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QUANDO JU ESCAPOU PRA DENTRO,
ou a Hora das Crianças
1
pelo cinema de Alan Minas
Patrícia Alves Dias2
“Quando Ju Escapou pra Dentro”, projeto de longa metragem dirigido e escrito
por Alan Minas, é mais que um roteiro para crianças. É um convite à reflexão a cerca
da infância e seu lugar na cultura contemporânea. Esse pequeno ensaio nasceu ao
longo de uma das fases de desenvolvimento do projeto do filme de Alan Minas e é
apoiado nos diálogos que realizamos com o diretor e as crianças que participaram da
etapa de revisão de roteiro.
O texto nos convida, com poesia e um humor próprio do universo infantil - às
vezes até perverso porque como diz Mynona*3 (BENJAMIN, 2002), a propósito dos
“pequeninos que riem de tudo, até dos reversos da vida (...) precisamente a magnífica
expansão de uma alegria radiante sobre todas as coisas, mesmo sobre as zonas mais
indignamente sombrias...” – a observar atentamente e se relacionar com a criança, e
com o seu mundo próprio, para além, e dentro, das telas do cinema.
Falar sobre e para a criança, seus quereres e desquereres, sonhos e cotidianos,
uma escolha político-poética de Minas, tem sido uma marca, teima boa, na obra desse
autor, enquanto faz um cinema para criança... para toda a família. Desde o curta “A
Língua das Coisas”, projeto vencedor do edital 2008 de curta metragem para crianças,
da SAV e antiga TVE, atual TV BRASIL, esse autor vem corajosamente convidando
o público adulto a revisitar, ou descobrir, a experiência da infância contemporânea
como “um pequeno mundo próprio inserido num mundo maior”, como proclamou
Walter Benjamin (2002), numa perspectiva de inserção cultural, política e propositiva
às relações dialógicas frente a criança. Na contra mão de grande parte de conteúdos
pensados e produzidos para o público infantil, Minas arrisca ser o porta voz de muitas
1 O titulo deste ensaio é uma referencia ao programa de radio de Walter Benjamin “A Hora das Crianças”, realizado para
crianças entre 1927 1 1933 e transmitido em emissoras de Berlim e Frankfurt.
2 Patrícia Alves Dias é produtora e criadora de conteúdos audiovisuais para e com crianças. Mestranda em Educação na linha de
pesquisa Infância, Cultura e Contemporaneidade, na UERJ e membro como pesquisadora integrante do Grupo de pesquisa
Infância e Cultura Contemporânea http://www.gpicc.pro.br/. Jornalista com especializada em cinema de animação pelo Acordo
Brasil Canadá, National Film Board do Canadá.
3 Apud Walter Benjamin in “Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação”. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002
1
das questões existenciais da infância e propõe um olhar “despedagogizante” da arte
do cinema para crianças, derrubando as barreiras que separam o que seria ou não
apropriado para a criança. Porque, como lembra Rita Ribes, citando Walter Benjamin,
acerca dos pensamentos desse autor sobre a produção cultural para crianças: “ (...) não
havia nada que não pudesse ser conversado com as crianças, desde que lhes tocasse
sincera e diretamente o coração, porque segundo ele, também não há nada existente
na esfera social que não afete as crianças” e a autora complementa “Mas essa era uma
verdade que cabia às crianças ensinarem aos adultos” (PEREIRA, Ribes, 2012). E
assim, Alan aprende com as crianças de dentro e de fora da tela - as que ele inventa e
as que são seu público. Na sua obra, Alan nos faz testemunhar a criança de hoje, com
suas perdas; fantasias; assombros frente a violência, solidão e intolerância do mundo
urbano; as saudades; o medo do desconhecido... do conhecido - e a coragem de
enfrentá-los e propor mudanças. Temas como o crescimento; o amor; as dualidades;
os amigos; a família; a escola; as experiências boas e más; as brincadeiras; as
coleções de memórias... de objetos escondidas no fundo do armário... as coisa que
falam...
No texto do roteiro de “Quando Ju Escapou pra Dentro”, assim como nos seus
outros projetos, e muito expressivamente no atual longa em realização, “A Família
Dionti” - que conta a história de um menino que vivência a experiência da descoberta
do primeiro amor - as escolhas narrativas e figuras de imagem que o autor nos
presentea, estão prenhes de uma crítica latente à cultura contemporânea e as relações
sociais e políticas d(n)ela refletidas, a partir dos acontecimentos e sentimentos dos
seus personagens infantis.
O roteiro conta a história de Ju, uma menina de sete anos, as vésperas de seu
aniversário, que testemunha a crise conjugal e econômica de seus pais, dentro de um
apartamento pequeno, de um bairro de classe media de uma cidade cosmopolita, onde
a paisagem que ela vê de sua janela, com grades de segurança em primeiro plano, é
uma parede de concreto, um rebatedor causticante do sol da cidade grande - um
sertão sem plantas e aves livres. Mas nesse mesmo cenário, a personagem Ju, se
reconhece sujeito de sua própria historia e ousa co-roteirizar com Alan o enredo do
filme, criar personagens e diálogos, que as crianças do lado de fora do filme também
não cansam de fazer.
2
“É tudo imaginação, menos o Macarrão, ele é de verdade”!4 segundo Lia, de 7
anos, sobre um dos brinquedos, amigo, da personagem que sofre e vivencia ao lado da
menina as brigas de seus pais. Na história, Ju e seus companheiros - os personagens
imaginários - como o caranguejo de pano Macarrão e os sapatos dos pais, bem como
o amigo invisível, Menino de Asas - pensam, questionam, inventam, reinventam e
procuram soluções para o fim dos conflitos e das dores da criança. “O sensorial,
frequentemente empobrecido na experiência dos adultos, torna-se para a criança, uma
realidade que anula a diferença entre objetos inanimados e seres vivos. Contrapondose ao mundo dos adultos, a criança vai em busca de outros aliados”, como diz
Solange Jobim.
MENINO DE ASAS5
Oi, qual a novidade?
JU
A novidade é que essa istória de fazer anivers rio
é muito chato!
Eu não quero mais fazer 8.
Quero fazer
, depois , , até virar beb .
Nascer ao contrario, e sumir!
MENINO DE ASAS
Tem mais alguma boa novidade
JU
Não, só o de sempre: meus pais não param de brigar.
MENINO DE ASAS
Ol a, pra algumas coisas, a gente não pode fazer nada.
pouco de c ?
só ter paci ncia. Quer um
Ju responde NE A I AMEN E COM A CABE A.
MENINO DE ASAS (cont.)
oc adora.
4
5
Trecho do comentário de uma das crianças a partir da leitura do roteiro”Quando Ju Escapou pra Dentro”.
rec o do roteiro “Quando Ju Escapou pra Dentro”, versão 2012
3
JU
E eu l ten o cabeça pra tomar c ! Eles brigam todo dia! Ser que até oje, no meu
anivers rio, tem que brigar ! E pra piorar, não vai ter festa. Nem bolo! Agora, briga,
tem. in a que ter um remédio pra isso.
MENINO DE ASAS
Eu con eço um c in s. O nome dele é an Lee. Ele ama c , tem c pra tudo. Pra
tristeza de jacaré, pra preguiça de planta, saudade de fil o... Ele sempre d um jeito de
consertar as coisas, mas... pra acabar com briga de pai e mãe...
JU
Puxa, ele deve ter! Vamos nele!
MENINO DE ASAS
Eu não sei se ele tem... Além do mais, de noite, eu não acerto o camin o.
JU
Eu sei um jeito.
MENINO DE ASAS
noite não d .
JU
D , sim. Vem, vem, vem.
MENINO DE ASAS
, t ...
Eles ficam DE P na CAMA, PULAM.
MENINO DE ASAS e JU
1, 2, 3 e... 1, 2, 3 e...
Minas escava os pequenos tesouros escondidos de Ju, segredos enterrados dos
adultos que um dia já foram crianças... revela os desenhos, sonhos, gestos, dores da
personagem... Observa, assim, o que ela têm a dizer e como ela se sente sobre a
realidade que está inserida, no Mundo. Alan nos convida a olhar para infância e para
seu “pequeno mundo próprio, inserido num mundo maior” (BENJAMIN, 2002;
PEREIRA, Ribes, 2012), um pequeno mundo cheio de sabedoria e renovadas chances,
sempre e mais uma vez: “Para ela (a criança) porém, não bastam duas vezes, mas sim
sempre de novo, centenas e mil ares de vezes” (2002, 2012).
4
Tudo a perfeição talvez se aplainasse
Se uma segunda chance nos restasse.
GOETHE apud BENJAMIN
Com as cenas das expedições na profundeza da lembrança de Ju ao(s)
passado(s), Minas brinca de pique esconde com Chronos, permitindo a Aion e a
criança encontrarem, num relampejar, as faíscas de um tempo suspenso, onde os
fatos, objetos e cenas vividas nos convidam a “contar para nós mesmo, como se fosse
um conto tudo que aconteceu (...)” (O Sufismo no Ocidente 1984). Como diz
Macarrão: “São necess rias 3
lições pra dominar a arte de voltar na vida...” e tentar
de novo, de novo...
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São
Paulo: Editora 34, 2002.
JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e
Benjamin. São Paulo: Papirus Editora: 1994.
_____________________, Solange e org. Subjetividade em questão: a infância
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reservados a Caraminhola Filmes, 2010.
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Educação Experiência Estética. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2011.
Q ILICI, Cassiano S do . O Extempor neo e as Fronteiras do
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História de Mushkil Gusha - O Sufismo no Ocidente, Edições Dervish, 1984
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