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Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 1 CRÔNICAS & ENSAIOS GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA www.galenoalvarenga.com.br Esse livro faz parte do acervo de publicações do Psiquiatra e Psicólogo Galeno Alvarenga. Disponibilizamos também a versão impressa, que pode ser adquirida através do site do autor. Visite www.galenoalvarenga.com.br e saiba mais sobre: Publicações do Autor Transtornos Mentais Testes Psicológicos Medicamentos Galeria de Pinturas de Pacientes Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga Tags: Comportamento / Condutas, Crenças antigas / Mitos / Superstições, Doenças Mentais (transtornos), Drogas / Medicamentos / Remédios, Educação e Conhecimento, Emoções Sentimentos Controle, Estresses Problemas e Adversidades, Família e Casamento, Festas populares e Lazeres, Informação Linguagem e comunicação, Livros Online Grátis, Livros Psicologia, Livros Psiquiatria, Pintura dos esquizofrênicos, Política: Políticos e Corrupção, Problemas Familiares, Sociedade: Valores e Cultura, Uso de Drogas (Consumo) Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 2 Índice 7 10 14 19 22 25 28 33 45 47 53 56 58 61 64 66 69 71 74 77 86 90 92 95 100 104 108 112 117 121 124 129 Família, Casamento, Educação Prelúdio para um Casamento Morto A Difícil Arte do Casamento Os Descasados Incesto Emocional Separação e Perícia: Advertências A Última Lembrança Sociedade: Valores e Cultura Desespero do Executivo J.S. As Mulheres: O Silêncio das Inocentes Duas Classes: Cultos e Incultos As Constituições que Passei na Vida A Multidão Solitária O que Desejam as Pessoas? Dinheiro, Nossa Atual Devoção Senhores do Poder Os Narcisistas Modernos Os Novos Deuses Informação e Linguagem “Gays”, Loucos, Ateus e Velhos Televisão e Burrice A Verdade de Cada Um Transtorno Médico-Psiquiátrico ou Ficção? A testemunha do Ponto de Vista Psiquiátrico Quando as Palavras Mentem A Mensagem Videntes: A Prostituição das Palavras O Poder do Boato Comportamento O Dilema do Gordo: Comer ou Não Comer? Diga NÃO sem se sentir Culpado A Prisão Domiciliar nas Grandes Cidades Benditas sejam as Queixas O Terapeuta amador A Liberdade dos Jovens Bichos ou Seres Humanos? Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 3 131 134 139 143 148 152 157 159 163 167 174 178 182 184 190 193 195 200 203 206 211 214 219 221 224 229 235 238 241 243 246 252 257 265 Guerra, Heróis e Inocência Homem: Animal Contraditório Como Controlar os Acontecimentos Crendices Computador e Ferradura Afirmações Duvidosas A Loucura: Fabricação da Normalidade AIDS: O Pânico está Solto Fé: Um Poderoso Medicamento A Santa que Fala Português Doenças e Doentes Câncer: O Paciente, a Família e o Médico Obsessivos e Compulsivos A Triste História dos Deprimidos Tome seu Tranquilizante e Viva Feliz Sono, Insônia E Pílulas O Casamento do Neurótico PEDÓFILO: O Monstro de Duas Faces Suicídio pela Provocação de seu Assassinato Médico X Cliente Confissões de uma Médica A Propósito de uma Gripe Duas vertentes Placebo, a Pílula Dourada Festas populares; Lazeres O Natal de Jésus Por um Natal Diferente No Embalo das Últimas Férias A Boa Terapia do Carnaval Personalidade e Neurose Disque 145 para amar Diante de uma Provocação Os Agitados e os Sossegados Solitários mas Não Isolados O Chantagista Emocional O Vasto Mundo das Drogas Artistas e Arte O Amor nas Canções Populares A Pintura dos Esquizofrênicos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 4 PARA OS LOUCOS E OS NÃO LOUCOS DESSE MUNDO Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 5 Família, Casamento, Educação Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 6 Prelúdio para um Casamento Morto Todos nós já convivemos com casais que estão no último round de uma luta de muitos assaltos, na busca de uma separação. O que ouvimos são quase sempre as mesmas histórias, semelhantes a várias outras, ou seja, repletas de acusações mútuas, com vários lances teatrais e quase sempre enfadonhas. Nunca ouvimos do cônjuge nosso amigo um relato onde ele se diz culpado, pois o errado é sempre o outro. As brigas do casamento já não são mais como antigamente, quando poucas separações ocorridas eram devidas às “traições” diversas ou ao abandono do lar, geralmente por parte do homem. Hoje elas se dão, em grande parte, pela disputa do poder. Luta-se pelo direito de dar ordens. Antigamente, o poder, quando exercido pelas mulheres, o era às escondidas, pois aceitava-se como normal os homens mandarem. O prelúdio da separação é caracterizado por discussões contínuas, algumas vezes acompanhadas de agressões físicas. Os temas debatidos, que na verdade servem de “aperitivos” para a entrada das agressões pessoais, são vários: o horário de se chegar a casa, a demora para se aprontar, o sabor ruim da comida. As diversas disputas revelam os valores antagônicos do casal, como as queixas quanto à escassez ou ao excesso das relações sexuais, a saída ou não de casa para fazer visitas ou passeios. Várias condutas dos cônjuges servem para precipitar ressentimentos como: o marido fica vendo o jornal na TV, enquanto a esposa deseja conversar, a mulher quer a casa bem arranjada e o marido a suja e nem liga, um deseja ficar abraçado ao outro e este, que detesta, sente-se como estivesse assentado em espinhos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 7 Também os diversos projetos familiares tendem a promover brigas: quando e onde ir nas próximas férias, onde passar os fins de semana, como educar os filhos ou os netos, qual a melhor hora de se levantar ou de se deitar, quem fará as compras. Nos momentos finais de um casamento, tudo serve para despertar antipatias, discussões e despertar antigas irritações transitoriamente adormecidas. Essas últimas surgem por motivos fúteis, tais como o modo de andar, mastigar, ir ao banheiro, dormir, roncar, dirigir, assentar-se e tossir, do outro cônjuge. E como elas ficam insuportáveis. Tudo mudou. Antes, no período do namoro e paixão, as preferências de cada um eram admiradas e encantadoras. Agora, no tempo das disputas, ela passam a ser ridículas como gostar de assobiar, soprar o café para esfriá-lo, fazer ginástica, tomar cerveja, ouvir música caipira, andar de ônibus ou fazer compras na rua dos Caetés. Os diálogos de um casamento em fase final têm características singulares. Quando um cônjuge pergunta algo ao outro, ele não quer ouvir respostas objetivas ou possíveis, quer descobrir pretextos para criticar, arrumar uma briga, a partir da “deixa” dada pelo parceiro. Assim, a água retorna ao rio, reinicia-se a velha e conhecida briga interrompida por motivos alheios aos dois. Muitos desses diálogos são, de fato, metadiálogos, isto é, discute-se acerca dos próprios diálogos e não de algo externo à fala, como nos exemplos: “você sempre me agride” ou “você está sempre me acusando”. A comunicação é sobre a própria briga. Esta, quase sempre, coloca mais lenha na fogueira. O casal lembra com saudades os velhos tempos quando havia complementaridade nas conversas. Antes, quando um fazia um comentário a respeito do dia, afirmando que esse estava lindo, o companheiro, sorrindo, concordava usando um tom de voz calmo e melodioso, achando a observação pertinente e poética. Nos prelúdios do casamento morto, a mesma declaração desencadeará uma série de agressões, muito diferenVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 8 te dos comentários carinhosos de antigamente: “Você sempre teve um gosto estranho, o dia hoje está horrível!” Num ambiente desses, torna-se penosa e incerta a vida a dois. O ataque poderá surgir a qualquer momento, nenhum deles sabe quando e como ele virá e essa incerteza produz insegurança e desconfiança. As mensagens trocadas no fim do casamento são com frequência ambíguas, como nos casos do marido que, com uma voz áspera e usando palavrões, afirma para a esposa que a ama muito, não podendo viver sem a sua companhia. Ou no caso da esposa que prepara um delicioso e requintado jantar para o aniversário do marido mas, ao mesmo tempo, mostra uma cara amarrada e de enfado na presença dele com o que está fazendo. As tensões, ao crescerem dia após dia, levam os dois, muitas vezes, ao desespero, pois as feridas surgidas pela discussões violentas, produzem marcas que não desaparecem nunca mais. Ao mesmo tempo, a possibilidade de virem a se separar e terem que reiniciar uma vida longe um do outro, assusta os dois. No final de um casamento, cada um, sozinho, passa grande parte do tempo pensando acerca da vida ruim que está levando. Alguns, depois de muitas e muitas brigas, exaustos acabam por desistir de continuar a luta: renunciam às agressões e também ao amor. Isolam-se, cada um no seu canto, sob o mesmo teto, dormindo muitas vezes na mesma cama. Desfazem de todos os modos possíveis as comunicações que poderiam despertar antigas rixas. Nesses casos, aos olhos dos outros, eles passam a viver felizes para sempre. Comemoram todas as bodas possíveis e, impotentes, ficam esperando a morte os separar, pois enquanto viveram, eles não tiveram fôlego suficiente para isso. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 9 A Difícil Arte do Casamento Acerca do casamento todos nós podemos falar, mesmo os que nunca se casaram nem mesmo pensaram casar-se, pois tudo o que se diz é certo e ao mesmo tempo não o é. Sabemos muito acerca do casamento, porém não sabemos realmente muitas coisas. Todos nós, até os peritos em casamento, falham ao falar sobre este tema. Uma pessoa se casa por dois motivos básicos: o primeiro – e a cada dia torna-se o principal – é a busca da própria satisfação e a do seu cônjuge, através do encontro com o outro. Busca-se uma “complementação” do que lhe falta, ou seja, uma preenchimento de si mesmo. Um nutre o outro do alimento biopsicossocial. Em segundo lugar, casa-se para procriar, mas, diga-se de passagem, aumenta o número de casais sem filhos. O casamento, infelizmente, contém muitos ingredientes para não dar certo e é necessário muito esforço, habilidade e flexibilidade, para que conduza a melhores condições de vida. Vejamos alguns destes ingredientes frequentes em todos casamentos, variando apenas quanto ao grau: a) Passam a morar juntas duas pessoas de sexo diferente, geralmente com suposições falsas a respeito de si mesmas. Para isso basta analisar as ideias “machistas” ou as “feministas”, para perceber os estereótipos imputados aos homens e às mulheres; b) Unem-se duas pessoas provenientes de organizações familiares diferentes, com atitudes, valores, percepções, modos de relações, ideologias e religiões diferentes. Um gosta de uma coisa que o outro detesta: um cônjuge aprecia ficar abraçado ao outro, quando junto. Isso lhe fornece segurança e amparo. Por outro lado o outro cônjuge tem pavor desse agarramento, é como estar deitado numa cama coberta de cascalho. A diferença entre os cônjuges é a riqueza e a miséria do casamento. Quando quero crescer ou aprender, procuro conversar ou ler algo que Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 10 possua ideias diferentes das minhas, do contrário nada aprenderia. Biologicamente, há sérios riscos de casamentos entre iguais, podendo esses conduzir à hipertrofia de defeitos físicos. Do mesmo modo, cognitivamente, se interagirmos com iguais, poderemos, sem perceber, regredir ao ouvir e seguir opiniões e julgamentos iguais aos nossos, uma soma de nossas mazelas, pontos cegos ou condutas ingênuas. Já o casamento de pessoas diferentes, tanto no sentido estrito como no lato, pode ser um contato reparador, que nos desperta e nos faz descobrir mundos nunca imaginados. Anteriormente a “grande família” – avós, tios, primos – vivia como um clã e seus membros interagiam uns com os outros com muita frequência. Atualmente, cada família vive quase isolada, mantendo apenas contatos esporádicos e superficiais com os parentes. Como consequência, enquanto nossos antepassados podiam observar de perto diferentes modelos de vida, hoje os nossos filhos possuem, quando muito, apenas os pais, e mesmo esses muitas vezes pouco contato têm com os filhos. Nos velhos tempos os filhos presenciavam o trabalho dos pais e vivenciavam suas satisfações e insatisfações diárias. Hoje os filhos só veem o pai e mãe à noite, quando isto ocorre. Muitas crianças são educadas apenas pelas mães ou babás, sem a presença de modelos masculinos. Os casamentos são, em grande parte dos casos, entre duas pessoas inseguras, medrosas, com pouco conhecimento de si mesmas e fazendo pouco uso de suas potencialidades, percebendo, avaliando e atuando mal nos eventos de seu mundo. Por isso, a escolha de um companheiro, não como ele é, mas como se julga, imagina e deseja que seja, baseado em suas aspirações. Espera-se, na ligação, um suporte ou direção externa que leve a alcançar uma “boa vida”, ou uma felicidade que não foi conseguida através do esforço próprio. Julga-se que o poder de uma “vida feliz” encontra-se no outro e exige-se deste a felicidade não conseguida em si mesmo. “Só serei feliz junto a você”, “Não aguento viver sem você”. Essas são frases comuns entre pessoas enamoradas. Nada mais falso. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 11 Não se pensa o que um poderá fazer para ajudar o outro, pensa-se no seu oposto, ou seja, como serei ajudado já que não tenho o que dar. Está claro que após o casamento os dois percebem o que ocorreu: ambos estavam enganados. Assim, as exigências começam, pouco a pouco surgem os desgostos, as brigas, as agressões, o desespero, as ameaças e, ao mesmo tempo, a dificuldade de sair disso tudo. As agressões costumam ser sutilíssimas, já que os cônjuges conhecem muito bem os pontos fracos e as feridas do outro. No casamento de pessoas mais amadurecidas, a escolha é mais bem feita, as diferenças mais respeitadas, cultivadas e até incentivadas, pois aprende-se com elas. Como não é fácil conviver com diferenças, os cônjuges amadurecidos estão sempre se modificando, utilizando novas técnicas e métodos de lidar com pequenos aborrecimentos e crises que inevitavelmente ocorrem, mas que são superados pela comunicação entre eles. Essa é feita de maneira clara e objetiva, sem rodeios e sem medo. Fundamentalmente, se os casais são amadurecidos, cada cônjuge consegue reajustar-se ao novo relacionamento, criando um sistema de vida conjugal sem que este determine a extinção dos sistemas individuais. Com o nascimento dos filhos, nova adaptação torna-se necessária, já que os cônjuges terão também de participar do sistema parental. No casamento de pessoas inseguras o sistema individual de cada cônjuge, que já não era claro e eficiente, vai se esvaindo no sistema conjugal e é muitas vezes enterrado para sempre, no sistema parental que poderá surgir. Para finalizar, podemos distinguir dois tipos diferentes de casamento: o “arranjado” e o procurado. O casamento “arranjado”, que era o predominante em épocas passadas, baseia-se na premissa básica de que “o amor vem depois”. É o casamento de desiguais, assimétrico, onde o casal comumente tem grande número de filhos, tendo como objetivo manter o poder social e econômico. Pouca importância é dada à relação entre os cônjuges e por isso o número de separações é pequeno. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 12 Casamentos deste tipo ainda são frequentes nos grupos de maior poder político e econômico e em pequenas cidades do interior. No casamento procurado, a crença básica é a de que o amor vem primeiro e a ênfase é dada à relação entre os cônjuges que supostamente são iguais: em direitos e deveres. Geralmente são casamentos com poucos filhos e o poder econômico não é muito relevante. Casa-se para complementar um ao outro e para troca de prazeres e o número de separações neste tipo de casamento é mais frequente. Estamos vivendo um período de transição com aumento do número de casamentos procurados ou livres. Mas em ambos os tipos citados, os cônjuges estão presos aos padrões e valores sociais mesmo quando suas escolhas são “livres”. Assim um rapaz “escolhe livremente” uma moça que tem a sua cor, cultura, valores e educação, frequenta os mesmos lugares, comunga a mesma religião, o mesmo partido político e assim por diante. Ou seja, o indivíduo “escolhe” um tipo de companheira já escolhida previamente pela sua cultura, seguindo os valores que foram impressos em sua mente sem sua crítica. Poucos conseguem escapar desse domínio simbólico e descobrir outros caminhos possíveis. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 13 Os Descasados Após o dilema, casar ou não casar, se o indivíduo optou pelo casamento, surge um novo dilema: descasar ou não. Isto, para aqueles que têm à sua disposição, no seu mundo mental, essa opção. Alguns creem que, uma vez casados, seu casamento está “garantido”, ou seja, que não há necessidade do esforço de cada cônjuge para mantê-lo durante a crise que o casal atravessar. No outro extremo, encontram-se aqueles para os quais a separação constitui a principal, ou mesmo a única arma para a mais simples crise. Estes últimos, diante de qualquer desavença, argumentam: “É melhor nos separarmos”, “Vou procurar o advogado” ou ainda, “Se você fizer novamente esse arroz, eu saio de casa”. Qualquer casamento tem, inevitavelmente, inúmeras crises. Essas, bem aproveitadas, podem conduzir à produção de um casamento funcional e sadio, como meios para readaptações, que forçosamente terão de sofrer os indivíduos quando se casam. Cada um dos cônjuges possuía, antes de se casar-se, um modelo de vida próprio, diferente do sistema conjugal formado pelo casamento. Ocorre o mesmo quando uma pessoa que se acha desempregada, começa a trabalhar, ou vice-versa. Ela necessitará adaptar-se ao novo esquema de vida e isto é feito com algum sofrimento, apreensão e perda de conduta e valores importantes que possuía. Busca-se no casamento uma melhoria de qualidade de vida do in divíduo. Se isto não ocorre, o casamento fracassou e medidas devem ser tomadas para melhorá-lo ou terminá-lo, caso a melhoria não seja alcançada após diversas tentativas disponíveis ao casal. Imaginemos um casal que, tendo tentado todos os recursos à sua disposição e, não obtendo resultados, decida separar-se. O problema é semeVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 14 lhante quanto ao casar ou não casar. Antes o problema se constituía em romper um sistema de vida de solteiro, para passar a fazer parte de um sistema conjugal. Agora os cônjuges já comprometidos num sistema conjugal e, se tiverem filhos, também no parental, retornarão ao sistema individual após o rompimento do casamento. Mas não é fácil romper um sistema de vida e entrar em outro, quando o indivíduo já se encontra amoldado, principalmente se o casamento durou muitos anos e, mais difícil ainda, se o casal teve muitos e bons momentos. Não é raro que após a separação, os cônjuges, derrotados e amargurados, retornem à casa paterna, tornando-se novamente “filhos” e não mais “marido” ou “mulher”. Quando acontece a separação, o casamento já estava provavelmente “doente” há muito tempo. Algumas separações iniciam-se antes mesmo do casamento ocorrer. Quando as brigas continuadas pelos mesmos temas entre namorados ou cônjuges inicia-se, cada um culpa o outro pelo ocorrido e, geralmente, recebem dos amigos e familiares – juízes parciais – uma sentença favorável. Cada um, na interpretação do respectivo amigo, está certo e o culpado é sempre o outro. “Como ele mudou”. “Era tão diferente quando começamos a namorar”. “Virou um monstro insuportável, notei isso ainda na lua de mel. Cada cônjuge busca apoio nas pessoas que têm o seu próprio modelo e isto reforça a falsa crença no “erro do outro”, aumentando e cristalizando as desavenças e o abismo entre o casal, onde cada um, seguido por seu exército, dá origem à guerra conjugal. Esta batalha é reforçada com a ajuda de tropas alienígenas, isto é, advogados, psiquiatras e outros assessores. Tudo isso ocorre em virtude de uma cegueira coletiva acerca da propalada ideia de “causa de um só lado”. Em toda relação, a conduta de cada um dos indivíduos é resultado de sua própria conduta e do comportamento do outro. Em outras palavras, se um deles muda, a conduta de Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 15 seu companheiro fatalmente mudará. Os dois têm, em suas mãos, os lances necessários para mudar a conduta do “outro”, simplesmente agindo de maneira diferente do esperado, ou seja, em desacordo com o sistema estabelecido, desenhado, estruturado e compartilhado por ambos os cônjuges e não por apenas um deles. Minha mãe já há muito dizia: “Quando um não quer, dois não brigam”. Está aí, de forma simples, toda a sabedoria da causalidade circular ou do poder de ambos, em contraposição à linear, ou seja, do poder de apenas um dos indivíduos. Se sairmos do “jogo” a disputa terminará ou, se desejarmos, fazendo uma provocação, a briga ocorrerá. Uma vez separados, a tendência normal dos descasados é a de se manterem ainda casados, seja através da continuação dos encontros ou das brigas, seja através do “casamento” com os filhos, ou até arranjando apressadamente um novo casamento. Neste último caso, o fracasso do novo casamento é quase a regra, pois quando estamos nos afogando, qualquer “galho” parece-nos ótimo para segurar. Um pouco mais tarde, verificamos que o “galho” salvador é fraco e não servirá para nos apoiar. Caso o modelo mental do cônjuge não lhe permita viver só, ao procurar os seus familiares estará perdendo a oportunidade de “curtir” uma solidão, que, uma vez bem cultivada, poderá lhe permitir ser criativo ou recompor sua vida. O medo ao desconhecido, viver sem o cônjuge, poderá ser uma forma de crescimento individual, pois constitui um novo modo de vida e é, talvez, o principal obstáculo à separação, quando o casamento está se deteriorando. Outros fatores criam pressões para a não separação: a antiga crença no compromisso “até que a morte nos separe”, a admiração por aqueles que, mesmo vivendo mal, não ousam separar-se, o valor atribuído pela sociedade à vida conjugal, reputado como superior à vida de solteiro, a ideia de que um homem bem-sucedido deve estar casado, os problemas financeiros futuros, a dificuldade de educar os filhos sozinhos e, por último, o sofrimento do afastamento da família. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 16 Esses motivos provavelmente constituem as principais barreiras contra a separação, que podem levar os cônjuges à depressão, assassinato, suicídio, ao surgimento de várias doenças orgânicas graves, mas também ao crescimento individual. De qualquer modo, os primeiros meses ou anos da separação são quase sempre dolorosos. O que fazer para escapar aos seus aspectos negativos e alcançar os positivos? Teoricamente é simples. Todo sistema humano é aberto e por isso transforma e é transformado pelos sistemas vizinhos. Todo indivíduo acha-se ligado com vínculos humanos, ora mais fortes, ora mais fracos. O sistema conjugal e parental constituem, entre outros, sistemas com ligações fortes para a maioria dos humanos. Mas existem outros sistemas também fortes que o descasado poderá procurar: o de sua família, o trabalho, o lazer, os amigos, a saúde física e mental, o econômico, o criativo, artístico e outros. Rompendo-se, pela separação, o sistema conjugal e comumente o parental para os homens, o indivíduo provocará uma piora na sua vida caso abandone também, ou diminua, o envolvimento com os demais sistemas como, por exemplo, afastando-se ou desinteressando-se do seu trabalho, dos amigos, família, lazer, etc. Por outro lado, se o descasado hipertrofiar ou incrementar suas energias nos vários outros sistemas que haviam sido cortados devido ao casamento, ou ligar-se a outros sistemas gratificantes que não haviam ainda sido vivenciados, a separação será mais suportável, agradável e podendo, até mesmo, ser benéfica para os dois cônjuges e para os filhos. Torna-se necessário que além da separação física, o ex-cônjuge a obtenha também no plano psicológico. Para isto ele criará um novo “mapa” do mundo sem a inclusão do antigo cônjuge, sem esperar nada dele como a compreensão, agradecimentos, exigências, agressões, conduta moral ou imoral e assim por diante. Se possível, não mais falar bem ou mal acerca do outro cônjuge, mantendo apenas o relacionamento, caso seja preciso, estritamente necessário. Não procurar mais saber de sua Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 17 vida íntima, nem reviver as cenas agradáveis e as amargas do casamento que terminou. Não mais tentar provar para si e para os outros quem foi o réu e quem foi a vítima. Em resumo, para separar-se e construir bem uma nova vida, o indivíduo necessita separar-se também psiquicamente, do contrário continuará a ser um mal casado até morrer. Portanto, procure encontrar, ao se separar, sua própria identidade, sem a contaminação do antigo sistema conjugal não mais existente. Adquira sua autonomia, goze e usufrua de seus benefícios e tire de sua cabeça os antigos problemas do casamento e da separação. Em resumo: enterre um casamento morto. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 18 Incesto Emocional Algumas famílias escolhem – aleatoriamente – um filho, apenas um, para ser o “tutor” da família. A partir desse recrutamento os esforços desse filho não mais serão dirigidos para suas necessidades de crian ça, mas sim para ações adultas destinadas a unir, proteger e estabilizar a família desajustada. Os meninos educados desse modo receberam, de alguns psicólogos, o nome “Personalidade Atlas” – deus grego condena do a suportar o céu nos ombros para impedi-lo de amassar a Terra. Os estudos mostram que muitas dessas famílias são dominadas por uma mãe poderosa, egocêntrica, emocionalmente instável e pronta para xingar e explodir sob qualquer pretexto. Estas mães têm sido diagnosticadas pelos psiquiatras como possuidoras de um transtorno de personalidade ”limítrofe” (borderline), onde se inclui a irritação, impulsividade, tentativas de suicídio, autolesão, sentimento crônico de vazio, pavor de ser abandonada, além de terem um sentido da realidade diferente do das outras pessoas. Essas mães esperam, e exigem, que o resto da família aceite e apoie seu ponto de vista acerca de tudo o que ocorre à sua volta. Só ela tem razão, os outros estão sempre errados. Responde com explosões de ira às frustrações e decepções e, quase sempre, acusa os familiares ou parentes de fazerem “pouco caso” dela. É nesse ninho disfuncional que desenvolve o filho, ou filha, destinado a suportar, apaziguar e resolver as misérias e “loucuras” ali exibidas a todo momento. Sua resposta precisa ser rápida e capaz de pôr fim às exigências extravagantes da mãe egocêntrica e possessa. A culpa da vida desestruturada e sem objetivo dos pais é colocada no infeliz e tolerante filho escolhido. Ele é forçado a participar e tomar partido nas brigas tolas dos pais: em qual programa a TV deve estar ligada, ou quanto tempo cada um deve ficar no banheiro. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 19 O filho altruísta, nessas ocasiões, é acusado por ambos de estar tomando o lado de um ou de outro deles. Este sofredor deverá ouvir as histórias chatas dos pais, consolá-los com palavras vazias e adocicadas, franzir a testa e mudar o tom de voz para demonstrar preocupação com as queixas acerca da saúde, da estabilidade e da sobrevivência deles. Como guardião da imagem da família falida, o escolhido, ainda muito cedo, deve se engajar em atividades designadas para eliminar, camuflar ou, no mínimo, diminuir os danos exibidos pela família. Muitos desses pais exigem sua ajuda em situações delicadas como tomar a responsabilidade em falcatruas e obrigar um dos irmãos a tomar decisões cruciais. Geralmente a escolha é feita cedo. Pouco a pouco esse filho passa a exercer o papel de “pai e mãe” da família, participando dos diversos problemas que seriam próprios dos progenitores. Ele opina acerca do que a mãe terá de fazer ao descobrir que o pai tem uma amante, a cuidar do alcoolismo da mãe. Esse papel é exercido com frequência pelas crianças cujas mães são alcoólatras. É esse filho que vai buscar soluções para pagar as dívidas da família, opinar e decidir se os pais devem ou não se separar, ou, ainda, se devem voltar a morar juntos. Alguns pais consultam o filho acerca de terem ou não mais um filho, ou se seria melhor praticar um aborto. Também esse infeliz poderá dizer ao pai, inventando uma mentira, que sua mãe foi fazer compras, quando esta, de fato, estava com o namorado. Muito cedo aprendem a cozinhar, limpar, comprar e cuidar dos irmãos mais novos, inclusive impedindo-os de ver a mãe cambalear ou desmaiar. Fazendo o papel de “mãe” da mãe, elas ajudam-na a comer, fazer sua higiene ou a ir-se deitar. Com o tempo, essa tarefa passa a ser realizada rotineiramente. Além de cuidar dos pais, essa criança mantém em segredo as informações negativas da família. Estas “escolhidas”, olhadas externamente, são elogiadas pelos pais, parentes e amigos, percebidas como perfeitas, cooperativas e “devotadas” aos pais. Isso as anima a continuar nesse caminho ingrato. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 20 A criança escolhida para ser o “provedor”, pode exercer também a função de “esposo substituto” para o cônjuge desesperançado, solitário e infeliz. Caberá a ela fornecer ao cônjuge o apoio emocional e companhia que deveria vir do outro esposo. Para alguns autores essas crianças são vítimas de “incesto emocional”, uma forma séria de abuso por ser a criança seduzida a fazer um papel familiar que não compete a ela e nem é esperado culturalmente. Altamente treinados para esse trabalho de ajuda, mais tarde esses “pacientes” preocupados e sensíveis aos problemas dos outros, não de si mesmo, provavelmente encontrarão outros exploradores e, explorados por esses, irão ocupar posições de responsabilidade, continuando a fazer o que aprenderam precocemente: ajudar as pessoas a qualquer preço. Casam-se, muitas vezes, com mulheres tendo o mesmo perfil de sua mãe e cuidam delas para sempre. Estes santos ou altruístas fanáticos, que viveram orientados pelos problemas alheios e não pelos próprios, morrerão, possivelmente infelizes e arrependidos, por não terem escolhido, há muito, um caminho diferente do trilhado. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 21 Separação e Perícia: Advertências Fim do casamento. O juiz normalmente determina que a guarda dos filhos menores fique sob a responsabilidade da mãe destes. Este modelo de custódia dos filhos tem sido aceito sem maiores discussões, por quase todos os que se separam. Excepcionalmente, alguns cônjuges investem contra essa regra. As alegações, para tentar impedir que o cônjuge “inimigo” fique com a custódia dos filhos, ou até mesmo faça visitas a eles, são as mais diversas. Há outras regras de custódia do filho, entre elas a “custódia compartilhada” recentemente divulgada pela mídia. O advogado, ao ouvir as queixas apaixonadas e agressivas do cliente, imagina ser o outro cônjuge um louco ou crápula. A descrição, fruto de percepções distorcidas, mescladas a fortes emoções, procura criar uma história plausível para impressionar o juiz, o advogado e, por que não, a si mesmo. Espera-se, com a história fantástica, justificar as ações ora adotadas, conquistar a simpatia dos amigos e, se possível, receber uma sentença favorável do juiz. Tenta-se de tudo para alcançar o pretendido, inclusive a destruição, parcial ou total, do ex-amado, que, diga-se de passagem, nada mais é do que o pai ou mãe dos filhos e que será, no futuro, um provável sócio e colaborador na educação destes. Não é raro ver o advogado ficar “decepcionado”, ao conversar com o “monstro”. Por mais que investigue, não descobre o esquisito parceiro descrito pela história contada pelo cliente enfurecido. O advogado, ao relatar a impressão favorável, muitas vezes é dispensado pelo cliente, que imagina: “Foi comprado, ou talvez conquistado?” Outras vezes, afirma: “É fingido, parece anjo, mas na verdade é um demônio… você verá.” O cônjuge, contaminado por emoções violentas e conflitantes, merguVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 22 lhado até a alma nessa briga composta de amor e ódio, tenta destruir o “inimigo” de todas as formas possíveis, acusando-o de louco, impotente ou homossexual. Os insultos, visando a impedir que o acusado tenha direito à guarda dos filhos ou de lhes fazer visitas a esses, não terminam aí. O acusador enfurecido tem outros nomes para seu atual inimigo: alcoólatra, drogado, paranóide, incestuoso, irresponsável, pródigo e agressor físico. Já assisti a tudo, existem outras acusações mais sutis e estranhas, mas as citadas são as mais divulgadas. Os juízes, diante das acusações acima descritas, podem pedir ajuda técnica aos psicólogos e psiquiatras para melhor fundamentarem seus pareceres. Esses profissionais, chamados a opinarem como peritos, são lançados na disputa, devendo julgar se o suposto “paciente” é, na realidade, o que a acusação afirma: um louco ou coisa semelhante. Caso o “defeito” for constatado, o “réu” poderá ficar impedido da guarda dos filhos, de visitá-lo e, até mesmo, de se separar. Recebendo o diagnóstico psiquiátrico, o cônjuge, ao ser denominado “louco” e, consequentemente, estigmatizado pela sociedade, sofrerá as sanções da lei, inclusive, dependendo do rótulo recebido, tornar-se ”incapaz de gerir sua pessoa e seus bens”. Em virtude das consequências sérias para a vida do “acusado”, torna-se obrigatório que os psiquiatras e psicólogos esclareçam aos magistrados, advogados e à opinião pública em geral, sua ignorância e incerteza acerca do comportamento humano e, como consequência, de seus diagnósticos e pareceres feitos com muito amor e dedicação. Só o charlatão, o inculto e o profissional desonesto afirmam ter certeza acerca dos resultados de seus exames. O perito sério e competente não pode simular uma falsa impressão de segurança nos seus achados, pois esta certeza não existe em nenhuma ciência, nem nas chamadas “exatas” – hoje não tão exatas assim – muito menos na área psicológica. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 23 O perito chamado deve verificar, com extremo cuidado – para não piorar o que já se encontra deteriorado – se o examinado tem ou não capacidade para cuidar do filho ou de se separar. Ele é chamado para opinar sobre isto. Sua missão fundamental não é verificar se existe um transtorno e fornecer um rótulo psiquiátrico para o magistrado, mas se o problema – se existente – é crônico ou intermitente, sutil ou óbvio, quais estresses existem e quais podem estar favorecendo o aparecimento do quadro clínico atual, bem como era a personalidade anterior do examinado. Precisa examinar a existência ou não de outros fatores tais como: se ele tem ou não a ajuda de parentes ou amigos, se tem ou não consciência de seus problemas, se ele está seguindo algum tratamento e qual o efeito que a doença tem tido, ou poderá ter, sobre a criança em discussão, se é que possa ter algum. O melhor guia para um comportamento futuro é o comportamento passado do indiciado. Ao verificar a existência de sintomas e sinais é necessário examinar se estes são compreensíveis – adequados – ou não, para a situação vivida. Assim, a Classificação Mundial de Doenças Mentais, o CID 10, e a americana, DSM IV, trazem, como exemplos de grandes estresses, entre outros, a separação conjugal, o afastamento dos filhos, as perdas financeiras, os problemas com a justiça e a mudança de domicílio. Como se vê, todos esses fatores ocorrem, em maior ou em menor grau, durante as separações conjugais. Portanto, qualquer exame psiquiátrico realizado durante essa luta, fatalmente vai detectar sintomas e sinais psicológicos característicos de algumas doenças mentais, que não apareceriam, caso não existissem os problemas que estão sendo vivenciados no momento pelo indivíduo. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 24 A Última Lembrança Eu era ainda criança, quando fui acordado, naquele início de manhã do dia 18 de novembro, pelo ruído preguiçoso e monótono das gotas de chuva que, insistentes, tentavam penetrar através dos vidros da janela. Saí do meu torpor ao perceber que algo de anormal acontecia fora do quarto. Sussurros incompreensíveis alcançaram meus ouvidos. O que estaria acontecendo? Amedrontado e curioso saí rápido do leito buscando uma resposta. Assustei-me! A casa estava cheia de parentes e vizinhos, alguns chorando, abatidos, conversando entre si. Sem ainda decifrar o que se passava, conduziram-me rapidamente ao quarto onde ele estava acamado há meses. Meu dever, naquele momento, era dar-lhe o último adeus, o abraço de despedida. Os outros irmãos já tinham cumprido esse ritual. Confuso, aproximei-me do seu leito e pude observar sua respiração ofegante através das contrações desordenadas e custosas dos músculos do tórax e do pescoço que, teimosamente, tentavam levar ao seu debilitado organismo um pouco de oxigênio. Percebi, com olhos de ternura e pavor, que meu pai estava se acabando. Ele agonizava. No quarto escuro, as janelas fechadas, invadido por pessoas desesperançadas, pairava um terrível silêncio. Colocado diante dele, abraçamo-nos sem nada pronunciarmos. Automaticamente, ele respondeu à minha despedida já com grande dificuldade, colocando seus magros e fracos braços em torno do meu ombro de menino assustado. Sua respiração estava acabando. Meu pai continuou lutando contra a morte até às 15 horas daquele dia. Lá fora, a chuvinha miúda e cansativa transformou-se, repentinamente, numa violenta tempestade. Ventos fortes e nuvens escuras formaram-se. O silêncio existente no quarto foi quebrado quando ele se despedia desse Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 25 mundo. Nesse momento, relâmpagos e trovões explodiram no ar. Em seguida caiu uma pesada chuva, bonita e triste. Emudecido no meu canto, abafado e sozinho no meio da multidão, assistia, pela primeira vez, à morte de alguém. Imaginei que meu pai estava viajando, feliz por ter a companhia da tempestade, que ele tanto amava. A partir daquele momento, minha vida mudaria para sempre sem a sua presença física. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 26 Sociedade: Valores e Cultura Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 27 Desespero do Executivo J.S. Os valores, muitas vezes contraditórios, contidos nas ações e nas ideias das pessoas que nos são simpáticas — nosso grupo de referência — são pouco a pouco assimilados e fixados em nossa mente, passando a constituir nosso sistema de crença. Nossa conduta, no dia-a-dia, é uma procura das metas que satisfazem, a curto ou a longo prazo, valores existentes nesse sistema. Na ilusão de que nossos valores são os certos, tentamos convencer nossos semelhantes a segui-los. Pensando em valores, lembrei-me do meu amigo J. S. e do seu desabafo quando nos encontramos, numa segunda-feira, na porta do Banco do Brasil, na Faculdade de Medicina, encontro que durou mais do que eu esperava. J. S., hoje com 57 anos, é um homem rico, dono de lojas de tecidos em BH, aposentado do Banco do Brasil, bem casado e com cinco filhos, que não lhe dão trabalho. Nascido e criado em Poço dos Perdões, chegou a BH com 18 anos incompletos, ao receber a advertência de seu pai: — Está na hora do filho homem largar a família e viver por conta própria. Seus primeiros dias aqui foram de penúria, tendo passado até fome: entregou marmitas, vendeu jornais, lavou carros. E conta, rindo: — Até gigolô já fui, num período pior… mas por pouco tempo… Pouco a pouco sua sorte foi mudando: entrou como servente do banco, passou para contínuo, caixa, gerente e assim foi subindo. O que nunca lhe faltou foi inteligência, persistência e coragem, e esta ele possui até demais. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 28 Começou a ganhar dinheiro, economizou, empregou o que guardava com sabedoria e casou-se com sua colega de trabalho, que também era poupadora. E tudo foi dando certo. Esse início de vida, entretanto, não foi tão ruim como parece. J. S. “era feliz e não sabia”, como me contou: — Era um homem que sabia o que queria, e, quando tinha dúvidas, estas eram simples e fáceis de solucionar, tais como: sair ou não sair certa noite, colocar os filhos num ou noutro colégio, bater ou não neles para educá-los. É, nessa época eu decidia quase tudo sozinho ou, no máximo, com a colaboração, apenas, de minha mulher. Ao abrir as primeiras lojas, junto com os filhos, começaram as incertezas e seu desespero atual. A princípio, num tom de voz calmo e seguro, contou-me que, à medida que foi enriquecendo, conheceu muito mais pessoas. Participou de encontro de casais e mais tarde coordenou alguns encontros. Entrou para a Associação Comercial, tornando-se um dos diretores. Aceitou, com orgulho, o convite para fazer parte do Lyons Clube e, mais tarde, do Rotary. Tornou-se membro da diretoria da Associação Atlética do Banco do Brasil, frequentando inúmeras reuniões, clubes e festas promovidas por seus diversos amigos e colegas. Hoje, J. S. per tence a mais de vinte diferentes grupos de associações, estando ligado a mais de uma centena de pessoas. Em todos os grupos existem indivíduos que acreditam que certas condutas são corretas e, desse modo, pressionam J. S. a segui-las. Convenceram-no a vestir certas roupas, antes nunca imaginadas, a morar noutro bairro, a frequentar uma igreja diferente, a ir a certas reuniões e não a outras. Quando jovem, J. S. não pedia nem permitia que dessem palpites em sua vida. Naquela época ele conversava mais consigo mesmo, um pouco Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 29 com os amigos do banco e, ocasionalmente, com a sua mulher. Agora, envolvido e comprometido com todas essas pessoas de opiniões diferentes, J. S. confundia-se ao tomar as mais simples decisões. As sugestões sobre o que fazer, diante de qualquer fato trivial, vindas de todos os lados, sufocavam-no. Ele, gesticulando, deixou escapar tal irritação, indicando que algo grave estava acontecendo: — Eu não sabia mais se podia ou não beber cachaça, ou se devia beber somente uísque, qual bairro seria apropriado para morar de acordo com o meu status – eu nem sabia bem qual era meu status – onde deveria passar as férias. Aconselharam-me a comprar uma casa em Guarapari, isso faz muitos anos. Depois disseram-me que lá não era um bom lugar para pessoas do meu porte, e acabei vendendo a de Guarapari e comprando uma outra em Cabo Frio. Mais tarde foi a vez de Búzios, e agora andam falando que o chique é passar as férias em Fernando de Noronha ou na Europa. Não entendo mais nada. — É, a vida é difícil, – respondi sem saber o que dizer. — Mudei, para adaptar-me aos grupos, o meu modo de andar, de falar, de comer, de pentear, enfim, de tudo, tudo mesmo! J. S. deu uma respirada funda, limpou o suor do rosto com as costas da mão e continuou seu desabafo: — Comecei a comer comidas desconhecidas e ruins de gosto: escargot, strudel, fondue, tournedos, em lugar de feijão com arroz, bife e batatas fritas. Aconselharam-me um analista, um famoso da zona sul. Uma vez por semana deito-me num divã e falo para o teto tudo que me vem à cabeça, todas as minhas intimidades, ditas para um homem barbado… não sei para quê. Criticado de um lado e do outro, acabei modificando minhas técnicas sexuais aprendidas na zona boêmia de B H. Ensinaram-me novas maneiras, mais modernas, baseadas nas ideias do casal Master e Johnson, do Relatório Hite, de Albert Ellis, Alex Confort e muitos outros, dezenas deles. E agora… Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 30 A respiração de J. S. estava ofegante. Ele não mais controlava seus pensamentos, que saíam aos borbotões. Pressenti que a sua confissão alcançava o clímax. Ele deu um suspiro profundo, pigarreou, limpou, mais uma vez o suor que escorria pela sua testa e prosseguiu com sua confissão: — Agora… essa está me enlouquecendo. Sugeriram-me que deixe minha mulher – não é a amante, não – é minha esposa, a mãe dos meus filhos, transar com outro homem. Argumentam que isso é avançado e moderno, que só os machistas vão contra isso, por desejarem ser donos das mulheres. J. S., nesse momento, abaixou a cabeça, seus olhos brilhantes fixaram um ponto do chão e assim permaneceu por um longo tempo. Eu, sem saber o que falar, permanecia quieto no meu canto, identificando-me com seu desespero e suas dúvidas, que são as de todos nós. Controlava-me, como podia, para não dar mais um palpite em sua vida já tão cheia de opiniões. Ele estava aprisionado num mundo de valores desencontrados, introduzidos sutil e lentamente. J. S. não conseguia conciliar na sua mente valores tão diversos, alguns oriundos do interior de Minas e outros adquiridos das novelas e dos intelectuais de vanguarda. Eles não se misturavam. J. S. fitava-me, implorando mais um conselho: — O que eu vou fazer? Estou sem saída! Ele olha para mim triste e envergonhado por ter falado tanto, mais do que seu normal, de ter sido fraco conforme seu sistema de crenças. Suspirando fundo, desabafou, despedindo-se: — Tenho pensado até no suicídio. Sinto que não sou mais o mesmo. Não me reconheço. Deixei de ser o J. S. que conhecia e não sou mais Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 31 ninguém. Penso, às vezes, em reconstruir tudo, mas faltam-me forças e liberdade para isso, pois os amigos, sempre vigilantes, não deixam. Gostaria de voltar a ser o que era, largar tudo que criei após minha mocidade, pôr fogo no dinheiro maldito, abandonar os clubes e as associações, bem como os políticos, igrejas e amigos. Assim, teria mais tempo de conversar comigo mesmo, como antigamente, livre de toda essa gente maldita, com seus palpites sobre tudo! Até logo… Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 32 As Mulheres: O Silêncio das Inocentes 2.2 Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; 2.3 Porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja; (…) 2.4 De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos. São Paulo: Efésios, 5: 22 – 24 Infelizmente o apóstolo Paulo continua tendo muitos seguidores. Discursos como os de Paulo encontram-se disseminados nas famílias, escolas, mídias, religiões, artes e leis. Por isso, aprende-se cedo a discutível crença da inferioridade da mulher, uma afirmação sem apoio empírico. Esse tipo de julgamento desvaloriza os papeis, as condutas e o próprio gênero feminino e, uma vez ensinado e aprendido, domina a mente de todos. A separação dos seres humanos em dois grupos, masculino e feminino, por ser um fenômeno complexo, uma vez utilizada, contagia inúmeros aspectos da vida diária. A história do homem tem sido governada por falsas ideias. As ideologias transformam as pessoas em vítimas ou escravas das crenças difundidas. O aprendizado da submissão A criança, após o nascimento, é domesticada pelos sistemas de crenças existentes na cultura onde vive. São os pais que, por sua vez, aprenderam dos seus pais, os transmissores das ideias. Como depositários e difusores dos fundamentos do raciocínio, entre eles, os não-igualitários acerca do sexo, os pais tendem a escolher para suas filhas “meigas”, nomes suaves como Dulce, Cândida ou Felicidade. Para os meninos “rudes”, nomes de sábios, atletas ou artistas: Homero, Romário ou Fernando. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 33 Embora na fase pré-verbal a criança ainda não seja capaz de nomear o próprio sexo, bem como o dos outros, ela aprende a diferenciá-lo, observando as reações e as comunicações afetivas expressadas pelos pais, parentes e outros. Ora eles sorriem, ora fazem comentários de aprovação quando os filhos entram em atividades julgadas adequadas. Ao contrário, exibem emoções indicativas de rejeição, quando as atividades são julgadas impróprias. A atitude dos pais diante dos filhos, sancionando ou reprovando uma ou outra conduta, indicam e prescrevem as condutas desejadas e, junto com o comportamento, as emoções a ele ligadas, agradáveis ou desagradáveis, conforme executam uma ou outra ação. Frases como: “Oh! Há um menino no quarto.”, dita por um pai vendo a filha chutar bola, serve como uma crítica para a menina, indicando-lhe não ser aquele um brinquedo adequado. Outras atividades vão sendo executadas e testadas, gratificadas ou punidas, conforme a categorização cultural e as emoções expressas durante sua realização. Iluminados pelo mesmo simbolismo, os quartos são decorados de forma diversa para um e outro sexo. O menino usará calça azul e a menina vestido rosa. Os cabelos têm também estilos e tamanhos capazes de distinguir um do outro. Aos poucos, o estereótipo é materializado através de ações: brinquedos e materiais educacionais diferenciados. Para os meninos, máquinas, veículos, equipamentos de esporte e para as meninas, bonecas, mamadeiras, itens domésticos e flores. Os presentes “masculinos” devem orientá-los para futuras profissões, os “femininos” destinam-se ao aprendizado de atividades domésticas. A agressão fica bem para meninos, não para meninas e milhares de outras orientações. Mas a construção da mulher não é tecida apenas por diferenças inocentes. A rotulação usada para separar o masculino do feminino carrega, disfarçadamente, significados mais profundos com respeito aos papeis, profissões e habilidades gerais. Cedo, a criança nota que pertencer a um gênero criará grandes diferenças e, para piorar, intimamente enraizado Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 34 ao conceito do permitido e do proibido, a cultura quase sempre enaltece as condutas masculinas e menospreza as femininas. A construção da submissão De todos os lados, sem percebermos, somos bombardeados por condutas-modelos – nítidas e frequentes demais – indicativas da maneira “correta” de se comportar conforme nosso gênero. Esse aprendizado, assimilado sem digerir, ao modelar a personalidade infantil carrega internamente inúmeros e imperceptíveis apelos à ordem masculina/feminina: hipóteses, afirmações e modos de agir. Nas novelas e nas propagandas de TV, os estereótipos existentes afloram a todo momento, quase sempre engrandecendo, sem preocupação pedagógica, os papeis e valores tradicionais existentes na cultura do dia-a-dia. Os homens são mostrados como dirigentes sérios e importantes, bem ajustados, enérgicos, habilidosos e ambiciosos. As mulheres são “usadas”, muitas vezes, para embelezar o ambiente, ou como anfitriãs, apresentadoras, animadoras, sedutoras e emotivas, sempre cuidando de alguém, ocupando posições desvalorizadas socialmente, tais como babás, donas de casa e outras. Junto aos amigos, os estilos de conduta continuam sendo modelados e confirmados. Cada companheiro elogia ou critica o outro ao escolher a atividade apropriada ou inapropriada segundo o credo. Deve ser lembrado que esse grupo não forma um conjunto isolado, pois encontra-se preso aos pais, à Igreja, professores e, principalmente, aos companheiros, isto é, ao grupo de referência. As pregações da Igreja têm sido tradicionalmente marcadas por afirmações indicando uma “enorme diferença entre homens e mulheres”. Além da postura antifeminista explícita – condenação de mulheres por falhas à decência, sobretudo em matéria de trajes – a Igreja tem mantido e divulgado, do alto de sua sabedoria e poder, uma visão negativa acerca das mulheres, da feminilidade e, através dos séculos, tem inculcado, explicitamente uma moral dominada por valores patriarcais. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 35 Um último problema: se, por um lado, algumas ações desempenhadas pelas mulheres são aparentemente aplaudidas e elogiadas, como o trabalho de cozinha, a costura, a limpeza, a maternidade, o ensino ou o secretariado, por outro, mais implicitamente, as mesmas atividades são depreciadas pela voz popular em geral. Nota-se que, nas entrelinhas, aparece um sentimento velado, inconsciente, sugerindo “a menor importância” dessas atividades que são “trabalhos simples” e “pouco significativos.” Entretanto, boa parte das atividades “masculinas” são explicitamente elogiadas, valorizadas e cobiçadas pelo povo em geral: executivos, jogadores, pilotos, banqueiros, gerentes. Processador cognitivo e categorização O processador cognitivo de informações da criança vai sendo construído através do armazenamento de ideias e emoções ligadas aos acontecimentos: não só as experiências diretas vividas, mas também as sensações e observações sentidas acerca das condutas dos pais, amigos, professores, artistas da TV etc. A criança vai aprendendo a categorizar tanto a elas próprias, como também aos outros meninos ou meninas, retendo informações substanciais acerca das peculiaridades e papeis próprios de cada sexo. A partir dessas informações gerais, básicas, ela extrai orientações concretas para sua própria conduta e crítica dos outros. Aos poucos, a criança torna-se apta para deduzir e sentir, através de suas auto-observações e autocríticas, sentimentos de prazer e orgulho, ou de sofrimento e humilhação, por possuir, ou não, esta ou aquela característica. Inexoravelmente ela descobre que os papeis importantes na sociedade estão reservados para os homens, pois é fácil notar que eles são os principais dirigentes políticos, espirituais e financeiros. Além disso, na sua própria casa, quem manda e quem decide, além de ser mais respeitado, inclusive por sua mãe, é seu pai. Grupos Ideológicos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 36 Os principais grupos ideológicos de nossa sociedade, começando com os familiares, cooperam para o mesmo fim: a pregação, explícita e implícita, da inferioridade da mulher. Em todos os lugares, diariamente, as crianças são educadas, treinadas e ajustadas para assimilarem essas crenças delirantes. Os grupos inoculadores de crenças, unidos pelo discurso pró-masculino, fazem parte de uma forte e poderosa rede, avaliando e aprovando as regras da conduta. A obediência à palavra, através dos tempos, tem sido uma tendência natural do homem, tomando o mapa pelo território, a palavra pela coisa, a ideia pela realidade. As ideologias, além de doutrinárias, de explicarem dogmaticamente tudo, também assimilam os fatos observados e mesmo experimentados, fazendo-os desaparecer quando eles poderiam ser úteis para contestar e destruir a fala utilizada. De outro modo, as ideologias, para sobreviverem, precisam rejeitar os fatos. As falsas suposições, ao invadirem a mente humana, contaminam, como um vírus, todo o modo de pensar e de sentir. Do mesmo modo que, para respirarmos, precisamos do oxigênio fornecido pelas plantas, para compreender o ambiente externo e o nosso próprio eu, bem como para prescrever ações e imaginar seus resultados, precisamos de símbolos, ideias e mitos, todos construídos pela cultura. Essa sopa complexa de conceitos, tanto pode fornecer o oxigênio para criarmos ideias adequadas, como também gases tóxicos, tornando-nos incapazes de pensar adequadamente. Nosso espírito acha-se mergulhado nesse caldo espesso. Selecionamos e extraímos dele os significados para avaliar os “fatos do mundo” e, entre outros saberes, as conjeturas do que é, e do que não é, correto e valorizado para as mulheres e homens. Como consequência, nossas interpretações do meio ambiente, nossas decisões do que fazer, querendo ou não, bem ou mal, estão assentadas nas crenças semeadas, aprendidas e cultivadas, com muita fé, pela cultura onde vivemos. Como muito bem alguém se expressou: “E impossível compreender algo que seja exterior e contrário ao tecido da interpretação permitida.” Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 37 As noções transmitidas, ligadas aos fatos vivenciados, uma vez impressas e estruturadas passam a controlar o modo de processar informações focalizadas no momento por cada pessoa. É através dessas hipóteses aprendidas, e não comprovadas, que a mente da mulher julga a si própria, as outras mulheres, os homens e as relações entre eles. Muitas vezes, privadas de outros “programas mentais” diferentes do imprimido, para decifrar o observado, a mulher irá se avaliar – e não poderia ser diferente – conforme regras rígidas e simples armazenadas em sua memória, prontas para serem detonadas: isso é certo, aquilo é errado. A submissão da mulher torna-se, pela educação e condicionamento continuado, não um ato de escolha consciente e livre, mas sim uma obediência às pressões exercidas por forçar internas; um poder inscrito duradouramente sob forma de esquemas de percepções, de disposições, de como admirar, respeitar, amar etc. Em consequência, automaticamente, a pessoa torna-se sensível e reativa, ou insensível e não reativa, a certos eventos. Ela reage prontamente a um ou outro estímulo e não reage a outros. Em qualquer lugar, em qualquer tempo, a mulher – como também o homem – pensa e age comandada pela sua memória autobiográfica. Para alguns, sua consciência, nada mais é do que o aprendido, na maioria das vezes sem o desejar, trilhões de experiências armazenadas e disponíveis são usadas no momento da avaliação e da ação. É mais fácil reagir ou escapar de uma ordem externa, do que libertar-se da “prisão perpétua”, de uma imposição que vem de dentro. Apesar de não existirem escolhas livres, pois só podemos pensar com o que temos internamente, muitos imaginam que agem de uma maneira ou de outra devido à sua “liberdade” de escolha. Nada mais enganador, as bases do raciocínio foram semeadas por mãos alheias apesar de serem percebidas como pressões para agir de um determinado modo. Isso torna extremamente difícil, ou impossível, lutar contra essas ideias espúrias que, uma vez assimiladas e incorporadas em nossa mente, passam a fazer parte da estrutura mental do infectado, levando seu portador a não mais saber qual parte pertence Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 38 ao vírus e qual pertence a ele próprio. O indivíduo contaminado e dominado pelas ideias alheias, passa a defendê-las, identificando-se com a crença do invasor, mesmo quan do os princípios assimilados atuam contra o desenvolvimento de suas potencialidades. De um modo geral, acostumadas desce cedo a conviver com esse sistema assimilador defeituoso, elas tendem a rejeitar possíveis contestações às crenças que habitam sua mente e que as escravizam, bem como toda verificação empírico-lógica apresentada externamente. Entretanto, elas não são totalmente fechadas ao mundo exterior. Têm necessidade de alimentar-se de verificações e confirmações das crenças adquiridas, selecionando somente os elementos ou acontecimentos que as confirmam. Para isso, os eventos são filtrados pelo assimilador mental e cuidadosamente submetidos a uma peneirada, retendo apenas os resíduos possíveis de serem assimilados pelo mapa defeituoso, isto é, os fatos que confirmam a inferioridade. Em consequência, o Eu da pessoa que executa as atividades percebidas pelo sistema de pressupostos da cultura como “inferiores” – funções pouco desejadas e de menor importância social – fatalmente irá se classificar como membro do grupo dos menos capazes, dos rejeitados e sem regalias. A maioria das mulheres, sem nem mesmo atinar para esse aprisionamento claro e visível demais, vasto e duradouro demais, imaginam tudo naturalmente como fazendo parte do gênero feminino biológico como a altura, o tamanho dos músculos, a distribuição de pelos, o tipo de mamas, etc., características físicas sem possibilidade de serem mudadas. Imersa nesse cipoal de conceitos restritivos, a mulher ficou impedida de tentar, ou mesmo imaginar, investir em atividades consideradas apropriadas para os homens. Derrotadas e submissas, muitas vezes acreditando pouco na sua própria capacidade, assim vive a maioria das mulheres desse planeta. Muitas, apesar de degradadas pelas afirmações tendenciosas, continuam defendendo e lutando, até à morte, pelas prerrogativas masculinas que as dominam e as massacram. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 39 A ilusão do privilégio masculino O privilégio masculino não deixa de ser, em parte, enganoso. Os homens, como as mulheres, também estão dominados pelas crenças culturais a respeito do próprio sexo e do das mulheres. As regras de como se comportar pressiona o homem a confirmar, em toda e qual quer circunstância, as prescrições embutidas nas normas existentes a respeito do seu gênero, isto é, de sua virilidade. O “homem verdadeiro”, o macho, é aquele que comporta-se procurando, a todo custo, honrar a masculinidade idealizada pelo grupo de referência pois, só assim, ele alcançará a glória, a distinção entre seus pares e ouvirá o elogio esperado com ansiedade: “este sim, é que é um homem.” A maioria não se apercebe da representação dominante na qual está inserido: ser homem implica uma maneira de andar – como se isso fosse natural – aprumar o corpo, erguer a cabeça, pisar duro, mostrar uma atitude e uma maneira de pensar e agir, bem como possuir uma ética e crença adequada ao seu sexo masculino. A “estrutura masculina” assimilada funciona como uma pressão que impele o homem viril para um destino que ele não escolheu. Este impulso invisível e astuto, sentido como inevitável, obriga seu possuidor a agir, sem raciocinar, conforme os cânones impostos e, uma vez acomodada no ninho propício, transforma-se num ente superior incorporado ao organismo. A ideia-mãe, dando crias, ou seja, formando novas opiniões correlacionadas, funciona como um destino, uma inclinação que deve ser cumprida a qualquer preço. A identidade desejada, inscrita em sua alma, só será alcançada por aquele que obedecer, cega e fielmente, a ordem superior. A submissão à doutrina transforma-se no ideal supremo. O sistema de exigências, torna-se um hábito, comandando a forma de viver da pessoa. Para provar a “masculinidade”, exibir e exercitar o comando interno da virilidade, inúmeros ritos foram instituídos pelo sistema de crenças, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 40 convertendo-se em atos, criando corpo: calouradas bem como outras festividades existentes entre escolares e militares. Estupros coletivos – variante da visita em grupo às casas de prostituição, comuns antigamente, brigas de torcidas, quebra-quebras, pichações em lugares perigosos, esportes de alto risco, assassinatos em defesa da honra, etc. A demonstração de “coragem”, sinalizadora da virilidade, é exigida em diversos grupos masculinos: policiais e forças armadas, principalmente as corporações de elite, bandos de delinquentes, trabalhadores em diversos grupos, etc. Em todos eles, incentiva-se o enfrentamento do perigo e critica-se o uso da prudência. Nesses casos, a bravura e a nobreza somente são admiradas, caso a pessoa enfrente a possibilidade de sofrer acidentes. O que mais chama a atenção em todas essas condutas próprias dos “machos”, é que elas apoiam-se, paradoxalmente, no medo de perder a autoestima e a estima dos outros, caso não consiga, ou não seja capaz, de se comportar conforme as normas impostas. O ato de “coragem” manifesta-se, provocado pelo medo, de ser tachado de covarde, mulherzinha, efeminado ou veado, gerando insegurança na mente do acusado. Portanto, diversas condutas masculinas promovidas para demonstrar “coragem”, assentam-se no receio de ir contra a opinião generalizada do grupo, em ter que agir da forma estabelecida pelo domínio simbólico, pois só assim provará para os outros e será proclamado viril. Agindo de forma diferente poderá ser excluído do mundo dos homens fortes, sem fraquezas, dos chamados de “duros”, como certos assassinos, torturadores, alguns patrões e professores. Ardil para estabilizar a sociedade: Os papéis Para que haja harmonia social, é preciso nivelar, isto é, conduzir para um ponto comum a forma de pensar das pessoas. Para que haja a reprodução da força de trabalho há necessidade, não apenas da reprodução da qualificação profissional, mas também, e ao mesmo tempo, que haja a reprodução da submissão às regras da ordem estabelecida. Não haveria ordem e harmonia nas ações caso não houvesse um entendimento e Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 41 acordo com respeito à ideologia dominante: é preciso que todos compreendem e aceitem, com naturalidade, as informações culturais simples, entre elas quem deve e pode mandar, quem deve e precisa obedecer. Da mesma forma, para que haja “harmonia social” entre os sexos “superior” e o “inferior”, torna-se necessário que os símbolos usados pelo “superior” – manipulador do domínio e da repressão (Estado, Direito e Polícia) possam ser entendidos pelo “inferior” dominado – povo em geral – se possível, com simplicidade e orgulho. É preciso que o discurso não-igualitário, instituído de cima para baixo por um grupo, seja assimilado e entendido pelo outro grupo sem restrições. Somente se a maioria da população for contaminada pela ideologia dominante, adotando-a como fazendo parte do seu ser, haverá paz e só assim será possível a convivência pacífica entre os grupos de cima e os de baixo e vice-versa, fazendo com que cada classe cumpra as tarefas sociais a ela destinada, “livre e conscientemente”. De um lado, o grupo dos dominados, de outro, o dos dominadores e auxiliares do domínio como os administradores, os sacerdotes da ideologia dominante, os promulgadores como os funcionários encarregados da propaganda, etc. Para existir a paz perfeita, todos devem usar, com prazer e naturalidade, a mesma linguagem, concordar com os pontos básicos, para “o bem das pessoa, família, povo, nação e tradição”. Além disso, os pontos contraditórios ou injustos devem ser encobertos e idealizados como benéficos e justos, pois só assim o governo alcançará sua principal meta: manter a ordem social. A ordem social não poderia ser mantida apenas com a divisão simples de um grupo superior e outro inferior. Haveria sublevação da ordem pública, caso existisse apenas a afirmação da inferioridade da mulher. Era preciso criar, além dessa “ordem”, um outro sistema de crenças, circundando o primeiro, para que as mulheres e outros estigmatizados, pudessem, não só aceitar pacificamente seu papel, mas também, “valorizar” a inferioridade. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 42 Com esmero e sabedoria, astutamente foram inventados sistemas de crenças de níveis logicamente mais elevados – que englobam outros – estabelecendo a paz entre “superiores” e “inferiores”. Para isso a sociedade dominante construiu a valorização espectral, fictícia, de atributos e papéis dos dois sexos. Maquiavelicamente, para que certas profissões ou ações pudessem ser seguidas sem revolta, até mesmo com certo orgulho e prazer e, logicamente, não surgisse a baderna, criou-se uma ideia-chave: um novo mito, um novo domínio simbólico, ramo do sistema geral, enfatizando, com muita fé, a valorização de todo e qualquer trabalho, seja lá qual for. Essa ideia, inicialmente absurda, foi sendo divulgada e defendida pelos dirigentes e ouvidas com certa incredulidade por todos. Entretanto, aos poucos, a mentira foi se transformando em “verdade” simbólica, evidentemente, não real. Os órgãos superiores unidos, Estado, Igreja, Lei e Escola, defenderam e exaltaram a “verdade” nascida da ficção: “todo trabalho é nobre”. Aos poucos, o engodo foi crescendo, passando a ter vida própria, dando troncos, ramos e folhas. Bem firme, a ficção foi se tornando cada vez mais verdadeira. Todo trabalho passou a ser elevado, glorificado, todos trabalhadores passaram a ser abençoados por Deus e, como consequência, seu executor passou a sentir orgulho de realizar, para o próprio bem, e principalmente dos Senhores, todo e qualquer trabalho. Não faz muito tempo, o trabalho era visto como penoso e até degradante, principalmente os chamados “trabalhos braçais”. Agora, os tempos mudaram, o trabalho submisso, as profissões penosas e tidas com inferiores, as atividades cansativas e sujas foram adquirindo status de majestosas, ilustres, quase divinas para as classes “humildes” e, desse modo, aceitas com grande orgulho por seus executores. Para atiçar a mente do leitor, repito aqui frases frequentemente repetidas: “O trabalho enobrece o espírito”, “Todo trabalho é nobre e digno”, “Não há diferença entre a atividade do lixeiro e do senador” e diversos outros slogans do mesmo gênero que hipnotizaram todos nós. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 43 Uma vez inventado, imposto e aceito o novo valor supremo, foi possível a criação de diversas outras afirmações derivadas da premissa inicial, tais como: “ser um bom escravo é vantajoso”, “é glorioso servir a um homem importante como o Dr. X”. Ficou fácil, para a maioria das mulheres, ansiosamente buscar, com orgulho, ser uma ótima funcionária de qualquer expoente, carregar às costas uma série de atividades cansativas, trabalhar 30 horas por dia para o bem da empresa, em atividades pouco ou nada valorizadas. A mente do povo, uma vez invadida por esses conceitos, magicamente, por encanto, aquietou-se. A paz reinou nesse mundo de Deus, onde cada um trabalha em louvor à ideia dominante, não em benefício de seu próprio e singular bem-estar. Dominados por essa auréola ofuscante, incapazes de refutá-la, com orgulho repetimos: “Ela largou os estudos e o emprego para poder amamentar o filho.” Cada frase desse tipo não só tranquiliza o agente e executor, como também lhe fornece, muita vezes, uma alegria e orgulho em realizar tarefas quase penosas. Acalma o dominado, adoça a boca do servidor servil. Por outro lado, o dominador, como o pai agressivo, o mau patrão, o professor intolerante, o governo injusto, o ditador assassino, todos esses, em lugar de serem agredidos pelos subordinados, recebem obediência, honrarias, medalhas e gratidão dos dedicados servos, prontos para servir. Contaminado por essas ideias, começo a acreditar que alguns nasceram para mandar e outros para obedecer. Será? Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 44 Duas Classes: Cultos e Incultos A lei proíbe a segregação racial, entretanto a segregação cultural ocorre em todo o mundo e ninguém reclama contra ela. Poucos a percebem, ou talvez não desejem vê-la. Assistimos, continuamente, à formação de grupos segregados quanto ao nível e profundidade dos conhecimen tos adquiridos. Com este desnível, cada grupo apresenta sensibilidade diferente quanto aos estímulos e acontecimentos do mundo. A divisão intelectual separa os indivíduos de forma semelhante à existente com respeito às posses materiais. Para indicar melhor a separação entre as castas, certas cerimônias são usadas pelos diferentes grupos. Alguns realizam reuniões ou festividades semanais ou mensais, fazendo uso de roupas especiais, onde apenas entram os “irmãos”, outros grupos têm sua própria imprensa, jornais e revistas especializadas, sua linguagem e jargões como a Associação Médica, a dos Engenheiros, do Banco do Brasil, dos Gays, das Mulheres Nuas, da Agricultura, etc. Além disso, excursões e passeios são organizados e adaptados para as pessoas do grupo. Até as praias do país tem sido divididas conforme as classes: média, rica, dos artistas e dos farofeiros. Para aumentar ainda mais a separação, cada grupo processa, assimila e expressa as informações do meio através de conhecimentos e raciocínios diferentes. De outro modo, as premissas ou suposições básicas com que um grupo raciocina, bem como as formas de atribuir causalidade aos acontecimentos, diferem frontalmente entre os cultos e incultos. Um pequeno grupo raciocina seguindo as normas da lógica formal, já o grande grupo usa e abusa do antropomorfismo, do animismo e do pensamento mágico para compreender e explicar os acontecimentos. O Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 45 resultado prático disso é que os incultos falham mais nas previsões dos acontecimentos. A “lógica” dos incultos, afastada das regras tradicionais, extrai conclusões esdrúxulas, liga informações que jamais estiveram associadas, como disse minha faxineira: “Maria é esperta, porque nasceu em São Paulo”. No exercício da profissão médica nota-se facilmente essa diferença ao examinar um paciente de um grupo e outro. A maneira de descrever o aparecimento da doença, sua evolução, bem como os possíveis fatores a ela associados, ou seja, suas possíveis “causas”, são descritas de forma totalmente diversa pelos dois grupos. O “diálogo”, quando existe, entre essas diferentes “castas”, é quase impossível, pois um imenso vão os separa. Não há projeto para diminuir essa divisão. Tudo indica que, com o passar do tempo, o espaço entre os dois modos de pensar tende a aumentar. O prejuízo é imenso para todos. Os fatores, econômico e término de curso “superior”, não são os únicos responsáveis pela diferença. Existem pessoas ricas, outras formadas no terceiro grau, que estão culturalmente segregadas, fazendo parte do imenso grupo dos analfabetos ou semianalfabetos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 46 As Constituições que Passei na Vida Nasci em Itabira de Mato Dentro, sendo o décimo primeiro filho de uma família de doze irmãos. Não participei, por conseguinte, da criação, elaboração e discussão do que era certo ou errado: a “Carta Magna” de minha família, a “lei” do permitido e do proibido, do “bom” e do “mau” – já há muito havia sido promulgada, não tendo contado com a minha colaboração. Eu devia respeitá-la, cooperando com o poder que emanava de meu pai e minha mãe. Por ser criança, sem condição física, intelectual ou cultural, tinha de seguir as normas e, se quisesse ser aceito, deveria trabalhar para a manutenção delas. Assim sendo, aprendi que o partido Republicano de Arthur da Silva Bernardes era o certo, e todos os políticos e seguidores daquele partido eram homens bons, honestos, de princípios justos e interessados no bem-estar geral. Aprendi que devia rezar todas as noites três Ave-Marias e três Padre-Nossos e, em momentos de maior perigo, a Salve-Rainha. Devia ir à missa aos domingos, confessar-me pelo menos uma vez ao ano e rezar algumas Ave-Marias extras às três horas da tarde da Sexta-Feira Santa, as quais, uma vez estocadas, seriam de grande valia em momentos de grande aflição. Diga-se de passagem, eu as venho usando atualmente em grande quantidade, pois têm sido frequentes os meus apuros. Felizmente, daquele estoque de preces ainda conto com umas boas reservas. Aprendi que não devia roubar, mas que furtar frutas no quintal do vizinho, quando houvesse abundância delas, era tolerável. Não devia maltratar certos animais, mas podia matar galinhas e sapos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 47 Devia matar, sem piedade, escorpiões, cobras venenosas, marimbondos e mosquitos. Abelhas, não, louva-a-deus e andorinha, nunca. Devia obedecer aos pais, aos professores, assim como ao governo do partido republicano, mas rebelar-me contra o governo de Vargas ou o de Benedito Valadares, pois eles eram errados e maus. Aprendi que, à escola, à missa e ao dentista (não me lembro se ao médico), eu devia ir limpo e calçado. Fora daqueles “templos” eu podia – e até devia – andar descalço para economizar sapatos e usar roupas velhas e estragadas pelos mesmos motivos. Aprendi que, nas refeições, eu podia comer um ovo, um pedaço pequeno de frango e, no pão, deveria pôr pouca manteiga de um lado só do pão. Nunca era permitido jogar comida fora, pois outros meninos não tinham o que comer, logo, isso seria um pecado. Não devia falar mentiras em hipótese nenhuma. Mas essa regra começou a ser burlada ainda cedo, depois que, no grupo “Barão de Macaúbas”, onde estudava, fui obrigado pela professora de Religião a retirar a imagem de Cristo da sala de aula, por não ter ido à missa no domingo e confessado contritamente a minha falta. A partir daí descobri que era menos penoso ir contra o preceito de minha mãe – não mentir – do que suportar o castigo de d. Mercês – expulsar o Cristo da sala de aula quando não fosse à Missa. Aprendi que, sendo homem, não podia chorar, fugir a uma briga, assim como achar outro homem bonito. Aprendi que eu seria o responsável – e ninguém mais – por decisões como beber, fumar, sair de casa, “transar”, escolher uma profissão. O que não podia era ficar sem estudar ou trabalhar. Tornei-me adolescente convivendo intimamente, num time de futebol, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 48 com quase-favelados (naquela época não havia ainda favelas): sapateiros, capinadores de rua, “chapas”, serventes, carvoeiros, alcoólatras e até assaltantes – embora “fichinhas” para a época atual. Seus valores e sua hierarquia – a sua “constituição” – eram-me estranhos, mas interessantes, pela novidade. Suas leis eram outras: defendiam a supremacia do mais forte fisicamente sobre o mais fraco, a masculinidade do que conseguisse tomar mais pinga ou transar com um maior número de prostitutas da rua Guaicurus. Eu era obrigado, às vezes, a fazer algumas concessões às leis desse grupo, outras vezes, às de minha família. Ao mesmo tempo tinha de associá-las no meu eu. Não era fácil: quebrei cabeça para conciliar as duas ordens e sobreviver a ambas. Escapuli desta enrascada não sendo mais fiel a uma do que a outra regra. Iniciei assim a formação de minha individualidade, fruto dessas duas escolas às vezes antagônicas, mas com muitos pontos comuns, como só agora percebo. Estabeleci para mim uma consciência exigente, disciplinada e original, que ia impondo objetivos e promovendo meios de alcançá-los, custasse o que custasse. Tinha que chegar aonde minha mente determinava. Corajosamente, entrei no paraíso selvagem da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Nesse ambiente, que nada tinha a ver com as mesas de boteco da zona boêmia ou com minha casa, utilizavam-se palavras venenosas, porém adocicadas, ditas na maioria das vezes com gentileza hipócrita. Imperava entre os colegas uma competição doentia, “cada um por si”: era a lei da selva. As informações sobre textos e questões de prova eram escondidas a sete chaves por – e para – alguns “iniciados”. Os parentes e amigos dos “poderosos”, alguns poucos escolhidos, eram visível e arrogantemente ajudados, protegidos e elogiados. Nós, participantes da maioria sem poder econômico, de parentesco ou político, éramos rejeitados. Eu não percebia claramente que havia uma Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 49 luta pelo poder e uma tentativa dos seus detentores de não dividi-lo, mantendo-o limitado ao exercício por uma minoria. Era ideia minha que, se seguisse as leis do bom Cristão de Itabira, eu seria tratado com respeito e dignidade na Escola, teria as oportunidades dos outros e talvez pudesse até ser admirado, já que o hábito de obedecer a regras de grupos fazia de mim um aluno cooperativo e ajustado. Mas ali as leis eram muito diferentes e eu é que não sabia disso. Achava que estava participando ativamente de movimentos compatíveis com os altos ideais da Faculdade, mas eu apenas podia votar, ora num, ora noutro candidato, e eram sempre os mesmos relacionados entre a minoria dominante, lutando para preservar ou aumentar os poderes adquiridos. Sonhava que os meus interesses seriam defendidos nas diretorias, mas no fundo eles eram ignorados, pois conflitavam com os interesses dos líderes. Como disse, as normas impostas e garantidas pelos detentores do poder, na Faculdade, diferiam e muito da constituição vigente na família e das do grupo de companheiros. Tendo, por fim, entendido isso, penosa e rebeldemente passei a receber, como um golpe na face, as leis dos médicos. 1º – Nunca se emocione com o sofrimento de seu paciente ou da família dele, para não atrapalhar seu trabalho ou julgamento. 2º – Trate o cliente como paciente. Saúde-o e converse com ele e seus familiares, mantendo distância, pois é ele quem precisa de você: o poder está em suas mãos. 3º – Forme seu grupo, faça parte das associações de classe, senão você estará perdido. Os fortes, além de não o protegerem, poderão destruí-lo. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 50 4º – Use uma expressão, um andar, um vocabulário típico do médico, identifique-se com a classe, perca a espontaneidade, só assim você será entendido pelos seus pares e manterá o poder sobre seu cliente, que se sentirá inferior a você. 5º – Não seja simples: monte um consultório de luxo, em bairro nobre, de preferência com aparelhos sofisticados, mesmo que inúteis, para impressionar, 6º – Peça vários exames, use o mínimo sua própria cabeça para não cansá-la e, se possível, faça diagnósticos complicados para valorizar seu trabalho. 7º – Interne seu paciente psiquiátrico sempre que puder, pois isso dará a você “mais conforto e segurança com menos trabalho”, talvez, até mais dinheiro e mais poder. 8º – Associe-se a algum grupo teórico, de preferência entre os psicanalistas, para com eles se sentir protegido pelo seu poder nos departamentos e diante do público. Através desse grupo, você poderá até receber clientes dos mais poderosos, quando estes os tiverem de sobra. Passou-se o tempo, eu não estava mais muito preso às leis da antiga família itabirana, nem do grupo de esporte e farras, mas também não conseguia compreender muito bem e introjetar as leis da Faculdade de Medicina. E não consigo até hoje. Tornei-me um solitário rebelde, mas, felizmente, sempre tive companheiros que também não comungaram com aquelas diretrizes. Lamentavelmente, um bom número de médicos seguiu e segue a sério tais leis. Confuso, inconformado, buscando um sentido, um poder mais pessoal e não institucional, valores, liberdades individuais e mais espontaneidade, eu ingressei na Faculdade de Filosofia. Ali, nova constituição há muito tinha sido promulgada. Nova reviravolta, tanto nos meus objetivos de Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 51 vida, como nos meios para alcançá-los. Percebi que não há verdades e certezas eternas: tudo o que havia aprendido antes como certo, eram mitos, concepções do mundo. Tornei-me um doido. Percebi a subjetividade da objetividade médica, a defesa constante, por uma parte da classe médica, de valores duvidosos da nossa sociedade, a hipocrisia frequente num discurso médico paternal, protetor, mas cuja intenção é manter seus próprios valores, segundo os quais o paciente deve submeter-se como animal ou coisa ao seu poder. Em resumo, percebi que, na Faculdade de Medicina e na classe médica, uma boa parte de estudantes e profissionais defendem e preservam o conformismo e não as mudanças reais que valorizam o indivíduo como ser único. Você também, prezado leitor, que nasceu na família Silva ou Souza, sabe o que é bom ou mau. Você também está sujeito a centenas ou milhares dessas leis, sem tê-las criado. Elas entraram na sua vida e na sua mente sem serem criticadas ou analisadas: entraram como transe hipnótico. Comece a analisá-las: veja se elas o estão ajudando, ou não, a ver melhor. As que o estão prejudicando-o, jogue-as fora. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 52 A Multidão Solitária Se você não é a favor dessa ideia, lute pela contrária. Assim como os policiais devem combater os criminosos, alguém deve combater os policiais. É preciso proteger as árvores, mas é preciso, também, ter mais empregos e indústrias. Os fiscais devem fiscalizar os preços e nós temos que fiscalizar os fiscais. Devemos ir ao teatro e ao futebol. Mas, e o aborto? Ah! Devemos combatê-lo com rigor, mas precisamos proteger a liberdade e os direitos das mulheres de terem ou não filhos. Como agir? Cada um acha que seu problema é o mais importante. O envolvimento com esses “ideais” fornece ao organismo um bem-estar, pois aumenta os estoques empobrecidos pelas frustrações de substâncias químicas como a serotonina, dopamina, noradrenalina, oxitocina, endorfinas e outros neuropéptides mais, todas substâncias importantes para nosso bem-estar. Devem diminuir os impostos que me atingem e aumentar os dos outros. Precisamos proteger os animais. Coitado deles! Na primeira oportunidade o defensor dessa ideia esmaga uma formiga trabalhadora e séria, aniquila um inocente pernilongo-fêmea que necessita de um pouco de sangue para que sua espécie não desapareça e pisa, sem dó nem piedade, numa barata que passeia calmamente à noite, na cozinha, em busca de uma paquera ou de um jantar de migalhas abandonadas. Combate-se com veemência a matança das raposas que comem as ma gras galinhas do lavrador faminto. Tudo são valores! O que será melhor: comer abóboras ou assistir à ópera, manter as florestas ou aumentar empregos? Essas tomadas de posição por algo têm uma importante função social. Precisamos dessas discussões e devemos tomar parte nelas. Qualquer movimento social seja real ou fictício, importante ou não, agradável ou aversivo, sábio ou idiota, liberta, ainda que por momentos, o indi víduo de seu vazio, de sua depressão, ou melhor, de sua desesperança e Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 53 desamparo com esse mundo confuso. É preciso estar envolvido! O povo procura, fora de si, uma “causa” para ser seguida, por isso são sempre bem-vindas ações governamentais ou não-governamentais para “dis trair o povo”, para promover estoques das benditas substâncias químicas que nos põem alegres e animados, cheios de esperança com respeito a qualquer bobagem. Tudo serve para aliviar o povo do seu desengano, sofrimento e, principalmente, da ausência de objetivos próprios. Mas para conseguirmos um alívio mais eficaz do tédio, precisamos ter companheiros, alguém que tenha a mesma fé, acredite e lute pelos mesmos valores. Ligados a uma causa comum, os seres humanos se sentem satisfeitos, seguros e, quase sempre, entusiasmados com a própria alienação, bem como a dos amigos. Uma multidão perdida, uma vez reunida sob o mesmo guardachuva conceitual, descobre, irmanada, um sentido imaginário e atraente para participar, de braços dados, de qualquer jor nada. Agarrados uns aos outros, como crianças amedrontadas se prendem à saia da mãe, esses indivíduos realizam seus sonhos e esquecem, provisoriamente, da miserável e chata vida do dia-a-dia. Amparados em bandeiras podres, protegidos por venerar os mesmos objetivos duvidosos, excitados e sem refletir, eles planejam, estabelecem e dão sentido a um programa de vida sem sentido. Passam a ter um “ideal” para lutar, brigar e até morrer. Quem ainda não entrou para um grupo desses, não se aflija. Existem vagas em diversos clubes: entre rápido para o fã Clube de Carmen Miranda, colecione “souvenirs” deixados por James Dean, Michael Jackson, participe dos estudos dos Objetos Não-Identificados, frequente o clube dos machões ou das feministas, compre depressa ingressos para o maravilhoso “show” do cantor X, o curso para “Ser Feliz” do Professor Z. Na ausência de tudo disso, faça parte do clube dos amigos de qualquer coisa. O nome não importa. Se este não for seu caso, para o bem de sua saúde mental, comece a comprar. Compre qualquer coisa: um lápis colorido, um Papai Noel, uma boneca, uma cafeteira, uma camisa do seu time ou uma arca enorme para guardar tudo. É tempo de festa. O Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 54 importante é o entusiasmo por algo e, talvez, quanto mais ridículo e estranho, maior efeito terá na produção de energia, de prazer e de alegria de viver. Esse é o mundo sonhado pelo homem moderno que está em construção. Ou será em desconstrução? Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 55 O que Desejam as Pessoas? Muitas pessoas desejam não ser obesas, nem cheirar mal, ter filhos lindos e saudáveis, ter boa saúde, belos dentes e um sorriso bonito. Ter dinheiro, boas roupas, um carro possante, uma casa sem barulho, segura e confortável. Estar cercadas de amigos e familiares, não serem feias, amar e serem amadas, possuir coisas valiosas, ter sucesso na profissão e no casamento. Terem uma autoestima alta, não serem passadas para trás, fazerem viagens maravilhosas e, por fim, terem uma boa velhice e uma morte digna. Mas as pessoas não se preocupam se seu desejo, uma vez realizado, será bom ou não para elas. Nossos desejos estão presos a valores e estes são transmitidos na infância, aprendidos sem critério do meio social ou surgem como reações ao ambiente. As crenças, desejos e os valores passam de uma pessoa à outra, geralmente na infância e adolescência, através do contato e aprendizagem com indivíduos “dignos de crédito”. Cada pessoa, dependendo do seu sistema de valores, de suas premissas básicas, defende com ardor seus desejos. Assim, o “hedonista” valoriza e quer “levar vantagem em tudo”, busca o prazer e foge do sofrimento. O prático, adepto da ética utilitária, dá prioridade ao útil. Os seguido res da ética social afirmarão seguros: “tudo que melhore as condições sociais dos homens deve ser procurado em primeiro lugar”. Os fiéis da ética religiosa evitam os pecados e procuram a conduta virtuosa revelada e prescrita pela religião seguida. Para os “naturalistas”, adeptos da ética do organismo, o bom é ter uma mente sã junto ao corpo forte, bonito e saudável e, assim, devemos fazer exercícios físicos, comer frutas e legumes, evitar bebidas alcoólicas, drogas e o fumo. Os relativistas, em dúvida, pensam: “o critério do que é bom e mau depende do indivíduo e da situação onde se dá o fato, tudo é relativo”. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 56 Os artistas, seguidores dos valores estéticos, exaltam o belo e o sublime e rejeitam o feio e o ridículo. O justiceiro, defensor incansável dos valores do que é certo, luta, com as leis ou as armas, pela justiça e punição dos “culpados”. Os adeptos da política discursam em defesa do poder, do governo e, por fim, os lógicos lutarão pela verdade, a certeza e abominam o raciocínio incongruente ou falso. Existem outros valores defendidos com “unhas e dentes” pelos seus partidários. Todo homem valoriza mais alguma coisa do que outra e pensa que os valores do outro, quando diferentes dos seus, são mesquinhos, idiotas e absurdos. Não existem valores objetivos. Não se pode falar que isto é melhor do que aquilo, ou é “melhor” comer chuchu do que dançar”. Não se pode comparar uma coisa com a outra, quando não há parâmetro para isso. Não há nada que seja bom para todos e mau para todos. Os governantes sofrem por isso. Os moradores da rua Maria de Souza acham que a prefeitura deveria, prioritariamente, calçá-la, mas a comunidade do Bairro Esperança pensa ser “absurdo” não existir uma linha de ônibus para servir a região. Um grupo acha que as árvores devem ser cortadas para a construção de uma fábrica, pois esta gerará mais empregos em Santana da Misericórdia. Mas outros fazem abaixoassinado contra o corte, pois este irá perturbar o equilíbrio ecológico. As nossas instituições sociais não possuem uma maneira fácil ou mágica de tratar os valores antagônicos e múltiplos, como se descreveu acima. Precisamos de empregos e de um bom meio ambiente. As discussões acerca do melhor, para um ou para todos, continuarão eternamente, para alegria dos defensores de qualquer uma dessas ideias. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 57 Dinheiro, Nossa Atual Devoção “Vivemos num tempo em que nossas únicas necessidades são as coisas desnecessárias.” Oscar Wilde Dinheiro, nossa atual devoçãoÉ preciso gastar menos: estamos numa “economia de guerra”. Acabaram-se os nossos míseros reais. Nada de gastos com revistas e livros. Ideias novas são supérfluas, pois já temos as velhas que nos bastam. O nosso cérebro necessita apenas de glicose para manter-se vivo sem entrar em coma, assim ele poderá assistir e apreciar essa tragicomédia econômica que ora nos apresenta. Assistimos, impotentes, à ascensão ao poder de um novo grupo de profissionais, os economistas. Essa nova elite, ao tomar consciência do seu poder, passou a ditar normas acerca de salários, empregos, horários e tudo mais. Por que não dizer, de nossas vidas? Os sábios profetas da economia são muitos. Os jornais e as TVs divulgam a todo momento suas profecias e eles, sem nada cobrar, aconselham-nos a economizar mais, para o sucesso do modelo capitalista “trabalho e produção”. Os economistas conhecem melhor do que nós mesmos o que se deve fazer com o nosso dinheiro, como por exemplo: onde guardá-lo, quando tirá-lo, em que lugar devemos passar nossas férias e se devemos ir de avião, ônibus ou a pé a Itabira ou a Tóquio. Quando devemos nos aposentar ou resgatar o Pis e Pasep, a maneira de alugar um imóvel, quando vender ou comprar ouro e dólar e até se devemos abandonar a profissão de engenheiro, trocando-a pela de florista. Ninguém precisa pensar, menos ainda refletir, pois existem “gênios” que pensam por nós, todos especialistas nisso ou naquilo. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 58 Vivemos a época de ouro da economia. A cada dia, ou talvez a cada hora, são entrevistados luminares nessa ciência e estes descrevem, cada um a seu modo, a situação econômica do País, indicando, de maneira segura, o que deve ser feito para tirar-nos da miséria, da dívida e do caos. Infelizmente, os ministros, assim como os ex-secretários de Estado, só conhecem as soluções econômicas adequadas para o País quando largam os cargos, nunca durante o exercício de suas atividades. Economistas diversos, candidatos a cargos no governo, professores, PhDs diversos e até alguns amadores iniciados no assunto criticam a política econômica com sabedoria. O dinheiro agora é o nosso rei e talvez o nosso Deus, pois foi promovido pelos fabricantes da cultura, de “meio” a “fim”. O dinheiro que era um instrumento utilizado para se alcançar algum objetivo, tornou-se atual sistema de valores sociais, o próprio alvo a ser atingido. Os subprodutos do dinheiro, como os salários, gastos, etc., comandam atualmente nossas ações e intenções. Nós nos preocupamos muito com o prejuízo financeiro de um acidente e pouco, ou quase nada, com o sofrimento das pessoas envolvidas. Mortes de indivíduos são analisadas muitas vezes com respeito ao seguro a ser recebido ou à economia ocorrida com sua morte. Algumas religiões são fundadas em busca de dinheiro, filhos matam os pais para receber a herança e alguns se suicidam porque suas fortunas estão se esvaindo. Assistimos a esse espetáculo com naturalidade, sem espantar-nos, pois estamos julgando os fatos com os mesmos modelos conceituais dos protagonistas das ações. O valor instrumental do dinheiro está ganhando a luta contra todos os outros valores humanos. Poucos atualmente são capazes de apreciar outros valores – uma boa bebida ou comida, um passeio, uma visita – sem imaginar o custo em dinheiro de cada uma dessas ações. Talvez, pior ainda, a maioria das pessoas não consiga bater um bom papo ou amar alguém sem contabilizar os gastos ocorridos durante esse tempo e Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 59 que poderiam ser convertidos em produção e dinheiro, como manda o modelo econômico vigente. Prezado leitor, como psiquiatra que sou, tenho como obsessão a tendência a dar conselhos, e aqui aproveito a oportunidade para opinar contra os conselhos dados por alguns economistas. 1) Ao tomar o seu café sinta o seu paladar, calor e aroma e não pense no preço do pó, da água, da energia e da mão-de-obra. 2) Ao abraçar e beijar o seu amado, ao acariciar os seus cabelos, sinta as sensações provenientes do seu rosto, lábios ou das suas mãos e, pelo menos naquele instante, não pense no dinheiro que está sendo gasto com o batom que desaparece ou com o penteado desfeito, pois, caso tudo dê certo, o que é o esperado, você terá outros ganhos e prazeres, que são para alguns poucos seres humanos mais importantes que o dinheiro guardado no cofre. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 60 Senhores do Poder Certas propagandas sedutoras conseguem fazer com que boa parte da população saia de casa para ver um determinado filme, abandone tudo para assistir a uma novela, tome banho com um certo sabonete durante anos e vista uma calça desconfortável, ou engula um fortificante sem precisar dele. Não é difícil constatar que certas crenças, introduzidas em nossa mente, comandam o nosso comportamento. Alguns homens, por diversos motivos, forçam outros a pensarem de acordo com seus princípios e suas regras. Frequentemente, ideias propostas pelos poderosos se espalham e são incorporadas por um grande número de pessoas, que passam a viver sob o comando dessas crenças, na ilusão de que não há nada melhor para se fazer. Acreditamos e copiamos muito as supostas preferências de pessoas conhecidas, principalmente se são pessoas de prestígio. Assim passamos a usar uma certa bateria em nosso carro, pois o famoso piloto disse que ela é a melhor, jogamos na loteria, pois o jogador de futebol nos incen tivou a comprar o bilhete, passamos a morar num certo bairro, pois o grupo com o qual nos identificamos e ao qual almejamos pertencer, ali reside. Todos nós já sofremos desenganos por aceitar a crença embutida no ditado popular “a voz do povo é a voz de Deus”. E sabemos muito bem, que uma conduta utilizada por muitos não fornece necessariamente informações corretas e garantidas acerca de uma realidade, da mesma forma que um julgamento com o qual a maioria das pessoas está de acordo, nem sempre é digno de confiança e nem ser aceito sem objeções ou dúvidas. Todos nós temos certo receio de pensar de modo diferente de nossos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 61 companheiros e isso nos leva a emitir opiniões quase sempre semelhantes às do nosso grupo. Para complicar nossa submissão às ideias coletivas, há uma tendência universal em ridicularizar os pontos de vista divergentes, ou pensamentos singulares, que são considerados pilhéria, sinal de burrice e até indício de loucura. Uma vez expostas às pressões grupais, as pessoas tendem a pensar e a dar opiniões de maneira convergente, isto é, iguais à de todos. Num clima desses torna-se difícil o aparecimento de novas ideias e novas decisões. Assim o grupo tende a ficar em paz, mas estagnado. Com tristeza lembramos do apoio dado por quase toda a população brasileira ao então candidato à presidência do país, Jânio Quadros, e outros semelhantes. O famigerado plano cruzado também foi amplamente louvado e deu no que deu… e não é difícil para nós lembrarmos situações semelhantes mais recentes. Quem controla ou dirige essas oscilações de opiniões dos grupos ou das populações? Não é difícil perceber, se abrirmos os olhos, que alguns poucos, usando nomes, disfarces, truques e slogans sugestivos, são o sedutores crônicos da população. Eles controlam nosso comportamento e até nosso modo de pensar. De uns tempos para cá um novo grupo vem ganhando notoriedade e poder sobre as nossas ações: os tecnocratas. Este grupo é formado por alguns senhores sisudos, especialistas em técnicas e processos diversos. Eles falam de um modo diferente do nosso e entram em contato com a população através de ordens dadas em forma de portarias e pacotes. Os tecnocratas não bolem apenas na nossa poupança, seu campo é vasto. Através de investigações sigilosas incriminaram alguns banqueiros, colocando-nos contra eles. Até aí nada demais. Depois foi a vez de empresários diversos, logo após atingiram os trabalhadores ligados à economia informal. Mais tarde viraram-se contra alguns médicos do Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 62 serviço público e agora, numa grande jogada, acionaram suas garras para atingir milhares de funcionários públicos federais. Quem será o próximo a ser atingido, ninguém pode adivinhar, mas suponho que seremos todos nós. Muitos escaparam, mas possivelmente por pouco tempo. Os tecnocratas conhecem, mais do que ninguém, o nosso ponto vulnerável ou pelo menos a nossa intenção muito escon dida de, a qualquer momento, fazer uma trapaça contra o honesto governo. Os tecnocratas são nossos senhores e deles podemos esperar apenas misericórdia. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 63 Os Narcisistas Modernos Conta-nos o mito que quando a ninfa Eco, terrivelmente apaixonada por Narciso, correu para junto dele para abraçá-lo, este, repelindo-a, lhe disse: “Afasta-te, prefiro morrer a te deixar possuir-me”. Narciso, tendo desprezado todas as ninfas como havia repelido a ninfa Eco, não ama va ninguém. Porém, um dia, a deusa da vingança cedeu a um pedido de uma ninfa mal-amada fazendo com que Narciso se apaixonasse por si mesmo. Narciso, uma vez sob o encanto da deusa, foi seduzido por sua própria beleza ao ver sua imagem refletida na água. Enfeitiçado, todas as vezes que Narciso tentava abraçar e beijar sua própria imagem, esta desaparecia na água. A lenda termina com a morte de Narciso consumido pela sua paixão. Esta é a história do antigo Narciso. Os narcisistas modernos agem diferentemente. Eles cresceram em número, tanto assim que a Classificação Internacional de Doenças Mentais (CID 10) reservou um lugar especial para eles: “Transtorno da Personalidade Narcisista”. Veja como ele foi descrito no CID 10: “o indivíduo apresenta um sentimento grandiloquente de sua própria importância ou do seu caráter excepcional; preocupação com fantasias de êxito ilimitado; necessidade exibicionista de atenção e de admiração constantes; respostas caracte rísticas às ameaças à sua autoestima; e perturbações no relacionamento interpessoal, como sentimento de “ter direito” a exploração inter-pessoal e ausência de empatia”. O leitor atento identificará, entre amigos e inimigos, artistas, atletas, políticos e outros, os novos narcisistas. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 64 As realizações dos narcisistas tendem a ser valorizadas irrealisticamente nas áreas de poder, riqueza, fama e beleza. O narcisista tenta de fato alcançar tais objetivos, mas isso é feito de modo forçado e destituído de prazer, com uma ambição que não pode ser satisfeita. No Brasil eles são encontrados nas favelas, prisões, mansões e, com alguma frequência, nos palácios. A forma da expressão de orgulho por si mesmo é que varia de acordo com o grupo social ao qual o narcisista pertence. A artista de TV narcisista, feia, inculta e burra fala acerca de sua beleza, de seus dotes literários, de suas idéias políticas e do seu comportamento sexual. Recebemos deles, gratuitamente, lições do seu modo particular de encarar a realidade, que é tida, orgulhosamente, como certa. O narcisista supõe ser ele capaz de fazer e pensar adequadamente a respeito de tudo. Se ele foi bom letrista de música, poderá ser um bom ministro, se foi professor, poderá desempenhar bem o papel de governante, se é piloto, poderá ser bom garoto propaganda, se é político, lo gicamente, poderá ser…, sei lá, qualquer coisa! Na plateia, certo público cativo bate palmas, urra deslumbrado e entusiasmado com as proezas de seu ídolo. Entretanto, outros se irritam, xingam e jogam pedras ao se sentirem impotentes diante de seu poder. A maioria, entediada, percebe a fragilidade do narcisista escondida por trás de sua máscara arrogante e prepotente e, indiferente às suas palavras vazias, espera, alguns até oram, para que um dia cada narcisista siga o exemplo do antigo Narciso do mito e acabe consumido pela sua paixão e não mais tome nosso precioso tempo com suas chatices e gabarolices. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 65 Os Novos Deuses O Deus primeiro e único não tem cara fechada, não sorri, não tem iate, não tem salário, não agride e nem tem voz. Os novos deuses falam, gesticulam, transam, namoram até pessoas do outro sexo, alguns cantam, outros jogam e outros correm velozmente. Muitos ganham por mês mais do que um operário ganha em toda sua vida de trabalho. Todos os deuses são lindos, maravilhosos, ricos e jovens, conforme a avaliação dos seus seguidores. Eles são adorados pelos seus fiéis seguidores, intocáveis e respeitados pela mídia, governo e população em geral. Os novos deuses são, graças a Deus, efêmeros. Somente alguns permanecem reinando por um tempo mais longo. Cada um dos deuses tem suas peculiaridades, entretanto eles apresentam uma estrutura comum que os iguala e os identifica como produtos de uma sociedade esquisita. Assim é que eles sempre falam acerca de contratos novos, do próximo adversário que deve ser respeitado no campo, sobre os novos lançamentos, as novas representações nos palcos ou nas TVs, onde a atual é sempre superior às anteriores e mais adaptadas à sua personalidade. Outros falam sobre seu novo disco. Mas há algo mais ainda que os une. Todos, sem exceção, adoram contar a sua vida. Estas são geralmente lindas, sofridas, cheia de coisas interessantes. Eles todos, diferentes dos outros moradores desse mundo, alcançaram a fama através de “muito esforço e trabalho duro”. Todos, bondosamente, ensinam o que aprenderam aos seus admiradores. Expressam seus valores e normas de vida para a população e sobretudo sempre com alta sabedoria e segurança. Ora o discurso é acerca do seu casamento exemplar, ora da melhor maneira de transar e o melhor local para isso. Nunca faltam instruções minuciosas a respeito de como alcanVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 66 çar a felicidade, viver uma boa vida, conquistar amigos, ter fortunas e a melhor religião a ser seguida. Em resumo, eles sabem mais do que nós mesmos o que devemos fazer para sermos felizes. A maioria da população escuta atentamente cada frase de seus deuses, se compraz e se embriaga na sua sabedoria fácil. Os novos deuses não precisam estudar para conhecer, pois, privilegiados e iluminados que são, tornaram-se sábios através de revelações milagrosas. Eles são procurados, entrevistados, observados e seguidos continuamente. Os adoradores dos deuses sabem tudo acerca deles. Comentam emocionados a troca da namorada, que sempre é uma deusa ou deus, seu novo contrato, sua doença, seu filho que nasceu e assim por diante. Todas as notícias sobre os deuses são lidas ou escutadas com mais interesse do que as noticias chatas e conhecidas que ocorrem dentro de nossa própria família, como o desemprego do pai, a morte do irmão, a separação do avô. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 67 Informação e Linguagem Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 68 “Gays”, Loucos, Ateus e Velhos O leitor poderá pensar que não há relação entre os conceitos acima citados. Há sim. Todos são pessoas estigmatizadas pela nossa sociedade. Poderíamos acrescentar outros: os negros, altos, obesos, paraplégicos, aidéticos, leprosos, carecas, baixinhos e muitos outros. Os gregos criaram o termo “estigma” para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou de ruim nos seus possuidores. Os sinais mostravam que o portador era um escravo, um criminoso ou um traidor. Uma vez portador do sinal, esta pessoa deveria ser evitada, principalmente nos locais públicos, pelos não-possuidores dos sinais. Hoje as “marcas” dos estigmatizados têm outros simbolismos. Os homens sempre classificaram os objetos, os animais ou eles próprios. Ao categorizar, imaginamos estar reunindo indivíduos ou coisas semelhantes e assim classificamos o cão, o homem, a pedra, a pulga e o pássaro. Para reunirmos tudo num grupo, isolamos uma ou mais características dos sujeitos observados – sem valorizar outros – e acreditamos que as características enfatizadas indicam a semelhança. Assim feito, damos certos nomes para os membros reunidos e passamos a imaginá-los como semelhantes e os tratamos como tais. Portanto, estigmatizar nada mais é do que classificar pessoas, selecionar certas semelhanças entre elas. Entretanto, é diferente das classificações neutras, ao imaginarmos que os indivíduos selecionados (obesos, carecas, idosos, negros, etc.) são piores do que os selecionadores. É diferente das classificações científicas, pois aqui identificamos um atributo que é imaginado pelo rotulador como negativo. Os cientistas não desvalorizam uma pedra por ter ou não certa dureza, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 69 cor ou brilho. Entretanto, os preconceituosos ou estigmatizadores percebem a gordura em excesso, a cor da pele, a orientação sexual, a idade ou crença religiosa como negativa, ruim, não-desejada ou não-estimada. Uma vez inventado o perfil do estigmatizado, o rotulador imagina ser ele, por não possuir o fator depreciado, melhor do que a outra pessoa. Tudo muito simples. Existem vários estigmas como os físicos (cegos, surdos, paraplégicos, etc.), de comportamento (fraco, desonesto, louco, drogado, desempregado, homossexual, político radical) e ainda de raça, nação e religião. Os estigmatizados, conforme o dogma dos preconceituosos, carregam traços negativos estimuladores de sua atenção. Uma vez elaborada a classificação, o classificador não mais valoriza, ou não percebe, os outros atributos da pessoa que iriam invalidar a classificação feita. Para dar uma falsa credibilidade às ideias tendenciosas, os pre conceituosos, demagogicamente, constroem uma teoria ou ideologia tentando dar suporte ou explicar a “inferioridade” do estigmatizado e, além disso, alertar as pessoas contra o perigo do contato com estes: “É um louco. E os loucos são perigosos, pois não sabem o que fazem. Conheço um que matou seu pai”. “É um negro, eles são preguiçosos por natureza”. “É ateu. Os que não acreditam em Deus, têm ideias estranhas. Para eles tudo é normal, pois não temem nada”. Essas pseudoteorias, passadas de boca em boca, lamentavelmente são aceitas, compartilhadas e tidas como verdadeiras por uma grande parte da população. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 70 Televisão e Burrice Muitos pensam que alguns programas da televisão tornam as pessoas idiotas. Nada mais errado. A TV jamais conseguiu transformar um cão, uma pulga, uma pedra ou até mesmo um cavalo num burro. Também não imbecilizou quem não a vê. Para que um evento como esse aconteça, é necessário que certos comportamentos existam nos dois lados. Sempre há necessidade de um certo compromisso entre as duas partes envolvidas, para que a consequência ocorra. Em outras palavras, para que haja o emburrecimento do telespectador, é necessário que haja também uma prontidão, talvez um desejo do telespectador para facilitar a tarefa da TV. Não é possível o poder ser exercido através apenas de um lado, isto é, da TV. Por outro lado, também sempre se acreditou que os meios de comunicação, principalmente a TV, têm servido de instrumento de domínio político. Antigamente acusaram certos livros como perigosos. A idéia do efeito negativo da TV sobre a mente pressupõe a existência de um telespectador de mente vazia, um folha de papel em branco, à mercê do poder da TV. Esta ideia é falsa. A “página” que assiste TV já foi marcada ou rascunhada muito antes. Alguns falam que a TV difunde opiniões e anúncios enganadores e, por isso mesmo, gera uma consciência falsa. Os defensores da mente dos telespectadores acreditam que a TV, ao criar um deslumbramento na pessoa, penetra subtilmente na mente do distraído telespectador e aí coloca o que quiser. Ora, não é bem assim. Como é sabido, durante a história do homem, os pais, a igreja, os professores, os companheiros e outros educadores difundiram condutas, ideias e princípios na mente dos educandos, desde o nascimento. Muitos desVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 71 ses fundamentos, que são falsos, apesar disso continuam a ser ensinados como certos. São estes princípios que formam a base da mente que permitem a entrada, a aceitação e a assimilação das informações vindas de fora, da TV, supostamente novas. Sem esta base adquirida geralmente no meio familiar e dos companheiros, a informação “nociva” fatalmente seria rejeitada. Não é fácil para ninguém se livrar de ideias errôneas postas cedo na vida, mesmo quando elas trazem sofrimento para seu possuidor. A ideia do poder da TV sobre as pessoas utiliza um fundamento equivocado. Acreditou-se que o ser humano é passivo, e não ativo, diante dos estímulos do meio, e que esses atingem uma mente sem nada. Na verdade, nossa mente filtra e seleciona nossas percepções. Todos teles pectadores, sem exceção, têm uma participação ativa na escolha e na interpretação do que é transmitido. Em outras palavras, a “vítima”, o telespectador, antes de ligar o aparelho de TV, já tem sua mente pronta para receber as informações carregadas de mitos, crendices, desejos e sonhos. Qualquer pessoa tem ideias e especulações mais ou menos adequadas acerca do início do mundo, do que as pessoas estão fazendo aqui, do amor, da justiça, das relações entre as pessoas, da honestidade, etc. Junto a estas diversas suposições, ajuntam-se outras crenças: dos poderes mágicos dos cristais, duendes, gnomos, santos, espíritos, almas de outro mundo e outros habitantes fantasmagóricos que estão inculcados nas mentes confusas. Numa cabeça assim, previamente bem preparada pela educação, fundamentada numa visão de um mundo mágico, não fica difícil, para os embusteiros e charlatães, introduzir novelas e programas de mau gosto, discursos políticos idiotas, conselhos enganadores, condutas e tra tamentos estranhos ou qualquer outro programa absurdamente estranho e grosseiro. As televisões que mostram essas programações trabalham de mãos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 72 dadas com essas cabeças modeladas pelos pais ou outros educadores. Só assim elas são capazes de assimilar e apreciar as bobagens ali mostradas. A TV, portanto, nada mais faz do que manter o que foi plantado antes. Ela nada acrescenta ou modifica à mente da maioria dos seus usuários. Seus programas são preparados, para manter como estão, as ideias e ilusões existentes na mente do pobre telespectador. Esses encantamentos são oferecidos não só pelas TVs, mas também por outros usuários da ingenuidade humana, dos atraídos pelo mágico. Livros, geralmente os mais vendidos, relatam métodos fáceis de viver melhor, horóscopos nos mostram o futuro, talismãs nos protegem, fórmulas fáceis são oferecidas para tornarem bonitos os feios, terapias espetaculares são oferecidas para esses consumidores de sonhos. Ora, no meio de tanta fantasia (burrice), fica fácil a TV introduzir seus produtos: “o sabor que refresca”, “torne sua pele natural” e muito mais… Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 73 A Verdade de Cada Um A conduta do homem é determinada pelo que ele pensa, acredita, representa e prevê. Através do trabalho cognitivo, ele tenta construir para si um mundo significativo e, para isso, ele classifica e ordena uma multidão de fatos, de objetos e de pessoas, que julga conhecer em detalhes. Os acontecimentos estão constantemente ocorrendo em torno de nós e são ordenados de acordo com diferentes concepções ou interpretações. Somos nós, conforme nosso próprio modelo mental, que organizamos, em nosso pensamento, certos acontecimentos e não outros, enfatizando alguns deles, valorizando uns mais do que os demais e criando assim sentido para fatos não organizados e sem significado. Nunca chegamos a captar a verdade “verdadeira”, pois ela é realmente criada de acordo com o momento que estamos vivendo, adequada àquela situação particular. Com frequência, acreditamos estar de posse da verdade ao percebermos certa relação prática e funcional entre os nossos desejos e esperanças e os resultados aparentes de nossas ações. Ao estabelecermos apenas uma concepção da realidade caótica, eliminamos várias outras interpretações possíveis, e ficamos convencidos ser a nossa análise a única aceitável ou correta. Vejamos alguns exemplos: um garoto residindo na zona rural criou um modelo de diversão a partir de uma bola, um cão e algumas brincadeiras existentes em sua cidade. Um dia ele veio passear em BH e visitou um parque de diversões. Provavelmente ficou boquiaberto, confuso ao ver tanto brinquedo desconhecido. Ora, o “deslumbramento” seria o oposto caso o menino estivesse acostumado a visitar a Disney World. Um segundo exemplo: uma adolescente de 15 anos conquista o seu primeiro namorado, um imberbe de 16 anos. Fica encantada com suas declarações de amor, com sua técnica eficiente de abraçá-la e beijá-la. Posteriormente, conhece um rapaz treinado nessa Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 74 arte com esmero. A mocinha passa a ter um novo modelo, uma nova “verdade” do que seria um “bom” namorado e reformulará o seu julgamento inicial. O amigo leitor poderá lembrar-se de vários exemplos pessoais: suas preferências culinárias antigas e as de hoje. Suas escolhas passadas e as atuais quanto a música, passeios, política, literatura, programas de TV, futebol, etc. A sua concepção do mundo, com a idade tornou-se diferen te, seu “mapa mental”, ainda que vivendo num “território” muito semelhante ao antigo, não é mais o mesmo. Agora, possuindo novos valores, você percebe acontecimentos não antes notados, representa fatos ao seu redor de maneira diferente. “Enxerga” o mundo com outros “olhos”. Muitos se contentam com uma “verdade” única, se agarram a ela e nunca a abandonam, evitando, a qualquer preço, o seu questionamento e, também, a dúvida e a incerteza que outras ideias poderiam trazer. Esses fanáticos querem manter, a todo custo, uma segurança impossível de ser conseguida nos seres humanos. As primeiras “verdades” com as quais convivemos não são concepções nossas, mas sim dos nossos educadores: pais, professores, companheiros e outros. Elas nos são transmitidas, na maioria das vezes, de maneira simples, ingênua e até mesmo tola. Uma vez inculcadas essas “verdades”, elas nos darão uma representação do mundo semelhante à dos nossos educadores. As novas informações que nos chegam posteriormente, com frequência vêm fortalecer as ideias primitivas, pois o comum é convivermos com pessoas que pensam de modo semelhante ao nosso, lermos livros previamente censurados e assim por diante. Psicologicamente é mais fácil manter as verdades iniciais, pois assim não temos que repensar, jogar por terra crenças queridas e familiares, o que nos obrigaria a reformular nossa conduta ao criarmos novos modelos mentais. Não é fácil trocar a verdade “minha mãe sempre me amou”, por “minha mãe, que frequentemente me odiaVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 75 va” ou “minha namorada só se encontra comigo” pela nova concepção “minha namorada está me traindo com outro”. Muitas vezes, apesar de todas as evidências, continuamos a adotar a crença inicial. Quase sempre só com algum sofrimento, até mesmo com algum sentimento de culpa, é que conseguimos mudar as “verdades” iniciais, principalmente quando as novas são totalmente diferentes das antigas. O homem é um inventor de verdades, um conceptualizador de acontecimentos, um representador de uma realidade que ele nem sabe quanto de real ela tem. E como se dá essa invenção? Por capricho, raciocínio ou pressão dos fatos? Ainda não possuo essa verdade, mas gostaria muito de tê-la. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 76 Transtorno Médico-Psiquiátrico ou Ficção? Numa manhã quente de quarta-feira atendi em meu consultório um rapaz de quinze anos. Este, segundo seus pais, há cerca de um ano começou a ficar “esquisito”. Seu comportamento tornou-se diferente do que era na escola e em casa, não mais conseguindo estudar ou se divertir como antes. Começou a falar coisas desconexas e, às vezes, a fazer perguntas estranhas, dormindo mal, não terminando o que começava, tendo ações incompreensíveis como chorar e, de repente, muitas vezes, ficando agitado. Eu, como psiquiatra, examinei o paciente de acordo com o que aprendi como médico, ou seja, olhando um aspecto do universo comportamental: a conduta diferente das usuais. Examinei-o com minha “luneta” médica, focalizei certas características do comportamento e deixei de lado milhares de outras. Orientado por pistas que intencionalmente procurava – conforme as teorias que me vieram à mente – rotulei o rapaz de “doente mental”, mais especificamente portador de um transtorno denominado “esquizofrenia hebefrênica”. Na entrevista com os pais, esses contaram-me, entre outros fatos, que uma psicóloga lhes disse que o rapaz era “normal”, que ele nada tinha de “errado” em sua conduta. Fica a pergunta: Como eu e a psicóloga “enxergamos” e categorizamos um “mesmo evento” de forma tão diferente? Uma conduta desajustada pode ser percebida de diversas formas por diferentes observadores, inclusive pelo observador possuidor do transtorno. Existem várias maneiras de classificar um fenômeno psicossocial, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 77 diferentes modos de perceber as relações entre um fato e outro que emergem da conduta da pessoa. Cada maneira de simbolizar tem seus seguidores. A cultura fornece, a cada um dos seus membros, referências variadas capazes de assimilar o evento dos mais diversos modos. Na maneira de ver do psiquiatra, isto é, a conduta vista como fenômeno médico, as variantes do comportamento são analisadas, apoiadas em determinados pressupostos aceitos como “realidades” entre o modo de ver médico: o indivíduo está sofrendo e está agindo disfuncionalmente, isto é, em desacordo ao esperado pelo grupo sociocultural do qual faz parte. Para explicar ou entender qualquer conduta “normal” ou “anormal”, o “rotulador”, profissional ou amador, terá que utilizar-se de um certo padrão (esquema ou modelo) que, uma vez ligado ao fenômeno observado, fornecer-lhe-á um significado ou uma compreensão. Este modelo forçosamente terá que existir previamente na mente do rotulador, fazer parte de seu conhecimento, não só estar armazenado na sua memória, mas, principalmente, estar disponível, consciente no momento, pronto para ser usado. A não existência do conhecimento que servirá de base para ser checado com o fenômeno, fornecendo-lhe a compreensão, também, a não exibição à consciência, impedirá a associação do conhecimento anterior assimilador com o fato que está sendo observado para ser entendido. Para que uma pessoa se sinta mais segura com respeito às suas interpretações é necessário que, pelo menos parte de seu grupo de referência, profissional ou cultural, defenda e siga os mesmos pressupostos teóricos, ou seja, tenha os mesmos conhecimentos assimiladores. Ora, como sou médico, sigo as ideias compartilhadas pela maioria da comunidade científica médica psiquiatra, pois identifico-me com elas. Voltando ao paciente: foi apoiado nesses meus “óculos”, que são os usados pelo grupo do qual faço parte, que examinei a conduta do rapaz, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 78 comparando-a, primeiramente, com a conduta “normal” – um paradigma vago acerca de um grupo, o dos adolescentes masculinos. Pos teriormente confrontei seu próprio comportamento anterior, de acordo com o relato dos pais, com a conduta atual diante de mim e conforme os relatos. Para o modelo que me esforço para seguir, o médico-psicológico, este rapaz, aqui denominado de “cliente”, distanciava-se dos padrões mencionados, não só dos adolescentes, como também de sua própria conduta anterior. Uma vez constatada a existência de anomalias na conduta – sintomas e sinais próprios de um desvio comportamental – foi procurado, no subsistema de conhecimento médico-psiquiátrico, um conceito – aqui chamado de “diagnóstico”, conforme a classificação internacional de doenças mentais – capaz de englobar essas condutas “anormais” do rapaz de maneira simplificada, fácil de ser comunicada para mim mesmo ou para outros. Foi então utilizado um símbolo verbal simples, unificador, uma abstração dos fatos concretos observados no paciente ou inferidos através dos relatos dos familiares. A classificação, estabelecida por um grupo de psiquiatras ilustres de todo o mundo, serve como orientação para o estabelecimento dos diagnósticos psiquiátricos para fins oficiais, de pesquisa e para orientar o tratamento, inclusive para verificar, conforme a evolução do paciente, se ele está mais próximo do “certo”, ou do “errado”. Normalmente o observador que percebe ou examina a conduta, nesse caso particular um médico assistindo a um paciente, acredita que o observado é “real”. Essa crença apoia-se em pressupostos encaixados na doutrina do realismo filosófico: o que observo com meus órgãos dos sentidos tem existência fora da minha mente, tal como percebo. Sabemos que esta postura recebe, com muita razão, severas críticas de outras escolas filosóficas. Todas as nossas percepções são guiadas ou dirigidas pelas ideias ou premissas que estão armazenadas em nossa mente. Ora, essas ideias básicas ou princípios são geralmente adquiridos muito cedo. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 79 Uma vez armazenadas, essas idéias básicas não são lembradas como foram adquiridas e também não temos acesso a elas diretamente, como através da introspecção ou de reflexões. Sabe-se que uma grande parte de nossos pressupostos, valores morais, etc. são adquiridos, para alguns, antes dos três anos, para outros, os julgamentos morais seriam aprendidos na adolescência. Agimos automaticamente usando esses pressupostos- chaves, sem conseguir criticá-los através de nossos esforços conscientes. Entretanto, são dessas premissas-conceitos não-visíveis que extraímos nossas associações entre os fatos – funcionam como elos teóricos encarregados de reunir os eventos que observo ou que desejo compreender. Desse modo, o percebido passa a formar um conjunto harmônico e estruturado, fornecendo ao observador algum sentido para ele, que é dado pelo elo dos pressupostos. Portanto, em resumo: não se podem extrair conclusões, sem existirem premissas. Nosso raciocínio funciona após ter recebido um conjunto adequado de informações iniciais, ou seja, de princípios. De posse de certas premissas, os “eventos observados” são interpretados – ligados uns aos outros – sempre através dos pressupostos básicos que utilizamos. Desse modo é formada uma “rede” onde outros dados podem, ou não, fazer parte. Portanto, a razão é totalmente instrumental – trabalha através dos fundamentos aceitos – ela não nos dá garantia de estarmos certos ou errados, bem como não indica onde vamos chegar. Podemos supor que certas experiências perceptivas são diretamente acessíveis a um observador. Entretanto, as proposições de observações, unindo os perceptos, nunca são percebidas, elas existem – já foram “plantadas” em nossa mente antes da observação. Devemos ter consciência de que percebemos as “coisas”, ou os “fatos”, sempre nos apoiando nelas. Nós, os psiquiatras, na impossibilidade de termos um instrumental mais sofisticado para observarmos, continuamos a usar esse expediente para Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 80 fazer nossos diagnósticos clínicos, isto é, a linguagem do dia-a-dia para os fatos e a classificação das doença mentais. Não temos outro mais confiável até agora, esses são nossos instrumentos de observação. Essa ferramenta interpretativa, formulada por um grupo de psiquiatras, corrigida de tempos em tempos, parece-me menos defeituosa do que se cada um, em cada momento, usasse sua própria ferramenta, carregada de “pré-conceitos” científicos, acreditando, com muita fé, que está tendo “percepções imaculadas”, crença comum existente no “realismo ingênuo”. Não temos outra saída. Para a “luneta” ou observações do psiquiatra, os vários modos de agir do rapaz são denominados sintomas e sinais, exibidos pelo paciente, e que têm sua origem na psique (cérebro/mente) da pessoa. Nessa localizam-se os fatores determinantes responsáveis pelas anomalias comportamentais percebidas: tipo de conduta observada, processos fisiológicos associados e somatizações, mudanças na cognição, na emoção e na conduta simbólica e, além disso, inventamos certos fatores que chamamos de “traços” como determinantes, desde cedo, por certo tipo de comportamento. Entretanto, há observadores não-médicos que usam “óculos” diferentes dos psiquiatras. Eles têm outras premissas básicas, usam outras lentes. Esses não só observarão condutas diferentes, como também enfatizarão algumas delas como mais importantes – prioritárias – para manter sua ideia do mundo ou da sua cosmologia. Fatalmente não darão importância às outras condutas ou outros fatos que são “valorizados” pelo psiquiatra. Para alguns psicólogos, certos religiosos e espíritas, o que o psiquiatra denomina de “transtorno psiquiátrico” pode não ser uma disfunção mental e não ter nada a ver com o cérebro/mente. Eles entendem e explicam o transtorno mental descrito por nós conforme as teorias orientadoras subjacentes existentes em suas mentes. Raciocinarão com conceitos e teorias bastante diferentes das usadas pelos médico acerca do fato, de sua evolução e, principalmente, das possíveis “causas” de Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 81 sencadeadoras do fenômeno que está sendo examinado. Por fim, esses valorizarão a conduta de forma diversa do psiquiatra. O que para esse é uma “doença”, para o espírita ou religioso pode ser, por exemplo, uma “possessão”, um “encosto” ou até mesmo uma “revelação”. Uma psicóloga pode chamar esse quadro de “carência afetiva”, “problemas de adolescente”, “ego fraco” ou outro nome semelhante. Além disso, não devemos nos esquecer que observamos um “cliente”, ou qualquer outro nome que se queira dar, num certo momento, diante de um determinado observador e, como sabemos, a conduta das pessoas muda conforme o ambiente, nesse caso em função das informações ou condutas do observador. As pessoas possuem estruturas psíquicas ou cerebrais que promovem ações intencionais/racionais. Certos transtornos, mudanças ou lesões nessas estruturas provocarão mudanças nas ações. Em outras palavras, as modificações nas estruturas físicas/biológicas, causadas por mutações genéticas, danos no tecido cerebral, distúrbios nas substâncias químicas que aí circulam (neurotransmissores, hormônios e péptides), além das mudanças internas causadas por problemas externos do meio ambiente, principalmente o relacionado aos contatos com pessoas, irão se manifes tar em mudanças comportamentais da pessoa, que pode caracterizar o que é chamado de transtorno psiquiátrico. Sua base, essencialmente biológica, está ancorada na história evolucionária e no genoma das espécies. Entretanto, o transtorno pode e, geralmente reflete, os efeitos indiretos ou indesejáveis do meio ambiente sobre o indivíduo psicossocial. O ser humano, preso às suas características biológicas, age e reage ao meio social, promovendo continuadamente sua adaptação aos significados ou valores desse meio. Há, portanto, bases sociobiológicas para os transtornos psiquiátricos. A teoria social fornece as influências nascidas da cultura e dos sistemas sociais que possibilitam o aparecimento, bem como sua forma, dos diferentes tipos de transtornos psiquiátricos. Muitas pesquisas nessas áreas Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 82 têm se concentrado na pobreza, na classe social, nos estressores sociais, no apoio social e diversas outras influências culturais. Todas têm suas razões. Um sistema social global é constituído de diversos subsistemas como o legal/governamental, religioso/moral, familiar/comunal, acadêmico/ médico, crenças/costumes, etc. Existindo diversos modos de examinar a conduta, esta, uma vez desviada, pode levar os diferentes rotuladores a emitir classificações, conceitos e conclusões também diferentes, dependendo do subsistema utilizado para dar significado ao comportamento. O psiquiatra, estando ligado primordialmente ao subsistema médico, usará uma conceituação que a comunidade médica adota. Entretanto, sendo ele gente como o cliente e outras pessoas, – deve ser lembrado -, está ligado também a outros subsistemas, muitas vezes mais aprisionados nesses últimos do que no sistema médico. Todos esses subsistemas constituem padrões ou esquemas de referência para comparar e avaliar a conduta da pessoa a ser examinada. Os diversos esquemas de referência de cada subsistema examinarão aspectos diferentes da conduta, usarão conceitos e teorias diversas, valorizarão mais certos atributos, isto é, operam em termos de convenções distintivas. Assim é que uma pessoa P pode, num certo meio social, vir a ser diagnosticada como antissocial, informalmente rotulada de diferente, desviante, infradotada ou doente. Isto indica que P, a partir de um esquema de referência, recebeu uma identidade social formal como resultado de sua incorporação num certo subsistema social adotado por um grupo de pessoas. Este mesmo “cliente”, se examinado através de um outro padrão ou subsistema, e uma vez interpretada por ele, poderá ser denominada de criminosa (subsistema legal/governamental), poderá também ser rotulada de “santa”, “vidente” ou “médium”, etc. Tudo dependerá das convenções existentes na base de referência adotada e usada no momento da incorporação, por cada examinador de conduta. Em resumo, um mesmo indivíduo P poderá ser Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 83 rotulado de criminoso, doente mental, sadio, santo e estranho e outros rótulos, até de “normal”. São frequentes os conflitos entre os diversos modos de rotular dos subsistemas. Geralmente um rotulador não conhece o esquema usado pelo outro para rotular e, por isso, acha que ele está errado. O próprio rotulador geralmente não conhece as premissas implícitas no seu raciocínio e que estão sendo usadas para incorporar um certo indivíduo num subsistema sociocultural. Cada sistema possui não só ontologias diversas, como também epistemologias variadas conduzindo a ela. O subsistema médico clássico, como outros subsistemas, opera com pressuposições teóricas subjacentes diferentes das dos outros. Assim, ao examinar uma conduta, poderíamos perguntar: – Que fatores levam uma pessoa a ter o comportamento que ela está apresentando? Se ela é rotulada de “doente mental”, estamos raciocinando com hipóteses ou explicações biológicas e desenvolvimentalistas para entender o transtorno. Para o adepto do subsistema religioso, as explicações emergem de teorias místicas ou mágico-religiosas e, finalmente, o esquema legal/governamental examinará as ações do rotulado que não se enquadram no que está estabelecido pela lei. A nossa sociedade ou governo, por diversas “razões”, tem priorizado o esquema de referência científica, neste caso o modelo médico e não os “alternativos” como o mágico-religioso. Entretanto, os outros subsistemas contaminam o pensamento de todos nós, inclusive dos médicos, psicólogos, juízes, autoridades, etc. O nosso presidente, ao tomar posse, indicou um médico para ser o Ministro da Saúde. Entretanto, preso a outros esquemas, usou fitinhas de N. S. do Bonfim no pulso para “protegê-lo” contra maus prognósticos e submeteu-se à acupuntura para suas dores lombares. Uma mistura de crenças e de paradigmas conflitantes. A cultura continua a utilizar-se de premissas, conceitos e teorias das Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 84 doenças e da saúde provenientes de diversas origens, algumas com ideias opostas. Ao categorizarmos um comportamento desviante, misturamos ideologias variadas acerca das doenças, fatores naturais e sobrenaturais, considerações morais, socioecológicas, sociossituacionais, como anomalias, excentricidades, criminalidade, santidade, pecado e feitiçaria. Todas se entrelaçam na mente do indivíduo e não raras vezes nas teorias complexas do próprio médico, formando um todo compacto. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 85 A testemunha do Ponto de Vista Psiquiátrico Nenhuma testemunha, por mais que jure dizer a verdade, somente a verdade, o fará, pois sua “verdade” é um conjunto de conceitos, preconceitos, julgamentos, inferências, interpretações, percepções e fantasias mal ou bem elaboradas. Sabe-se que ninguém tem condições de fazer uma descrição imparcial e objetiva de um fato, mesmo de evento simples: um atropelamento por um veículo. Cada uma das testemunhas é diferente quanto à idade, sexo, inteligência, capacidade de percepção, raciocínio, julgamento e maior ou menor tendência à fantasia. Consequentemente, cada uma terá uma história, ou melhor, uma versão do acidente. Assim, se o atropelamento foi cometido por um motorista de táxi e a testemunha não gostar deste profissional, ela poderá ter “enxergado” uma expressão de raiva no rosto do motorista. Um bom observador poderá perceber no rosto do motorista, por exemplo, a pupila dilatada, os lábios contraídos, tremores nas mãos, a palidez, a respiração e voz entrecortada, mas jamais observará “ódio”, pois esse não é percebido e sim construído ou imaginado pelo observador, ou seja, o “ódio” será sua interpretação ou julgamento de certos fatos que ele percebeu. Provavelmente todos os depoimentos são carregados de julgamentos ou interpretações. Um testemunhará que o motorista estava “voando”, uma outra, simpática aos taxistas, afirmará que o pedestre não teve o “devido cuidado” ao atravessar a rua, e acrescentará: ”é muito difícil dirigir no centro da cidade”. Há outras hipóteses: uma, ao assistir ao acidente, colocará a culpa no guarda de trânsito – caso não goste deles. Outras ainda poderão culpar o governo, o calor ou o frio, conforme a temperatura do dia. PortanVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 86 to, todos irão elaborar hipóteses pessoais para o que acabaram de ver, escutar e, principalmente, sentir. Assim agem todas as testemunhas: de casamento, de briga de marido e mulher, de acidente de trânsito ou de assassinato. A “descrição” é, de fato, um julgamento intuitivo, automático, interpretações concebidas por cada um de nós após sentirmos emoções diante do fato presenciado. Nunca é uma descrição dos fatos puros observados. Isso só acontece, em algum grau, com os cientistas nos laboratórios de pesquisas. A testemunha relata a composição que elaborou ou fantasiou, aproveitando um ou outro fato, deixando de lado diversos outros que não interessam ao descrito. Em resumo, elas fazem julgamentos do que sentiram, não do que viram, em harmonia com o que pensam de si e do mundo. A nossa mente seleciona e retém eventos do mundo conforme nossos valores ou atitudes. Numa pesquisa, meninos de uma escola americana foram separados em duas classes: uma com preconceitos contra o negro, outra formada de alunos sem preconceitos. Para os dois grupos foi lida uma história relatando fatos favoráveis e desfavoráveis ao negro. Semanas após a leitura pediu-se aos alunos que relatassem o que lembravam da história. O primeiro grupo – o que tinha preconceito – lembrava apenas de fatos desfavoráveis aos negros. O segundo grupo, sem preconceitos, lembrou-se tanto de fatos favoráveis quanto desfavoráveis. Voltando ao acidente de trânsito, o foco de atenção das testemunhas, no momento anterior ao acidente, possivelmente era, como sempre, dirigido aos seus interesses do momento: um olhava a vitrine, outro refletia sobre a briga que teve com a esposa, um terceiro lia manchetes na banca de jornais, uma cuidava de crianças, etc. De repente, a paz foi quebrada por um estrondo ou visão inesperada. A atenção do pedestre/testemuVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 87 nha é mudada bruscamente devido ao estímulo visual ou auditivo. Mesmo se a pessoa observou a colisão no momento exato em que a vítima foi atirada ao chão, ela não poderá dar um relato preciso do fato, pois ela não tem o treinamento adequado para observar acidentes, crimes ou brigas. Um policial habilidoso, ao presenciar um acidente, poderá ver, possivelmente melhor do que um nervoso passante sem treino. Mas mesmo este policial terá sua observação limitada, posto que naquele instante verá um acontecimento complexo, com diversos fatos antecedentes e consequentes. Por exemplo, ao presenciar um acidente, o policial ou a testemunha não sabem se a vítima sentiu um mal súbito, se queria matar-se ou, até mesmo, a posição do carro nos instantes que antecederam a colisão. O conjunto de fatores que levou o carro a colidir não é conhecido. Nossa mente tende a dar uma organização lógica e compreensível a qualquer fato. Ora, como falta treino, no caso de observação de acidente, e também conceitos organizadores mais científicos acerca do fato – menos populares – para obter uma objetividade maior, sabemos que qualquer indivíduo percebe, organiza e transforma os acontecimentos conforme o modelo mental existente em sua mente. Desse modo, em lugar de descrever um fato observado, a testemunha relata um fato transformado, encaixando-o no seu sistema representacional já há muito organizado pelas experiências e aprendizagens anteriores. Ele dará pouco valor a fatos que não se enquadram às suas crenças e ideais básicos, por outro lado acentuará os que reforçam as ideias básicas. Se ocorresse o contrário, as pessoas iriam se modificar a todo momento e isso não ocorre. Há uma experiência clássica, que realizei por diversas vezes na Faculdade de Medicina da UFMG. Ela consiste em apresentar a um aluno um quadro contendo uma cena dentro de um ônibus com vários personagens. Um deles é um homem de cor branca portando uma navalha Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 88 levantada em direção ao rosto de um homem negro. Pede-se ao aluno que está vendo a cena que faça uma descrição da mesma para um segundo aluno, que vai escutar o relato sem ter visto a imagem. Esse segundo aluno depois descreve o que “ouviu” para um terceiro aluno, que entra na sala até alcançar sete alunos. Com frequência, em certo momento do relato, algum aluno transforma o ouvido: descreve a navalha na mão do homem negro e não do branco como estava sendo descrita. Assim, o escutado é transformado pela cognição ou representação pré-existente, quem ataca é o negro, não o branco. Em resumo, o mundo que observamos é modificado pelo nosso “assimilador” mental. Os fatos serão sempre percebidos e organizados conforme os valores e ideais que cada um tem no momento. Se a testemunha não gosta de taxistas, nem de cabeludo, e por azar o motorista encaixa-se nessas características, possivelmente ele será incriminado pelo observador. Um acidente, um crime ou um divórcio são processos dinâmicos, confusos e complexos. Uma testemunha, ao observar ou ouvir, “congela” a imagem percebida dominada pela emoção provocada: essa orientará o relato. Ora, o pequeno segmento do acidente memorizado, ditado pelas suas intuições e emoções, não dará nunca a ideia do todo. É atribuída a José Maria de Alkmim a frase “o importante não é o fato, mas a versão”. Ele sabia o que dizia, pois o fato, a partir do momento seguinte ao acontecimento, passará a existir apenas na memória dos espectadores, cada um com a sua versão. Após o acidente encerrou-se o fato. A partir daí nascem as versões e essas passarão a existir nos processos, nas histórias e na vida das testemunhas. Se a vítima morre, parte do fato real é enterrado com ela. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 89 Quando as Palavras Mentem Esse autor, com essa frase nos alerta acerca do poder das palavras, da força que têm esses sons mágicos provocadores de ações impulsivas, carregadas de ódio, alegria, tristeza ou medo. Sabemos, também, que através de palavras adequadas despertamos ou criamos crenças, valores, fantasias e desejos adormecidos que habitam nossas almas. O condutor de massas, o líder carismático e o grande pregador sempre usaram e abusaram das “palavras oportunas”, no momento certo. Somos, num certo grau, dóceis e fracos, sujeitos às manipulações continuadas dos mais espertos. Em todos os tempos um grupo dominou o outro para seu benefício. Assim é que na maioria das culturas os homens jovens e brancos, sadios, ricos, saudáveis, inteligentes e cultos, exploraram as mulheres, os velhos, os negros, os pobres, os doentes, os deficientes mentais e os incultos. Este é o nosso destino: obedecer, sem refletir e sem o desejar, à vontade dos mais sagazes e com maior poder. Os comerciantes seduzem o cidadão-alvo com promessas de férias maravilhosas, juventude e beleza eterna, hálito perfumado, frescor no corpo, cabelos sedosos e brilhantes, alegria irradiante ou tola, lábios sensuais, bustos e bumbuns belos e firmes. Para quem? Para uma população sem dinheiro, de idosos, desnutridos, feios, banguelas, nanicos, carecas, despeitados e desbundados. Já os políticos, usando as palavras adequadas e comoventes, seguindo o padrão da propaganda, oferecem-nos a justiça social, os empregos com salários altos para todos, a assistência médica de alto padrão, a proteção à criança abandonada e ao idoso, uma justiça digna para os grupos marginalizados, uma alimentação abundante e barata. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 90 Em resumo, tudo o que é desejado por todos nós. Para quem? Para uma maioria que nunca imaginou poder alcançar tais coisas, compostas dos sem-casa, pivetes, negros e brancos pobres, mulheres desempregadas ou com subempregos, crianças, analfabetos, deficientes mentais, etc., ou seja, pessoas sem oportunidades e estigmatizadas socialmente. Vivemos, ainda, sonhando com o paraíso perdido. Os conhecidos manipuladores do povo, nos seus discursos esforçam-se como podem para estimular e conservar as crenças existentes entre a população, as normas vigentes, as prescrições de conduta e, por que não, a ignorância popular. O poder de uns se assenta, exatamente, às custas de crenças supersticiosas, na irracionalidade do povo que o impede de sair do seu estado de indigente de conhecimento e de crítica. Mesmos os políticos chamados de mais “avançados” ou da esquerda, cegados pela tradição, defendem no programa de governo a melhoria dos empregos, salários, assistência à saúde, etc., mas nunca uma mudança do modo de pensar mais profundo do operário e do lavrador. Quando se fala em melhoria do ensino, trata-se apenas de melhorar a capacidade de compreensão da leitura de instruções para que o operário saiba utilizar melhor o maquinário da empresa, para aumentar a produção, a leitura de revistas e jornais que precisam ser vendidos, de propagandas diversas e, deste modo, haja mais consumo com mais lucro para as empresas. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 91 A Mensagem Anastácio é um dos donos de uma barraca de frutas do mercado municipal, onde compro bananas. Ao me ver naquele sábado, foi logo dizendo, quase gritando: — Acabei de conhecer uma moça notável. É bonita, inteligente, estudiosa, grã-fina e agradável… Com essa eu me caso! Fiquei pensando acerca do que ouvi, tentando decifrar o significado de sua frase. Sabia que Anastácio sempre tirava conclusões apressadas, quando iniciava um namoro. Nessa hora, misturava os desejos com a realidade. Não conseguia formar uma ideia da namorada de Anastácio. Acho que nem ele nem eu, conseguíamos retratar adequadamente os atributos que ele julgava ter notado. Não sei como ele chegou a essas conclusões. Apoiado na sua descrição, comecei a imaginar como seria essa mulher… ”ela era notável… o que tem uma moça para ser notável? Talvez muito alta ou gorda, ou muito magra, ou nada disso”. Continuei a imaginar a namorada de Anastácio. “ele julgou-a bonita: lembrei-me, quem ama o feio, bonito lhe parece… Como seria seu corpo, face, olhos, nariz, cabelos e dentes?” Enquanto escolhia as bananas, pensava comigo mesmo. “Vivemos num mundo simbólico, onde certas coisas representam outras. Assim, dois pedaços de madeira reunidos de uma certa forma, que chamamos de cruz, podem simbolizar ou representar religiões diversas. Talvez a na morada de Anastácio tenha olhos azuis e cabelos louros, sendo a beleza, para ele, representada por esses traços. Mas lembrei-me que esse tipo de beleza foi o adquirido por mim, ao assistir a filmes americanos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 92 Voltei a refletir: “Frequentemente inferimos certas coisas de outras, isto é, criamos uma afirmação a respeito de uma situação que nos é desconhecida, a partir de uma conhecida. Ao sentirmos uma dor no peito, inferimos – de um modo mais simples – imaginamos que estamos tendo um enfarto. Do mesmo modo, quando a mulher ciumenta encontra uma mancha de batom na roupa do marido, ela supõe ou infere que ele a traiu. Quem sabe a namorada de Anastácio teria lido o Pequeno Príncipe, gostasse de poesia e isso o levou a supor ser ela muito inteligente?” Com todas essas dúvidas eu continuava a não enxergar a moça. Prossegui, teimoso que sou, a fazer perguntas ao meu amigo e fui descobrindo fatos acerca de sua namorada. Fiquei sabendo ter ela 20 anos, estuda à noite num colégio estadual, cursa a 6ª série e já foi reprovada por duas ou três vezes. Não entendi bem essa parte. Como já sabia que Anastácio havia parado de estudar na 3 ª série, após perder o ano diversas vezes, inferi: “Ah! Por isso ele pensa que sua namorada é muito estudiosa… Perguntando mais, fiquei sabendo que a namorada de Anastácio lhe disse que, muitas vezes, ela ficava horas e horas assentada diante dos livros abertos à sua frente, estudando seguidamente. Ele aceitou ao pé da letra essas afirmações, acreditou no que ela disse ter observado e inferido a respeito de si mesma. Procurei ir mais a fundo, tentando imaginar como Anastácio chegou às conclusões acerca da “agradabilidade” existente em sua namorada. Descobri que nas noites dos fins de semana, ela lhe preparava um deliciosos mingau de fubá, quentinho, misturado com pedaços de queijo, igual ao que fazia sua mãe lá em Divinolância, onde ele nasceu e foi criado antes de vir para B. H. tentar a sorte. Então era isso: ela era agradável porque lhe servia mingau de fubá com queijo mineiro. Restava examinar os motivos que o levaram a interpretá-la como grã-fina. Isso foi mais difícil. Descobri que ela trabalha como arrumadeira numa residência na Savassi, isto mesmo, na zona Sul da cidade. E tem Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 93 mais, usa botas quando sai para passear no Parque Municipal e na Estação Rodoviária. Sua patroa tem uma loja, o patrão, que é um advogado famoso, possui uma Mercedes. Ela já andou nela quando foram à fazenda. No ano passado, o casal foi à Europa passear e levar alguns dólares para depositar na Suíça. Rosária, este é o nome da namorada de Anastácio, não foi com eles, como era seu desejo. Sendo de confiança, teve de ficar tomando conta da casa. Na volta, ela ganhou de presente dos patrões, uma escova de dentes, por sinal muito linda, um pente, um dentifrício, e ainda uma marmita arrumadinha, contendo uma deliciosa comida. Coitados, ficaram enjoados e não comeram nada. Guardei, enquanto pensava, minhas bananas caturras. Paguei a Anastácio o que lhe devia e desejei-lhe, como é de praxe no Mercado, um bom fim de semana. Caminhei um pouco tonto, desiludido com nossa conversa incompreensível. Em nenhum momento consegui formar uma imagem clara de Rosária, por mais que tentasse. O relato ouvido a seu respeito, contada pelo namorado apaixonado, não me forneceu nenhum fato acerca de seu nariz, boca, olhos, corpo em geral. Não conseguia enxergá-la pois, durante o bate-papo havia escutado apenas inferências, julgamentos, comunicados de comunicados e interpretações superficiais. De repente, ao parar diante do ponto dos abacaxis, ao dar a primeira dentada num pedaço, descobri, de um estalo, a mensagem que Anastácio tentou transmitir-me em vão e que eu não compreendi devido à minha burrice nesses assuntos. Ele procurou comunicar-me, através de sua descrição do namoro com Rosária, que ele estava apaixonado, nada mais! Eu, tolamente, fiquei tentando decifrar, de maneira complicada, a mensagem simples contida em suas palavras, em vez de sentir as emoções expressas. Eu sempre faço isso: procuro um sentido complexo quando existem outros muito mais simples. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 94 Videntes: A Prostituição das Palavras Ouvi, atentamente, na TV, uma “numeróloga” descrever as características comportamentais exibidas pelas pessoas, conforme o dia do mês em que nasceram. Procurei verificar se os relatos feitos para todos os indivíduos serviriam para mim. O resultado da “pesquisa” mostrou que a vidente acertou mais do que eu imaginava. Todas as descrições feitas para os nascidos em todos os dias do mês deram certas para mim. Creio que as previsões feitas estão certas, também, para todos os leitores. Passo para vocês as afirmações da vidente, para que as comparem com suas próprias previsões: “os nascidos entre os dias 1 e 5 são teimosos, mas flexíveis para os que sabem agir com eles. Os nascidos entre os dias 6 e 10 têm um grande amor às crianças mas, às vezes, perdem a paciência com essas. Os nascidos entre os dias 11 e 16 são trabalhadores e persistentes, quando desejam alcançar seus objetivos. Os nascidos entre os dias 17 e 21 não gastam dinheiro facilmente, somente com pessoas ou coisas importantes para eles. Os nascidos entre os dias 22 e 25 apaixonam-se rapidamente, mas abandonam cedo suas paixões, quando frustrados. Os nascidos entre os dias 26 e 31 são desconfiados e selecionam com cuidado seus amigos”. Creio que todos os indivíduos encontrarão fatos, na sua história de vida, capazes de “provar” estas profecias. Mas se se esforçarem um pouco mais, descobrirão, também, eventos desconfirmando as previsões. Há pesquisas mostrando que as pessoas tendem a procurar fatos que comprovam suas hipóteses e só muito raramente buscam os eventos que as desconfirmam. Assim, se não gosto de Maria, a observo, selecionando sua conduta negativa, visando “provar” que tinha razão. Se afirmo Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 95 que os bons vendedores são extrovertidos, seleciono esses para minha loja e não experimento os introvertidos para verificar a possibilidade de minha hipótese estar errada. Os políticos, cartomantes, videntes e outros profissionais do mesmo ramo, que advinham com precisão o que ocorrerá no futuro, jamais cometeram erros ao realizarem suas previsões. As afirmações desses indivíduos são vagas, permitindo a entrada dos mais diversos fatos na interpretação para “provar” as previsões. Quando um comentário sobre qualquer fato é muito geral como: “um dia vai chover em algum lugar da Terra”, ele não precisaria ser falado, por ser uma conclusão conhecida por todos. A fala que explica o geral, ou tudo, não pode ser negada. Quando um adivinho, usando búzios ou cartas, declara: “No próximo ano morrerá um político influente”, qualquer político que morrer irá se enquadrar na previsão, pois sempre algum político morre durante o ano e ele é influente para alguém. Afirmações como: “Haverá grandes mudanças no governo brasileiro”, “Um artista morrerá de AIDS” ou “A economia brasileira sofrerá abalos”, situam-se nesse tipo de afirmações desnecessárias. Elas são abrangentes e, ao examiná-las, automaticamente selecionamos determinados fatos ocorridos que se encaixam na previsão. Ao observarmos as declarações da maioria das pessoas notamos que essas nada esclarecem, explicam ou acrescentam ao já sabido ou esperado. Falar que: “nosso sistema de saúde está falido”, “o povo está passando fome”, “o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo” e “o brasileiro deixa tudo para última hora” afirma algo que sempre ocorre, em algum lugar, num certo momento, com algumas pessoas. Mas também poderíamos arrumar amostragens que “não deixa nada para a última hora”, “não leva vantagem em nada”, ”tem um sistema de saúde do primeiro mundo” e “muitos brasileiros comem exageradamente”. Portanto, essas afirmações são inúteis. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 96 As pessoas, ao se expressarem desse modo, não examinaram fatos para extrair conclusões. Elas aprenderam a conclusão pronta, não sabendo que fatos foram selecionados para contribuir para tal afirmação. Também não observaram outros aspectos da situação que poderiam ter importância, como: Qual sistema de saúde encontra-se falido? Seriam “todos os sistemas de saúde”, inclusive os que atendem as elites? A metáfora “falido”, que significado adquirirá junto ao contexto “sistema de saúde”? Caso a afirmação fosse confirmada, o que seria impossível, ain da continuaríamos em dúvida e perguntaríamos: “Quais e quantas foram as medidas usadas para se chegar a essa conclusão e que tipos de erros elas podem conter? Do mesmo modo: Quais brasileiros, quantas crianças e adultos, deixam tudo para a última hora? As mulheres também? Quais? E o que seria “última hora”? No dia do vencimento, um dia antes, na última hora, minuto, etc.? Mas as dificuldades não terminam aí. As palavras não são simplesmente símbolos que colocamos em coisas, pessoas ou em fatos para identificá-las. Muitos dos vocábulos usados só adquirem significados no contexto onde são usados. Nesse caso, para que possamos decifrar seu significado, necessariamente devemos examinar sua relação com outros conceitos já assimilados e entendidos. Esses mais antigos na mente do indivíduo servirão de apoio à compreensão. A palavra, uma vez ancorada em outros conceitos aceitos e compreendidos, poderá nos fornecer um significado pleno e será assimilada pelo leitor ou ouvinte. Entretanto, a maioria das palavras do dia-a-dia, da linguagem popular, são usadas nos mais diversos contextos, ligando-se aos mais diversos temas e, em cada um deles, o termo tem um significado diferente. Por isso mesmo falamos que as palavras usadas na linguagem popular são, com frequência, ambíguas, isto é, apresentam significados diversos, conforme a frase usada. Elas “nasceram” de várias fontes e em cada uma delas adquiriram significados múltiplos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 97 Consequentemente, afirmações como “levar vantagem em tudo”, ou “deixar tudo para última hora” produzem confusões no ouvinte e discussões sem fim: podem ser “provadas” e “negadas”, dependendo dos argumentos utilizados. Afirmações como essas não explicitaram a origem das palavras-chaves como “levar”, “vantagens” e “tudo”, bem como suas ligações a outros conhecimentos aceitos. Só desse modo essas frases poderiam ter algum sentido preciso. Examinemos algumas frases contendo a palavra “amor”. Este termo, por sinal muito repetido, evoca boas e más recordações, adquirindo significados distintos conforme os contextos onde está colocado. Assim, ouvimos e fingimos entender frases como: “No amor o importante é a sinceridade”, “Matou por amor”, “A química do amor”, “Maria é um amor de pessoa”, ‘O amor é sublime”, “As dores do amor”, “Fazer amor”; Um amor de casa”, “Morreu por amor”, “Os pais devem educar os filhos com amor”, “É preciso ter mais amor à humanidade”, “Se tivermos mais amor, tudo será resolvido”, etc. Através dessa pequena amostra o leitor poderá observar que a palavra, ou o signo “amor”, foi usada em diversos contextos, cada um muito diferente do outro. Ficaríamos confusos caso tentássemos decifrar o significado de “amor”, existente na frase “Morreu por amor”, através do significado que ela adquiriu na frase “Fazer amor”. Nas ciências sérias, seus conceitos principais ou “construtos” são definidos com extremo cuidado, aceitos pelos que os usam, e sempre ligados, direta ou indiretamente, a fatos existentes no mundo empírico. Aqui pergunto: Qual ideia teria um leitor que nunca tivesse visto a palavra “amor”, ao examinar esta lista de afirmações? Ora, os diversos contextos no qual a palavra foi colocada, onde ela está presa, fez com que o som ou imagem “amor” adquirisse significados totalmente diferentes. Na maioria das vezes seu sentido é difícil de ser entendido por quem emiVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 98 tiu ou por quem recebeu a informação. A maioria das palavras de uso diário caem no mesma dificuldade de entendimento. A palavra “over” em inglês, tem mais de 90 significados diferentes. Essa complexidade de sentidos facilita a vida do charlatão, do pregador desonesto, do vigarista, de muitas psicoterapias, de advogados diversos e dos políticos. Esses profissionais da palavra, através de uma verborreia algumas vezes ininteligível, desligada de fatos, usam com mestria, palavras produtoras de fantasias e emoções, dependendo do ouvinte. Com isso esses falan tes conseguem ludibriar os inocentes clientes, o devoto incauto ou o fiel eleitor e vendem as ilusões desejadas. Quando o manipulador de pessoas emite os belos sons: “família”, “educação”, “saúde”, “colégio”, “lazer”, “riqueza”, “amor”, “democracia”, “liberdade”, estas palavras são interpretadas e sentidas pelas pessoas que as ouvem de acordo com a experiência e os sonhos de cada um. Elas comovem os que as ouvem. Mas os que as pronunciam, vivem geralmente em mundos diferentes dos seus ouvintes, compartilhando experiências diferentes. Cria-se uma comunicação próxima do zero: os vocábulos trocados são os mesmos, é certo, mas cada um os representa, em sua mente, ajustados ao seu mundo. Aprendemos, erroneamente, que para ser entendido basta falar o mesmo idioma ou as mesmas palavras. Não é bem assim… Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 99 O Poder do Boato Na segunda feira, Frederico entrou na seção e, virando-se para a colega Inês, num tom de voz mais baixo que o normal, comentou admirado: — Você sabe da última? Assaltaram o chefe às 6:30 da manhã de sábado. Ele estava com Raquel, aquela nova secretária. E acrescentou: – Os dois juntos numa hora dessas… só podiam estar vindo de algum motel. Você não acha? Estava criado o boato. A ”informação” preenchia todos os ingredientes necessários para seu nascimento e divulgação: o tema interessava ao grupo que o assimilava e transmitia e, além disso, ninguém podia saber com certeza o que os dois estavam fazendo, isto é, a informação era ambígua. Também o assunto “sexo” sempre atraiu e excitou as pessoas e uma informação acerca dos dois interessava ao grupo: o chefe era antipatizado por ser exigente e moralista, enquanto a secretária era invejada e odiada pela beleza e exuberância de seus dotes físicos e pelas regalias gozadas no serviço. O boato se caracteriza, quase sempre, por ter uma afirmação que não pode ser negada, nem confirmada. Os políticos são vítimas frequentes desse tipo de “informação”. Chegam-nos aos nossos ouvidos cochichos como: “Ouvi dizer que Q está transando, fora de casa, com a M”, “Você sabe que W bate frequentemente em sua mulher”, “O T enxuga feito um gambá, não consegue nem tirar a roupa do corpo”, “Faz anos que P faz uso de cocaína, só fala em público sob o efeito do pó”. A imprensa também costuma criar e divulgar boatos. Algumas revistas se mantêm quase que exclusivamente divulgando as fofocas sobre a vida dos artistas. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 100 Certos temas são mais férteis à geração de boatos. Entre eles podemos citar os crimes estranhos, bárbaros ou de origem sexual, as curas milagrosas, os escândalos sociais, as disputas eleitorais agressivas e as guerras. Uma boa parte das notícias que aparecem nas colunas sociais são rumores, que dão prazer tanto àqueles “que são notícias” como àqueles que não são. O boato age, muitas vezes, como estimulante mental como muitas drogas usadas. Tenho uma amiga perita em “acordar” grupos. Presenciei em uma reunião sua habilidade: a conversa corria morna e lenta, as pausas alongavam-se. Percebendo o desânimo dos convidados, ela fez uso do remédio milagroso. Com voz baixa e lenta, como manda o figurino, começou a falar, ao mesmo tempo que olhava para um e outro do grupo. Este, que a conhecia bem, percebeu, através dos gestos teatrais, que algo de interessante estava pronto para vir à tona. Sônia iniciou, falando espaçadamente: — Não sei se vocês conhecem a Terezinha, uma que mora no apartamento 13.001, no meu prédio, casada com aquele homem moreno, bonitão. Ela tem dois ou três filhos. Ouvi dizer, de fonte fidedigna, que ela largou o marido e já se casou de novo. Nesse ponto ela interrompeu a narração, observou sorrateiramente a expressão facial de cada um, decepcionados, já que o “furo” não era tão sensacional. Ela, usando de seu traquejo de excelente transmissora de boatos, criava a frustração propositadamente. Esperou alguns instantes e completou a informação: — Sabem com quem ela se casou? Não sabem? Com a Ruth, uma loira, baixa, feiinha, telefonista da firma do ex-marido. Nesse instante o grupo despertou, o boato começava a agir. Todos, excitados, pediam mais detalhes, ou, no mínimo, a repetição do que acabavam de escutar. Sônia continuava a história, calmamente, sabendo que Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 101 estava vitoriosa: — Isso mesmo, atualmente as duas estão morando juntas, lá em Lagoa Santa, há dois meses, numa casa de campo… Terezinha sempre gostou de ecologia. Segundo soube, as duas estão arrependidas de não terem tomado a decisão há mais tempo. Quem está incontrolável é o Arthur, seu marido. A partir daí, todos falavam ao mesmo tempo: uns pediam minúcias do caso, outros tinham algo semelhante para contar. Outros ainda tomavam partido, defendendo ou atacando a conduta dos envolvidos, quando o marido era acusado de ser um “banana”, permitindo que sua mulher, uma sem-vergonha, o largasse com os filhos. Cada um se identificava rapidamente com os personagens, projetando neles seus recalques, frustrações e outras mazelas. Assisti a tudo sem dizer nada. Tive a sorte de levar Sônia em casa, pois ela estava sem condução. Rimos juntos do efeito de sua fofoca e fiz alguns comentários. Entretanto, para meu espanto, ela me disse que o caso fora criado na hora. Exultante com o sucesso obtido, contou-me para finalizar: — Já inventei várias histórias parecidas: não é difícil. Não existe a moradora do 13.001, nem o apartamento. Os personagens foram descritos de maneira vaga, que diz tudo e não diz nada. Usei uma linguagem superficial, com poucos detalhes. Com eles grande parte das pessoas se identificam. Esse tema provoca fantasias, emoções e desejos. Despertei na mente de cada um deles seus próprios boatos, mentiras, lendas, mitos e dramas particulares. Eles excitaram-se, não com minha história, mas sim com suas histórias particulares. Essa é sempre mais excitante. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 102 Comportamento Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 103 O Dilema do Gordo: Comer ou Não Comer? Comer ou não comer? As mães empanturram os filhos de alimentos, enquanto isso, elas mesmas vão às academias, fazem regimes e caminhadas, compram o último “best-seller” para emagrecer, tomam drogas e mais drogas para tirar o apetite, para urinar e eliminar uma boa parte dos alimentos que ingeriram. Essas mesmas mães compram para os filhos pudins, chocolates, sorvetes e mais uma infinidade de guloseimas. Mas elas mesmas tomam hormônios para acelerar o metabolismo, fumam e tomam café com adoçante, na esperança de ingerir menos calorias. Ao lado dessa contradição alimentar familiar, os meios de divulgação, tais como TVs, rádios, jornais, revistas, despejam em cima do alerta e fiel consumidor os mais recentes produtos alimentícios, todos eles atraentes, charmosos, deliciosos e de alto teor calórico. Somos, sem querer, sócios contribuintes das multinacionais, saboreando seus produtos e pagando-os a preços módicos. Se a robusta criança tiver uma mãe muito desocupada, de modo que lhe sobre bastante tempo para cuidar da alimentação do seu querido filho, e se este tiver mais algum tempinho para saborear, degustar, deglutir e “incorporar” as propagandas das multinacionais, a primeira fase, a essencial da formação do futuro obeso, acha-se terminada. Seu destino provavelmente está selado e ele estará “frito”, no mundo maravilhoso dos alimentos. Do mesmo modo que Konrad Lorenz descreveu o fenômeno da “impressão” – observado com as crias que ficam “marcadas”, passando a seguir o animal que estiver ao seu lado durante certos momentos dos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 104 primeiros dias do desenvolvimento, – também a criança, criada no ambiente dos alimentos, desenvolverá percepções e valorizações hipertrofiadas acerca de alimentos. Seu ideal passará a ser, fundamentalmente, o alimento. Nos bate-papos informais, o obeso fatalmente fará incursões sobre a “boa mesa”. Seus pensamentos e suas conversas giram sempre em torno de carnes, pudins e sorvetes: “Comi uma lasanha extraordinária, você precisa ira lá. A sobremesa: um sorvete com creme e suspiro. Uma delícia!” Ele se acha preso, tanto biológica como psicologicamente, ao mundo dos alimentos, preferencialmente aqueles em que predominam os hidratos de carbono e as gorduras. Sabe-se que nosso organismo é mais atraído por alimentos saborosos e nutritivos. Assim, uma carne cheirosa e gordurosa nos atrai mais do que belas folhas da alface bem temperadas. Costuma-se falar em obesidade quando o peso da pessoa se acha 20% acima do considerado normal para ela. Entretanto, para alguns, obeso é quem acha que é. A obesidade já teve a sua glória e seus cultores, pois fazia parte dos valores difundidos pelas classes privilegiadas. Hoje, seu prestígio está em declínio. “Malhada” pelos poderosos, passou a ser mais comum entre as mulheres de classe sócioeconômica mais baixa, por causa da alimentação dessas ser rica em hidratos de carbono. A maioria dos autores concorda que a obesidade é consequência de diversas causas. Parece ser mais grave quando começa na infância, mas pode surgir na adolescência, na vida adulta e até após a maturidade, quando algumas mulheres se tornam obesas após os 50 anos. Tal fato é menos frequente entre os homens. A maior parte dos grandes obesos, uma vez iniciado um regime e ter emagrecido alguns quilos, sente-se como se estivesse passando fome. Em outras palavras, quando um obeso se submete ao regime e seu peso ainda não alcançou o chamado “peso normal”, biologicamente ele se Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 105 encontra como os indivíduos que estão passando fome. Alguns autores argumentam que o peso corporal de um dado indivíduo é autorregulado, alcançando cada pessoa um nível aproximadamente constante, ou seja, um ponto fixo em torno do qual o peso oscila. Nos obesos este ponto fixo é elevado, acima do peso constante dos “normais” de desenvolvimento físico semelhante. O obeso tem um maior acúmulo de gorduras nas células, ou tem maior número dessas células, um excesso adquirido geralmente na infância. É comum apresentar os dois fatores ao mesmo tempo. Em outras palavras, tanto o teor de gordura como o número das células gordurosas alcança, no obeso, valores superiores aos de um indivíduo não-obeso. Ao emagrecer sob regime, não haverá redução do número de células, mas tão somente de teor de gordura celular, o qual, portanto, ficará abaixo de seu valor normal para aquela pessoa. Consequentemente, em condições normais, isto é, sem regime, a gordura celular tende a aumentar até atingir seu ponto fixo, o que ocasionará novo aumento de peso. Nos obesos há uma alteração entre o “crédito” e o “débito”, de modo que neles sempre haverá uma “sobra”, se comparados à maioria dos indivíduos. Segundo esse modelo, um indivíduo normal e que tem o seu ponto fixo em torno de 60 quilos, tenderá sempre a manter-se em torno desse peso. Caso ele enfrente situações anormais, internas ou externas, (por exemplo doenças, alimentação em excesso ou escassa), durante um certo período seu peso irá diminuir ou aumentar de acordo com a situação. Entretanto, tão logo a situação se normalize, o peso voltará a ficar em torno dos 60 quilos anteriores. O obeso, tendo o seu ponto fixo, por exemplo, em torno dos 120 quilos, tenderá a manter-se também em torno desse peso, em condições normais. A obesidade, como qualquer problema médico, está longe de ser entendida em sua totalidade. Por esse modelo do “ponto fixo”, observações e experiências realizadas em animais e homens puderam ser compreendiVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 106 das. Em cativeiro, os animais engordam ao receber uma superalimentação, no entanto, quando são deixados de lado, livres, sem serem forçados àquela alimentação, retornam ao peso anterior à engorda. Diversas observações semelhantes foram feitas, principalmente com pessoas que, por diversas circunstâncias, receberam escassa quantidade de alimentos. Essas, após o emagrecimento, retornaram ao peso do seu ponto fixo. De acordo com esse modelo, as drogas comumente usadas para combater o apetite – os anorexígenos – inicialmente fazem descer o ponto fixo do indivíduo para um nível mais baixo e só secundariamente diminuem o apetite. Lamentavelmente, após a retirada da droga, o ponto fixo se eleva novamente, aumentando o apetite e, consequentemente, o peso aumenta, alcançando o nível de equilíbrio anterior daquele indivíduo. A atividade física constitui, talvez, a única técnica eficiente para aqueles indivíduos que, considerados de risco, ou seja, com ponto fixo corporal elevado, manterem peso normal. A atividade física queima calorias, diminui o apetite e, por último, eleva o metabolismo basal, não só durante o exercício, mas também horas após este. Portanto, a pessoa ativa fisicamente está continuamente “gastando” mais calorias do que precisa para manter as funções fisiológicas do organismo em condições de não-exercício. Por outro lado, para azar dos obesos, o regime alimentar nos indivíduos de vida sedentária baixa o metabolismo, ou seja, “economiza” a perda de calorias. Os resultados são óbvios, à medida que o peso diminui no indivíduo de vida sedentária, a sua taxa de metabolismo cai também, com consequente estabilização do peso. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 107 Diga NÃO sem se sentir Culpado Quem diz sim a um pedido de aval, para não magoar o outro, pode depois amargar o pagamento da dívida. O passageiro que deixa os centavos com o trocador, com medo de reclamar ou de ser ridicularizado, está deixando algo mais além do dinheiro: pode se sentir um “fraco”, ou covarde. O consumidor que levou o sapato, por não ter coragem de dizer não ao vendedor, não o usará com prazer, mas com raiva ou desgosto. A visita desagradável que chegou sem avisar poderia estragar a tarde de domingo, em outro momento poderia ser até agradável. Provavelmente, quem experimentou tais acontecimentos vai reclamar tanto de si mesmo, como dos outros. Entretanto é provável que nada faça para modificar sua conduta e influir favoravelmente no curso dos acontecimentos. Quase sempre esses nem mesmo tentaram modificar seu comportamento, visando a atingir objetivos que lhe dariam prazer, maior autoestima e também um relacionamento mais agradável com o visitante de horas indesejáveis. As situações embaraçosas e, às vezes, humilhantes, das quais as pessoas se queixam, são frequentes e na verdade atingem todos os seres humanos. O que fazer diante de situações semelhantes àquelas que foram descritas acima? Resumidamente existem três maneiras de agir: 1) Aceitar as imposições, lastimar-se e queixar-se da má educação das pessoas. 2) Brigar, xingar e agredir quem tentou a manipulação. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 108 3) Ser afirmativo, sem ser agressivo ou queixoso, defender clara e calmamente seus direitos. Vamos a um exemplo: Aníbal está em uma fila, pacientemente, há vários minutos quando um homem entra, sem pedir, à sua frente. Conforme o exposto, Aníbal poderá: 1º – Nada fazer e reclamar para si mesmo ou com o companheiro do lado a respeito do abuso do intruso. Provavelmente Aníbal se sentirá irritado, envergonhado da sua passividade e com queda da sua autoestima, por estar sendo enganado. 2º – Aníbal, em altos brados dirige impropérios ao furador de fila, iniciando uma briga, o que passa a constituir um novo problema a ser resolvido. Nesse caso, possivelmente, talvez a respiração fique ofegante, o coração bata mais depressa e, pior ainda, a discussão possa caminhar até chegar às “vias de fato”, dependendo da reação do outro. 3º – Num tom de voz firme, mas normal, Aníbal dirá ao intruso que aquilo é uma fila, que deve ser respeitada e que ele, o furador de fila, deve sair dali e procurar seu lugar lá atrás. Nesse caso, sua ação foi exclusivamente para dar solução ao problema surgido e não para criar outro. É possível que Aníbal se sinta ligeiramente emocionado, mas satisfeito consigo mesmo, ao defender o seu direito. Posteriormente, ele se sentirá melhor ainda. Situação semelhante é a do passageiro que não obtém nem o troco nem a resposta do trocador, ao passar na roleta do ônibus. O passageiro pode: 1º – Ir embora sem receber o seu troco e ficar deprimido por sua conduta apática. 2º – Brigar com o trocador e eventualmente com o motorista, até com Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 109 algum passageiro que ache absurdo ele exigir algumas moedas de troco. 3º – Finalmente exigir uma resposta adequada do trocador, não temendo a pressão dele e de outros que querem passar na roleta. Para cada uma dessas três condutas, encontra-se subentendida uma crença ou uma concepção da melhor maneira de se conviver com outras pessoas. No primeiro caso, isto é, a passividade como tônica do comportamento, indicará uma suposição de que nunca se deve, em nenhuma situação, desagradar às pessoas. O foco da conduta está em não criar problemas no relacionamento com os outros, seja lá quem for. No segundo caso, quando há briga, o indivíduo percebe a ação do intruso como um abuso, uma agressão e, não imaginando outra opção, agride também. Neste caso, ele criou um segundo problema, sem resolver o primeiro. E finalmente, no terceiro caso, quando a pessoa exprime sua opinião firme e objetiva, sem rodeios, o centro da conduta se situa em si mesma e não no bem-estar e manutenção da relação. Neste caso o indivíduo acha natural alguém tentar furar a fila, como também acha adequado ele defender seu lugar e, por isso, o faz de maneira conveniente. Como não tem poder sobre a conduta dos outros, sabe que alguns agem diferente dele. Não se pretende aqui defender como correta nenhuma das três posturas descritas. Não é raro um indivíduo ser afirmativo em um lugar e não o ser em outro. Uma pessoa pode ser firme e objetiva no seu trabalho, passiva em casa e agressiva no futebol de fim de semana. Também pode ser agressiva em uma ocasião, com uma determinada pessoa, e ser passiva, fraca, em outro momento, com a mesma pessoa. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 110 Você, leitor, escolhe a melhor conduta para si, em cada momento, em cada lugar e com cada pessoa, de acordo com o seu estilo pessoal. Provavelmente, não será conveniente sermos agressivos ou afirmativos quando nos defrontamos com um assaltante, de revólver em punho, exigindo o nosso dinheiro ou tênis. Neste caso, sejamos passivos e fracos, do contrário podemos tornar-nos defuntos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 111 A Prisão Domiciliar nas Grandes Cidades Uma parte da população das grandes cidades encontra-se presa. A chamada classe média talvez nem saiba que ela própria decretou sua prisão domiciliar. Certas famílias pagaram um pouco mais caro para habitar prisões de segurança máxima, mais novas e talvez mais bonitas. Uma vez morando nelas, não podem colocar a cabeça fora ou andar tranquilamente pelas ruas e, em muitos locais, só podem sair de casa através da fuga. Para escapar do possível assalto, antes de sair de casa, o cidadão examina, pela câmera ou a fresta do portão, com extremo cuidado para não ser visto, se há alguém suspeito por perto. Só então ele entra no automóvel que se encontra na garagem. Estando a rua sem riscos aparentes, o carro bem fechado, o motorista, muito atento, aciona o “controlador da prisão”, abrindo, com ansiedade, o portão que vai expô-lo aos perigos da rua ameaçadora. O carro sai em disparada, escapa como pode, antes que seu proprietário seja roubado, assaltado ou assassinado. Algumas famílias mais precavidas e privilegiadas, residentes em casas – elas são mais perigosas – contratam vigilantes permanentes que espreitam, dia e noite, tanto os possíveis assaltantes, como os movimentos dos donos da casa: suas idas e vindas, a hora em que chegam e saem de casa e também do banheiro, que hora dormem e quando acordaram à noite para fazer pipi. Assim, consegue-se uma segurança e controle quase total. Troca-se o possível e ocasional assalto, pela continuada observação e interpretação da conduta da família pelo vigia. Algumas famílias aprisionam-se em pequenos apartamentos cercados por grandes edifícios, onde o sol só aparece por poucos minutos. A ideia enfatizada pela sociedade, transmitida como conselho para todos os “detentos” é: “Tenha cuidado ao andar pelas ruas, principalmente Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 112 parar e caminhar devagar. Ao sair – a não ser que desejem perder o seu suado dinheiro ou mesmo a sua preciosa e, às vezes, inútil vida – você deverá, rapidamente, entrar numa outra prisão semelhante como cinemas, barzinhos, teatros ou lojas comerciais. Nesses há menos perigo de ser assaltado “. Uma vez no mundo selvagem das ruas e praças, ficamos frente a frente com os perseguidores, que são diversos: os temidos pivetes, estupradores, trombadinhas, vendedores, assaltantes, mendigos, camelôs, maloqueiros, perguntadores suspeitos e desconhecidos que desejam contar-nos sua vida, veículos em disparada, pregadores religiosos, objetos, cuspe e fezes lançados dos prédios, propagandistas ambulantes, sequestradores, vigaristas, etc. Mas há também, às vezes, perseguidores-fantasmas que habitam nossa mente, como os assaltantes inexistentes, elevadores que vão cair, bombas que explodirão, gente nos observando ou livros com ideias estranhas escritas por pessoas que pensam diferente de nós. As grandes cidades impõem suas regras, aniquilando o indivíduo, se esse se descuidar. Quase sempre, sem querer, o perseguido colabora com o perseguidor, seja ele fantasma ou real. Uma boa parte dos habitantes não só se submete à estrutura desumana das metrópoles, como, com frequência, ainda a aplaude, engrandece e se orgulha de fazer parte dela. É difícil saber se a nossa posição ou a nossa atitude está nos favorecendo ou se estamos ajudando o “inimigo” desconhecido. O jogo é extremamente complexo. Torna-se cada dia mais difícil driblar todos esses obstáculos. Uma boa parte da população desistiu da luta, não mais a enfrenta, sucumbiu, presa ao jogo do adversário. Esses não mais sabem onde querem chegar, para onde vão. Encontram-se sem rumo e, como disse o gato para Alice, no livro “Alice no País das Maravilhas”: – “Se você não sabe onde quer chegar, qualquer caminho serve”. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 113 Passando pela rodoviária, num desses fins de tarde de sexta-feira confusos e irritantes, observei um homem assentado numa das cadeiras da sala de embarque. Vagarosamente ele preparava um cigarro de palha. Ao seu lado, havia uma mala amarela simples. Ele parecia estar indiferente ao tumulto à sua volta. Tive inveja dele. Não pude, na minha correria, deixar de fantasiar: “daqui a pouco ele estará no ônibus que o levará à sua cidadezinha, talvez até seja Santa Maria de Itabira. Ele terá no ônibus tempo para conversar calmamente consigo mesmo, de pensar o que quiser, fazer ou não fazer várias coisas que sua mente mandar. Talvez viva numa cidade calma, vendo, todos os dias, o verde do campo, observe vacas pastando e possa ouvir uma chuva tranquilizadora. Lá, bem longe daqui, poderá andar e falar com calma. Lá não há pressa, seu relógio de pulso é um enfeite, seus compromissos não têm horas rigidamente marcadas, podem ser adiados até para dias ou semanas depois. Na sua casa as portas e as janelas ficam abertas, à tardinha, ele e sua mulher debruçam-se no peitoril e observam os amigos passando, todos conhecidos, e a todos ele cumprimenta sem discriminar ricos, pobres, negros, mulheres ou crianças. De quando em quando, poderá ir até o quintal saborear uma manga e oferecê-la, de graça, ao vizinho e amigo. Poderá sair à rua sem medo de fantasmas, parar em qualquer esquina, entrar e sair de onde desejar. Quando a noite chegar, ele dormirá tranquilo sem pensar em ladrões, sem ser incomodado por algazarras e barulho de freadas no asfalto. Ouvirá sonolento em sua cama, de quando em quando, o berro de um bezerro recém-nascido ou, mais distante, o latido dos cães. Acordará com a claridade do sol, o cantar dos galos e não com ruídos barulhentos dos ônibus, caminhões e carros. Fui despertado do meu devaneio ao presenciar um carro, na avenida Paraná, jogando um senhor no asfalto. Meu sonho acabou… Eu me Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 114 permiti essas divagações para lembrar-me, e também, quem sabe, ao leitor, que talvez haja alguma maneira diferente de viver. Quis retratar um contraste. Peço desculpas por ter talvez imaginado um paraíso diante do inferno onde moramos, mas acredito que devem existir modos mais humanos para construir a difícil e trabalhosa arte de viver, além da do cárcere privado. Parece-me que a massificação impede essa criatividade, forçando todos a serem semelhantes, normais e uniformizadas, de tal forma que a maioria das famílias, nas grandes cidades, segue um mesmo modelo. Os mais velhos, coitados, esses quase não mais saem de casa. Suas vidas restringem-se a comer, dormir, ver TV e, principalmente, tomar de manhã, à tarde e à noite grandes quantidades de comprimidos para as suas dores diversas, outras para o “coração” e para dormir. Os de meiaidade trabalham incessantemente e, nas folgas que existirem, divertem-se sem parar após se embriagarem. Os jovens, trabalhando, estudando ou não fazendo nada, seguem a última moda de qualquer ídolo fabricado e, com eles se identificando, sentem-se alguém. As crianças obedecem: as de maior poder aquisitivo estudam nos “melhores” colégios, fazem mediocremente ginástica, dançam balé ou tocam algum instrumento. Nas folgas, assistem aos programas chatos para crianças e outros da mesma espécie. As de menor poder econômico tentam imitar, sem grande sucesso, algumas mazelas das crianças ricas. Talvez dentro dos cárceres privados viva uma família “feliz”. Todos estão cercados por vizinhos, colegas e companheiros que fazem as mesmas coisas, pensam do mesmo modo e têm os mesmos valores, de acordo com as classes a que eles julgam pertencer. Passeiam e tiram férias, nos locais “em voga”, conforme sua posição social. Isolados, mas unidos fisicamente, cada um desses indivíduos, nos seus apartamentos, pobres ou ricos, ou nas mansões, todos, como autômatos e sem o saber, fazem as mesmas coisas: contam as mesmas histórias, cantam a mesma letra da música, leem os livros mais vendidos e assistem e discutem, emocioVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 115 nados, à última novela. Cada um desses espetáculos é mais comentado e mais vivido do que os fatos de suas próprias vidas, que, possivelmente, há muito se perderam. Sua consciência, excelente crítico que é, filtra e censura toda e qualquer ideia estranha que possa fazer desabar a sólida estrutura mental e ideológica construída pelo grupo que o cerca. Os que pensam, vivem e se comportam diferentemente são discriminados como tolos, jecas, bregas ou outros termos pejorativos. Assim, o equilíbrio é mantido. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 116 Benditas sejam as Queixas “Que calor terrível”, “Detesto esta cidade”, “Essa seleção é a pior que já vi”. Frases como essas nós ouvimos a todos os momentos e em todos os lugares. Entretanto, só raramente ouvimos o seu oposto, como “Gosto desta cidade” ou o “Brasil vai bem”, e assim por diante. Queixar-se é um dos grandes passatempos de nossa população. É fácil, barato, familiar e acessível a qualquer um e, além disso, não exige nenhuma responsabilidade. Ao queixarmo-nos, sentimos piedade de nós mesmos e, quem sabe, talvez possamos ganhar, na outra vida, um lugar no céu por termos cumprido tão bem essa penitência na Terra. A função principal da queixa parece ser apenas um hábito para preencher o tempo, apesar de que, à primeira vista, é difícil aceitar essa ideia. Vou tentar esclarecer: a todo momento encontramo-nos uns com os outros e temos que falar alguma coisa. A conversa, para não morrer, precisa ser continuamente inventada, pois não fica bem ficarmos calados uns diante dos outros. Esse papo é diferente do que temos quando vamos a um banco, por exemplo, fazer um depósito ou retirar algum dinheiro. Nesse último caso há um objetivo claro, a conversa gira em torno dele e, retirado o dinheiro, encerra-se a comunicação. Uma parte de nossa conversação é formulada como no caso do banco, entretanto, mesmos nessas conversas, diálogos paralelos são inventados para preencher e sustentar o assunto principal. Quando, por acaso, encontramos algum conhecido, não há nada de objetivo e lógico para ser dito. O assunto fica por conta da criatividade dos envolvidos. A conversa termina quando acaba a imaginação, ou seja, quando nenhum dos dois descobre mais nada a ser falado. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 117 É bastante comum, ao encontrarmos o antigo amigo, perguntarmos: “Tudo bem?” e ele responde: “Tudo bem. E você, tudo bem? Nova resposta: “Tudo bem.” Se continuar nesse papo furado, a conversa pode emperrar e o encontro ser rapidamente desfeito. Mas poderíamos prolongar a conversa, por exemplo: “Tudo bem nada. Hoje cedo ao levantar-me, senti uma pontada no peito… E as queixas começam, a conversa flui, rica em dados. O nosso modo de expressar é muito rico em palavras e frases, que apenas servem para preencher espaços vazios. Possivelmente a maior parte de nossas conversas encaixam-se nesse tipo. Nessas, de fato, nada estamos falando no sentido objetivo ou produtivo da linguagem, apenas, prazerosamente, emitindo sons para nosso interlocutor, que faz o mesmo, como os meninos que estão começando a falar: eles ficam ouvindo os sons que eles próprios pronunciam. A sons emitidos pelas crianças e o papo furado dos adultos podem durar horas, mais ainda se estivermos num bar tomando uma cerveja. Ora, nas conversas de todos os dias, cada indivíduo tem várias palavras ou frases disponíveis, prontas para serem usadas, fáceis de saírem. Quanto mais o indivíduo usa essas frases – ou apenas palavras – já arrumadas, analisadas e sem risco de serem usadas, mais elas estarão prontas para saírem para o ar, seja qual for a situação vivida. Temos também o hábito de falarmos muito mais acerca de nossos “pontos de vista” do que acerca de fatos objetivos. Em lugar de descrever alguns lances do jogo assistido, o narrador fala: - O jogo foi ótimo, mas, na verdade, na minha opinião acho que Mariano devia ter entrado mais cedo. Esse técnico não presta. Entendeu? Se tivesse entrado… Os termos, “ótimo” e “presta” são julgamentos que formam uma opinião sobre o jogo ou a conduta de um bom técnico, não é uma descrição de Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 118 eventos. Assim, quase sempre diante de qualquer acontecimento, emitimos muito mais a nossa opinião – os achismos – acerca dos fatos, ou nossa interpretação, e pouco ou nada da nossa percepção dos mesmos e frequentemente a interpretação tem pouco a ver com os fatos ocorridos. Provavelmente, em um grau maior ou menor, todos nós agimos assim. Desde cedo nossos educadores, de geração em geração, fizeram queixas e mais queixas acerca de tudo e de todos, criticaram mais do que elogiaram, assim é natural e esperado que os discípulos, aprendendo a lição, também passem a agir da mesma maneira automaticamente. Só muito raramente espera-se que um pai ou uma mãe fale que a temperatura do seu filho está normal, ou também que ele está disposto. Mas com certeza falará que o menino quebrou um copo, que está com uma febre altíssima ou, ainda, que é um desastrado, pois derramou água na mesa. Assim, se nosso filho chora, nós o chamamos de “chorão”. Ao classificá-lo de “chorão”, formamos uma ideia que pode ficar cristalizada acerca dele e, possivelmente, estamos criando um “mito familiar” e, como todo mito, esse irá dirigir nossos pensamentos e condutas para o infeliz filho. A partir daí, ele poderá ser tratado como se fosse sempre chorão e o imaginamos como agora chorando, mas que antes não estava e, possivelmente, depois também não estará. Além disso, preso ao “mito do chorão, não percebemos o choro como um fato natural, decorrente de acontecimentos que o levaram ao choro. O termo ou rótulo “chorão”, neste caso, é uma estimativa ética e, portanto, o comportamento é visto como inaceitável. Do mesmo modo os estigmas tais como “bobo”, “feio”, “gordo” e muitos outros, quase sempre são usados como juízos de valor e não para descrever fatos. Quando o modelo de pensamento, como nos exemplos, é a interpretação da realidade sobre a forma de queixas, a visão do mundo distorcida e preconceituosa poderá ser bemvinda pela facilidade de ser expressa, sintonizada, captada e entendida pelo interlocutor, por ser este um modo usual de Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 119 conceber o mundo. Por tudo isso, viva essa conversa, as queixas, pois são esses instrumentos que mais “ligam” as pessoas umas às outras. As situações positivas, por outro lado, para serem percebidas e faladas, necessitam ser muito importantes, salientes ou acontecerem numa frequência muito grande: passou no concurso onde tinha 1.000 candidatos por vaga, estuda todos os dias até tarde da noite. As frases de elogios ou de percepção de fatos positivos, por serem escassamente usadas, não ficam disponíveis em nossa memória, ao contrário das negativas ou as queixas, que nos são mais familiares. Os médicos sobrevivem em virtude das queixas dos pacientes. Os advogados, juízes e promotores passam a vida ouvindo queixas de um lado e outro. Políticos são eleitos prometendo resolver as queixas dos eleitores e, por fim, nós nos ligamos à maioria das pessoas através dos elos mágicos das queixas. São elas que nos unem. Podemos concluir que uma conversa acerca de queixas fluirá com facilidade, todos nós temos estoques disponíveis delas prontas para entrar em ação. Por tudo isso, bendita seja a queixa, a principal razão da atual estrutura social. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 120 O Terapeuta amador Todas as pessoas acreditam que é bom “ter um amigo em quem se possa confiar”, para contar os problemas e ouvir algumas palavras de ajuda e compreensão num momento de dificuldades. É realmente muito bom quando o ouvinte se limita a ouvir e evita dar palpites, pois conselhos ruins em momentos decisivos, podem destruir planos, vidas e trazer sofrimento. É preciso ter algum cuidado com os terapeutas de botequim. Assim como nem todas as terapias conduzem ao sucesso, muitos conselhos são desastrosos, apesar de todas as boas intenções contidas neles. Grande parte da conversa entre os amigos e respectivos conselhos envolve situações de pouca importância. Quando a indecisão se refere a uma ida ao cinema ou quanto a um restaurante, qualquer que seja o resultado, praticamente não haverá mudança na vida daquela pessoa. Mas nem sempre é assim. Os conselhos são dados também para situações de extrema importância para a vida de quem os recebe e, dependendo dos interlocutores, é seguido e pode ser fatal. A separação decidida com facilidade numa mesa de bar, sob o efeito liberalizante do álcool, pode ser catastrófica para a vida de quem se separou e sem nenhum prejuízo para o conselheiro. Às vezes, até com algum lucro. Um exemplo de conselho perigoso é o tipo “deixe-o sozinho, quem fala em suicídio não se suicida”, que é dado com frequência. Nesses casos o resultado pode ser a morte, já que essa crença popular não corresponde sempre à realidade. Inúmeros outros conselhos semelhantes são dados sem avaliação dos resultados, Nesses casos, o conselho dado de graça fica caro para a pessoa. É fácil aconselhar alguém a largar o emprego ou o namorado. Afinal, o outro sempre o fará porque quis e, portanto, sem nenhuma responsabiliVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 121 dade para o conselheiro. O difícil é conversar com a pessoa, indicando-lhe caminhos para que possa se ajustar melhor no trabalho, ou encontrar um relacionamento mais produtivo com seu namorado ou esposa. Uma conversa com um amigo que está disposto a ouvir com simpatia e solidariedade as queixas, tranquiliza o queixoso na maioria dos casos. O desabafo, por si só, diante de pessoa compreensiva e de confiança, traz alívio para quem fala. Por outro lado, emitir conselhos que vão mudar a vida do amigo, sem ter informações completas acerca dos problemas e recursos para resolvê-los, é uma atitude temerária. É claro que quem reclama teve alguma participação no fato que o leva a reclamar. Ninguém é somente vítima. Frequentemente, ao procurar um conselho, quem reclama busca ouvir o que queria. Um aspecto importante é o de que, quase sempre, o queixoso procura vários conselheiros e adota, automaticamente, a orientação mais parecida – ou igualzinha – à sua própria. Eles, nós todos, procuramos um apoio às nossas ideias e crenças, desse modo, os conselheiros foram, na verdade, selecionados entre os mais semelhantes ao cliente amador. Assim, o esposo ou a mocinha desencantada com o companheiro tende a buscar a ajuda da mãe ou do melhor amigo, reclamando: “É um absurdo o que ele me fez”, “Ela não podia ter me tratado daquela maneira”, “Ele devia ter-me dito”. Os terapeutas, quase sem exceção, irão escutar e comentar o ocorrido, defendendo o queixoso, dando-lhe razão, tudo isso sem examinar o contexto e os antecedentes do fato. O consulente sai da “consulta” confiante. As frases indicam uma crença falsa acerca do poder de nossos desejos sobre a conduta das pessoa. Isso não existe. A pessoa deseja que o outro aja de modo diferente, mude, sem seus esforços. Numa família ou numa repartição pública, alguma coisa nos grupos envolvidos determina os que terão o papel de “queixadores” e os de “terapeutas”. Esses indagam: “As minhas amigas me procuram para queixarem-se”, “Gosto muito de Cláudia, ela me entende” ou “Marília me Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 122 procura só para lamentar-se”. Por azar, nem sempre aquilo que deseja a pessoa que busca o conselho, é o melhor para si. Em briga de casal, o cônjuge procura a ajuda dos familiares e amigos que percebem e integram o mesmo sistema de pensamento dele. Geralmente, esses não o modificam, nem tentam melhorar seu relacionamento conjugal. A queixa principal não é examinada em seus diversos detalhes, o conselho é fornecido sem avaliar as consequências, sem examinar o papel do queixoso no problema e sem o preparar para adaptar-se ou resolver as situações problemáticas existentes. Desse modo, a falsa “ajuda” perpetua as desavenças. Por último e isso pode ser grave: quem faz as confidências fica comprometido com quem as ouve. Se o cônjuge pretende separar-se da mulher e fala muito mal dela, fica difícil depois explicar ao conselheiro a reconciliação ocorrida mais tarde, como também fazer um comentário favorável à mulher, em presença de quem escutou os impropérios dirigidos a ela. Por tudo isso, cuidado com os terapeutas de botequim, com os amadores. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 123 A Liberdade dos Jovens Muito se tem discutido acerca do problema da maior ou menor liberdade dos jovens. Quando e como devemos dar-lhes a liberdade e em que grau essa deve ser concedida? O termo emancipação, que se assemelha à libertação, significa “aquisição da capacidade civil”, ou “libertação do pátrio poder” ou ainda “conquista de independência”. Ao falarmos deste tema, forçosamente penetramos num terreno difícil e de grande importância para o ser humano, que é sua liberdade e esta tem, como seus opostos, o determinismo e a coação. Não discutirei as duas posições extremas e radicais, ou seja, determinismo absoluto ou liberdade total, pois creio que estes não fazem parte da conduta humana. O homem carrega pré-determinações absolutas: não pode voar, trocar de sexo e assim por diante, mas pode alcançar uma liberdade relativa como trocar de emprego, casar ou descasar, ir ao cinema ou ver TV e fingir trocar de sexo. A liberdade, ainda que limitada, é conseguida ou conquistada através da decisão do indivíduo de construir a si mesmo, de acordo com seus valores. Esta construção surge através da ação. O homem não se torna livre pensando apenas, precisa agir. Ele encontra-se cercado de grandes dilemas, um deles é o determinado por duas tendências fundamentais e, em certo sentido, opostas: 1) a autoafirmação, que corresponde à autonomia individual; 2) a integração, que leva à dependência. Ao mesmo tempo existe em todos nós – desde o nascimento – uma força ou tendência no sentido de torná-lo autônomo ou livre. Essa é adquirida, em grande parte, através da outra tendência humana, a de estar ligado, integrado, a outros seres humanos, ou seja, estar dependente e não-livre. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 124 Como escapar ao dilema de buscar a liberdade através da não-liberdade? O menino aprende a ser livre privando-se de sua liberdade, preso ao grupo social, geralmente o de sua família e, mais tarde, dos companheiros, cônjuge, membros de igreja, etc. A estabilidade dos organismos individuais e da sociedade, assim como seu bem-estar, dependem basicamente do equilíbrio próprio entre essas duas tendências conflitantes e necessárias ao desenvolvimento. Durante o estado de “saúde” dos dois sistemas – individual e social – há uma relativa integração entre eles: uma relativa liberdade individual e, ao mesmo tempo, um sistema familiar e social integrado, funcional e estável dinamicamente. Nesse caso, ambos os sistemas estão satisfeitos. Durante as crises, ocorre o contrário: ambos os sistemas estão em sofrimento – “doentes” – por desequilíbrio entre suas tendências básicas. Neste caso, ou a família hipertrofiou a integração em detrimento do crescimento da individualidade de seus membros, ou o jovem exagerou sua autonomia, provocando a quebra da integração familiar, num momento de sua vida no qual a ligação ainda era de vital importância. O sistema individual do jovem é extremamente fluido, dotado de ainda poucos recursos, sendo facilmente controlado por outros sistemas. Quando o jovem abandona precocemente o sistema familiar, é comum ligar-se e “nutrir-se” de outros sistemas ao seu redor, que podem ser melhores ou piores para ele do que o anterior. O jovem poderá ligar-se ao grupo de escoteiros ou ao de assaltantes. Em nossa cultura americanizada, propagada pelos filmes de Hollywood e por outras influências, existe uma pressão para que as pessoas se agreguem em grupos não-familiares, em detrimento de liberdade individual. Esta “cultura” vai contra a dos nossos antepassados, na qual a ligação familiar era a buscada e elogiada. A agregação diminui ou elimina a autonomia individual, a orientação interna de cada pessoa. Ao mesmo tempo ocorre a hipertrofia da “boa Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 125 relação” com o grupo, ou o “bem-estar grupal”. Culturas diferentes enfatizam diferentes posturas: maior ênfase no indivíduo, na sua liberdade ou maior importância aos grupos familiares, políticos ou religiosos. Os valores e as atitudes transmitidos ao jovem pela própria família funcionam assentados em regras, moldes ou padrões de conduta que são aceitos como certos. Ensina-se o que é sério e o que não o é, o que é bom e o que é mau, a forma apropriada de comer e a inadequada, as formas corretas e incorretas de demonstrar carinho, quais são os amigos e os que não o são e milhares de modelos semelhantes. Portanto, nos primeiros anos de vida, a família, que já possui os seus padrões assimilados, os impõe ao filho. À medida que o menino cresce, ele vai recebendo outros modelos ou padrões: dos amigos, dos colegas, dos professores, da imprensa, dos partidos políticos, da Igreja, etc. Pou co a pouco desenvolve-se o padrão do indivíduo, produto da organização dada às milhares de experiências vitoriosas e de fracasso, dos vários modelos recebidos e recriados. Aparentemente ocorre uma situação de liberdade, quando o jovem escolhe uma profissão, um cônjuge ou um grupo de amigos. Mas, de fato, a “escolha livre” é determinada, em grande parte, pelos modelos recebidos e incorporados, principalmente dos familiares e companheiros, e também por experiências transmitidas verbalmente por outras pessoas e nunca experimentadas. Todas essas informações recebidas, algumas vivenciadas, outras não, são seguidas com muita fé, quase sem contestação ou crítica. O indivíduo, frequentemente, crê que sua escolha é livre: que ele se casou com Margarida porque quis, que é médico por vocação, porque, para ele, a medicina é a melhor profissão e é amigo de Paulo, porque Paulo é muito “boa gente”. Pura ilusão. A nossa representação do mundo, incluindo os diferentes modelos, é pobre, contém poucos dados à nossa disposição. Conhecemos superficialmente, ou mesmo nada, acerca de outras profissões, assim como outros modos de vida e desconhecemos modelos de vida de pessoas estranhas ao nosso convívio. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 126 Além disso, os modelos pouco conhecidos não poderiam exercer atração sobre nós, pois geralmente só valorizamos as experiências ditadas pelo modelo por nós aprendido. O valor que nós imputamos a alguém, a alguma coisa, ou a alguma atividade, está já constituído e cristalizado em torno do fim da adolescência em nossas mentes, pelos nossos “tapa-olhos”. Assim, munidos desse “radar”, vamos organizando nossas percepções em torno dos nossos padrões, vamos formando a nossa estrutura mental, “filtrando” aquilo que não corresponde à nossa hierarquia de valores que foram inoculados em nossa mente. “Sou advogado, gosto muito daquela moça, mas ela não é do meu nível, pois é balconista”. Sou branco, estudante de medicina, não fica bem para mim ir à festa com Pedro, que é negro, servente de pedreiro, apesar de ele ser o melhor do nosso time de futebol”. “Sou professor da Faculdade de Medicina, não posso frequentar tais lugares e andar com essa gentinha sem classe, que nem se vestir sabe”. “Eles são gente simples como nós”, “Só frequento restaurantes de alto nível, não tolero falta de classe”. Dificilmente ouvimos uma conversa descontraída ou um papo informal, onde o preconceito e a visão estreita do mundo não se revelem e possam ser identificados. Não só assistimos aos preconceitos contra o negro ou os portugueses, mas a respeito das várias classes e papéis sociais, de profissões, de sexo, de idade e assim por diante. “Ele é muito jovem, nada sabe”, ou o seu oposto, “Ela está totalmente gagá”. É extremamente difícil sair disso. Só com uma criação de um modelo neutro, que permitisse a entrada de toda e qualquer informação, padrão esse que fornecesse para cada dado recebido um valor que fosse interessante para seu possuidor. Portanto, para nos tornarmos mais livres, é preciso usar menos os “filtros” e menos os “radares”. Usar, sim, uma “antena parabólica” para captar tudo o que pudermos, dando a cada percepção um valor mais abrangente, aumentando nossa representação ou o nosso macromodelo Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 127 do mundo. Só assim poderíamos ficar um pouco menos presos aos grupos de pressões, passaríamos a ser mais orientados internamente e menos externamente, deixaríamos de ser seduzidos pelos líderes carismáticos e, dessa forma, quem sabe, poderíamos ser líderes de nós mesmos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 128 Bichos ou Seres Humanos? Ao lidar com os meninos de rua não devemos esquecer que estamos lidando com seres humanos, cujo comportamento resulta das exigências do seu organismo biológico, de sua aprendizagem durante sua vida, dos estímulos provenientes de seu meio ambiente num determinado mo mento, das pressões provocadas pelos grupos dos quais fazem parte e conforme os modelos que aprenderam de si e do mundo. Todos estes fatores funcionam juntos, predominando, ora mais um, ora outro. O que diferencia os “pivetes” não-criminosos dos “pivetes” criminosos são pequenas diferenças existentes em cada um dos fatores acima relacionados. Assim, um adolescente não-criminoso apresenta uma concentração de serotonina cerebral – um neurotransmissor existente no cérebro – mais elevada do que o menino criminoso. Uma criança “normal”, provavelmente, foi criada num lar mais harmonioso e seus pais eram mais bondosos e compreensíveis do que os pais – caso tenha – do menino de rua. Os pais do adolescente “normal” talvez não tenham sido alcoólatras ou dependentes de drogas. O cérebro de um recém-nascido “normal” não sofreu danos pré, peri, ou pós-natal como pode ter ocorrido no pivete criminoso. A maioria dos meninos tem uma ideia do mundo mais realista do que a do menino de rua, principalmente da conduta das pessoas. A família e a sociedade em geral vai, pouco a pouco, se acomodando e assimilando a carreira do “pivete”, que ela, em grande parte, ajudou a construir. Acostumamo-nos com seus pequenos delitos e sua aprendizagem progressiva para crimes mais sérios. Aceitamos passivamente, sem nos alarmar, sua miséria, sua morte precoce nos acidentes de trânsito, nos espancamentos sofridos dos próprios companheiros ou por grupos de extermínio, suas doenças graves, sua desnutrição, seu tédio proveniente de sua vida vazia e sem sentido, sua falta de higiene, o uso de Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 129 drogas, sua submissão a estupros e, por fim, sua exploração continuada pelos que se utilizam deles para a prática de roubos, de relações sexuais e até mesmo de campanhas políticas. Lamentamos histericamente seu sofrimento com palavras semanticamente apropriadas para as emoções negativas, mas sem que nosso coração ou pulmão mude seu ritmo normal. Assistimos nas imagens da televisão a seu sofrimento de animal abandonado, no instante da notícia. Após a hora marcada para “sofrermos” o problema do pivete, diante do noticiário, desligamos a TV e também nosso cérebro e o ligamos no canal das diversões. Ao exibir essa conduta de preocupação simulada, expiamos nossa responsabilidade na participação desse problema social e reforçamos a nossa imagem de cidadãos bondosos. Com isso mantemos um falso equilíbrio e nossa autoestima elevada. Após o “nosso sofrimento” de hora marcada, saímos com nossa família saudável e unida para jantar. Passamos pelo teatro para assistirmos a uma comédia representando o drama humano. Voltamos para casa para mais um descanso, agora das diversões do mundo fictício. Deitamo-nos para dormir numa espaçosa cama limpa, macia e confortável. Recuperamos, desse modo, as energias perdidas pelo sofrimento do dia anterior. Dormimos um sono tranquilo e sem culpa, como bons cristãos que somos. Enquanto dormimos, neste momento, um pivete pode estar sendo assassinado, acidentado ou estuprado numa noite fria, indiferente, sonolenta e serena como nós. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 130 Guerra, Heróis e Inocência Os povos sempre produziram bobos, heróis e trapaceiros. Talvez precisemos deles. Os bobos servem para nos divertir, os heróis nos fornecem direção e segurança para as dúvidas e os trapaceiros nos fazem acreditar, por alguns momentos, em dias melhores. Uma distinção precisa entre eles não é fácil, pois as três características se misturam e se completam. Todos trabalham com o povo: o herói precisa de um público para admirá-lo ou adorá-lo, o bobo necessita de risadas da plateia, e o trapaceiro aproveita a ingenuidade e crendice de suas vítimas. De tempos em tempos, como ocorre agora, os heróis (ou seriam trapaceiros?) ocupam os espaços dos jornais. Eles inoculam nas mentes inocentes, através de discursos virulentos, estimulantes para o tédio do povo. Sua fala, desprovida de argumentos, inclui, preferencialmente, sons com forte teor emocional, frases grandiosas, expressas de forma direta, simples e vaga, escondendo a complexidade dos temas discutidos. Palavras oportunas, em grande quantidade, são disparadas contra a mente de fanáticos admiradores. Sob o efeito do discurso, cada um em seu canto, interrompe suas reflexões pessoais sobre as eternas desigualdades e injustiças sociais, esquece sua insuportável solidão, sua vida sem atrativos e sem perspectivas de mudança. O discurso do guru, milagrosamente, lhe revela alguma razão para viver. O líder, consciente da submissão, fraqueza e aturdimento dos liderados, injeta, pouco a pouco, em suas mentes macias, a figura do inimigo fantasma. Revelado o inimigo comum, mesmo sendo cada um muito diferente do outro, os desgarrados se unem. As palavras do líder, lançadas com sabedoria e precisão matemática, produtos de refinadas pesquisas das agências de propaganda, atingem Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 131 a mente atordoada do guerreiro em potencial, sendo que a provocação do ódio concentra-se, inicialmente, num nome. É difícil odiar um povo, pois esse, além de não ter personalidade, não pode ser visto. O combatente virtual só sente e entende o concreto. Termos usados para expressarmos nossa raiva de todo dia, são utilizados para identificar o inimigo: demônio, bandido, louco, ditador, agora, terrorista. Uma vez selecionado o monstro, estende-se a agressão para o povo da mesma raça. Doutrinados pelo ódio ao inimigo comum, os convertidos se sentem encantados, aliviados e felizes por estarem defendendo uma causa justa e grandiosa. Extasiados, sentem nascer, no seu íntimo, um vigor e prazer sublime, nunca antes vivido, fruto de sua conversão a um “xiismo” qualquer. Assim, milhões de fanáticos, ligados por uma ideia comum, partem para o ritual da guerra. Nesse ponto, os objetivos escusos do líder passam a ser os mesmos dos seguidores, mais importantes que suas vidas. Estranhamente, e como é estranha a mente humana!, esses jovens convertidos, antes desorientados, agora se sentem seguros e tranquilos. Suas intermináveis e dolorosas dúvidas: “o que fazer?”, ou “para onde ir?” terminam com a adesão à guerra. Na mente dos humildes seguidores despertam sonhos muito antigos de glória e de poder, inatingíveis pelos caminhos normais de sua vida. Entretanto, ao se identificar com os discursos do líder, o soldado imagina-se importante, conhecido e poderoso. Claro que ele não será famoso como foi John Smith, por exemplo, Mas ficará famoso por ter morrido como soldado do regimento importante, de um país importante. Ele imagina ser um dia famoso e forte como é seu guia idolatrado, fantasia dias melhores, paz e felicidade. Começa a sonhar com seu retorno triunfal, seu nome na imprensa, garotas belas e carinhosas ao seu redor, numa praia ensolarada, como sempre viu nos filmes sobre os heróis de guerras anteriores. Os que já foram enganados outras vezes por diversos governantes, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 132 esperam mais fatos e menos boatos para se decidirem. Este grupo sabe que as suas experiências são altamente diferentes das vividas pelos seus superiores. Os sons que eles pronunciam são os mesmos que todos nós pronunciamos, mas essas palavras iguais (“guerra”, “inimigo”, “ditador”, “terrorista”, “incapaz de governar o povo”, “liberdade”, “democracia” e outras), expressam experiências muito diferentes, referem-se a mundos totalmente diversos. Sadam Hussein foi “Deus” para boa parte do povo iraquiano, Bush foi apoiado pela maioria do Congresso e por grande parte do povo americano nas votações. Nós, brasileiros, já elegemos Jânio, a nossa Câmara já aprovou, sem votos contra, o governo de Costa e Silva, Médici e outros. Stalin foi herói na Rússia e Hitler, na Alemanha. Com o passar dos anos, com mais informações e menor número de versões, a história poderá ser transformada em novas verdades. Já assistimos a esse “filme” e já conhecemos o perdedor – o povo dos dois lados – e os vencedores, os governantes de algumas nações e certos empresários que, como sempre, aproveitam a situação. Essa é a sua atividade. Infelizmente os heróis ou trapaceiros voltaram, discursando como sempre, conduzindo para a guerra, ou para diversos caminhos estranhos aos nossos, um rebanho de jovens inocentes. Seriam os tolos? Vidas e vidas continuam sendo eliminadas, sem ao menos perguntar aos crentes seus valores e objetivos. Impõem-nos, em troca do nada, expelindo palavras vazias, seus objetivos sórdidos. De tempos em tempos, uma multidão de ovelhas puras e mansas caminha, antes da hora, para o outro mundo, conduzida por pastores incapazes, imbecis ou loucos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 133 Homem: Animal Contraditório O homem é um animal “fora de série”, estranho e desadaptado. Somos isolados, mas vivemos altamente ligados uns aos outros. Temos uma parte da mente que pensa, às vezes com alguma lógica, e ao mesmo tempo, uma outra parte da cabeça presa ao organismo – glândulas, órgãos, músculos – reage instintiva e automaticamente aos estímulos, portanto, somos irracionais em diversas ocasiões. Às vezes somos bondosos, oferecemos muito de nós mesmos em benefício de nosso irmão, em outros, o assaltamos, o estupramos ou o matamos. Oscilamos, passando de um modo de viver cheio de alegria, esperança e fé, para o mais completo desespero e ódio. Buscamos ansiosamente a ajuda médica por pequenos problemas de saúde e, muitas vezes, menosprezando a própria vida, nos suicidamos. Trabalhamos duramente para conseguirmos recursos visando obter casa, comida e segurança. Entretanto, ao atingirmos o desejado, passamos a comer exageradamente, acumulamos dinheiro desnecessário e arriscamos nossa vida em atividades perigosas como lazer. Fazemos guerras, para conseguirmos a paz. Lutamos contra os poderosos e quando estamos no poder, quase sempre atuamos de todas as formas, no sentido de eliminar os de menor poder. Criticamos violentamente os torturadores e, na primeira oportunidade, passamos a agir como eles. Buscamos de todas as formas possíveis uma companhia, e quando a conquistamos, a achamos aborrecida e vamos atrás de outra. Censuramos a censura, quando ela é extirpada, cada grupo ideológico reclama seu retorno. Como equilibrar-se numa “zorra” dessas? Esses pensamentos me ocorreram ao lembrar-me de Cícero. Conheço-o há longos anos, acho mesmo que desde criança. O nosso convívio sempre foi muito íntimo e isso permitiu obter muitas informaVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 134 ções a seu respeito, como, até mesmo, elaborar algumas teorias acerca de sua vida. Apesar dessa proximidade, na maior parte das vezes eu não o entendo e, quando suponho compreendê-lo, vejo que falhei. Cícero é um pesquisador sério da natureza. Lê muito, presta atenção a tudo e armazenou, ao longo dos anos, vastos conhecimentos científicos e históricos do mundo e do homem. Entretanto seu “radar” é muito abrangente e pouco seletivo. Desse modo ele captou também crenças infundadas, superstições diversas, ideias religiosas emitidas por qualquer seita moderna e, além disso, aceita inúmeras “verdades” do senso comum. A cabeça do Cícero virou uma verdadeira salada, contendo informações desordenadas, contraditórias e pouco plausíveis. Todas elas seguidas e defendidas com o mesmo vigor e entusiasmo. O resultado tem sido drástico. Diante de tantas informações niveladas em termos de valor, algumas sérias, outras nem tanto, ele foi arrastado para uma profissão que lhe é imprópria, escolheu amigos inadequados ou incompetentes, casou-se com uma mulher que não lhe assentava e criou seus filhos na falsa esperança que boas intenções são suficientes para conduzir a uma boa educação. Mas Cícero é um homem bravo, valente e teimoso. Ele continua confiante no “mapa” desajustado e confuso existente em sua mente e vai em frente. É claro que o “território” onde ele está pisando é bastante diferente do “mapa” existente em sua representação mental. Portanto, quando ele está deitado em sua cama, pensando que tudo vai bem, ao levantar-se e ao agir, ele é obrigado a perceber que o “mapa” que representa seu mundo é um, o mundo real é outro. Assim, meu grande amigo, frequentemente lamenta-se para si ou para os outros: “Sou um desastrado, um sem sorte, tudo que tento dá errado”. O modelo que construiu de si mesmo e do mundo, nesse caso, foi acrescido de mais uma crendice: “Sou um sem sorte”. Assim Cícero gasta Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 135 parte de seu precioso tempo lastimando-se, utilizando pouco seus recursos e potencialidades. Por tudo isso, ele fracassa em diversas atividades, perde a oportunidade de obter várias satisfações e exibe ressentimento e infelicidade. Cícero não se emenda, pois, por mais que ele transgrida as leis da natureza e da sociedade, ele não modifica seu modo de pensar e agir, isto é, não aprende com a experiência vivida. Ele é, como disse, um sujeito contraditório, em certas ocasiões Cícero só cuida de si. Nessas ocasiões, ao ser importunado, agride, xinga ou, no mínimo, não ajuda ninguém. Outras vezes, porém, gasta seu tempo, que é curto, ajudando, ouvindo lamentações aborrecidas dos outros, até mesmo de pessoas que mal conhece ou que sabe que não gostam dele. Durante essa fase, ele empresta dinheiro, procura emprego e aconselha pacientemente os pedintes. A maneira de pensar de Cícero também é estranha. Ele é economista, seu raciocínio é lógico, tanto no serviço como nos aspectos de sua vida relacionados à sua área de trabalho. Eu diria até que “lá” ele pensa matematicamente. Não há imprecisão ou ideias preconceituosas. De cada premissa elaborada, sempre bem postada, ele deduz conclusões com proposições que não contêm nenhuma dúvida, exibindo clareza de pensamento produzido por uma razão lúcida e expresso sem palavras ambíguas. Pois bem, o racional Cícero, ao abordar outros problemas humanos fora do seu domínio estrito, se lambuza todo. Quando abordava os temas do dia-a-dia, na política ele é brizolista, em religião, ele abraçou as ideias do Boff, no amor… bem não posso revelar, e até no futebol, onde sua paixão é o Atlético, ele se torna, de repente, um perfeito animal irracional. Toda sua bela lógica mental é transformada em palpites, preconceitos, desejos, fé cega, superstições, incoerências uma após outras, deduções apressadas, hipóteses duvidosas e não comprovadas e assim por diante, de modo a envergonhar qualquer tratado elementar de lógica. Nesses Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 136 momentos, o Cícero torna-se outro ser, um não humano, carregado de emoção, impulsivo, não sabendo mais argumentar e nem ouvir argumentos de seu opositor. Levanta a voz, enfurece-se, desafia, às vezes parte até para as “vias de fato”. Eu, que já conheço essas reações, o perdoo. Mas é comum ele brigar até comigo, grande amigo seu, quando se torna irracional. Depois, mais tarde, arrependido, ele retorna com a sua outra mente e eu o aceito como sempre. Cícero não me surpreende só nesses aspectos. Olho-o com tristeza, lamentando comigo mesmo como pode uma pessoa que tem uma bela inteligência, experiência, crítica e cultura ser tão preso às regras, sem nunca duvidar delas, agindo como um cordeiro às suas imposições. Levanta-se sempre à mesma hora, vai para o serviço, pelo mesmo caminho, nunca falta a este, chega no mesmo horário, deixa o carro no mesmo lugar. Repete no trabalho, maquinal e automaticamente, as mesmas atividades, os mesmos gestos, sorrisos, expressões e conversas, usando frases apropriadas para cada pessoa. Nada é criado, nada é diferente. Parece haver dentro dele um medo à espontaneidade, um pavor em ser diferente, um culto à mesmice. Seu “computador mental” é dominado no serviço, no lazer, em tudo, uma programação repetitiva e monótona. Mas, já disse que o Cícero espanta-me. Surpreendo-me com ele, em nossas tertúlias ocasionais, principalmente após alguns cervejas bem geladas, que descem devagar. Nesses momentos aparece um novo programa no seu “computador mental”. Cícero torna-se um indivíduo prático, criativo e com propósitos individuais. Critica com sabedoria e elegância todos os modelos humanos existentes que paralisam o ser humano. Sob o efeito do álcool ele cresce, abandona o automatismo, começa a filosofar, critica as “verdades” que ele, no trabalho, segue sem pensar, deVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 137 fende a necessidade do crescimento do indivíduo como meta principal para qualquer ser humano cuja missão fundamental seria atualizar-se. Põe em dúvida diversos valores geralmente seguidos inconscientemente pela multidão solitária e sem rumo. Nesse momento, ele traça planos, chegando até a executar alguns deles nos dias seguintes. O novo Cícero defende a necessidade de nos libertarmos dos preconceitos e das superstições, de seguirmos objetivos mais humanos e mais produtivos. Entusiasmado, acredita que dentro de nós há recursos, energia, força e coragem suficiente para transformar esse mundo injusto e massacrante, num mundo melhor. Esses arroubos são, porém, rapidamente amortecidos… Fico confuso: jamais entendi Cícero. Entretanto, após pensar um pouco, descobri que ele se parece comigo e também com todos vocês, meus caros leitores, com os seres humanos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 138 Como Controlar os Acontecimentos Enquanto alguns obstinados tentam, a todo custo, controlar o meio rebelde, outros, mais conformados e plácidos, deixam as “águas rolarem” e uns poucos procuram, propositadamente, confusões e nelas se instalam, satisfeitos e confortáveis. Muitos desejam, alguns imploram ao bondoso Deus: “Que bom seria se pudesse mudar a cabeça do patrão, para que ele não me demita”, ou “fazer com que minha namorada não me abandone”, “iluminar a cabeça do nosso Presidente, para que ele nos deixe dormir em paz.” A maioria imagina que o controle vem apenas de fora. Esses supõem que os amigos e parentes, ou mesmo os políticos, deviam ajudá-los a conseguir o que eles não alcançaram e, muitas vezes, nem tentaram. Na velhice descobre-se – é preciso viver muito – a duras custas, que certos meios são difíceis, outros impossíveis de serem controlados. Aprende-se que nada se pode fazer diante de alguns problemas, como a violência dos outros, não a nossa, a corrupção, a chatura do discurso político, o trânsito caótico, o acidente, a miséria do povo e a ignorância. Sabe-se que algumas mudanças podem ser realizadas e várias delas dependem de nossa ação. Entretanto, nem sempre temos energia e vontade para lutarmos por essas alterações, assim, posso pretender ser médico, mas não quero gastar meu tempo estudando. Em alguns casos pode existir o desejo e a energia, mas pode faltar a competência necessária: gostaria de ser corredor, mas tenho o pé torto. Por fim, posso ser competente, ter vontade e energia, mas tenho uma Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 139 autoestima baixa, ou seja, não acredito na minha capacidade. Tudo isso dificulta “chegar lá”. Ao nascermos, tomamos as primeiras medidas, por sinal grosseiras, para controlar o meio ingrato. O recém-nascido, se está com fome, chora, e alguém pode milagrosamente aparecer para lhe dar o leite. Se está com frio, chora e novamente o protetor o aquece. Com o choro, o desconforto é controlado e o bem-estar retorna. Muitos adultos continuam usando essa técnica. Mais tarde aparecem estratégias mais sofisticadas para controlar o meio e a si próprio. Se estamos querendo um doce e o pedimos à nossa mãe, ela pode impor certas condições. A criança deseja brincar com o vizinho, a mãe não concorda, pois está na hora do almoço. Neste nesse caso a criança pode chorar, pedir mais, gritar, tentar manipulá-la ou negociar a ida, em último caso poderá até mesmo fugir de casa e ir morar com o vizinho. Na adolescência e na vida adulta, não só o meio enfrentado, mas também as técnicas para conseguir o desejado, tornam-se mais complexas e difíceis. O jovem quer ter um bom emprego, por conseguinte, casa e comida. Mas para isso terá que frequentar, por anos, a escola, estudar muito e deixar de lado diversões atraentes. Na velhice, inferiorizado e estigmatizado, não mais acreditando no choro, sem forças, o idoso só pode implorar para receber ajuda do meio, já que sua capacidade para modificá-lo é mínima e, para piorar, muitos estão doentes. Portanto, durante nossa jornada aqui na Terra os desencontros são muitos, as frustrações amargas. Mas é preciso seguir em frente até o ato final. E assim vamos, ora desequilibrados, ora supostamente firmes. Aos poucos, cada um, cambaleando, vai construindo seu caminho particular, imaginando medidas eficazes para restabelecer o “elo perdido”, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 140 a segurança sonhada. Mas basta surgir uma peninha de equilíbrio, um tempinho de calmaria e paz, para novamente esse animal surpreendente inventar novos caminhos, diferentes planos, ações e buscas e, consequentemente, novas desarmonias com o ambiente e consigo próprio. Assim é o homem: age, ao mesmo tempo evitando as dissonâncias internas e externas e, ao mesmo tempo, provocando-as. Este é seu destino, precisa das desordens, do caos. Ele planeja constantemente situações de risco, o que o amedronta: este é o alimento de sua mente. Muitos imaginam alcançar a felicidade caso consigam a paz constante. Ledo engano. Precisamos, para crescermos, relacionarmo-nos com os obstáculos, com as dificuldades, pois são as incongruências os nossos nutrientes mentais. São eles que nos fazem crescer. Sem eles seríamos idiotas. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 141 Crendices Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 142 Computador e Ferradura O homem pós-moderno deixa a luz feérica dos laboratórios de cibernética, energia nuclear e genética, onde recompõe a vida, e à noite vai procurar a luz bruxuleante dos templos de pai-de-santo, cartomantes, gurus, operadores de pêndulo, onde humildemente busca forças para viver e resolver seus conflitos. A cada monumental templo erigido em nome da ciência, surgem dezenas de outros dedicados às mais estranhas ideias sobrenaturais. Cada um acha que a sua ideia é a melhor, após, naturalmente, ter experimentado várias delas. A confusão é tão grande, as pessoas estão tão perdidas em busca de um mundo mítico e mágico, que em Paris apareceu um feiticeiro africano, que conseguiu reunir os dois mundos numa só idéia: passou a vender coca-cola benta. O homem pós-moderno é, pois, aquele que toma coca-cola benta, enquanto opera o seu computador de última geração. Essa confusão mental, digamos assim, ocorre no mundo inteiro. Os jornais e as listas telefônicas americanas estampam em suas páginas milhares de anúncios de cartomantes, videntes e outros autorrevelados, interpretadores desses estranhos sinais de comunicação existentes nas linhas das mãos, nos olhos, no ar, nas cartas etc., para uma possível comunicação com o mundo sobrenatural. Calcula-se que na Inglaterra mais de 10 mil profissionais dessa área trabalham em tempo integral. Na China, os dragões saltam dos livros vermelhos para a imaginação do povo e terror das crianças. Conta-se que um jornalista ocidental comentou com um chinês que iria escrever um artigo sobre dragões. O chinês disse que a revolução havia acabado com essas ideias. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 143 — Mas é um dragão de penas brancas. — Mas todo mundo sabe que os dragões não têm penas. É isso: todo mundo sabe, e provavelmente tem certeza, que sua crença, religião, seja lá o que for, é a única certa, a que está mais apoiada em dados e mais, já teve o seu modelo colocado para estudos em um computador não menos maluco. O mau-olhado é universal: os franceses fazem o sinal da cruz quando ouvem falar em “regard méchant”, os italianos têm horror do “mal ochio”, que deve ser evitado, custe o que custar. Em todas as ilhas britânicas, inclusive naquela em que mora a rainha, uma ferradura é o principal instrumento capaz de afastar o mau-olhado. Uma pessoa pode adoecer, uma planta definhar e o gado morrer devido ao mau-olhado. Todo mundo sabe disso. Há uma grande diferença entre as crenças pós-modernas e as líricas que povoaram nossa mente e tornaram nossa infância mais agradável e rica em sonhos. Criou-se hoje uma simbologia mística complexa, construída pelo marketing, utilizando-se da ingenuidade inata ou construída pela propaganda, apoiada no mito do fim do mundo, na busca de momentos mágicos, de um orgasmo mais excitante, de benefícios extraordinários da alimentação natural ou de um “mundo melhor” com alucinógenos. Cada grupo organiza-se de acordo com suas atitudes, formando uma seita que sempre é a correta, pois é uma crença e estas são sempre certas, com muita fé. Há uma florescente indústria de “alimentação natural” onde se defende, com unhas e dentes, a necessidade dos vegetais serem cultivados sem adubos ou agrotóxicos. Isso é, puros e virgens como deve ser o homem íntegro. Há também o puro mel obtido de abelhas treinadas que não se aproximam de flores envenenadas. A “comida natural” começa a ser um Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 144 negócio que é olhado com bons olhos pelos banqueiros. Eles nunca se enganaram. Nunca mesmo. Misturam-se símbolos de alto e baixo nível numa bagunça total: crucifixos, ferraduras, pé-de-coelho, trevo de quatro folhas, amuleto, dentes e diversos outros, confundindo a orientação e a cabeça de qualquer “crioulo doido”. Cada ferramenta ou símbolo “protege” o indivíduo daquilo que ele teme, dando-lhe uma pseudossegurança e sentido para a vida sem sentido. Isso faz lembrar o grande movimento hippie dos anos 60. Cabelos grandes, jeans, tênis e alguma sujeira era o máximo de contestação ao “sistema”. A recusa em usar outros tipos de roupas, acreditavam eles, era uma maneira de protestar contra o desvairado consumo da época. Pois bem, os hippies mais espertos se aliaram a não menos espertos industriais e hoje temos a moda “jovem” vendendo e muito: ela envolve milhões de dólares. Figurinistas, cabeleireiros, perfumistas e outros profissionais não tardaram a entrar no negócio e todos viveram felizes até surgir uma nova moda, a unissex, que fatura de outra maneira. Dizem até que a moda unissex foi criada pela conjunção de heterossexuais não muito convictos e homossexuais ainda não-assumidos. A eliminação da individualidade e solidão está sendo conseguida através do uso de roupas, de penteados, de discursos e até de fragrâncias, por um mesmo grupo, que imagina com isso estar protegido e seguro. Livros estranhos sobre as mais estranhas ideias têm a mesma tiragem dos livros sobre computação. Calcula-se que um manual de operação de pêndulo vendeu mais de 100 mil exemplares em pouco mais de um ano. Tome-se que a tiragem básica no Brasil é de 10 mil exemplares e calcule o sucesso dos ensinamentos para as ideias místicas. Revistas místicas de ufologia, comida natural, sexologia e outras coisas do mesmo gênero são compradas pelo mesmo leitor que leva as de rock, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 145 programação básica e vídeo. Em alguns países já é possível comprar as antigas e puras receitas de bruxas em fitas, CDs e DVDs. É o progresso da ciência. Os roqueiros gostam principalmente dos conjuntos de “heavy metal”. Esses são autores e donos de gestos que, em outras épocas, os levariam diretamente para as fogueiras. Hoje eles causam o delírio de multidões de jovens, alegria para os felizes produtores. Não se sabe realmente o que é mais demoníaco, se os gestos ou a estrutura publicitária montada em cima do assunto, criando a necessidade de pertencer aos grupos. A pessoa deposita no guru a mesma confiança, ou mais, que a que é descrita no resultado de sua tomografia computadorizada. Por via das dúvidas, consulta-se os dois: primeiro o guru, depois o clínico, mergulha-se no mais moderno arsenal quimioterápico e, caso escape, sai dizendo maravilhas acerca do guru. Isso não é de se espantar. Um arsenal de palavras, sem definição muito clara, tem sido usada por quase todo o mundo. Mental é uma delas, tem poderes mágicos e coisas do tipo “melhore sua vida mental”, “controle mental em cinco lições”, “controle sua mente”, são amplamente usadas. Democracia, comunismo, modelo, maduro, carência afetiva, feminismo, liberdade são outras palavras mágicas que todos expressam sem saber realmente qual é o significado delas e cada um, na verdade, cria o seu entendimento particular. Os embusteiros pós-modernos as usam a toda hora com os significados que lhes interessam. Oriente é outra palavra que eletriza as pessoas. De lá podem vir chips ou filosofia, tanto faz, há consumo para as duas coisas. O mesmo olhar embevecido com que o técnico olha essa maravilha da ciência que é o chip, mais tarde será utilizado para o guru, dono de frases que serão vendidas aos milhares em livros distribuídos por todo o Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 146 país. Produtor de chips e gurus têm possibilidades iguais de obterem o mesmo lucro. Fazer filtros de amor, beber poções mágicas que nossos pais-de-santo carinhosamente chamam de “garrafadas”, não exclui o uso da técnica, a vida moderna, a pesquisa científica e o ensino universitário. Na verdade a ciência também não escapa às superstições. As explicações da ciência vão até certo ponto, a partir do qual nascem as crenças, metáforas ou mitos para fornecer a compreensão dos fatos onde nenhuma explicação plausível é conhecida – nem possível – como, por exemplo, os conceitos de “energia mental” da psicanálise, a representação gráfica do átomo, o vetor como força física e assim por diante. As religiões e pseudociências, não sendo testáveis e tendo por base premissas logicamente interligadas, somente logicamente, não permitem contestação na sua composição mística. A tentativa de analisar estes fatos pelo ponto de vista científico costuma acabar em tragédia: o pesquisador pode virar guru. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 147 Afirmações Duvidosas A psiquiatria incorporou e se desfez de muitas verdades, hoje criticadas, como a caça e queima às bruxas, o mesmerismo, a malarioterapia, o eletrochoque, a insulinoterapia, a lobotomia e várias psicoterapias não-científicas, entre elas a psicanálise. A lista não termina aqui. Cada um desses modelos teve sua época com o nascimento, crescimento e esplendor, seus seguidores fervorosos, entre médicos, psicólogos e também entre os clientes e o público. Há pouco tempo surgiram mais duas novas verdades, como sempre aceitas como panaceias pelos seus adeptos: a neurolinguística e a psiquiatria biológica. Daqui a dez ou talvez vinte anos, no máximo, possivelmente acharemos graça em algumas de suas afirmações. É só esperar o tempo passar. Durante a minha adolescência ouvi um professor afirmar, em sala de aula, que a masturbação causava, entre outros males, a tuberculose, o reumatismo e a loucura. Mais tarde ouvi na escola de Medicina um professor afirmar que nós devíamos, ao examinar um paciente, pensar “sifiliticamente”, pois a sífilis imitava todas as enfermidades possíveis. Nós todos acreditávamos nessas afirmações. Os médicos, de tempos em tempos, enunciam suposições aceitas como verdades, tanto entre alguns cientistas como também entre a população. Muitas dessas declarações hipotéticas – anunciadas como verdades eternas – têm duração efêmera, outras permanecem vigorando por um período mais longo. Alguns desses profetas, mais geniais e corajosos, ganham notoriedade nacional, internacional e entre a população. Esses inovadores, ao ganharem maior poder entre o público e nas academias, entusiasmam-se passando a emitir julgamentos ou opiniões nos mais diversos campos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 148 do conhecimento humano, acreditando numa falácia: se são bons num setor, serão bons também nos outros. Os anunciantes se utilizam muito dessa generalização, colocam na TV uma personalidade famosa sugerindo o uso de um produto do qual ela nada entende. Olhando sob este prisma, o aparecimento desses “gênios” tem sido frequentemente danoso para a humanidade, às vezes uma tragédia para o conhecimento, pois ficamos presos a conhecimentos errados por anos e anos, como “A Terra é o centro do Universo”, “O Sol é o centro do Universo”, “Nossa galáxia é o centro do Universo”, “Não existem outras terras além das da Europa”, “Só podemos estudar as ciências físicas e biológicas, as psicológicas não, essas nos são reveladas”. As afirmações morais ou científicas, devido ao prestígio do “inventor”, ficam difíceis ou impossíveis de serem criticadas: ninguém se atreve a ir contra as ideias do gênio criador, pois esse é intocável. Por tudo isso, uma vez lançadas as “profecias” do sábio, o conhecimento naquela área é obscurecido, penetra-se numa era negra da história do pensamento humano, devido ao poder da barreira simbólica intransponível, que impede o nascimento de novas e produtivas ideias. Um exemplo ainda vivo é o das ideias freudianas. Essas dominaram mentes diversas, por anos, impedindo o crescimento do conhecimento acerca do ser humano. Morre hoje “sem foguetes e sem bilhetes”, não deixa sementes capazes de produzir nada útil para o crescimento da psicologia. As hipóteses ou teorias equivocadas dos sábios só desaparecerão com a morte dos autores delas e, principalmente, de seus fiéis seguidores. No início do século XIX, ganhou notoriedade nos Estados Unidos um professor de Psiquiatria, Benjamin Rush. Usando de seu poder, passou a ditar normas morais para a população americana. Sua principal pregação foi a respeito da masturbação. Para o Dr. Rush, pai da psiquiatria Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 149 americana, a masturbação, por ser um mal terrível, devia ser combatida a qualquer preço. Seu prestígio reuniu seguidores. Teses foram escritas condenando o terrível mal, tratamentos estranhos foram recomendados: vários clitóris foram decepados, algumas mãos amarradas para proteger e impedir as vítimas de caírem na tentação e tornarem-se “doentes”. Esse professor afirmou durante suas conferências e artigos: “a masturbação provoca fraqueza do sêmen, impotência, disúria, ataxia motora, fraqueza pulmonar, dispepsia, redução da visão, vertigem, epilepsia, hipocondria, perda de memória, imbecilidade e morte”. Pinel, o grande psiquiatra, não ficou para atrás, tendo afirmado acerca do mesmo assunto: “A masturbação leva à ninfomania”. Esquirol, outro famoso médico, completou: “A masturbação é reconhecida em todos os países como sendo uma causa comum de insanidade”. Em 1854 foi publicado um editorial no New Orleans Medical Surgical Journal que dizia, entre outras coisas: “Em minha opinião, nem a peste, nem a guerra, nem a varíola, nem uma multidão de males semelhantes foram mais desastrosos para a humanidade do que o hábito da masturbação: é o elemento destrutivo da sociedade civilizada”. Encontrei em minha biblioteca com relíquias de livros selecionados por meu pai um discurso proferido em 1927 por um famoso professor da medicina brasileira. Em respeito a ele, deixo de citar seu nome. Esse trabalho foi impresso e distribuído pelo governo brasileiro aos colégios “em virtude do seu alto valor educacional”, recomendado para ser lido em sala de aula. Eis alguns trechos do famoso discurso: “O álcool é o maior agente de degeneração da raça; a todos ataca e a todos degenera; é a família alcoólica dos beberrões, com os seus epilépticos, imbecis, loucos, deformados e monstros. A beberronia dos pais prolonga-se nos filhos através do óvulo: pais bêbados, filhos beberrazes, netos criminosos… nem ao menos é um tóxico elegante, só ao alcance das bolsas fortes dos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 150 ricos; ao contrário, é o vício deselegante propiciado ao pobre pelo seu ínfimo preço”. Não estou aqui fazendo críticas à inteligência desses senhores, ao seu pioneirismo e coragem. Nós devemos muito a eles e sem sombra de dúvida todos foram personalidades marcantes, líderes em suas áreas e altamente capazes. Humildemente, com todo o respeito, quero dizer que creio que eles foram longe demais ao afirmar a respeito de valores e as escolhas de cada um. Suponho que cada cidadão tem o direito de escolher seu caminho, desde que respeite os outros. Os que apreciam a bebida e os masturbadores não foram respeitados por esses insignes mestres. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 151 A Loucura: Fabricação da Normalidade Em 1509 Erasmo de Rotterdam publicou o livro “Elogio à Loucura”. Suas ideias, muitas delas ainda atuais, constituem críticas ao chamado bom senso, ao comportamento racional, à sisudez do indivíduo “quadrado” e bem adaptado, em oposição à “loucura” que seria a espontaneidade, a liberdade de expressão e ação e das emoções. Para ele a loucura seria inata, enquanto que o “normal” seria imposto e não humano. Os chamados “loucos”, até o século XV viviam de maneira harmoniosa com a população de “sadios”. Estes cultivavam a tolerância e as peculiaridades ou idiossincrasias de cada cidadão, que eram aceitas e respeitadas como adequadas à sua natureza singular. Esse relacionamento harmonioso entre os chamados “normais” e os “não-normais” ocorre ainda, com frequência, nas pequenas cidades do interior do Brasil. O conceito de loucura, condição própria de cada pessoa, a partir do fim do feudalismo - início de burguesia - começou a ser modificado quando apareceu um novo modelo daquilo que seria aceito como sendo a natureza humana. Esse novo padrão teórico acerca do homem era, não só mais restritivo - menos tolerante com as diferenças individuais - como, também, mais prescritivo. As pessoas, para não serem taxadas de loucas, deveriam se comportar, talvez até pensar de acordo com o novo padrão “instituído e correto” de conduta. A recém-criada “natureza humana”, fabricada pela sabedoria burguesa, enfatizava as qualidades da virtude, contenção, parcimônia e razão, que eram exigidas a todo e qualquer preço. A partir da nova tese defendida, a loucura foi encurralada e criticada conforme o novo padrão de normalidade das pessoas. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 152 As sociedades começaram a estreitar os seus limites de normalidade, passando a rotular o “louco” e “não-louco”, o “são” e o “patológico”, o “normal” e o “anormal”, como extremos intocáveis de uma escala de medida do certo e do errado, onde um comportamento era valorizado, o outro não. A partir dessa constituição, novas regras de conduta passaram a ser exigidas, somente algumas aceitas como corretas. Em lugar de trabalhar para viver, o indivíduo passou a viver para trabalhar. A definição do normal, que antes se apoiava muito na maneira de ser do indivíduo singular a ser avaliado, passou a ser estabelecido, utilizando-se um modelo supraindividual, criado não mais das necessidades ou interesses de cada uma pessoa, mas sim das necessidades do conjunto abstrato: economia e trabalho colocado a serviço da produção. Esse novo critério decretou o fim do singular, ao generalizar o indivíduo. Tornou-se errado ou anormal ser particular. Só o geral seria normal e o que sair do padrão será considerado “doente mental”. Mas nem todos concordaram com essas regras, alguns se rebelaram, surgindo um novo problema: “Como conter os insubordinados em um estado que se dizia liberal e cheio de humanismo”? Anteriormente os revoltados e rebeldes eram lançados à fogueira, mas essa prática não é mais tolerada. Na nova sociedade nós, os bondosos, racionais e virtuosos deveríamos ser capazes de compreender e tratar os “loucos”. Nasceram assim as instituições encarregadas de cuidar deles, ou seja, de coletar o lixo humano produzido e rejeitado pela sociedade burguesa. Nasce então a figura ilustre do psiquiatra, juntamente com a criação dos hospitais destinados a proteger os “normais” do perigoso contágio dos loucos. Esse modelo do homem moderno, criado em torno do séc. XV, forçou a eliminação de um sentimento sempre existente na mente de grande parte dos homens dessa época, ou seja, a permissão da liberdade inVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 153 dividual. Para a nova ideologia implantada, a liberdade individual é incompatível com a subordinação a uma atividade, seja de trabalho ou seja de lazer, altamente vigiada, lógica, ditada de fora. Essa coação, até aquela época, só existia nas prisões. O novo conceito de natureza humana, estranhamente, construiu o corolário: somos “livres” ao nos subordi narmos às ideias do Estado, dos empregadores, religiosos ou de qualquer outro grupo poderoso. Foram criadas para manter a ordem estabelecida, visando o normal, leis que exigiam a obediência às normas, cujo objetivo era proteger as classes dominantes. Os mendigos, vagabundos, os ociosos e “loucos” de qual quer espécie passaram a ser tratados como eram antes o marginais: banidos da sociedade. As instituições, frutos dessas ideias - casas de correção e de trabalho, hospitais em geral - teriam como função principal limpar as cidades da “sujeira” desses desajustados. Os “hospitais” foram destinados a receberem os grupos de “marginais” da sociedade sadia – os diferentes – um lugar onde, na maioria das vezes, não pisavam os médicos, só iam para visitas ocasionais. A direção dos hospitais, entregue às irmãs de caridade, tratava coercivamente os enfermos através das orações, penitências e práticas adaptadas ao ensinado. A medicina daquela época precisava construir ou mesmo inventar explicações para suas ações irracionais, que se diziam alicerçadas em bases lógicas e humanísticas. Foi criada então a “psiquiatria científica”. Esta “descobriu” sinais e sintomas nas pessoas, indicadores de doença mental. Esses, na maioria das vezes, eram preconceitos ou delírios dos psiquiatras da época, tendo como “pano de fundo” a moral vigente. Eis alguns exemplos dessa “psiquiatria científica”: “A loucura está localizada nos vasos sanguíneos”, “A oposição à revolução americana é uma forma de doença mental e o apoio uma forma de terapia”, “Sanidade mental é a aptidão para julgar as coisas como os demais julgam e possuir hábitos regulares e insanidade é um distanciamento com relação a isso”, “Conformismo social equivale à saúde mental e inconformismo Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 154 corresponde à doença”. A maneira de pensar e de agir em desacordo com a forma tradicional passou a ser a principal característica da nova doença mental, sendo diagnosticada através de vários dispositivos que mediam a maneira normal e coletiva de se comportar, necessária à manutenção e crescimento da burguesia e da harmonia social. Portanto, os primeiros psiquiatras eram muito mais “reformadores sociais evangélicos”, pregadores de uma ética puritana para todos, do que médicos, preocupados com o bem-estar de seus pacientes. A cura ocorria quando o paciente aceitava e se comportava de acordo com as normas sociais pregadas pelo médico assistente. Infelizmente, esses comportamentos “moralistas e normalistas” ainda são vistos com alguma frequência em nosso meio. Os clientes, muitas vezes, são julgados, inicialmente pelos familiares, posteriormente pelo psiquiatra, como possuidor de uma conduta normal ou anormal, conforme os padrões e valores percebidos e usados pele grupo dos examinadores num certo momento. O cliente pode ser repreendido, tratado sem o desejar, ou “preso” no hospital, por não tolerar ou não conseguir conviver numa sociedade que tem como valores fundamentais o trabalho, a produção e o consumo. Curvando-se à pressão externa que exigia mão-de-obra barata, trabalhadores braçais foram usados, em profusão, para atender às necessidades dos sub-empregos oferecidos: a psiquiatria, atenta às necessidades dos empregadores, procurou acelerar os processos de “cura”, visando o retorno ao trabalho dos candidatos o mais rápido possível. O psiquiatra, ingenuamente, passou a ser agente da “normalização” quando a sociedade lhe outorgou o poder de examinar, julgar condutas e Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 155 impor um tratamento após seu veredicto, em nome de um suposto bem-estar geral e social da coletividade e da manutenção da ordem pública estabelecida. Nasceu assim a relação não-recíproca com a tutela regulamentada conforme a crença: o tutor é o competente, o tutelado é o incapaz e irresponsável. Os tratamentos prescritos em grande parte tinham como objetivo principal a integração e o conformismo social. A implementação da psiquiatria preventiva, como ocorre com outros campos de saúde, tornou possível a ação dos especialistas antes do aparecimento da “doença mental”, ao descobrir sintomas e sinais nos suspeitos. Desse modo, como é sabido, em certos locais e ocasiões, os “sãos” passaram a examinar populações inteiras, tendo à mão o mandado de “busca e apreensão” para os “anormais” detectados. Felizmente, nos últimos anos, um grande número de psiquiatras vem questionando, duvidando e desmitificando milhares de afirmações e dezenas de teorias criadas por alguns “gênios” da psiquiatria, baseadas, muito mais, em verdades reveladas ou em pressões sociais, do que em observações científicas bem sistematizadas e críticas. Uma por uma, essas “verdades” vêm sendo discutidas, não substituídas por “novas verdades” dogmáticas, mas analisadas, através da dúvida constante e equilibrada. O novo caminho traçado é o abandono definitivo de crenças eternas, baseadas na autoridade iluminada, no seu prestígio, na sua sabedoria acima de qualquer suspeita. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 156 AIDS: O Pânico está Solto O medo da AIDS tem-se tornado, talvez, uma doença mais grave que a própria AIDS. Um novo tipo de pacientes começa a ser identificado nas salas de espera dos clínicos e dos psiquiatras: aquele que busca desesperadamente uma ajuda, acreditando estar contaminado pela AIDS. Nesse padrão se enquadra o que limita sua atividade sexual com medo de apanhar a doença e o que não limita. Ambos, em pânico, procuram os médicos e se dispõem a submeterem-se a exames. Um paciente de 45 anos imaginava suicidar-se depois de ter mantido relações sexuais com uma amiga. Esse paciente, casado, perfeitamente ajustado até então, começou a fazer exames médicos e, como nenhum era realmente conclusivo, foi fazendo outros, até se ver numa ciranda sem fim. Ele não pertencia a nenhum grupo de risco, nem sua amiga, uma recatada e pura funcionária pública. A cada exame, que respondia negativamente aos seus temores, ele exigia outros mais sofisticados. Enquanto isso, incomodava-o uma persistente diarreia – o início de seu medo. Era uma diarreia de origem emocional, como mais tarde ficou demonstrado. No Brasil, entre outros, foi registrado um caso doloroso: um homem suspeitando – apenas suspeitando – de que estivesse com AIDS, matou a mulher, os filhos e suicidou-se. A autopsia mostrou que não passava de um medo infundado. Ele não tinha a doença. O medo de uma doença e outros estados emocionais atingem, primariamente, o espírito e, secundariamente, o corpo e as relações sociais. A literatura médica é repleta de casos de pessoas que morreram por medo do câncer ou da solidão. Entre os casais unidos há anos, não é raro um cônjuge morrer pouco depois da morte do primeiro. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 157 O leigo “explica” fácil e rapidamente a realidade, longe dos fatos: “A diarreia foi devida a uma laranja chupada”, “A loucura dele é castigo divino”. A tuberculose, que em épocas passadas não era bem conhecida quanto à causa, teve o seu período mítico áureo. As mais diversas “teorias” foram elaboradas, sendo cada uma fruto dos desejos, crenças, experiências e dramas de seus criadores. À medida que se conheceu melhor essa doença, os novos fatos impiedosamente jogaram por terra, destruindo as belas fantasias de seus autores. A AIDS ainda está no apogeu, ainda recebe hipóteses variadas, a maioria repleta de fantasias. Sendo pouco conhecida, ela dá margem à criatividade de cada um de seus explicadores. O discurso de cada um tem pretendido conhecer a realidade, organizá-la, impor normas de conduta, segregar pessoas, proteger, etc. As lacunas do desconhecido, muito frequentes, são preenchidas “com os delírios” e propósitos de cada um ou de cada grupo, conforme a concepção de mundo do indivíduo que vai explicá-lo. É possível ouvir, ditas com seriedade, frases do tipo: “AIDS é obra da engenharia genética”, “É um castigo para a liberdade sexual exagerada” e “Os portadores de AIDS devem ser esterilizados e, ao mesmo tempo, eliminar a sua potência sexual”. O fruto de todas essas fantasias, mitos e histórias mal contadas é o pânico diante do pouco conhecido, assim como foi a tuberculose, a lepra e a peste negra. Possivelmente, à medida que os fatos se forem tornando conhecidos, ficará o medo sensato e objetivo da doença, não mais o horror que está tomando conta dos amantes, até de alguns médicos e profissionais ligados à área de saúde. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 158 Fé: Um Poderoso Medicamento Uma visão retrospectiva na história da medicina nos conduz a uma constatação no mínimo estranha ou insólita: grande parte dos pacientes que consultaram os médicos, em épocas passadas, foi ludibriada. Isso ocorreu não por má-fé dos seus clínicos, mas sim em virtude de que os procedimentos físicos e medicamentos usados em grande parte dos casos não possuíam qualquer efeito farmacológico esperado sobre a condição que era tratada. Posso afirmar, sem muito medo de errar, que a grande maioria dos médicos do passado ajudaram os clientes muito mais através de técnicas psicológicas intuitivas, do que em virtude dos chás, poções, ervas, sangrias, incisões, xaropes, catárticos, sacrifícios em animais e em seres humanos, fumigações, enemas, vomitórios, penitên cias e outras técnicas largamente utilizadas no passado. As “causas” das doenças para a medicina pré-científica eram bem mais simples do que as atuais. Às vezes a “doença” era causada por um distúrbio ocorrido com os elementos básicos da natureza e, logicamente, do organismo – terra, água, fogo e ar – esses, teriam que ser restaurados. Outras vezes, a doença era proveniente de uma possessão demoníaca e o tratamento indicado era o exorcismo do malfeitor. A possessão era combatida, e ainda o é, com bons resultados, através de orações e rezas, danças e cânticos, numa variedade de rituais. Quando o demônio era poderoso, a técnica era a de passá-lo para uma outra pessoa. Outras doenças surgiam devido ao “mau- olhado” ou eram colocadas” por pessoas poderosas e más. Assistimos atualmente a uma descrença na medicina tradicional, ao mesmo tempo um retorno às medicinas chamadas alternativas e às técnicas antigas. Essas têm, como sempre tiveram, a sua clientela fiel, agora Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 159 em crescimento. Uma boa parte dos dirigentes dessas “clínicas” são leigos mas, a cada dia mais, médicos formados por escolas tradicionais engrossam a fileira dos “curadores mágicos”. Cada grupo dá sua explicação “científica” do mecanismo das doenças, sua etiopatogenia – assim como das causas – sua etiologia e explicam a lógica e a razão dos tratamentos instituídos. Todos têm algum sucesso. Para alguns a leitura das mãos permitirá um perfeito diagnóstico e prognóstico da doença e do doente, ou até revelará a doença ainda não ocorrida mas que acontecerá – é a medicina palmar preventiva. Para uma outra “medicina”, toda e qualquer doença é mostrada, apenas para mentes especiais, através dos globos oculares. Os olhos, sendo o “espelho da alma”, fornecem indícios evidentes e insofismáveis das doenças orgânicas e mentais. Alguns “consultam” através das cartas ou dos búzios, outros pelos horóscopos – até por correspondência – e outros ainda, simplesmente adivinham o que o paciente apresenta através do seu po der de vidente, como os sensitivos e os paranormais. Todos esses grupos, junto aos médicos, exercem a ajuda aos doentes, necessitados e carentes, cada um acreditando mais e mais em suas próprias técnicas e pouco ou nada nas dos adversários. Eu, com a minha medicinazinha simples e acanhada, com pouco, ou melhor, sem nenhuma certeza, fico perplexo com tanta fé e verdades ditas com tanta empolgação e segurança. Sei, assim como você, leitor, que todas elas “curam”. Uma boa parte dos pacientes volta à normalidade após qualquer um tratamento. Cada grupo de clientes, convicto da capacidade do seu “curador”, seja ele médico ou não, defende, elogia, prova e preconiza para os seus amigos, o tratamento usado. A situação é semelhante à dos pacientes que se submetem por muitos anos ao tratamento psicoanalítico e que percebem o seu terapeuta como o mais capaz, sábio, mais eficiente e inteligente. Da minha parte, particularmente, sou um tanto São Tomé, “ver, para Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 160 crer” é uma de minhas regras favoritas. Tanto assim que em minhas aulas na Faculdade de Medicina da UFMG já fiz comparecer umbandistas, espíritas, cartomantes, professores de I Ching e diversos outros profissionais da saúde física e mental que expõem suas ideias, as quais são debatidas com os estudantes. Julgo estar aprendendo muito. Nesse ponto desejo lhes contar uma experiência pessoal e que era aqui guardada sigilosamente. Há anos passava férias em Santa Maria de Itabira, com duas filhas, uma delas com 16 anos naquela época e que sofrera um corte, em uma das mãos, produzido por um caco de vidro de uma garrafa quebrada acidentalmente. Já havia meses que o fato ocorrera e ela se queixava de que a dor na mão não passava e que além disso tinha dificuldades para executar movimentos normais. A outra, com 8 anos, apresentava uma inflamação palpebral, rebelde a tratamentos normais, aos quais já havíamos recorrido. Seu oftalmologista informou-me que o melhor seria lancetar e limpar o tumor e, por ser uma região delicada, seria prudente dar-lhe anestesia geral. Por precaução, adiei a pequena cirurgia. Em uma tarde, quando trafegava na cidade em meu jeep, combinamos fazer uma entrevista com um famoso “curandeiro” local, autor de várias curas fabulosas. Munido com a minha filmadora nos dirigimos para a entrevista. A gravação foi permitida pelo curandeiro, ficando marcada para uma hora mais tarde, pois ele desejava, antes, tomar um bom banho e se aprontar. A entrevista, que durou cerca de uma hora e meia, está ainda gravada e recentemente revi o tape. Correu tudo a contento, com várias explicações e demonstrações orais do meu companheiro de atividade – ouvir e ajudar pessoas que estão sofrendo. No final pedi ao renomado profissional que fizesse algo de prático e real para ajudar as minhas filhas que, um pouco espantadas, mas seriamente, assistiam a toda a explanação. Prontamente ele atendeu meu pedido, gastando não mais do que três minutos para realizar a cura solicitada, utilizando-se de algumas rezas desconexas, às vezes inaudíveis, tendo sempre à mão o seu Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 161 terço, feito de contas de “lágrimas de Nossa Senhora”. Inicialmente seu alvo foi a mão esquerda da filha mais velha e, logo após, acrescentando algumas rezas a mais, dirigiu sua intervenção ao olho direito da mais nova. Pois bem, ficamos mais uma semana em Santa Maria. Após cinco dias, no máximo, as duas estavam curadas e não tiveram recidivas. É evidente que a ocorrência me fez pensar. Lembrei-me de Hipócrates: “as nossas naturezas são os médicos de nossas doenças”. Lembrei-me também de um professor, quando cursava a Faculdade. Em suas inteligentes aulas repetia, frequentemente, que uma grande parte das doenças são autocuráveis, isto é, nosso organismo, com sua misteriosa sabedoria e defesa elimina o mal e a disfunção sem ajuda externa. Falava sempre acerca da expressão “ilusão terapêutica”, o caso de uma cura espontânea e que se supõe ser devida a qualquer prática exercida ou medicamento usado. Lembro-me de seus exemplos: os diferentes remé dios são receitados como eficientes na cura de gastrites ou de úlceras. Entretanto sabe-se que essas doenças melhoram ou desaparecem, e também voltam, em virtude de diversos fatores. Muitas vezes, o pesquisador menos avisado atribui ao seu remédio milagroso a responsabilidade pelo êxito. Você, prezado leitor, que acredita na cura pela fé, perdoe-me por raciocinar da maneira acima descrita, diante de tanta evidência. Ao andar buscando construir meu caminho, talvez tenha traçado um caminho diverso do seu, mas nunca antagônico, talvez com mais semelhança do que se possa imaginar. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 162 A Santa que Fala Português Uma antiga história, de origem provavelmente hindu, conta que um cego perguntou a um sábio o significado de “branco”. — Branco é uma cor, como por exemplo, a neve, que é branca, disse-lhe o homem. — Eu compreendo, disse o cego. Ela é fria e úmida. — Não! Não! Ela não tem que ser úmida e fria. Ela é semelhante à pele do rato albino. — Então macia, uma cor coberta de penugens? Pergunta o cego. — Não! Não necessita ser macia: porcelana é branca também. — Talvez o branco seja uma cor dura e lisa, completou o cego. O homem, nesse ponto, perdeu a paciência e desistiu de dar explicações. Esta história ilustra a dificuldade, ou impossibilidade, de comunicação entre duas pessoas que não tiveram experiências comuns. Talvez este seja um dos grandes problemas do nosso tempo. Assisti certa vez a uma mesa redonda, reunindo jornalistas e juízes, quando se discutiu o poder judiciário visto pelos jornalistas. A discussão era principalmente sobre a dificuldade existente entre as linguagens dos juízes e a dos jornalistas. Segundo deduzi, um grupo não compreende o outro. De parte a parte surgiram argumentos acalorados, mas tudo dentro do mais alto nível. Durante as discussões um dos presentes argumentou: “Não vejo necessidade de modificar a linguagem de ninguém: todos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 163 nós falamos português”. Nada mais errado. Talvez seja mais fácil um juiz alemão entender um juiz brasileiro, mesmo que ele nunca tenha falado nossa língua, desde que tenha à mão um bom dicionário, do que um brasileiro comum entender a linguagem dos magistrados. O exemplo pode ser estendido para todas as áreas do conhecimento humano. O vocabulário de qualquer área é especializado. Os fatos e acontecimentos são codificados dentro de cada área e organizados de uma certa maneira, onde cada signo tem uma enorme riqueza de informações, conforme o estudo e observações dos peritos da área. Os mesmos sons, ou códigos, nada significam para os não-versados. Todos sabemos ligar uma aparelho de TV, entretanto um técnico em consertos saberá mais alguma coisa, já que seu modelo do aparelho é mais rico, mais abrangente e melhor coordenado em sua mente. Mas o engenheiro, projetor de aparelhos de TV, terá um mapa ainda mais detalhado, organizado e rico sobre uma televisão, do que o técnico em consertos. Nas outras atividades o mesmo ocorre. As palavras têm um significado especial para nós, porque tivemos experiências melhores ou piores, mais simples ou mais complexas com elas. Ao olharmos o dicionário, vamos encontrar apenas outras palavras, que significam coisas semelhantes, mas jamais a vivência ou experiência. Esta é crucial para o entendimento. Para obtermos experiência precisamos de tempo, talvez a vida toda, além da posse de algum talento na área onde investimos. Podemos, dessas reflexões, questionar, ao ler nos jornais notícias de que um lavrador, um empresário, uma beata, estão recebendo mensagens de Nossa Senhora ou de um ET. Como será que ela comunicou-se com eles? Como o cego? Será que a Santa aprendeu português e conseguiu captar nossas experiências cultuVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 164 rais e sociais deste final do século XX? Imagino que ela ficará bastante confusa ao ouvir as mensagens carregadas de problemas atuais do nosso mundo, diferentes das vividas por ela numa época X ou Y de sua história e, além de tudo, formulada em outra língua. Mas, de qualquer modo, sempre há leitores interessados nesse assunto fantástico, extraordinário. Quem não tem? Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 165 Doenças e Doentes Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 166 Câncer: O Paciente, a Família e o Médico O câncer é enfrentado, na maioria das vezes, com grande coragem pelo paciente, a família e seu médico. O oncologista é um profissional que sofre intensamente – às vezes até com reflexo em sua vida familiar – ao tentar curar, melhorar a qualidade de vida do paciente ou até mesmo ao acompanhá-lo em seu leito de morte. Além disso, o médico ainda suporta as tensões geradas pelas exigências de uma cura rápida, que nem sempre está ao seu alcance. No caso do câncer o médico, a família e o paciente têm suas vidas entrelaçadas até o final. O paciente com câncer produz no médico uma atitude de responsabilidade e reflexão, não somente pela gravidade da doença, como também pela sua evolução. O câncer, uma vez diagnosticado, vai exigir do doente constantes readaptações em sua vida, as quais são difíceis de serem executadas porque a própria doença, debilitando em muito as energias orgânicas, dificulta sobremaneira um retorno ao equilíbrio anterior. Também a busca deste novo equilíbrio será realizada em ambiente novo e estranho (médicos, enfermeiras, hospitais), exigindo maior flexibilidade e recursos por parte do enfermo. O corpo médico, conquanto estranho ao doente, tem a vida do paciente em suas mãos. Esse não tem nenhum modo de avaliar a capacidade da equipe médica, exatamente no momento em que a competência torna-se o fator decisivo de vida ou de morte, sendo natural pois, que se apresente dependente, medroso, desconfiado e irritado pela nova maneira de viver em que se encontra. Assim, a primeira dificuldade é a decisão sobre marcar consulta. Esta é marcada quando o enfermo percebe que seus próprios recursos “médicos e psicológicos” para explicar e tratar a anormalidade que lhe ocorreu falharam. Sente-se perdido e busca por ajuda. Alguns, logo aos primeiros sinais ou sintomas, resolvem ir ao médico, enquanto outros, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 167 tarde demais. Possivelmente ele próprio já tem seu diagnóstico. Todo ser humano tenta qualificar e explicar qualquer fato diferente que lhe ocorre. Este pode ser bastante acertado ou bastante errado, muito realístico ou muito ilusório e emocional. Essas informações iniciais fornecem ao médico as primeiras hipóteses acerca de que tipo de indivíduo encontra-se à sua frente e suas possíveis reações futuras. Essas impressões iniciais vão mobilizar no médico técnicas de conduta mais adequada para lidar com aquele cliente em particular, que atitudes devem ser combatidas, as que devem ser cultivadas ou mesmo introduzidas para que o tratamento possa ser conduzido satisfatoriamente. Holland acredita que 20% dos enfermos hospitalizados com câncer apresentam distúrbios emocionais significativos, exigindo maiores cuidados. Uma seleção precoce dos que provavelmente não vão cooperar com o tratamento é muito importante, já que esses podem ser identificados rapidamente por terem tido dificuldades anteriores ao lidar com crises em suas vidas. Há uma tentativa do ser humano para reagir de forma padronizada às várias exigências de sua vida. Alguns respondem aos grandes problemas de forma realística e adequada com pouca ansiedade e depressão. Outros se entregam totalmente a um estado de completa dependência e incapacidade, permanecendo com grande dificuldade de lutar para uma nova readaptação. Esses tendem a ver como enormes quaisquer dificuldades surgidas em suas vidas. Outros simplesmente negam a doença e não procuram o tratamento ou o iniciam para, em seguida, abandoná-lo. Para estes é difícil modificar e admitir modificação na sua imagem anterior de saúde. Se um indivíduo consulta um oncologista, de sua parte ou da parte de sua família, existe uma suspeita de que ele está com câncer. Também a atitude do médico durante o exame, suas perguntas, seu exame físico, seu pedido de exames laboratoriais, são pistas que fatalmente vão levar o cliente a pensar em câncer. Ao lado disso, a imprensa leiga constanteVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 168 mente publica artigos sérios ou menos sérios, alarmantes ou tranquilizantes, sobre o câncer que grande parte da população tem acesso. Toda essa mística acerca do câncer, somada à estrutura psíquica de cada indivíduo, leva o paciente a uma postura típica diante do médico. De maneira geral a palavra câncer provoca, por si mesma, a ameaça de morte antecipada e com sofrimento. Todos os seres humanos se projetam e planejam constantemente para o futuro, sua ação presente depende do que se pretende alcançar. Ora, a suspeita, a fantasia, ou o próprio diagnóstico do câncer destróem o planejamento futuro. O homem, no momento em que se percebe com câncer, fica sem futuro, pois surgiu-lhe um fato novo, que ele não conhece bem e não tem nenhum controle. O conhecimento de estar com câncer desestrutura-lhe a personalidade e parte do seus valores. A idéia “tenho câncer” é quase sempre um estresse violento pelas transformações que vão exigir para assimilação da nova idéia e prosseguir na sua trajetória pela vida que, a partir daquele instante, terá de ser reformulada constantemente em função da evolução da doença, suas consequências e sequelas. O câncer muitas vezes é visto pelo paciente como parte do seu destino, como um azar em sua vida ou até mesmo como castigo. Todas as outras pessoas, as que não têm câncer, passam a ser profundamente invejadas, inclusive o próprio médico e as que dele cuidam. O aparecimento do câncer exigirá uma readaptação ao novo tipo de vida muito semelhante ao que ocorre quando perdermos um ente querido e temos que viver sem ele com uma nova forma de vida. Geralmente as grandes preocupações com o câncer são a ameaça de perder o relacionamento com outras pessoas, medo de perder a independência, emprego e carreira, a integridade do corpo e suas funções e, por fim, relacionando a todos estes medos, o de morrer. Assim, o diagnóstico do câncer leva à confrontação com a possibilidade de separação da família e de amigos, perda de controle de vários papéis sociais, a modificações permanentes na aparência ou nas funções corporais e agressões na auto-percepção e na auto-estima. Essa confrontação está associada Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 169 com uma irreparável consciência da morte. Em alguns casos, o terror de morrer exercerá um efeito de desesperança, uma reação tão intensa, que pode ter um efeito mortal mais poderoso do que a própria doença. A abordagem para a criança deve ser diversa da do adulto. O modo de comunicação da criança é diferente. Esta tem dificuldade de discutir seus sentimentos. O médico deve ter cuidado de não tratar a criança como coisa, deixando-a de lado na sua comunicação. Os rigores do tratamento médico, o tipo de hospital onde é internado, as melhoras ou pioras no seu estado e o sempre presente medo da morte exigem readaptações psicológicas difíceis e penosas por parte da criança e de sua família. O aparecimento do câncer em um dos membros do sistema familiar vai gerar inevitavelmente desequilíbrio ou desarmonia no mesmo. Este distúrbio será tanto maior quanto maiores os canais de comunicações ou ligações que o membro doente tiver com o resto do sistema. Concretamente falando, um pai de família que adoece com câncer pode afetar pouco o sistema familiar se for elemento pouco importante na vida e função do sistema. Assim, se este pai tiver como função quase que somente suprir as necessidades financeiras do grupo, e se após sua doença o sistema familiar tiver dinheiro suficiente para prover suas necessidades normais exigidas pelo sistema, este pouco se alterará. Por outro lado, suponha-se um câncer que surge em um garoto de três anos, que com sua graça, sorrisos, brincadeiras, desenvolvimento etc. tem sido a grande fonte de prazer, de contato, de comunicações diversas, como do relato de suas proezas, de sua inteligência, de seu sucesso, do orgulho familiar e de contato com outros parentes e vizinhos. Neste caso o sistema poderá sofrer desequilíbrio brutal, dificílimo de se readaptar, sujeito muitas vezes à cisão total e desmoronamento, onde o médico ficará com grandes dificuldades para trabalhar. Portanto, é necessário que o oncologista perceba o poder e a influência que o membro acometido da doença tem no seu sistema familiar, quais são as regras básicas desse sistema, que tipo de desequilíbrio ocorre nas várias fases de sua doença. De posse desses Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 170 dados o médico pensará melhor quais técnicas utilizará para tentar restaurar o equilíbrio do sistema, ou mesmo, se há necessidade de ensinar a família uma nova forma de vida, às vezes bem diferente da anterior, mas adaptada à realidade atual, agora modificada pela doença de um dos membros do sistema. O outro fator que fatalmente afetará o equilíbrio do sistema, além da doença de um dos seus membros, é a presença do próprio médico, como também dos seus auxiliares, do hospital, das enfermeiras, etc. O médico deve perceber que sua presença na vida do paciente é fator importante no sistema de vida e, como já foi dito, vai alterá-lo em grau maior ou menor. Todo médico experimentado já percebeu este fato, por centenas de vezes, quando a família luta e busca manter-se ou tenta equilíbrio através das técnicas e condutas antigas, que não mais funcionam, pois a situação agora é diversa. O médico, dependendo de sua personalidade e carisma, poderá ter influência extremamente feliz, sábia, ordenadora e produtiva no sistema familiar, como também pode romper, desequilibrar e arruiná-lo por não fornecer aos membros aflitos, inseguros, desconfiados, nenhuma forma de vida adaptada ao novo estresse. O jovem médico começa o seu trabalho cheio de esperança, muitas ambições terapêuticas e assim se lança na luta contra o câncer. Na sua prática diária se vê confrontado com ampla gama de situações emocionais muito intensas, que lhe exige muito correta e imediata posição conceitual. Esta posição nem sempre é explícita e ainda que seja, nem sempre o é em toda dimensão e profundidade que a tarefa exige. Esta atitude mental, à frente de sua árdua tarefa, pode ser considerada como a essência de sua adaptação à mesma. Sem critérios claros, nem orientação explícita, deixados muitas vezes à sua própria sorte, ora mal, ora bem motivados vocacionalmente e quase sempre sem poder falar de tudo isto, os médicos oncologistas têm-se posicionado como têm podido. Alguns têm feito boa adaptação que não comprometem psicologicamente nem suas condutas, nem seus critérios Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 171 médicos, assim como sua saúde ou vida familiar; outros, entretanto, em graus diversos e em diferentes proporções, em virtude da pesada carga que suportam, têm desenvolvido condutas pouco adaptadas, com grande sofrimento de sua parte, que podem chegar a comprometer diversas áreas de sua vida, de sua tarefa e de sua família. O sistema do paciente-família pode facilitar, animar o médico na sua luta; também pode desanimá-lo. O doente derrotado, com sua família sem esperança, exercerá sobre o médico força negativa. Neste caso, o médico busca somente em si mesmo a força para o combate da doença. A força do médico é limitada frente a doença e a morte. Ora, se necessários, deve ser acertada uma conversa calma, honesta, entre médico e doente. Se o médico não discutir, o paciente estará discutindo consigo mesmo através de informações, não raro, errôneas ou parcialmente verdadeiras que ele adquiriu de jornais, amigos e fábulas. Ninguém mais capacitado do que seu médico para remover as informações errôneas, tranquilizá-lo ao mostrar-lhe as possíveis saídas para o seu problema, como também conseguir a sua cooperação no processo terapêutico. Muitos autores comentam a inocência do médico ao negar informação ao canceroso. A mensagem verbalizada não é a única informação entre pessoas. Frequentemente, uma comunicação analógica atua como mensagem poderosa que não se comunica verbalmente. Muitas vezes a mensagem pode conter duas afirmações contraditórias: “Você tem um tumor benigno, mas vai ser necessária uma cirurgia grande por precaução, seguida de radioterapia e de uma castração”. Neste caso houve comunicação paradoxal pois a importância dada ao tratamento contradiz a benignidade do diagnóstico. Comunicações como essas correm o risco de fazer surgir uma ruptura das comunicações médico-paciente em momento em que o paciente mais precisa ter alguém para falar e ouvi-lo. O médico naturalmente fará o possível e o impossível para curar o doente, e para isso deverá ter como aliado a família do paciente na sua Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 172 luta contra a morte, por uma melhor qualidade de vida e conforto para quem está sofrendo. Se o médico perceber que o sistema familiar trabalha no sentido de desanimá-lo, cabe-lhe, após a identificação, atuar no sistema familiar, se possível, ou buscar dentro de si mesmo outras fontes de energia, como, por exemplo, vendo o caso como um desafio, estudar outras técnicas, discutir com colegas etc. O oncologista deve ser, para o bom desempenho de sua função, capaz de sentir adequadamente as emoções positivas e negativas que lhe são comunicadas, julgá-las para avaliar os melhores meios de intervenção assim como suas consequências. Todos aqueles que trabalham com cancerosos e respectivas famílias, como médicos, enfermeiras, assistentes sociais, atendentes, deveriam ter treino em psicologia relacionada a esta área, desde que já existe grande quantidade de conhecimento em cancerologia psiquiátrica possível de ser aplicado e disseminado. Idéias falsas acerca do câncer, como o mito generalizado até entre muitos clínicos e estudantes de medicina, da sua incurabilidade devem ser contestadas. Na verdade, o câncer faz surgir, para muitos, um medo maior do que de muitas doenças que são tão graves ou mesmo de prognóstico pior. Outras idéias necessitam ser reexaminadas como acentuam certos autores como a de que a sociedade determinou que a vida deve ser salva a todo custo e o hábil cirurgião é doutrinado para este fim. Tem sido mostrado que já é tempo de observar mais de perto o preço e aqueles que o suportam. A ênfase deve ser colocada na qualidade de vida existente que deve ou não ser salva. O problema de o que dizer e como dizer ao canceroso provavelmente tem tantas respostas como tem o número de oncologistas. Cada médico utiliza um método conforme seu próprio sentimento ou falta dele acerca do problema. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 173 Obsessivos e Compulsivos Milton é uma pessoa estranha. Ele nunca pisa nos frisos que costumam separar os lances dos passeios. Se entra por uma porta em uma loja, de forma alguma sai pela mesma porta. Convidei-o para lanchar comigo. Ele lavou as mãos e sem enxugá-las na toalha, balançou-as no ar, exclamando sem graça: - Economizo a toalha. E olhando para as mãos, balbuciou: - Está ventando. Elas secam depressa. Milton tinha medo de toalhas alheias. Após o café, bebemos um vinho. Como se sabe, este propicia o escoamento, sem violência, das fantasias que encobrem os caprichos secretos dos homens. Suavemente seus pensamentos e imagens esquisitas desabrocharam, mostrando uma mistura confusa de valores contraditórios, na luta pelo domínio das ações. Medrosamente, as fantasias singulares abandonaram o esconderijo seguro, para fluírem deslocadas, leves, modificadas, algumas até belas, através de sua voz abafada e nervosa. Sem êxito, procurava as palavras capazes de descrever as situações incomuns do seu mundo: - É… guardo pensamentos estranhos. De uns tempos para cá passei a achar que estou sujo. É um sujo diferente, que não sai com água e sabão, nem é um sujo moral. Não sei lhe explicar direito. Milton, angustiado, procurava os termos. Os conceitos usados nas experiências do dia-a-dia não descrevem com precisão as imagens carregadas de emoções. Ele buscou as metáforas. Também essas são pobres para expressar as fantasias, emoções e ideias extravagantes do nosso Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 174 mundo íntimo. Talvez precisássemos inventar palavras especiais para essas descrições. Milton, tossindo nervosamente, os olhos lacrimejando, prosseguia: - Após imaginar-me sujo, achei que meu corpo sujaria tudo o que tocasse. Assim parei de ir à missa e fugi de todos os frequentadores da igreja. Ah!… Nos domingos aumenta meu sofrimento. Moro perto da igreja, observo, de minha janela, as pessoas entrando e saindo da missa. Sei que é doideira minha, mas enxergo claramente um pó feito de resíduos de hóstias, finíssimo e brilhante sob o sol, dançando ao sabor do vento quente, saindo da roupa dos fiéis. Essa maldita poeira sobe e, lentamente, invade todo meu corpo. Sinto-me, nesse encontro, como se fosse uma lesma repugnante, andando, roçando, penetrando e sujando o corpo sagrado de Cristo. Envolvido pelo pó sagrado, não sei o que fazer. Impotente e desesperado, corro para o chuveiro, numa tentativa tola e vã de limpar-me. O contato da água deslizando morna no meu corpo trêmulo, por mais de uma hora, acalma-me, mas o sujo permanece preso por longo tempo. Debaixo do chuveiro, sou atormentado pela obrigação de contar, minuciosamente, as juntas dos azulejos. Já fiz isso milhares de vezes. Consolei-o como pude, enquanto procurava inspiração no vinho. Disse-lhe que ele apresentava uma ideia obsessiva, isto é, uma ideia intrusa, que invade a nossa consciência sem que a gente a deseje. O seu ato, evitando pisar nos frisos do passeio, é uma compulsão: a pessoa sente-se obrigada a realizar um ritual tolo, sem objetivo definido. Expliquei-lhe que esse comportamento é normal, quando ocorre num grau moderado. Para alegrá-lo, comentei que esse sintoma aparece com mais frequência nas pessoas de nível intelectual e cultural mais elevado. Sabia que dar um nome para o seu relato era pouco. Milton sentiu-se mais seguro. É curioso constatar que as pessoas se julgam protegidas com conceitos, mesmo quando eles não representam uma entidade. Ele prosseguiu: Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 175 - Quase todos os meus irmãos são assim. Uma das irmãs assiste a várias missas aos domingos, por julgar que não se manteve suficientemente atenta nas missas anteriores. A missa, segundo ela, só é válida se assistida sem nenhuma distração. À noite, cansada e culpada, caminha encurvada pelas ruas retornando para casa amargurada, lamentando o pecado cometido. Tenho um irmão que lava as mãos sem parar; isso acabou ferindo suas mãos de tanto serem lavadas. Uma tia, para sair de casa, obriga-se a realizar um ritual esquisito: veste roupas diferentes por quatro vezes, calça e tira três vezes os sapatos velhos, coloca duas vezes os brincos e, por fim, lava as mãos. Só assim ela sente-se aliviada. Minha mãe não dorme sem antes verificar se o gás está desligado ou se a porta está trancada. Antes de se deitar faz um teste para verificar se realmente ela está trancada, mas logo que se deita, imagina que, sem querer, pode ter destrancado a porta ao examiná-la. Assim a inspeção continua noite adentro, parece-me que não dorme. Contei-lhe, para ser empático, casos de clientes. Uma se sentia obrigada a contar as letras da primeira página do jornal. Terminando, imaginava que o número achado podia estar errado e assim novas contagens eram feitas. Um cliente, ao chegar no portão de sua casa, marcava um carro que se aproximava e corria para chegar no topo da escada antes do carro passar em frente da moradia. Outro, ao conversar informalmente com pessoas que considerava importantes, enxergava imagens de cenas sexuais estranhas e sujas com o interlocutor. Milton não ouviu o que lhe contei. Prosseguia sua narração com a voz arrastada de semiembriagado: - Se estou num cinema, imagino-me gritando ou xingando algum palavrão. Num enterro, vejo-me dando gargalhadas, fico suando de desespero. Tenho um sobrinho que adoro, vislumbro-me degolando-o. Com frequência enxergo-me jogando minha avó, que está paralítica, pela escada abaixo. Ao sair de casa, imagino-me sem roupa em plena rua. Outras vezes obrigo-me a fazer somas, subtrações, multiplicações ou divisões com os algarismos das placas dos automóveis. Rapidamente, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 176 seja lá que algarismo for, faço as contas necessárias para encontrar o número mágico 24, e, instintivamente, xingo-me: “veado, veado”. Eu nunca fui ou desejei ser ”gay “. A noite estava longe, os carros não mais faziam barulho, um vento frio de maio exigia mais agasalhos. Milton continuava excitado pelo efeito do vinho e das recordações que saíam agora mais fáceis. Suas representações mentais, presas no porão, fabricadas com esmero, desfilavam livremente. Indiferente ao frio, Milton falava. Enquanto isso seus dedos curtos, de pontas achatadas, reuniam os farelos de pão caídos na mesa em montículos, para, em seguida, desmanchá-los num ritual inútil. O dia amanhecia, era mais um domingo triste para o meu amigo. Pensei na hóstia, na poeira, no sofrimento criado pelas figuras distorcidas. Despediu-se com um sorriso cansado e envergonhado. Estendeu com asco sua mão em direção à minha. Desceu as escadas, batendo as pontas dos dedos nos canos que cercam o corrimão da escada. Deitei-me, pensando: “Será que fechei a porta da geladeira?”. Levantei-me para verificar. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 177 A Triste História dos Deprimidos “Ando cansado… às vezes penso até que o melhor seria morrer. Não tenho fome, a comida é sem gosto. Já emagreci 6 quilos neste mês. Acordo muitas vezes durante a noite e a partir das 4 horas não durmo mais. Como é difícil sair da cama… aliás, tudo está difícil, como tomar banho e fazer a barba. Não acho graça em nada… olho para meus filhos e choro. Morro de dó deles, por terem de enfrentar este mundo horrível. Não tem nada bom, tudo é chato. Não tenho mais forças. Se pego um jornal para ler, ou se olho uma novela na TV, não entendo nada e nem sei contar o que foi que eu vi… nem o que foi que eu li… Não cuidei direito da minha família. Falhei em tudo. Sou um fracassado. O que eu sinto, não gostaria que o meu pior inimigo sentisse. Cometi muitos erros na minha vida… eu me arrependo muito deles. Acho que não vou conseguir sair dessa… só tenho vontade de ficar deitado, de não fazer nada. De ficar sozinho. É horrível.” Sua voz é fraca e penosamente lenta. Há um grande intervalo entre cada som que ele pronuncia. Suas roupas estão mal cuidadas, largas, desleixadas, até sujas. Falta-lhe um botão na camisa e existe um abotoado no lugar errado. Seus ombros curvados para frente tentam esconder o rosto fino. A barba grisalha está por fazer. A face é de tristeza, pálida, com grandes sulcos laterais. Duas olheiras sustentam um olhar sem expressão. Os cabelos, também grisalhos, mal penteados, mal cuidados e grandes para a sua pequena testa. Os óculos têm um dos vidros partidos e um das hastes amarradas com uma linha que um dia foi branca. Nas pontas dos dedos finos, unhas grandes, sujas e amareladas pelos cigarros constantemente acesos. Apesar do calor, nota-se, por baixo de sua camisa, uma camiseta de malha e, por cima daquela, um paletó roto e largo. Seus dentes talvez há muito não sejam escovados e no bigode ralo acha-se o que restou da última refeição. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 178 Pouco fala e, quando o faz, parece aborrecido e cansado de estar ali, defronte a mim, para relatar suas misérias. Às vezes seus olhos se umedecem, lágrimas lentamente começam a escorrer, mas ele discretamente passa o punho do paletó sobre os olhos e os enxuga, engolindo, através de sua garganta seca, alguma lágrima que desceu. Tudo é vagaroso e penoso. O paciente transmite dor e solidão. Seu desespero, tão profundo quanto sua amargura e tristeza, contamina a minha mente, também às vezes triste e confusa por conviver, há anos, dia-a-dia, com o absurdo e incompreensível sofrimento humano. Eis aí, em resumo, uma tagarelice acerca de um dos meus pacientes. Tagarelice, sim, pois nós não conseguimos captar os sofrimentos de ninguém: apenas os imaginamos, lembrando os nossos próprios sofrimentos. Assim também a minha vivência com esses pacientes é minha propriedade, aprisionada em minha mente e impossível de ser transmitida ao leitor de um modo adequado. Quando se trata de experiências emocionais, com pouca, ou melhor, com nenhuma lógica, a comunicação torna-se realmente impossível. Todos nós já convivemos com a nossa depressão, seja por horas, dias, meses ou anos. A maior parte de nós tanto entramos, como saímos da depressão, com relativa facilidade, utilizando os nossos recursos próprios, quase sempre de maneira automática. Assim, vamos supor uma moça que perde o namorado e, compreensivelmente, fica deprimida. Ela poderia arranjar um outro namorado e esquecer o anterior, ou buscar outras atividades para substituir a ausência dele. Poderá criticar o ex-namorado, taxando-o de estúpido e ignorante, e com isso sentir até um certo alívio pelo rompimento, ou usar várias outras técnicas disponíveis para cada um de nós. Rapidamente a nossa amiga estará bem e suas emoções normalizadas. Vamos supor, agora, em outro extremo, uma pessoa que não utilizou seus recursos para combater a depressão. Nesse caso, a nossa amiga, ao perder o namorado, vai, pouco a pouco ou rapidamente, caminhando Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 179 para aquele estado e várias partes dos seus sistemas acabam sendo atingidos, contaminados. Ela pode, por exemplo, faltar ao serviço, perder o sono, alimentar-se mal, passar a não se cuidar, agredir as pessoas ao seu redor afastando-as do seu convívio, etc. Desse modo, diversas atividades saudáveis vão deixando de ser fonte de alegria, transformando-se em problemas difíceis de resolver, ou em processos dolorosos. Cada novo problema que aparece, ou cada disfunção ocorrida, necessariamente aumenta a impotência de nossa amiga, vai-lhe criando uma imagem cada vez mais negativa de si mesma e, simultaneamente, uma fantasia altamente pessimista acerca do mundo ao seu redor e dos meios de abordá-lo. Formou-se uma cadeia cada vez mais difícil de ser quebrada. Poucos são os aspectos positivos em sua vida e estes vão inexoravelmente sendo minados e transformados também em sofrimento e problemas. Nesse ponto a nossa amiga encontra-se já mergulhada em sua depressão, totalmente dependente de outras pessoas e não mais dos seus próprios recursos. Para o deprimido, o mundo é mau, e ele, não tendo meios para enfrentá-lo, acha-se sem saída. Com essa convicção, surgem frequentemente as ideias ou a ação de suicidar-se. A obsessão é escapar do sofrimento, ainda que seja necessário sacrificar a própria vida. Podem surgir na mente do deprimido fantasias que o levam a querer exterminar toda a família, para livrá-la do mundo de desgraças em que vive. Também não é incomum o suicídio indireto, causado pela provocação da própria morte por outra pessoa ou por um acidente fatal. Nessa fase é ainda frequente o uso exagerado de bebidas ou calmantes que têm a mesma função, isto é, tornar as próprias desgraças e as de seu mundo mais toleráveis. O deprimido é, portanto, uma pessoa que perdeu a capacidade de manter uma adaptação biopsicossocial equilibrada dentro da normalidade, ao enfrentar os múltiplos fatores ou miniacontecimentos de seu cotidiano (fracassos, perdas, doenças, desapontamentos, etc.). Seu sistema individual não retorna ao equilíbrio anterior, com a consequente normalização, após cada problema. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 180 A depressão é um transtorno emocional ou do afeto, como o próprio nome indica, mas que pode ter repercussões graves e sérias no relacionamento social, acarretando perturbações cognitivas, psicomotoras, psicofisiológicas e ainda facilita a instalação da maioria, senão de todas as doenças orgânicas, pela diminuição das defesas imunitárias. A esta altura, convém lembrar que algumas depressões parecem originar-se primariamente de distúrbios bioquímicos, enquanto em outras as causas iniciais são transtornos psicológicos e sociais, ocorrendo, posteriormente, as modificações bioquímicas. Uma vez mergulhado na depressão, o paciente não crê que possa escapar dela. Entretanto, ao receber tratamento adequado, suas chances de recuperação são grandes. Alguns poucos casos evoluem para a depressão crônica, apesar dos tratamentos. Para alguns, o ataque de pânico, o alcoolismo, a dependência às drogas, as dores crônicas e outras formas de conduta desadaptada dos jovens seriam equivalentes de uma crise depressiva. Para terminar, a depressão é a doença mais frequente no consultório psiquiátrico: atinge cerca de 50% dos pacientes que nos procuram. A maioria dos que dela padece, não vai ao médico. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 181 Tome seu Tranquilizante e Viva Feliz Diga adeus à ansiedade. Os grandes laboratórios farmacêuticos interessados no faturamento construíram a crença de que podemos e devemos viver sem ansiedade. Esta falsa ideia foi assimilada por alguns médicos e pelo público em geral, promovendo a ida dos ansiosos aos consultórios, em busca do remédio milagroso. Entretanto a ansiedade pode ser uma emoção saudável e necessária a uma boa adaptação do indivíduo ao meio, sendo, muitas vezes, um aviso do organismo, indicando que algo precisa ser feito para modificar a vida. Os tranquilizantes têm sido usados há milênios. O primeiro deles, e que continua a ser consumido, é o álcool. Atualmente, cada dia mais, diversos outros calmantes são lançados no mercado para alegria dos consumidores aflitos. Uma estatística da Organização Mundial de Saúde, publicada há alguns anos, mostrou um consumo anual de 500 milhões de psicotrópicos no Brasil. Desses, 70% eram ansiolíticos, ou seja, medicamentos para diminuir a ansiedade, apreensão, tensão ou medo. Muitas pessoas só dormem após tomarem seu sedativo preferido e, para suportar o dia desagradável que virá, ingerem mais outro calmante diurno. Alguns usam os tranquilizantes para viajar de avião, dançar, namorar, transar, dar aulas, casar, isto é, as atividades que podem acarretar um certo grau de intranquilidade. Os ansiolíticos são ingeridos puros ou misturados com bebidas, usados junto a moderadores de apetite, as drogas anticolinérgicas (os chamados antidistônicos). Alguns estão embutidos nos medicamentos antidepressivos, fortificantes, vitaminas, diuréticos, etc. As bulas acerca dos calmantes geralmente são mentirosas, descrevem muito mais os “bons” resultados do que os “maus”. Muitas não relatam a dependência após um Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 182 curto período de uso, a diminuição da capacidade psicomotora, o aumenta do cansaço, a diminuição da memória, a piora dos sintomas após a sua interrupção (ansiedade rebote) e o risco de seu uso nos idosos e crianças. Uma curiosidade: os que têm menos conhecimentos acerca de seus “excelentes efeitos terapêuticos”, como os pacientes mais humildes dos ambulatórios, beneficiam-se pouco com seu uso. Como a população brasileira tem estado intranquila com respeito ao futuro do país, conclamo o governo a distribuir essas drogas milagrosas para todos nós, em lugar de gastar dinheiro com alimentos, moradias, empregos e assistência médica. Com o povo calmo, os governantes poderiam usufruir o encantamento do poder. Cada cidadão teria direito de uma a três doses diárias, conforme sua ansiedade. Este, uma vez embriagado com o efeito do calmante, não mais faria greve, não mais amolaria o pobre governo com reclamações tolas e injustas. Ingerindo sua dose diária de ansiolíticos as pessoas viveriam e morreriam calmas, talvez, quem sabe, até felizes. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 183 Sono, Insônia E Pílulas Das 8.760 horas de um ano, o homem dedica perto de 3.000 ao sono e dorme aproximadamente 24 anos de sua existência. Você, que está lendo esse artigo, já teve vários sonhos, pesadelos e algumas vezes falou enquanto dormia. Quando criança, ou mesmo depois de adulto, urinou na cama e pode ter perambulado pela casa durante seu sono. Alguns dias deitou-se e demorou a adormecer; diversas vezes acordou durante a noite ou cedo demais, sem desejar, e durante alguns dias de sua existência, você trabalhou sonolento. Talvez use, ou já usou, medicamentos, na falsa esperança de que eles o ajudariam a dormir. Você sabe o que é o sono? Cerca de 12 a 15 por cento da população dos países industrializados tem sérios distúrbios do sono, outros 20 a 25 por cento da população apresentam distúrbios ocasionais de insônia. A partir das ondas cerebrais, que são detectadas quando um eletroencefalograma (EEG) é registrado durante o sono, verifica-se o aparecimento de ondas sincronizadas (sono NREM), também denominado de sono ortodoxo, e de ondas não-sincronizadas (sono REM), ou sono paradoxal. O termo “REM” decorre do inglês (“rapid eye movements”), indicando que nesse sono ocorrem movimentos rápidos dos olhos. O sono NREM (sem movimentos rápidos dos olhos), compreende três fases: 1, 2 e 3 (delta). Nosso sono inicia-se com um sono mais leve e prossegue até alcançar a etapa mais profunda. Ao adormecer, surgem as fases do sono, nas sequências 1-2- 3 (delta) e novamente 2, que são entremeadas pela fase REM (fase dos sonhos). A fase 1 é o período de transição da vigília ao sono. O sono delta - sono profundo - é o período do comportamento extravagante, quando as pessoas falam dormindo, se sentam e começam a ter Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 184 longas conversas consigo mesmo e os sonâmbulos levantam-se e passam a andar pela casa. É também o período da noite em que as crianças, às vezes, urinam na cama, ou apresentam o estranho problema chamado terror noturno (por exemplo, gritar enquanto dorme). Ao começar o sono REM, o corpo se acha totalmente relaxado. Se alguém arrastar a pessoa para fora da cama e tentar colocá-la de pé, ela cairá. O corpo não se move absolutamente, percebendo-se apenas a oscilação ocular. Caso se trate de um homem, ele tem uma ereção peniana automática, caso se trate de mulher, os tecidos vaginais enchem-se de sangue. No interior do corpo, os batimentos cardíacos e a pressão arterial sobem, a respiração torna-se irregular, e poderosos hormônios invadem a corrente sanguínea, liberados de certos órgãos, tais como das glândulas suprarrenais. Todos os tipos de cenas e imagens fantásticas passam pela mente da pessoa, pois é nesse período que se tem a maioria dos sonhos e pesadelos. Cada ciclo completo de sono NREM, somado ao REM, tem uma duração aproximada de 90 minutos cada. Durante uma noite inteira de sono, ocorrem 4 e 5 ciclos, de cerca de 90 minutos cada. Nos ciclos posteriores, no fim da noite, quase não se observa mais a fase delta. Nos idosos, a fase 1 do sono NREM, que é o sono mais superficial, cresce muito, em detrimento do sono delta ou sono profundo. Nessa faixa etária também, diminui geralmente o número de horas realmente dormidas, que cai para 5 a 6 horas por noite. Em outras palavras, o idoso normal dorme menos tempo, sonha menos e seu sono é mais superficial e, além disso, frequentemente apresenta sonolência diurna. As necessidades de horas de sono, além de variar com a idade, variam de pessoa para pessoa. Assim alguns necessitam de 10 a 12 horas, outros, de 3 a 4, alguns poucos, de apenas 1 hora de sono por noite. Uma pessoa apresenta insônia se sua dificuldade para dormir interfere cronicamente com uma eficiente função durante o dia, independente do número de Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 185 horas dormidas. Portanto, o que caracteriza a insônia é o malestar ou sonolência diurna e não o número de horas dormidas durante a noite. Cada indivíduo deve estabelecer as suas necessidades diárias de sono, a partir de suas próprias experiências com diferentes números de horas de sono. Alguns clientes se queixam do oposto da insônia, ou seja, da hipersônia - sono exagerado. Quando essa ocorre, é possível que a pessoa esteja dormindo um número de horas inferior à sua real necessidade, mas também podem estar ocorrendo certos problemas médicos tais como o do hipotireoidismo, transtornos psiquiátricos (depressão), ou ainda perturbações específicas próprias do sono (apneia do sono, narcolépsia). Esses transtornos levam a pessoa a não dormir normalmente, ainda que eles achem que dormiram satisfatoriamente. O que às vezes torna-se intrigante são as insônias de causas com portamentais ou situacionais. Algumas são bastante óbvias. Sabe-se, por exemplo, que o primeiro sono da noite em local estranho é, em geral, insatisfatório. As pessoas que moram perto de aeroportos, ou de estradas e ruas muito movimentadas, talvez não durmam tão bem como quem vive numa tranquila localidade do campo, ou num bairro silencioso. Vários estudos revelam que, embora as pessoas que partilham da mesma cama e tenham, em geral, uma boa vida sexual, muitas vezes dormiriam melhor se estivessem em camas separadas, particularmente se uma delas tem sono agitado. Partilhar a cama com alguém pode significar também partilhar a insônia. Finalmente, a pessoa pode, ocasionalmente, ser vítima do que é conhecido como “Insônia da Noite de Domingo”. Esta resulta em geral da alteração na escala horária dos fins de semana, quando se vai para a cama e se levanta mais tarde. Algumas pessoas, mesmo adormecidas, permanecem pensando intensamente, dando a impressão de estarem acordadas, mesmo quando, objetivamente, através do eletroencefalograma, se perceba que estejam no sono NREM. Também pode ocorrer que certos insones apresentam tempo excessivo de sono na fase 1, isto é, na fase superficial, dando-lhes a impressão de estarem dorminVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 186 do pouco. As mais diversas e curiosas particularidades acerca da melhor maneira de dormir, para uma dada pessoa, são encontradas. Alguns necessitam silêncio absoluto, enquanto que para outros o sono é melhor quando ouvem uma música, ou quando a TV estiver ligada. Para alguns o melhor sonífero é um certo tipo de leitura. Certas pessoas só dormem com as janelas abertas. Muitos, ao se dirigirem para a cama, imaginam que não vão dormir e acabam não dormindo. O exercício físico realizado no fim da tarde ou início da noite, parece influenciar o sono: há aumento de ondas deltas - enquanto que realizado em excesso, pouco antes de se deitar, prejudica o sono. É mais fácil acordar uma pessoa quando esta se encontra na fase 1 do que na fase 2, ou no sono REM, e há ainda mais dificuldade de despertá-la na fase delta. Uns preferem a cama dura, outros, a macia. Não se dorme bem nas temperaturas muito baixas ou muito altas. Dorme-se mal acima de 24 graus, nessa temperatura a pessoa acorda e movimenta-se mais vezes à noite e há um decréscimo do sono REM e do delta. Tudo indica que o sono melhora, se a pessoa alimentar-se com uma refeição leve à noite. Alguns médicos decidem o que fazer diante de uma queixa de insônia dos seus clientes em cinco minutos, prescrevendo-lhes um comprimido para dormir. Isto é grave, pois parte dos pacientes que se queixam de insônia não a têm, quando se lhes faz exame mais minucioso. Outros que realmente têm insônia, podem estar apresentando distúrbios psiquiátricos ou médicos não tratáveis com hipnóticos ou ansiolíticos. A negligência em relação às drogas ingeridas diariamente pode também afetar o sono, caso a pessoa não perceba que está abusando delas. A cafeína existente no café, alguns chás e em vários refrigerantes, é provavelmente uma das mais ignoradas causas de insônias e, no que se refere ao sono, seus efeitos são, sem dúvida, pouco lembrados. Dependendo da sensibilidade ao efeito excitante dessa droga, uma xícara de café é capaz Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 187 de estimular o cérebro até sete horas depois de ingerida. Se você fuma muito, isto é, dois maços, ou mais, de cigarros por dia, talvez o vício da nicotina o esteja mantendo acordado à noite. Os pesquisadores descobriram que alguns fumantes, após dormirem cerca de quatro horas, passam por uma necessidade de nicotina tão forte que acordam ansiosos por um cigarro. Outra droga que perturba o sono é o álcool. Um pequeno “drinque”, ingerido para “chamar o sono”, perde pouco a pouco o seu efeito, e é preciso beber cada vez mais para conseguir o mesmo resultado. Em grande quantidade - após uma verdadeira bebedeira, ou no caso extremo de um alcoólatra - o álcool é capaz de arruinar o sono normal durante dias ou semanas. Em qualquer quantidade, o álcool anula os períodos REM do sono, conduzindo, assim, a descanso pouco profundo. Quando se deixa de beber, todo o sono REM reprimido volta, trazendo consigo um acúmulos de sonhos e pesadelos. Os comprimidos para dormir são capazes de transformar uma insônia comum, banal, diária, num verdadeiro monstro. A razão é que essas pílulas talvez provoquem, exatamente, o problema que estão destinadas a curar. Tomadas todas as noites funcionam apenas por algum tempo, em geral duas semanas. Tomando-se pílulas durante muito tempo, a insônia e a qualidade do pouco sono existente se tornará pior do que no tempo em que não se tomava comprimido algum. Como nação de sofredores, possuímos o que equivale a uma fé religiosa no poder das drágeas. Tomamos comprimidos e cápsulas para tudo, desde ansiedade, dores nas costas, resfriados, depressão, fadiga, ressaca, azia, dores de estômago, etc., até, naturalmente, para a insônia. Se uma pílula não funciona, não perdemos a fé e a trocamos por outra. O poder de tal confiança é extraordinário e permanece muito misterioso. O grau de eficácia de um remédio depende, em parte, do seu conteúdo químico. A droga tem que ter o seu atrativo para a pessoa. É preciso que o pacienVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 188 te acredite nela, razão pela qual algumas das medicações de efeitos mais mortais são envoltas em alegres cápsulas de gelatina vermelha, amarela e verde, lembrando saborosas balas. Drágea alguma proporciona uma noite de sono inteiramente normal. Todas as vendidas com ou sem receita médica são depressoras do sistema nervoso central, maneira médica de dizer que funcionam indo direto ao cérebro e deixando semiconsciente a pessoa. Reduzem os batimentos cardíacos, a pressão arterial, o ritmo respiratório, os reflexos e o tono muscular, inibindo também parte do sono, em geral o ciclo REM. De alguns anos para cá os estudiosos do sono têm “receitado” para a insônia uma substância chamada triptofano. Trata-se de uma proteína natural encontrada em diversos alimentos, desde a manteiga de amendoim até o bife. Triptofano, ou L-triptofano, conforme é às vezes chamado, fornece a matéria-prima do elemento químico cerebral, a serotonina, que conforme os pesquisadores, é um dos ingredientes mais necessários à ativação dos centros do sono. Você, leitor, poderá economizar seu dinheiro indo direto à fonte para obter uma dose de triptofano. Entre os comestíveis com alto teor de proteínas figuram: atum, fígado, carne, costelas de porco, galinha, peru, amendoim, feijão e laticínios, como queijo, requeijão e aquele antigo remédio caseiro para a insônia, muito usado pelas nossas mães, um copo de leite morno. Todos são encontrados, não nas farmácias, mas nos supermercados. Se você não estiver com fome, pode tentar outro recurso: basta procurar no seu armarinho de remédios: a aspirina e a dipirona devem estar lá. Alguns insones descobriram que elas têm o efeito de um suave comprimido para dormir. Não force seu sono, a raiva é um poderoso despertador interno. Para dormir, é necessário não pensar em dormir. Para terminar, Bom Sono e Bons Sonhos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 189 O Casamento do Neurótico Há uma aceitação geral de se fazer um exame pré-nupcial para verificar a saúde física dos cônjuges, entretanto jamais ouvimos falar que os namorados se submeteram a um exame psicológico para verificarem suas capacidades ou competências para viverem juntos com alguém ou serem pais. Observações acerca do casamento fracassado mostram que uma piora na conduta em um dos cônjuges, piora o comportamento do outro, que por sua vez piora o primeiro e assim sucessivamente, e numa espiral, vai perturbando os dois e aumentando os distúrbios conjugais. A sociedade ainda não assimilou o uso do exame mental para os futuros cônjuges. Uma pesquisa feita nos USA mostrou fatos interessantes e úteis para os que estão desejosos de se casarem ou de morarem juntos. Inde pendente do sexo dos entrevistados, através das escalas, foi mostrado que a qualidade do casamento estava influenciada negativamente pelo neuroticismo dos cônjuges. Resumidamente, as pessoas apresentando o traço “Neuroticismo”, também chamado de “Emoção Negativa”, que será descrito a seguir, tinham mais dificuldades no casamento. 1) Ansiedade (propensão ao medo, tensão, preocupação, nervosismo); 2) Depressão (alto nível de tristeza, solidão e desesperança); 3) Raiva (propensão a episódios de irritabilidade e frustração); 4) Autoconsciência aumentada (mais sujeito a ficar envergonhado, desajeitado e com sentimentos de inferioridade); 5) Culpa (experiência frequente de culpa, autocensura devido a falhas ou erros); Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 190 6) Super-sensibilidade (sensitivo às críticas e ao ridículo); 7) Insatisfeito consigo (vê a si próprio como cheio de defeitos); 8) Super-reatividade aos estresses (facilmente sofre com aconte cimento próximo do normal); 8) Labilidade Emocional (experimenta, repentinamente, mudanças marcadas de humor); 9) Avaliação Negativa (tende a ver os acontecimentos como ameaçadores e problemáticos); 10) Queixas Somáticas (apresentam sintomas corporais pertur badores). Outros estudos mostram que o psicotismo (pessoas mais fechadas, desconfiadas, isoladas, estranhas, delirantes) contribui mais ainda para o mau casamento. Alguns estudos enfatizam o fator impulsividade – de um ou dos dois cônjuges – como um importante fator do mau casamento. Essa característica aparece principalmente nos indivíduos com transtorno de personalidade antissocial (egocêntrico, explorador, desonesto, insensível). Uma pesquisa focalizou, como fator de prognóstico do mau casamento, dois tipos do “lugar de controle dos cônjuges”. Um tipo apresenta o controle interno, isto é, uma tendência a examinar seu próprio comportamento como causador de seu bem ou malestar. Um segundo tipo tem o lugar de controle externo, isto é, explica e coloca nas outras pessoas ou nas condições do ambiente as razões dos seus problemas, fracassos e dissabores. De acordo com essas ideias, os com lugar de controle interno são mais propensos a serem melhores cônjuges do que os com lugar de controle externo. Você, caro leitor, com essas ideias, examinará seu naVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 191 morado e, se tiver um tempinho, você mesmo, para decidir o que fazer, caso avalie o seu mundo através do “controle interno”. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 192 PEDÓFILO: O Monstro de Duas Faces A imprensa, equivocadamente, traçou o perfil dos pedófilos através do modelo dos criminosos da Bélgica. Esses nada mais são do que criminosos comuns que entraram nessa área, como poderiam estar em qualquer outra, para explorar pessoas. As famílias que imaginam os pedófilos, efebófilos e hebófilos (abusadores sexuais de crianças, púberes e adolescentes), conforme as informações da imprensa, fracassarão na proteção de seus filhos. Os pedófilos, bem como os efebófilos e hebófilos examinados e descritos pelos psiquiatras, são diferentes. Na maioria das vezes nem matam, nem ferem sua vítima, como rotineiramente fazem os estupradores. São homens medrosos, incapazes de raptar, estuprar ou usar força física. Sua técnica é outra: exploram a impotência, a ingenuidade das crianças e dos pais, ou a curiosidade dos adolescentes, prontos para buscarem ações de risco e novidade. Sendo fraco e incapaz de construir ligações afetivas maduras com adultos, aproveita-se dos inocentes. Muitos foram abusados sexualmente quando crianças. A maioria não tem orgasmo quando abraça e acaricia suas vítimas. Alguns masturbam-se após o contato físico. O pedófilo age muitas vezes na residência da vítima, na frente de todos que supõem tratar-se de carinhos ou brincadeiras. Muitos desses “apreciadores e amantes das crianças” são tios, primos, cunhados, vizinhos ou amigos da vítima ou dos seus familiares. Pode ser o entusiasmado professor do colégio, o técnico de futebol, basquete ou voleibol juvenil ou infantil, o pediatra ou dentista de crianças, o pipoqueiro da esquina, ou ainda o padre ou o pastor do bairro. Não se assustem, muitos são os próprios pais da vítima. O pedófilo aprecia abraçar demorada e apertadamente o corpo da vítima, acariciar com falsa ternura seu corpo, olhá-la com cupidez, conversar animadamen te sobre sexo, mostrar filmes pornôs, tomar banho junto e frequentar praias de nudismo. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 193 Durante minha prática psiquiátrica, examinei não mais do que uma dezena deles. Esses foram à consulta, forçados pela lei ou por familiares, quando descobertos. Entre esses, um rapaz visitante frequente nas portas dos colégios em busca de púberes masculinos. Para seu azar, ele usou um radiotransmissor para conversar com suas presas, sendo preso. Um comerciante pedófilo pedia às meninas que passavam diante de sua loja, para apanhar um objeto colocado previamente numa prateleira alta. Seu truque era segurar a criança por trás para levantá-la e fazê-la roçar no seu corpo. No dia da consulta parou seu carro numa rua e, olhando para uma criança que brincava no passeio, masturbou-se. Um professor de educação física do interior, devido à sua “honradez e dedicação”, era encarregado pelos pais de “proteger” os filhos nas viagens a BH para consultas médicas ou passar férias. Um executivo foi pego por sua segunda esposa, quando acariciava o frágil corpo de sua enteada de cinco anos. Excitava-se, observando crianças banharem-se nas piscinas, vendo revistas contendo modelos infantis, assistindo programas para crianças na TV e filmes de Walt Disney. Um dos seus prazeres preferidos era dar banho na filha de um ano. Possivelmente todos estes clientes, se ainda vivos, continuam praticando essas ações, pois trata-se de um padrão de conduta difícil ou impossível de ser extinta. Apenas os homens têm sido acusados de pedófilos, mas existem mulheres pedófilas. A conduta de mães brincando com os filhos foi observada por peritos. 10% das mães estimulavam de forma imprópria as crianças: agarramentos e esfregões nos órgãos genitais. Os pais viam isso como demonstração de amor. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 194 Suicídio pela Provocação de seu Assassinato Tenho lidado com um tipo de paciente muito especial e pouco conhecido da literatura psiquiátrica: o que, desejando morrer, procurou o suicídio, provocando seu próprio assassinato, ou seja, sem coragem de usar uma arma contra si próprio, provocou outras pessoas para ser agredido ou morto. Em 588 homicídios estudados por M.E. Wolfgang, nos Estados Unidos, 26 por cento deles, ou seja, 150, foram de vítimas que provocaram sua própria morte. Outras formas de agressões, provocadas por pessoas que procuram ser vítimas, são bastante comuns, como facadas, porretadas, pedradas, estiletadas e brigas de trânsito. Nos 150 casos de auto-homicídio estudados, todas as vítimas co meçaram a agressão, geralmente portando uma arma letal e assim, teoricamente, deveriam correr menos risco de vida que o adversário, mas foram mortas, o que era provavelmente o objetivo inicial delas. Não pagar uma dívida, trair o cônjuge e deixar pistas evidentes, utilizar palavrões em briga de trânsito e de bar, principalmente com pessoas mais fortes ou ostensivamente agressivas ou armadas, são os caminhos das pessoas que procuram o auto-homicídio. As mulheres casadas que procuram o auto-homicídio, às vezes o fazem através de traições sucessivas, deixando pistas cada vez mais evidentes. N.F., de 40 anos, com curso superior, após vários encontros com diferentes homens, sem nenhum cuidado para escondê-los, acabou por contar tudo ao marido durante uma briga, quando agrediu-o, afirmando: “Seu corno, você não me manda, eu saio com outros homens, nas suas barbas”. Neste momento ele sacou uma arma e atirou, mas felizmente não a matou. Durante uma entrevista psiquiátrica foi constatado que ela não tinha prazer sexual, a não ser com o marido. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 195 Os maridos podem buscar o mesmo tipo de morte, agredindo suas esposas, como o caso de homens que chegam em casa bêbados, espancam as mulheres com muita violência, quebram os móveis e depois vão tranquilamente dormir. Alguns conseguem realmente morrer. Os alcoólatras formam um grupo de alto risco de suicídio, logo atrás da depressão grave. Parentes destes pacientes se sentem perplexos por não entender por que o “Joãozinho gosta de uma briga”, ou o “Joaquim chega quase todo dia todo machucado”. Geralmente este tipo de problema não leva ninguém ao médico. T.J., carpinteiro de 29 anos, solteiro, após receber alta de um hospital, onde quase morreu após tentativa de suicídio, contou-me que no dia em que resolveu morrer procurou em seu bairro, na periferia da cidade, uma pessoa reconhecidamente agressiva, brigona e que usualmente andava armada. Fez tudo para brigar com esse cavalheiro. “Como não consegui”, relatou ele, “fui para casa e tomei uma mão cheia de comprimidos para morrer”. A crônica policial está repleta de mortes sem justificativa aparente. Os advogados lidam com esse problema até com certa dificuldade para explicar ao juiz os motivos de um assassinato com essas características. Desconhecendo o passado dessas vítimas, eles têm de criar defesas do tipo “legítima defesa da honra”, “matou por amor”, “assassinato cometido sob grande e incontrolável tensão”. Talvez nem mesmo as pessoas envolvidas possam compreender e explicar corretamente o que aconteceu. Há alguns anos atrás, elaborou-se uma taxonomia psicológica de causas de óbito, ao criticar as quatro formas clássicas da morte, que são o acidente, o suicídio, o homicídio e a morte natural. No primeiro caso, acidente, uma pessoa pode morrer sem que exista nenhuma ação consciente ou voluntária sua, como no assassinato e acidentes ortodoxos, ou por uma doença onde o paciente em nada participou. No segundo caso – suicídio – que nos interessa neste artigo, o indivíduo Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 196 que morreu, colaborou para que sua morte ocorresse. Neste grupo podem ser incluídos também as mortes em que o indivíduo não toma os remédios indicados; continua fumando após o infarto; para de comer até morrer, arrisca-se em demasia em qualquer atividade perigosa, como dirigir em alta velocidade ou nadar em locais de alto risco e desconhecidos. Ora, se utilizarmos o mesmo modelo de raciocínio e em lugar de pensarmos em causas de morte, pensarmos em causas de danos, de lesões corporais, vários incidentes e acidentes incompreensíveis passarão a ser melhor compreendidos por serem com frequência autoprovocados, mesmo que a agressão parta de outra pessoa. Assim como existe o suicídio externamente, existe também o acidente, em que a vítima provoca uma pessoa para agredi-la. Em outras palavras, toda ação individual em um par ou conjunto de pessoas nunca é isolada, sendo dependente e dirigida ao outro, em resposta a um maior ou menor estímulo de outra parte. Se definirmos um problema como um tipo de comportamento que é parte de uma sequência de atos entre duas ou várias pessoas, percebemos que lesões corporais provocadas por surras ou outros tipos de agressões, como facadas e tiros – assim como o “auto-homicídio”, – são rótulos para uma sequência ou cristalização dessas numa organização social. Constitui um novo modo de pensar em direito imaginar que um fato ou sistema pode ser um “contrato” – automático e inconsciente – entre pessoas, consequentemente adaptativos para as suas relações em um sistema disfuncional. Como por exemplo, um indivíduo que provoca e responde ao outro, sua resposta pode ser uma provocação e, em círculo, um iria provocando o outro até o infinito, caso não ocorresse o crime. É claro que, em muitos casos, a provocação está mais acentuada em um dos membros, basta nos lembrarmos de qualquer briga no trânsito, ou crimes comumente ocorridos em bares. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 197 Se o crime – mesmo cometido de repente e no calor de uma briga – é o ponto culminante de séries de acontecimentos, para analisá-lo é preciso conhecer os fatos que compõem a cadeia psicológica dos eventos, que são muito diferentes do assassinato ou das lesões corporais ortodoxos. Mesmo que o réu e a vítima se tenham encontrado pela primeira vez, é possível que ambos tenham um passado psicológico semelhante. Segundo alguns teóricos, a vítima busca provocar muitas pessoas, na caça ao seu algoz. Certo dia, ela o acha justamente naquele que se encaixa no seu desejo, ou seja, o complementar, matando-o. Para exemplificar, uma mulher fraca é surrada por seu marido corpulento e agressivo. O que esta mulher andou fazendo para permitir, precipitar ou desencadear a agressão deste brutamontes? Nada? Pode ocorrer, mas é pouco provável. Esta mulher deve ter participado, num grau maior ou menor, na agressividade sofrida. Não a defenda antes de seguir o raciocínio abaixo. Em primeiro lugar ela geralmente é também ativa, pois casou-se com ele – ou passou a namorá-lo – quando esse, provavelmente, já demonstrara esta conduta em outras ocasiões. Desde o início não se defendeu adequadamente de agressões passadas e, provavelmente, se julga inferior ao homem por não ter músculos fortes. Além disso, deve-o ter criticado por palavras e gestos perigosos para aquele agressor em potencial. Necessita queixar-se aos filhos ou aos amigos de “que é uma vítima”, ou de outro modo, precisa sofrer, para acusar seu marido. Sua vida, naturalmente, está ruim, sem motivações e prazeres, portanto, qualquer situação excitante – apanhar – é menos ruim do que nada. Várias outras “razões” poderiam ser pensadas para compreender as agressões àquela pessoa em particular, não para justificá-las. Se admitirmos que uma família é um sistema devemos aceitar a premissa de que o comportamento se repetirá. Assim, sempre que uma pessoa casada apresenta um sintoma grave – agressão – esse sintoma tem uma função no casamento e se o sintoma desaparecer, ocorrerão consequências neste. De acordo com este modelo psicológico – não jurídico – não Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 198 existe réu e vítima. Ambos são vítimas, com funções diferentes. Infelizmente se complementam de uma maneira desastrada e com alto grau de sofrimento para ambos. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 199 Médico X Cliente A imprensa noticia, novamente, reclamações de pacientes ou dos seus familiares acerca do mau atendimento médico. As disputas se restringem, quase sempre, ao que ocorre no último elo de uma cadeia que se iniciou há anos, já que a enfermidade, exibida no momento da consulta, espelha um conjunto de fatos ocorridos na história de cada paciente, os quais, em geral, não tiveram a participação do médico que o assiste naquele instante. São milhares os acontecimentos responsáveis pelo atual sofrimento do cliente: alguns devido ao acaso, outros facilitados pela conduta do próprio doente, como, por exemplo, o uso que fez de bebidas alcoólicas, de cigarros e medicamentos, seus hábitos alimentares, seu tipo de trabalho e de lazer, outras doenças sofridas, tratamentos impropriamente realizados anteriores à consulta presente. Mas não fica só nisso, há outros aspectos importantes: o mundo poluído de bactérias, vírus, fungos, monóxido de carbono, a estrutura biológica frágil do cliente, sua carga genética peculiar. Tudo isso, ao longo dos anos, facilitou ou desencadeou a eclosão da doença atual. Em resumo, nas reclamações não são levados em conta os diversos aspectos que antecederam a atual consulta geradora da discórdia. Possivelmente todos nós mantemos ideias irracionais a respeito da nossa vida e do mundo em que vivemos e carregamos ilusões acerca de possuir uma saúde física e mental eterna. Em outras palavras, fantasiamos para nós a imortalidade. Também alimentamos sonhos com referência às uniões ou vínculos com os outros homens e imaginamos que essas ligações nos darão proteção contra os problemas do dia-a-dia. Por último, acreditamos que, ao criarmos explicações científicas, filosóficas ou religiosas para o mundo caótico em que vivemos, estaremos a salvo de sofrimentos, já que pela teoria estabelecida poderemos encontrar as causas do nosso Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 200 sofrimento, que, por sua vez, nos levarão a maneiras seguras de eliminá-las. Mas de fato, ao enfrentar uma realidade confusa, sem leis, ou seja, vivendo num mundo que não pactua com as nossas fantasias, o homem tenta, a todo custo, encontrar algumas regras para sistematizar e assim administrar da melhor maneira possível a sua vida. Entretanto, quase sempre, o modelo da realidade ao qual ele se apega é inexato. Se sua vida flui normalmente, sem tropeços, o indivíduo não chega a perceber que o seu “mapa” da realidade não está representado corretamente, nem retrata com precisão o “território” onde sua vida se desenrola. Nos momentos críticos, porém, como no caso de uma doença grave ou de morte, de repente a pessoa se defronta com um mundo diferente daquele que havia criado em sua mente. Surgem, geralmente, nestes instantes, o pânico e o desespero, pois os planos e técnicas existentes para solucionar os problemas se mostraram ineficientes. Nesses momen tos, tentando se defender de qualquer maneira, o homem lança mão das soluções mágicas ou das ideias ilusórias que havia elaborado. Busca a tábua da salvação: o médico e a sua ciência, que se enquadram muito bem naquele falso modelo de mundo. Não são raros os médicos que fingem ser o Salvador para todas desgraças e sofrimentos… Quase sempre as ciências médicas possuem teorias um pouco melhores acerca das doenças e dos seus tratamentos do que o paciente. Muitos clientes imaginam o médico como o “prestidigitador” que eles procuram, um ser capaz de rapidamente descobrir as “causas” da doença, dar explicações para esta e encontrar maneiras fáceis e simples de exterminá-la. E é nesses momentos agudos que os médicos – alguns mais bem dotados, preparados e equipados, outros menos – são chamados para examinar o paciente. O cliente em desespero agarra-se ao salvador, acreditando convictamente possuir ele poderes divinos para tirá-lo da crise e afastá-lo da morte. Todos nós sabemos, porém, que a melhor medicina Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 201 do mundo, equipada com os aparelhos mais sofisticados, contando com os médicos da melhor estirpe intelectual e científica, erra, falha e tem dúvidas ao receber pacientes graves com certas enfermidades. Assim é natural que muitos deles morram. Aqui, como alhures, as moléstias costumam ser obscuras, difíceis e muitas vezes impossíveis de serem diagnosticadas e tratadas, como gostaríamos que fossem. Pouca ou nenhuma certeza temos acerca da teoria das doenças, de sua evolução, de suas causas e tratamentos. Possuímos, na maioria das vezes, hipóteses, trabalhamos com elas, constantemente incertos e inseguros quanto aos diagnósticos e tratamentos. Aprendemos muito com nossas tentativas e acertos e também com nossos erros. O conhecimento de boa percentagem das doenças ainda é uma incógnita para os pesquisadores sérios, não o sendo para os mal informados, os limitados, os que só enxergam a periferia da realidade, julgando tudo muito simples e fácil. As doenças fazem parte de nossas vidas: vida e morte andam juntas. Toda a decepção com a crueldade e indiferença do mundo, percebida pelo cliente ou pelos familiares diante da doença, volta-se frequentemente com violência contra o médico, que encarna, por alguns momentos durante a enfermidade, a figura mágica do Salvador. Nos momentos de desespero e dor, o médico representa para o paciente o próprio Deus, o que, como sabemos, lamentavelmente não é verdade. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 202 Confissões de uma Médica Há dias, no meu consultório, atendi uma médica recém-formada. Soluçando, contou-me sua “tragédia” pela qual me interessei. Com seu consentimento, publico o relato. “Formei-me em medicina! Alegria geral! Agora preciso ganhar o pão de cada dia com meu suor, se possível sem lágrimas. Mas onde e como? Comecei a clinicar. Chegam os pacientes, despejados de todos os cantos, a maioria escorre das favelas. Na madrugada fria, enfileirados, eles imploram, piedosamente, a bendita consulta. Esta, uma vez conseguida, é realizada, muitas vezes de modo superficial e apressado. Todos entram no templo encantado dominados por uma imensa fé e sonham com os milagres da fantástica medicina moderna. Chega o momento do exame, agora eles são encaminhados para o altar onde será iniciado o interrogatório. Conforme determina o ritual, inicialmente é preciso que o doente se mostre humilde diante da divindade: venere o sacerdote vaidoso e compenetrado que o espera. Após obedecer a esse mandamento, ele será considerado merecedor de ajuda futura. Cabe ao paciente executar o determinado. Não lhe será permitido questionar, pois perguntas aborrecem, tomam tempo, indicam desconfiança e magoam o sensível médico. Ali imperam leis veladas: o clínico ordena, o cliente não pode opinar, ele deve submeter-se à vontade do protetor. Sem entender o padrão rígido existente e a linguagem usada, os clientes procuram, muitas vezes sem serem ouvidos, explicar seus males. Começa a consulta: encurvado, enrolado em farrapos, submisso, o paciente contempla o chão. Sua face magra e pálida mostra sinais de feridas não cicatrizadas. Do fundo de sua garganta apertada ecoam, penosamente, cânticos melancólicos que descrevem sofrimentos. Defronto-me Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 203 com seres humanos envelhecidos pela dor. Imagino, com pesar e dificuldade, que um dia eles foram crianças saudáveis e alegres e sonharam ser alguém. Hoje, derrotados e excluídos, jamais alcançarão a profissão, as relações sociais e o respeito valorizado pela nossa cultura. No consul tório médico e em outros campos sagrados, essas sombras são tratadas como animais sem dono, ervas daninhas que só incomodam. Miseravelmente sozinhos, sem proteção, eles ainda teimam em viver e implorar. Esse encontro bate e fere minha face jovem. Tento mostrar uma fortaleza que não possuo. Assentada no meu trono, sou a soberana e represento a farsa da assistência médica ao indigente, papel que forçaram-me a interpretar com uma sabedoria e um poder fingido. Contenho-me para não gritar por socorro, dizer-lhes que também preciso de “médicos” para ajudar-me a suportar as incertezas, as perdas, a juventude que se vai, a responsabilidade que caiu pesada demais sobre mim e, pior ainda, possuir a consciência de tudo isso. Não inventei a doença, nem a pobreza, muito menos a discriminação social ou a morte. Portanto, não posso ser responsável por essas mazelas. Não teci o estranho caminho desenhado pela natureza – ou sei lá o quê – que construiu de modo tão desigual e injusto cada um de nós, bem como a nossa posição na sociedade. Sei que enquanto estou provisoriamente do lado de cá, atuo como um pararraios, sempre aberto, tentando consertar os desencontros dessas vidas. Ouço súplicas, esbarro na penúria extrema, sinto o cheiro nauseabundo de feridas incuráveis, sou jogada e me perco no labirinto sem saída do cliente. Despreparada para conviver com esse caos, obrigada a representar este papel, tenho que extrair de minha mente inocente e conturbada, receitas milagrosas para aliviar todos e tudo. Não possuo essas drogas como muitos fantasiam. Mas, na verdade, sinto-me confortável nesse encontro venerável. Gosto de fingir de deusa, mesmo sendo uma deusinha mixuruca. Sei que é Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 204 pecado pensar assim. Encanta-me fingir que sou o ente poderoso e sobrenatural criado pela mente da sociedade. No delírio compartilhado, eu sou o ser superior que extermina o sofrimento. Estamos, eu e o paciente, aprisionados na mesma estrutura, somos enganados e enganamos, mas necessitamos, para viver, conservar essa quimera. Isso é um direito nosso, talvez nossa única liberdade: sonhar, sonhar, sonhar…” Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 205 A Propósito de uma Gripe Todos nós já tivemos uma gripe. Conforme a gravidade dela faltamos ao serviço, ou deixamos de fazer uma viagem que havíamos planejado. Cada pessoa avalia sua gripe à sua maneira quanto à gravidade, escolhendo os melhores meios de tratá-la. Uns buscam a orientação da mãe, outros, do amigo, alguns vão à procura do médico. Após ouvirmos nossos conselheiros, tomamos chás, medicamentos, repousamos e, às vezes, até mudamos alguns dos nossos hábitos. O que ocorreu nesse indivíduo que aqui chamaremos de Marta? Inicialmente, no sistema ou organismo de Marta originou-se uma ação de uma ma téria - ou energia por sua interação com o meio em que vive ou, em outras palavras, adquiriu um vírus que, ao penetrar no seu organismo, que se encontrava em estado de equilíbrio com seu meio, tirou-o de sua estabilidade, ou de sua saúde, e colocou-o em um modo de viver disfuncional, ou seja, doente. Entretanto, Marta é um sistema individualizado, formado por vários subsistemas e fazendo parte de um sistema mais amplo formado por seu meio ambiente. Além disso, Marta é um sistema aberto que troca, isto é, recebe e fornece energia com sistemas vizinhos como a sua família, seus amigos e seu meio social. Além disso, cada subsistema do organismo de Marta, o respiratório, cardíaco, mental, nervoso, etc., está em constante interação, através de trocas que causam alterações diversas, dentro de um estado dinâmico de equilíbrio. O vírus da gripe, ao penetrar no sistema corporal de Marta, desencadeia uma série de disfunções, desequilíbrios ou “doenças”. No caso de Marta, o vírus atingiu inicialmente o seu subsistema respiratório na sua parte celular. Ela sente dor na laringe e falta de ar. Pouco Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 206 a pouco os subsistemas vão-se afetando mutuamente. Marta começa a sentir náuseas, dores nas pernas, taquicardia, visão ruim, a cabeça confusa, sua pele fica avermelhada e assim por diante, atingindo, em grau maior ou menor todo o sistema, isto é, todo o organismo da coitada. Nesse caso falamos que Marta adoeceu. Diante de um problema clínico como esse, o médico tenta agir no sistema paciente-meio, buscando produzir uma transição de um estado de doença para um estado de saúde, quase sempre com uma série de estados intermediários que, com frequência, são para o paciente piores do que os sintomas da própria doença, como, por exemplo, realizar uma cirurgia para extirpar um tumor indolor. Porém o azar de Marta não acaba aí. A potência do vírus da gripe, por si só, é geralmente pequena. Mas ele provocou o funcionamento de uma série de outros sistemas que passaram a causar enormes danos. Analogicamente, assim como um sinal luminoso que possui baixa quantidade de energia, ao tornar-se verde faz fluir dezenas ou centenas de veículos no trânsito (uma alta quantidade de energia). O vírus também pode provocar distúrbios de alta proporção. Marta encontrava-se gripada exatamente no dia de uma prova final. Não se saiu bem nos exames, pois sua cabeça não funcionou adequadamente e, por isso, ela perdeu o ano. A gripe modificou sua atuação no sistema escola/social, causando-lhe enormes perdas neste sistema. Marta não vive sozinha, ela tem família, colegas, vizinhos e mora em uma cidade. Marta, como sistema aberto que é, não só tem todas as partes do seu organismo interligadas e interrelacionadas, mas também todas elas funcionam em harmonia com sua estrutura, de acordo com seus objetivos. Ela interage igualmente com os sistemas vizinhos, tais como o sistema-familiar, o sistema-colégio e outros mais à sua volta, recebendo e enviando agentes de mudanças ou, em outras palavras, troVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 207 cando matéria-energia. Marta, além de ser um ser biológico, é também um ser psicossocial. Da mesma maneira que sua estrutura biológica conduz seu organismo a ter certas funções e não outras, seu sistema mental, adquirido através de educação, aprendizagens diversas, cultura, valores, se organiza num todo, que estabelece sua estrutura mental peculiar e esta, de maneira harmoniosa, busca a sua preservação, assim como procura atingir os objetivos ditados por ela. O sistema mental de Marta desenvolveu-se pouco a pouco, criando assim uma ideia de si mesma. Como ser diferen ciado dos outros, constantemente ela luta para que seu sistema mental não se misture exageradamente com os sistemas vizinhos. Se acontecer, ela poderá desaparecer ou dissolver-se como sistema individualizado, esvaindo-se nos outros. Ao mesmo tempo que o modelo de si e do mundo vai se formando no indivíduo, servindo-lhe de guia para suas ações, a pessoa necessita dos outros para manter-se em equilíbrio consigo e com o meio, ao receber conhecimento, reconhecimento, proteção, crítica, etc. Comumente a ideia ou “mapa” que uma pessoa tem a seu respeito e do mundo é muito diferente da idéia ou “mapa” que os outros fazem dela e de sua realidade. Marta criou um “mapa” de si como se estivesse muito doente, ela tanto imaginou, tanto representou para si a ideia de doença grave, que essa influenciou e transformou o sistema mental até mesmo do médico que a atendeu. Ele passou a achá-la bastante doente, tanto assim que decidiu interná-la num hospital, dada a “gravidade do caso”. Portanto, houve um equilíbrio no sistema Marta-médico, os dois passaram a ter a mesma ideia. Marta, de acordo com sua estrutura mental ou seus propósitos, “necessitava” ficar doente, o médico “necessitava” de pacientes para representar o papel de médico. A doença de Marta, inicialmente orgânica, agora já o é também psicológica e social. Marta, do consultório vai submeter-se a exames laboVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 208 ratoriais, RX e, finalmente, é internada. No hospital, Marta se descompensou, pois foi-lhe muito difícil adaptar-se nesse sistema estranho e às vezes sinistro, exatamente num momento difícil de sua vida. Ela, que já estava doente, adoeceu ainda mais. Além disso, seu ponto de apoio, que era a família, teve seu contato diminuído e muito, para que o sistema hospitalar pudesse funcionar a contento, em detrimento do primeiro, ou seja, da família. Diante desses problemas a mais, Marta piorou. À medida que ia se desequilibrando, o sistema-Marta equilibrava o sistema-hospitalar, pois este último só existe em função do paciente. Esta maneira de conceituar a “doença” mostra a complexidade que é um ser humano doente, não somente com respeito a uma descrição dos vários sistemas orgânicos envolvidos, mas também com respeito à maneira e à execução do tratamento e mesmo onde irá ser feito, quais os riscos para os diversos sistemas do indivíduo (psicológico e social). O sistema Marta agora coloca em funcionamento vários outros sistemas à sua volta e com eles interage. Transforma e é transformada por eles. Uma doença maior e mais complicada começa a aparecer. Era uma simples gripe, aos poucos atinge outras áreas, passando a ser um distúrbio complexo, abrangendo os sistemas orgânico-psicológico-social interrelacionados. Todos eles foram atingidos e se desequilibraram. O tratamento não consistirá mais em curar uma gripe, mas, sim, fazer com que todos os sistemas comprometidos voltem ao equilíbrio anterior. O distúrbio inicial pequeno pode gerar, em outros sistemas, distúrbios de muito maior gravidade e intensidade. A doença inicial de Marta, gripe, poderá provocar em sua mãe uma reação emocional intensa, provocando-lhe insônia, diarreia, ansiedade. Este distúrbio, por sua vez, pode rá atuar na avó de Marta e esta poderá ter um infarte. A cadeia pode-se estender para outras pessoas e, uma vez formada, tende a permanecer, ou seja, encapsular, resistir às mudanças. Quando as transformações Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 209 permanecem por um tempo longo, elas ficam incorporadas ao sistema, mantendo um equilíbrio disfuncional (doentio). Daí a dificuldade encontrada pelos médicos frente ao paciente crônico. Portanto, uma “doencinha” à-toa, pode tornar-se, com a participação de outros sistemas, uma doença incapacitante. São comuns afirmações como “depois daquele tombo não fui mais o mesmo homem” ou, “eu virei outra mulher após a ligadura das trompas”. A ação do médico, algumas vezes de proteção para com o paciente, pode protelar, ou mesmo impedir a cura, de acordo com esta teoria. A ligação do sistema médico-paciente pode se tornar tão forte para o cliente, que ela se torna o objetivo primordial da pessoa. O indivíduo passa a se considerar um doente, acostuma-se com essa ideia e a partir de então fica aprisionado no sistema de saúde, como doente. Os clínicos de maior experiência sabem que, com alguns pacientes, para ajudá-los ou curá-los, têm que abandoná-los. Em outras palavras, para permitir que uma paciente possa retornar a um nível satisfatório de vida, é necessário que o médico corte a ligação médico-paciente, anteriormente necessária para a recuperação da mesma, agora prejudicial, isto é, está lhe causando uma outra doença, num outro sistema. Qualquer pessoa que estiver muito presa a um sistema, terá dificuldades em se envolver ou buscar outras opções no seu mundo. Lamentavelmente, para alguns, “ser-doente no mundo” passou a constituir o objetivo supremo do viver, o ato mais significativo de uma vida insignificante. Para esses, é menos ruim ser doente do que não ser nada. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 210 Duas vertentes Duas revistas americanas, a “New York”, há vários anos, dezembro de 89, e a “Newsweek”, março de 1990, estamparam na capa fotos e desenhos de um novo antidepressivo, o cloridrato de fluoxetina, lançado no Brasil também há bastante tempo, bem como nos Estados Unidos. Ambas as revistas discutem, em suas reportagens, a batalha que se trava entre os chamados psicoterapeutas e os psiquiatras referente à prescrição de drogas para seus pacientes. O que se nota, através das reportagens, é uma modificação nos hábitos e na maneira de pensar dos psicoterapeutas. Baseados na crença de que as prescrições para os clientes teriam um efeito simbólico negativo sobre a psicoterapia, eles não receitavam medicamentos para seus pacientes. Agora passaram a recomendá-los. A luta, que é antiga, se acirrou a partir do livro publicado pelos professores americanos Paul Wender e Donald Klein, em 1981, com o título “Mind, Mood and Medicine”. Nele é descrito o caso de uma cliente que, após ser tratada durante vários anos através de diferentes formas de psi coterapias, e não tendo conseguido os resultados esperados, melhorou consideravelmente ao usar antidepressivos. A paciente apresentava a síndrome do pânico. Estava lançada para o mundo uma ideia revolucionária da possibilidade de se tratarem certos distúrbios emocionais através de medicações. Até então a única forma de tratamento utilizada para esses casos era a psicoterapia. A descoberta de novas medicações e a divulgação e o uso de novas técnicas psicoterápicas destruíram o domínio exercido, durante décadas, pela psicanálise. Esta forma de tratamento, ou melhor, esta técnica psicoterápica tornou-se tão divulgada entre a população que ela passou a ser sinônimo, para muitos, de psicoterapia. Atualmente existem catalogadas mais de mil Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 211 teorias psicoterápicas diferentes. Algumas são, há muito, empregadas no Brasil, como a Psicoterapia Centrada no Cliente, Terapia Transacional, Terapia Comportamental, Terapia Jungiana, Gestalt, Neurolinguística, Terapia Racional Emotiva, Terapia Cognitiva Comportamental e outras. A poeira ainda não baixou nos Estados Unidos, mas começou a levantar-se aqui no Brasil. Durante muitos anos a psicoterapia de base analítica dominou os departamentos das escolas médicas, de psicologia, de sociologia e de antropologia e também uma grande parte das revistas sobre o comportamento humano. A psicanálise sutilmente penetrou e dominou a imprensa leiga, assim como as artes e a literatura, determinando a formação de uma opinião pública altamente favorável a ela. Nos departamentos das universidades, onde a psicanálise dominava, os que ousaram duvidar de suas suposições, ou eram afastados de suas funções, quando as tinham, ou nunca alcançavam cargos de direção. A psicanálise tornou-se, para muitos dos seus antigos seguidores, algo semelhante a uma religião. As suas premissas não podiam ser contestadas, mas tão-somente discutidas, para serem compreendidas pelos iniciados nas “verdades” reveladas e não observadas. Alguns curiosos discordavam publicamente da teoria psicanalítica, entre eles Sir Peter Medawar, prêmio Nobel de Medicina, que declarou: “Considerada em sua totalidade, a psicanálise não funciona, ela é um produto acabado, é como um dinossauro ou um Zepelin; nenhuma teoria melhor poderá ser erigida sobre suas ruínas, as quais permanecerão para sempre como uma das mais tristes e estranhas marcas na história do pensamento do século XX”. Existe atualmente o perigo de caminharmos para o outro extremo, o risco desses entusiasmados neuroquímicos passarem a tratar todos os seus pacientes de modo semelhante ao do internista que trata uma úlcera, ou de um fanático psicoterapeuta ao imaginar que a teoria por ele seguida é a única certa e verdadeira e, desse modo, cair na mesma crença sustentada pelos psicanalistas de ontem. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 212 Os psicólogos americanos que, aqui como lá, não podem receitar, lutam para conseguir esse privilégio restrito a médicos e dentistas. Parece que a luta entre os grupos vai durar muito tempo. Quem perde com a disputa é a própria psiquiatria, pelo radicalismo, sempre perigoso, principalmente na área científica, e também os clientes, que ao se filiarem a um grupo ou a outro, perdem muitas vezes a oportunidade de se beneficiar com os tratamentos do grupo adversário. De qualquer modo, pouco a pouco os psiquiatras aceitam o inevitável, isto é, surgimento de diferentes técnicas psicoterápicas adequadas para diferentes tipos de pacientes e de terapeutas, e o uso de medicamentos para curar algumas vezes ou, pelo menos, junto com as psicoterapias, ajudar a curar diversas doenças mentais e emocionais. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 213 Placebo, a Pílula Dourada Certos médicos gostam muito de receitar drogas novas, a última novidade ou descoberta do laboratório. Eles tem plena razão, pois no meio médico circula uma afirmação: “deve-se tratar o maior número de pacientes com as novas drogas, enquanto elas ainda têm o poder de curar”. Sabe-se que, após algum tempo de uso, várias dessas drogas espetaculares foram desmitificadas e tornaram-se somente placebos, ou seja, substâncias sem a ação farmacológica. Para verificar se uma droga tem ou não propriedades farmacológicas, os pesquisadores testam-na, comparando-a com um falso tratamento, isto é, com um placebo. Este é preparado preenchendo todas as características externas da droga a ser testada. Também o grupo de pacientes que recebem a droga e os que recebem apenas o placebo deve ser semelhante tanto em idade, como quanto à ”doença”, à cultura, etc. Os pacientes, as enfermeiras e os médicos que aplicam as duas “drogas” não sabem qual é a inerte e qual é a droga a ser testada. Apenas o coordenador da pesquisa conhece esses dados. Tem sido verificado que os placebos tendem a ser mais eficazes, se custam mais caro, se muitos amigos e conhecidos já o usaram com “sucesso”, se são amargos ou se, em algum sentido, apresentam dificuldade de serem usados. As injeções inertes têm mais efeito do que os comprimidos sem ação. Pois bem, normalmente os sintomas da maioria das doenças são favoravelmente afetados também pelos placebos, isto é, pelo não-remédio. Eles são altamente eficientes para melhorar as ansiedades, depressões, dores, enjoos, insônias, psicoses, neuroses, alergias diversas, artrites, distúrbios gastrointestinais, doenças da menopausa, verrugas, impotência, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 214 acne, obesidade e muitos outros problemas médicos. Não fique muito entusiasmado com essa “panaceia”. Ela é muito eficiente para curar os sintomas e não a reversão ou suspensão de condições degenerativas. Os remédios receitados pelos curandeiros e pelos médicos até o século XIX eram certamente placebos, já que mesmo aqueles medicamentos, com propriedades farmacológicas hoje bem conhecidas e comprovadas, eram utilizados em doses inadequadas ou para vários males em que a sua ação terapêutica era nula. Os antigos médicos e curandeiros indicaram e realizaram, entre outros, os seguintes tratamentos: panos quentes aplicados à pele, varas magnéticas, elixir de longa vida e, para curar impotência, bebidas contendo o sangue dos fortes, perfurações da pele com agulhas especiais, inalações de vapores ou de fumaças, etc. As poções, os unguentos e as cápsulas preparadas pelos curadores podiam conter quase tudo: fezes ou urinas humanas ou de outros animais, metais diversos como o cobre (usado também para ser colocado em contato com a pele), pós de besouro e de serpentes, gorduras de eunucos e de porcos não castrados, testículos e diversas ervas. Todos esses tratamentos tiveram algum sucesso, em certos épocas, realizados por algum terapeuta. Os doentes mentais se submetiam a alguns tratamentos mais bárbaros: odores desagradáveis, sons altíssimos, exposição a situações de perigo (cova das serpentes), aplicação de vesicatórios na cabeça, camisa de força, duchas frias, segregação social, coma insulínico, eletrochoque e, mais recentemente, a lobotomia. Os clientes e seus familiares eram explorados pelos diversos “sábios” da época, que cobravam às vezes fortunas pelos tratamentos efetuados. Esses eram feitos, muitas vezes, com remédios não revelados, fabricados secretamente pelo curador, exigindo um grande tempo de uso, bem como muitos recursos e esforços do paciente, além de serem perigosos, desagradáveis e até mesmo sinistros. Ora, como a maioria dos tratamentos que ocorreram na medicina pré-científica – ainda muito usados Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 215 – não apresentava o menor efeito orgânico direto sobre a condição a ser tratada, conclui-se que grande parte das curas foi alcançada com o uso de placebos. O placebo continua com sua ação poderosa na medicina moderna. Podemos afirmar que toda ação terapêutica medicamentosa, psicoterápica ou mesmo cirúrgica, envolve, em maior ou menor grau, efeitos de placebo que dependerá do carisma do médico, da fé do cliente e como o ritual mítico foi encenado. O médico, querendo ou não, sabendo ou não, fará uso de efeitos placebos em seus tratamentos. Entre as diversas pressões sofridas pelos médicos no seu dia-a-dia, principalmente se trabalha em instituições onde o número de clientes é enorme e o tempo curto, é a exercida pela indústria farmacêutica quanto à promoção de seus produtos. As estratégias são várias, indo desde a propaganda cara a cara, passando por promoção de encontros, revistas especializadas muito bem impressas, até o financiamento de congressos, ajuda material e financeira para pesquisa dos medicamentos da firma e distribuição de amostras. Essa indústria, de parceria com o ensino médico, criou o conceito de que tratar de alguém é dar-lhe algum medicamento. Essa ideia contamina a população, que hoje pensa do mesmo modo. Criou-se com isso, ao lado do médico, do paciente e da indústria farmacêutica, uma redução no campo de visão da doença, com percepção apenas dos seus aspectos biológicos, e pouca ou nenhuma preocupação com os ângulos psicológicos, sociais e culturais. A indústria farmacêutica, seguindo os outros mercados de produção e consumo, lança periodicamente novidades em medicamentos, com a ideia, para o consumidor e alguns médicos, de um suposto progresso ou avanço de medicina. Os novos medicamentos são avidamente receitados e consumidos pelas mentes confusas, assim como se usa a nova cueca, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 216 o novo sabão em pó ou o novo perfume. O bom médico, na avaliação de alguns, deve estar em dia com as novas e maravilhosas drogas que acabaram de sair do forno. Como toda moda, as propriedades extraor dinárias da nova droga quase sempre desaparecem com o tempo. O cliente, esquecendo que foi ludibriado ao ser tratado possivelmente por um placebo, curado pela fé retorna ao seu médico, caçador da mais moderna descoberta, e consome feliz, novamente, o último lançamento, a última panaceia, o placebo dourado, num ritual hipocondríaco. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 217 Festas populares; Lazeres Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 218 O Natal de Jésus Momentos antes de ser preso e algemado, Jésus ajoelhou, após tirar toda a roupa do seu corpo magro, rezando piedosamente diante do imenso presépio construído na frente da igreja. Retirou com extremo cuidado a imagem do menino Jesus, do tamanho de um homem, colocada no leito simples da manjedoura e transportou-a, sem estragá-la, para o lugar onde ele sempre dormira, sob a marquise da prefeitura. Em seguida acomodou-se no lugar onde se encontrava a imagem do menino Jesus. Seu ato inocente escandalizou o povo religioso, sério e ordeiro da cidade. As autoridades discutiram as razões da detenção: “psicose, acompanhada de delírios e alucinações”, segundo o psiquiatra; para o delegado, “perturbação da ordem social” e, conforme o padre, “profanação de rituais sacros”. Jésus sem nada entender do que foi dito a respeito de seu ato, foi detido assim mesmo. Após ter sido arrancado do leito do presépio onde se acomodara,Jésus foi conduzido ao hospital psiquiátrico. Então, os bondosos e caridosos cidadãos da cidade puderam retornar à tranquilidade habitual. Nessa bela noite de confraternização dos povos, enquanto as famílias ricas se reuniam, trocando presentes caros, bebendo vinho e champanhe, comendo peru, lombo e frios, brindando e cantando alegremente lindas e ternas canções em nome da igualdade, do amor ao próximo e da caridade, Jésus morria, agredido dentro do hospital, onde fora internado, por um outro interno, que lhe confundiu com um espírito mau. A morte foi rápida. O companheiro de infortúnio, munido de uma velha lata contendo restos endurecidos de cimento, jogada no pátio, abriu a porta do quarto onde ele estava; bastaram duas pancadas fortes e secas na sua cabeça frágil, para esfacelar o crânio, enquanto ele jazia no chão Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 219 frio. Não foi preciso fazer muito esforço para por fim à triste vida de Jésus. Conduzido à sala silenciosa do necrotério, o corpo de Jésus atravessou a noite sozinho. Na vizinhança, grupos soltavam fogos, gritavam e cantavam comemorando o Natal festivo. O que restou dele, uma cabeça decepada costurada num corpo, foram enviados à seção de anatomia da Faculdade de Medicina, Os órgãos, uma vez limpos e desinfetados, guardados no formol, até bonitos, foram aproveitados para futuras aulas de Medicina Legal. Nas aulas, através do corpo inerte de Jésus, professores orgulhosos mostraram conhecimentos: compararam a lesão existente em seu crânio com outros contendo fraturas provocadas por porretes, pedras e tiros. Enquanto isso, os alunos debruçavam-se sobre os ossos e o examinavam interessados. Uma parte do seu magro e pálido corpo, foi esquartejado nas aulas de anatomia, servindo para que os calouros pudessem dissecá-lo e identificar músculos, artérias, veias, tendões e outros órgãos. Constataram, após exames minuciosos, que tudo estava no lugar certo. A uma hora dessa, Jésus, provavelmente no céu, deve estar feliz e orgulhoso por ter servido e interessado aos ocupadosjovens ricos e brincalhões. Eles examinaram e pegaram, por diversas vezes, as várias partes das peças anatômicas que um dia formaram o corpo vivo de Jésus. Ele, apesar de ter tido uma vida inútil, agora, depois de morto, despertou a curiosidade e interesse de pessoas caridosas. Ao se transformar de homem em órgãos, Jésus ensinou algo de importante ao mundo, através de seu corpo mudo, nu e sem cabeça. Estranhamente, nenhum aluno, por curiosidade ou qualquer outra coisa, perguntou e, talvez, nem pensou, quem fora aquele homem. Ninguém quis saber nada acerca de sua alma, de sua história ou seus dramas. Também, para quê? Jésus tomou tempo demais dos outros; morreu num dia impróprio para isso e, além disso, ele era um inútil; agora, apenas um ex-homem. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 220 Por um Natal Diferente O Natal está chegando. As vitrines estão mais coloridas, algumas ruas mais claras. A TV mostra o mundo encantado de objetos outrora não imaginados, hoje imprescindíveis. A algazarra e a abundância de estímulos sedutores produz o “Espírito de Natal”. Imagens e símbolos, caprichosamente inventados, estimulam a imaginação para sugerir felicidade e fraternidade entre as pessoas. Mas, por trás dessas represen tações – não muito bem escondidas – há um incitamento para comprar compulsiva e desnecessariamente. Nas ruas molhadas e sujas rastejam seres cansados, comandados por ordens invisíveis, debaixo de máscaras de robô e disfarçando as faces amargas e derrotadas. Como um pelotão bem treinado e obediente, homens conquistados carregam pacotes coloridos contendo sofrimento, submissão e busca de significado para a vida. Oro para que o Natal se torne diferente: menos compras, mais reflexão. Também imagino mudá-lo para um outro dia: 14 de dezembro ou 9 de novembro. Um dia comum, sem significado para maioria das pessoas, sem recordações dolorosas, nem lembranças alegres, que jamais se repetirão. Preciso atravessar mais esse Natal. Não tenho saída. Lá longe, muito longe, quando tudo em volta era majestoso para meus olhos amedrontados, assimilei algumas ideias e valores. Ensinaram-me a adotar os ensinamentos e a participar dos rituais religiosos que comemoram o nascimento de Cristo. O menino de Itabira acreditou, sonolento, no propagado: igualdade entre as pessoas, justiça social e liberdade para escolher. A criança perdida continua acorrentada nesses ensinamentos, talvez antiquados. Ele ainda acredita em tudo que Cristo pregou há dois milênios. O menino não acordou, nem sei se um dia acordará. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 221 A reunião familiar vai encenar a peça que vai ser representada. As faces estampam preocupação com o bom desempenho. Cada figurante, treinado com esmero, interpretará o papel a ele conferido no velho “script”. Bem condicionados, um será o personagem principal, o outro, ator coadjuvante. Papeis rígidos, impressos cedo, garantem a boa ordem e organização da família conforme os padrões e os dogmas existentes. Encarcerados, ignorando a prisão, cada ator lutará, com naturalidade e alegria, para não sair do determinado, nem desapontar os assistentes vigilantes. Se ele se desvencilhar, por momentos, dos laços que o prendem, prontamente será forçado a reassumir o papel a ele destinado. A ceia, preparada e comentada dias antes, chega farta. Pratos variados, vistosos, coloridos como os presentes: sedutores, na realidade frios e desbotados. Sinto saudade da couve, do bife com batatas fritas, do arroz fumegante e viçoso. Observo a cena. Observo o observador que analisa. Critico, desesperado, meus pensamentos doentios: preferir a comida simples à sofisticada, gostar de uma terça-feira comum ou da conversa sossegada. Por que não sou igual a todos? Como deve ser bom tolerar, ou melhor, gostar, do Natal atual. Que desgraça carrego na alma! “Senhor todo poderoso, Jesus, filho de Deus, nesse dia em que comemoramos Seu nascimento, ajude-me. Permita-me pensar como meus irmãos. Amarre-me para sempre junto ao rebanho ordeiro. Só assim poderei viver em paz com todos. Liberte-me da loucura de criticar os sadios, os tranquilos e felizes. Almejo transformar-me numa cópia, sem retoques, dos que me rodeiam. Senhor, auxilie-me. Sonho em poder enxergar o céu azul e não cinzento, achar o Natal feliz e não um dia de sofrimentos. Já procurei ajuda terrena: psiquiatra, pai de santo, padre e pastor. Nenhum me compreendeu! Todos pensam da mesma forma! O que me fez ficar assim?” Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 222 Imagino que outros, como eu, devam existir. Mas como e onde encontrá-los? Por serem malucos, diferem também de mim. Os loucos, ou os “anormais”, não formam um grupo coeso, são estranhos uns com os outros, cada um com sua mania, uma colcha de retalhos ou um bando de desagregados. Finalizo o desabafo, sabendo que ele foi tecido num dia inadequado. Essa é a minha sina: expresso o que penso na hora errada, o manifestado é impróprio para os ouvintes e para o tema. Peço desculpas por carregar esse vício maligno. Assim fui construído. Mas, para escapar de ser internado num hospício, no alegre e festivo dia de Natal, fazendo um esforço sobrenatural, desejo a vocês, leitores amigos, bondosos e tolerantes: Feliz Natal e Próspero Ano Novo. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 223 No Embalo das Últimas Férias Tempo de férias. Uma boa parte da população sai do seu canto e se dirige para os mais diversos locais. A escolha dependerá de diversos fatores: do tempo, do dinheiro disponível, do hábito e gosto de cada um e até da moda atual. Assim, uns vão para a Europa ou Ásia, e outros para Baldim ou Betim. As praias são locais frequentemente procurados. Conforme a época escolhe-se uma, em outro momento será outra, a anterior já não mais agrada. Guarapari teve o seu período áureo e também Búzios, Cabo Frio, Marataízes, Porto Seguro e outras tiveram boas cotações no mercado de consumo. Até Copacabana já foi considerada a praia ideal para as férias. Alguns preferem acampar, outros visitar cidades do interior ou estações de água, alguns viajar para o nordeste ou para o sul do País. De qualquer forma é preciso “tirar férias”. Essa é a regra e quase todos aceitam essa prescrição. Não conheço leis, portanto não sei quando e por que elas passaram a ser exigidas legalmente. Não sei também a justificativa dessa exigência. À primeira vista, a resposta é óbvia: “todos precisam descansar após um ano de trabalho.” Deveria essa resposta ser aceita tranquilamente? Em tempos não muitos remotos, as férias não eram respeitadas com tanta intransigência, a não ser nas escolas. Em minhas andanças pelo interior, tenho verificado que muitos dos que ali vivem nunca tiraram férias e nem pensam, ou sabem, que há necessidade delas. Por outro lado, aqui na capital, o respeito às férias é sagrado. As pessoas, na sua maioria, invariavelmente gozam suas férias no mínimo uma vez por ano. No meu entender, salvo engano, esse período acaba se tornando uma época de tensão e sofrimento, não de descanso e paz como deveria Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 224 ser. Numa linguagem mais atual, um estresse para todos. Uma de minhas clientes, dona-de-casa, disse-me que suas férias nada mais são do que “uma mudança de residência” e, conforme suas palavras, “de uma casa confortável para uma sem conforto”. Uma outra cliente contou-me que é um período difícil, já que nas férias ela fica em contato permanente com o seu marido e como os dois não têm muitos assuntos para manter “o bate-papo” o dia inteiro, terminam por se sentir tensos. Tal fato não ocorre nos períodos de trabalho, pois neste os encontros entre os cônjuges são menos frequentes e a conversa do dia-a-dia flui normalmente, como os relatos acerca das notas dos filhos ou da nova empregada contratada. Alguns casais já resolveram esse problema. O marido fica trabalhando e visita a família em férias nos fins de semana. Assim, tudo corre bem… Um amigo meu, Arnaldo, ganhando pouco, como a maioria da população, sempre acreditou que ele e sua família precisam desse merecido “descanso”, custe o que custar. Nesse fim de ano, contou-me as suas últimas férias. Ele possui um fusca, uma mulher e três “diabinhos”. Em novembro – as férias são tiradas em janeiro em Nova Almeida – ele começou a se preparar e a falar acerca do grande acontecimento com os amigos e os familiares, sobre o que faria na praia, o que ia levar, o que iria comer e beber. Era seu único assunto. Para começar, antes da viagem Arnaldo gastou o seu décimo terceiro salário com a revisão do fusca, embalagens térmicas, calções, esteiras, maiôs, anzóis, óleos para bronzear, filtros para se proteger do sol e o aluguel do apartamento. Tudo passou a ser feito com um enorme entusiasmo. Afinal, depois de longa espera, chegou o dia da saída. Aperta dali, empurra daqui, troca-se de lugar, até empanturrar o velho fusca, que parte buzinando rumo ao litoral. Na viagem, a patrulha o cerca e interrompe a viagem por “excesso de bagagem”. Após muita conversa, com muito custo, após desembolsar uma propina para o guarda, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 225 Arnaldo pôde continuar a viagem. Um pneu furou e sua mulher e um dos filhos enjoaram e vomitaram para todos os lados. Mas tudo isso foi suportado com alegria, pois Arnaldo e sua família estavam de férias. O apartamento, pouco maior do que o fusca, estava mal cheiroso, seus móveis quebrados e velhos. Ao chegar, ele teve de esperar por algumas horas a saída do inquilino anterior, que ainda não havia deixado o apartamento. Mas tudo bem, alegria geral, pois é tempo de férias. A família arrumou como pôde o apartamento para torná-lo habitável por quinze dias. A alimentação foi sacrificada pelo preço alto, pois estava tudo caro e ninguém queria gastar tempo cozinhando. Afinal de contas, era preciso aproveitar mais as férias, pois ninguém é de ferro. O sol quente cozinhou no primeiro dia a pele branca e gordurosa do meu amigo, o que impossibilitou Arnaldo de tomar sol por três dias e de dormir satisfatoriamente devido às dores do corpo. A mistura do sol e a dieta de peixe – peixe na praia fica mais em conta – provocou uma erupção alérgica na mulher de Arnaldo, aumentando seu nervosismo constante e por isso atrapalhou o merecido descanso de todos. Mas a gente acostuma-se com tudo e ele e sua família, não fugindo à regra, pouco a pouco e com algumas dificuldades, adaptaram-se para poder “curtir” as esperadas férias. Mas quando isso ocorreu, já estava na hora de voltar. Nova viagem, com os mesmos problemas da ida. Afinal, felizmente, ele e sua família respiram aliviados pois chegaram vivos a Belo Horizonte. Felizmente, sim, pois na estrada tiveram que contornar três corpos presos no meio das ferragens, barracas e panelas espalhadas e, como se sabe, isso pode acontecer a qualquer um. Mas Arnaldo continua otimista, está satisfeito e já fala, não tão entusiasmado como em novembro, nas próximas férias que passará em Nova Almeida. Para ele, o apogeu da satisfação ocorre quando, ao voltar ao Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 226 banco onde trabalha, encontra sua colega Lindalva, que lhe pergunta com um sorriso de inveja: - Arnaldo, que cor linda! Você está queimadinho, onde você andou? E ele, enchendo o peito, cheio de orgulho e felicidade, responde: - Estava curtindo uma praia. Retomo meu pensamento acerca das pessoas que não tiram férias, nem sentem necessidade de tirá-las. Perguntei a uma pessoa que nunca tirou férias, o que ela pensava delas e há quanto tempo não as tirava. A resposta foi rápida: - Nunca! E não tenho vontade de ir nem ao Rio, nem a São Paulo e nem mesmo aos Estados Unidos. Assustei-me e tentei decifrar os motivos dessa grande diferença de atitudes. De um lado, aqueles que, como Arnaldo, adoram e consideram indispensáveis as férias, do outro, os que nunca pensam nelas, ainda quando têm poder para tirá-las quando bem entenderem. Nossa mente não suporta divergências, daí minha tentativa de procurar conciliar essas duas opiniões contrárias. Pensei, quem sabe, Zé Estácio, o morador do interior, tenha em seu trabalho uma grande fonte de prazer, de criatividade e de realização, assim como um contato global e frequente com o universo ao seu redor. Tudo isso lhe permite prescindir das férias, já que sua atividade é agradável e revigorante. Por outro lado, a atividade de Arnaldo é monótona – caixa de banco – estafante, exigindo-lhe uma atenção constante. Além disso, os horários são rígidos e o contato com o mundo ao seu redor é limitadíssimo, tornando seu trabalho alienante e estático. Parece-me que Arnaldo precisa sempre tirar férias, de qualquer tipo, em Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 227 qualquer lugar, talvez até num hospital psiquiátrico, o que não é incomum entre os bancários devido ao estresse continuado. Só através das férias ele conseguirá retornar e interagir com um universo mais natural. Zé Estácio, porém, vive no campo, em contato constante com a natureza plena e real. Lá não há pressa, nem nossos horários rígidos. Ele pode perceber e sentir os acontecimentos que o rodeiam, desfrutar com calma cada cena do seu amplo mundo, indo desde o nascer até o pôr do sol. Poderá assistir ao vivo – participando dela – a uma tempestade brutal ou uma chuva mansa, um animal que nasce e um passarinho iniciando o seu primeiro voo. Zé Estácio não almeja férias, pois ele, talvez, já viva nelas permanentemente. Você, leitor, crie outras hipóteses, pois a minha pode estar errada, mas é a que tenho no momento. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 228 A Boa Terapia do Carnaval O carnaval chegou mais uma vez. Parece-me estranho que alguém possa esperá-lo e desejá-lo com ansiedade. De qualquer modo o carnaval ainda tem o seu público, cultores e admiradores. Há diversos carnavais para os mais diferentes públicos, pois existem até para aqueles que desejam ignorá-lo e para os que o detestam. Para este grupo, o carnaval será época de viajar para algum lugar onde esse não exista, ou a oportunidade de colocar em dia o que estava atrasado. Para outros, nesse período, nada se faz e, se sobrar um tempinho, bebe-se. Um dos grupos carnavalescos que tem crescido é dos “voyeurs”, isto é, daqueles que se deliciam apenas com as imagens do carnaval, ou melhor, dos carnavalescos, nas ruas ou nas televisões. Entre esses, há os que assistem e gravam os desfiles das escolas de sambas, os que veem, excitados, as imagens dos bailes de carnaval, apesar de que, muitas vezes, criticam a pouca vergonha dos exibicionistas. Para o grupo dos “voyeurs”, a dança propriamente dita tem pouca importância, assim como as fantasias, letras e músicas. Tudo isso constitui o cenário onde a cena principal ocorrerá. As câmaras de TVs mostram supostas cenas de sexo implícito ou, às vezes, explícito. Os protagonistas dessas pseudo-orgias quase sempre são mulheres, fazendo uso de alguns ingredientes básicos e necessários: a maioria de meia-idade, de pé num palanque, mesa ou cadeira, requebram, imitando certas expressões faciais estudadas e típicas de cenas de sexo, tendo, frequentemente, os seios à mostra. Todas elas, com pouquíssimas exceções, fazem os mesmos gestos, dão os mesmos sorrisos e “dançam” do mesmo modo e até as “fantasias” são altamente semelhantes: coxas bronzeadas, revestidas com meias rendadas que seguram as gorduras já em excesso, e não mais firmes, minúsculas calcinhas coloridas, plumas e lantejoulas. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 229 Começa então a farsa: o repórter, com a câmara de TV, aproxima-se da dançarina, que percebe sua presença. A “atriz”, nesse instante, inicia ou exagera a representação, fingindo não estar percebendo a filmagem. Do outro lado, em casa, o atento e incauto telespectador assiste ao espetáculo, esperando ver e deliciar-se com cenas eróticas que supostamente vão se desenvolver. Entretanto, internamente, todos juntos, repórter, foliona e telespectador, sabem que nada vai, ou pode acontecer, ali do anunciado pelos gestos ou insinuações. A dançarina, a figura central da cena, repete com alguma arte a mesma dança, construída de gestos inúteis, repetitivos, mas necessários à representação do que se propõe: fingir o sexo. O telespectador, cansado da realidade, não estando fazendo sexo, talvez nem desejando fazê-lo, assiste, sonolento, às três horas da manhã, na sua cadeira preferida, à simbologia sexual, isto é, ao sexo falso. Toda a arrumação é construída para deixar claro que no salão – também na avenida – o reproduzido será somente a fantasia e não a realidade. O irreal ou a fantasia é mostrada como falsa, mas, para que os telespectadores e o público da rua possam desfrutar do espetáculo, é necessário que a cena pareça verdadeira. Sabemos que as cenas “eróticas dos bailes” e os desfiles das escolas de samba necessitam dos “voyeurs” para aplaudir e vibrar com o ilusionismo, seja do sexo nunca realizado, seja da “riqueza dos reis”, dos “marajás” e dos “mestres-salas”, das escolas que, de fato, escondem sua miséria social e econômica. Eventualmente, alguma atriz menos profissionalizada e menos treinada, esquece que está representando cenas de sexo e decide não mais mitificá-lo, mas sim torná-lo real, isto é, reviver o significante em seu sentido pleno ao abandonar a forma. Quando isso ocorre, a ingênua dançarina é rapidamente impedida de realizar o seu objetivo: sair do mito e entrar na realidade proibida. Esses casos são raros, pois quase todos os participantes desse jogo mítico sabem como se comportar dentro das regras Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 230 estabelecidas e aceitas sem discussões. As fantasias tradicionais do carnaval de rua (as do presidente ou do prefeito, as gatinhas, os pierrots, homens vestidos de mulher), as das escolas de samba (divindades, reis, baianas, índios, escravos, artistas diversos), todas escondem uma história que se transforma em uma outra, sempre presa à anterior. De outra forma, a história mostrada elimina a lembrança primitiva da história, mas não uma existência, mantendo um sentido já estabelecido. Por exemplo, a partir da vida de Lamartine Babo, já falecido, é criada uma outra história atual a seu respeito. Alguns fatos são preservados mas, propositadamente, inventam-se outros, dando nascimento então a um Lamartine mítico, não mais real e antigo. Um novo Lamartine Babo, adaptado às exigências atuais do tempo, espaço, outros mitos, etc. Algumas vezes, o ídolo mitificado, ainda se encontra vivo durante o desfile. É o caso de Sílvio Santos e outros, mas, mesmo nesses casos, o que foi representado na narrativa do enredo foi um novo personagem, um Sílvio Santos idealizado por certos autores, diferente do real, mas construído a partir do real, ou seja, encaixado dentro do contexto, das crenças e das ideologias da escola que o representa. O público emociona-se principalmente com a história mitológica, recriada e apresentada a partir da original. A história real, geralmente já conhecida, sendo estática e comum, semelhante à história de todos nós, é por isso mesmo sem graça, enfadonha. Por outro lado, a nova história, a sobre-humana, é carregada de afetividade, cheia de simbolismos verbais – samba-enredo, fantasias, alegorias – o que, no seu conjunto, transmite uma inesperada totalidade razoavelmente interpretada pelo telespectador, previamente treinado e acostumado a assimilar informações semimíticas, isto é, não racionais. A comunicação e a apreensão de seu significado são alcançadas pelo púVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 231 blico sem a presença do raciocínio, sem que a mensagem seja decifrada. Mas ela é sentida e isso é que importa. Ele foi ali para isso. A maior ou menor aproximação com a realidade descrita não tem importância. O importante é o despertar de uma emoção positiva no público. Não estou falando aqui acerca da comissão julgadora, que atua, geralmente, usando critérios mais lógicos. A “galera” faz seu julgamento intuitiva e imediatamente, apropriando-se apenas do concreto, daquilo que lhe entra pelos olhos e que, devido à sua passividade, acaba invadindo parte de seu cérebro, não a cognição. O carnaval é a hora de “brincar” e toda uma técnica é colocada à disposição das pessoas, para que elas troquem a realidade natural por uma “realidade” artificial, mais excitante e mais alegre que aquela que nos é dada pela natureza. As escolas de samba fornecem um espetáculo de beleza, poder e riqueza que, provavelmente por ser falso, é mais atraente do que os acontecimentos possíveis de serem alcançados no nosso dia-a-dia. Desse modo, as dançarinas quarentonas dos bailes de carnaval nos dão a ilusão do sexo, que pode ser mais agradável e excitante do que o próprio. Exclamamos que buscamos a verdade. Não sei! Sei que no carnaval cultivamos e realizamos a falsidade. A natureza humana real é abandonada, deixamos de lado o modo real de se fazer sexo, deixamos de produzir, para nos consumirmos, passivamente, numa ficção. Os mitos e rituais do carnaval, como os ingredientes citados, são inumeráveis, oferecidos à nossa vontade e a granel, nas ruas e nos diversos meios de divulgação: músicas barulhentas que nos impedem de pensar, danças comunitárias estafantes, bebidas, lançaperfume, bailes gay, onde alguns homens transformam-se, na superfície, em belas mulheres, fantasias de todos os tipos. Todos e tudo têm a mesma função: viver o falso, vestir a fantasia para encobrir a dura nudez real e, principalmente, alimentar os consumistas necessitados. É madrugada. Em casa ou na rua, o “voyeur”, inocentemente, sem Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 232 decifrar o simbolismo do rito mítico, consome o conjunto de imagens artísticas dos símbolos apresentados, não percebendo a intenção do rito. Muitas vezes espera horas e horas o fim do ritual para retornar à cena erótica propriamente dita, que havia sido incorporada e desaparecido na dança do carnaval. Mas esta não chega nunca… Como é bom e terapêutico o carnaval. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 233 Personalidade e Neurose Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 234 Disque 145 para amar Eu ainda não procurei a ajuda do serviço da empresa telefônica no “disque amizade” para aliviar-me da solidão. Mas resolvi inteirar-me desse recurso fácil, barato e cômodo, pois não sei, como ninguém sabe, o dia de amanhã. Assim pensando, decidi investigar algo acerca dessa agência de encontros; o que descobri transfiro ao leitor. Durante algum tempo, em horas diferentes, entrei em contato com o “disque amizade”, onde fiz diversos contatos, anotei conversas, gravei outras tantas e entrevistei pessoalmente ou por telefone alguns de seus usuários. Tendo pouca experiência nessa área, é possível que certas observações descritas estejam incorretas, sendo apenas um produto de minha imaginação. Anotei quatro grupos de usuários, em função do horário usado, bem como do conteúdo do diálogo. O primeiro grupo, que dialoga animadamente nas tardes dos fins de semana, é formado por adolescentes de ambos os sexos. Nas suas conversas alegres e barulhentas, onde todos falam ao mesmo tempo, eles discutem a festa programada para o fim de semana, o novo namorado arranjado, onde se toma o melhor sorvete e os problemas familiares. Parece-me que o objetivo principal desses telefonemas é comunicar para comunicar. O segundo grupo, o que telefona à noite nos dias de semana, é constituído de estudantes, bancários, comerciários, domésticas e até profissionais liberais. Estes jovens, que têm como objetivo principal arrumar uma companhia para namorar ou transar, exibem uma conversa mais cautelosa e nervosa, em virtude da dificuldade e incerteza de suas cantadas. Após o “alô alô” usual e das apresentações de sempre, eles se queixam da Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 235 solidão, exaltam a importância da companhia e relatam, timidamente, as suas qualidades físicas, intelectuais, econômicas e sociais. — “Qual a sua idade, você é bonita?” — “É… tenho vinte anos…sou vistosa, arrumada, fico até bonita.” As perguntas são padronizadas: nome, idade, atividade, residência, barzinho frequentado e se tem namorado. As respostas fornecem nome, idade, locais de trabalho e residência falsos. Em resumo, o anônimo, do outro lado da linha, permanece encoberto, ou seja, o telefonema não consegue, num primeiro momento, revelar a intimidade do indivíduo. Após os diálogos iniciais, forma-se um casal no grupo e, geralmente, o homem pede a mulher o número do telefone, para que os dois possam ter uma conversa reservada. Dependendo de diversos fatores, mas, principalmente, de suposições, julgamentos favoráveis para o interlocutor, o número do telefone é dado. Essas conversas, aparentemente mal elaboradas para um neófito no assunto, geram frequentes encontros, pois o grupo sabe, muito bem, decifrar as mensagens trocadas, com eficiência. Os encontros realizados são, na maioria das vezes, de curta, ou melhor, de curtíssima duração. A realidade de cada um dos amantes é quase sempre, diferente para pior do que a idealidade. Parece que o encontro físico produz uma decepção nos envolvidos no jogo. A voz amiga, sexy, suave e protetoraexistente do outro lado da linha era mais interessante, agradável e excitante do que a agregada a um corpo. A percepção do outro, nas maior parte das vezes, destrói a fantasia do príncipe ou da princesa encantada existente na mente dos solitários. As ilusões acerca de um parceiro ideal não terminam com algumas frustrações amorosas, pois novos encontros são marcados, geralmente com novas decepções. Uma de minhas amigas revelou-me que já havia encontrado trinta e sete namorados através do “disque amizade”. Ela não perdia a fé, continuava a ligar todas as noites, imaginando que, um dia, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 236 encontraria o seu amado, custasse o que custasse. O terceiro grupo é formado por aqueles que telefonam aos sábados e domingos à noite. Aqui se encontram dois subgrupos bem distintos. De um lado estão homens diversos, vigias, telefonistas, enfermos presos ao leito, plantonistas etc., exibindo uma linguagem desajeitada e “cantadas” mais diretas e, talvez, mais simplórias. Esses, com tempo de sobra e sem poder abandonar seu posto, divertem-se telefonando. Do outro lado da linha, encontram-se mulheres solitárias, casadas ou não, vivendo situações semelhantes, isto é, presas em casa, sem o que fazer, sem amigos e sem idéias; necessitando, a todo custo, “encher” as longas noites dos fins de semana. Parece-me que esses diálogos tão diferentes promovem poucos ou, possivelmente, nenhum encontro. O último grupo é o formando por aqueles que telefonam a partir das vinte e três horas. Este é mais voltado para o sexo puro e cru. As conversas são geralmente diretas: “Alô; você já se deitou? De que cor é a sua calcinha?” Provavelmente, esse grupo obtém o prazer sexual, em parte, através de telefonemas. O anonimato é a regra, sendo pouco, ou nada, revelado, a não ser o essencial para que o jogo sexual possa ser exercido com eficiência. Para isso, os diversos afrodisíacos verbais são utilizados por esse grupo desinibido, que se excita pelas palavras, ou seja, através do sexo-verbal. Entrevistei dois dos amantes da “pornolalia”; deram-me a impressão de tímidos e desconfiados. Relataram-me que poucos encontros são marcados a partir dessas conversas, todos para fins carnais: após esses o sentimento de vazio e de solidão anterior permanece inalterado, às vezes, aumentado. De qualquer modo a Telemig fatura, ao mesmo tempo, distrai boa parte da população. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 237 Diante de uma Provocação Todos nós enfrentamos, com alguma frequência, provocações produzidas por nossos inimigos, amigos e até por pessoas indiferentes a nós. As provocações são expressas das mais variadas formas: críticas diretas e indiretas, insultos com ou sem palavrões, ameaças físicas ou verbais, ironias, zombarias diversas, demonstrações de força ou de poder e outras variedades de agressões. O insultante tem como objetivo essencial provocar uma resposta negativa na pessoa-alvo, caracterizada por medo, raiva, desapontamento, sentimento de inferioridade ou de revide. Em outras palavras, o agressor espera uma resposta padronizada, ditada pelo modelo social, semelhante à manifestada por ele, o provocador. Fico perplexo, em meu consultório, ao ouvir queixas dos meus clientes quanto às mais diferentes formas de se revidar uma agressão. Quase todos os agredidos - pasmem, caros leitores – dão exatamente as respostas desejadas pelo autor da ação. Respondem ao insulto com uma carga emocional negativa, com grande sofrimento físico e mesmo com alguma confusão mental. Na realidade, o agredido faz exatamente o “jogo” desejado pelo agressor. Não sei explicar precisamente por que isso ocorre. Acredito que essa rigidez de resposta, essa falta de jogo de cintura tem origem cultural: foi aprendida como um valor a ser seguido. Costumo sugerir aos meus clientes revidarem à agressão com respostas diferentes das usuais e presumidas, recorrendo a “lances” inesperados, como sorrir para o agressor, olhá-lo sem nada dizer. Percebo, então, da parte deles, uma reação de quase indignação, pois, ao agir deste modo, de acordo com seus valores, estariam fazendo um papel de idiotas. A regra seguida é: “se sou agredido, devo ou preciso reagir da mesma maneira”. Quase nunca passa pelas Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 238 mente das pessoas que é exatamente isso que o provocador deseja de nós: sentirmos raiva, como ele provavelmente está sentindo, ficarmos frustrados, enfim, sofrermos como nosso incitador. O indivíduo pensa frequentemente que perderá seu amor próprio caso não reaja ao insulto, atacando o provocador através das mesmas técnicas utilizadas por ele. Ora, na verdade, se quisermos agradar ao nosso agressor, nada mais correto do que agir dessa maneira, pois assim o estamos recompensando. Porém, se o nosso desejo for o oposto, isto é, não entrar no seu “jogo”, o mais indicado será fazer exatamente o contrário do desejado e habitual. Imaginemos uma cena comum de rua, onde o nosso carro é “fechado” e recebemos de lambuja alguns palavrões da nossa sexualidade ou de nossa progenitora. O que deseja o prezado motorista desafiador? Nada mais, nada menos, do que uma resposta à altura, expressada com os mesmos gestos, os mesmos tons de voz e até com os mesmos nomes feios. Imaginemos então um agredido não “ligado” na arte de brigar no trânsito, muito mais ativo do que reativo e mais dirigido por si mesmo do que pelos estranhos, ou seja, com respostas próprias e não controladas pelas pessoas que encontra. Ao dar uma resposta totalmente diversa da aguardada, nosso amigo colocará o brigão totalmente confuso. A pessoa pode, em lugar de revidar à agressão, apenas sorrir (ou não mudar a fisionomia), observar as notáveis contrações faciais do agressor, seguir o seu caminho sem nada dizer, ou até mesmo pedir-lhe desculpas, num tom de voz doce, por ter impedido o brigador de obter a primazia desejada. Existem outras respostas semelhantes. Tais respostas, diferentes das comumente aguardadas, quebrarão certamente a segurança do agressor, já que ele não esperava por aquela conduta e ao se deparar com o novo “lance”, não saberá como dar continuidade ao jogo. Em resumo, aprenda a se livrar de antiquadas maneiras de agir usadas apenas por serem familiares e socialmente valorizadas, mas que são, na verdade, improdutivas, dolorosas e perigosas, levando a pessoa a ser, Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 239 no momento da querela, dirigida pelo agressor, pelo indivíduo do qual gostaria de estar bem distante, talvez até vê-lo morto. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 240 Os Agitados e os Sossegados Maria ama seu sossego, seu lar e, às vezes, até sua solidão. João ama a vida agitada, a rua, os botecos, as festas, as novas conquistas e, principalmente, as novidades. Maria não se arrisca, evita novas amizades, cumpre o que promete, é medrosa, séria, minuciosa e pontual. João é boêmio, irresponsável, teatral, alegre, impulsivo, agitado, otimista, simpático e adora o perigo. Maria odeia brigas e discussões. João adora polêmicas e confusões. Maria não bebe e detesta cigarros. João fuma, gosta de um trago e, às vezes, experimenta um “baseado” ou cheira o “pó”. Maria, que era virgem, conheceu João e nunca mais amou ninguém. João, que começou sua vida sexual aos treze anos, amou e ama várias Marias ao mesmo tempo. Maria, cheia de incertezas, pensou muito antes de se casar. João, seguro e despreocupado, casou com Maria sem pestanejar. Todos imaginaram que o casamento não duraria. Mas, após 23 anos de casados, eles continuam juntos e se completam na sua relação assimétrica, pois Maria é dependente, tolerante e presa às suas convicções. Ela conserva, custe o que custar, o casamento que João nunca levou a sério. João é sociável, irascível, ativo, inconstante, dominante, extravagante, desordenado, assertivo, desinibido, gastador e aventureiro. Maria é fria, reflexiva, rígida, inibida, ordenada, cautelosa, tensa, leal, não-empática, envergonhada, preocupada crônica, detesta novidades e sofre sem reclamar. Afirmamos que João e Maria são diferentes com respeito ao “ótimo nível de excitação”. Todos os animais, incluindo o homem, têm um certo nível de estimulação interna que os faz sentir bem, ou seja, “estar numa boa”. Quando o indivíduo afasta-se desse nível ótimo, por estar sendo pouco ou estar demasiadamente estimulado, ele sente-se mal e instintivamente Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 241 busca, através de ações, aumentar ou diminuir sua estimulação, visando a restaurar o seu bem-estar anterior. Entre os modelos explicativos para esses comportamentos encontramse os do psiquiatra Eysenk (extroversão, introversão), o de Zuckerman (busca de sensações) e o de Cloninger (procura de novidade e fuga do dano). Alguns se autoestimulam tocando campainhas, chutando latas, gritando e brigando, fazendo os pneus “cantarem”, sem medo ou ansiedade, ou seja, prazerosamente. Tornam-se ansiosos nas situações rotineiras da vida, nas sem risco. Esses indivíduos praticam a “roleta russa”, voam em asadelta, mostram os bumbuns publicamente, assaltam, queimam mendigos, matam garçons e índios. Através dessas ações recebem seu “suprimento de energia”, aumentam seu baixo nível de excitação interna. Ligam-se aos partidos políticos radicais da direita ou da esquerda e, nas religiões, são fanáticos. Agridem e matam em defesa de seu deus. O outro grupo, o da Maria, foge das novidades, das grandes emoções, dos sofrimentos e problemas. Para se sentirem bem, precisam trabalhar num ambiente calmo e sem barulho. Seu cérebro está continuamente estimulado, excitado. Na escola são sérios e honestos, até demais, evitam as bagunças e a “cola”, não perdem o ano e têm poucos amigos. São cautelosos na política, “ficam em cima do muro” e seguem um modelo mais tradicional de conduta religiosa. Mas não se assuste, caro leitor, nós somos semelhantes à maioria das pessoas, uma mistura dos dois estilos descritos, podendo ter mais características de um ou de outro modelo. Faço votos para que não seja um extremista. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 242 Solitários mas Não Isolados A literatura popular tem defendido a ideia de que morar com outras pessoas é benéfico para a saúde. Muitos psicólogos endossaram essa afirmação, acrescentando que os indivíduos isolados teriam mais transtornos da personalidade e, muitas vezes, precisariam de tratamentos. É comum entre as pessoas interpretarem o isolamento social, ou falta de ligações com outros, como sendo um “problema”, ou mesmo loucura do indivíduo. Certas pesquisas têm afirmado que o isolamento conduz à solidão, e que os isolados apresentam uma autoestima mais baixa, avaliam a vida negativamente, morrem mais cedo de doenças como infarto, aterosclerose, etc. e também têm taxas mais elevadas de alcoolismo e suicídios. Portanto, a crença existente e defendida por muitos é que morar com alguém faz bem à saúde, servindo de profilático ou antídoto contra os sofrimentos. Felizmente, para o bem de todos, sempre há os que pensam diferente. Assim, outras pesquisas negam as crenças acima. Muitos podem, intencionalmente, cultivar a privacidade, desejar ou abraçar a liberdade que só o isolado pode ter. Essas pessoas podem estar sós, mas não solitárias. O contrário pode acontecer, muitos casados estão mais solitários do que muitos solteiros e separados. Os casamentos, muitas vezes, dificultam as relações fora das familiares. Para esse modelo, viver lado a lado com alguém não significa maior proteção à saúde e o contato mais restrito com outros pode significar escolha, não doença ou defeito da personalidade. Todos nós, constantemente, efetuamos comparações entre o que esperamos, ou desejamos, e o que está acontecendo de fato. Ao compararmos, automática e inconscientemente, examinamos se o número e a qualidade das relações que possuímos nos satisfazem ou não. De outro modo, se elas estão ou não conforme nossos projetos, se há Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 243 acordo entre o desejado e o realizado, isto é, entre o plano e o ocorrido, tornamo-nos tranquilos e satisfeitos, caso contrário há desequilíbrio e insatisfação. Assim, a desarmonia surge quando os contatos existentes ou são poucos ou exagerados, conforme o idealizado pelo indivíduo, ou ainda, quando eles são de “má qualidade”. Havendo divergência entre o esperado e o acontecido, manifesta-se o sofrimento, o malestar emocional e intelectual. Uma vez alertados por essas bússolas internas, buscamos soluções para reverter a descompensação existente e, caso tenhamos sucesso, voltamos ao ponto de equilíbrio imaginado e experimentado pelo organismo como agradável. Em resumo: podemos tomar medidas, tanto para aumentar, como para diminuir nossos contatos e também para melhorar sua qualidade. Na esfera biológica, um fenômeno chamado de homeostase corporal, funcionando automaticamente, promove adaptações frequentes dos desequilíbrios internos do organismo. Procuramos beber água quando perdemos líquidos devido à transpiração excessiva ou vômitos, por exemplo. Na área das relações humanas, os transtornos, como são mais complexos que a sede, necessitam de estratégias mais sofisticadas. Primeiro, precisamos focalizar com clareza nossos projetos. Isso é difícil e por vezes não somos capazes de precisá-los. Segundo, avaliamos o meio ambiente para detectar nele a possibilidade, ou não, de fornecer-nos o planejado, como, por exemplo, o desejo de conviver com uma pessoa, mas esta pode nada querer conosco. Terceiro, orientados pelo projeto, selecionamos, dentre várias possibilidades e estratégias, uma capaz de levar-nos onde desejamos chegar. Quarto, ao atuarmos no meio ambiente escolhido e ao examinarmos com o nosso mapa avaliador interno, os resultados obtidos nos serão revelados conforme a qualidade das emoções sentidas – agradáveis e desagradáveis – e da adequação ao plano. Se tudo correr bem, a pessoa mantém as relações como estão fluindo. Portanto, o que determina o bem-estar e a satisfação da pessoa, ou seu sofrimento e insatisfação, é o acordo ou o desacordo entre o contato desejado e o existente. Concluindo: muitos se sentem isolados, mesmo Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 244 tendo muitas ligações. Outros se julgam ligados, com poucos contatos. O critério é subjetivo e não depende apenas do número real de ligações. Alguns autores classificaram em quatro grupos as pessoas quanto à satisfação, ou não, com respeito aos contatos existentes: 1 – Ligado Satisfeito”; nesse caso o número de contatos é o desejado; 2 – “Ligado Insatisfeito”, o número existente de contatos é obje tivamente alto, mas não corresponde ao padrão esperado e planejado pelo indivíduo; 3 – “Solitário Satisfeito”, o número de contatos é reduzido ob jetivamente, mas corresponde aos ideais da pessoa, ou seja, está de acordo com seu desejo; 4 – “Solitário Insatisfeito”, o número de contatos é pequeno e as pessoas desejam mais. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 245 O Chantagista Emocional Todos nós já convivemos com pessoas que chegamos a amar e, possivelmente, hoje odiamos. Relacionamo-nos com um tipo de indivíduo que num primeiro encontro mostrou-se agradável, simpático, e deu-nos a impressão de estar interessado por nossos problemas e de ser honesto. Com o passar do tempo, o percebemos como o oposto do que sua “máscara de saúde” aparentava. Os psiquiatras classificam esses indivíduos como possuidores de um “transtorno da personalidade antissocial”. São figuras humanas interessantes, constituindo 70% dos habitantes das penitenciárias, portanto, muitos deles estão soltos. É preciso muito cuidado com eles, pois podem infernizar nossa vida. Aparecem mais frequentemente entre os homens, embora muitas mulheres sejam antissociais. Alguns autores afirmam que 4% da população apresenta essa conduta, para outros, a proporção é maior. O direito denomina essas pessoas de “criminosos”, “estelionatários” e outros termos. O povo avalia negativamente esses indivíduos, chamando-os de “cara-de-pau”, “marginais”, “sem-caráter”, “sem-vergonha”, “safados”, “desonestos”. Falantes e animados, dão a impressão de pessoas felizes e bem-ajustadas. São artistas, exibindo uma falsa autenticidade, segurança e ótima saúde mental que, de fato, não possuem. Atenciosos e sem inibições, cativam rapidamente a todos, principalmente às mulheres, que se apaixonam com frequência por eles e muitas vezes passam a dedicar-lhes suas vidas. É atraído por ações perigosas e detesta ambientes tranquilos. Ele agride as pessoas quando frustrado, age apressadamente diante de situações problemáticas, pois não tolera refletir ou adiar ações. O antissocial é indisciplinado e geralmente incapaz de seguir objetivos a longo prazo, bons ou maus, isso não importa. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 246 Nas suas conquistas, pode ocorrer que já num primeiro encontro o antissocial declare todo seu amor e paixão à ingênua mocinha. Propõe-lhe um casamento ou uma vida a dois maravilhosa, pois está “caído” por ela. Em seguida, pede-lhe um empréstimo, pois terá de viajar na manhã seguinte para realizar um grande negócio, mas, como foi assaltado há poucos instantes, ficou sem dinheiro e também sem seus preciosos talões de cheques. Às vezes o “golpe” é mais lento. Há um início de namoro, com grande intimidade com sua parceira e familiares dela. Fica amigo de todos, conversa muito, conta casos interessantes e alegres, mostra-se prestativo, frequenta a casa da namorada, passa a almoçar, jantar e até dormir lá. Para justificar o seu modo de vida, histórias fantásticas são relatadas à família. Essas, à medida que se descobre sua falsidade, são trocadas por outras mais fantásticas ainda. Ele não está trabalhando porque tirou férias de uma grande empresa, onde é diretor-presidente. Terminadas as suas “férias”, ele está planejando um vultoso negócio para a companhia e por isso foi dispensado de ir trabalhar. Que pena! De repente, fizeram-lhe uma injustiça: ele foi demitido. Mas não foi nada, pois ganhará uma grande indenização e antes de largar o trabalho, já terá sido contratado para novo emprego, por sinal muito melhor do que o anterior. Sem endereço nem telefone, sua família é uma incógnita, até seu nome costuma ser falso. Enganando a namorada, ele pode chegar ao casamento. Após este se consumar, surgem as brigas, as agressões físicas, as exigências de dinheiro e, com frequência, a infidelidade conjugal aberta: leva mulheres para dentro de casa, “transa” com a vizinha, com a cunhada ou com a melhor amiga do casal. Não mostra nenhum senso de responsabilidade conjugal. O casamento quase sempre dura pouco, acabando com o abandono da mulher e dos Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 247 filhos. Nosso “herói” desaparece, arruma uma nova parceira para explorar. De quando em quando, retorna à antiga mulher, fazendo proposta de reconciliação, num tom de voz aparentemente emocionado, com olhos cheios de lágrimas. Nesses momentos, aparentando sinceridade, jura seu amor e arrependimento por tê-la abandonado. Afirma que nunca mais vai ocorrer o que aconteceu. Entretanto, as promessas duram pouco: só até à primeira frustração ou à primeira sedução fora de casa. Em sua mente nunca há culpa, ele nunca aprende com seus com portamentos inapropriados, pois não sofre com isso. Não é leal a nin guém, nem com nenhum grupo ou ideias. Não consegue julgar adequa damente nenhum de seus atos, nem os dos outros, pois não é atingido pelo sofrimento alheio. Explica, com sua lógica deturpada, toda e qual quer conduta sua, mesmo a mais imoral. Agressivo e impulsivo, não tolera ser frustrado. É um indivíduo geralmente incapaz de seguir qual quer objetivo a longo prazo, bom ou mau, isso não importa. Alguns estudiosos desses “doentes” afirmam que eles buscam, durante suas vidas, um caminho capaz de transformá-las em fracasso. Assim, se cometem uma falta ou um crime, arriscam-se, comentam, enfim, fornecem pistas para serem descobertos. (evidentemente, eles não são “bons” criminosos.) Ele não é um “louco” no sentido literal da palavra, mas é capaz de, após matar os pais para conseguir dinheiro para suas farras, pedir ao júri clemência por ser órfão. Após conseguir donativos para um asilo inexistente, afirmar que sua atitude ajudou àqueles que deram esmolas, pois os doadores ficaram aliviados e felizes por estarem ajudando os velhinhos pobres. À primeira vista eles parecem brilhantes, com inteligência superior, seja no trabalho, seja no estudo ou nas relações sociais. Mas, inevitavelmenVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 248 te, mais cedo ou mais tarde fracassarão, serão demitidos do emprego, afastados dos amigos e perderão tudo aquilo que, para os “normais”, é caro. Os antissociais estão em todas as partes: são encontrados nas favelas, nos bairros pobres, nas cidades do interior, nas grandes capitais, nos palacetes e até nos palácios governamentais. Diga-se de passagem, não são raros também entre os políticos. Alguns são presos por dar cheques sem fundos, roubar, montar firmas ou clínicas fantasmas, ludibriar seus clientes e assim por diante. Outros aprendem – às vezes bem – a utilizar-se de um vocabulário altamente sofisticado e eloquente, para manipular os outros em seu benefício. Utilizam também com esmero recursos histriônicos para comunicar sentimentos falsos. Esses, os mais socializados, escapam do cerco policial, chegando a ser vereadores, médicos, psicólogos, advogados, deputados, pastores, padres ou até mesmo governadores e presidentes da república. Sua conversa fácil e sua crença em inverdades, ditas com entusiasmo, seduzem o incauto que o procura ou o elege, projetando nele o seu Deus. Diante do leigo, ou mesmo do psiquiatra, ele parece normal. Durante a entrevista, nada revela de loucura, incapacidade ou deficiência mental. É sua história de vida, examinada e contada pelos acompanhantes, que fornecerá as pistas para percebermos que estamos diante de um indivíduo com perturbação da personalidade do tipo antissocial: um “doente” na sociedade. Entre as quadrilhas mais sofisticadas, as com um grau mínimo de organização, os antissociais não são aceitos, pois lhes falta, não só a disciplina, com também alguma ligação afetiva com o grupo de crime necessária ao êxito do empreendimento. A maioria deles não comete crimes suficientemente grandes para serem presos por longos períodos. Portanto, até com respeito ao crime, eles não são sérios. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 249 A carreira do antissocial geralmente começa cedo, ao roubar as merendas dos colegas ou faltar às aulas, agredir companheiros ou professores, ou ainda fugir de casa. Inicia relações sexuais precocemente. Bebe, ainda na infância, com grande prazer. Não se liga a grupos por muito tempo. Maltrata ou mata pequenos animais, agride sem piedade ou motivo os companheiros mais fracos, explora-os como pode. Mas sempre acha que tem razão. Com o aumento de seu poder, ao crescer apodera-se do carro do pai, estraga-o, faz farras e, quando recriminado, justifica-se, aparentando total sinceridade. Representando arrependimento, jura que vai mudar sua conduta, garante que aquilo nunca mais vai acontecer. Na primeira oportunidade, porém, ele retorna ao mesmo comportamento e novo juramento é feito, sempre do mesmo jeito, demonstrando as mesmas emoções falsas de antes. Mente a propósito de tudo, em qualquer lugar, com qualquer pessoa, e muitas vezes sem nenhuma razão. Se apanhado na mentira dará sua “palavra” de honra” de que não mais faltará com a verdade e firmará, nesse sentido, um “pacto de cavalheiro”. Entretanto, para nosso azar, os castigos, as críticas, as prisões e os internamentos geralmente não produzem efeito a longo prazo. Sua escalada continua: uso de bebidas, drogas, acidentes graves, roubos, abandono de emprego, brigas, cheques sem fundo, mentiras e mais mentiras. Os pais, desesperados, tentam ajudá-lo, montando um comércio, que é “depenado” em pouco tempo. Mandam-no para a fazenda do tio e lá ele planta maconha. Internam-no na casa de saúde e ali ele vende suas roupas, compra drogas, suborna o guarda e foge. Pedem a sua prisão. Nesta, ele se mostra como um cordeiro, e ao ganhar confiança, na primeira oportunidade burla a própria polícia. Nunca pensa a longo prazo, sendo total seu imediatismo. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 250 Não se pode contar com o antissocial, pois ele engana, rouba, falsifica, adultera e mente. Cultiva um grande desprezo pelas normas da sociedade, pelas dificuldades dos outros, sejam elas emocionais, financeiras, físicas ou sociais. Não se envergonha do que fez ou faz. Sua vida é cheia de proezas, que levariam a maioria dos homens à depressão ou mesmo ao suicídio. Entretanto, no antissocial não se exterioriza nenhum ato que possa indicar remorso ou humilhação. Nele não foram introjetados os nossos valores, sejam morais, sejam estéticos. Os mais espertos aprendem o desejado pelas pessoas. Conseguem transmitir ao povo a sua máscara de saudável honestidade e honradez através de um discurso contendo tudo aquilo que o povo deseja ouvir e alcançar. Depois, sozinhos ou com seus companheiros do mesmo caráter, tomando seu uísque escocês, riem e zombam daqueles que, inocentemente, depositaram confiança neles. Cuidado! Eles estão em toda parte! Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 251 O Vasto Mundo das Drogas Vivemos em um mundo de drogas. Drogas para todas as idades e para todos os gostos. Algumas são chamadas lícitas e outras ilícitas. Algumas são proibidas; seu uso e porte são qualificadas de contraversão. Outras são permitidas e difundidas até pelos pais e pelos meios de comunicação. Seu uso é, muitas vezes, valorizado. Por sua vez, certas drogas são conceituadas e permitidas pelos médicos e Conselhos de Medicina. Algumas drogas, como as colas e os solventes, são usadas preferencialmente pelas crianças desamparadas, os pivetes; outras são mais comuns entre os jovens de condição econômica variada – xaropes, maconha e cogumelos. Algumas são usadas principalmente pelas mulheres da classe média e alta com objetivo de perder alguns quilinhos, como os anorexígenos. Certas drogas são mais consumidas pelos adultos jovens, de poder econômico alto – cocaína, LSD, heroína. Algumas toneladas de drogas são largamente utilizadas por adultos e idosos pertencentes às mais diversas classes sociais, para permitir-lhes dormir ou suportar este mundo confuso: tranquilizantes, soníferos e analgésicos. Finalmente, as drogas mais difundidas e consumidas, possivelmente mais “democratizadas”, já que são usadas universalmente por todos: cafeína, álcool e tabaco ; ninguém escapa de pelo menos inalar a fumaça do cigarro do vizinho, beber um cafezinho ou um copo de cerveja ou licor. Não sei; duvido que alguém saiba, as razões de preferências tão diversas, das diferentes posições e atitudes da sociedade a favor de uma e contra outras. Para tentar aclarar minha mente recorri a certos conceitos básicos: os de abuso e dependência da substância, e aqueles relacionados como consequência: tolerância e síndrome de abstinência. Antecipadamente, confesso ao leitor que os resultados não foram animadores, pois continuei Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 252 sem entender este comportamento humano, ou seja, o uso de drogas diferentes por diferentes indivíduos, a permissão de umas e a proibição de outras, e o consumo universal de muitos. Encontrei em um manual de diagnóstico em psiquiatria a definição procurada, que foi a seguinte: Abuso de drogas: “Uso habitual de agentes químicos apesar das consequências danosas, que dependem das propriedades farmacológicas e toxicológicas das drogas, da personalidade do usuário, das necessidades nas quais ele vive, e do grau no qual ele negligencia sua saúde individual e bem-estar através da diferença e perda econômica”. Existe abuso da droga quando seu uso ultrapassa os 30 dias e existe tolerância quando se necessita de mais droga para obter-se os efeitos desejados: daí o aumento das dosagens e a instalação dos quadros tóxicos. Por último, ocorre a síndrome de abstinência quando ao reduzir-se a droga ou quando ocorre a sua interrupção, seguem-se distúrbios fisiológicos e psicológicos, geralmente transitórios. Ora, a maioria das drogas proibidas, assim como as permitidas – cafeína, nicotina, álcool, sedativos, etc . – aí se enquadram, o que nos leva a pensar que esse não é o motivo da classificação usada, assim como das proibições e permissões legais, de exigência de um ou de outro receituário médico, ou de incentivo familiar para se beber café ou cerveja e fumar, pois todas elas são semelhantes. Deve haver algo mais. Alguns teóricos combatem certas drogas simplesmente afirmando que elas “causam prazer”, e os indivíduos consumidores delas abandonariam outras atividades caso elas fossem liberadas. Ora, isso é uma forma muito simplista de explicar um comportamento tão complexo. O cigarro, as bebidas, o café e mesmo os tranquilizantes – todos nós temos um médico amigo ou parente que fornece gratuitamente as receitas – são facilmente adquiridos e, nem por isso são consumidos exageradamente por todos; apenas uma minoria é prejudicada. Se utilizarmos o conceito Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 253 de prazer deveremos proibir os alimentos saborosos e a torcida do Atlético, impedir o jogador de jogar cartas ou futebol e abolir até mesmo as relações sexuais, pois tudo isso causa prazer e também dependência pelo menos psíquica, talvez física. Vamos a um outro argumento. Parece que certos indivíduos, por motivos biológicos – genéticos – são mais propensos do que outros a ficar “presos”, dependentes da droga, a levarem ao exagero um modo de vida em detrimento de outro. Seriam os indivíduos de “alto risco”, os prováveis toxicômanos. Mas acredito que esses seriam, também, os mais sujeitos a se tornar viciados em café, comida, jogos, cigarros, sexo ou até mesmo no trabalho sem pausa nem sentido. Deveríamos condená-los, por causa de um “defeito biológico”? No outro extremo do biológico vêm as “explicações sociais”. A própria sociedade induz o através de vários meios: de um lado, a propaganda generalizada, de outro, a incapacidade para abolir, várias de suas doenças e para dirimir conflitos, injustiças e preconceitos. Anuncia-se um belo carro, uma bela “gata”, mas não se fornecem ao consumidor os meios da sua aquisição e conquista. Costuma-se, com frequência, considerar o “outro, o vizinho ou o parente, como o responsável por induzir os mais jovens ao uso da droga. Uma outra explicação é a da psicologia. O indivíduo usa café, álcool, tabaco, maconha, doce, cocaína, cerveja, heroína, até sexo , para ficar “diferente” de seu estado “normal”. Com isso, a pessoa se sente mais animada, agressiva, expansiva e extrovertida ou introvertida. Em resumo, a droga seria usada como auto-medicação. Todas essas explicações contém, provavelmente, algo de verdade e, também, de mito. Não estou, neste artigo, defendendo o uso das chamadas drogas proibidas ou exortando ao uso delas, nem também, indo ao outro extremo de combatê-las ferozmente; assim como não defendo o abuso de tabaco, café, cerveja e comida e nem combato, como se fosse a pior Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 254 coisa do mundo, o seu uso. Acredito que qualquer pessoa que esteja bem consigo mesma e que tenha algum propósito de “nível mais elevado”, isto é, objetivos individuais claramente definidos, nunca será presa e dependente das drogas, seja das lícitas, seja das ilícitas. O mundo contraditório e confuso das drogas permite a produção, de um lado, dos defensores ferozes das chamadas drogas proibidas, quase sempre com objetivos pecuniários; de outro lado, a de combatentes impiedosos, que disso se utilizam para criar liderança e poder. Esses últimos, ao combatê-las, fazem disso sua “droga” e aliviam sua ira ao sentenciar os “errados” e “marginais” enquanto eles, os acusadores, se sentem como os anjos puros, habitantes diferenciados deste paraíso chamado Terra. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 255 Artistas e Arte Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 256 O Amor nas Canções Populares As letras das canções dos índios Sirono da Bolívia, um grupo nômade que vivia faminto, não descreviam o amor. Seus cantos, assentados nos seus sonhos e pensamentos, representam principalmente os alimentos. No Brasil, apesar da fome, as letras das canções populares ainda relatam, em sua maioria, as paixões, ou mais corretamente, as dores da separação. O mundo do amor descrito pelos poetas, não representa a relação amorosa concreta, dura e crua, vivida por todos nós. Focaliza, preferencialmente, um amor idealizado, ou seja, uma relação amorosa lírica e fantástica, algumas vezes, adocicada e piegas. Muitos ouvintes das canções populares não diferenciam a representação particular, criada pelo autor, da realidade do mundo frio e indiferente em que vive. Do mesmo modo que certos telespectadores às vezes agridem um ator, confundindo-o com o personagem representado por ele transitoriamente, alguns ouvintes das canções passam a se comportar conforme a descrição do letrista, misturando o amor construído pelo poeta, com o amor real do dia-a-dia. Nesse caso, os fãs dessas canções podem terminar seus dias “cantando suas mágoas” e “carpindo suas dores sozinhos”. O público, que desde criança ouviu e gostou de canções populares, pode automaticamente assimilar e agir conforme o modelo lírico de amor descrito nas canções. Estes ouvintes, propensos a deixar de lado o doloroso mundo real, facilmente passam a habitar, por instantes ou por toda a vida, o paraíso perdido do devaneio, da nostalgia sonhadora preparado cuidadosamente segundo certos clichês sentimentais fabricados com esmero. Os símbolos poéticos encerrados nas letras tendem a produzir emoções, ou já vividas, ou algumas nunca experimentadas. Nesse último caso as Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 257 letras poderão servir de orientação para que seus adeptos tornem-se mais bem – ou mal – preparados para enfrentar situações futuras. Por outro lado, os símbolos podem também reorganizar experiências já vividas, tornando a pessoa mais consciente delas. Ora, quando as representações simbólicas nos fornecem uma informação errônea da vida, como é frequente nas canções de amor, o dominado e empolgado por elas ficará mal preparado para enfrentar situações semelhantes ao usar um modelo inadequado da realidade. Sabemos que a maioria das frustrações – talvez todas – e dos sofrimentos que enfrentamos, provêm do uso de falsas expectativas assentadas em concepções irrealísticas. Isto não significa, é claro, que as idealizações são nocivas por si mesmas. Elas constituem um produto inevitável e necessário dos processos cognitivos e comportamentais humanos de abstração e simbolização e sem estas seríamos reduzidos a meros animais irracionais. Entretanto devemos notar que existe uma diferença grande entre os efeitos possíveis do uso dos símbolos ideais “possíveis” e dos “impossíveis”. Os ideais amorosos, representados em muitas canções populares são, geralmente, aspirações de relações “impossíveis”. Várias letras desenterram sonhos de amores irreais, inculcados muito cedo através de histórias infantis como a do príncipe que se apaixona e se casa com a moça pobre e desleixada. Isto, como sabemos, parece só ocorrer na ficção. Além disso, certos símbolos contidos nas letras podem introduzir, nos mais distraídos, emoções desagradáveis e paralisantes, algumas tolas e açucaradas demais. As considerações acima discutidas surgiram através do exame de diversas letras de canções populares brasileiras, contidas no livro “Saudades Seresteiras”, catalogadas por Alexandre Júlio Coutinho Pimenta. O livro contém aproximadamente 350 letras de músicas populares típicas. Examinei, para exemplificar minha composição, apenas músicas populares muito divulgadas e de grande aceitação entre o público eclético. Algumas canções populares sugerem a existência de pessoas possuidoras Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 258 de poderes extraordinários para o amante apaixonado: “Você é isso/uma beleza imensa/Toda a recompensa/De um amor sem fim…” “Teu amor na treva é um astro, no silêncio, uma canção./É brisa nas calmarias, é abrigo no tufão”. “Alguém como tu/Assim como tu/Eu preciso encontrar./De olhar como o teu/ que me faça sonhar”. “Sonhei com esse alguém noites e noites sem cessar/ Encontrei esse alguém como tanto eu queria”. “Minha vida era um palco iluminado/Eu vivia vestido de doirado”. No simbolismo das canções, o mundo mágico do amor é conquistado facilmente. Basta o enamorado exibir encantamento certo, existente no seu desejo de dedicar sua vida – muitas vezes rotineira e vazia – ao ser amado, para alcançar o relacionamento desejado, independente de outros importantes fatores. Assim, dentro do descrito, para ser amado não é preciso ter nada, nem nada oferecer, basta “amar”, isto é, agir, a qualquer preço, acreditando no conceito mágico idealizado de que o “amor, como a fé, rompe todas as barreiras e conquista tudo”. Essa descrição singela do amor fácil não mostra que, uma vez en contrado o rapaz ou a moça idealizada, a pessoa está apenas iniciando um caminho difícil e penoso, onde diversas adaptações e readaptações serão necessárias para se ter um êxito próximo do esperado, nos raros casos onde este ocorre. Afirma-se nas canções o contrário: escolhido e encontrado o ideal, todos os problemas estarão resolvidos: “No calor do teu carinho/Sou menino passarinho/Com vontade de voar”. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 259 “Ah! se tu soubesses/Como eu sou tão carinhoso/E o muito e muito/que te quero/…Vem sentir o calor/Dos lábios meus/À procura dos teus/…E só assim, então/ Serei feliz, bem feliz”. “Eu sei que vou-te amar/por toda a minha vida eu vou-te amar”. “Moça, moça eu te prometo/Eu me viro do avesso, só pra te agradar”. “Ó linda imagem de mulher que me seduz/Ah! se eu pudesse tu estarias num altar/És a rainha dos meus sonhos, és a luz/És malandrinha não precisas trabalhar”. “Eu sem você/sou só desamor/Um barco sem mar/um campo sem flor/…Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”. Lamentavelmente, apesar do encantamento e do esforço de ambos para viverem no paraíso, nem tudo são flores: o amante confiou demais na honradez e fidelidade da amada e, tristemente, descobre que foi traído, dando origem ao desengano e ao protesto amargo: “Mentira, foi tudo mentira/você não me amou”. “Nada tu ouviste/E logo partiste/Para os braços de outro amor/Eu fiquei chorando/Minha mágoa cantando/Sou a estátua perenal da dor…” “E em nome de Jesus/ Um grande amor você jurou/Jurou, mas não cumpriu/Fingiu e me enganou”. “Elvira, escuta os meus gemidos/que aos teus ouvidos irão chegar/não sejas traidora tem dó de mim” “Você sabe o que é ter um amor,/Meu senhor?…/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar esse amor/meu senhor?…/Ao lado de um Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 260 tipo qualquer”. O apaixonado, através do amor patético, tentou, por todos os meios, encobrir seus complicados problemas existenciais. Ocultando as misérias de sua vida, ele sonhou ter alcançado o Éden, entretanto foi cair no inferno. O mundo belo e feliz do amor apaixonado se despedaçou sob o impacto de alguns fatos singelos, feios e normais da vida. O sonhador apaixonado se desespera e percebe, “com o coração amargurado”, que “o sonho se findou”: “Tornei-me um ébrio, na bebida, busco esquecer/Aquela ingrata que eu amava, e que me abandonou”. “Não falem dessa mulher perto de mim/Não falem pra não lembrar minha dor”. “Balada triste que me faz lembrar alguém/Alguém que existe e que outrora foi meu bem… não há mais nada! foi um sonho que findou”. “Porém nesse abandono interminável/No espinho de tão negra solidão”. “No rancho fundo/Bem pra lá do fim do mundo/Nunca mais houve alegria/Nem de noite nem de dia”. “No alto do campanário uma cruz simboliza o passado/ De um amor que já morreu, deixando um coração amargurado”. “A saudade mata a gente, morena/A saudade é dor pungente morena”. Entretanto, apesar dos desenganos, o amante teimoso tenta desviver o passado e reacende sua esperança. Lamentando e chorando seu destino ingrato, relembra a figura idolatrada do seu amor, esperando seu retorno: Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 261 “Pise machucando com jeitinho/Este coração que ainda é seu”. “Começaria tudo outra vez/Se preciso fosse, meu amor”. “Que eu voltei pra me humilhar/Ai, mas não faz mal”. “Hoje eu vivo tão sozinho, ao relento, sem carinho/Na esperança mais atroz,/De que cantando em noite linda/Esta ingrata, volte ainda, escutando a minha voz”. “Boneca eu te quero, com todos os vícios/Com todo pecado, com tudo afinal”. “Eu sei que vou sofrer/A eterna desventura de viver/ À espera de viver ao lado teu/Por toda a minha vida”. “Volta! dá lenitivo à minha dor”. “Aceito os teus erros, pecados e vícios/Porque na minha vida meu vício é você”. “Você bem que podia me aparecer /Nesses mesmos lugares/ Na noite, nos bares/Onde anda você”. “Sorris da minha dor, mas eu te quero ainda/Escravo eterno teu farei o que quiseres”. Mas seu esforço foi em vão, “tudo foi um sonho”, apenas um desejo, a amada ficou mesmo nos braços do outro, que era um “tipo qualquer”. A partir daí, condoído de si, o amante enterra-se na autopiedade, na autodepreciação e esforça-se para esquecer a amada ingrata: “Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 262 “Neste mundo eu choro a dor/Por uma paixão sem fim/…Esta dor que me consome/Não posso viver/Quero morrer/Vou partir para bem longe daqui/Já que a sorte não quis/ Me fazer feliz “. “Esta saudade, este vazio/Esta vontade de chorar…/ Ai, se eu pudesse esqueceria”. O amante construiu uma ligação amorosa em termos idealísticos, sem as barreiras impostas dolorosamente pela realidade dos fatos. Apesar de sua crença forte, “o mundo caiu” e o sofrimento aumentou, dando origem à loucura. A amada que não lhe sai da mente, não retorna, por mais que ele suplique ajoelhado não altar dos flagelados. O mundo real descortinado torna-se insuportável. Resta-lhe, como salvação, o caminho da fantasia. O enamorado desesperado embarca na nave suprassimbólica, realizando uma viagem ao mundo da loucura. Lá visualiza fantasias substitutas ocupando o lugar das inacessíveis. As suas alucinações e delírios florescem livremente, pois inexistem obstáculos formados pela realidade indiferente e poderosa. Pouco a pouco, suas percepções misturam-se com as fantasias, costuradas no tecido fino da teia fabricada por esperanças e sonhos. Surge uma nova composição, nasce um novo ser, semelhante à amada idealizada, mas dotado de poderes sobrenaturais: “Cansado de tanto amar/Eu quis um dia criar/Na minha imaginação/ Uma mulher diferente”. “Bom dia tristeza/Se chegue tristeza/Se sente comigo/Beba do meu copo”. “Eu vi uma vitrine de cristal/Uma boneca encantadora/No bazar das ilusões, no reino das fascinações/…../Como se fossem de verdade/Mãos ideais os braços divinais/O corpo algo sem par/Uma perfeita Vênus”. “A vida para mim não vale nada/Desde o dia em que a malvada/O coVisite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 263 ração me estraçalhou/Às vezes pela estrada enluarada/Julgo ouvir uma toada/Que ela cantava para mim”. “Eu amanheço pensando em ti/Eu anoiteço pensando em ti, nos cigarros que eu fumo/Te vejo nas espirais/Nos livros que eu tento ler/Em cada frase tu estás”. Esta parece-me ser a representação a respeito da relação amorosa transmitida por várias canções populares. Mas esse modelo não foi o que encontrei nos meus encontros amorosos. Provavelmente, porém, para serem aceitas e se tornarem populares não apenas no nome, elas precisam ser irrealistas e devem trabalhar com o falso. Os poetas, sabiamente, atentos à nossa miséria, percebendo nossa sofrida convivência diária com a incômoda realidade privada dos encantos do mundo imaginário, para nosso deleite, criaram esse “lenitivo para nossas dores”, pois, como sabemos, ninguém é de ferro… Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 264 A Pintura dos Esquizofrênicos O interesse médico pela produção artística dos doentes mentais, principalmente dos esquizofrênicos, começou no século passado e adquiriu maior interesse após o aparecimento da obra clássica do psiquiatra Prinzhorn. A partir daí, vários autores passaram a analisar e a interpretar o conteúdo e a forma daquelas obras. A maioria dos doentes mentais não possui aptidões para a pintura ou qualquer outro tipo de arte, pois é sabido que a esquizofrenia deteriora a capacidade do indivíduo. Raros esquizofrênicos desenharam ou pintaram antes de adoecerem, embora, muitos deles, em suas casas ou nos hospitais, passem uma boa parte do tempo desenhando ou escrevendo. Entretanto, poucos desenvolvem algum trabalho digno de receber o nome de artístico, pois suas “obras” não passam, na maioria das vezes, de simples rabiscos ou desenhos esquemáticos sem nenhum sentido estético. Não se pode falar de arte psicopatológica propriamente dita, quando um artista já consagrado adoece, sem, entretanto, alterar a essência de sua produção. Por outro lado, quando um pintor se torna esquizofrênico e os seus dons artísticos são afetados, ele pode continuar a produzir após a instalação da doença mas, nesse caso, suas produções empobrecem. O aparecimento de ideias delirantes e alucinações, que caracterizam a esquizofrenia num determinado indivíduo, nada tem a ver com o nascimento de um dom artístico. Nenhuma doença mental produz uma capacidade criadora no homem, pois essa depende do talento individual. Durante muito tempo falou-se acerca da relação do gênio com a loucura. Não existe tal relação. Não se constrói um gênio, enlouquecendo um homem normal, mas, sim, se destrói um gênio, tornando-o louco. Apenas em raríssimos casos a doença mental pode servir como fator desencadeante e desinibidor para despertar uma aptidão até então Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 265 adormecida. No esquizofrênico encontram-se alterados, entre outros, os seguintes aspectos do indivíduo: o conteúdo e a forma do pensamento, a percepção, daí o aparecimento de várias alucinações, a afetividade, que se torna muitas vezes embotada, apagada ou inadequada, certa dificuldade ou estranheza ao lidar com o próprio Eu, muita dificuldade em tomar qualquer iniciativa, uma tendência para isolar-se do mundo exterior e, por último, uma perturbação do comportamento psicomotor, com a diminuição da reatividade ao meio ambiente e redução dos movimentos espontâneos. Todo esse quadro conduz, inevitavelmente, a uma diminuição da compreensão e da interpretação da realidade. A pintura do esquizofrênico, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo, quanto à sua forma, não se acha ligada a normas ou regras coletivas de nenhuma espécie. Como ele, normalmente, não se comunica de maneira convencional, sua arte pode ser considerada, em um grau elevado, um murmúrio consigo mesmo. Em alguns poucos casos, suas mensagens comoventes são dirigidas aos mortos, a Deus, a Jesus Cristo ou ao seu médico assistente. A sua produção artística misteriosa pode chegar mesmo a uma total confusão, convertendo-se numa linguagem indecifrável. Sua arte é, frequentemente, um grito dirigido a ninguém, ou um monólogo estridente lançado num vazio trágico. Os quadros desses pacientes mostram, ao lado de alucinações pavorosas, motivos plácidos, inexpressivos ou até mesmo alegres. Enquanto que a “pintura primitiva” e o desenho infantil constituem, na maioria dos casos, um produto de elaboração do ambiente, a arte dos esquizofrênicos reproduz, não uma natureza externa, mas apenas percepções distorcidas de vivências sombrias e sofridas, que é o seu mundo interno, onde se guardam diversas alucinações e delírios, que pouco ou nada têm a ver com a realidade dos “normais”. Sua pintura deforma e simplifica a anatomia. Os espaços vazios da tela são preenchidos compulsivamente com pontos, roscas, figuras geométricas, letras ou números. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 266 A pintura dos esquizofrênicos, não tendo um público determinado, é dirigida a uma plateia imaginária, diferente, portanto, da pintura do artista sadio, ou mesmo da arte dos chamados “povos primitivos”, onde o destinatário é uma comunidade humana real. Os que passaram a pintar após adoecerem são, no sentido exato da palavra, autodidatas. Por habitar um mundo estranho, impenetrável e particular, bastante diferente do “geral”, os seus diversos símbolos permanecem geralmente obscuros e incompreensíveis para todos nós. Dentro do seu “autismo” expressam a sua arte, mediante o lápis ou o pincel, de uma forma inteiramente espontânea e livre, sem preconceitos e sem seguir regras acadêmicas de nenhuma espécie. Essas pinturas possuem, exatamente pelo fato de estarem desligadas de todo o modelo convencional e de todo o preconceito de estilo, uma intensidade emocional diferente, pura, simples e bela, muitas vezes com uma grandeza de forma que as eleva a um nível artístico superior. O seu aspecto é recriado livremente e neste não existe perspectiva linear. Para ele não há profundidade, os corpos não são desenhados mostrando a ilusão do volume real. Eles, na sua pintura, não representam as sombras produzidas pelos corpos, ao contrário de uma representação naturalística que não pode prescindir delas pois, sem estas, os objetos parecem flutuar. Na verdade, nas nossas representações interiores, ou seja, quando visualizamos uma paisagem, previamente sabemos se o objeto está pousado na terra ou flutuando no espaço, portanto, na nossa imaginação, não existem sombras determinadas pela luz. O esquizofrênico não reproduz o que vê fora de si, mas, sim, o que percebe dentro. Ele não se preocupa em criar a ilusão da matéria e nem se preocupa com a precisão de detalhes. As cores usadas não têm correspondência com as existentes na realidade externa. Quando ele as usa, estas servem mais como um meio de desenhar e não para retratar as cores naturais existentes no “mundo real”, que não são respeitadas por ele. As cores, utilizadas com ampla liberdade, são aplicadas geralmente de forma pura ou pouco misturadas. Como sua Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 267 produção é rápida, ela serve para dar vazão às ideias que lhe ocorrem em abundância. O esquizofrênico não dispõe de tempo para preparar as cores das aquarelas, do óleo ou misturá-las. A escolha destas, de preferência as fortes, é ditada principalmente pelo seu valor afetivo, isto é, daquela que ele mais gosta no momento da criação, e só em segundo lugar, pelo objeto a ser representado. Os desenhos dos esquizofrênicos, simplificados, deformados e repletos de formas repetidas, são estáticos e mesmo petrificados e raramente mostram movimentos. Além disso, as diversas figuras estão aglutinadas ou condensadas, contendo os vários elementos incoerentes reunidos em uma só imagem. O contorno linear, muito ressaltado, torna as superfícies bem delimitadas pelo traço, geralmente feito sem retoques ou correções. O símbolo adquire, na pintura do esquizofrênico, o valor da coisa significada. Nota-se, portanto, que a pintura do esquizofrênico se opõe às exigências do naturalismo, no que diz respeito à ilusão do espaço, do volume e da matéria, assim quanto à precisão do desenho, à exatidão da anatomia e à cor do objeto. Apesar de ter perdido todo o caráter anatômico ou naturalista, a forma criada pelo esquizofrênico expressa um conteúdo singular e atraente e com frequência emociona os não doentes por sua beleza diferente. A sua pintura permite, através de uma expressão artística altamente espontânea, a exibição de valores eternos do homem. A mensagem poética e mágica contida nas suas pinturas torna possível o difícil e amargo encontro entre os “sãos” e os “doentes”. Provavelmente, as imagens que habitam o “porão” dos indivíduos sadios e dos doentes mentais são as mesmas. Essa semelhança de símbolos, que não aparece claramente quando olhamos através dos andares mais altos, permite a comunicação dos doentes com os sadios. Desse modo, a pintura dos esquizofrênicos consegue tocar e transmitir, a todos que a contemplam sem preconceitos, as mais diversas e profundas emoções que residem no âmago de nossas almas. Por tudo isso, elas merecem ser vistas. Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 268 Fim Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 269