Construindo e imaginando espaços — na rede digital
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Construindo e imaginando espaços — na rede digital
Interface, conexão, liberdade: Construindo e imaginando espaços — na rede digital Adriana de Souza e Silva* [email protected] | [email protected] Palavras-chave: Internet | espaço | interface Este trabalho pretende conceitualizar o espaço digital através de uma história das relações entre espaço, pensamento e sentido. Se o ciberespaço inicialmente foi visto como lugar de liberdade do indivíduo, a que espaços anteriormente experimentados e imaginados estava articulada essa projeção de liberdade? A construção do conceito de espaço, desde a Idade Média (com a oposição entre o céu e a Terra), passando pela Idade Clássica (com a perspectiva) e pela Modernidade (com a quarta dimensão), serve como base para o estudo dos limites deste espaço numérico. O objetivo final é apresentar o CiberIDEA 3D, um mundo virtual de multiusuários desenvolvido pelo CiberIDEA (núcleo de pesquisa sobre ciberculturas da ECO / UFRJ). Assim, pretende-se questionar o ambiente tradicional dos MUDs como simulação do espaço físico e mostrar que o modo como o espaço digital é pensado (através da interface) determina também como se dá a presença humana neste novo lugar de sociabilidade. Habitamos espaços diferenciados. Espaços, físicos, imaginados, representados… ciberespaço. São lugares produzidos pela cultura e pela técnica. Mas também somos produzimos pelo ambiente em que vivemos. O homem nunca se conformou em habitar apenas um tipo de espaço e sonhou freqüentemente com lugares de liberdade, do corpo e da alma. Hoje, esta percepção de um espaço de liberdade é muitas vezes deslocada para o ambiente digital. Um lugar sem matéria, longe das leis do mundo físico, onde cada um pode ser quem quiser e construir o espaço como melhor lhe convier. Afinal, como o ciberespaço é construído? Este artigo pretende conceitualizar o espaço digital através de uma história das relações entre espaço, pensamento e sentido. Se o ciberespaço inicialmente foi visto como lugar de liberdade do indivíduo, a que espaços anteriormente experimentados e imaginados estava articulada essa projeção de liberdade? A construção do conceito de espaço, desde a Idade Média (com a oposição entre o céu e a Terra), passando pela Idade Clássica (com a perspectiva) e pela Modernidade (com a quarta dimensão), serve como base para o estudo dos limites deste espaço numérico. O objetivo final é apresentar o CiberIDEA 3D1, um mundo virtual de multiusuários desenvolvido pelo CiberIDEA (núcleo de pesquisa sobre ciberculturas da ECO / UFRJ). Assim, pretende-se questionar o ambiente tradicional dos MUDs (Multi-user Dungeons) como simulação do espaço físico e mostrar que o modo como o espaço digital é 1 pensado (através da interface) determina também como se dá a presença humana neste novo lugar de sociabilidade. Da representação da liberdade Ao longo da história ocidental, outros espaços já foram imaginados como lugares da liberdade e também contribuíram tanto para a percepção do espaço físico como para alterar o modo como se habitava esse espaço. O homem medieval, por exemplo, habitava um espaço duplo: o Céu e a Terra; ou melhor: circulava entre o espaço físico terrestre e o espaço simbólico da alma. Este último, tão bem representado por Dante na Divina Comédia2, era dividido em três regiões distintas — Inferno, Purgatório e Paraíso. De acordo com Margareth Wertheim3, "a realidade (do homem medieval) não poderia ser julgada apenas em termos físicos, mas precisava ser vista em um sentido mais amplo, que contivesse tanto o espaço físico, quanto o espiritual”. Nesse sentido, Dante descreve o Inferno e o Purgatório com características físicas bem definidas: o primeiro organizava-se em círculos concêntricos descendentes em direção ao centro da Terra; o segundo, também dividido em círculos, era apresentado de modo ainda mais interessante —uma montanha situada em algum lugar do hemisfério sul. Esses espaços eram rigidamente hierarquizados, cada círculo correspondendo a determinado pecado que colocaria o indivíduo mais próximo ao Céu, ou ao Inferno. Diferentemente destes dois espaços, o Céu continha menos detalhes físicos. "De todas as três regiões de depois da vida, o Céu é a única que Dante teve dificuldades para descrever. Enquanto o Inferno e o Purgatório apresentam paisagens e imagens bem-definidas, o Paraíso é famoso por ser tão nebuloso"4, acrescenta Wertheim. Mesmo assim, Dante "construiu" o Paraíso com uma arquitetura baseada no sistema geocêntrico, concebido por Ptolomeu e vigente na época. Conforme esse modo de compreender a harmonia celestial, a Terra estaria imóvel, tendo nove planetas (nove céus, no poema) a girar ao seu redor. Eram eles: a Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno, as Estrelas Fixas e, por último, os Serafins; todos fazendo parte da mesma realidade. No imaginário cristão, o Céu é o local espiritual por excelência, lugar das almas que se salvaram e estariam próximas a Deus. Na cosmologia de Dante, tanto alma quando corpo são libertos no espaço ilimitado do Céu. Um lugar que estaria fora do tempo e do espaço e que representaria a salvação eterna — ou a liberdade do indivíduo. O objetivo da religião cristã sempre foi a salvação da alma e a conseqüente chegada ao Céu. No imaginário medieval, a representação deste espaço espiritual não estava desconectada da representação do espaço físico. Na pintura da Idade Média, o Céu (simbólico) também fazia parte do mapa e, conseqüentemente, do mundo. Por outro lado, se Deus era o organizador desse espaço hierarquizado, era sempre ele que aparecia em destaque; seguido pelos anjos e, por último, pelos homens. É interessante também notar que este espaço hierarquizado era essencialmente plano, não sendo representado através das regras da perspectiva linear que se tornaram tão bem divulgadas a partir da Renascença. Os pintores medievais, no entanto, não pintavam assim por ignorar as regras de profundidade espaciais, mas sim porque estavam mais interessados em representar o espaço simbólico 2 da alma do que o espaço físico terrestre. Nesse sentido, os artistas pintavam o que entendiam do mundo, e não o que viam. O espaço representado era plano, fechado e estático. Por outro lado, quando as vestimentas das figuras representadas começaram a apresentar pequenas reentrâncias, foi introduzido o tempo na pintura medieval. A dobra formada pela prega das roupas fazia com que o olhar se aprofundasse no quadro, levando um tempo maior para perceber todos os detalhes na tela, demorandose no detalhe… e transformando o plano no tridimensional. A dobra, nesse caso, é toda operação que remete a uma nova dimensão. Assim, foi a dobra bizantina que abriu caminho para a posterior representação da cena (do tempo) na pintura renascentista. Essa concepção medieval do espaço começou a mudar com o Renascimento, quando o homem e o estudo da natureza começaram a ganhar importância. Desta forma, o lugar de liberdade do espírito foi aos poucos sendo transferido do espaço simbólico do Céu para o espaço físico da Terra. Um espaço que continuava sendo organizado por Deus, mas que também dependia da própria construção humana. A mais forte conseqüência desta idéia para a representação do espaço artístico foi a introdução das regras da perspectiva linear que procuravam representar o mundo físico conforme ele era visto. Não mais um mundo espiritual ideal, mas um mundo de formas geométricas perfeitas. A perspectiva, no entanto, apesar de significar um maior controle do espaço pelo homem, também delimitava esse espaço. Ou seja, criando um único ponto de vista que representava o olhar através de uma janela, criava-se, também, os limites do espaço renascentista. O espaço representacional artístico no Renascimento era, portanto, como se fosse uma janela aberta para mundo. Nesse ponto, o mundo já ganhara movimento através da representação de cenas e o espaço homogeneizara-se, ganhando profundidade, a partir de um ponto de vista único que privilegiava o observador do quadro. Agora, a percepção do espaço distanciava-se da visão aristotélica vigente há dois milênios. Aristóteles concebia o ‘espaço’ como o conjunto dos lugares, lugar sendo a propriedade das coisas (ou seja, dos indivíduos) de ocupar uma região que era conforme a sua natureza. O discriminante desta ‘naturalidade’ era o repouso: ali onde um corpo repousa, está em seu lugar natural. Se removido deste lugar natural por um agente externo (o movimento era sempre uma transformação forçada), tenderia espontaneamente a retornar a ele tão logo este cessasse sua ação perturbadora. Desta forma, é possível concluir que o lugar era um atributo do indivíduo, exprimindo um elemento de sua forma, e, portanto não possuía externalidade - ou seja, o espaço, e também o movimento, não tinham autonomia em relação aos corpos; em segundo lugar, a descrição aristotélica das causas do movimento (e do mesmo modo sua concepção de ‘espaço’) é eminentemente qualitativa; basta apreender-se as formas dos indivíduos para que sejam definidas as características de seus movimentos (corpos pesados dirigem-se à superfície da Terra, corpos leves como o fogo dirigem-se à esfera lunar). Assim, o espaço medieval era finito, estático e fechado. A (re)introdução da perspectiva na Arte teve grande importância também em relação à ciência renascentista por vir: tornou possível conceber a matematização (ou geometrização) do mundo sublunar. A obra de Galileu seria impossível sem a exploração pioneira de Giotto, Raphael, Leonardo... 3 Posteriormente, Kepler, seguindo as concepções de Galileu, geometrizou, também, o céu, propondo, ao contrário de Ptolomeu, um modelo matemático com o Sol no centro e os planetas girando em torno, em órbitas elípticas. A partir daí, as mesmas leis que valiam para a Terra passaram a valer, também, no céu. A junção entre espaço terrestre e espaço celeste teve profundas conseqüências em relação à maneira como o homem habitava e representava o espaço. Se antes havia duas realidades, uma física e outra simbólica, que se interconectavam, mas eram essencialmente diferentes, agora restava apenas o espaço físico geométrico da ciência. O espaço newtoniano, que durante quase três séculos moldou o modo como nos inseríamos no mundo, era como uma caixa fechada e oca, ocupando três dimensões. Seria possível comparar esse espaço a um palco, onde as cenas ocorrem. Os personagens desse palco seriam os corpos, habitantes do espaço. No entanto, nesta peça, as naturezas de espaço e matéria são essencialmente diferentes e o que acontece com um não afeta o outro. Além disso, nesse modelo, o tempo se comporta como um outro elemento, análogo a uma linha reta, que define uma sucessão infinita de agoras. Assim, o passado seria feito de presentes antigos e o futuro, de presentes inéditos. O tempo era linear, único e independente do espaço e dos corpos. Se o mundo aristotélico era formado de coisas e o conhecimento deste mundo era baseado nas formas, o mundo moderno, a partir de Newton, era formado de forças; e conhecer o mundo era o mesmo que conhecer as forças. Esta percepção do mundo começou a mudar no século XX, principalmente a partir das descobertas de Albert Einstein. Com a Teoria da Relatividade Geral, Einstein descobriu, entre outras coisas, que espaço e tempo são relativos; e que o espaço possui uma arquitetura — ele é curvo. Reaproveitando a metáfora do teatro, é como se agora o cenário fosse elástico e mudasse de acordo com os personagens. O palco também se torna um personagem e atua sobre os demais. Nesse sentido, a matéria torna-se indissociável do espaço e provoca deformações e curvaturas nesse último, como se ele fosse uma vasta membrana. Com a fórmula E=mc2, matéria e movimento passam a ser relacionados. Os corpos passam a ser conversíveis em movimento e vice-versa. Quanto ao tempo, este se torna mais uma dimensão do real, formando um continuum espaço-tempo. Dentro deste contexto, é possível perceber a passagem de uma concepção de espaço fortemente espiritual, influenciada por dogmas religiosos e criada por Deus, para uma outra criada pelo homem e pela ciência. O espaço físico era essencialmente o mesmo, mas a forma como o homem se encontrava no mundo mudava. Nesse novo mundo, espaço e matéria tinham se tornado interdependentes e o espaço físico, regido pela ciência, passara a ser a "totalidade do real". Curiosamente, foi no final do século XIX e início do XX que começaram a surgir as primeiras teorias sobre o hiperespaço. Einstein já desenvolvera sua teoria sobre a quarta dimensão. A partir daí, o espaço foi se dobrando cada vez mais, com o surgimento de teorias sobre a quinta, sexta, sétima… até onze dimensões. A arte e a ficção científica acompanharam essas modificações com a esperança quase mística do surgimento de um novo espaço — aquele que não se limitasse ao espaço físico, que não estivesse preso a apenas três dimensões e que, como o espaço celeste de Dante, estivesse além do nosso 4 olhar e da nossa imaginação. Essa idéia foi bem exemplificada por Margareth Wertheim5 ao descrever um conto do escritor inglês Edwin Abbot, de 1884, intitulado Flatland: A Romance of Many Dimensions6. O conto é a história de uma terra habitada por figuras geométricas bidimensionais: triângulos, quadrados, pentágonos. Quanto maior o número de lados dos polígonos, maior era sua posição social, sendo os círculos os profetas desse mundo plano. No entanto, as figuras viviam apenas em duas dimensões e a idéia de que pudesse existir mais uma dimensão era considerada enorme heresia. Certa vez, um quadrado recebe uma visita de um habitante da "Terra das Três Dimensões" — era uma esfera, um dos profetas daquele mundo. A esfera, então, eleva o quadrado ao mundo das três dimensões e ele fica maravilhado com o que vê: versões tridimensionais de todas as formas geométricas. Interessa-lhe particularmente um habitante chamado cubo, uma versão tridimensional de si próprio. Porém, ao ser questionada sobre a possibilidade de uma quarta dimensão, a esfera fica visivelmente irritada e envia o quadrado de volta ao seu mundo bidimensional. Afinal, a idéia de uma quarta dimensão era inconcebível! Da mesma forma, H. G. Wells explica o que seria a quarta dimensão do espaço: "Assim como uma fralda bidimensional pode ser dobrada num espaço tridimensional ao juntarmos duas pontas distantes, então também em um espaço quadridimensional duas partes do espaço tridimensional podem ser dobradas juntas”. 7 Desta forma, para muitos autores, a idéia da quarta dimensão representava um lugar de liberação e redenção. Neste contexto, a alegoria da caverna de Platão foi muitas vezes usada como exemplo de representação do mundo em que vivemos. Da mesma maneira que os escravos presos na caverna só podiam ver as sombras (bidimensionais) do mundo ideal, nós também, prisioneiros, só teríamos acesso às projeções desse mundo perfeito quadridimensional. A Arte Moderna também utilizou essa idéia para pôr em prática sua visão de mundo. Artistas como Mondrian procuravam representar a essência do real pintando um mundo que não era mais baseado nas três dimensões. Pintores modernos começavam a abstrair as formas em prol da representação de um mundo ideal, ou planificando o espaço, como Mondrian, ou criando um mundo multidimensional, como Picasso e Braque. Da mesma forma, Malevitch, ao ser questionado sobre o significado de seu Quadrado Preto sobre o Branco, responde que era uma tentativa de libertar a arte da materialidade. Ou seja, criar um espaço não mais preso às leis do mundo físico. Paralelamente, a física atômica estava sendo desenvolvida, e o mundo observou a criação de um espaço que não apenas envolvesse o macrocosmos, mas também o micro. Podemos notar aqui uma elevação da importância do conceito de espaço. Com Aristóteles, o espaço era uma subcategoria da realidade, não existindo um conceito de espaço, mas sim de lugar. Mais tarde, o espaço dualístico medieval foi geometrizado, sendo o espaço simbólico celeste incorporado pelo espaço físico da Terra. Já com a física newtoniana no século XVII, o conceito de espaço subiu de posto, tanto que, junto com a força e a matéria, tornou-se uma das três categorias da realidade. Agora, esse espaço físico visível estava se juntando ao espaço das formas invisíveis, ou atômicas. De acordo com Margareth Wertheim, foi um matemático polonês, Theodr Kaluza, que propôs, além das quatro dimensões conhecidas, mais 5 uma quinta dimensão que explicasse a força eletromagnética. Kaluza acreditava que o eletromagnetismo, assim como a gravidade, também era produto de uma curvatura (ou dobras) de um espaço multidimensional. Era, no entanto, uma dobra minúscula. Essa idéia começou a ganhar força também com o surgimento da geometria não-euclidiana, a partir meio de século XIX. A antiga geometria euclidiana tratava do espaço plano, como o espaço dessa página. Mas a geometria não euclidiana lidava com superfícies curvas. Sua teoria não foi completamente comprovada, mas levantou uma questão interessante: quantas dimensões do espaço existem a nossa volta? Por volta de 1980, duas novas forças foram descobertas. Além da gravidade e do eletromagnetismo, surgiram a força nuclear fraca e a força nuclear forte. Hoje, cientistas acreditam que essas forças constituem o nosso universo. Então, enquanto Kaluza explicou o eletromagnetismo adicionando mais uma dimensão às quatro dimensões de Einstein, físicos hoje descobriram que, para abrigar todas as forças, teriam que adicionar mais seis dimensões, criando um espaço com onze dimensões. Ainda de acordo com Wertheim, "talvez a característica mais radical desta visão de onze dimensões seja o fato que ela explica não somente todas as forças, mas a matéria também, como um subproduto da geometria do espaço”.8 Sendo assim, durante o século XX o espaço se tornou a única categoria do mundo científico. Matéria e força seriam, nesse caso, aspectos do espaço. Nesse sentido, quando "tudo" é espaço, anula-se o lugar do sonho, da liberdade, do "outro" real. Quando a própria ciência acabou com o sonho da arte e da ficção científica em construir um espaço que estivesse além das dimensões conhecidas do mundo físico, como fora o Paraíso na Idade Média e a quarta dimensão no início do século, surge um novo tipo de espaço, nomeado em 1984, por William Gibson9, como ciberespaço. O ciberespaço como espaço da liberdade William Gibson não foi o único autor a visualizar a possibilidade de vida em um outro espaço, onde não existisse matéria; um lugar que poderíamos habitar através de implantes neurais e que fosse tão real quanto o mundo físico — mas onde não estivéssemos "presos" ao corpo material. Neal Stephenson, em Snow Crash 10, também imagina um outro espaço, mas em vez de um espaço abstrato de informação, como Gibson, descreve uma analogia à cidade tradicional, com ruas, cafés e lojas. Em todo caso, o ciberespaço foi visto inicialmente como um local onde estaríamos livres das limitações do corpo físico. Um lugar acessível a todos (desde que tenha um computador e um modem), onde as distâncias geográficas seriam abolidas, onde não houvesse mais distinções físicas ou raciais entre as pessoas. Um local onde se estaria livre para construir, fazer e falar o que quiser. Enfim, um novo paraíso virtual. De acordo com Lawrence Lessig, "esse espaço prometia um tipo de sociedade que o espaço real jamais permitiria — liberdade sem anarquia, controle sem governo, consenso sem poder" 11. Seguindo a história do conceito de espaço na sociedade ocidental, se na Idade Média e no Renascimento o mundo era constituído por corpos (matéria); e nas Idades Clássica e Moderna o mesmo ambiente era moldado por forças, agora vivemos em um mundo de informação. E a informação é 6 fluida, móvel e não possui forma definida. Mas o que deu a sensação da liberdade a esse mundo de informação que hoje chamamos de ciberespaço? Inicialmente, na década de 70, a Internet foi criada com o objetivo de partilhar recursos através do acesso a computadores remotos. O uso era restrito ao meio militar e às Universidades. A grande mudança, no entanto, veio com o surgimento do e-mail, em 1972. O e-mail possibilitou que a rede não fosse apenas usada para acesso remoto, mas também surgisse como meio de comunicação. A criação de mailing lists possibilitava que várias pessoas lessem as mesmas mensagens, criando um novo espaço de comunicação e sociabilidade. Esse novo espaço juntava as pessoas não mais por proximidade física, mas por interesses comuns. Seguindo o desenvolvimento das listas de discussão (e-groups) foram criados os BBS (Bulettin Board Systems) — atualmente conhecidos como fóruns — que possibilitam uma comunicação, não por e-mail, mas a criação de uma página onde as mensagens enviadas ficam "coladas", como num quadro, e a discussão pode ser continuada a partir de qualquer mensagem anteriormente colocada. O aparecimento de tecnologias que possibilitavam a comunicação online já criava um novo espaço de comunicação e sociabilidade, abolindo as distâncias geográficas e juntando pessoas com interesses comuns. A grande mudança, porém, veio com o aparecimento dos MUDs. Se, por um lado, MUDs são descendentes deste processo evolutivo da comunicação na Internet, que surgiu com o email, passando pelos e-groups e pelos BBS, por outro, provêm também dos antigos jogos de RPG (Role-Playing Games). A primeira descendência coloca o MUD como um espaço de comunicação sincrônica, em tempo real. E-mails e BBS proporcionavam uma comunicação com retardo, sem que as partes envolvidas tivessem a percepção de estar, ao mesmo tempo, em um mesmo lugar. Já nos MUDs (assim como nos chats), é possível compartilhar o espaço e perceber a presença do outro no ambiente virtual. A segunda descendência cria esses mundos virtuais como mundos, ou seja, como espaços que podem ser habitados e modificados por seus habitantes. Seguindo a tradição dos jogos de RPG, onde se criava uma narrativa e, dentro dessa história, personagens poderiam viver e interagir, os MUDs também possuem forte caráter narrativo. Basicamente, eles se dividem em mundos de aventura (mais próximos aos RPGs) e mundos sociais (onde o mais importante é o ambiente de conversação — mas, mesmo assim, existe um "espaço concreto" a ser compartilhado). Segundo Janet Murray 12, o computador passou a ser visto como espaço a partir do momento em que, através da interatividade com o programa, o usuário sentia que era possível modificar o espaço "do outro lado da tela". Como exemplo, ela propõe o jogo Zork, criado no MIT na década de 70, uma simulação eletrônica dos RPGs tradicionais. O programa apresentava a descrição de um ambiente e o usuário poderia dar comandos ao computador indicando como ele desejava se deslocar no espaço simulado. Essa sensação espacial, dada apenas textualmente, veio a ser reforçada com o surgimento da interface gráfica como uma nova camada acima do texto. A camada que criou o information space13. Por outro lado, o surgimento da Internet aproximou os jogos tipo Zork dos RPGs — agora, era possível que várias pessoas interagissem no mesmo espaço, pessoas que não precisavam estar próximas 7 fisicamente. Assim, o espaço dos MUDs se tornava o próprio espaço da vida. Sherry Turkle14, ao analisar diversos tipos de criação de personalidades em MUDs, cita o caso de um usuário que passava diversas horas semanais participando de vários MUDs diferentes ao mesmo tempo. Para isso, ele abria várias janelas em seu computador, sendo um personagem distinto em cada narrativa e tendo a vida real (RL) como "mais uma janela". Entender os MUDs como um espaço da vida, ou como um espaço alternativo para a vida no mundo físico, coloca esse tipo de ambiente na Internet como os mais próximos daqueles imaginados pela ficção científica. Recentemente, o filme Matrix apresentou a mesma idéia, sendo que o ciberespaço não era mais um espaço de simulação da vida, mas a própria vida tal como a conhecemos. Não havia mais a necessidade de se criar um personagem, pois o avatar era sua própria representação. Nesse sentido, o ciberespaço é freqüentemente visto como um novo campo para a mente — e para o corpo também. Se a tendência da física moderna foi gradualmente abolir a matéria (corpo como matéria) em função do espaço, colocando tudo numa única categoria, no ciberespaço, paradoxalmente, a questão do corpo (de sua presença nesse espaço de informação) torna-se fundamental. Como habitar esse espaço de informação? Como somos representados? Como interagimos com o outro? Como vemos o outro e como o outro nos vê? No livro Neuromancer, os personagens poderiam fazer o download de suas mentes para o ciberespaço, deixando o corpo para trás. Case, personagem principal do romance, no início da narrativa, recebe uma pena, em que seu castigo era não poder mais se conectar ao ciberespaço, ficando, assim, preso ao seu corpo físico. Essa idéia, no entanto, implica uma visão dualista, onde a mente poderia ser separada do corpo. Hoje em dia, no entanto, fica cada vez mais claro que as formas de presença no ciberespaço são fundamentais e muito da interação depende de sensações físicas. Sendo um espaço de informação, tudo é fluido e mutável. É possível construir espaços, construir personalidades. Se o seu avatar morre em um MUD, não é muito trabalhoso recriar outro personagem e recomeçar a história. Por isso a Internet passou a ser vista como um novo espaço, um espaço diferente do mundo físico, um lugar onde tudo poderia acontecer. Os MUDs, por exemplo, são muitas vezes vistos como "a sociedade ideal" — um lugar sem norma, onde não há espaço para diferenças raciais, de gênero, pratica-se sexo seguro… Enfim, a verdadeira salvação na tecnologia! De acordo com Margareth Wertheim, "o ciberespaço é também visto como um novo espaço do 'espírito'. Com os sonhos contemporâneos de ciber-imortalidade e ciber-ressureição, nós temos em meio à tecnologia a re-emergência de algo muito parecido com a antiga alma cristã medieval". 15 Uma alma que viveria em um espaço infinito, fora do tempo e do espaço. A própria arquitetura da Internet, como rede de informação, de computadores, já possui as características do ilimitado. O conceito de rede aparece como algo formado de nós e bifurcações (caminhos). De cada nó só se enxerga outro nó, nunca a borda, ou seja, o limite. Isso faz com que, ao estarmos dentro da rede, tenhamos a sensação de estarmos num espaço infinito — não porque ele não tenha fim, mas porque não se consegue enxergar o limite (assim como nosso Universo). Assim, é 8 interessante notar a mudança do conceito de rede: na década de 60, como algo fechado, secreto, finito, tendo como objeto a rede tradicional, física, que servia para reter outros objetos. Nesse sentido, a função da rede estava fora dela. Já na década de 90 a rede passa a ser vista como algo aberto, infinito, como possibilidade e potência de fluxos. Agora, o sentido da rede não estava mais fora da rede, mas é intrínseco a ela, passando a informação por dentro de seus nós e bifurcações. Essa rede abstrata pode ter qualquer suporte — uma rede de computadores, por exemplo. No entanto, mesmo com a arquitetura do ilimitado, mesmo sendo a projeção de um espaço tão sonhado pelo homem ao longo da história, o ciberespaço não é a concretização da utopia da liberdade. Como todo espaço, ele possui limites. Limites que direcionam nossa presença neste ambiente e nosso modo de interagir com ele. Segundo Lawrence Lessig16, se as leis são o que nos limitam no mundo físico, no ciberespaço, o código é a lei. O limite no ilimitado Paralelamente aos lugares de liberdade sonhados pelo homem, sempre existiram locais de limite (que pudessem justificar a existência dos primeiros). Na Idade Média, o Inferno e o Purgatório cerceavam as ações do homem na Terra. Já no Renascimento e na Idade Clássica, o quadro — através do qual o mundo era representado — limitava esse mundo. Na Modernidade, quando começaram a surgir as teorias do hiperespaço, viver em três dimensões já era uma característica limitante do meio; "éramos presos ao tridimensional". Hoje, freqüentemente ouvimos que o meio digital é o espaço sem limites por excelência. Esse pensamento tornou-se muito comum, por exemplo, na área de design, depois do aparecimento da interface gráfica do Macintosh. No entanto, de acordo com John Maeda, designer e pesquisador do MIT, "os designers estão se enganando ao pensar que podem fazer o que quiserem com os softwares gráficos disponíveis — 'limitados apenas por sua imaginação'. Na verdade, estamos sendo limitados pela imaginação de um outro alguém — a do programador”.17 E é essa a questão principal do ciberespaço. Em um mundo criado por linhas de código e linguagens de programação, o define o que pode ser feito no mundo é sua arquitetura. E quem propõe a arquitetura é quem programa. Não quer se propor aqui um determinismo tecnológico limitante, onde somos regulados por softwares e programadores. Muitas vezes, sem dúvida, o caminho inverso ocorreu: novas linguagens tiveram que ser criadas para atender às demandas culturais do meio. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a criptografia a partir o desenvolvimento do e-commerce. De qualquer forma, não se pode negar que o modo como habitamos esse novo espaço e como percebemos o outro está intimamente ligado com a forma como esse mundo é construído — através da programação. Um exemplo interessante é a passagem da interface bidimensional para a tridimensional, ou, tecnicamente falando, da linguagem HTML (HyperText Markup Language) para a VRML (Virtual Reality Modeling Language). Em um primeiro momento, pode-se pensar que a introdução de gráficos e imagens revolucionou a construção do espaço e a forma de comunicação na Internet. Certamente, a 9 percepção de um ambiente em três dimensões (conforme as regras da perspectiva linear) proporciona uma nova forma de presença no ambiente digital. Resta saber se essa nova forma representa uma vantagem em relação à comunicação textual. De acordo com Lessig, "a maioria das pessoas pensa nesse fato (a comunicação textual como única possibilidade) como uma limitação do início da Internet. Tecnicamente, era. Mas essa descrição técnica não esgota sua descrição normativa como uma arquitetura que possibilitou uma certa forma de vida. (…) E essa limitação particular abilita classes de pessoas que eram desabilitadas no espaço real”.18 Ele dá como exemplo os cegos, surdos e feios, observando que a comunicação textual camufla as diferenças e aproxima as pessoas, porque é possível criar o personagem que se deseja, descrevendo-o apenas com palavras, "limitado apenas pela imaginação". Assim, pode-se também imaginar o outro como quiser. Ainda segundo ele, "quando gráficos entraram na World Wide Web, os cegos tornaram-se 'cegos' novamente. Quando arquivos de som foram criados, os surdos tornaram-se 'surdos' novamente. E quando salas de chat começaram a segregar espaços para aqueles que possuíam webcams, capturando imagens das pessoas que conversavam, os não-fotogênicos se tornaram 'não-fotogênicos' novamente".19 Por outro lado, é possível que num futuro próximo, quando a velocidade da rede seja bastante alta, gráficos, imagens, sons e vídeo sejam transmitidos de modo mais rápido, criando realmente uma outra estética da www. Hoje, no entanto, essa forma de comunicação ainda é muito limitada. Em mundos virtuais textuais é possível imaginar qualquer ambiente e criar qualquer personagem — as descrições são tão detalhadas como: "she wears a silver lame' bra on her pale torso, and her legs are encased in a papier mache serpet's tail. Her hair is cropped close to her skull, to accommodate the blue nylon mermaid wig that dangles from her left hand. If you look at her closely, you'll notice the many silver earrings and the pierced navel… but then again, if you look at her that closely, she might do something extremely unpleasant to you".20 Enquanto isso, nos atuais ambientes gráficos tridimensionais, normalmente a escolha está limitada entre uma dezena de avatares diferentes que não necessariamente possuem as características escolhidas pelo usuário. Além disso, nesses ambientes, a comunicação se torna mais lenta, sendo uma preocupação constante construir mundos com poucos detalhes de modo a não ficarem "pesados". Não que o texto também não tenha regras e limitações. Muito pelo contrário. A habilidade de criar e construir mundos, mesmo textuais, só é possível através de um conhecimento mínimo de programação. Esse tipo de limitação acontece em vários ambientes da web. Os MUDs, por exemplo, são criados a partir de regras de convivência (não apenas regras programáveis, mas, já que simulam a vida, leis de comportamento). Normalmente, nesses ambientes, existem wizards ou gods, que têm poder de vida e morte sobre os outros habitantes. Dentre estes últimos, também existe uma hierarquia social, os visitantes ocupando o posto mais baixo — não têm direito a decidir nada, a construir ambientes e, muito menos a criar um personagem que se diferenciem dos outros visitantes. De qualquer forma, tanto mundos virtuais textuais, quanto tridimensionais, são representações de espaços, ou melhor, simulações do mundo físico. 10 Mundos virtuais: simulações de mundo, de palavras e do pensamento. Segundo Edmond Couchot 21, a imagem digital, por definição não representa mais o mundo — é pura simulação. Numa lógica evolutiva das técnicas de figuração, pode-se perceber, desde a Renascença, uma mudança na lógica figurativa dos processos de criação e reprodução da imagem. Com a câmera obscura, por exemplo, a projeção se dava através de um raio luminoso que saía do objeto e batia no fundo da caixa preta, através de um mínimo orifício que era o centro de projeção. Couchot denomina essa técnica de morfogênese por projeção, pois implica sempre a presença de um objeto real preexistente à imagem. Assim, cria uma relação biunívoca entre o real; e sua imagem e a imagem se dá, então, como representação do real. Segundo ele, "representar é poder passar de um ponto qualquer de um espaço em três dimensões a seu análogo (…) num espaço de duas dimensões. Mas estabelece também uma relação imediata entre o objeto a figurar, sua imagem e quem organiza o encontro de ambos. A Representação alinha, no espaço e no tempo, o Objeto, a Imagem e o Sujeito”.22 Dentro deste contexto, a perspectiva foi um momento decisivo, porque dava uma ilusão precisa de profundidade. Já com a fotografia, a própria Representação se automatiza. Desse modo, a lógica da Representação procede principalmente do modelo perspectivista, capaz ao mesmo tempo de reproduzir o mundo e de fornecer dele uma "visão" particular, no mais amplo sentido. A mudança ocorre, então, com a imagem numérica, pois "enquanto a cada ponto da imagem ótica corresponde um ponto do objeto real, nenhum ponto de qualquer objeto real preexistente corresponde ao pixel. O pixel é a expressão visual, materializada na tela, de um cálculo efetuado pelo computador, conforme as instruções do programa. Se alguma coisa preexiste ao pixel e à imagem é o programa, (…) e não mais o real. Eis porque a imagem numérica não representa mais o real, ela o simula”.23 Desta forma, tanto mundos virtuais gráficos, e até mesmo os textuais, não podem representar mais o mundo real, mas o simulam. O desejo de conectar o ambiente dos MUDs à própria vida, sendo isso uma das conseqüências de sua descendência dos Role-Playing Games, fez com que muitos deles se constituíssem com descrições análogas ao mundo físico. Mesmo que o ambiente virtual seja um mundo formado apenas de informação, e não de matéria, mesmo que seja possível morar dentro de uma televisão (como é o caso do personagem de Julian Dibbell24 no Lambda Moo), ainda assim são metáforas espaciais ligadas ao mundo tal qual o conhecemos, fisicamente. Seria possível argumentar, então, que as pessoas se sentem mais à vontade em mundos já conhecidos, em ambientes que, de uma certa forma, possuem alguma analogia com o espaço que costumam habitar. E talvez isso facilite o encontro entre as pessoas, o deslocamento nesse espaço e a criação de sociabilidade. A criação de espaços imaginados que sejam análogos ao mundo físico não é nova. Basta lembrar do espaço medieval de Dante, onde Inferno, Purgatório e até mesmo o Paraíso, a despeito de serem lugares simbólicos, eram descritos de acordo com a concepção de espaço físico do mundo de 11 então — o Inferno no centro da Terra, o Purgatório em algum lugar do hemisfério sul (o desconhecido), e o Paraíso no céu de Ptolomeu. E, sem dúvida alguma isso facilitava que o homem imaginasse esses espaços e que melhor se projetasse neles. Da mesma forma, quando os primeiros mundos virtuais tridimensionais foram concebidos, a metáfora do espaço físico não foi deixada para trás. Tanto que a principal discussão em torno da criação desses espaços era "como construir uma cidade virtual"25 — cidade sendo o meio de encontro por excelência. O mundo Active Worlds, por exemplo, que possui a maior população de mundos virtuais na rede, é construído totalmente nos moldes de uma cidade tradicional, ou de espaços já conhecidos. Outros, como Worlds.com, Worlds Away e 3D Village seguem o mesmo padrão. Coloca-se, então, uma questão: na lógica da representação renascentista, onde cada ponto do mundo físico tridimensional tinha um ponto correspondente no espaço bidimensional da tela de pintura, os artistas procuravam ser o mais fiéis àquele mundo representado, olhado através de um ponto de vista fixo. Nesse sentido, a interface da tela representava a informação dada pelo mundo e capturada pelo artista. No espaço digital, não existe mais representação, e sim simulação. Assim, cada pixel não se refere mais a qualquer ponto do mundo exterior. O pixel representa apenas um cálculo feito pelo computador. É lógico colocar, então, que a interface digital não representa mais o mundo externo, mas simula o próprio espaço virtual. Aqui surge outra questão: se a interface do computador possibilita que o ser humano entre em contato com o espaço digital, é preciso saber o que é esse espaço digital para se criar a interface que melhor o represente. Será essa interface realmente a simulação do espaço físico? CiberIDEA 3D ou o mundo de conceitos Foi pensando nessas questões que surgiu o CiberIDEA 3D, como um ambiente virtual de multiusuários e também um espaço onde é possível apreender e construir uma idéia do que é o ciberespaço. Nesse sentido, o mundo a ser criado difere largamente da grande maioria dos mundos virtuais presentes atualmente na Internet, cuja intenção é apenas criar um ambiente de sociabilidade baseado na imitação do mundo físico. O objetivo, então, não é apenas possibilitar o surgimento de uma comunidade virtual, mas também (e principalmente), fazer com que as pessoas naveguem e experimentem o espaço digital. Ao tentar concretizar esse espaço de informação e torná-lo ao mesmo tempo um espaço de pensamento e um lugar de sociabilidade, procuramos construir um outro mundo, diferente da representação tradicional de espaço físico — um ambiente de palavras que são também conceitos. Conceitos, no entanto, não se definem sozinhos e só ganham significado a partir de sua associação com outros conceitos. Segundo Deleuze, "cada conceito será, pois considerado como ponto de coincidência, de condensação ou de acumulação de seus próprios componentes”.26 Plano de conceitos, ilimitado e curvo, construído através de pontes e bifurcações, sempre mudando, em movimento constante, dependendo das conexões e associações que apareçam. 12 Desse modo, os elementos que formam a estrutura do mundo são palavras, letras: a interface do pensamento. É da antiga dicotomia ocidental entre palavra e imagem que surge o sentido do ambiente, pois aqui as letras são signos fonéticos, mas também são gráficos: imagens de letras tridimensionais que funcionam como blocos de construção de nossa cidade de pensamento, paredes de salas conceituais. A sala inicial é composta pelos cinco campos discursivos do CiberIDEA que apresentam as principais linhas de estudo dos participantes do grupo. Partindo desse espaço inicial o usuário pode, então, entrar no mundo e caminhar através das palavras; dependendo de onde vá, ele seguirá uma associação de termos de modo a formar um conceito. Tanto os conceitos iniciais como os relacionados foram discutidos conjuntamente em reuniões do núcleo de pesquisas, sendo aceitos como constitutivos das linhas de pensamento associadas ao estudo de ciberculturas. Na medida em que o usuário percorre essas associações, pode entrar em contato com experiências que possibilitem "sentir" os conceitos. Experiências que são possíveis apenas na Internet e envolvem imagens, animação, sons e textos. O CiberIDEA 3D é uma tentativa de conceitualizar o ciberespaço, criar uma interface a partir dessa conceitualização e devolver um mundo de pesquisas sobre ciberculturas para o usuário — um mundo que ele também possa habitar e interagir com outras pessoas, como é característico desse espaço digital. Desta forma, o mundo organiza-se em torno de dois pontos principais: o mundo como palavras e o mundo como pensamento, sendo palavras, a interface gráfica do pensamento. Pensamos por conceitos, por associação de conceitos. E também pensamos hipertextualmente. Recentes estudos de neurociências sugerem que nossa maneira de pensar, de fato, ocorre em rede. O modelo do hipertexto é análogo ao modo como o cérebro trabalha: uma intrincada rede de neurônios conectados por trilhas de energia elétrica, gerando informação mais das conexões do que das identidades fixas27. Os neurônios funcionam como se fossem blocos de construção desta rede, mas o pensamento acontece quando os caminhos são percorridos pela rede elétrica. As idéias emergem de milhões de neurônios e de suas combinações. O hipertexto também é a forma da www. Para dar consistência ao pensamento representado por palavras, em forma de conceitos, buscamos na filosofia a criação de arquiteturas do pensamento e da elaboração de conceitos. A filosofia sempre se valeu de cenas e metáforas para criar conceitos, desenvolver idéias e representar o pensamento. Desde Platão e a alegoria da caverna, Leibniz e as séries incompossíveis, Nietzsche e Zaratustra, Deleuze e o plano de imanência, o pensamento é representado no espaço; ou ainda, como um espaço onde algo acontece. Utiliza cenas, personagens e descreve experiências para exemplificar e representar conceitos. Seguindo esta idéia, pretendemos construir um palco, como um espaço onde cenas ocorrem. Não um palco newtoniano, desconectado dos personagens que nele atuam, mas um palco moderno, onde a ação de cada usuário serviria para mudar esse espaço e estivesse intimamente ligada à formação deste. O palco como uma vasta membrana, que incluísse matéria e espaço — no entanto, num mundo onde não existe matéria, que é constituído de fluxo de informações, tanto palco quanto personagens são formados com o mesmo princípio; nesse sentido, são o mesmo. Cada conceito, 13 então, não teria uma única definição: partimos do princípio deleuziano28 de que cada conceito só se forma na associação com outros conceitos e, para associá-los, seria preciso percorrer esse espaço e viver experiências. Qual seria, então, a ligação entre o espaço de pensamento e o espaço digital? Através da articulação entre representação, espaço e sujeito, é possível entender que o modo como o ser humano percebe e organiza o espaço físico está diretamente relacionado à representação de nosso espaço de pensamento. Habitamos espaços diferenciados. Espaços, físicos, imaginados, representados… ciberespaço. São espaços produzidos pela cultura e pela técnica. Mas também somos produzimos pelo espaço em que vivemos. O homem medieval habitava a Terra, mas vivia ameaçado pela idéia de ser enviado para o Inferno ou com a esperança de ao Paraíso. Esperança… Foram lugares de esperança e de liberdade ao longo da história, espaços definidos tanto pela cultura quanto pela ciência, que moldaram nossa presença no mundo físico. Além do espaço celeste medieval, a crença numa quarta dimensão, nas maravilhas do ciberespaço… O homem nunca se conformou em habitar apenas um tipo de espaço e sonhou freqüentemente com lugares de liberdade, do corpo e da alma. Hoje, esta percepção de um espaço de liberdade é deslocada para o espaço digital. Um lugar sem matéria, longe das leis do mundo físico, onde cada um pode ser quem quiser e construir o espaço como melhor lhe convier. O ciberespaço é um espaço em construção. Espaço de liberdade ou não, o modo como ele será construído e como estaremos presentes nele dependerá da compreensão do que é esse espaço digital. _________________________________________________________________________________ * Doutoranda em Comunicação e Sistemas de Pensamento da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadora associada ao CiberIDEA (Núcleo de Pesquisa sobre Ciberculturas) http://www.eco.ufrj.br/ciberidea. _________________________________________________________________________________________________ BIBLIOGRAFIA • ALIGUIERI, Dante. A divina comédia. São Paulo: Círculo do Livro, 1994. • COUCHOT, Edmond. "Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração". In: PARENTE, André. Imagem-Máquina. São Paulo: Editora 34, 1996. • DELEUZE, Gilles et GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. São Paulo: Editora 34, 1997. • DIBBEL, J. My Tiny Life— Crime and Passion in a virtual world. New York: Owl Books, 1999. • DONATH, Judith. Inhabiting the Virtual City. The design of social environments for electronic communities. PhD Thesis. MIT, 1997. • FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995. • GIBSON, William. Neuromancer. New York: Ace Books, 2000. • JOHNSON, Steven. Interface Culture. How new technology transforms the way we create and communicate. San Francisco: Harper Edge, 1997. • LESSIG, Lawrence. Code and other laws of cyberspace. • HALL, Peter. "John Maeda at the art directors club" in: U&lC (Upper & lowercase Magazine). 26.1.1 • MURRAY, Janet H. Hamlet on the Holodeck — the future of narrative in cyberspace. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1999. • Platão — vida e obra. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. • STEPHENSON, Neal. Snow Crash. New York: Bantam Books, 2000. 14 • • • STRATHERN, Paul. Einstein e a relatividade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. TURKLE, Sherry. Life on the screen — Identity in the age of the Internet. NY: Simon & Schuster, 1995. WERTHEIM, Margareth. The Pearly Gates of Cyberspace. A history of Space from Dante to the Internet. New York: W.W. Norton & Company, 1999. MUNDOS VIRTUAIS • Active Worlds: http://www.activeworlds.com • Worlds Away: http://www.worldsaway.com • 3D Village: http://www.radionav.it/3DVillage/ FILMES • WACHOWSKI, Larry, Andy. Matrix. USA, 1999. 1 http://www.eco.ufrj.br/ciberidea3d ALIGUIERI, D. 1994. 3 WERTHEIM, M. 1999. pág.: 72. 4 Idem. pág.: 64. 5 WERTHEIM, M. 1999. pág.: 192. 6 Terra plana: um romance de muitas dimensões. 7 WELLS, H. G. apud WERTHEIM, M. 1999. pág.: 193. 8 WERTHEIM, M. 1999. pág.: 211. 99 GIBSON, W. 2000. 10 STEPHENSON, S. 2000. 11 LESSIG, L. 1999. pág.: 4. 12 MURRAY, J. 1999. 13 Cf. JOHNSON, S. 1997. 14 TURKLE, S. 1995. 15 WERTHEIM, M. 1999. pág.: 41. 16 LESSIG, L. 17 MAEDA, J. apud HALL, P. in U&lC. 26.1.1. 18 LESSIG, L. 1999. pág.: 63. 19 Idem. pág.: 66. 20 DIBBELL, J. 1999. pág.: 236. 21 COUCHOT, E. in: PARENTE, A. 1996. 22 Idem. pág.: 40. 23 Idem. 24 DIBBELL, J. 1999. 25 Cf. DONATH, J. 1997. 26 DELEUZE, G. et GUATARRI, F. 1997. pág.: 32. 27 JOHNSON, S. 1997. pág.: 119. 28 DELEUZE, G. et GUATTARI, F. 1997. 2 15