com o movimento da crítica radical. Para multiplicar a crítica radical em
movimento. Para defender a construção da internacional emancipacionista. Um
jornal para pensar o impensável. Um impensável que se soma com a revolução da
teoria para formular a teoria da revolução da emancipação humana.
23
FORTALEZA DA FARSA OU DA
EMANCIPAÇÃO HUMANA?
Quando novembro chegar Fortaleza vai se
encontrar, parar pra pensar e começar a desatar
o nó da crise. Para construirmos isto vem aí o
evento Fortaleza da Farsa ou da Emancipação
Humana? Será um acontecimento inusitado em
nossa cidade. Vem com um sabor de congresso,
seminário, encontro, debate, jornada de luta e festa de nossa gente.
Ousadamente aberto, crítico e anti-autoritário o I Congresso de Fortaleza
desenvolverá uma reflexão à altura dos desafios de nossa época. Todos estamos
sendo convidados(as) para esta iniciativa audaciosa. Com ela pretendemos ser
capazes da verdadeira utopia.
Portanto, fortalezense, daqui pra novembro o espectro do sujeito da
emancipação humana vai rondar nossa cidade. Com isso vamos compreender
porque a pré-modernidade não teve sujeito. Dimensionaremos melhor porque a
modernidade teve o capital como sujeito. E também porque a pós-modernidade
quer negar o sujeito. Veremos que a superação da crise da atualidade passa por
estas questões e suas respostas. Não só em Fortaleza, mas no Ceará, Brasil e
mundo. Afinal, a crise atual colocou em jogo a capacidade de existência e
funcionamento da sociedade humana.
E isto se torna ainda mais preocupante, na medida em que presenciamos,
cristalinamente, que todos os(as) governantes dos estados capitalistas e
socialistas, todos os partidos políticos (da situação ou da oposição) com seus
parlamentares e candidatos, cientistas políticos, marxistas acadêmicos,
neoliberais, democratas e social-democratas, socialistas, comunistas e donos dos
mer cados, meios de comunicações e bolsas de valores de todo o mundo
acabaram derrotados no enfrentamento da crise.
As armas que todos eles(as) utilizam são muito sofisticadas, mas tem um
grave defeito – não tem gatilho. Como são portadores(as) desta cegueira, não
conseguem debelar a catástrofe que nos ameaça. Com isso, a reflexão teórica vira
farsa e o papel das oposições imanentes chega ao fim. Senão quisermos
sucumbir, temos que enfrentar o desafio. Para começar, nossa vida não pode
mais estar condicionada a uma concepção impotente frente à crise, a um sistema
que faz regredir o ser humano.
Em seguida, temos que responder aos impasses da modernidade e da pósmodernidade expressos na crise atual, formulando uma concepção teórica capaz
de superá-los. Em razão disso, a jornada de luta para dar um basta na vida como
farsa e construir uma vida de gente, um movimento que vem forjando uma teoria e
prática inovadoras, convoca este evento. Entendemos que sua
leitura,compreensão e realização estão também intimamente relacionadas com os
preparativos do Acampamento da Emancipação Humana, com a sua permanência
e com os desdobramentos de suas reivindicações.
Afinal, não foram apenas adversidades que enfrentamos nos 21 dias
acampados(as) em frente ao Paço Municipal. Muito pelo contrário. Lá, além da
resistência ao cerco policial, da solidariedade efetiva que recebemos, das novas
relações humanas que construimos, dos esforços para tornar a nossa cidade mais
racional e, com isso, mais apaixonante e das conquistas que arrancamos,
pudemos dimensionar melhor as várias descobertas que fizemos em nossa longa
caminhada.
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A partir daí nossos olhares foram mais longe e passamos a compreender o porque
do horror da nossa vida cotidiana, do funcionamento absurdo da sociedade atual,
da mudança da vida humana em vida animalesca, ou seja, da transformação do
ser humano em macaco, como resultado da negatividade oriunda do fato de que a
economia submeteu a vida humana às suas próprias leis.
Uma demonstração inequívoca disso é que o desenvolvimento técnico ao
tornar-se incompatível com a sociedade baseada no trabalho, mercadoria, valor de
troca, mercado, estado, política e dinheiro expõe e clama pela necessidade de
acabarmos com esta pré-história. Pois a crise atual não decorre, como as
anteriores,das imperfeições do sistema produtor de mercadorias, mas sim, de seu
pleno desenvolvimento.
Com sua permanência chegamos a um ponto em que a cega utilização dos
meios materiais empregados não pode ir mais longe sem comprometer a vida
humana e a natureza. Por causa disso, a vida ficou impossibilitada, até aqui, da
sua plena realização. E isto não só no capitalismo mas também na sua
modernização, o socialismo. A enorme acumulação de meios de que a sociedade
dispõe não torna a vida mais rica, mais bela e mais humana e todos(as) nós
queremos a vida mais rica, mais bela e mais humana.
Mas daqui decorre a feliz coincidência entre o desejo de transformação geral
e a possibilidade global de sua realização completa. Fora disso, a impossibilidade.
Nunca uma tal conjunção existiu na história da humanidade.Isto tem uma enorme
implicação sobre o conjunto da vida humana, particularmente com a ruptura da
subordinação de toda a vida à economia.
A economia, que alcançou progressos inimagináveis cobra, agora, o seu
mais alto preço. Hoje, ameaça a existência e funcionamento da sociedade. Retira
sua condição básica de existência humana. Nos conduz ao suicídio, ao lado de
seus sistemas e de seus poderes dominantes. Barbárie ou emancipação humana,
eis a questão!
Por isso, nenhuma mudança no interior da esfera da economia baseada na
mercadoria, será vitoriosa frente à natureza da crise atual. Só conseguiremos
desatar o nó da crise quando a própria economia for submetida ao controle
consciente, auto-organizado e autodeterminado das pessoas humanas. Daqui virá
o sujeito. Nas nossas mãos, corações e mentes, portanto, a emancipa ção
humana. Nossa luta não deve, portanto, modernizar o capitalismo, tentando
prolongar a sua existência, mas acabar com ele.
Antes não conseguiríamos isto. E de fato não conseguimos. Éramos
sonhadores(as), enquanto o campo imanente ao sistema era imenso. Agora, os
limites objetivos e absolutos do sistema produtor de mercadorias estão bem
próximos. As fronteiras históricas do modo de produção capitalista foram
alcançadas. Sem dúvida, este nosso sonho atual não só pode abrir a fresta da
porta mas devassar o quarto proibido.
Cearense, o desafio e o convite estão colocados. Venha para este encontro
Fortaleza. Participe de sua preparação. Convide seus familiares e amigos(as).
Estamos diante de uma rara oportunidade para inaugurarmos um pensar, teórico e
prático, capaz de conquistar a felicidade humana. Sem dúvida, você estará
conosco para darmos um basta na vida como farsa e construirmos a emancipação
humana. Um abraço.
Jornada de luta para dar um basta na vida como farsa e construir vida de gente
(Uma iniciativa do SINDIUTE, SINDIFORT, União das Comunidades, União das
Mulheres Cearenses e Jornal Crítica Radical)
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As fotos registram a manifestação contra a guerra, a
barbárie e a crise, na Praça do Ferreira, com a presença de George
Bush e Bin Laden.
Fortaleza, 27 de setembro de 2001.
A sociedade de espetáculo havia começado pela imposição, pela ilusão, pelo sangue,
mas prometia um prosseguimento feliz. Acreditava ser amada. Agora, não promete mais
nada. Já não diz: ‘O que aparece é bom, o que é bom aparece’. Diz apenas: ‘É assim’.
Confessa com franqueza que, no essencial, já não é reformável, embora a mudança seja
sua própria natureza, para transmutar no pior cada coisa específica. Ela perdeu todas as
ilusões gerais sobre si mesma”.
Guy Debord
Prefácio à 4ª edição italiana de A Sociedade do Espetáculo – 1979
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