- Programa de Pós Graduação em História

Transcrição

- Programa de Pós Graduação em História
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA
PÉROLAS NEGRAS: AS MULHERES DE VILA BELA NA LUTA PELA
AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA, 1970-2000.
SILVIANE RAMOS LOPES DA SILVA
CUIABÁ-MT, 2006.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO.
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS.
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA.
PÉROLAS NEGRAS: AS MULHERES DE VILA BELA NA LUTA PELA AFIRMAÇÃO
DA IDENTIDADE ÉTNICA, 1970-2000.
SILVIANE RAMOS LOPES DA SILVA
Dissertação apresentada à banca
examinadora do Programa de PósGraduação,
em História
da
Universidade Federal de Mato
Grosso, como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre
em História, sob orientação da
Profª. Drª. Maria Adenir Peraro
CUIABÁ-MT
2006.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO.
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS.
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA.
PÉROLAS NEGRAS: AS MULHERES DE VILA BELA NA LUTA PELA AFIRMAÇÃO
DA IDENTIDADE ÉTNICA, 1970-2000.
SILVIANE RAMOS LOPES DA SILVA
CUIABÁ-MT, 2006.
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SUMÁRIO
Introdução...........................................................................................................................11
Capítulo I - Vila Bela Entre Mexilhões e Corpos Estranhos: Lembranças
e Resignificações de uma Comunidade Negra.................................................................27
1.1 - Em Terras de Mexilhões: O Território Vilabelense....................................................28
1.2 - Em Busca de Pérolas: As Águas Vilabelenses............................................................43
Capítulo II - Brilhando Entre a Cidade e a Roça: Madrepérolas
e Aragonites:.......................................................................................................................52
2.I - Memória de uma Cidade..............................................................................................55
2.2 - Histórias e Causos: Um passear na memória feminina................................................60
2.3 - Ensinamentos e Aprendizado: Práticas da roça...........................................................67
Capítulo III - Pérolas Negras, Negras Mulheres: No Brilho Das Festas e no Cantar
Aos Santos, a Religiosidade...............................................................................................74
3.1 - Os Santos e suas festas................................................................................................77
3.2 - A Festa de São Benedito as negras do Chorado.........................................................85
3.3 - Partejando, Benzendo e Curando: A Religiosidade das Mulheres
Negras...................................................................................................................................94
Considerações Finais........................................................................................................102
Fontes.................................................................................................................................106
Referências Bibliográficas...............................................................................................110
Anexos................................................................................................................................118
DEDICATÓRIA
Às mulheres negras vilabelenses, à minha mãe,
Maria das Dores e à minha filha Julia Beatriz que
foram inspiração sempre, dedico este trabalho. As
mulheres do chorado, as cozinheiras, lavadeiras,
secretárias, professoras, zeladoras, enfermeiras,
mães e mulheres negras de Vila Bela, que, do
cotidiano, fazem brilhar suas faces de pérolas.
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer, pois, por enquanto é o máximo que consigo fazer para
retribuir, as pessoas especiais que estiveram do meu lado, até o momento. Pois foram essas
pessoas que me ajudaram apresentar o resultado de uma trajetória, que tem grande
importância nesse momento acadêmico. A minha mãe, a qual me inspirou e inspira, a
escrever a história, de uma sociedade na qual as mulheres, são rainhas, são pérolas.
À minha mestra Maria Adenir, professora em todos os sentidos. À ela toda a
gratidão do mundo, que os deuses sempre iluminem a boa estrela que a acompanha: mãe,
professora, comadre, pesquisadora, a Maria mulher, eu agradeço, por depositar em mim sua
nobre confiança. Também não poderia deixar de agradecer, a profª Lylia da Silva Guedes
Galetti, que foi minha orientadora na graduação, e com quem pude aprender muito; a você
mãezona, todo o meu apreço. À professora Leny Caselli, pelo aceite em fazer parte a banca
de qualificação, sou muito grata. Ao professor Vitale, pelas inúmeras conversas e trocas de
experiências no âmbito da academia, por ter sido meu professor na graduação, à você toda
admiração. Um carinho, respeito e admiração à Profª. Regina Beatriz, pelas discussões
acerca da metodologia, e ao professor Barrozo, a quem admiro e respeito muito pela pessoa
e pelo exímio profissional que é, pela sua dedicação a esta Instituição.
Agradeço a todos os professores, que me oportunizaram com a troca dos saberes,
com os referenciais teóricos, metodológicos, e, sobretudo como referenciais profissionais.
Às minhas amigas, Fernanda Quixabeira e Marildes Ferreira por estarem sempre
por perto nas horas de alegrias e tristezas, à vocês, muito obrigado. À todos os colegas de
mestrado que nas discussões faziam emergir idéias e idéias. À Sibele de Moraes, que
mesmo longe, sempre se fez presente. À comadre Sônia Salles por cuidar tão bem da minha
filha Julia Beatriz, sempre me deixando tranqüila na produção deste trabalho.
Às Secretárias e tão queridas e especiais, Matilde Koik e Mônica Ascendino, pelo
zelo e operacionalização das atividades, pela paciência sobretudo!
Aos colegas do departamento de História da UNEMAT pela experiência partilhada.
À Capes pelo apoio financeiro, que propiciou o desenvolvimento da pesquisa.
RESUMO
Este estudo versa a respeito do universo das
mulheres negras de Vila Bela e de como
elas delineiam seus bens simbólicos no
cotidiano, dando visibilidade ás suas lutas
em prol da etnicidade da comunidade
vilabelense. Trataremos assim, dos espaços
da comunidade, da cidade e da roça, e da
realização das festas, território da
comunidade. Campo e cidade são categorias
de análise que trabalharemos para que desta
maneira tenhamos maior clareza sobre a
importância dos vários territórios para a
população negra de Vila Bela, em especial o
tempo das festas. As festas de santo
aconteciam no campo e também na cidade.
É em busca das histórias do cotidiano das
mulheres negras que este texto se
movimenta em busca dos segredos das
cozinhas, dos códigos da religiosidade, da
engenharia que lançam mão para garantir as
práticas culturais da comunidade. Assim
poderemos observar o que esta comunidade
valoriza ou nao, e como são representadas
através da oralidade. O estudo propicia
reflexão a respeito da importância da
memória feminina, decorrentes das ações
e/ou práticas das mulheres negras, enquanto
guardiãs
da
cultura
vilabelense,
apresentando uma Vila Bela cartografada
pelo rememorar, as quais através da fala,
vão mapeando uma Vila Bela adormecida
em suas caixas de lembranças.
ABSTRACT
This study writes about the universe of
negrowomen of Vila Bela and how they
delimeate there symbolic assets in their
routines turning visible their fight in
favopr of ethinictyof Vila Bela
community. There face we will deal with
the space of community the city and the
rural area, the party accomplishment, the
community territory, City and country are
categories of analisis that we will work so
that we can have more clearness about the
importance of the several territories for
the negro population of Vila Bela, in
special the party time the “Saint Parties”
(hly Parties), happened, the city and also
the coutry. It is searchag for these stories
of the routine of negro women that this
text moves, seeking for the kitchen
secrets, the religious codes, the
engineering that theyuse to guarantee the
cultural practices of community. This
way, we will be able to observe what this
community valves or not and how they
are represented orally. This Study grants
reflection about the importance of the
fenace memory, of the actions and/or
practices of negro women, while
guardians of “Vila Bela” culture,
presenting a “Vila Bela” mapped to
remember them, through whon, will
design na asleep “Vila Bela” in its box
memory.
GLOSSÁRIO
Aprumar - melhorar
Aquá - expressão bem característica da região, como se fosse, vote.
Bocadinho - pouquinho
Dante - D’ antes, de antigamente
Despejar fora do tempo - Abortar
Despejar - Parir, dar a luz
Fia - para se referir a alguém que esta falando, olha aqui fia!
Infigie - de esfigie, estatua do santo.
Mode - ao dizer de modo,
Pascana - pequena ilha para passeio
Mufamba (s) - Cesto- (afro)
Baquité - cesto Indígena
Xixa - Bebida de milho, suco do milho torrado: conhecido também como aluá
Lida - Trabalho braçal, na roça
Tracajá – espécie de Tartaruga
LOCALIZAÇÃO VILA BELA
Desenho: Luciano Marcos Andrade Fávero.
Fonte: IBGE-MT-Vila Bela Da Ss.Trindade -Cod.: 5105507.
9
Pérolas Negras, Mulheres Negras
As pérolas sempre despertaram nos homens / mulheres, fascinação e encantamento.
Pérolas brancas, as mais conhecidas no mundo ocidental, talvez por serem mais
facilmente encontráveis.
Pérolas rosa, as mais delicadas e belas!
Pérolas negras- raras- menos conhecidas, nem por isso menos encantadoras e
fascinantes.
Eis aí uma simbologia: o universo das pérolas negras e o universo das mulheres
negras.
São espaços de vidas.
Vidas que se desenvolvem e desabrocham na escuridão.
As pérolas na escuridão das águas profundas dos imensos oceanos e no interior das
conchas, produzidas pela natureza ou de forma artificial por mãos humanas.
Águas profundas, mornas e escuras, silenciosas, próprias para o repouso absoluto das
conchas que preparam e nutrem, as espécies mais variadas dos embriões das pérolas.
Mulheres negras – vidas que desabrocham na escuridão social,em um universo
marcado pela discriminação, preconceito e humilhação...
Pérolas brancas, rosas, negras,
Pérolas redondas, ovaladas e lisas, granuladas, perfeitas e imperfeitas.
Pérolas prontas para o bom comércio.
Pérolas perfeitas para colos perfeitos.
Pérolas dotadas de vidas centenárias, quase imortais.
Mulheres negras, Negras mulheres.
Encantadoras, corpos dançantes, longos cabelos, encaracolados, armados,
esvoaçantes, cintilantes!
Versáteis mulheres: nos campos, nas cidades, nas favelas e periferias.
Falantes mulheres: nas universidades e academias, nas ruas, nos parlamentos.
Dignas mulheres: no labor de incansável ritmo.
Mulheres de secretas confissões, de segredos: das receitas confessas ás filhas ( o
Kanjinjim), das ervas, dos medicamentos, da gustação.
Pérolas negras, negras Mulheres
O que as aproximam além da beleza e do encantamento?
O tempo, a resistência ao tempo
As pérolas mantendo sua integridade física,
As mulheres negras, a integridade cultural, a identidade étnica, a memória.
Silviane Ramos Lopes da Silva
Uma mulher negra, cuja negritude não lhe causa medo!!
Maria Adenir Peraro
10
INTRODUÇÃO
Desde menina, ouço histórias das mulheres de Vila Bela, sempre, sempre,
contadas, pela minha mãe, avó, ou tias avós... falavam das histórias que ouviam quando
pequenas, das festas de santos, da comida, da época da poaia, enfim das labutas diárias
enfrentadas pela comunidade negra. Assim, caminhei e ingressei no curso de graduação
em História da UFMT, decidida que trabalharia a respeito das mulheres de Vila Bela,
mas tudo estava muito vago. Eu não sabia o que e nem por onde começar, não sabia
delimitar algo nesse vasto universo temático a respeito das mulheres. Nas sábias
palavras de
Certeau1, tudo isso faria parte da produção do objeto. Ao longo da
graduação, fui estabelecendo meus contatos, fazendo leituras específicas, acumulando
informações, colhendo relatos, fixando-me em uma instituição. Assim articulava no
lugar da produção, pois era preciso estabelecer pares, para que a minha futura produção
pudesse partilhar do reconhecimento acadêmico, fazendo parte do espaço do saber, da
instituição.
Questionava,
problematizava,
hipotetizava...
estava
em
franco
processo
de
amadurecimento, tendo contato com a prática do historiador, começando a compor
minha fábrica. Nesse momento construía uma nova engenharia que pudesse vir atender
as regras da academia. E nesse universo a busca é intensa, precisamos compreender a
realidade, pois vamos representa-la através da escrita2.
Assim como as pérolas já há muito tempo despertam fascínio, as histórias que eu
ouvia quando criança também me fascinavam...Parecia pertencer e vivenciar a memória
daquelas mulheres, que cada uma a seu modo ressuscitava lugares e paisagens de uma
Vila Bela que eu desconhecia. Ao delimitar as vontades e possibilidades na
ornamentação da fábrica tinha então definido que trabalharia sobre as mulheres negras
em Vila Bela, sobre a importância de suas histórias, pois precisava registrar essa
comunidade, guardada e vigiada pela memória feminina. Pouco a pouco, quando
pesquisava, fazia levantamentos, eu que vivia nos arquivos a conversar com os mortos,
1
CERTEAU, Michel. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: 2ª ed.,
Forense Universitária, p.66, 2002.
2
Ver CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria
Manuela Galhardo. Lisboa: DIFEL, 1985.
11
agora dialogava com os vivos3, ou ainda com as vivas histórias dessas mulheres,
adquiria novos instrumentos para engatinhar na produção da escrita.A cada etapa de
aquisição do conhecimento, quando ainda montava minha fábrica no intuito de
desenvolver engenharias para dar conta desses registros, visualizava a importância de
estudar os belos relatos dessas contadoras de histórias. A cada entrevista, a cada causo,
me impressionava a riqueza de detalhes, era necessário de alguma forma materializar as
falas, informações... a luta pela identidade de uma comunidade que num relativo
isolamento, soube operar na cultura de suas perólas4, produzidas pelos mexilhões
guaporeanos, na perseverança por dias melhores.
Como Certeau nos aponta, o lugar social que eu estava inserida despertou ainda
mais o interesse pela temática, pois a medida que me deparava com a falta de trabalhos
no campo da história, mais interesse nascia... Fui buscando as redes, estilizando e com a
prática, ah! com prática fui peça a peça colocando a fábrica para produzir...
A utilização da memória pela história, passa por critérios e por exaustivos
estudos, o exercício da escrita. Fui aprendendo com as experiências da pesquisa, o
contato com a documentação, a facilidade de fazer leituras paleográficas estimulava,
ainda mais a composição da pesquisa. Porém era preciso visualizar além dos
documentos....era hora de aprender a transformar essa documentação, aguçar o lado
prático, entendendo assim que o historiador não tem ofício pronto e acabado, seu ofício
é desafiar as fontes, as teses, os mitos5.
Depois dessa fase, era chegada hora de ornamentar a fabricar, decorar, estilizar,
romper, inovar. Após esse processo de transformação e deslocamentos, era preciso.
fazer arte, como afirma Dubby, A história é uma arte literária.
Conforme Certeau, todo esse processo caracteriza as operações que regulam a
escrita da história. E nesse sentido era minha chance de apresentar meu produto final, de
3
Parafraseando Janaina Amado, que em uma de suas obras salienta: Habituados a conversar com os
mortos, os historiadores agora dialogam também com os vivos, por conta do trabalho com a oralidade.
Ver: AMADO, Janaina. “A culpa nossa de cada dia: Ètica e história Oral.” In: PERELMUTTER,
ANTONACCI (Orgs.) Projeto História, Nº 15. São Paulo: PUC,1997.
4
As pérolas podem ser obtidas naturalmente, ou através da cultura, nascem tanto de águas doces quanto
de águas salgadas.
5
Lembro que as minhas primeiras experIências (oficiais) foram como aluna do Pibic, no ACMC –
Arquivo da Cúria Metropolitana de Cuiabá, entre os anos de 2001 e 2002, no projeto Memória da Igreja
em Mato Grosso, coordenado pela profª. Maria Adenir Peraro, do Departamento de História da UFMT.
Digo Oficial, porque já fazia algumas pesquisas “informais”, por ocasião de estudos que me interessavam,
e levantamentos documentais para pesquisadores da UFMT.
12
ver os resultados, o objeto, o primeiro ensaio, que hoje me coloca nesse lugar social6.
Intitulado: PÉROLAS NEGRAS: As Mulheres De Vila Bela Na Luta Pela Afirmação
Da Identidade Étnica,1970-2000, estava aí o resultado dessa operação historiográfica,
que precisava dar conta das ausentes escritas sobre a história Vilabelense. Mais que
deslocar, reordenar indagações, ir além da documentação, era preciso devolver a Vila
Bela e a essas mulheres através da escrita, suas histórias, suas lutas e conquistas. Falar
dessas Pérolas não é e não foi tarefa fácil, é um universo fantástico de descobertas...
Assim foi necessário enveredar-se no mergulhar e caçar das conchas, no abrir, nas
descobertas de suas formas, da singularidade, de suas guardas nas ostras ( nesse caso
nos mexilhões), um desafio para a pesquisa e, sobretudo, de escrita. Mergulhava no rio
Guaporé sempre em busca das pérolas, e das histórias mais resguardadas em cada
mexilhão.Tive que me tornar mergulhadora, para desse mundo de histórias selecionar,
dentre as pérolas as mais ricas narrativas. Abrir as conchas foi um exercício árduo, mas
fascinante,
a cada vez que descobria o encantamento das madrepérolas, que nas
pequenas conchas, cobriam corpos estranhos, numa relação de interação e ao mesmo
tempo de conflito, o brilho dessas mulheres pérolas, era garantido pela sua memória,
lutas cotidianas, pelos cristais de aragonite7. Então chegou o momento de visualizarmos
o produto, que tenta exprimir através dos relatos, histórias de uma comunidade, que a
cada dia lança mão de novas estratégias, na sobrevivência do cotidiano.
Este estudo tem por objetivo analisar os espaços de luta delineados pelas
mulheres no âmbito da comunidade de Vila Bela, no período de 1970- 2000 dando
visibilidade as lutas travadas durante os períodos de expropriação8 que a comunidade
sofreu, sobretudo em meados dos anos de 1960. Destacamos as habilidades das
narrativas femininas, que como pérolas guardam em si, brilhantes histórias, que
6
Trata-se do meu trabalho de Final de Curso, PÉROLAS NEGRAS: As Mulheres De Vila Bela Na Luta
Pela Afirmação Da Identidade Étnica,1970-2000, orientado pela Profª. Drª. Lylia da Silva Guedes
Galetti, defendida junto ao departamento de História da UFMT, no ano de 2003.
7
A formação da pérola se dá em virtude dos seres bivalves, conchas e mexilhões sofrerem a invasão de
um corpo estranho, como um grão de areia, por exemplo. Assim os mexilhões e conchas revestem o corpo
estranho que madrepérolas, uma substância cálcica que mexilhões e conchas expelem para se protegerem,
desencadeando a formação das pérolas, que diferentemente de outras pedras, já tem brilho próprio,
resultado de uma substância chamada nácar (em forma de cristais de aragonite) associada a conchina.
Sobre o assunto ver: www.naturlink.pt/canais/artigo.com.br .
8
Pois a maioria dos negros que viviam da cultura de subsistência, foram expropriados pelos grandes
fazendeiros, que foram incentivados a ocupar a região pelas políticas nacionais, como a Pólo-noroeste.
Essa expropriação desencadeou uma luta encabeçada pelas mulheres, que através da memória resguardam
práticas culturais e as utilizar como estratégia frente a imposição de alguns migrantes.A respeito do
assunto ver: SILVA, Silviane Ramos Lopes da. A natureza das Pérolas Negras; construções de
13
externam através de sua afirmação étnica, de negras mulheres. È na procura de relatos
pérolas das pérolas que o texto se movimenta. Faço uma analogia, entre as
madrepérolas, e a senhoras ( anciãs) da comunidade, que tem todo um brilho ao narrar
suas incontáveis experiências.
Para compreender melhor sobre essa comunidade tradicional, torna-se
necessário passearmos pelo tempo... e narrar a respeito da criação de Vila Bela, e sua
constituição enquanto comunidade negra.
Nos espaços de luta delineados pelas mulheres visamos registrar a relação das
mulheres negras com o processo de afirmação do ponto de vista étnico, e suas resignificações para conviver em um espaço também habitado por grupos étnicos que
chegaram juntamente com as frentes de expansão9. Na constituição dessa narrativa
foram aparecendo novos elementos que á medida que configurava-se a escrita10 também
remontavam uma nova versão das histórias vilabelenses.
Tendo em vista que na última década do século XX o ambiente rural e as águas,
ou seja, o rio tem sofrido grandes agressões causadas pelo homem, este trabalho traz
ainda como tópico a questão da preocupação ambiental por parte da comunidade negra
de Vila Bela, uma comunidade rústica11, que tem suas preocupações com a preservação
das águas e do meio ambiente, que em virtude do processo de expropriação, trouxe
algumas práticas do campo para os quintais da cidade. Percebemos dessa maneira o
quão é importante a natureza para a cultura da comunidade, nesse sentido da relação
entre o campo e a cidade e suas práticas herdadas, sobretudo das danças, rezas e santos
que este texto pretende registrar, através dos relatos de memória a importância dessa
identidades entre o campo e a cidade. Deptº. de Sociologia e Ciência política. Monografia de
Especialização, Cuiabá : UFMT/ICHS, 2005.
9
Durante a escrita, em especial nos relatos orais, esses grupos étnicos da frente da expansão são
identificados como “o outro” “os de fora”, que na analogia são os corpos estranhos, que no processo das
re-significações são cobertos pelas madrepérolas. Pensar a formação das pérolas, é pensar na
reconstituição comunitária vilabelense, que numa relação de interação e conflito acabam criando
estratégias para protegerem sua cultura, bem como as conchas e/ou mexilhões expelem substâncias para
se protegerem. Em meio as fronteiras sociais e étnicas encontram uma maneira de conviver com “os seus”
e “os outros”.
10
Nesse sentido, autores como Michel de Certeau Op. Cit., 2002 e CHARTIER, Roger, Op. Cit., 1988,
foram fundamentais, o primeiro por fazer primar às regras acadêmicas e o segundo por conceituar
representação, muito recorrente nesse texto; ambos, subsidiam teórico- metodologicamente este trabalho.
11
Comunidade rústica ou cultura rústica, esse conceito é compartilhado com a pesquisadora Maria Isaura
de Queiroz e de Antonio Cândido de Melo e Souza. Pois ambos referem - se à vida caipira de ser, a vida
do campo, das culturas tradicionais, embora em alguns outros pontos um conteste o outro, nas obras:
CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Ed. Duas Cidades, 1982 e PEREIRA DE
QUEIROZ, Maria Isaura. A dança de São Gonçalo, fator de homogeinização social numa comunidade do
interior da Bahia, In:Revista de Antropologia, vol. 6, n°1, São Paulo: Junho de 1958-b.
14
interatividade dos espaços. Ainda, salientar a questão da expropriação, que causa todo
um processo de transformação na coesão comunitária, em detrimento a chegada dos de
fora. Apresentamos uma discussão sobre a constituição e/ou re-significação de suas
identidades, ocorridas pelas questões territoriais que desencadearam todo um processo
de conflito interétnico durante o período cronológico de análise. Na busca de uma
cultura descolonizada, num processo de seleção e invenção, a comunidade vilabelense,
em especial as mulheres negras “encabeçam” esse processo de auto-afirmação, uma
necessidade de transculturar12 em relação ao outro.
Ainda que o período dos setecentos não seja o foco deste estudo, é necessário
que retomemos esta parte do processo histórico, para demonstrar a luta secular feminina
negra em relação a seus códigos e/ou símbolos culturais.
A criação da Vila Bela, como sede da Capitania de Mato Grosso, deu-se sob
muita expectativa, por parte da Coroa Portuguesa. Movida pela descoberta de novas
minas de ouro no século XVIII e pela ameaça dos espanhóis em se apossar da região
( da margem ocidental do rio Guaporé), a Coroa Portuguesa tratou logo de garantir seus
domínios territoriais sobre toda a região do Vale do Guaporé e, de parte da Bacia
Amazônica. Foram esses os fatores que levaram à criação da então Capitania de Mato
Grosso , através do Alvará de 09 de maio de 1748. E assim, foi proclamada, a nomeação
de um governador...
...Que fosse nomeado governador distinto e inteligente, e,
sobretudo, capaz de responder e obrar com acerto em
semelhantes casos (de contendas fronteiriças) para evitar as
desconfianças de Madri de maneira que torne a Colônia de
Mato Grosso tão poderosa que contenha os vizinhos em
respeito e sirva de antemural a todo interior do Brasil.13
12
O termo transculturar, originalmente foi determinado pelo cubano Fernando Ortiz, por volta da década
de 1940, mas Angel Rama, retomou o conceito nos estudos literários Hispano- Americanos, na década
1980. Transculturação, é a necessidade de auto-afirmação face às culturas intervencionistas. A respeito do
assunto, recomendamos a obra de PRATT. Mary Louise. Os olhos do Império, onde tomamos como
referências conceituais às análises colocadas pela autora, utilizada correntemente no corpo do texto.
Ainda sobre o assunto ver: RAMA, Angel. Transculturácion narrativa de América Latina. Siglo XXI,
México,1982.
13
CANAVARROS, Otávio. O poder Metropolitano em Cuiabá (1727-1752). Cuiabá: EDUFMT, 2004.
Não podemos esquecer de que nesse período, os incentivos eram enormes, concessões de terras e outros
incentivos fiscais eram dados com o objetivo de povoar e garantir as fronteiras dessa América Portuguesa.
Ainda é pertinente registrar que os incentivos eram dados, por conta da inospitabilidade do lugar, das
famosas febres e enchentes, relatadas por viajantes cronistas. Sobre o assunto ver: JESUS, Nauk Maria
de.A Arte Médica Na Região Central Da América Do Sul.In: ROSA,Carlos Alberto & JESUS, Nauk
Maria de. A terra da conquista: história de Mato Grosso colonial. Cuiabá: Ed. Adriana, 2003. A tese de
doutoramento de Leny Caselli, é um convite interessante para quem quer saber mais sobre o Mato Grosso
15
A sede da Capitania de Mato Grosso, a partir do ano de 1752, por determinação
Régia da Coroa, foi erguida com seus traçados projetados e pensada para ser sede da
capitania. Assim, a população que vivia nos arraiais, se viu forçada a ocupar este espaço
em construção, para assegurar o território, as minas e a demarcação dos tratados14. E
para o Vale do Guaporé, foram trazidos homens, mulheres, brancos, negros,
degredados, quem quisesse vir para a região das minas, que através dos incentivos
fiscais dados a população, garantia também a fronteira.
Em grandes linhas, a história de Vila Bela da Santíssima Trindade15, foi uma
cidade planejada pelos colonizadores portugueses, em meados do século XVIII, e que
obteve vários nomes antes da atual denominação16.
Um espaço dos índios17, onde por muito tempo foi liderado pelo branco, que
viria a se tornar, no século XIX território de uma comunidade de pretos18, produto e
condição de um processo de resistência que marca, de maneira singular, o passado e o
presente deste município mato-grossense.
Para esta região foram levados milhares de negros19 de origem africana, que,
submetidos à escravidão, sustentavam a economia local, trabalhando nas minas de ouro,
colonial, sobretudo, em Vila Bela (a respeito dos mitos da insalubridade), uma leitura do olhar de
Alexandre Rodrigues Ferreira.A respeito das doenças e práticas de cura, este estudo debruça seu leitor e o
faz viajarem uma nova percepção sobre o colonial mato-grossense. Ver: ANZAI, Leny Caselli. Doenças e
Práticas de Cura na capitania de Mato Grosso: O olhar de Alexandre Rodrigues Ferreira.Tese de
Doutoramento, Brasília: UNB, 2004.
14
FILHO, Virgílio Corrêa. História de Mato Grosso. Várzea Grande: Fundação Júlio Campos, 1994.
Sobre a importância dos tratados, e dos poderes constituídos em Vila Bela, a obra de CANAVARROS,
traz inúmeros documentos sobre os domínios portugueses na capitania, sobretudo nos primeiros anos. Ver
CANAVARROS, Otávio. O poder Metropolitano em Cuiabá (1727-1752).Cuiabá:EDUFMT,2004.
15
Sobre o projeto de urbanização de Vila Bela da Santíssima Trindade, ver COSTA, Maurim Rodrigues.
Vila Bela da Santíssima Trindade- um projeto de urbanização no interior da América Portuguesa-(17341765), dissertação de Mestrado em história, UFMT,Cuiabá, 2003.
16
A cidade teve várias denominações: Vila Bela da Santíssima Trindade (séc. XVIII), Cidade de Mato
Grosso (séc. XIX), Vila Bela (séc. XX), e, mais uma vez Vila Bela da Santíssima Trindade, designação
atual.
17
Sobretudo os índios Pareci e/ou paresi, que habitavam a região, na qual também foram escravizados
pelo branco, que precisava garantir as fronteiras lusitanas.
18
Bandeira utiliza o termo pretos, porque é assim que a comunidade, em seu conjunto, se auto denominava, no momento em que foi realizada a pesquisa. Bandeira, Maria de Lourdes. Território Negro
em Espaço Branco. São Paulo, Editora Brasiliense, 1988. Esta breve recuperação da história de Vila Bela,
em especial, de sua constituição em território negro, a partir do século XIX, e, contemporaneamente
(década de 1970), em Vila Bela dos pretos, baseia-se, fundamentalmente, na obra já clássica de Maria de
Lourdes Bandeira, Op. Cit., 1988.
19
Optei pelo termo negros-negras, considerando que atualmente, ele já é de aceitação comum,
principalmente, entre as gerações mais novas. Negro-negra, do ponto de vista conceitual, é também mais
adequado para um estudo que aborda a identidade numa perspectiva étnica.A respeito dos grupos étnicos
levados para Vila Bela, o estudo de BANDEIRA, Op. Cit., 1988, destaca-se os grupos de negros CongoBenguela, Ussa, Nagô, quando em sua maioria os negros escravizados eram trazidos de outras províncias.
16
nas atividades agrícolas, e nos mais variados serviços necessários à edificação e
manutenção da cidade Real. Segundo Bandeira, não houve uma só atividade, que não
fosse sustentada pelos pretos. Este espaço planejado pela coroa, assim como as demais
Vilas da América portuguesa, teve suas particularidades, desde sua constituição. Havia
os índios que já habitavam a região guaporeana, e para a mesma foi levado um grande
contingente de homens que fizeram dos índios e, posteriormente, dos negros africanos,
mão - de - obra, para o enriquecimento dos cofres portugueses. Ainda no período de
consolidação da Vila, a população que fora incentivado, conflitava-se com a mata, a
natureza e suas dificuldades tão comuns à vida dos indígenas ali existentes.
Campo e cidade20 são categorias de análise que trabalharemos para que desta
maneira tenhamos maior clareza sobre a importância dos vários territórios para a
população negra de Vila Bela, em especial o tempo das festas. As festas de santo
aconteciam, no campo e também na cidade; partilhavam dessas práticas de festejos,
rezas e os quitutes comunitários o campo (tido como sertão, no sentido do lugar da roça,
do trabalho) e a cidade em um entrosar peculiar da comunidade. Assim, o meio
ambiente e/ou natureza tem uma relação fundamental com as identidades da
comunidade, principalmente no que se refere às comemorações, sejam elas sagradas ou
profanas.
As mulheres, nesse sentido, são detentoras de um vasto conhecimento, tanto do
sagrado quanto do profano. O rural comporta especificidades de uma identidade mais
rústica, preservada por muito tempo, até meados da década de 1970, tempo em que
aquela espacialidade passou a ser afetada pelas frentes de expansão.
A região do Vale do Guaporé não ficou imune às políticas públicas nacionais,
como “a marcha para o oeste” e a abertura das BR 364 e BR 174 decorrentes do avanço
do capitalismo21. Juntamente com as estradas vieram os migrantes sulistas, que
passaram ocupar os espaços comunais (espaço rural, sítios, chácaras) da comunidade de
negros, que frente a esta nova situação, tenderam a transferirem-se para a cidade, com a
20
Tomamos como definições e/ou categorias de análise também adotadas por Gilmar Arruda, onde o
sertão e/ou campo, é o lugar do sossego, arcaico, ao passo que a cidade é a idéia do moderno do
progresso, o lugar do político, uma divisão simbólica, em alguns casos indissociáveis.A respeito da
concepção de cidade e sertão, ver: ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões: entre a história e a memória.
Bauru - SP: Edusc, 2000.
21
A respeito do tema, ver a obra de LENHARO, Alcir. Colonização e trabalho no Brasil. 2ª. Ed.
Campinas SP: Editora da Unicamp, 1986. O autor aborda de maneira muito própria à realidade a
colonização e trabalho durante o período da “marcha para o oeste”.
17
chegada do outro22.
Importante observarmos que a transformação da mulher nas sociedades
“rústicas” se deu de forma lenta e gradual. Em Vila Bela, mais precisamente na vida
rural, não foi diferente, embora as mulheres estivessem na condição de chefe de suas
famílias ( na maioria dos casos), essa questão de se fazer reconhecer seus direitos por
vias legais aparece muito recentemente, já na década de 1990 do século XX.
Atualmente, podemos dizer, que alguns “direitos” já foram adquiridos e as mulheres
vivem um estado de maior consciência23.
Desde os tempos de Quilombo24, o ambiente de produção agrícola em Vila Bela
(realizada em sua maioria pelas mulheres) é comentada pelas crônicas de viajantes. Era
uma área de dificuldades, mais devido à organização, os quilombolas conseguiam uma
produção suficiente para a comunidade. E mais uma vez estavam lá as mulheres,
representadas pela força africana através da guerreira e rainha negra Tereza de
Benguela. O quilombo, marca de maneira singular o imaginário do povo vilabelense,
que no auge do acirramento interétnico (1970), teve como inspiração a figura de Tereza
de Benguela.
Para uma melhor compreensão da produção do conhecimento, utilizaremos
como recursos teóricos- metodológicos, bibliografia específica, que tem como objeto de
investigação a história das mulheres. São fundamentais as contribuições teóricometodológicas de autores como Michelle Perrot, Jim Scharpe, Mary Del Priore, que, de
22
Durante os relatos, a expressão “o outro”, e “os de fora”, chamava atenção, pois os narradores faziam
questão de deixar claro quem era e quem não era do lugar, de Vila Bela. Mas o outro em muitas das vezes
passou a fazer parte dos “seus”, da gente vilabelense, como veremos nos capítulos do trabalho.
23
Pelo direito à pensão alimentícia, e licença maternidade, sobretudo as jovens que oportunamente
tiveram a chance de estudar, e requerer tais direitos, repassando-os a comunidade como um todo.
24
Trata-se do quilombo do Quariterê, localizado próximo ao Vale do Guaporé até antes da divisão
territorial com Rondônia. Foi um quilombo liderado por uma mulher negra Chamada Tereza de Benguela.
Essa organização quilombola resistiu a inúmeras batidas da Coroa Portuguesa, com aproximadamente 27
anos de existência e/ou resistência, esse é um assunto que merece ser melhor estudado. Segundo estudos
de Luiza Volpato Op. Cit., no quilombo não havia só os negros, mas também índios e caburés, além de
degradados. Essa organização quase que tribal, destacava-se no âmbito da produção agrícola, o que por
muito tempo subsidiou as trocas por armamentos no referido período. Sobre o assunto Ver: VOLPATO,
Luiza Rios. Quilombos em Mato Grosso; Resistência negra em área de Fronteira, In:REIS. João José &
GOMES, Flávio dos Santos (org.). Liberdade Por Um Fio- História nos Quilombos do Brasil, São
Paulo:Cia. Das Letras, 1996. A expressão desde os tempos de quilombo, se faz presente nos relatos,
portanto uma expressão do linguajar vilabelense. Cabe destacar aqui, pela pertinência ao objeto de estudo,
o quilombo do Piolho ou Quariterê, que se estrutura durante o século XVIII, sob o comando de Tereza de
Benguela. Trazida para Vila Bela como escrava, ficou conhecida por sua atuação junto a este quilombo,
após a morte de seu marido José Piolho que, anteriormente, o comandava. Tendo dirigido este quilombo
por cerca de 27 anos, exercendo o controle deste território livre e organizando a resistência dos
quilombolas, tornou-se conhecida como Rainha Tereza. Como prova de sua resistência, preferiu a morte a
voltar a ser escrava, suicidando-se após a destruição do quilombo, em 1775.
18
algum modo, filiam-se a correntes historiográficas identificadas com a chamada Nova
História, as quais vêm abordando temas que, durante muito tempo, ficaram à margem da
historiografia. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, as mulheres sempre
participaram das ações históricas de diferentes formas e ocupando diferentes espaços.
Contudo, foi somente a partir da década de 70 do século XX, na esteira da luta do
movimento feminista, e de outros movimentos dispostos a derrubar tabus sociais e
também tabus historiográficos, que emergiu e ganhou musculatura uma produção
historiográfica especificamente voltada para o registro de uma história das mulheres25.
Esta produção, que dialoga, de modo especial, com a antropologia e a história
das mentalidades, é mais intensa nos Estados Unidos, França e Inglaterra, não por
acaso, países em que o desenvolvimento de uma corrente crítica feminista manifesta-se
com mais vigor, e tem gerado importantes estudos, baseados em uma grande quantidade
de dados novos e insuspeitos.
Mary Del Priore, chama a atenção para a contribuição de Simone de Beauvoir,
que, em sua obra clássica, O segundo sexo, já mostrava a exclusão das mulheres nas
narrativas historiográficas, afirmando que as mulheres não tinham história, não
podendo, conseqüentemente, orgulharem-se de si próprias26. Deve-se também a Simone
de Beauvoir ter explicitado a idéia de que a mulher não nasce, ela torna-se mulher, e
isto acontece no seio de uma construção histórica, na qual seu comportamento social vai
sendo moldado e determinado para o mundo.
A dimensão do surgimento dessa abordagem sobre as mulheres, e a releitura de
suas histórias, antes silenciadas, é contextualizada por Joan Scott27, que nos direciona
em relação a inúmeros desdobramentos desse universo múltiplo, que engloba mulheres
da elite, brancas, índias, negras e mestiças, em diferentes tempos. Somada a estas
informações, Perrot28 em suas obras, registra que as mulheres pareciam sempre ficar a
margem, e faz uma nova construção da história das mulheres públicas, elucidando os
feitos femininos, e mostrando-nos uma outra forma de enxergar a trajetória das
25
PRIORE, Mary Del. História das Mulheres: “Vozes no silêncio”. In: FREITAS, Marcos Cezar ( org.)
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, p. 220, (grifos meus)
26
PRIORE, Mary Del. Apud, BEAUVOIR, Simone. Op. Cit., 1998, p.217.
27
SCOTT, Joan. “História das mulheres”. In: BURKE, Peter. (org.). A escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: Editora UNESP 1992.
28
PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo, Fundação Editora da
UNESP, 1998.- (Prismas) e Práticas da Memória feminina. In: Revista Brasileira de História. Vol. 09,
N° 18. São Paulo, ANPUH, Marco Zero,1989.
19
mulheres e/ou história da mulher.
No Brasil, os estudos acadêmicos sobre a história das mulheres têm crescido
significativamente nos últimos anos, entretanto, este campo ainda é pouco explorado,
apesar da crescente produção. Os vários desdobramentos desse universo têm sido
abordados com bastante frequência, aumentando a qualidade da produção acerca da
temática. Estudos como o de Mary Del Priore,29 Selma Pantoja,30Ilka Boaventura31,
Teresinha Bernardo32, entre outras, nos direcionam sobre as peculiaridades do universo
temático, nos pondo a par do atual ritmo da produção brasileira que nos permitirá
contextualizar, num universo mais amplo, a história das mulheres de Vila Bela.
Com exceção das obras de Pantoja, que têm um enfoque mais diretamente
atrelado ao que este estudo se propõe, as demais autoras, embora não tratem
especificamente da afirmação da identidade étnica, registram com propriedade histórias
de seus cotidianos e as particularidades das categorias femininas, imaginários, rituais
enfim, situações do universo feminino. Do mesmo modo, estudiosos do cotidiano
feminino33 serão destacados pois permitem visualizar o crescimento desta produção, na
medida em que um grande número de pesquisadores passa a escrever a história dos
vencidos34.
No universo dos estudos sobre a história das mulheres no Brasil, é fundamental
destacar, na perspectiva de nossa proposta, as obras já citadas de Selma Pantoja e Ilka
Boaventura35,Teresinha Bernardo36, que discutem especificamente problemáticas
relacionadas às mulheres negras, suas trajetórias e sua relevância na composição social
29
PRIORE, Mary Del ( org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto ,2001.
PANTOJA,Selma. Nzinga Mbandi: mulher, guerra e escravidão. Brasília: Thesaurus, 2000.
31
LEITE, Ilka Boaventura. Antropologia da Viagem: Escravos e libertos em Minas Gerais no Século
XIX. Belo Horizonte, Editora UFMG, 1996.
32
BERNARDO, Teresinha. Negras, mulheres e mães: Lembranças de Olga de Alaketu. Rio de Janeiro:
Pallas/ Edusc, 2003. A proximidade desse texto com o trabalho de pesquisa desenvolvido por mim,foi de
suma importância para um melhor entendimento acerca das práticas religiosas vilabelenses, bastante
codificadas. Com essa leitura pude observar os silêncios durantes as entrevistas, antes incompreendidos,
passei a entende-los como falas, apontamentos, como uma maneira de pedir minha paciência que ainda
não era hora de se falar.
33
As obras de Michelle Perrot, já citadas, atendem a essa necessidade de descrever o cotidiano feminino,
dando visibilidade à dimensões da história das mulheres que não apareciam na historiografia.
34
SHARPE, Jim. História vista de baixo. In: BURKE, Peter( org.). A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
35
A obra de Ilka Boaventura, embora não seja um trabalho específico sobre história das mulheres, dedica
dois capítulos ao olhar de viajantes estrangeiros sobre as negras escravas, enquanto trabalhadoras e
sedutoras, das Minas Gerais no final do século XIX.
36
BERNARDO, Teresinha, Op. Cit. 2003. Como já foi dito este estudo trouxe descobertas a respeito do
universo religioso, que passei a observar através dos relatos coletados.
30
20
brasileira. Nessa linha, são também importantes as contribuições de Dias37 que registra
o cotidiano das negras quituteiras de São Paulo, mostrando a luta que travavam pela sua
sobrevivência no espaço urbano. Outra obra que traz importantes contribuições, embora
o seu foco seja as negras escravas, é o estudo pioneiro de Giacomini38, que registra as
histórias destas mulheres no Brasil, analisando as atividades por elas desenvolvidas,
bem como as estratégias utilizadas por essas mulheres para darem melhores condições
de vida a seus filhos, portanto, subsidiando as discussões desta escrita, na medida em
que elementos apontados por Giacomini permeiam o passado e o presente das
comunidades negras.
Os trabalhos publicados na área de psicologia social abordando a questão da
identidade também apresentam grande significado no quadro de diálogos de
informações sobre temáticas femininas, mesmo que fujam do campo específico da
história. Como exemplo, citamos o estudo de Maria Salete Joaquim39, que registra a
história de vida de uma liderança feminina negra da Bahia, e analisa, através de sua
trajetória, o papel da religiosidade feminina na construção da identidade negra, e de que
forma grupos e/ou comunidades lidam com estas questões. Este estudo permite discutir
de maneira mais elaborada a questão da religiosidade na comunidade, uma vez que é
fundamental ter a compreensão do campo religioso na apropriação e re-significações
das identidades, que a todo tempo perpassa por uma troca de saberes permeados de
ritos. Nesse sentido, poderemos explorar mais, sobre um assunto tão escorregadio para
as mulheres vilabelenses. Ou seja, levando em conta as especificidades do nosso objeto
de investigação e buscando uma base empírica consistente para as nossas análises.
As contribuições dos estudos até aqui mencionados permitem dimensionar, num
contexto mais amplo, a história das mulheres vilabelenses na luta pela afirmação de suas
identidades, em um cenário de acirramento dos conflitos interétnicos, em detrimento da
questão territorial. Na produção acadêmica mato-grossense são poucos os estudos que
se debruçam especificamente sobre algum aspecto da história das mulheres. Contudo,
existem estudos que trazem reflexões importantes, sobretudo no que se refere ao século
37
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Cotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
38
GIACOMINI, Sônia Maria. Mulher e Escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.
39
JOAQUIM, Maria Salete. O papel da liderança religiosa feminina na construção da identidade negra.
Rio de Janeiro: Pallas, São Paulo: EDUC, 2001.
21
XIX. Neste sentido, destacamos a obra de Peraro,40 um estudo elaborado dentro de
parâmetros da história social e demográfica, que apresenta uma rica gama de
informações e acuradas análises a respeito do universo feminino mato-grossense do
século XIX, além de valiosas contribuições a respeito das mulheres negras e mães de
filhos ilegítimos e preciosas indicações de fontes de pesquisa a serem exploradas. Em
seu estudo, Peraro ilumina e dá visibilidade aos espaços da luta feminina em Cuiabá,
nesse período, destacando a liderança das mulheres como chefe de famílias, e a maneira
como lidavam com a problemática dos filhos bastardos, em uma sociedade de fronteira,
com uma forte presença militar.
É pertinente somarmos a esse panorama da produção local o estudo de
Volpato41, que nos descreve a situação dos escravos em Cuiabá, suas privações, a
identidade firmada, suas relações com outros segmentos da sociedade cuiabana da
segunda metade do século XIX. No tocante ao Quilombo do Quariterê, Volpato42
escreve um importante artigo sobre a história de resistência dos negros, índios e caborés
que habitavam o lugar, enfim, o cotidiano de negros e negras no universo escravista do
período. Para o século XVIII, o estudo de Silva,43 em muito contribui nas questões da
compreensão sobre a situação da população vilabelense, com fontes demográficas
importantes, e análises relativas à miscigenação e outros aspectos da problemática
étnica.
Na historiografia sobre Vila Bela, destaco, inicialmente obras que, embora não
tratem especificamente das mulheres, as enfocam num contexto ampliado da história da
comunidade negra desta cidade e, portanto, trazem várias informações para a
reconstrução da história das mulheres. Apontando inclusive para a visibilidade de
práticas femininas, engajadas numa das dimensões mais importantes da luta pela
afirmação da identidade étnica, que é a da preservação das práticas culturais negras.
Neste sentido, como já mencionado, o estudo mais importante é o da
antropóloga Maria de Lourdes Bandeira,44 referência fundamental para esta pesquisa, na
40
PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: Família e sociedade em Mato Grosso no século XIX.
São Paulo: Contexto, 2001.
41
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá- 1850-1888.
São Paulo, Editora Marco Zero, Cuiabá: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso,1993.
42
Ver:VOLPATO,Luiza Rios Ricci.Quilombos em Mato Grosso- Resistência negra em área de fronteira.
Op.Cit.,1996.
43
SILVA, Jovam Vilela. Mistura de Cores: política de povoamento e população na capitania de Mato
Grosso, século XVIII. Cuiabá, Editora da UFMT, 1995.
44
BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território Negro em Espaço Branco. São Paulo, Ed. Brasiliense,
1988.
22
medida em que reconstitui a história da formação da comunidade negra e aborda o
período que interessa mais diretamente a este estudo. Pontualmente, traz aporte sobre o
papel da mulher, registrando as atividades do cotidiano. Esta é uma temática pouco
trabalhada na historiografia mato-grossense. De fato, na produção historiográfica
regional, são raros os estudos que enfocam a presença das mulheres em Vila Bela.
Maria de Lourdes Bandeira e Taunay45 refletem sobre a reconstrução da espacialidade
vilabelense, na qual os pretos fazem desse lugar seu território.
Uma outra pesquisa de grande valia, é o estudo de Marlene Gonçalves46 sobre a
trajetória política de uma mulher negra, que deixou legado de atuação social,
envolvendo as questões educacionais da comunidade negra de Vila Bela. Esta autora
considera que a mulher vilabelense se destaca por sua visibilidade social, advinda de seu
engajamento no cotidiano da comunidade. Todavia, não enfoca especificamente a
questão da identidade étnica no universo feminino. Para somar a esta gama de
pesquisas, o trabalho de Leite47, dá visibilidade á tradição oral da comunidade, traçando
um perfil da sociedade ágrafa e o processo da educação, cuja investigação foi de
fundamental importância na construção de minha pesquisa. Além do autor ser filho48 da
comunidade, a problemática da oralidade é muito bem elaborada, enquanto tradição
oral, onde as vozes ocupam os espaços devidos.
Além desse suporte bibliográfico, temos como referência metodológica às
diretrizes da história oral49, tendo como propósito visibilizar o registro da história dessa
comunidade, reconstruído através da oralidade. Cientes da importância da fonte oral e
de sua produção enquanto documento, partilhamos com Guimarães Neto, ao dizer: que
45
TAUNAY, Antony de E. A cidade do ouro e das ruínas. Mato Grosso - Antiga Villa Bella. Segunda
edição, São Paulo: Ed. Melhoramentos, 1981. Esta obra aborda o auge de Vila Bela, no período colonial,
e sua decadência no período imperial. Deve-se a Taunay muito do imaginário sobre Vila Bela como
cidade decadente.
46
Marlene Gonçalves. Viva Bela Verena: a saga de uma professora negra na memória de uma
comunidade da mesma cor. Ceilândia, DF: Idéa Editora, 2000.
47
LEITE, Acildo da Silva. Uma Pedagogia da Oralidade: Os Caminhos da Voz em Vila Bela.
Dissertação de Mestrado em Educação– Cuiabá: IE, UFMT, 2002. Com quem eu tive a oportunidade de
aprender muito sobre a oralidade vilabelense, e oportunizada ainda no ato de transcrever e participar de
alguns momentos de sua pesquisa.
48
Importante registrar que durante a pesquisa de Acildo Leite, fiz parte de algumas de suas entrevistas,
transcrevendo-as, e cada vez mais tomando gosto pela metodologia de história oral. A expressão filho de
Vila Bela aparece freqüentemente durante os relatos, uma espécie de identificação para aquele que é
nascido ou adotado pelos moradores da cidade.
49
E como referência, incessantemente farei diálogos com os trabalhos de TORRES, Antonio Montenegro,
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz e BOSI, Ecléia. Pois são estas as diretrizes, que proporcionam
compreender com mais propriedade, a importância da oralidade para a comunidade, e respalda minhas
análises diante dos critérios seletivos dos depoimentos que usarei no decorrer da escrita/análise.
23
a importância das fontes orais enquanto instrumento de pesquisa reside na sua
compreensão enquanto texto. Levando em consideração no relato, os desejos,
reprodução de modelos, fugas, um olhar através do tempo, que interpreta e decifra,
revelando e permitindo a transmissão de um tempo a outro50.
Utilizarei como instrumento, os depoimentos orais de mulheres da comunidade
negra de Vila Bela, e diante dos relatos analisarei quais os elementos simbólicos são
produzidos por estas mulheres, que se apresentam ao avesso daquilo que lhe é proposto
cotidianamente. Na presente escrita estaremos fazendo análises dos relatos de oito
depoentes51, embora tenhamos muitas entrevistas, o critério foi mesclar a memória dos
mais velhos com os da meia idade52, para termos dimensão da importância da tradição
oral, na composição da identidade étnica.
Além dos relatos de memórias e histórias de vidas o trabalho conta ainda com
dados do IBGE, fontes iconográficas, alguns fragmentos de jornais e manuscritos do
século XVIII53, como por exemplo livros de receitas e despesas, documentos avulsos e
50
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Grupiaras e Monchões: Garimpos e Cidades na História do
Povoamento do Leste de Mato Grosso-Primeira metade do século vinte.Tese de Doutoramento(
mimeo),São Paulo: UNICAMP, 1996, p.43-45. Ainda a respeitos da metodologia de história oral, ver:
MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e Memória: a cultura popular revisitada. 3ª ed., São
Paulo: Contexto, 2001. Sobre diretrizes de história oral: ALBERTI, Verena. História oral: A experiência
do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990. e a já clássica obra de BOSI, Ecléia.
Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. São Paulo: Queirós, 1995.
51
São elas, a senhora, Gregória Marques Ramos ( conhecida como D. Góia, e/ou Tia Góia), Damiana
Frazão de Almeida (já falecida), Maria das Dores Ramos Lopes da Silva, Matimiana da Silva (já falecida)
Depoimento cedida por Acildo Leite da Silva, Manoel Ricardo Ramos, D. Eugênia Mendes, D. Paula
Fernandes, Claudia Maria Ramos exímios narradores, nos contam uma outra faceta da história. Os
depoimentos serão atualizados ortograficamente, para uma maior compreensão dos relatos, tendo em vista
que Vila Bela, tem um linguajar muito próprio. Alguns termos se manterão conforme a fala, sendo fiel a
memória das senhoras, mas sempre acompanhada de uma nota explicativa, por conta da peculiaridade
lingüística. É pertinente registrar, que no capítulo III, onde abordaremos especificamente a temática da
religiosidade, alguns depoimentos não foram autorizados que colocassem os nomes, nesse caso farei a
utilização de codinomes, por se tratar de assuntos sigilosos pela comunidade.
52
A longevidade é uma característica da comunidade vilabelense, para tanto optei por diferenciar mais
velhos de meia idade, sendo considerados de meia idade aqueles até 70 anos de idade aproximadamente,
acima dessa faixa, são chamados como mais velhos da comunidade. Ao invés de utilizar a expressão
mais velhas, poderá no decorrer da escrita aparecer o termo matriarcas, as detentoras dessas sabedorias,
sobre os remédios caseiros, parteiras, benzedeiras.
53
É pertinente enfatizar mais uma vez, que tenho a consciência de que esse não é um trabalho do período
colonial, mas, no entanto se faz necessária uma re- leitura do referido momento, para compreendermos
mais claramente esse processo de resistência e re-significações da identidade. Ainda por ter feito um
levantamento documental significativo do período, quero fazer notar, que este material caso não seja
utilizado em sua totalidade, por critérios metodológicos, esboçaram subsídios para futuros estudos, no que
toca a problemática das mulheres negras. Não pretendo fazer comparações sobre a atuação das mulheres
no período colonial, mas compreender através da memória feminina, hoje, como elas se apropriam do
passado, das tradições em pról da afirmação da identidade étnica, haja visto que os costumes são
repassados através da oralidade, e elas mencionam fatos do passados para ilustrarem seus ensinamentos.
24
alguns fragmento de posturas da Câmara em Vila Bela, mais especificamente sobre os
festejos.
Traçar o perfil da oralidade de Vila Bela representa um desafio muito instigante
ao pesquisador. Por se tratar de uma comunidade que viveu parte de sua história em um
relativo isolamento do mundo, tem o que é de mais peculiar e significativo nessas
sociedades, à oralidade que deu e dá sentido a tudo e a todos. Essas vozes significaram
para todos aprendizados na escola da vida, naquela região, sua própria memória,
imbuída de toda sabedoria necessária à sobrevivência e perpetuação dessa gente.
Essa tradição oral carrega e transmite todas as experiências dessa comunidade: ás
do mundo religioso, seus santos, suas devoções, suas rezas, milagres, e ás do mundo
natural. E também com as experiências do lazer e do divertir, que em Vila Bela passa,
especialmente e principalmente, pelas festas realizadas aos santos54.
A dissertação em desenvolvimento apresenta-se inicialmente da seguinte forma:
Introdução, onde traço um breve histórico de Vila Bela, desde os setecentos até o ano de
2000, fazendo diálogo com os teóricos que subsidiaram a escrita ao longo dos capítulos.
No primeiro capítulo Vila Bela, Entre Mexilhões e Corpos Estranhos:
Lembranças e Resignificações de uma Comunidade Negra, trataremos das lembranças e
as re-significações que a comunidade vilabelense teve de fazer para reconstruir um
território, deixado pelos colonizadores portugueses. Esta escrita esboça a importância do
território e das águas
que marcam de maneira significativa o cotidiano feminino.
Ressaltando que para essa comunidade de ex-quilombolas, através da memória,
sobretudo, das mulheres, re-significam cotidianamente sua cultura, com o objetivo de
continuar a reproduzir as práticas de seus ancestrais.
Por sua vez, no segundo capítulo Brilhando entre a Cidade e a Roça:
Madrepérolas e Aragonites, observaremos a relação da natureza e a construção, ou reapropriações da identidade negra, tendo como suas principais guardiãs, as mulheres
negras e a importância dos espaços, nas práticas culturais, da cozinha à sala, arte de
fazer no cotidiano. Como salienta o título, brilhando em meio às dificuldades do dia- a
dia vilabelense.
54
As particularidades das festas, são os signos emitidos de uma matriarca para outra, no processo de
organização da chamada festança, que exprime de maneira singular, anulando inclusive conflitos internos
para o externar de sua identidades ao público visitante.Ver BANDEIRA, Maria de Lourdes. Op. Cit.,
1989, p. 183.
25
E no terceiro e último capítulo, intitulado, Pérolas Negras, Negras Mulheres: No
Brilho das Festas e no Cantar aos Santos, a Religiosidade, apresentaremos aqui o
aspecto da religiosidade: a relação das mulheres com a natureza e seus santos, pois, as
festas de santos, bem como seus ritos, são de fundamental importância no processo de
re-elaboração e re-significação das práticas cotidianas na comunidade negra de Vila
Bela. Veremos alguns mecanismos e estratégias das quais essas mulheres lançam mão,
para emitir seus códigos e configurar o poder e seus bens simbólicos. O referido
capítulo, permitirá, ao leitor conhecer um pouco mais sobre os rituais sacrificiais, e as
influências das religiões afro, e como isso é repassado às jovens mulheres da
comunidade, em uma mistura de culto e aprendizagem.
26
CAPÍTULO I- VILA BELA, ENTRE MEXILHÕES E CORPOS
ESTRANHOS:
LEMBRANÇAS
E
RESIGNIFICAÇÕES
DE
UMA
COMUNIDADE NEGRA
A propriedade fundiária, mesmo a dos negros, retaliou
o território étnico, branqueando a terra e o território
negro historicamente conquistados55.
Neste primeiro capítulo, apresentaremos um breve histórico sobre Vila Bela e
trataremos das lembranças e as re-significações que a comunidade vilabelense teve de
fazer para reconstruir um território, reerguendo escombros de ruínas e estigmas,
deixados pelos colonizadores portugueses56. Dessa maneira, esta escrita esboça a
importância do território e das águas para essa comunidade de ex-quilombolas, que
através da memória, sobretudo, das mulheres, re-significam cotidianamente sua cultura,
com o objetivo de continuar a reproduzir as práticas de seus ancestrais. Veremos ainda a
importância dos ensinamentos dos mais velhos, de maneira a percebermos a relação de
educação familiar da comunidade.
Ao longo do texto estarão identificadas as atuações dessas mulheres, tanto nos
territórios quanto nas águas da comunidade, de maneira que consigamos visualizar a
importância dessas memórias, das ricas narrativas que pudemos contar na constituição
desse trabalho. Ainda, esses tópicos enfocam as tensões sociais vividas pela
comunidade, com a chegada da frente de expansão no Vale do Guaporé, e como as
alterações de território refletiram e refletem nessas transculturações, re-elaborações e
representações das identidades afro. Veremos as fases de aprendizados e as relações de
trocas simbólicas no cotidiano.
55
Bandeira, Op. Cit.,p.44.
56
Refiro-me aos estigmas de ex-escravos e da condição de cidade insalubre, relatadas por vários viajantes
que passaram pela região. A respeito do assunto ver: JESUS, Nauk Maria. Op. Cit, 2003.
27
1.1 – EM TERRAS DE MEXILHÕES: O TERRITÓRIO VILABELENSE
A terra era de todo mundo, era de Nosso senhor57!
Historicamente a população vilabelense, desde o século XIX, vem sofrendo pela
questão da terra, por conta de reconstituir uma cidade que foi abandonada juntamente
com a transferência da capital da província58. Esses negros e negras, foram constituindo
territórios, tanto no campo quanto na cidade e na década de 1960 em consonância com
as políticas públicas nacionais se viram59 expulsos de suas terras, mais uma vez tiveram
que re-apropriar tempo e espaço, e viverem de vez na cidade, sobre os paralelepípedos,
que calçam até hoje as ruas de uma cidade planejada, abandonada e re-apropriada por
essa gente.
A integridade do território60 vilabelense foi mantida até meados do século XX;
incluía todo o atual município de Pontes e Lacerda e boa parte do território do Estado de
Rondônia. Em 1911, ocorreu a primeira perda decorrente da formação do município de
Santo Antônio do Rio Madeira localizado no Estado de Rondônia. Com a criação do
57
Trecho do depoimento de seu Manoel Ricardo Ramos, em entrevista realizada em dezembro de 2003.
A transferência de capital da província, culminou também com a transferência do aparelho burocrático,
e junto com ele seus encarregados, abandonando a sede da província, rumo a Cuiabá, a nova capital da
província mato-grossense. Observamos nesse sentido que a decadência econômica da região, não se deu
em função da escassez da exploração aurífera, mas sim pelos altos custos do aparato minerador, o
fechamento da Companhia Comercial do Grão Pára – Maranhão, a respeito do assunto ver :GARCIA,
Romyr Conde. Mato- Grosso ( 1800-1840): crise e estagnação do Projeto Colonial. Tese de
Doutoramento. São Paulo: FFLCH/USP, 2003.
59
A pesquisa de Marlene Gonçalves, que trata da história de uma mulher que deixou um grande legado
social, Verena Leite de Brito, aponta que até a década de 1970, Vila bela, era uma região sem expressão,
tanto no contexto regional como nacional, por conta da dificuldade de acesso até o referido município.
Ainda segundo apontamentos da autora, a intensidade migratória ocorre entre as décadas de 1970 a 1980,
quando se instalam em Vila Bela os órgãos públicos como Incra, Bancos, correio, gerenciadas pelos
brancos. GONÇALVES, Marlene. Op. Cit., 2000, p.38-39. Durante as entrevistas observei a ansiedade
em dizer a respeito de que por muito tempo foram os brancos que ficavam a frente dos órgãos
governamentais. Os depoentes de maneira geral pareciam querer apontar tudo que eles achavam injusto,
como por exemplo, o cargo de prefeito, que trataremos mais a frente nesse capítulo.
60
A extensão do território vilabelense e/ou base geográfica, se estende por uma área de 47.207 Km,
compreendendo o vasto Chapadões dos Parecis e/ou Paresi configurando-se também como divisor de
águas da bacia Amazônica e Platina. A visualização é da imagem atual do município compreendendo
todas as áreas de direito territorial. Na distribuição territorial do período colonial, a região e/ou termo de
Vila Bela compreendia também a região do atual Estado de Rondônia.
58
28
território federal do Guaporé, hoje Rondônia, Vila Bela foi desmembrada da extensa
faixa situada abaixo do rio Cabixi, afluente da margem direita do rio Guaporé. Até por
volta de 1978 o município era subordinado à Comarca de Cáceres, passando a fazer
parte da Comarca de Mirassol do Oeste e novamente em 1980, voltou a ser subordinada
à Comarca cacerense, pela divisão judiciária do estado de Mato Grosso. Por conta de
sua localização em área fronteiriça, com a Bolívia, Vila Bela ainda era denominada
Mato Grosso61, foi definida como área da segurança nacional. Vejamos algumas
alterações que ocorreram no território desde o século XVIII, até meados dá década de
1970, quando há um fluxo maior de migrantes para a região. Para termos uma dimensão
do município, tomamos os mapas abaixo e uma imagem feita pelo programa Google
earth.
Desenho: Luciano Marcos Andrade Fávero.
Fonte: IBGE.-Cod.5105507
Essa é a configuração atual do núcleo urbano vilabelense, área da pesquisa.
61
Como já mencionado, houve várias alterações quanto à denominação da cidade, desde sua fundação até
denominação atual, Vila Bela, Matogrosso, e novamente Vila Bela. A respeito ver tese de doutorado de
ROSA, Carlos Alberto. A vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá ( Vida urbana em Mato Grosso no
século XVIII: 1722-1808). Tese de Doutorado, São Paulo: USP, 1996.
29
Na imagem acima podemos observar uma forte listra branca; essa marca localiza
a BR 174, que liga o município de Vila Bela ao município de Pontes e Lacerda.
O desmembramento de alguns distritos, como o caso de Pontes Lacerda,
possibilitou uma ampliação significativa do quadro demográfico de Vila Bela na década
de 1970. Essas mudanças se deram por conta das pressões das frentes pioneiras62 que
aumentaram os fluxos migratórios de outras regiões do país para a região do Vale do
Guaporé. Como bem nos apresenta Martins:
A fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. Isso que
faz dela uma realidade singular...Mas o conflito faz com que
a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de
descoberta do outro e do desencontro63.
62
MARTINS, José de Souza, nos apresenta um novo modo de designar “frente pioneira” levando em
conta as condições das populações que já habitavam o lugar e o empresariado que chega. O autor trata de
maneira mais específica os conceito e/ou designação de frente pioneira e frente expansão. Ver: Cap. 4- O
tempo da fronteira: Retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da frente de expansão e a frente
pioneira,p.145-150.In: Fronteira: A degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Ed.
Hucitec, 1997.
63
MARTINS, Op. Cit., 1997, p.150. Ainda sobre fronteira, Martins nos diz; è na fronteira que se pode
observar melhor como as sociedades se formam, se desorganizam ou se reproduzem p. 12.Sobre
apropriação de terras na região do vale do Guaporé, ver: CABAN, Lea. A fronteira do Guaporé: O
processo de apropriação de Terras e a Organização do espaço agrário. Rio de Janeiro: Dissertação de
30
Essa participação de migrantes no quadro demográfico da zona rural, provoca
alteração ainda hoje nos dados da área urbana. Durante o ano de 1976, o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA, cadastrou 95% da área total,
como sendo latifúndio e aproximadamente, 0,2% das áreas de minifúndios.
Os entrevistados, em suas narrativas sempre relatam sobre a terra, a respeito do
que fizeram com elas, como podemos constatar no depoimento que segue:
Então filha, a terra aqui era de todo mundo, morava assim de
família, plantava de muxirum, colhia assim também, e pra fazer
farinha, cata milho, era do mesmo jeito...tinha muita terra muita
fartura, aí tomaram da gente, das famílias que moravam na terra,
então, quem morava nesses lugares tiveram que trabalhar de
empregado, se não quizesse passar fome...quem sabia da tal
escritura ficou com as terras, quem não, foi plantar no alheio, mas
não è! Disque era terra de nosso senhor, aí chegou esses do sul,
ficaram com tudo, agora se quizer ter fartura, cria no quintal64.
A terra de nosso senhor, como se referia a população a respeito da terra
comunal, passou a ser território de tensões sociais. A terra que não tinha dono e era de
todo mundo, passava então a ser propriedade dos grandes fazendeiros, que vieram com
o fluxo de migrantes carregados pelas frentes pioneiras65.
Por conta dessa invasão, mais precisamente em meados da década de 1970 as
estruturas comunitárias foram quase que completamente reformuladas, pois essas
pessoas, que moravam, plantavam e sobreviviam da terra, tiveram que se submeter ao
trabalho imposto pelos grandes fazendeiros, e morar na cidade, e em seus quintais,
reproduzir pequenas roças, para o sustento familiar. Nos anos posteriores os quintais das
casas da cidade, passaram a representar aquele espaço vivido no sítio/roça, cultivam
Mestrado em Geografia, UFRJ, 1999. A pesquisadora aponta as ocupações do espaço e identifica as
atuais territorialidades que se constituíram ou estão em processo de consolidação.
64
Depoimento realizado com Damiana Frazão de Almeida, em Julho de 2000.
65
As políticas nacionais foram “inspiradas” na teoria do americano TUNER, Frederick Jacson. “ The
significance of the Frontier in American History”. In: TAYLOR, Georges Rogers (ed.). The Turner
Thesis Concerning the Role of the Frontier in american History. Boston:D. C. Hearth and Company,1952,
p 02. com sua “válvula de escape”, as autoridades nacionais interpretaram e distorceram tal teoria,
propagando a política, dos “espaços vazios”, anulando a presença de indígenas, bem como das populações
rústicas.Como bem salienta Guimarães Neto, estes desdobramentos territoriais surpreendentes, atendem a
interesses políticos e econômicos, são resultados de alianças de grupos políticos nacionais e
transnacionais, no processo de conquistas e domínio dos novos espaços. Ver: GUIMARÃES NETO,
Regina B. Cidades de Fronteira. In: Revista Relações Cidade- Campo: Fronteira, Goiânia: Ed. UFG,
2000.
31
hortaliças, algumas frutas como, ata, seriguela, goiaba, laranja entre outros. Além disso,
há criações de galinhas e porcos, para garantir a sobrevivência familiar, a natureza está
sendo totalmente alterada por monoculturas, e, só indo aos quintais das mulheres negras
da comunidade, para termos noção, ou ainda visibilidade de como era a vida na roça66.
Importante frisar essa natureza devastada, essa gente expropriada, que teve de fazer
dos quintais de suas casas na cidade, também o espaço da sobrevivência, vivendo de
suas hortaliças e criações, as mulheres tomando conta, à medida que seus companheiros,
buscavam outras formas de ganhar a vida67. A distribuição na vida do campo era
comunal, e todos podiam prosperar. Eram famílias, e essas famílias que tiveram que
redimensionar territórios, devido ás políticas públicas que excluíam os não brancos,
obrigando-os a viver, quiçá, nos quintais das cidades, quando não empregados de suas
próprias terras.
A posse da terra, portanto, garantia uma vida igualitária às unidades familiares,
como podemos observar mediante a abordagem de Bandeira:
A comunidade de preto, para a garantia de sua sobrevivência
e reprodução, fundava-se sobre uma ordem igualitária, tendo
como instrumento de garantia de sua manutenção a
cooperação e a reciprocidade. Uma família de pretos
precisava contar com outra, para que todos pudessem
subsistir. Todas juntas contavam igualitariamente com a
terra, como garantia comunitária de meio de vida. A
etnização do território de dentro para fora e de fora para
dentro, viabilizou a constituição da comunidade. Como a
etnia, o território também era comum68.
A zona rural, assim significava a extensão de uma etnização que já acontecia na
cidade, o cotidiano do sítio garantia a sobrevivência em uma luta financiada pelo
capitalismo, que de rural nada tinha.
66
Utilizarei com maior frequência a denominação roça, por conta de aparecer com bastante intensidade
nos relatos orais, mas campo, roça, sítio e sertão são sinônimos para a comunidade, há casos de em uma
mesma frase dizerem: roça e sítio ao mesmo tempo.
67
Iam ganhar a vida atrás de pele de bicho, e posteriormente da poaia ou ipecacunhanha, assim passavam
dias e dias nas matas, e de fato quem chefiavam os lares eram as mulheres, que ficavam meses sem ver
seus companheiros. Ipeca ou poaia, é uma espécie de planta, da qual extraiam a raiz que servia de
remédio na cura da tuberculose, e que até a década de 1970, havia significativa exploração na região de
Vila Bela. A esse respeito ver o trabalho de Cleonice Aparecida de Moraes. Histórias e Trajetórias:
Poaeiros em Barra do Bugres. Dissertação de Mestrado em História. Cuiabá: UFMT, 2004.
68
BANDEIRA, Op. Cit., p.117
32
Com a pavimentação da BR-364, a exploração da flora69 se tornou ainda maior,
pois a rodovia viria diminuir custos, e aumentaria a extração de madeira na região do
Vale do Guaporé. Quando da abertura da BR, na década de 1970, as reservas naturais, e
florestas da bacia do alto Guaporé, eram pouco exploradas; a rodovia constituiu-se,
então, em mola propulsora, para incentivar, as explorações de madeira. Nesse mesmo
período, instalaram-se no município, duas indústrias de madeiras, que forneciam
laminados e madeira serrada. Com a construção da ponte sobre o rio Guaporé, que dá
acesso a um lugar denominado aeroporto, em alusão ao antigo parque de aviação e/ou
pouso, a exploração de madeira cresceu em um ritmo tão rápido, que os reflexos dessa
degradação já podem ser sentidos pela população do município, em especial, por parte
das famílias que possuem pequenas propriedades próximas às áreas de exploração.
Ainda em meados da década de 1990 e até o final, a exploração ilegal de
madeira
ainda ocorria, mas esta é uma questão sigilosa entre as narrativas dos
colaboradores, por medo de represálias, daí,
quase sempre serem
escorregadios,
quando se toca nesse assunto:
Nós também arrancava árvores mas não era desse jeito como
de agora, cheio de máquinas arrancando tudo, era pra
limpar e fazer roça, e a madeira a gente usava pra lenha, na
construção das casas, tem bastante gente que tem serraria...
mas tão acabando muito rápido com as árvores, nem tem
preocupação. Abriu aquele posto fiscal do Ibama mas não
faz nada, uma vez ou outra né, que pega alguma coisa, por
isso que está desse jeito, frio, vento sul, chuva tudo fora do
tempo70
Como podemos observar, se de um lado, a terra constituiu-se no fator principal
que propiciou o crescimento demográfico no município vilabelense, de outro, foi a
principal vilã, no sentido da expropriação das famílias que viviam em áreas comunais.
Sendo expropriadas com o aval das políticas públicas71 e, como conseqüência, os
69
As espécies predominantes na região do alto Guaporé são: peroba branca, peroba preta, cerejeira, ipê,
aroeira, cedro, araputanga ou mogno e a sucupira, espécies estas visadas no mercado brasileiro, o que
estimula ainda mais a extração por parte dos madeireiros. Sobre a exploração da flora, PUHL, chama
atenção para a abertura da BR, com ela veio também outras aberturas, como o conflito agrário na região
guaporeana. Ver: PUHL, João Ivo. O tempo do grilo: Posseiros na Gleba São Domingos 1979-1983.
História da luta pela terra no Vale do Guaporé-MT,1970-1990. Dissertação de Mestrado em História,
Cuiabá: UFMT, 2003, p. 34.
70
Depoimento de Manoel Ricardo Ramos, em entrevista realizada em dezembro 2003.
71
Essa leva de grandes fazendeiros, foram atraídos pelos preços baixos das terras de boa qualidade, e
incentivados por políticas nacionais como o Plano de Integração Nacional, o PIN, bandeira do governo
33
problemas fundiários começaram a se avolumar. Bandeira assim crítica: a dinâmica do
comércio da terra, impulsionada pelo milagre econômico, imprimiu um ritmo
vertiginoso aos negócios sem a devida cobertura dos processos legais.
Tamanhas eram as irregularidades, que no ano de 1981, o INCRA criou e
instalou uma diretoria para implantar o projeto fundiário no Vale do Guaporé, com o
objetivo de regularizar as propriedades, em sua maioria, sem os títulos de posse.
O crescimento demográfico que atingia a zona rural, na década de 1980, ganha
ritmo agressivo na sede do município72, em conseqüência do crescimento econômico,
que passou a requerer um núcleo urbano, que atendesse as necessidades das políticas
nacionais, assim haveria como instalar órgãos mediadores a expansão capitalista na
região amazônica. Interesse nos negócios que precisavam ser gerenciados, sobretudo
pela necessidade das agências bancárias, para os financiamentos e créditos aos
fazendeiros.
Foram implantadas no município agências bancárias, órgãos públicos, empresas,
para dar conta do crescimento demográfico (ainda que menor que a média Estadual),
ocasionado pela questão da terra fácil, da prosperidade. Podemos observar através dos
gráficos as tênues variações da população por sexo na década de 1970. Como veremos
no gráfico que segue:
Médici, que incentivava a conquista dos espaços “vazios” na região amazônica para expandir o
capitalismo e consolidar nossas longínquas fronteiras. A respeito do sentido de longe e perto ver:
GALETTI, Lylia, da S. Guedes. O poder das Imagens: o lugar de Mato Grosso no mapa da civilização.
In: Revista de Relações Cidade e campo: Fronteiras.Goiânia: Ed. UFG, 2000.
72
Crescente para região do Vale do Guaporé, mas ainda assim estava com uma média bem inferior ao
crescimento demográfico do Estado de Mato Grosso.
34
Gráfico 1 - População de Vila Bela - MT- por Sexo ( 1970 )
Fonte: IBGE - Sinopse de Recenseamento - 1970
9496
10000
9000
8000
7000
6000
5000
4000
3000
2000
1000
0
Fonte: IBGE – Sinopse de recenseamento 1970
5165
4331
HOMENS
MULHERES
TOTAL
Nesses dados da década de 1970, e em seguida nos dados de 1991,
HOMENS
MULHERES
TOTAL
Fonte: IBGE- Sinopse de Recenseamento-1970
Nesses dados da década de 1970, e em seguida de 1991, observaremos, uma
predominância negra, rural e católica,73 porém veremos que o crescimento
demográfico74 está aquém da média Estadual.
O gráfico abaixo apresenta as variações da população rural e urbana, na década
de 1970, período este onde começamos a observar os deslocamentos entre o campo e a
cidade.
73
Como poderemos constatar nos demais dados apresentados em anexo, mediante informações das
sinopses de 1970 e 1991 do IBGE, notamos também um equilíbrio no número de homens e mulheres, na
população total.
74
È válido lembrar, que nesse período, (1970), o município contava com as áreas dos atuais municípios
de Comodoro e Pontes e Lacerda.
35
Gráfico -2- Vila Bela - MT População Rural e Urbana ( 1970 )
10000
9000
8000
7000
6000
5000
4000
3000
2000
1000
0
9496
Homens (cidade)
Homens (campo)
4759
Mulheres (cidade)
3909
Mulheres (campo)
TOTAL
422
406
Homens
(cidade)
Homens
(campo)
Mulheres
(cidade)
Mulheres
(campo)
TOTAL
Fonte: IBGE- Sinopse de Recenseamento-1970
Através dos dados, podemos observar que era praticamente eqüitativo o número
de homens e mulheres na cidade, 406 e 422 respectivamente, com pequena diferença
para as mulheres por conta de seus companheiros saírem em busca de trabalho, como a
caça, pesca e a extração da poaia75. As práticas do núcleo urbano eram re-significadas, e
as mulheres negras, em fase de acumular aragonites para dar conta das dificuldades do
cotidiano, é que faziam com que, de alguma forma, rituais, e outros costumes fossem
mantidos, mesmo com a chegada do outro. Outra questão a ser registrada, é que até a
década de 1970, as características de Vila Bela, ainda com denominação de cidade do
Mato Grosso, eram essencialmente rurais. Observamos uma predominância da
população rural sobre a urbana. Havia uma parcela da população que residia na cidade,
em quantidade muito inferior aos habitantes que ocupavam as áreas comunais nas
adjacências do município de Vila Bela. Como já dissemos, o crescimento populacional
apresentado
para
o
intervalo
de
1970-1991
é
aproximadamente
44,8%,
consideravelmente baixo, já que a média de crescimento demográfico para o Estado no
mesmo período era de 126,9%. A Sinopse de 1991, nos apresenta um significativo
crescimento demográfico de Vila Bela:. de 9.496 habitantes em 1970 para 13.693
habitantes em 1991, e um aumento da população em números absolutos, embora a
75
Em alguns casos as mulheres acompanhavam seus companheiros na extração da poaia, sendo que
várias mulheres dominavam a técnica da extração. Em uma das muitas entrevistas com D. Gregória
Marques, ela nos narrou vários episódios, nos quais a mulher e seu companheiro extraiam e depois
36
maioria ainda habitasse o campo, agora na condição de empregados, e em terras de
“propriedades privadas”76.
Gráfico 3- População de Vila Bela – MT por sexo
População rural e urbana
( 1991 )
10000
9000
8000
7000
6000
5000
4000
3000
2000
1000
0
13676
Homens (cidade)
Homens (campo)
5344
Mulheres (cidade)
4225
Mulheres (campo)
TOTAL
2023
2084
Homens
(cidade)
Homens
(campo)
Mulheres
(cidade)
Mulheres
(campo)
TOTAL
Fonte: IBGE - Sinopse de recenseamento de 1991.
Em outras palavras, o aumento demográfico ocorrido entre 1970 a 1991, em
Vila Bela, mostrou e/ou indicou uma tendência de crescimento maior no campo, ao
contrário da tendência nacional, em que o crescimento urbano superava o rural77.
Enquanto o Brasil travestia-se de urbano, o município vilabelense era rural com 69,8%
da população residindo no campo. É pertinente registrarmos, que a cultura agrícola foi
quase que totalmente alterada em função da expansão agrícola que ocorreu a partir da
década de 1970.
Uma característica muito marcante é a reprodução da roça nas casas da cidade,
uma vez que a prática de cultivo do campo já não era mais a mesma, assim alterou-se
vendiam a poaia. Como o Caso de Andreza Frazão de Almeida, que também em seus relatos sempre
lembrava do tempo de solteira, quando ia para as matas extrair a poaia.
76
Quando estas propriedades estavam regulamentadas, porque o que acontecia como já mencionado , era
a ocupação ilegal.
77
A população caracteriza-se segundo os dados do IBGE, como rural e católica, um pouco acima da
média nacional, como poderemos visualisar nos anexos. Ainda, considerando que as práticas afros estão
introduzidas em sua vida religiosa, e dificilmente alguém se declararia, praticante de candomblé ou da
37
também todo o processo alimentar. Nesse aspecto podemos observar uma preocupação
por parte das mulheres sobretudo, em plantar algumas ervas e legumes, não mais
cultivados nas grandes roças ( no campo), para que no período das festas de santo, a
festança, os quitutes estejam garantidos.
No gráfico abaixo veremos os cruzamentos dos dados em números absolutos da
população vilabelense, entre os anos de 1970 e 1990. Esses dados são importantes a
medida que nos faz perceber o processo de alteração da comunidade nos anos de 1970 e
posteriormente as estratégias que as mulheres utilizam para resignificarem a vivência, a
partir dos anos de 1990. Podemos afirmar que a década de 1990, foi maracada por
dificuldades para aqueles que habitavam o núcleo urbano, pois bancos, lojas e
repartições aos poucos foram fechando suas portas, provocando ainda mais o fluxo de
retorno a vida do campo78.
Gráfico 4 - População de Vila Bela por sexo em números absolutos
( 1970 - 1991 )
16.000
13.693
14.000
12.000
9.496
10.000
6.000
1970
7.436
8.000
5.165
6.257
1990
4.331
4.000
2.000
0
HOMENS
MULHERES
TOTAL
Fonte: IBGE- Gráfico de cruzamento de dados( 1970 e 1991 )
Uma das explicações a ser dada é que, já no final da década de 1990, devido à
falta de estrutura do município, no sentido da carência de órgãos públicos, empresas
umbanda, ainda que no decorrer do texto perceberemos uma forte ligação entre práticas africanas e
nativas, a população se auto- denomina de católicos.
78
Em uma das entrevistas com D. Damiana, ela conta sobre esse processo onde diz, que essa gente que
veio tudo foi embora, voltamo pro campo, mais nós tinha casa na cidade! Observo nesse relato a
preocupação em dizer, que voltavam para o mato, mais que a casa da cidade estava garantida, ou seja ela
e sua família tinha a propriedade no núcleo urbano.
38
privadas, foram reduzidos ao mínimo, fazendo com que as pessoas novamente
79
retornassem a vida da roça, agora na condição de integrantes de movimento sem terra,
de assentados80. È nesse contexto que os conflitos pela terra se intensificam, pois
posseiros, negros da comunidade, migrantes passam ao enfrentamento entre si, em
busca da regulamentação de títulos do território, como podemos observar, no fragmento
da reportagem abaixo, já na década de 1990:
[...]Uma Chacina onde seis lavradores foram emboscados e três
morreram, está sendo investigada pela polícia de Vila Bela da
santíssima Trindade, na fazenda Sta. Izabel, da empresa Badra S/A
onde os crimes ocorreram quinta-feira última. A região é de
conflito, com invasões81.
Nesse processo de expansão das frentes pioneiras, aquelas que representam o
setor político-administrativo, se definem etnicamente como brancos. No entanto, como
vemos durante as entrevistas, e constatações de outras pesquisas, como o estudo da
antropóloga Bandeira, a organização tradicional dos espaços era delineada pelas
comunidades de ex- quilombolas e de grupos indígenas. O direito costumeiro da terra,
fora totalmente ignorado, pois o Estado pregava o empreendimento, alicerçado na
propriedade privada e com direitos juridicamente regularizados82.
A perda de sua
territorialidade83, foi sentida, de maneira geral, por toda a comunidade: as mulheres já
não criavam os filhos com tanta fartura, pois as dificuldades eram maiores; a
expropriação dessa gente, pela comercialização da terra, modificou sobremaneira o
79
A príncipio pode parecer contraditório, mas no início da década de1990, empresas e órgãos públicos
eram em maior número, gerando assim mais empregos e o aumento da população urbana, já no final da
mesma década, órgãos do Estado, e empresas diminuiram significativamente, fazendo com que alguns,
retornassem a vida do campo, na condição dos movimentos sociais de luta pela terra.
80
O Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra ( MST ), vem crescendo muito no Vale do Guaporé,
em especial na década de 1980, onde o conflito de Terras acontece mais freqüentemente. Conforme
PUHL, A violência da ocupação cresceu ao longo da década de 1970. Seu auge,se deu entre os anos de
1980-1986, conforme os levantamentos anuais, a respeito Ver Dissertação de Mestrado de PUHL, João
Ivo. Op. Cit., 2003, p, 20.
81
Arquivo Municipal de Cáceres, Jornal: O Estado de MT - Ano: 56 n° 12.735, 04 de outubro de 1994. A
respeito do assunto de conflitos pela terra, ver dissertação de Mestrado de PUHL, João Ivo. Op. Cit. p.3268.
82
A respeito do assunto ver: Tese de Doutorado: MORENO, Gislaine. Os (Des) Caminhos da
Apropriação Capitalista da Terra em Mato Grosso. Tese de Doutoramento em Geografia, São Paulo:
1993. A autora nos apresenta um panorama sobre legalização de terras Mato - Grossenses e SILVA, Lígia
Osório. Terras Devolutas e Latifúndio. Efeitos da Lei de 1850. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.
83
Refiro-me a territorialidade da comunidade negra, e de grupos indígenas que também habitavam a
região do vale do Guaporé. Grupos étnicos como dos paresí e/ou pareci e os nhambiquara.
39
cenário do território vilabelense84. A prática agrícola foi totalmente modificada, porque
a maioria dos negros praticava o cultivo itinerante, devido a grande disponibilidade de
terras em suas áreas comunais. Assim nos narra Maria das Dores:
...Papai, queimava, porque naquele tempo queimava para
poder plantar,no sítio, mais era parente, daí as mulheres
vinham jogando as sementes, quando era época de colheita
de mandioca pegava na mufamba e milho no baquité, aquela
roça grande mesmo. Daí na outra plantação era em outro
lugar, cada vez papai falava pra ir mudando de lugar, aí
juntava aquela parentada pra fazer farinha, pamonha, e era
aquela fartura. As mulheres faziam mufambas e baquités
para auxiliar na colheita, e os homens iam buscar carne de
caça, trazia aquela variedade, paca, anta, caititu...era bom
sentir aquele cheirinho de comida lá da roça85...
Durante as pesquisas de campo, pude observar, saudosismo da época em que
esses negros e negras viviam em suas terras, em meio a fartura, por isso a solidariedade
entre a comunidade é tão presente, como eles dizem: pode não haver riqueza, mas fome
ninguém passa. A comida, ou melhor, o ato de comer é sagrado, percebemos essa
importância logo quando chegamos na cidade, havendo necessidade da comunidade em
saciar o convidado, e no sítio, isso era feito com mais fartura. As pessoas quando iam
visitar as outras, não só comiam como também levavam para a casa86.
Conforme afirmou Bandeira, a propriedade fundiária, mesmo a dos negros,
retaliou o território étnico, branqueando a terra e o território negro historicamente
conquistados. A saída dos brancos da região, como comentado, é caracterizada pelos
próprios negros, como marca da constituição de comunidade negra, portanto, a terra tem
84
Em especial foram reiventadas as paisagens da memória como nos afirma , Gilmar Arruda ao citar
SCHAMA. Segundo ARRUDA, As memórias construídas sobre os espaços geográficos possuem grande
influência na constituição dos sentimentos de indentidade nacionais ou regionais, no pensamento
político e no próprio processo de transformação dos mesmos espaços geográficos. Sobre o assunto:
ARRUDA, Gilmar. Op. Cit., 2000, p.163.
85
Depoimento de Maria das Dores Ramos, registro realizado em dezembro de 2003. Os termos mufamba
e baquité, ambos são coletores artesanais, confeccionados com palhas, sendo o primeiro para carregar
mandioca, e o segundo para carregar milho, uma pratica herdada dos negros e indígenas que habitavam
na região.
86
Recepcionar bem o convidado é uma característica dos vilabelenses, sendo assim o ato de saciar o
convidado é uma maneira de tratar bem, tamanha é a importância do significado da comida para a
comunidade. A respeito do assunto ver: MOURA, Marília da Conceição Reis de. Construções culturais
nas práticas alimentares da festança em Vila Bela da Santíssima Trindade- Mato Grosso. Dissertação de
Mestrado em História, Cuiabá: UFMT, 2005. A esse respeito ver também ALENCAR, Luzinéia
Guimarães. Misturando Sabores: Alimentação na Vila Real do senhor Bom Jesus de Cuiabá (1727-1808),
Dissertação de Mestrado em história, Cuiabá: UFMT, 2002.
40
um significado todo particular, ao passo que a legalidade da terra era de Nosso Senhor87.
Alheios aos processos legais, muitas famílias passaram por dificuldades, por perderem
seu rico e cultivado solo, e isso criou raízes na memória dessa gente, que não esquece
um só dia da covardia que fora feita, ao serem expulsos das terras que lhes eram de
direito88. Esse sub-tópico encerra-se com um depoimento, que retrata todo esse
momento histórico, e que se respalda pelas muitas memórias do período:
...Nossa era aquele mundão de terra, tudo pra aprumar, para
plantar, tempo que a gente plantava muita mandioca pra fazer
farinha e vender para as lanchas que passava em Porto Carvalho,
assim que se chamava nosso sítio...aí do nada não sei de onde,
uma gente estranha, aparece, a gente já tinha ouvido fala que
tinha outras pessoas de olho nas terras, mas como era grande ele
podiam morar ali mesmo. Mas filha, eles queriam tudo, falou que
eles tinham comprado, aí já fui pra cidade, porque a mulher tinha
casa lá, daí fomos, lá no nosso quintal que se criava de tudo, tinha
verdura, fruta, criação, remédio, e eu fui trabalhar na poaia,
porque só via gente chegando na cidade falando que tinha
comprado terra, eu pensava...! Mas comprava de quem se a terra
era de todo mundo, era fazendeirão, saía até morte, muitos
parentes vieram pra cidade, quem não veio ficou trabalhando de
empregado porque não tinha mais terra... agora vão devolver, é o
governo vai devolver as terras de quem é de direito, porque agora
a gente já entende, mas naquele tempo, nos deixamos passar. Não
vou aproveitar quase nada, vai ficar para os, filhos, netos,
bisnetos.mode que não agüento mais fazer roça, só a do meu
quintal e quem ajuda cuidar é a mulher89.
E depois de visitarmos os muitos solos vilabelenses de aragonites, madrepérolas e
corpos estranhos, através das memórias de sua gente, nada melhor que se deliciar na
águas do caudaloso rio Guaporé, e pedir às deusas e senhoras das águas que nos
concedam permissão, para em suas águas banhar90...
87
A “terra de Nosso Senhor “passou a configurar, a terra das disputas e conflitos, ao passo que lavradores
vilabelenses se deslocavam para a cidade vizinha em busca de trabalho, território de intenso conflito por
terras o município de Pontes e Lacerda, sobre o assunto a tese de mestrado de João Ivo Puhl exemplifica
bem tal situação de tensão social, em detrimento dessas terras. Ver: PUHL, João Ivo. Op. Cit., 2003, p.
20-28.
88
Alguns índios também passaram a viver na cidade junto com algumas famílias de negros, vivendo
como agregados, e em alguns casos quando ainda jovens sendo criados como filhos pelas mulheres
negras. No próximo capítulo trataremos com mais afinco a respeito do tópico.
89
Entrevista realizada com Sr. Manoel Ricardo Ramos, em dezembro de 2003.
90
Pedir permissão para a utilização das águas, é práxis dos mais antigos, ou ainda das mulheres mais
antigas, que sincretizem seus santos, com os elementos da natureza, mas este assunto, é tratado de
maneira escorregadia, pois segundo os depoimentos dos moradores, falar dessas práticas, pode trazer
inúmeras conseqüências, como sofrer obrigações religiosas, da qual não se tinha antes de revelar algo de
41
Fonte: Rio Verde , Vila Bela-2000
www.vilabela.com.br
Odoiá, Imanjá! Com a permissão de Oxum e Janaina.... E
com as bênçãos de todos os guias e orixás, permita-nos falar
das águas dessa gente guerreira, que de muito tempo vós
vem acompanhar, agradecemos assim a permissão de
Olorum e Oxalá!!91
foro muito íntimo, discriminam assim, feiticeiros pesados e feiticeiros de simpatia. Na parte II, estaremos
aprofundando mais em um dos capítulos, dando ênfase nas práticas religiosas da comunidade.
91
Trecho de falas, com guias e orixás, pedindo a permissão para que possamos falar das águas. Iemanjá,
Oxum e Janaina, representam as deusas das águas. Depoimento concedido por uma matriarca, que não
42
1.2- EM BUSCA DAS PÉROLAS: AS ÀGUAS VILABELENSES
...Na beira do rio eu vi, um piano tocar, na beira do rio eu vi um
piano tocar, era D. Janaina que estava a trabalhar, era D. Janaina
que estava a trabalhar.92
Canto a Janaina
Entre lavagens de roupas as beiras do rio Guaporé e de seus afluentes, cantam,
contam as histórias de uma Vila Bela feminina, da comadre que era boa para benzer, da
outra que fazia xixa, da outra que dançava chorado, a beira do rio, ainda nas décadas de
1970 a 1980. Assim, o rio Guaporé, além de ser parte dos afazeres, como o de lavar
roupa, ou buscar água, continuava sendo também o espaço dos encontros, das comadres,
das lembranças, da troca de experiências. No cotidiano de árdua sobrevivência, onde as
mulheres eram chefes de seus lares porque seus companheiros, estavam na caça, ou
catando poaia, as mulheres uniam-se... iam juntas para o rio lavar suas
roupas...cantarolar... organizavam-se para administrar a
igreja93, preparar altares,
faziam quitutes juntas, emprestavam ingredientes, caso alguma coisa faltasse, seja na
presença ou na ausência de seus companheiros, a solidariedade nessa comunidade era
prática constante94.Tão constante, que quando as crianças em idade escolar, tinham a
hora do recreio, ao invés de ficar na escola, esperando a merenda, iam para suas casas
autorizou sua identificação, que será chamada por um codinome, D. Beija. Entrevista realizada em
Janeiro de 2004.
92
Trecho musical, em alusão a Janaina, o orixá das águas doces, sincretizado na religião católica nos ritos
sacrificiais, A respeito do assunto ver: PEREIRA, José Carlos. Sincretismo Religioso e ritos sacrificiais:
influências das religiões afro no catolicismo popular brassileiro., São Paulo,Ed. Zouk, 2004.
93
Na década de 1970 a 1980, a comunidade se empenhou inúmeras vezes para levar um Padre que
residisse no município, pois eram poucas as vezes em que os padres iam celebrar, somente em datas
consideradas especiais para o calendário católico e em festas de Santo comunitários, como é ocaso da
festança. Por conta disso as mulheres administravam a Igreja, desde sua limpeza até a organização
litúrgica das celebrações. É pertinente registrar, que na comunidade havia a presença das freiras, que
também ajudavam as mulheres negras de Vila Bela a organizarem as tarefas da Igreja .
94
Essa prática, é ressaltada nos estudos de BANDEIRA, Op. Cit.,1988; GONÇALVES, Marlene. Op.
Cit., 2000 e LEITE, Acildo da Silva. Op. Cit., 2002. A solidariedade sem dúvida era mola da coesão
comunitária, sobretudo no que se refere aos alimentos. Hoje podemos ver que estas práticas foram
incorporadas na receptividade dos filhos que saem para estudar, daqueles que vem passar as férias,
oferecendo-lhes sempre muita comida, e histórias. Uma maneira de garantir a reprodução dessa prática.
43
trazer um pouco do que tinham para partilhar com seus colegas95. Quando indagadas
sobre a Vila Bela de Dante, divagam...Relembram desde os tempos de meninas, como
podemos observar no relato abaixo:
Bom, assim que era, nós morávamos no sítio, daí vinha para
cidade quando tinha festa, eram férias, é, porque lá no sítio
também tinha escola, era Mica que dava aula, daí quando
acabavam as aulas a gente já vinha pra cidade. Pra lavar roupa
na cidade, a gente ia com as mães na beira do rio, é aí no
Guaporé, lá no sítio quando tinha riozinho perto lavava, se não
água era do poço mesmo... mais era bom. Tinha um monte de
histórias sobre o rio que as mães falavam, só para a gente não
fugir para ir no rio banhar escondido, mais mesmo assim a
criançada dava um jeito, aí sempre depois dos banhos a gente ia
canta de roda, catar as frutas, porque água da muita fome, e a
gente ia escondido, então tínhamos que pegar as frutas do mato...
naquele tempo tinha fruta, demais da conta. Eu lembro que mamãe
fazia doce, farinha, colocava gordura pra conservar caça, nossa
que saudade, ainda vou ter um sítio de novo...( um falar de choro),
é porque era da nossa família, como mandaram a gente embora,
tivemos que vim, aí que papai começou a trabalhar na prefeitura...
daí ficamos de vez na cidade96.
São histórias como essa que se contavam na beira do rio... No entanto, com o
passar do tempo, especificadamente no final da década de 1980, essa prática ficou muito
mais difícil, pois as mulheres, não lavam mais as roupas no rio, visto que encontram a
água quase sempre suja, em detrimento de agrotóxicos colocados nas plantações muito
próximas das matas ciliares. Mesmo com a estação de tratamento, a água que chega as
residências, não é de boa qualidade ao excesso de química, que inúmeros fazendeiros e
pequenos proprietários sem orientação lançam ao rio97. Esta é uma questão que tem sido
ponto de preocupação desta população. Nos relatos analisados ouvimos reclamações
muito freqüentes por parte das mulheres; pois são elas que cuidam da casa, da horta, da
95
A respeito desta prática, visualizamos bem, essa questão da solidariedade, que é repassada dos pais para
os filhos, isso se dava de maneira concreta também na escola. Um estudo que demonstra bem esse
entrosamento comunitário, é a dissertação de mestrado, de Marlene Gonçalves, defendida no Instituto de
Educação da UFMT. Ver GONÇALVES, Marlene. Op. Cit., 1995.
96
Entrevista feita em julho de 2002. com Maria das Dores Ramos Lopes da Silva, vulgo “Cotinha”.
A respeito desse assunto, temos estudos de uma filha da comunidade que teve a água do Rio Guaporé
como seu objeto de estudo, explicitando porque em determinadas épocas o rio fica tão sujo, com o PH
alterado, e esses dados mais técnicos.Trata-se de uma monografia de graduação de Engenharia Sanitária e
Ambiental, que revela a qualidade da água do rio, coletada em diversos períodos traz uma série de
informações técnicas sobre a qualidade da água que está diretamente ligada à qualidade de vida da
97
44
alimentação dos familiares enfim, são estas mulheres que vão em busca de soluções,
como nos diz, D. Góia:
Pois é, quem padece somos nós, que temos que cozinhar,
cuidar da casa de lavar roupa, e desse jeito é difícil, porque
a água chega na torneira vermelha, não pode beber, não
pode cozinhar, não pode lavar roupa, a gente não pode fazer
nada. Quem tem poço tem jeito, e nós que não tem... daí
coitado de Manel, vai buscar água lá longe, ou no poço de
comadre Otilha, porque se não a gente não faz nada, e água
pra bebe, nós compra garrafão, e é assim minha filha, se não
fica, sem beber, sem lavar e com a casa suja98.
A degradação do rio, é muito presente nas narrativas das mulheres, porque são
elas que arcam com as conseqüências (das águas sujas), e já não tem aquele tempo
de beira de rio, para conversar com suas filhas, ensinar a cuidar da casa, enfim
relembrar os momentos em que aprenderam com suas mães em sua infância,
obviamente o tempo não se cristaliza mas para essas mulheres, ainda que com água
encanada em casa, o rio Guaporé, é o espaço das lembranças. Como vemos no
depoimento sobre a infância:
... quando era menina ainda, que mamãe não gostava que
fosse no rio, a gente sempre dava um jeito, pra ir lá tomar
banho, difícil era esconder os olhos vermelhos, quando não
dava certo, vara de goiabeira cantava99.
Por estas e outras situações, a questão da identidade é cotidianamente reelaborada100, pelos obstáculos que vão aparecendo, e também, pela convivência com
o outro que já se faz presente nas práticas do dia - a - dia. Parafraseando Maria de
Lourdes Bandeira, os negros herdaram uma Vila Bela em ruínas falida, perdidos, se
população, afirmando que o rio já não oferece tanta qualidade. RAMOS, Claudia Maria. Análise das
águas do Rio Guaporé. Cuiabá: ICET/UFMT, 2001.
98
Entrevista realizada, com Gregória Marques Ramos em dezembro de 2003.
99
Entrevista realizada, com Maria das Dores Ramos, em dezembro de 2003. A memória da Infância
encontra-se intimamente ligada as águas, em quase toda entrevista onde tocamos no assunto água, lá estão
as histórias de crianças, o que se era contado, como se comportavam, enfim mostrando como era
significativa a paisagem do rio.
100
Como nos aponta ARRUDA, Gilmar, a respeito da memória e paisagem. As memórias construídas
sobre os espaços geográficos possuem grande influência na constituição dos sentimentos de identidades
ou regionais, no pensamento político e no próprio processo de transformação dos mesmos espaços
geográficos. Ainda ao citar Simon Schama , ele afirma, as paisagens da memória. Ver: ARRUDA,Gilmar.
Op. Cit., 2000, p.163.
45
apropriaram do espaço e do tempo e os recriaram de si mesmos, para si próprios. E
nessa capacidade de recriar estratégias, códigos, que a sobrevivência em relação ao
outro, e as dificuldades ocasionadas pelo outro, são revistas, de maneira que possa
haver uma convivência mais harmônica101.
Pelo Guaporé que chegavam novidades; através dele se viajava até Guajará Mirim 102(RO), o significado de atravessar o rio de balsa, de reunir as crianças para
descer em canoas para os sítios dos parentes...essas águas marcam de maneira
singular o passado e o presente da comunidade como um todo, sobretudo das
histórias de avós, que contavam para suas filhas, que contavam para os netos, assim
como, a águas correm, corriam de geração em geração as histórias, lendas, fábulas,
dos botos encantados, das lagoas misteriosas que surgiam nas enchentes, dos
corixos... enfim da paisagem que configura os pensamentos e lembranças dessa
gente.
Mediante as falas das depoentes, podemos observar que há uma preocupação
comunitária muito grande em repassar valores tradicionais aos mais jovens, que com
a desconfiguração e /ou alteração da paisagem, passam por todo um processo de resignificações para que se faça cumprir os desejos das matriarcas, de manutenção dos
costumes e das práticas tradicionais.
Os grandes lagos dos sítios, as lavagens das roupas, resumem-se hoje à água
encanada que chega até as casa, na maioria das vezes suja. a abundância da água é
representada por poços artesianos...que regam as hortas dos quintais, e que permitem
a população a ter água para as atividades cotidianas.
A consciência da nova geração é compartilhada atualmente com os mais velhos:
há uma preocupação em garantir as práticas festivas, com maior qualidade no sentido da
preparação da infra-estrutura para recepcionar turistas e os filhos que vão visitar sua
terra natal. A cada ano que passa, a cidade recebe centenas de pessoas: curiosos,
turistas, pesquisadores, devotos enfim, pessoas de várias localidades do país, e como
101
Embora não sejam todos os migrantes que possuam fazendas, no âmbito do imaginário, quem agride o
rio, è o “ outro”, mesmo que não possuam propriedades que lancem agrotóxicos ao longo do rio. As
estratégias estabelecem assim uma re-significação de valores, que permita partilhar das dificuldades, que
esses migrantes também enfrentam, pois também fazem uso de uma mesma água, excetos aqueles que
possuam poços artesianos.
102
Essa cidade, pertencente ao Estado de Rondônia, tem ainda hoje intenso contato com Vila Bela, pois
muitos rondonienses foram moradores de em Vila Bela, assim como há um número considerável de
vilabelenses que se deslocaram para Guajará - Mirim, em especial jovens que na década de 1970, em sua
maioria iam estudar no município rondoniense.
46
eles próprios dizem, até estrangeiros, na festança dos Santos, dança do Congo e do
Chorado103. Estudam possibilidades de recepcionarem turistas, entretanto, de preservar
os patrimônios históricos e naturais da cidade104.
O rio Guaporé por estar localizado muito próximo da cidade, cerca de 1km da
praça central, é sem dúvida mais depredado, pela falta de estrutura, na beira do rio.
Ainda que ocorra nos dias atuais um aumento de pessoas que passam a visitar a cidade
e em decorrência as possibilidades de rentabilidade maiores para a comunidade, a falta
de preparo para tal receptividade amedronta quem se preocupa com as questões
ambientais, considerando-se que os atuais políticos, ao invés de criarem ações para a
melhoria de vida da população simplesmente ignoram, e quando há alguma
preocupação, são meramente paliativas105.
A Cascata dos Namorados, famosa pela sua bela paisagem, e que recebe muitos
turistas é exemplo do descaso, e da situação em que se encontra, completamente pixada,
com árvores cortadas, e a água tão preciosa quase escassa. Essa cachoeira é ainda
símbolo e atrativo turístico106. Embora a cidade não tenha estrutura, sua imagem é
vendida por parte das agências de turismo. Segundo os entrevistados, isso tem sido
sempre debatido entre os mais velhos da comunidade, porque como eles mesmos dizem,
nem tem lugar pra tanta gente, fazendo uma alusão à falta de hotel, e organização da
cidade para receber seus visitantes.
A questão da água transcende a questão das necessidades terrenas107, sua
importância vai muito além, pois a água é símbolo de inúmeros rituais na comunidade,
103
No capítulo III, trataremos com maior detalhes a respeito da festança e seus santos, bem como das
danças, a do Congo e do Chorado.
104
Na medida do possível a comunidade faz o que pode sem, no entanto, receber incentivos por parte do
poder público local.
105
Como no ano de 2000, onde a prefeitura fez uma limpeza superficial na praia do rio Guaporé, e ainda
construiu algumas trilhas, mas esquecendo de colocar por exemplo, placas de segurança e latões de lixo, o
que resistiu pouco mais de 2 meses. Portanto, não há nem uma preocupação mais elaborada a respeito das
questões ambientais e do turismo.
106
Podemos observar a qualidade da imagem, ou melhor a falta de qualidade, é que referida fotografia foi
tirada no período de seca, só para termos dimensão da realidade ambiental, não por acaso a imagem
aparece escura, a constante depredação, compromete a imagem do lugar, sobretudo no período de seca.
107
Cada espaço das águas remete um significado, em analogia com os deuses, que muita vezes são
sincretizados com os santos da Igreja católica. Por exemplo, Oxum senhora das águas doces, Oba,
Janaina, Iemanjá, e suas variantes... dentro da Umbanda e Candomblé. Em Vila Bela esses rituais são
ainda muito camuflados, uma vez que a maioria da comunidade se declara católica, mas durante o período
das festas podemos perceber através dos códigos emitidos pelas canções, ritmos e danças, a influência das
religiões afro no catolicismo. Sobre essas particularidades, ver; FONSECA, Denise P. R. De orixás
femininos, santas e outras mulheres.In:FONSECA,Denise Pini Rosalem da.& LIMA, Tereza Marques de
Oliveira (org.) Notícias de outros mundos: Lendas, imagens e outros segredos das deusas nagô. Rio de
Janeiro: História y vida, 2002.
47
permeiam os rituais e celebrações como: batismo, lavagem de santos e outros. As águas
renovam a esperança dessa gente, que incentiva suas crianças da maneira que podem, a
preservar o lugar, porque ainda que o grau de instrução dos mais velhos seja baixo, o
grau de sabedoria é incalculável. Quando eu perguntava como é que se poderia fazer
algo para essas crianças aprenderem a respeitar a paisagem, logo fui surpreendida por
uma rápida resposta:
Por isso que a gente conta história, filha! Tem história do boto,
das mata, tudo esse é forma de ensinar, porque se nós tira da
natureza, pra vive, tem que deixa a natureza viver, e água é
fartura... nós, bebe, banha, planta, cozinha, lava, benze, quantia de
coisa que é feito com água... se num cuidar fica sem108.
As histórias a que D. Damiana se refere, são as histórias para ilustrar, o que já
aconteceu em determinado lugar em que se fere a natureza, como por exemplo, a
história da lagoa encantada no meio da estrada. Segundo D. Damiana, quando alguma
pessoa era ruim com a natureza, e ia para a estrada de Pontes e Lacerda, quando
chegava lá pra frente da toca do coelho109, a lagoa transbordava que não deixava
ninguém ir e nem vir. Por isso ela diz que as histórias são importantes, nos livram dos
castigos como o da lagoa.
Outra interação com a água, e/ou com as águas, eram os passeios nas pascanas,
passeios agora guardados na memória, vejamos a foto abaixo, a situação de uma
pascana no ano de 2000, situação alarmante para quem vivia nas pequenas ilhas a
passear.
108
109
Entrevista realizada com Damiana Frazão de Almeida .
Toca do Coellho, é a denominação dada a um pequeno vilarejo entre Pontes Lacerda e Vila Bela.
48
Fonte: Vista de uma antiga Pascana; Acervo Família Ramos/2000
Os passeios e acampamentos nas pascanas110, quase não mais existem, tamanha
são as degradações em torno das pequenas ilhas, antes em abundância ao longo do rio
Guaporé. Como observamos a foto acima, ilustra o caminho de uma antiga pascana, que
agora virou uma espécie de pântano, em decorrência do desmatamento irregular. Na
década de 1970 quando a maioria da comunidade ainda vivia em seus sítios, o lazer era
sair até as pascanas. Conscientes ou não, esta era uma forma dos jovens terem mais
contato com a natureza, aprendiam a conviver com a vida na mata, sabendo aproveitar o
que a natureza lhes oferecia.
No contar dos depoentes, percebemos a angústia dos mais velhos em relação ao
que faziam como lazer, em especial os aventurosos passeios até as pascanas, pois
segundo eles, esses espaços ensinavam muito, aprendia-se com a natureza, tanto homens
quanto ás mulheres. Esses passeios eram esperados, sonhados pelas crianças, era um
espaço de interação com a natureza, e ao mesmo tempo uma lição de como sobreviver
com o que a vida da roça oferece, apreciando e respeitando os limites.
Aprendia-se de tudo um pouco, como por exemplo, a remar, a nadar, a pescar, e a
ouvir, sobretudo as histórias e estórias dos mais velhos, que contavam com uma
110
Pascanas eram tipos de ilhas, nas quais as famílias geralmente faziam seus piquiniques e/ou quitutes,
em especial os mais jovens, configurava-se a prática do lazer. Também eram em Pascanas, que os
poaieiros, se abrigavam, quando não tinham acampamento.
49
paisagem especial, e com a melodia das águas turvas do Rio Guaporé. O ambiente era
propício para as lendas e fábulas, que cercavam a infância de muitos, em meio a
histórias de monstros, índios e águas. Como podemos observar no relato abaixo:
... Era muito bom, papai contava sempre os casos da poaia, porque
ele foi poaeiro, mas mamãe e vó Teodora, ah! contava que valia a
pena, chegava hora de dormir, antes um pouquinho, e as crianças
estavam agitadas, ia lá vovó contar história de currupira, porque
dava medo e nós que éramos crianças ficávamos com muito
medo... E pra gente não ficar tomando banho no rio direto, elas
contavam sobre o boto, porque se a gente pegasse canoa pra
passear cheio de meninas, boto ia derrubar a gente e depois nós
íamos ser mulher de boto, porque boto macho ataca canoa de
mulher... ( risos)... daí, ninguém ia porque quem que queria ser
mulher de boto...111
As meninas/moças,recebiam uma espécie de inicialização, nesse sincretismo
religioso que a comunidade mantém fortemente até as últimas décadas, até o final da
década de 1980, mais precisamente. È a beira do rio, que se contam sobre e como; das
lavagens de santo, do simbolismo da água, e ainda é nesse momento de passeio, que são
delegadas algumas responsabilidades. As águas ganham dimensões, além das vozes,
riem e choram num silêncio do jeito deles, diante do aparelho gravador112... Quando os
depoentes, no ato de rememorarem sua relação com as águas, fazem expressões de risos,
choros e silêncios, tudo intrínseco, como se fizessem um desabafo de algo sagrado,
guardado por muito tempo, extremamente codificado, ao passo que só participando dos
rituais da comunidade para ter dimensão do quão é importante o simbolismo da água. A
relação cotidiana das mulheres é como a correnteza do rio Guaporé, o movimentar do
rio assemelha-se as lutas femininas, percebe-se durante o processo de entrevistas e
visitas durante o processo de pesquisa, uma identidade muito forte entre o rio e as
mulheres. Como vimos é um espaço de simbologias, ambiente sobrenatural, de trocas
111
Depoimento de Maria das Dores Ramos, entrevista realizada em dezembro de 2003. A respeito das
histórias da mata, D. Maria nos conta também, sobre as lagoas encantadas, onde a população não
conseguia ter acesso as estradas, sobre os corixos no tempo de cheia, e ainda sobre as enchentes que a
região de Vila Bela passava, com maior freqüência até a década de 1980. A respeito do assunto, ver artigo
de LEITE, Mário Cezar. As águas Encantadas de Xacororé. In: Revista Territórios e Fronteiras, nº 01,
Cuiabá: UFMT, 2001.
112
Essa relação com a simbologia do sagrado, como é o caso das águas, faz os depoentes rememorarem
inúmeras histórias, são lembranças que falam com lágrimas, risos, expressões faciais...sussuros, um
aprendizado para o universo da pesquisa. Trata-se da memória dos espaços, rememorados pelos
depoentes, que a cada conversa, expressavam-se de várias formas na frente do aparelho gravador.
50
simbólicas, onde codifica e identifica, aquele que é convidado ou inserido a observar,
com autorização das senhoras mais velhas. O rio assim é um elo entre o passado e o
presente dessas mulheres, que relembram os navios que chegavam, e vislumbram novas
possibildades de uma vida melhor aos seus filhos e filhas. Uma relação de pérolas, que
protegidas em mexilhões criados por elas, contornam como rio os obstáculos da vida, do
labutar, do dia - a – dia.
As águas que criaram as pérolas desse território, hoje estão ameaçadas, pela gana
do homem, sobretudo dos grandes homens do agro-negócio, que muito pouco ou nada
conhece, dessa natureza , que permitiu o crescer e multiplicar de famílias.
51
CAPÍTULO
II
-
BRILHANDO
ENTRE
A
CIDADE
E
A
ROÇA:
MADREPÉROLAS E ARAGONITES
Todo mundo ficava esperando o tempo de ir pra cidade,
trabalhava na roça, lutava no dia-dia, pra depois a gente ir na
Vila, passear visitar os parentes, era bom mesmo ter casa na
cidade!! ( Maria das Dores)
Como já observado na apresentação, Vila Bela, uma cidade previamente
planejada para o período colonial, ao longo do processo histórico, modificou cenário e
atores, e é com esse intuito que esse capítulo tenta configurar o cenário e os atores dessa
Vila Bela mais contemporânea113. Observaremos ao longo desse capítulo, a importância
desses espaços114, a relação da natureza e a construção, ou re-apropriações da identidade
negra da comunidade, tendo como suas principais guardiãs, as mulheres negras. Para
entendermos essa questão teoricamente nos subsidiamos no conceito de representação
abordado por Chartier115, pois segundo o autor nós somos aquilo que representamos,
assim as mulheres em estudo vão representando essa identidade e/ou identidades de
mulheres negras.
As mulheres vão produzindo um mundo simbólico, da culinária a seus rituais,
confidenciados às filhas eleitas a reprodução de tais práticas.
Para manutenção de tais práticas, essas mulheres lançam mão de estratégias,
codificando esse mundo, em especial a partir da década de 1970, quando o acirramento
inter-étnico é mais evidente no município vilabelense, e onde o corpo estranho, é
envolvido por madrepérolas e aragonites, compondo o brilho das mulheres pérolas
negras. Para compreender esses códigos culturais, foi preciso muita observação e
diálogo com a comunidade, pois como nos aponta Chartier e também Bourdieu116, as
práticas discursivas não estão na cabeça, elas são as ações, as práticas. Pois é através
desses códigos culturais que permite-nos observar o que determinada sociedade
113
Nesse sentido, procura-se apresentar a Vila Bela dos conflitos sobre a terra, e, sobretudo dos conflitos
inter- étnicos, que ocorreram com maior intensidade entre as décadas de 1970 a 1990.
114
Sobre o conceito de espaço e território, baseio-me no estudo de RAFFESTIN, Claude. “O que é
território”?In: Por uma Geografia do poder. São Paulo: Editora Àtica,1991.
115
CHARTIER, Roger. Op. Cit. p.58.
116
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Ed. Difel, 1989.
52
valoriza, ou não. Conforme Chartier: As estruturas do mundo social, não são um dado
objetivo, todas elas são historicamente produzidas, pelas práticas articuladas,
(representações) que constroem suas figuras117.
Procura-se aqui chamar a atenção para a vinculação entre a cidade e o campo,
no sentido de que esses dois espaços, complementam-se nas memórias dessa
comunidade negra, campo e cidade com suas funções definidas. A situação das
alternâncias entre a roça e a cidade era necessária na construção e afirmação de um
processo de etnicidade.
Perceberemos no capítulo que o quadro demográfico vilabelense sofreu
alterações por conta da frente pioneira118, fazendo com que inúmeros moradores do
campo fossem instalar-se na cidade, e posteriormente ocorrera o processo inverso com
os fluxos migratórios, a chegada do “outro”. E nesse momento de intensas mudanças,
que a integração comunitária dos negros se firmou, para aprender a lidar com “ os
corpos estranhos”, futuros conflitos inter-étnicos, e estabelecer um novo modo de
sobrevivência, fosse no campo ou na cidade.
No Recenseamento do IBGE de 2000, constatou-se que a população do
município tem cerca de 12.665 pessoas em números absolutos, embora somente
2.787,119 residentes na àrea urbana do município.
A oralidade torna-se neste presente estudo, elemento fundamental para a
compreensão dessas lembranças e também das desmemórias de uma comunidade
rústica120, que tenta preservar um pouco da cultura que ainda lhes resta, confere-se aos
depoimentos, um suporte empírico de bastante relevância, pois é através das
lembranças, do relembrar, que essa gente reafirma os espaços, da constituição da
comunidade negra. Parafraseando Monbeig121, longe estavam os negros dessa
comunidade de se comparar com os novos e grandes fazendeiros que ali se instalaram
117
Idem, Ibdem. p. 27.
Como já trabalhado no capítulo anterior, sofreu alterações para o cenário da cidade, pois em relação ao
Estado, Vila Bela cresceu muito pouco; os dados estão em anexo.
119
Esses dados foram pesquisados através dos site do IBGE, hiperlink- Populações/Centro - oeste,
referente ao recenseamento de 2000.www.ibge.gov.br. Grande parte da população, mora no campo, ou
nos municípios próximos que foram emancipados, como: Pontes e Lacerda, Comodoro, Nova Lacerda e
Cáceres ( está última já era município). Isso explica a quantidade de pessoas residentes no núcleo urbano.
120
PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. A dança de São Gonçalo, fator de homogeinização social
numa comunidade do interior da Bahia, In: Revista de Antropologia, vol. 6, n°1, São Paulo, Junho de
1958-b. Este estudo foi de suma importância na escolhas dos conceitos, o sentido de rústico, está atrelado
diretamente ao conceito o qual a autora utiliza, rústico, do rural, do caipira.
121
MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. Trad. Ary França e Raul de Andrade e
Silva. São Paulo: Ed. Polis e Hucitec, 1984, p.141.
118
53
por conta de incentivos do Estado122. A quantidade de agricultores da comunidade, não
tinha investimentos, mas a paisagem vilabelense, ou o cenário do Guaporé, foi
ganhando novas formas.
A partir desse novo quadro, e/ou cenário da década de 1970, a comunidade,
diante da presença do outro, fosse na cidade ou na roça,123teve que re-elaborar as formas
de convivência social. Por conta do seu meio ambiente ter sido alterado, as mulheres
negras em especial, assumiram uma espécie de luta feminina na manutenção do
processo de etnização, da afirmação social, dessa gente, que das ruínas, transformaram,
a antiga capital da capitania em cidade dos pretos124. Os tópicos que seguem descrevem
a importância e a complementação entre o campo e a cidade. Através dos depoimentos
percorreremos o cenário da Vila Bela dos anos 1970 até as administrações mais
recentes, o ano de 2000, onde delimitamos o período cronológico deste estudo.
122
Por conta de incentivos da política nacional de povoar e investir no centro oeste, mais intensamente na
década de 60 e 70 do séc. XX, muitos sulistas foram para a região do Vale do Guaporé e tornaram-se
grandes latifundiários. O modo de produção local, portanto, foi seriamente afetado, modificando-se
também os modos de distribuição e consumo, contudo no âmbito da sobrevivência, a solidariedade
comunal, é que falou mais alto.
123
Cidade, o espaço territorializado como núcleo urbano, e roça e/ou sítio, as adjacências da zona rural na
circunferência de limites geográficos e hidrográficos do município. Ver: SANTOS, Milton. Por Uma
nova Geografia, São Paulo: Hucitec, 1978 e SILVA, Luiz Sérgio Duarte da ( org.) Relações CidadeCampo. Ver. Fronteiras, Goiânia: EDUFG, 2000.
54
2. 1 - MEMÓRIA DE UMA CIDADE
É hora de descansar! Vai ter Festança! Nasceu o filho de comadre
Góia!!
A cidade, na perspectiva dos vilabelenses, era o foco, o lugar do repouso, ao
contrário do juízo que fazemos dela nos dias atuais125. Os negros viam a cidade como o
ponto das celebrações das festas, da colheita, dos nascimentos, casamentos, enfim, do
lazer, e, como bem explícita LEITE, como o outro “canto do mundo” onde se dava,
além do nascimento dos filhos e do descanso do trabalho na roça, o revigoramento da
fé, das crenças e de sua religiosidade126.
O núcleo urbano configurava-se como espaço das celebrações, de proteção e
religiosidade. O culto aos santos de casa, e aos santos comunitários acontecia no espaço
da cidade. Era este o espaço onde aconteciam as homenagens e honrarias às entidades
sagradas. Aos santos de casa, aqueles de devoção pessoal e de sua família, e aos santos
comunitários: São Benedito, Senhor Divino e Três Pessoas, Nossa Senhora do Rosário,
Mãe de Deus, Senhor Menino, Senhora Santana, Nossa Senhora da Conceição, Nossa
Senhora do Pilar e outros.
Os mitos e lendas se faziam muito presentes no núcleo urbano. O fato dos
pertences dos santos ficarem na cidade tornava esse espaço um território da sacralidade
cósmica, fazendo com que todos se dirigissem para lá, e, no caso das mulheres,
principalmente na época de dar à luz a uma criança. Todos queriam e precisavam da
proteção de seus santos, por conta disso a proteção estaria na cidade. A memória dos
lugares, ativa outras lembranças, em especial a casa da cidade, inspira o relato de
muitas histórias, a paisagem exerce grande influência na memória127.
A importância de um nascimento está diretamente associada á proteção que
124
Pretos era um termo utilizado pelos negros da comunidade, até o início dos anos 90 do século XX,
com o processo de afirmação da identidade, o movimento negro que chega na cidade, esses que se autodenominavam de pretos, passam agora a assumir a negritude, o termo negro.
125
Porque a cidade é hoje o lugar do progresso do trabalho e nas palavras de Gilmar Arruda: A cidade é
moderna, progressista, representante de valores novos na qual a atividade política se desenvolve
segundo os padrões da moderna democracia... ARRUDA, Gilmar. Op. Cit., 2000, p.13. Mas, para os
Vilabelenses, naquele momento, a cidade e sobretudo, a casa da cidade era lugar de descanso.
126
LEITE, Acildo da Silva. Uma Pedagogia da Oralidade: Os Caminhos da Voz em Vila Bela.
Dissertação de Mestrado em Educação- Cuiabá: IE, UFMT, 2002, p. 93.
55
confere a criança, ( é na cidade que estão as imagens dos santos) como podemos
observar na fala abaixo, que expressa a insistência de se ter logo a criança na cidade:
... Tio Ponciano, meu tio, pai dele chamava José Fernandes. Esse
que quando mulher estava com barriga, barriga de Maria Micaela
(...).
Ele falou assim:
- A senhora tem que parir, tanto dia que está aqui na cidade, nunca
que pari...
Homem, quando foi de noite, mãe de Maria Micaela, bateu dor, lá
teve Maria Micaela. (...) Quem morava no sítio vinha aqui - em Vila
Bela - para ter criança, não tinha criança na roça não. Hum! hum!
Vinha ficar aqui...128 .
Apesar da aparente diferença, estes dois espaços ( roça e cidade) não devem ser
compreendidos como espaços diferentes, pois não é essa a dimensão oral na memória
oral de Vila Bela. Ou seja, estes ambientes se complementam são valores íntimos de
uma comunidade, assim campo e cidade se interpenetram econômica e juridicamente. O
campo a iniciação do trabalho, a relação com a labuta e a sobrevivência cotidiana.
Configura-se a cidade, como extensão do campo e vice-versa129.
O nascimento tem assim significado fundamental, deve e precisa das proteções
divinas, e por isso as mulheres geralmente tinham seus filhos na cidade; a casa da
cidade delineava ao imaginário uma espécie de amuleto cósmico, que trazia proteção.
Existe toda uma codificação em torno do nascimento da criança, as mães são preparadas
pelas mulheres (mais velhas) da comunidade, geralmente as parteiras e benzedeiras130.
Desta maneira, a chegada de um novo membro era motivo de muitas comemorações e
hora de praticar os rituais. Há um ritual até para anunciar a chegada da criança, dizendo
a comunidade se é menino ou menina, como podemos observar na força de expressão
do relato:
127
O descrever de cada paisagem reativa a cada palavra uma lembrança, de como se fazia para cozinhar,
como se cuidava da casa, como criavam os filhos, os valores e significados, (grifos meus).
128
Depoimento de D. Matimiana Francisca da Silva, cedido por Acildo da Silva Leite. Depoimento de D.
Matimiana, que faleceu com 100 anos de idade, no ano de 2000; o termo homem que aparece no
depoimento, refere-se a uma expressão, assim como parir, significava ter a criança. Em especial, nos
depoimentos de D. Matimiana, não serão corrigidos ortograficamente, respeitando a memória e maneira
como a depoente falava, trata-se também de um pedido da família.
129
A memória dos lugares, parece provocar uma seqüência de fatos, onde todos sentem a necessidade de
contar suas histórias e causos, a referência de lugar ativa outras, e assim vão relembrando suas histórias
de vida.
130
Ser parteira ou benzedeira, ou ainda as duas coisas, trazia uma espécie de estatus social, pois as
parteiras eram sempre procuradas, e as benzedeiras também, em especial para benzer os espaços para o
56
...Antigamente eu me lembro, tinha todo um jeito para avisar o
povo que tinha criança chegando, dava tiro de espingarda para
falar se era menino dois tiros, e pra falar se era menina um tiro, e
aí se é dia de santo ou santa, todo mundo já ficava falando tem que
por nome de santa 131.
Uma vez anunciado esse nascimento, todos lembram que naquele dia é dia de
santo, significando que a criança tem que adotar o nome daquele santo, pois, é sob a
proteção e graça dele que ela vem ao mundo merecendo sua devoção. Assim, vão
surgindo os santos de casa, e as devoções, desde o nascimento. Dante132, como as
depoentes mais velhas costumam falar, não se escolhia o nome da criança antes de
nascer, porque não sabia se ia chegar no dia de santo ou não, como podemos refletir
com o episódio que segue.
... Quando batizou esse Efigênia, disque, filha de Veríssimo o
padre falou que nunca viu esse nome de Efigênia.
Aí o finado Antônio Acendino:
‘Hum! hum! Seu Padre! Tem! Tem! Tem Santa Efigênia, esse que
ta alí é Santa Efigênia, mãe de São Lesbão,está lá Santa Efigênia!’
Aí o padre batizou Efigênia. (...) Agora criança quando,esta moda
cachorrinho, quando nasce já escolheu o nome. (Risos). Pois é, eu
quando ter um cachorro vou botar nele esse nome. Assim tá
criança hoje em dia. Dante num era assim não, tem que ser o nome
do dia que ele nasceu. O do dia dele...133
Batizar a criança com nome do santo do dia, garante a criança uma grande
proteção, seguida de deveres a serem cumpridos. Além dessa responsabilidade o
batizado é de fundamental importância, pois confirma a proteção da criança, e ainda
delega aos padrinhos os cuidados para com seus afilhados, reforçando o circulo de
parentesco134.
Segundo os depoimentos, o nome do santo à criança é a garantia de cercá-la de
uma proteção sagrada, assim a criança, além de estar protegida, era filha e guardada por
seu santo. A escolha do nome, como rege na comunidade não podia ser aleatória, pois se
bem das pessoas e das plantações. Essas informações foram obtidas através do Depoimento de D. Paula
Fernandes- ( benzedeira e parteira da comunidade ).
131
Depoimento da senhora Maria das Dores Ramos Lopes da Silva concedido em entrevista em julho de
2002.
132
Dante é uma expressão, em alusão ao tempo que já se foi, o de antes, de antigamente. No decorrer da
dissertação esse termo aparece freqüentemente, pois é muito utilizado pelos depoentes, em especial os
mais velhos.
133
Depoimento de D. Matimiana Francisca da Silva também cedido por Acildo da Silva Leite.
134
Sobre a importância do batizado ver: PERARO, Maria Adenir. Op. Cit., 2001, p.181.
57
não fosse respeitado o dia do santo, a criança sofreria as conseqüências. Para completar
esse ciclo de religiosidade na casa da cidade, faltava a apresentação da criança para a
lua, esse ritual era feito no sétimo dia de vida da criança, segundo as parteiras, as forças
do cosmo trazem coisas boas ás crianças apresentadas a lua. Assim nos conta D.
Paula135:
... Panhava balaio de coeiro, panhava balaio de coeiro de nenê,
botava para fora, aí panhava cada um pano sacudia:
‘Taí lua, pano de nenê’.
Botava lá, tornava panhá outro. Tudo nós fazia na mão. Aí, o
último era a criança. Panhava mostrava, suspendia bracinho,
suspendia perna da criança, tudo, tudo... Não tem defeito, falava
para lua. Num tem defeito nenhum: nem no olho, nem na boca,
nem num sei aonde, nem num sei aonde... Tudo no terreiro, quando
a lua estava para fazer lua cheia. (...) Agora apresentava para lua,
para não pegar mal. Para não pegar mal num umbigo, porque nós
num tem médico, médico de nós é Senhor Jesus lá em cima e nós
aqui embaixo. Esse remédio que Senhor Jesus deixo para nós
fazer, entregar a criança na mão dele. Essa hora que nós está lá
apresentado,hum!!, tá pensando que nós num está falando
136
quieto...
Desta forma, fechava-se o ritual do nascimento na cidade, com crenças, mitos e
lendas dos sítios. Mas havia outros, e quase sempre estes rituais contavam com a ajuda
das coisas presentes na natureza, como a defumação do quarto com ervas, que
espantavam o mal de 7 sete dias, para o umbigo curar direito, para a mãe da criança ter
bastante leite e não empedrar137. A mãe se alimentava basicamente de produtos a base
de amido, como a batata e o milho, em forma de angu e/ou mingau.
Por conta dos nascimentos, é que ocorriam as festas de santo na cidade, devido á
presença das imagens e insígneas santificadas localizadas no núcleo urbano.
Assim, cada nascimento era motivo de festa religiosa, em especial se a criança
tivesse nascido em um dia santo, ou ganhasse o nome de santo, essa criança passava a
ter a obrigação de rezar para seu protetor, assim eram garantidas as bençãos e proteções,
isso se os rituais fossem cumpridos, caso contrário, o devotante poderia arcar com os
135
D. Paula Fernandes, é grande conhecedora das práticas da benzeção e parteira, foi vítima de derrame, e
não exerce mais essa função na comunidade, por conta de estar residindo em Cáceres - MT.
136
Depoimento de D. Paula Fernandes, cedido por Acildo Leite da Silva.
137
As práticas do catolicismo estavam atreladas às influências dos cultos afro, ainda que de maneira
camuflada percebemos um misturar de ritos, em especial no ato do partejar.
58
castigos138. Segundo Pereira, a devoção tem como característica a fidelidade, o pacto
entre o santo e o devoto,139por isso o dever de se cumprir as promessas. Esse vínculo
uma vez rompido, perde-se a credibilidade com o Santo. Seria o que Bourdieu chama de
economia das trocas simbólicas140, o devotante pede e dá algo em troca ao seu santo
e/ou orixá. Dificilmente, as mulheres se referem aos santos como orixá, sempre são
denominados de santo, ou seu senhor, como podemos observar na expressão de D.
Damiana Frazão:
Quando não era tempo d’água, tinha festa de seu Senhor
Divino, de seu senhor santo Antonio, de seu senhor São Francisco,
que eu sou devota, de Nossa Senhora das Dores, que protege sua
mãe, de Nossa Senhora da Conceição...Uma porção de santo que
protege nós, tem que fazer certo né filha, se é de promessa tem que
cumprir141...
Falar dos seus santos, é um assunto um tanto quanto delicado, é uma relação
com o sobrenatural, as práticas, são extremamente codificadas, e a cada entrevista, era
um desafio conseguir algo mais. No expressar em relação aos seus santos, fica claro
uma relação de troca, onde D. Damiana repassa as informações, e a esta pesquisadora
ganha a sabedoria sobre eles ( os santos), e consequentemente as obrigações de reza e
festa. E salve o seu santo!
138
E dessa maneira surgiam os santos de casa e os santos da comunidade, veremos melhor sobre o
assunto no capítulo subseqüente, tendo em vista que o assunto religiosidade, merece maiores explicações
por conta de sua riqueza de detalhes.
139
PEREIRA, José Carlos. Op. Cit., p.45.
140
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 3ª. Ed., Perspectiva, São Paulo: 1992, p. 08.
141
Depoimento de D. Damiana Frazão de Almeida. Entrevista realizada em Julho de 2000. A relação de
comprometimento com os santos de devoção é tão grande, que a depoente faz questão de salientar, São
Francisco, de quem era tão devota, e por estar se dirigindo a mim, reafirma a santa que protege minha
Mãe, numa relação de que tenho que tomar conhecimento de minha obrigação, de continuar devota de
Nossa Senhora das Dores.
59
2. 2- HISTÓRIAS
E CAUSOS: UM PASSEAR NA MEMÓRIA
FEMININA
Tá lá na praça, papeando, se num tive ta lá na beira da porta
sentado na cadeira conversando! Góia
A cidade, era e ainda o é, o espaço dos reencontros, daqueles que vinham visitar
Vila Bela; dos filhos que tiveram a oportunidade de estudar fora, enfim, uma espécie de
ponto de encontro. Esse ponto de encontro tem como sede a única praça da cidade, na
qual os conhecidos sempre param para contar, seus causos142. Para a manutenção da
vida na cidade, alguém sempre estava na lida, na roça, e todos da família de alguma
forma os ajudavam, assim a roça era o espaço da iniciação ao trabalho, pois era a vida
do campo que subsidiava a vida da cidade, como podemos conferir nessa narrativa:
Bom, era assim, na roça todo mundo ajudava, da família, e
aí os outro também quando faltava uma coisinha ou
outra,era sempre assim, era pobre mais sempre tinha o que
comer, ia na cidade só para ter os filhos, compra alguma
coisa que não tinha no sítio, quando estava na poaia, os
homens, né iam vender também. Sempre iam comprar coisas
em Cáceres, quando não encontrava aqui na Vila...era bom
filha, tudo socado no pilão, bolo de arroz, paçoca de carne,
esse massaco, tudo com coisa da roça que dá sustância era
desse jeito, comia mocotó, juntava as criança ia panhá lenha,
catava fruta, tinha fartura, eu gostava era de sarapatel.,
Quando seu avô pegava tracajá, carne de caça, nós salgava
e mandava carne quando ia pra cidade, as criança já tinha
que estuda, mais, porque Mica parece que lecionava até o 4°
ano, e foi assim, mais como se vê seu avô sempre tem
verdurinha dele aí no fundo do quintal143.
A roça e a cidade têm, assim, seus significados, mas nunca dissociados um do
outro: para viverem as festas, os passeios da cidade, eles precisavam lidar na terra
142
Essa praça, passou por uma reforma, e as árvores que arborizavam o local, foram totalmente cortadas,
assim o lugar que por muito tempo foi um ponto de encontro e reencontros de compadres e comadres, por
conta do sol forte, hoje é visitada mais intensamente pelos jovens, que fazem o lazer somente durante a
noite, e os mais idosos, os homens, sobretudo, ainda se encontram nas praças; já as mulheres optam pela
conversa na frente de suas casas e quintais.
60
cotidianamente, pois ela garantia a fartura e lazer, além de permitir as inúmeras
lembranças desses espaços intrinsecamente ligados, no cotidiano e na memória da
comunidade negra de Vila Bela. A cidade é o espaço das festas, de um “glamour afro”,
as mulheres sempre estavam presentes, em jantares, rezas, danças. Castelnau, também
narra uma passagem sobre a importância e a participação feminina em Vila Bela, ainda
que surpreso, com os comportamentos e a participações de mulhers negras em jantar
oficial:
... Tínhamos sabido que , por uma consideração muito especial
deveríamos jantar ao lado das principais damas da localidade.
Esta excepção aos costumes dos brasileiros era em parte também
devida ao fato de ser esposa do comandante, homem superior sob
todos os pontos de vista, natural de Buenos Aires. Estávamos
bastante impacientes pelo momento de sermos apresentados ás
senhoras, quando o dono da casa, tomando-me pelo braço, disseme que o jantar estava na mesa. Levou-nos então para uma grande
sala de refeições, onde em cima de uma comprida mesa estavam
todos os produtos da zona. Num dos lados da mesa estavam
agrupadas umas doze mulheres muito bem vestidas, quase todas
mulatas e com aparência de grande acanhamento em face dos
estrangeiros144.
Fatos como descritos por Castelnau, eram comuns desde o início do século
XX, como nos conta D. Eugênia, ao dizer sobre como, e a quantia de coisas que as
mães e mulheres tinham que dar conta:
Então, não era igual hoje que tudo tem empregado pra fazer,
mulher tinha que plantar, cuidar da casa, ensinar as crianças no
serviço, costurar os trapo que tinha, esse limpar quintal, regar as
hortas, cozinhar ir pro rio lavar roupa, rachar lenha, um punhado
de coisa que hoje quando vai fazer, tá fácil e tudo reclamando de
barriga cheia145.
143
Depoimento de D. Gregória Marques Ramos. Entrevista realizada em julho de 2002, em Vila Bela.
CASTELNAU, Francis. Expedições às regiões Centrais da América do Sul. 2º vols. São Paulo: Ed.
Nacional, 1949, p. 367. Nesse relato o viajante é convidado para um jantar, e fica surpreso com a
participação das mulheres, porque já tinha passado por várias regiões do Brasil, como ele mesmo salienta;
“foi a única vez, desde que tínhamos saído do Rio de Janeiro, que vimos mulheres tomarem lugar a
mesa”. Temos que levar em conta também que nesse relato, é descrito os tipos físicos dos negros,
extremamente preconceituoso e ofensivo, sendo levados como posição superior aqueles oriundos de
outros paises, com raças superiores.
145
Depoimento de D. Eugênia da Silva, entrevista realizada em julho de 2004, em Cáceres. D. Eugênia
diz, que hoje a vida das mulheres está mais fácil, porque tem fogão a gás, não tem que socar pilão, e as
mulheres ainda reclamam.
144
61
E numa roda ou outra entre causos e causos, lá estão as mulheres se articulando,
é o lugar das trocas simbólicas, onde se ensina um prato, se aprende a letra de uma
música, alguma reza, enfim o espaço das lembranças, onde inventam e re-inventam suas
paisagens.
Nos encontros na frente das casas, rememoram, mitos e lendas, uma das mais
contadas é a da lagoa encantada, na época da quaresma as memórias parecem fluir com
suas histórias e estórias. A transformação de pessoas em bichos é o gênero mais comum
como podemos observar:
..Mas, não é... essa mulher que despejava antes do tempo, sabe
filha, é... no tempo de quaresma a gente escutava urro, esse gente
mais antiga contava, essa mulher que despejou virava porca,
também tinha muito lobisomem...esse povo do pesado sabia faze
cabelo vira cobra, eu vi, ninguém me contou não, eu vi..tá
146
duvidando fia? Confirma aí com comadre Mariinha .
Nesse mapear de histórias, observa-se a importância do compartilhar de causos,
entre as mulheres negras, uma espécie de treino para que os detalhes e costumes não se
percam... para que as histórias e contos sejam repassados, assim também acontece com
as canções, que também são cantaroladas nesses encontros, sejam nas praças, os que
ainda freqüentam, ou nas frentes e quintais da casa da cidade. Rememorar, o tempo das
pascanas, os causos do tempo da poaia, parece um deliciar, vemos a vontade dos
depoentes em narrar, querendo impulsivamente contar suas histórias, querem que suas
lembranças fiquem registradas147.
Mas o que é assunto escorregadio mesmo, são as práticas e feitiçaria, depois de
muito perguntar, observar, fui indicada para fazer entrevista com uma senhora, que foi
muito receptiva, e pediu para que eu não mencionasse o seu nome, e por isso
146
Depoimento de D. Eugênia da Silva Mendes, entrevista realizada em julho de 2004, em Cáceres: a
depoente tem 103 anos de idade, e justifica sua vitalidade por conta da alimentação. Segundo outras
depoentes, D. Eugênia era casada com um dos chamados praticantes da pesada, o Sr. Cassemiro, que
possuía orações poderosas. Povo do pesado quer dizer, feiticeiros fortes, como já dissemos assunto cujo a
maioria dos depoentes se negam a comentar e/ou relatar. Lembro que a expressão despejar fora do tempo
quer dizer, abortar a criança.
147
Ouvir essas memórias, lembranças e causos, permite ao pesquisador passear nas lembranças, em uma
Vila Bela geograficamente diferente, os lugares a medida que são relembrados, vão ativando outras
memórias... é um apreender nesse universo cheio de códigos.
62
utilizaremos um codinome, D. Beija. Perguntei a D. Beija, porque era tão difícil falar a
respeito das práticas, ou dos conhecidos praticantes da Pesada na cidade de Vila Bela, e
ela muito espontaneamente respondeu:
É medo! As pessoas tem muito medo porque tem muita
rivalidade, aqui tem bastante gente que faz a magia, mas não
admite, tanto é que a maioria dos lugares onde fazseus rituais,
estão em Lacerda e Cáceres, porque aqui fica difícil esconder.
Tem gente que só faz simpatia, outros já são da pesada, forte
mesmo, que trabalha só no tempo da quaresma.Por isso que o
pessoal de antigamente tinha medo, os de hoje também, mas Dante
era mais sim. Tinha um tal de Ciriaco, ninguém mexia com ele,
não, era feio, mas ninguém falava, porque ele fazia um tipo de
feitiço que matava a pessoa de tanto que ela ria... ninguém atrevia
de bulir com ele, então antes dele morrer, ensinou tudo a uma
sobrinha, que é da pesada. Essa gente da pesada, tira e põe, sabe?
Sabe cada tipo de oração que a gente fica bobo, por isso é que
sabem até o dia que vão morrer.148
Esses assuntos, a comunidade de maneira geral tem sempre um jeito de
desconversar, ou quando tocam no assunto é somente junto a família nuclear: mas D.
Beija, que também é uma praticante da Magia, como ela mesmo faz questão de dizer,
nos diz que o perigo está na má intenção. Se souber de alguma história é melhor contar,
para que as pessoas saibam que existe, mas não para dar medo, ou tentar fazer a
maldade, como muitas pessoas já fizeram, e segundo D. Beija, tiveram o castigo que
mereceram. Em outro trecho de sua narrativa, D. Beija nos apresenta como são feita as
escolhas dos iniciantes da magia, e como são repassadas esses conhecimentos.
Todo mundo faz magia filha, tudo é uma questão de fé... quando
criança nasce, a gente faz uma porção de simpatia pra criança
ficar protegida junto com a mãe, tudo com muito respeito com os
santos. Tem gente aqui na Vila que diz ser da pesada, mas não
sabe de nada, é só conversa fiada. O povo mais forte já tão tudo se
acabando, na minha conta só tem três, eu e mais dois, mas eu já to
quase indo por isso é que já to ensinando as reza, os remédios, e
as magia do cuidado. Sempre nos escolhe aquele que tem
compromisso com algum santo e é mais velho,no meu caso quem
ensino foi mulher, aí tenho que passar pra mulher, e de quem foi
ensinado por homem tem que passar pra homem, assim que
148
Depoimento de D. Beija, realizada em Outubro de 2005. Como já deixamos claro D. Beija é apenas
um codinome,para preservar a identidade da depoente, que nos conta histórias, que a muito tempo não se
falava. A respeito dos lugares, ela se refere a terreiros e/ou centros de Umbanda e Candomblé.
63
funciona, até chega sete, aí continua quem quer...quem não passa
pro outro, quando se vai não descansa, tem que ensinar,
ensinaram nós pra gente ensinar, mas não é pra qualquer um, tem
que ser com cuidado149.
Estes são alguns fragmentos desse mundo misterioso, guardado a sete chaves na
vida dessas mulheres. Estas narrativas sobre o mundo das magias, já causaram muito
medo nas crianças, hoje mulheres, que vivenciaram a época das pascanas, e a vida na
roça, das histórias contadas por suas mães, tias, avós150.
Um episódio valente e audaz por parte das mulheres, foi na década de 1970,
quando elas tomaram a prefeitura, em um período de uma crise econômica, se Vila Bela
abandonasse a prefeitura, poderia perder o status de município. Foi nesse contexto em
que as então secretárias do município, Cirila Ribeiro Coelho, Verena Leite de Brito e
Cirila Francisca da Silva, preservaram o funcionamento da prefeitura. Mediante controle
de verbas, era a comunidade que se unia em mutirão e fazia a limpeza da cidade. Assim,
as verbas eram utilizadas na compra de alimentos que eram distribuídos aos
participantes do mutirão, fazendoeconomizar em outros setores para que, a prefeitura
pudesse reabrir suas portas.
No momento crítico da crise, a prefeitura foi abandonada pelos homens, e sem
prefeito, foi restituída pela ação audaciosa das mulheres, que faziam reconhecer nesta
atitude, a força e o perfil de uma comunidade étnica negra. As secretárias garantiram a
Vila Bela sua autonomia , e inscrição na unidade administrativa. Essa ação é guardada
na memória da comunidade, como nos conta a entrevistada:
Foi um tempo bem difícil, eu lembro de mana Cirila, com as
outras, tomando frente da situação, tinha pouco dinheiro na
prefeitura, então desse pouco que era pra limpeza da cidade, elas
chamavam o povo, pra ajudar, e o dinheiro eles compravam
149
Depoimento de D. Beija, realizada em Outubro de 2005. Segundo a depoente antigamente parecia mas
fácil as escolhas, hoje, já não se dá mais o devido respeito a esses saberes, os jovens( nem todos) vem
com deboche, por conta disso é que em alguns casos, o escolhido e/ou a escolhida não necessariamente
deve pertencer a família.
150
Num esforço de aprender o que lhe é repassado, as jovens, meninas –moças como são chamadas pelas
anciãs, fazem seus rituais secretos, cumprem com todos os requisitos, para adquirir gradualmente outros
saberes. Quando indagadas sobre tais práticas, sempre diziam que era para eu perguntar para tal senhora,
geralmente aquela que repassou o cohecimento. Muitas vezes eram tias, mães, sobretudo as avós.
64
alimentos para aqueles que ajudassem, até a situação da
prefeitura aprumar de novo, mas deu certo ainda bem.151
Esse movimento, se assim pudemos chamar, deu novo ânimo à comunidade, e é
lembrado com orgulho por todos.
A preocupação masculina é diferente da preocupação feminina, que busca firmar
a identidade e harmonizar a comunidade. O grupo feminino que assumiu a prefeitura em
crise não estava preocupado com o prestígio trazido pelo poder, tão exaltado pela
masculinidade, mas, com a continuidade deste poder nas mãos dos pretos, que
posteriormente perderam a prefeitura para os brancos. A luta dessas mulheres era para
que isso não viesse acontecer, entretanto, a administração posterior da prefeitura da
cidade passou para o comando dos grandes proprietários de terras e demais agentes da
frente de expansão, em sua maioria brancos, que agiram e agem no sentido de
marginalizar a comunidade negra, como se esta estivesse alheia ao processo.
Apesar e por causa da presença dos brancos, nesse território negro, a comunidade
dos pretos continua sua luta pela afirmação da identidade étnica, articulando, inclusive,
mecanismos que possam resultar em poder político, como a conquista da prefeitura da
cidade, hoje comandada por brancos o que incomoda algumas pessoas da comunidade
comprometidas com as questões de identidade étnica. Os filhos de Vila Bela, pérolas
negras, versáteis, falantes e dignas que tiveram oportunidade de sair para estudar, hoje
articulam movimentos buscando garantir a afirmação dessa identidade152. Pode-se
analisar as atitudes dessas mulheres como de preocupação com o grupo, e não com o
poder, porque o fundamental era não fechar a prefeitura, e garantir que ela
151
Depoimento de D. Gregória Marques Ramos, entrevista realiza em Dezembro de 2003. A mana que a
entrevistada se refere é Cirila Francisca, já falecida, que também foi professora, mas atuou por mais
tempo da sua vida no município vizinho, Pontes e Lacerda.
152
No ano de 1999, foi criado o Instituto Tereza de Benguela, assim denominado em homenagem à rainha
do Quilombo do Quariterê, com a proposta de cultivar as tradições étnicas e oferecer incentivos de cunho
financeiro às produções artesanais, danças e demais expressões culturais da comunidade negra.
Conquanto este Instituto42 esteja, atualmente, sofrendo um processo de desarticulação, em grande medida
devido a um desentendimento de cunho político com a administração municipal, é importante ressaltar
que, para o público externo, Vila Bela continua sendo uma cidade de negros, comandada por negros. Esta
imagem é comum nas falas das pessoas que se referem a Vila Bela, quase sempre mencionada como uma
cidade de pretos. Este fato,da tomada pela prefeitura, aconteceu nos anos de 1970, logo depois do
ocorrido, cerca de 3 anos depois, Verena Leite de Brito, falece, e 19 anos depois D. Cirila Francisca
falece, permanecendo apenas D. Cirila Coelho, já muito adoentada.
65
permanecesse nas mãos da comunidade negra. Este sub-tópico ficaria empobrecido, pois
privilegia um passear na memória feminina, e excluir esse episódio, seria como fechar a
prefeitura, nos idos anos 1970. Narrar esse episódio, significa para essas mulheres,
reconhecer a sua luta, pelo espaço dos negros, e pela identidade étnica.
66
2. 3 -ENSINAMENTOS E APRENDIZADO: PRÁTICAS DA ROÇA
Queria vê se filho fazia isso Dante, mas aonde, fica aí escutando
conversa de mais velho, só ia toma tesa153!
Para compreendermos a relação entre aprendizagem e a terra, é necessário,
passarmos pelo âmbito da educação familiar. Os ensinamentos primam por uma
educação que perpassa pela questão do respeito aos mais velhos. Ser mais velho
significa ter mais sabedoria, mais conhecimento; aceitar ou passar por sua correção
significa garantir desde os primeiros tempos de criança a aprendizagem comunitária.
Nesse contexto é que está a explicação de todos aceitarem a correção dos mais
velhos154, tanto os de fora como os de dentro do círculo familiar, pois o que importa é a
sabedoria que os mais velhos detém, sobretudo as madrinhas e padrinhos.
A relação do aprendizado com a lida se dá à medida que as crianças vão
adquirindo capacidade física, para assim ir contribuindo nas atividades dos pais.
Ajudam nas tarefas da roça, como rachar e catar lenha, lavar os potes para a
conservação da água, além das atividades domésticas como: lavar, passar, cozinhar,
trançar baquités e mufambas155, costurar e aprender os quitutes da cultura, essas
geralmente eram atividades de meninas. Aproveita-se a coleta de lenha para, também,
transmitir às crianças e aos mais crescidinhos, também os segredos da mata. Aprendem
a nomear e a reconhecer as variedades das plantas, as peculiaridades das plantas
medicinais, e aproveitam para divertirem na colheita, na época adequada, dos frutos
silvestres: siputá, melão caipira, laranja do mato, goiaba, canjiquinha, mangava,
marmelada lisa, marmelada de cachorro, tucum, acaiá, grão-de-galo, ingá, siriguela,
pequi.156
153
Depoimento de Damiana Frazão de Almeida. Entrevista realizada em julho de 2000.
Sobre a importância dos mais velhos na comunidade, Antonio Candido em sua obra Os Parceiros do
Rio Bonito, ressalva as mudanças de relações entre pais e filhos. Em Vila Bela, as matriarcas garantem a
reprodução das práticas culturais, ainda que alguns jovens resistam. Sobre o assunto, ver: MELO DE
SOUZA, Antonio Cândido. Op. Cit., 1982, p.247.
155
Baquité é uma espécie de bacia alta, feita de palha de milho, artesanato confeccionado para a colheita
de milho na maioria das vezes era feito pelas mulheres. Já a mufamba, é um cesto grande e alto, feito para
a colheita da mandioca, e servia de medida na produção da farinha, era feita da folha de um coco
chamado de acurí, do pé de acorizal.
156
Colher as frutas, e esperar o tempo certo eram diversão e aprendizado para as crianças, que se fartavam
com as frutas silvestres, e as travessuras que faziam para colhe-las.
154
67
O campo é o espaço onde se falam das imensas variedades de pássaros da região
da fauna em geral, um espaço estimulador de aprendizados e histórias.Um dos primeiros
aprendizados sobre a fauna é o reconhecimento dos pássaros, além de aprenderem a
denominar, as crianças ficam atentas para saberem os segredos e significados que essas
aves podem trazer. Percebe-se isso através de seus movimentos, seus cantos, podendo
apreender grandes lições de vida. Os pássaros podem anunciar, por exemplo, a chegada
de alguém, mudança de temperatura e fartura, e até más notícias. Segundo os depoentes,
o pássaro Vem- Vem, quando canta, é sinal que visita está para chegar.
Na mata principalmente quem foi poaieiro157 tem muitas histórias para contar,
alguns depoentes homens contam sobre a lida no tempo da poaia, onde aprendiam
muitas histórias e estratégias para sobreviver na mata. Como nos conta seu Manoel:
Na época da poaia nós ficávamos até mês longe de casa, era
mulher que era chefe de casa, tinha muita dificuldade, mais nós
aprendia muito, uma porção de coisa, que depois a gente ensinava
pros filhos.Quando arara cantava era vento sul que ia bate, vemvem era gente que ia chega, mais num era bom quando curuja
cantava, porque não era coisa boa, alguém ia estar doente, ou ia
até morre. E também tinha muito índio, por isso que num podia
leva criança, era perigoso, eu perdi um cunhado, que foi morto
com flechada de índio, mais nós dava conta, tinha que cata poaia,
ia fazer158.
Por conta dos anúncios que os pássaros trazem é que a comunidade não gosta
que a coruja cante, pois, esta pode anunciar doenças ou mesmo a morte, ou ainda estar
gorando alguém que já morreu, ainda como rege a lenda sobre as aves, o anu. A criança,
ou um adulto que matar um pássaro da espécie terá sete anos de azar. A natureza, nessa
fase de intensa oralidade do povo de Vila Bela, é sentida como algo que se comunica
com o homem.
Daí
a
necessidade
e
importância
de
assimilar
e
apreender
essas
comunicações159. Há infinidades de narrativas que as retratam: o cantar e o transitar dos
157
Poaeiro,é a denominação dada à pessoa que extrai a poaia, uma raiz que também é conhecida como
Ipecacunhanha, ou simplesmente ipeca. O nome científico é Cephaeles Ipecacuanha, e no meio social é
conhecida como ipeca, a. Neste trabalho estarei usando a denominação poaia por ser mais usado na
sociedade Vilabelense. A poaia era exportada para Europa para ser usada na produção de medicamentos
contra diarréia. Sobre Poaia, ver Dissertação de Mestrado em História- MORAIS, Cleonice. OP. Cit.,
Capítulo I.
158
Depoimento de Ricardo Manoel Ramos. Entrevista realizada em julho de 2002.
159
Nesse sentido é que utilizo as denominações de códigos e/ou codificações utilizada pela comunidade.
Pois um olhar, uma fumaça que aparece diferente tem sempre um simbolismo para a comunidade. Daí a
68
pássaros e animais. E é de responsabilidade dos mais velhos, detentores dessa
percepção, ensinar desde cedo as crianças a ler e interpretar, com maestria, esses
conhecimentos e segredos revelados pela natureza. São segredos e códigos que são
repassados a cada geração, os cuidados com o viver da roça, respeitado essa relação do
homem e da natureza.
Essa paisagem tão importante para o aprendizado, das crianças e para uma
vivência harmônica, já na década 1970, era anunciada nos jornais, como sendo área de
interesse dos empresários, conforme podemos ver no fragmento de Jornal:
Interesse: As riquezas da Amazônia começam a atrair
interesse do empresariado nacional. A superintendência de
desenvolvimento da Amazônia já tem 22 projetos na região,
com investimento superior a 260,00 milhões de cruzeiros160.
Os códigos desse aprendizado agora teriam que estar ainda mais codificados,
porque a terra, a região onde se vivia, podia já não ser a mesma, em virtude dos
latifundiários que já se instalavam na região do Vale do Guaporé.
E nessa relação que as mulheres negras, pérolas negras repassam às suas filhas e
netas, segredos das plantas medicinais, dos quitutes, e alguns ritos, aos filhos eleitos.
Como já observamos, no tópico Memória de uma Cidade sobre o ritual do nascimento,
e apresentação da criança a lua, as ervas medicinais, estão presentes desde o nascimento
da criança, e com elas se convivem até o final dos dias, pois, preparam-se os chás,
compressas, benzeção, e, algumas vezes, oferendas aos santos. No sítio, na ausência de
médicos, eram as benzedeiras que assumiam tal função, remédios eram as ervas e
simpatias tudo ligado ao que a natureza poderia oferecer161.
Como destaca o poema de Peraro, é a sapiência das mulheres de secretas
confissões, de segredos: das receitas confessas às filhas (o Kanjinjim), das ervas, dos
importância da natureza, ela ensinava a respeito dos símbolos, e as possíveis alterações na natureza.Ver
PINTO, Benedita Celeste. Parteiras e “Poções” vindas da Mata e “Ribanceiras “dos Rios. In: Natureza e
Poder. Projeto História, 23. Revista do Programa de Estudos Pós Graduados em História e do Deptº. de
História da PUC/ São Paulo: 1997.
160
Jornal: Diário de Cuiabá: Caderno Diversos, Ano: III- 1 de dezembro de 1971- N° 754- A
propaganda por parte do Governo era intensa, e a tranqüilidade da roça já começava a ser diferente.
APMT
161
A respeito das parteiras e benzendeiras, Maria Lúcia Mott, em seu artigo que trata sobre a importância
da parteira, a autora nos apresenta a importância e o papel dessa mulher na sociedade, colocando-nos a
par da existência de um curso de parteiras ainda na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro.
69
medicamentos da gustação que permitiam a transmissão dos códigos162. O
conhecimento e a manipulação da flora medicinal, constituiu-se em uma importante
estratégia de negros e índios, dos quais os brancos, participavam e utilizavam tal prática,
quase sempre curando-se do mal que os afligiram.
Além de oferecer recursos medicinais, a rica flora do vale do Guaporé, permitia
o lazer, como as pascanas, que já foram ditas, ou seja, os passeios nas pequenas ilhotas
ao longo do rio Guaporé, assim sobre as sombras das árvores, faziam quitutes, e
pescavam, além de contarem muitas histórias, sobretudo se fossem acompanhados por
pessoas mais velhas. A produção da comida era feita com o que a natureza oferecia,
como: o chá de erva cidreira, suco das frutas, bolo de mandioca, de arroz, de milho,
enfim, uma infinidade de guloseimas, receitas que até os dias atuais, estão presentes nas
festas de santo. Divertindo-se e tendo sempre respeito pelos mais velhos, as crianças
iam aprendendo, os segredos da mata, o lidar com a roça e atividades domésticas.
Os meninos, mais precisamente na adolescência, acompanhavam os pais, e já as
meninas ficavam sob a guarda das mães até se casarem, aprendiam sobre as regras para
um bom plantio, bem como a prosperidade de uma boa colheita. A divisão do trabalho
persistia nas formas coletivas e de rituais, tudo o que era plantado passava pelo mundo
simbólico dos rituais. Cabia ao homem, a derrubada da mata, a limpeza e o prepara da
terra,geralmente os filhos homens acompanhavam os pais nesse tipo de trabalho. Às
mulheres cabia o plantio e a colheita, uma interação simbólica com a terra,
demonstrando o respeito à fertilidade Além disso, aprendiam a fazer conservas de
alimentos; cada carne de caça era conservada em sua própria gordura; faziam lingüiças,
carne de sol, paçoca e conservavam dentro de latas, como observamos no relato abaixo:
...Quando papai, ia para a mata da poaia, ficava mais de mês pra
lá, eles levavam tudo de conserva que as mulheres faziam,era
carne de anta frita, na gordura da própria anta, de paca, de
tartaruga, peixe seco, tudo dentro de latas. Fazia paçoca bem
sequinha que durava mês,Paçoca de peixe levava arroz e feijão
pra fazer nos acampamentos, tudo era retirado da roça da gente,
era fartura e quando acabava a carne, eles matavam algum bicho
até interar os dias de voltar pra casa, daí o que sobrava ele trazia
pra nós, s a gente lá em casa ficava esperando o tempo do pai
voltar da mata... eu era menina de tudo mais lembro de muita
MOTT, 1999, p. 135. A associação dos termos parteira e benzedeira, foi eleita em virtude da maioria das
parteiras vilabelenses também serem benzedeiras.
162
Ver na abertura deste trabalho de dissertação, o poema escrito por PERARO, Maria Adenir. Pérolas
Negras, Mulheres Negras. Cuiabá: Deptº. de História/ UFMT, 2003.
70
coisa...163
Assim, os jovens da época, hoje mães e pais de famílias, relembram os rituais
que aconteciam na roça, daquela vida de dificuldades, mais que a natureza
recompensava, mantendo a fertilidade da terra e oferecendo os alimentos para muitas
famílias. O muxirum (mutirão) era fato costumeiro nos sítios, fosse na plantação quanto
na produção. Geralmente no plantio, somente o núcleo familiar participava, já na
colheita apareciam mais alguns parentes, e na produção de farinha por exemplo,
juntavam várias famílias para a produção.
Nas atividades cotidianas como já foi dito, cabia à mulher, o cuidado com os
alimentos, seu preparo, o abastecimento de água, as lavagens de roupa, o trabalho com
pilão, e a confecção artesanal, de coletores, como a mufamba e o baquité. Havia,
portanto, uma divisão sexual do trabalho na estrutura de produção, homens e mulheres
tinham atividades específicas na produção de farinha, de rapadura, era um verdadeiro
ritual. As famílias chefiadas por mulheres, geralmente trabalhavam nas roças maiores,
depois a produção era repartida. Também eram as mulheres quem pescavam para o
consumo diário, já para o estoque de peixe seco essa era uma atividade masculina
quando havia a presença paterna no núcleo familiar. Para a comunidade a mulher tinha e
continua tendo a função, a responsabilidade para com as crianças, portanto era quem
educava, e que ensinava boa parte das atividades na vida do campo. Essa relação com a
natureza permitia aos negros, retirar dela os meios de sustentação:
Pois é filha, a natureza permitia pra nós muita coisa boa, as mais
velhas ensinavam os pequeno a viver na roça, meninadinha
aprendia de tudo, só não caçava esse era de outra ordem, mais de
tudo sabia um pouco, planta, fazer conserva, tira óleo de babaçu e
mamona, aprendia pesca, esse nos passeio era bom! Moçadinha
juntava e ia pasquear, ficava na pascana, limpava e ficava lá pra
se divertir, pois naquele tempo não tinha televisão, no sítio mesmo
que não tinha, e pra vim na cidade pra baile esse também eles
gostavam panhava canoa e vinha...De lá já aproveitava e trazia
pra cidade, ás coisa do sítio, esse criação, caça, verdura o que
cabia na canoa vinha, trazia pra comadre fulana, pra comadre
ciclana, e assim ia..164.
163
Entrevista realizada com D. Maria das Dores Ramos. Percebemos nesse depoimento o primar pela boa
memória, ressaltada na frase que diz, era menina de tudo, mas eu lembro bem. Mas como pesquisadores,
temos que ter o cuidado de não levar a história como verdade, pois essa memória emite tais efeitos, e é
seletiva. A respeito da metodologia ver: MONTENEGRO, Op. Cit., 2001.
164
Depoimento de D. Gregória Marque Ramos, entrevista realizada em Julho de 2003.
71
Boa parte da produção era vendida para a cidade de Guajará - Mirim, Rondônia.
Dessa maneira, o que não era possível produzir no sítio, as famílias adquiriam por meio
de trocas, ou do dinheiro que obtinham através da produção excedente. A natureza e a
vida da roça ofereciam praticamente o necessário à sobrevivência, até porque o acesso a
outras cidades ficava difícil, pois não havia estradas e Vila Bela estava relativamente
isolada, como vimos no Capítulo 1, tópico1.1, cabia então a população tentar solucionar
suas necessidades com as localidades mais próximas o possível. Ressaltamos que havia
o recurso de aeronaves, do Cruzeiro do Sul e Força Aérea Brasileira (FAB), que
ofereciam um acesso às demais localidades, como, Campo Grande, Cáceres, Cuiabá.
Outro recurso era o fluvial, que através das lanchas deslocavam as pessoas
principalmente para o Estado de Rondônia, onde havia um intenso contato comercial
por conta da navegabilidade pelo Rio Guaporé, e aqueles com condições financeiras,
iam estudar no território federal165.
Sobre o universo dos sítios, D. Mati, como era mais conhecida pela comunidade,
nos apresenta algumas denominações de roças e/ou sítios. Descrevendo de quem e onde
ficavam próximos esses lugares, num cartografar das lembranças, muito peculiar na
memória feminina das negras de Vila Bela, assim através de suas lembranças,
desenhamos junto com a depoente a localização dessas terras de farturas, mitos e lendas:
... sítio lá prá cima acabou tudo. Tinha Basto, Morcego, Barranco
Alto -, Manga, Piúva. Bom, Piúva num demorou muito, era de
Mané Satiro. Piuva era vizinho de ‘Barranco Alto’, sempre nós ía
lá passear... Tinha Basto, quem morava lá era finado Antônio
Álvaro. E, pra cá - perto de Vila Bela - era Pedrera aí, Dona
Maria, Basto, Passagem, onde morava tio Mamédeo, daí da
Passagem vai no Basto, aí era Morcego, não! primeiro era aonde
morava avô Ginio, já esqueci nome desse lugar. Depois tudo
mudaram, largô aí, foi pro Morcego. Porto de Ema, aonde morava
Bonifácio Botelho com Mana Luíza (...). Tudo, esse tudo era sítio.
De dante tinha sítio prá lá; aí, na ocasião da festança que vinha
aqui prá cidade (...). Tudo andava de canoa, botava tudo na canoa
e vinha...166
165
Grande parte das jovens mulheres, iam estudar em Cáceres, ou no Estado Federal de Rondônia, ainda
na condição de território, na década 1970.
166
Depoimento de D. Matimiana Francisca da Silva, cedido por Acildo da Silva Leite.
72
As canoas eram os principais meios de transporte, pois, para ir até a cidade, na
Vila, ia-se através das canoas que traziam, as carnes de caça, o que era produzido no
sítio: farinha, rapadura, óleo de babaçu, óleo de mamona, mandioca, milho, enfim,
traziam um pouco da fartura do sítio. Muitas histórias, geralmente narradas pelas
avós, e do sítio para cidade, da cidade para o sítio, as festas de santos, faziam estes
espaços complementares, interpenetrantes, o sítio pela sobrevivência e a cidade pela
crença... e nas canoas iam e vinham histórias, da roça e da cidade. Além de fonte de
alimento e prática da solidariedade e aprendizagem, nesses locais havia muitas vozes
que retratavam desde fatos reais até os sobrenaturais e imaginários. Com um
ambiente propício e até certo ponto estimulador, nesses sítios criaram-se e
reforçaram-se mitos, história e lendas, sempre funcionando como palco e seus
animais como personagens, dando mais veracidade a essas criações167.
167
LEITE, Op. Cit., p.203.
73
CAPÍTULO III- PÉROLAS NEGRAS, NEGRAS MULHERES: NO BRILHO
DAS FESTAS E NO CANTAR AOS SANTOS, A RELIGIOSIDADE
Vou lá e peço mesmo, sagrada família protege, e eu tenho fé168!!
No presente capítulo, apresentaremos, o aspecto da religiosidade, a relação das
mulheres com a natureza e seus santos. Por se tratar de um trabalho que tem o objetivo
de descrever e relatar as lutas pela identidade, as festas de santos, bem como seus ritos,
são de fundamental importância no estudo do processo de re-elaboração e resignificação das práticas cotidianas na comunidade negra de Vila Bela.
Compreender os códigos e mecanismos de estratégias das quais as mulheres
lançam mão nesse processo de externar sua cultura afro, faz - se necessário explicar a
dimensão que as festas de santos e suas práticas religiosas tem na composição de tais
identidades169. A representação da festa significa também promover os princípios de
resistência de uma comunidade que fez de escombros e ruínas território de uma
comunidade negra.
Recuperar a memória dessas tradições orais significa regenerar a história e a vida
deste país, às vozes e as práticas dos saberes. Em especial, de negros e índios, que a
memória branca tenta ofuscar se apropriando das sabedorias. Nessas narrativas
encontra-se a fecundidade entre dizeres e saberes de uma imensa integração. O trilhar
aqui proposto é recuperar os registros a partir do extenso universo feminino e suas
memórias, sobretudo de seus ritos, danças e festas.
Como nos ensina Johnson: o que importa na história oral não são os fatos acerca
do passado, mas todo o caminho em que a memória popular é construída e
reconstruída como parte da consciência contemporânea170..Ainda segundo o autor, a
questão como os historiadores vão fazer uso (se apropriar) de suas fontes é um problema
da história oral como das áreas afins. A dificuldade e/ou habilidade de transformar a sua
168
Fragmento do depoimento de D. Gregória Marques ramos. Entrevista realizada em, julho de 2002.
A respeito da importância religiosa e a construção da identidade, Ver obra de JOAQUIM, Maria
Salete. Op. Cit., 2001, p.22, a autora nos aponta a necessidade dessas práticas frente a re-laboração das
identidades.
170
JOHNSON, Richard. & GRAHAM, Dawson. Popular Memory: theory, politics, method in making
histories-studies in history, writing and politics. Londres: Hutchinson,1982, p.213.
169
74
fonte depende do historiador na interpretação das narrativas coletadas. Veremos a seguir
as muitas memórias de seus santos e suas festas, e um re-laborar da realidade, e as
próprias seleções e cuidados que os depoentes conscientes ou não, nos contam sobre
seus santos (os de casa) e os comunitários (santos da rua) e suas práticas na produção
das festas.
FONTE: Rainha e Rei de São Benedito,Vila Bela, 2000. Acervo da Família Ramos
Como Guimarães Neto, fez em sua tese também lanço mão do ponto de vista
feminino para ajudar a recompor paisagens e cenários, de uma Vila Bela das
lembranças, segundo a autora, a mulher tem um olhar microscópico, esquadrinhador
do ambiente da casa, das tarefas domésticas inseridas na organização da produção de
subsistência171. As mulheres, são como as pérolas guardam em si o mais imperceptível
171
GUIMARÃES NETO,Regina Beatriz. Grupiaras e Monchões: Garimpos e Cidades na História do
Povoamento do Leste de Mato Grosso- primeira metade do século vinte. Tese de doutoramento ( mimeo).
São Paulo: Unicamp, 1996, p. 63-65.
75
dos grãos de areia. E nesse terceiro capítulo, a memória e os detalhes parecem vir a
tona, a religiosidade, festejos e ritos é o externar de toda identidade Vilabelense.
A imagem abaixo, apresenta-nos o cenário dos Santos, a Igreja Matriz que mesmo em
ruínas tem um significado todo especial para a população, pois foi uma construção
realizada pelos escravos. Além disso há todo uma força cósmica que confere proteção a
cidade e aos seus moradores.
A pombinha vem voando, por cima da Bela Matriz, vem dizendo,
viva! viva! Viva a Nossa Imperatriz172.
Fonte: Site: www.vilabela.com.br
172
Trecho da música em louvor ao Senhor Divino; reforçando a importância da matriz, Ruína como é
popularmente conhecida.
76
3. 1- OS SANTOS E SUAS FESTAS
A pombinha vem voando, por cima da laranjeira, vem dizendo,
viva! viva! Viva o alferes da Bandeira..173.Canto ao Senhor Divino
Como vimos no sub-capítulo anterior, o nascimento é algo marcante para a
comunidade negra de Vila Bela, e é na infância que se aprende as obrigações religiosas,
é a inserção da criança no mundo do sagrado. Conforme Leite,
a questão do nome está diretamente ligado ao ato de dar à
criança o nome do santo de seu dia significa também
propiciar, a essa criança, um conhecimento e uma
aprendizagem religiosa, mesmo porque, ela tem que saber
tudo sobre esse santo, sua história, seus milagres, sua reza e
até os seus castigos. Isso tudo é ensinado e explicado a esse
novo devoto174.
Podemos observar assim a interação e a importância dos dois mundos, o do sítio
e o da cidade, partimos agora rumo às festas religiosas, momento em que se entrelaçam
com o cotidiano dos sítios, da cidade e da natureza humana.
Até a década de 1960, aproximadamente, o número de festas religiosas, rezas, e
culto aos santos eram numericamente significativas, sendo alguns dos santos de casa e
dos comunitários os mais reverenciados: Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do
Pilar, Nossa Senhora Senhor Menino, do Carmo, Nossa Senhora da Boa Esperança,
Mãe de Deus, Nossa Senhora da Conceição, Senhor Divino, São Vicente, São Benedito
e Três Pessoas. A partir da década de 1980, esses santos resumem-se a três santidades: a
de São Benedito, Senhor Divino e Três Pessoas, celebrações denominadas de festança.
Ainda pode-se considerar como santos comunitários: Santo Antônio, São João e São
Pedro, uma vez que na época propícia (geralmente no mês de Julho), desses santos, toda
a comunidade lhes presta homenagem. A memória das festas está intimamente ligada ao
173
Trecho da música em louvor ao Senhor Divino; essa música é cantarolada, na coleta da esmola para
fazer a festa do santo.
77
seus santos, e assim, nos narra a já falecida Matimiana:
... Íííí, a festa de santo nessa casa daí (mostra a casa em
frente onde conversávamos), era animado, quem mais quem
num queria vim nessa festa de Primo Ricardo (refere à festa
de Jesus, Maria, José). Era animado! Dante tinha muito
santo, algum tinha dois três. Como papai tinha Santo
Antônio, Tio Roque tinha, São Roque, tia Joana tinha
Senhora da Piedade, essa Santa era de avó Germana mãe
dele (...). Eu fui juíza de Nossa Senhora Piedade, meu juiz foi
primo Ricardo. Era assim como festeiro que vai com o santo.
Por exemplo, era aqui que é a reza né, e tem a juíza com o
juiz vai vestir como lá prá longe, né. Aí, leva o santo,
prepara, aí, de lá vem com ele. Tem algum vem com cururu
cantando e outro vem de toque de sanfona. (...) Eu fui vestí lá
na casa de, do juiz, primo Ricardo, vim trazer aí na casa
onde rezava, veio cantando cururu. Aqui, São João tudo ano,
quando num era com cururu; um terno ía com reza, outro
terno ía com cururu. São João que ía no rio lavar. Agora
num tem mais São João. (...) Assim como Margarida
Monteiro tinha São João, Sea Valessa tinha São João, Ana
de Brito tinha São João, esse Clarita tinha São João, esse
velha Cândida, que era avó de finada Teodora tinha São
João, finada Maria de Mato tinha São João uns ternos dele
que tinha São João. (...) Agora num sei porque tinha que levá
São João no rio, chega lá, molha tíade dele, assim, móia no
rio, outro toma banho mesmo. Tá fazendo frio, lá vai São
João no rio. Finado Mané Pedro, também, tinha São João,
uns terno deles tinha São João. Noite de São João nóis saía
com aquele lenção grande, vinha cheio de bolo, biscoito prá
casa. Chega numa casa ganha, chega noutro ganha, ia
juntando tudo. Aí, noutro dia ocê tá com aquele porção de
biscoito, bolo tudo. Uns fazia bolo, outro fazia biscoito, né
...175.
Além de descrever o cotidiano da festa, e a relação de lavagens de santo no Rio
Guaporé, D. Matimiana nos apresenta um número considerável de devotas de São João
e outros Santos. Atento para a proporção de homens que tinham santos e a proporção
das mulheres, tendo em vista que o primo Ricardo, do qual se referiu D. Matimiana, era
o maior ladainheiro, ninguém queria perder suas festas, mas na produção da festa, na
174
LEITE, Acildo da Silva. Op. Cit., p.85.
Depoimento de D.Matimiana, cedido por Acildo da Silva Leite. Conhecida e chamada carinhosamente
pela comunidade de Tia Mati, ou D. Mati.
175
78
arrumação de altares, fazer os bolinhos eram as tarefas religiosas femininas176.
Conforme Eliade,177 a religiosidade das comunidades tradicionais, significa para
esta gente o sentido de comemoração e rememoração, para que os homens dessas
comunidades não caiam no esquecimento de tudo aquilo que já é pretérito num tempo
primordial pois, esquecer, segundo o autor, é pecado. A comunidade vilabelense já
nasce em meio às práticas religiosas e seus ensinamentos, portanto, para evitar que isso
caia no esquecimento, reproduziam e continuam comemorando e rememorando as
aprendizagens religiosas pelo resto de suas vidas.
Os santos, como já foi dito, revelam e garantem um modelo de vida na região do
Guaporé. Apossar-se do santo, adotá-lo no nome, aprender sua reza, devotá-lo com
festa, todos esses rituais são a certeza que o homem guaporeano tem para constituir e
conservar sua verdadeira história, que em muitos momentos, se confundem com a
história desses santos. As memórias dos santos e suas práticas, vão sendo resignificadas, como nos aponta Montenegro:
[...] a memória coletiva tem uma dimensão individual ou
mesmo singular, como resultante da elaboração subjetiva,
que distingue, de forma bastante específica da história... a
memória é re-laborada constantemente178...
As memórias sobre os santos passam pela memória das festas que fazem para eles,
pois a comunidade não mede esforços para assumir as obrigações de outros membros da
família para com o seu santo. A devoção ao santo não se encerra com a morte do
devotante. Antes de morrer ele encarrega outro membro da família da responsabilidade
de continuar rezando para o seu santo. Daí, explica-se o fato de uma pessoa ter mais de
um santo de casa. A vida, a memória e o cotidiano do povo de Vila Bela passam a ser
marcadas por esses festejos religiosos. A responsabilidade imputada ao membro da
família tem que ser cumprida, sob pena de toda família ser castigada pela
desobediência, como nos conta a D. Beija:
176
As comilanças das festas de santos eram feitas pelas cozinheiras, um estudo bem elaborado, a respeito
das práticas alimentares é a dissertação de Marília Reis, onde a pesquisadora trata especificamente do
ambiente em que se produziam as guloseimas das festas, sobretudo das festanças. Ver: MOURA, Marília
da Conceição Reis, Op. Cit., 2005.
177
Ver ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 58.
178
MONTENEGRO, Op. Cit., p. 41, 42, 2001.
79
È assim, quem não promete não tem que cumprir, agora
quem promete todo cuidado é pouco, eu já vi castigo pega
cada família boa de vida que você não faz nem idéia, aí, essa
pessoa que não obedeceu de cumprir a promessa da mãe
que tinha morrido, ficou, léle da cabeça, a outra irmã pegou
lepra, os irmão viraram, todos bêbados, acabou com terra
plantação, foi só ruína, foi se acabando tudo da família,
porque não cumpriu com o prometido, acontece assim, vai
tudo se acabando179.
Brandão180, nos aponta a importância que essas festas de santo têm nas cidades do
interior do Brasil prende-se ao fato de, nesses lugares, as festas serem falas e memórias
de tudo aquilo que não pode e não deve ser esquecido e, sim, deve ser relembrado e
posto em evidência de tempos em tempos. Para o autor, essas festas estão
constantemente estabelecendo esses laços:
Mas eis que os símbolos dos sistemas das festas de que sou
parte, ou alvo, aos poucos me ensinam a substituir a pura
energia do desejo do prazer ou temor de seu fim em mim pela
serena vontade de conviver em paz comigo mesmo, entre
todos e possuir a compreensão de tudo. Eis que a festa
estabelece laços. Sou eu que se festeja, porque eu sou
daqueles ou daquilo que me faz a festa. Estou sólida e
efetivamente ligado a uma comunidade de eus-outros que
cruzam comigo a viagem do peso da vida e da realíssima
fantasia exata das festas que nos fazemos para não esquecer
isto.
A respeito das festas religiosas, Eliade181 vê essas práticas como ritualização de
acontecimento primordial de uma história sagrada, em que a comemoração dessa
história vem significar, para esses devotos, a participação no sagrado. Então, nesse
sentido, ela passa a ser considerada passagem de um espaço para outro. A medida em
que significa também, para os participantes, a oportunidade de viver periodicamente na
presença de seus deuses. Conforme Pereira, isso é bastante comum aos praticantes do
179
180
181
Depoimento de D, Beija, entrevista realizada em outubro de 2005.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Cultura na Rua. Campinas: Papirus, 1989, p.09.
ELIADE, Mircea. Op. Cit., p.10.
80
catolicismo popular, em particular na comunidade vilabelense onde as práticas católicas
são misturadas com os ritos indígenas - africanos182.
As histórias sobre castigos para aqueles que não cumprem promessa, são
recorrentes na entrevistas, cada senhora ou senhor que entrevistei, quando iam falar dos
santos, faziam questão de dar algum exemplo, sobre o que aconteceu com esta ou aquela
pessoa, que faltou com o santo. Cumprir a promessa é um ato de respeito com o santo,
uma maneira de retribuir as graças alcançadas, um louvor, sobretudo quando alguém da
família falece e deixa alguém responsável para continuar com a prática.
O universo das festas de santos é o espaço da fé, das ladainheiras fazerem suas
apresentaçãoes183, na arte de conduzir a reza ao santo, isso significa mais proteção, tanto
para quem esta cumprindo com a promessa quanto para todos os que se fazem presente.
As famílias em Vila Bela, sobretudo as mais antigas, sempre tem em suas casas um
altar aos seus santos, os santos de que são devotos. Nesse trecho da entrevista, D. Góia
nos narra, a importância de seus santos de casa:
Eu rezo todo ano, para Sagrada família, porque vai proteger
toda minha família, tenho três filhos que não moram aqui,
rezo todos os dia por todos, e pelos meus netos também, peço
saúde e que a sagrada família os proteja sempre. Na semana
Santa no sábado de aleluia tiro reza pra sagrada família, aí
faço aquela porção de biscoito, e xixa pra dar depois da
reza, todo ano, é sagrado, tenho que fazer. Porque quando eu
preciso, eu peço com fé e a sagrada família me concede a
graça, por isso que arrumo altar, acendo vela, porque a
gente tem que zelar dos santos com fé e muito respeito184.
Mediante isso, compreende-se o motivo pelo qual, em Vila Bela, além das festas
dos santos de casa, o calendário religioso da comunidade dedicar também, um mês de
festa, conhecido até hoje como festança, aos santos da comunidade.
... Dante quem abria a festança era Senhor Divino, Senhor
Divino num dia, noutro dia São Benedito né. Que saí o
182
PEREIRA, José Carlos. Op. Cit., 2004, p. 44. Durante as celebrações católicas percebemos um entoar,
e um louvor diferenciado e algumas expressões africanas, ainda que dentro da Igreja Católica.
183
Como salientam os mais jovens, é hora de dar Show, uma disputa simbólica acontece a cada ladainha
que é tirada, uma vez que existe disputa entre as famílias.
184
Entrevista de D. Gregória Marques Ramos, realizada em Dezembro de 2003.
81
dançante né. E depois: Três Pessoa, Senhora Santana,
Senhora Mãe de Deus, tudo esse tinha. Tinha São Vicente,
Senhora do Pilar tudo esse tinha festeiro. Papai foi festeiro
de São Vicente, tia Joana foi de Mãe de Deus com finado
Petrunílio. Cada um santo tem uma infinja, o santo fica na
igreja e pessoal saí rodeando rua com a infinja né. Quedê
infinja mais que tem? Num tem! (...). E mamãe foi festeiro de
Senhora Santana com finado Mané Carlo, marido de Sea
Teodora. E papai foi festeiro de São Vicente com tia
Calorinda. E foi um festão! Tia Calorinda com um burro de
brinco na orelha! Um sapato de salto alto! E vem ele
dançando com papai! Um! Eu ficava ôiano ... 185
Contudo, o que “dante” era um mês de devoção e comemoração aos santos, a
partir de meados da década de 1980, está resumido a três dias de festa. Um dia para o
Senhor Divino, dois dias para São Benedito e uma semana após essas festas, devota-se
às Três Pessoas. As festanças ficam resumidas a esses três santos.
Há que se considerar que a festa aos santos simboliza um momento em que ela
equaliza os bens que adquiriu naquele ano, com toda a comunidade. Momento em que
comemoram as bênçãos e as proteções dos santos em todas as áreas da vida de sua
gente, bem como no seu trabalho cotidiano, caso as devoções não sejam cumpridas, a
comunidade pode arcar com as conseqüências na forma de castigo, uma vez que a
comunidade rompe com a credibilidade do santo para com seus devotantes. Como
Certeau diz, é o lugar social186, nas festas de santo estão as oportunidades de externar
não só as identidades, as vestes, mas a sabedoria local, ir além das danças, é como se
fosse uma grande feira, onde senhoras e senhoritas, explicitam seus bens simbólicos. E
caracterizar os códigos é emiti-los e agradecer ao santo a oportunidade de poder fazê-lo.
Para os vilabelenses, o Senhor Divino é um santo com existência própria,
dissociada da Santíssima Trindade, e identificado como o santo da cura, o consolador, o
misericordioso. Sua festa é de responsabilidade do Imperador e Imperatriz do Divino,
que todo ano são escolhidos por meio de sorteio junto aos membros da Irmandade do
185
Depoimento realizado com D. Matimiana.
CERTEAU, Op. Cit., p.66, 2002. Ao dizer do lugar social fala de seus pares, e também do que permite
e o que proíbe esse lugar social: utilizei o termo em analogia, aos espaços dos santos, como o lugar social
da comunidades, onde dizem só o que é permitido.
186
82
Divino. Segundo a memória popular187 é o santo que, a cada ano, escolhe o seu festeiro.
Isso tem um impacto muito forte no cognitivo da comunidade. Conforme alguns
depoimentos, a pessoa eleita pelo Divino, será muito abençoada, tendo seus pedidos
atendidos, isso acontece de acordo com a intensidade de fé do festeiro.
O Divino possui duas bandeiras, uma pobre188, que tem como função abrir o
cortejo durante a folia de tiração de esmola, e outra rica, toda ornamentada, tendo a
pomba e o círculo de resplendores que a circunda, bordado em galões dourados e fios de
ouro. Sustenta na parte superior do mastro um globo de prata sobre o qual pousa uma
pomba de prata. Sua função é abrir o cortejo durante a festa do Divino.
Compõem esse cenário de ritos do Senhor Divino: A coroa levada pelo
Imperador, o cetro levado pela Imperatriz, a bandeira do- Alferes da Bandeira e o
mastro do Capitão do Mastro. Assume também papel importante nesse festejo, o
Mestre. Este último é o principal conhecedor do ritual, e principalmente, de suas
músicas. Sua função é vitalícia, sendo a sua representação de organizar e de orientar a
comunidade sobre como se comportar durante a realização desse cortejo, mantendo a
reprodução dessa prática189.
Cabe, também, ao Mestre da folia escolher e ensinar os cantos do Divino às
crianças. O coro do Senhor Divino é composto num total de quatro meninos. Participar
desse ritual dá à criança reconhecimento e prestigio junto à memória de Vila Bela, uma
vez que as suas vozes marcam pela desenvoltura com que entoam os cânticos do
Divino, além de ser abençoado pela entidade maior. As letras musicais dos cantos do
senhor Divino ressaltam a importância de seus atores e insígnias:
[...] A pombinha vem voando por cima da Matriz, vem
dizendo Viva! Viva! Viva nossa Imperatriz.
A pombinha vem voando, no bico traz uma flor, vem dizendo
Viva! Viva! Viva nosso Imperador.
187
Compartilho da discussão feita por Montenegro, ao dizer: Cada època recupera e atribui ao popular
um sentido... ver MONTENEGRO, Idem, Ibdem, p. 11, 2001.
188
Os termos: pobre e rico, é no sentido de uma bandeira ser mais ornamentada que a outra, atribuições
da comunidade.
83
A pombinha vai voando por cima da laranjeira, vem gritando
Viva! Viva! Viva o Alferes da bandeira[...]
A pomba, portanto, representa a materialização da presença do Senhor Divino.
Para a comunidade que rege o respeito com a pomba, criança nem adulto mata pomba,
isso é um ato de heresia, pois é o símbolo da proteção, a luz divina. Como vimos no
capítulo II, é por isso que as crianças desde pequeninas, já sabem identificar a
importância das aves, qual se come e qual não se come, qual é ave de caça ou não, caso
as crianças desobedeçam, são castigadas pelos mais velhos. Existem muitas histórias
que ilustram a importância de se respeitar a ave que materializa a presença do Senhor
Divino.
189
Embora o mestre seja um homem, a condução de aprendizagem foi repassada por uma mulher, a
mesma que tornou, o primo Ricardo Francisco da Silva um grande ladainheiro. As festas e seus rituais
84
3.2 - A FESTA DE SÃO BENEDITO E AS NEGRAS DO CHORADO
Bateu o sino respondeu lá na vidraça Viva Benedito santo
que nos deu a sua graça!!190 Canto à São Benedito
A festa de São Benedito acontece anualmente na segunda quinzena do mês de
Julho, as comemorações do santo negro da comunidade191 realiza-se em dois dias,
subseqüentes à festa do Divino. No ciclo da festança é a festa de maior duração. O
santo não pede esmola, pois é de responsabilidade do povo fazer a festa para o santo,
enquanto, na festa do Senhor Divino, é o santo que faz a festa para o povo. Os festeiros
de São Benedito são escolhidos pela Irmandade de São Benedito, que envia o convite
ao escolhido, cabendo a ele aceitar ou não. Caso não aceite, escolhe-se outro. Compõem
o cenário desse ritual: Rei e Rainha de São Benedito, Juiz e Juíza e os Ramalhetes. As
insígnias do santo são: altos bastões de prata, adornados de flores e fitas, usados pelo
Juiz e Juíza; uma coroa grande e o cetro do santo sobre uma salva carregado pelo Rei e
uma pequena coroa carregada pela Rainha. Os Ramalhetes carregam as flores para o
santo.
Esses atores são também identificados por indumentárias e rituais específicos que
cada um usa. O Rei usa uma capa longa de cor vinho, a Rainha usa alto tocado, que
pode variar de cor, enfeitado com laços de fitas de cetim ( conforme a foto no início do
capítulo). O Juiz veste sobre a roupa uma capa branca de cetim e sobrepeliz azul192 e a
juíza usa roupa branca, assim como a Ramalhete. É uma festa que leva toda a
comunidade a honrar e prestigiar seus anciãos, pois só podem ser Rainha e Rei de São
Benedito, os idosos que já foram Juiz e Juíza. Com exceção daqueles que assumem
festas de entes que já faleceram, ou estão cumprindo promessa.
têm assim uma espécie de divisão do trabalho, cada uma com seus respectivos simbolismos.
Trecho da música, cantado pelos dançantes do Congo em louvor a São Benedito.
191
São Benedito é o protetor dos negros e dos que exercem atividades na cozinha, é sincretizado na
Umbanda, como Omulu e/ou Abaluyaê. Em Vila Bela o santo negro é reverenciado pelos batuques do
Chorado e pela congada.
192
Sobrepele e/ou sobrepeliz, quer dizer uma outra proteção sobre a capa, para dar um efeito de
autoridade e vestes européias, uma herança luso.
190
85
Percebemos diante dessas práticas um sincretismo muito forte, mas este é um
assunto muito delicado para a comunidade. O fato de cumprir as obrigações da Igreja
Católica não quer dizer, que posteriormente outras práticas não possam ser
incorporadas. Mesmo porque como bem nos aponta Joaquim,
No Brasil os cultos funcionaram como um elemento de
afirmação do negro. O negro se sentia despedaçado porque
não tinha direito de cultuar seus próprios deuses e para isto
precisou criar mil subterfúgios193.
Assim também acontecia e ainda acontece em Vila Bela, mas recentemente ( a partir da
década de 1990) conseguimos perceber esse emaranhado de práticas indígenas e afro,
num transculturar.
As danças do Congo e Chorado completam esse rito de homenagem a São
Benedito194 (“dante” tinha a Dança do Marujo e Dança do Tambor)195. O Congo, de
origem africana, é uma representação dramática de reinados negros simbolizando uma
disputa entre o reinado do Congo e o Rei de Bamba. Em Vila Bela, os principais
personagens dessa representação são: O Rei do Congo, seu Secretário, seu filho
denominado de Kanjinjim, o Embaixador do Rei de Bamba e os doze pares de
dançantes e figuras entre os quais se incluem os músicos, tocadores de tambores,
cracachá, viola e chocalho.
O Rei do Congo também tem cargo vitalício, é ele quem assume toda a
responsabilidade em dar continuidade da tradição do Congo (essa é uma dança
exclusiva dos homens). Cabe a ele a convocação e a seleção dos dançantes, selecionar
os músicos, escolher o secretário e o kanjinjim. Para não haver falhas durante a
apresentação, nos dias que antecedem à festa do Congo, ele dirige os ensaios, ensina
193
JOAQUIM, Op. Cit., p. 31, 2001.
Até o momento da pesquisa, não encontrei nenhuma dança semelhante à dança do Chorado,
essencialmente dançada e tocada somente por mulheres, uma prática que se aproxima é dança do
Maranhão, conhecida como samba de Crioulo, embora nessa prática, apareça um homem raleando o facão
no chão.
195
Essas últimas danças, já extintas e/ou imbricadas, fazem parte das festas de santo dos praticantes de
Umbanda, alguns depoentes até comentam, mas dizem ainda é cedo.... porque preciso de mais tempo para
194
86
gestuais e passos, corrigindo posturas a medida que seja necessário. O rei tem a função
de exigir a memorização correta do texto e da letra dos cantos da dança do Congo.
Ao santo cozinheiro é dedicado um maior requinte nas cozinhas, tudo feito sob as
proteção do santo negro, homens descarnando o gado, galinhas, mulheres temperando,
socando no pilão, jovens e crianças ajudando no enrolar dos biscoitos, cada um dando
sua contribuição. Segundo as depoentes tudo que é feito em grande quantidade,
sobretudo comidas de festas de santo, são sempre marcadas pelo sinal da cruz, para que
nada desande. Conforme, o relato,todo cuidado é pouco;
Todo cuidado é pouco, porque é muita gente, são vários tipos
de mãos, então as vezes algum não tem mão boa pra cozinha,
mexe no arroz que já ta quase bom, e desanda tudinho, assim
é com qualquer comida, por isso que faço logo o sinal da
cruz naquilo que to fazendo196.
A comida, não é um ato puramente biológico, como nos aponta Revel, é o
momento onde se dão as relações sociais e no caso Vilabelense, as comidas das festas
de santos é a partilha das bênçãos para a comunidade197. São Benedito é quem credita as
boas mãos na hora de preparar os alimentos, assim, é primordial, sempre cantar alguma
música para o santo durante a preparação dos quitutes que irão ser servidos.
Ao Benedito Santo há ainda a dança do Chorado, dança que homenageia o santo
negro da comunidade da mesma cor. São as mulheres que no seu gingar das cadeiras,
equilibrando garrafas na cabeça, realizam essa homenagem. Rememoram nos versos das
canções, o sofrimento e a alegria dos negros da comunidade. Até meados da década de
1970, praticava-se junto ao chorado198, o batuque, um gingado de dança mais ritmado
que o Chorado. A partir da década de 1980, as garrafas equilibradas nas cabeças das
mulheres, passa a ser o Kanjinjim, uma forma de exibir a produção da bebida e suas
habilidades com o dançar e a garrafa na cabeça.
Podemos observar através das fotografias, o cenário do Congo, e o cenário do
saber de outras características da comunidade. O tempo mencionado em especial pelas matriarcas, é o
tempo do filho, o grau de maturidade chega com a maternidade.
196
Entrevista com D. Gregória Marques Ramos, realizada em dezembro de 2003.
197
FREIRE, Gilberto. Em suas obras faz importantes descrições sobre as práticas alimentares, quais eram
os quitutes que se comiam, como se fazia, para quem, em quais ocasiões, em sua obra já clássica, Casa
Grande & Senzala, percebemos tais práticas. Ver: FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala.12ª ed.,
Brasília: Ed. UnB, 1963.
87
Chorado. Segue as imagens da Festança realizada em 2000, onde a mídia nacional
estava presente para divulgar a festança vilabelense. Como afirma Bandeira, o ciclo da
festança, portanto, além de atualizar os princípios constitutivos da comunidade,
viabiliza a representação e a prática do comunitário. Compartilho dessa afirmativa,
fazendo uma ressalva as atividades femininas, e a sua preocupação em externar uma
identidade negra, através de suas vestes, cabelos, e saculejos africanos. A foto abaixo
nos remete a Dança do Congo, em reverência a Benedito santo. E como os dançantes do
Congo, encerraremos este item com a canção que fecha a congada.
Acabou-se a festa com muita alegria, acabou-se a festa com
muita alegria! Viva Benedito santo, hoje neste dia!
198
Chorado é nome da dança que homenageia o santo negro, São Benedito, antes praticado juntamente
com o batuque.Ver BANDEIRA, Op. Cit., p.249.
88
CONGO
Fonte: Foto da Dança do Congo, Vila Bela-2000. Acervo Família Ramos.
Outra dança que homenageia o santo negro, como já foi dito, é a dança do
chorado, uma prática essencialmente feminina, onde as mulheres da comunidade,
externam juntamente com sua devoção, a representação da resistência e identidade
negra.
89
O CHORADO
Fonte: Dança do Chorado apresentado em praça pública, Vila Bela, 2000. Acervo Família Ramos.
Conforme os relatos de memória, o chorado passou a incorporar também os
movimentos dos batuques, e as apresentações que antes eram feitas nos quintais das
casas da cidade, passam a ser apresentadas em Praça pública, pois a cada ano que
passa, o número de visitantes tem aumentado. Essa imagem revela o primeiro momento
de apresentação, nas quais as canções cantadas e tocadas pelas mulheres exprimem um
convite a louvar São Benedito, protetor dos negros e da cozinha.
A imagem que segue, refere-se a parte da dança em que as mulheres passam a
equilibrar as garrafas de kanjinjim sob suas cabeças, balanceando o corpo ao ritmos dos
batuques e atabaques que acompanham a canção.
Os convidados que assistem a apresentação, são puxados pelas dançarinas que os
fazem dançar juntos, geralmente são autoridades, aí as dançarinas, amarram um lenço
em seu pescoço, e pede para que eles paguem a prenda, comumente, é a compra dos
kanjinjins. Quando são puxados, as dançarinas começam a cantar:
Din, dorondon don...
Din, dorondon don...
Oh! Sarimã vai pagar, Oh! Sarimã vai pagar, Oh!
Sarimã vai pagar...
Din, dorondon don...
90
Depois de dançar e ter pago a prenda, a pessoa volta ao seu lugar, a apresentação
passa a ser interativa, entre as dançarinas do chorado e convidados. E a letra cantada é:
Oh! Sarimã já pagou, Oh! Sarimã já pagou, Oh! Sarimã já pagou, duridon don.
O CHORADO
Fonte:Dança do Chorado, apresentação em praça Pública, Vila Bela, 2000. Acervo Família Ramos.
Após esta apresentação começam a cantar as canções de despedida, fazem verso
de agradecimento ao santo, aos convidados, a comunidade, garantindo estarem lá no
próximo ano, repetem sucessivamente sob o ritmo dos batuques:
Adeus passarinho, adeus passarinho, adeus que eu já vou se
embora, durim dom dom...( dançarinas do Chorado).
91
Um fato importante a ser observado na dança do Chorado atual, é que existem as
senhoras, com características físicas de indígenas, isso se deve a relação e a mistura de
laços entre negros e índios da região. Em uma das muitas entrevistas, perguntei a D.
Eugênia, como era essa relação, quem é que podia dançar o chorado, aí ela respondeu:
Quantia de gente, aqui nesse Vila Bela que é filho, neto de
índia que pai, avô, pegou no laço, daí foi misturando toda
gente, agora taí tudo com gente. Sua vó, mesmo criou
bastante gente de índio,pergunta pra ela. Aí dança quem tem
gosto, por isso que já ensina desde moça que é pra não
perder o jeito, eu não danço, (ri...)199
As participantes do chorado tem diferentes faixas etárias: recentemente tem
aumentado o interesse pela dança por parte das mais jovens, que aprendem, a dançar, a
tocar e os versos das letras para se apresentarem, é motivo de orgulho dançar entre as
mulheres do Chorado. Numa mistura entre descendentes de negros e indígenas, as
mulheres, requebram ao ritmo do batuque, as mais velhas, de meia idade, moças, todas
no intento de não deixar se perder a dança, como aconteceu com o Batuque.
O batuque só não acabou de vez, porque suas letras e alguns passos, são
misturados a dança do chorado, alguns trechos de batuques são incorporados, durante as
apresentações. Outro fator importante que merece ser registrado, é a fabricação dos
instrumentos, antigamente era tudo mais artesanal, hoje já se mescla o violão, baixo.
Mas antes dessa mesclagem, eram só os atabaques de couro animal, tocados com a mão,
ou com pequenos bastões, também marcados pelas mãos femininas200. A interação, a
harmonia, entre jovens e senhoras mais velhas, exprime a luta pela permanência do
movimento étnico, sempre em trajes afro, elas dançam, cantam e encantam aqueles que
as assistem.
A festança como já mencionado é o momento da comunidade, é o palco de uma
resistência, daqueles que expropriados de suas terras, que ficaram com o espaço da festa
de seus santos. Em uma reportagem do ano de 1985, em um Projeto Educacional, que
visitou Vila bela, mais uma vez, homens, mulheres e crianças da comunidade puderam
199
Entrevista realizada com D. Eugênia da Silva Mendes, em Outubro de 2004.
Durante o ano de 2000, o grupo do Chorado, gravou um CD, com as músicas, uma forma de registrar
as vozes, o título do CD Auroras do Quariterê, fazendo uma homenagem ao quilombo liderado por
200
92
representar suas vestes, alimentos, durantes suas apresentações. Estrategicamente, a
visita, foi feita durante os períodos de festejos como podemos observar na reportagem:
MOBRALTECA irá a Vila Bela
Vila Bela da Santíssima Trindade foi escolhida para sediar o
encerramento da série de visitas da Mobralteca em Mato
Grosso, no período compreendido entre 11 e 13 do mês que
vem. Das atividades culturais a serem apresentadas naquela
cidade, pela mobralteca, constam: danças do Congo,
Chorado, evoluções folclóricas bem como, outras atividades
que envolvam o cultural e o regional. Segundo informou o
secretário de educação daquele município, professor Ênio
Fernandes Leite, para o encerramento da temporada da
mobralteca em Mato Grosso, em Vila Bela, está sendo
esperado grande número de autoridades de Brasília, de
Cuiabá e de toda a região201.
Foi um momento muito importante para a comunidade, este episódio ficou
armazenado na caixinha de lembranças, dentro de cada mexilhão, porque grande parte
da comunidade que não sabia ler e escrever, foram oportunizados com o projeto Mobral,
ebra como dançar para aqueles que os ajudaram na arte de ler e escrever, mulheres,
homens crianças. O mês de Julho, é para a comunidade o mês dos festejos afros, dos
negros.
Tereza de Benguela. Além das mulheres que fazem o coro para o chorado, está um homem, o Sr.
Nazário, que acompanha no violão as apresentações do Grupo.
201
Jornal: A Voz dos Municípios, Ano I, Nº 34, 1985, p.06 - Arquivo Municipal de Cáceres.
93
3. 3 - PARTEJANDO, BENZENDO E CURANDO: A RELIGIOSIDADE DAS
MULHERES NEGRAS
Imbigo, de primeiro num curava com mercúrio, num botava
não, é só rapé. Aí, lambuzava com esse óleo de mamona,
então óleo de mocotó.
Matimiana Francisca
As benzedeiras, parteiras, ladainheiras, tem grande sentido para a comunidade,
de um modo geral, são elas as detentoras de uma sabedoria ímpar. Sabem para que
santos vão rezar, quais as ervas corretas para tal enfermidade, enfim, os cuidados com
as enfermidades de todos os gêneros. Seja ela doença da terra, ou da alma, as matriarcas
sempre tem uma solução. Então vamos a essa narrativa, sobre a relação e o uso das
plantas medicinais, em especial os cuidados da parteira que são seguidos a risca, é uma
série de detalhes, e um rito de iniciação para a mãe e o recém - nascido. Essa é uma
maneira de recorrer a tudo e a todos em nome da garantia de sobrevivência desse novo
ser que chegava, por isso quando questionadas sobre os cuidados, as depoentes,
principalmente as mais idosas, fazem questão de dizer a diferença de dante e como é
atualmente202:
... pois é, defumava coeiro com hortelã do campo, panhava
sacão mesmo. Aí botava para secar. Aí, quando tinha criança
botava tudo, botava cadeira, aí revirava cadeira, duas - uma
de costa para outra - assim, assim. Vinha com a hortelã do
campo botava aí - entre as duas cadeiras. Aí vinha uma
colher de brasa, botava aí. Aí, ficava aquela fumaceira,
punha o cuero. Já fumaçou em baixo, vira para cima, o que é
de cima botava bem no meio, o que é do meio... Há, há,
tudinho. Prá quê? Para num dá dor de barriga, prá não dá
não sei o quê. Há! Agora criança não tem nada disso. Ôlha
gente! Olha que parto d’agora! Eu fiquei olhando de Celsa,
certas coisas, meu Deus!
Há, agora num tem a galinha, e se ela come a galinha, só
come, nesse dia que tem a criança. Amanhã num come mais.
202
Atualmente, nas décadas de 1990 a 2000, pois até meados de 1980, a incidência de partos normais era
maior, por conta dos médicos que foram chegando a cidade, essa prática tem diminuído. Apesar da
política nacional incentivar o parto normal, inclusive oferecendo cursos para as parteiras. Sobre essas
informações consultar site: www.ministério da saude.com.gov.br- link saúde da mulher.
94
Aí, no outro dia médico já faz levantá... Ôlha gente! E até
hoje o sistema da Celsa é deferente, hum! hum! Deus me
livre e guarde! (...) Imbigo, de primeiro num curava com
mercúrio, num botava não, é só rapé. Aí, lambuzava com
esse óleo de mamona, então óleo de mocotó. Aí panhava,
vinha com o rapé de lá, aí, criança: - nhê, ê, ê, nhê... (Risos)
Tá ardendo. Aí, carcava, carca bem, põe pano aí num
umbigo. Aí, de lá, dobra prá lá, dobra prá cá, aí, dobra
daqui prá lá, aí dobra de novo, aí amarra bem amarrado. Aí,
já vestia blusinha e num sei o que mais.203
O ato de defumar esta relacionado ao desejo de conferir proteção a casa204, em
particular a criança que chega ao mundo, pois defumar com as ervas, com a brasa
codifica todo um ritual de espantar, espantar o mal, o conhecido mal de sete dias muito
falado na comunidade. As depoentes mais velhas ficam extremamente preocupadas,
com as mães de agora, que já abusam das regras em se tratando da própria mãe, e da
criança. Comem de tudo desrregradamente, vestem qualquer tipo de roupa, e faz que
nem filho de cachorrinho,escolhe o nome antes.205
Imbutida nessa preocupação, está o medo dessa prática desaparecer por
completo, e a cidade ser acometida de um mal, de uma falência, segundo os
depoimentos, igual aos tempos de escravo, remetendo-se a dificuldades. Pois como
bem salienta Carvalho: nessas práticas, a produção do conhecimento, a respeito dos
hábitos populares de cuidado com a saúde, e sobre as atividades dos curandeiros,
fazia parte da disputa do espaço206... Nos depoimentos percebemos essa disputa,
quando existe um indicar de comadre de tal que é melhor para benzer, outra comadre
é boa parteira... e assim vão cartografando esses espaços das práticas e saberes.
Todo ritual do nascimento era permeado por simbologia. A presença de algumas
ervas eram indispensáveis na hora de dar a luz. Por exemplo, não podiam faltar, arruda,
folhas de algodão, erva doce, hortelã do campo, cada uma com sua finalidade. A arruda
servia para espantar os agouros, as folhas de algodão para a mãe banhar-se após o parto,
o erva doce para dar ao bebezinho, e a hortelã do campo para defumar, fraldas, coeiros e
203
Depoimento de Matiamiana Francisca da Silva, cedido por Acildo da Silva Leite.
Essa é uma prática da abertura dos rituais da umbanda, depois de feita as orações se defuma para
sessão de trabalhos espirituais.Ver FONSECA, Denise Pini Rosalem & LIMA, Tereza Marques de
Oliveira. Op. Cit.,. p. 1999.
205
Em um outro depoimento, D. Matimiana, fala sobre a escolha do nome, a importância de se colocar o
nome do santo, e as bênçãos que a criança vai receber.
206
CARVALHO, Antonio Carlos Duarte de. Curandeirismo e medicina: práticas populares e políticas
estatais de saúde em São Paulo nas décadas de 1930 e 1940. Londrina: Ed. UEL, p.38, 1999.
204
95
o ambiente em que a criança vai ficar207. Para resguardar mãe e filho do Mal de sete
dias, uma mistura de arruda, guiné e espada de São Jorge atrás da porta, para espantar
coisas ruins. Esses domínios, sobre a manipulação das plantas medicinais, eram
repassados, especialmente, no momento do nascimento, os cuidados necessários para
com a mãe e a criança eram ensinados, por avós,outras mães, comadres, madrinhas... era
o espaço das trocas de experiências, a troca dos bens simbólicos.
Quando ocorria algo de errado durante o parto, se a criança estivesse virada ou
com o cordão enrolado, eram feitas orações e simpatias sempre acompanhadas pelas
ervas, faziam-se compressas de arruda com hortelã para refrescar, defumava para
acalmar e dar mais força para a mãe. Segundo D. Paula Fernandes, o breve era uma
ajuda importante:
Quando batia a dor na mulher que já ia despejar, e a criança não
saía, era o breve que dava força, pra mãe, pra criança e pra
parteira, naquele tempo era difícil médico, então tinha que fazer
de tudo para dar certo, se apegava com o santo de devoção e com
Deus, pra não acontecer nada de perigo208.
Geralmente quando se fazia um pedido ao santo de devoção por conta do parto ter
sido difícil, a criança levava o nome do santo, dessa maneira programava-se mais uma
festa de devoção. Aqui também observamos a preocupação com o falar, pois falar “
bonito” também é uma forma de expressar sabedoria209.A fala, e/ou a oralidade como
destaca Montenegro, é um instrumento decisivo para a populações que vivem a
radicalidade cotidiana do “não ter”. E Vila Bela, é um município muito pobre, as falas,
juntamente com a memória são grandes armas nesse cotidiano das ausências. Das
ausências médicas, das ausências políticas...do não ter cotidiano, regenerado pela
sabedoria popular feminina, que norteia a coesão comunitária.
O papel das parteiras é fundamental nesse processo de re-elaboração simbólica do
nascimento, pois, como guardiães das palavras sagradas são, elas também, condutoras
207
Agouros quer dizer: mal, olhado, maldição, dentro dos significados comentados pela comunidade, tem
gente que já pega agouro, logo quando nasce.
208
Entrevista com D. Paula Fernandes, cedida por Acildo Leite da Silva.
209
Sobre a importância da fala ver, MONTENEGRO, Op. Cit., p.37, 2001. A fala segundo o autor
constitui um meio para alcançarmos outras realidades.
96
das cerimônias que permitem o ingressar da criança aos mistérios do mundo terreno.
Permitindo que isso aconteça através da iniciação, portanto dos primeiros ritos pósnascimento. Por conta dessa sabedoria, as parteiras tornam-se uma espécie de
intermediárias para que a ordem se mantenha e os destinos se cumpram, demarcando
seu território nesse espaço e tempo afro-vilabelense. Como bem registrou
Itacaramby210, em seu artigo sobre parteiras, citando Del Priore: As parteiras sempre
existiram, desde que o mundo é mundo, não se pode perceber sua origem, cor ou
condição, mas sua presença é valiosa no sentido de preservar a cultura feminina em
torno do parto. Daí a importância e a necessidade de passar por esses rituais, são os
saberes femininos.
Após a criança e mãe ter passado por estes rituais, é necessário que se mantenha
acesa uma lamparina durante sete noites, apresentar a criança à lua, dando-lhe o nome
do santo do dia, fechando-se o ritual que garantira a proteção dos deuses à criança.
Esses gestos simbólicos de sacralização tinham que ser realizados, por conta de um
possível castigo, caso não se cumprisse os rituais de costume211. Embora essa
sacralização garanta a proteção do recém nascido, isso não isenta os familiares de
continuarem cercando de cuidados a criança e seus objetos de uso, como as roupas, por
exemplo.
Diante dessa situação, os cuidados nos sete primeiros dias são de fundamental
importância. Recorre-se a tudo e a todos os saberes212 em nome da garantia de
sobrevivência desse novo indivíduo nascido na comunidade, daí, a tradição oral fazer
questão de ressaltar esses cuidados .
O mundo natural da terra encontra-se habitado, também, por entidades com
poderes sobrenaturais e maléficos, que controlam a vida desses seres humanos.
Submeter a criança a todo esse ciclo de ritual faz se compreender a dimensão do mundo
vilabelense, tendo em vista que para o homem/mulher da comunidade, isso não é uma
característica exclusiva dele. Vivendo tanto na superfície terrestre quanto nas
210
ITACARAMBY, Renata. APUD, DEL PRIORE , Mary. Parteiras em Cuiabá: a arte e partejar entre
os anos de 1930 e 1940. Cuiabá: Deptº. de História, ICHS/UFMT/ 2005, p.23. Trata-se de um artigo
produzido como trabalho de final de curso de graduação, no qual ela aponta a importância e o papel da
parteira em Cuiabá.
211
O medo, em relação aos castigos, são sempre comentados pelas senhoras mais velhas, que contam
outras histórias sobre o que aconteceu com quem não cumpriu com as práticas de costume.
212
Saberes dos rituais, do sincretismo, tudo muito sigiloso, pois conforme minhas observações de campo,
e, inclusive junto a minha família, notei que esses saberes são passados de maneira hierárquica, não é para
qualquer mãe, e nem para qualquer filha.
97
profundezas das águas essas entidades como: lobisomem, bruxa, porca, e monstros,
ameaçam frequentemente a vida dessa gente levando-os a ficarem em alerta em relação
a tranqüilidade e harmonia com o mundo sobrenatural.
A respeito da defesa do sobrenatural em relação ao recém chegado todas as
atenções e cuidados da comunidade se voltam para a figura da bruxa, pois este
personagem marca significativamente o imaginário, ela é a mulher com poderes de
metamorfosear e que chupa o umbigo dos recém-nascidos, sugando-lhes todo o sangue.
Para proteger a criança do mal de sete dias ou ataque da bruxa, a parteira e a mãe devem
cercar essa criança de algumas proteções fundamentais. Deixar uma tesoura aberta
embaixo da cama, ou embaixo do travesseiro, deixar uma lamparina acesa atrás da porta
durante sete dias e sete noites. Segundo as tradições da comunidade assim a criança
estará salva do ataque desse ser endemoniado - a bruxa.
A bruxa, conforme as entrevistas, refere-se à filha mulher que nasce depois de
uma série de sete filhas enquanto o lobisomem é um dos filhos homens de uma série de
sete.
Através dessas falas sagradas são ensinados, à nova mãe, os segredos da natureza,
plantas, chás e simpatia e os males que mais diretamente trará desgraça para a criança.
Essas revelações tornam-se necessárias para que mãe e filho não se sintam indefesos
frente à natureza.
Esses cuidados e rituais, que fazem parte do nascimento são muito importantes,
principalmente porque, nesse momento, é que se dá a troca de conhecimentos e saberes,
que envolve o fenômeno do nascimento. Além de inserir a nova mãe na aprendizagem
desses segredos, também, a comunidade como um todo participa desse falar. Cada
nascimento acaba representando para a comunidade um período em que afloram os
conhecimentos em torno dos rituais, dos remédios específicos para essa criança, das
curas, prevenções, conhecimentos em torno dos santos, de seus milagres, castigos e
rezas. É a grande escola da vida em sua plena atividade, onde a voz circula, levando
esses saberes por toda a comunidade até chegar a casa da nova mãe.
Em cada nascimento, rememoram outros nascimentos e, por isso, as conversas das
visitas, na casa da recém parida, são principalmente em torno de como outras mães
lidam com seus filhos, recém nascidos. Nesse momento, então, ensinam os remédios, os
banhos, as alimentações adequadas para a mãe e a criança e contam casos que
98
comprovam a eficiência da proteção dos objetos sagrados, tornando esse ciclo de
aprendizagem completo213.
Por essa oralidade passa a fala sobre o comportamento e o relacionamento da
criança para com o adulto. A educação comportamental extrapola a responsabilidade
dos pais, o grupo negro também assume uma certa responsabilidade na educação desse
relacionamento. O respeito aos mais velhos é de suma importância, pois, a condição de
ser mais velho, de antemão, assegura o direito de exercer a correção da criança.
A forma de se relacionar na comunidade de Vila Bela passa pelo ensino da e
primor da tradição:
... Pessoal chamava um ao outro de irmão, não tinha esse de
chamar por nome não. O mais criança tinha que chamar o
mais velho de irmão. E aquele mais criança tinha que tomar
benção do mais velho. Meu pai tomou benção de tio Roque,
que tomava benção de tia Tanásia. Tia Joana tomava benção
de meu pai, tudo era assim. Se num tomava benção pai com
mãe, escutava:
Uaí, porque num toma benção de seu irmão mais velho?
É o que o irmão mais véio falava, criança tinha que
obedecer, se não obedecia, o pai mandava castiga, ele como
irmão mais velho tinha de castigar. Tia Joana tomou benção
de papai com tia Tanásia até morrer (...) E tudo chamava de
irmão, irmã, tio, tia, primo, prima. Agora tio, é seu tio,
chama fulano, sicrano, beltrano, ninguém chama um parente
de nada. Tudo já é diferente. Seu irmão toma benção de
você? Pois é, por causa de quê? Porque mãe não ensinou.
Vaí de exemplo de mãe... Agora que esse assim!214.
Observa-se que é uma educação que prima pelo respeito aos mais velhos. Ser mais
velho representa ter mais sabedoria, mais conhecimento. Então, aceitar ou passar por
sua correção significa garantir desde a infância a aprendizagem comunitária. Daí o
porquê de todos aceitarem tais correções. O que conta é a sabedoria e o conhecimento
que esses velhos representam e repassam215. E a mãe, nesse contexto é quem ensina os
213
O aprendizado é considerado completo quando a criança faz três anoos de idade, onde a mãe deve
fazer uma reza com quitutes agradecendo pela proteção ao filho(a). Três anos, segundo algumas
entrevistadas, é o símbolo de trino, portanto, da Santíssima Trindade que protege as pessoas, e a cidade.
214
Depoimento de D. Matimiana, depoimento cedido por Acildo da Silva Leite.
215
Mas é seletivo assim como a memória, esse repassar também o é, pois ficam com medo de revelar
certos segredos, sobretudo se estiver no âmbito da religiosidade.
99
filhos a respeitar, obedecer e praticar todas as regras importantes de relacionamento
junto aos mais velhos.
Assim, entende-se que o espaço de cidade, e principalmente a casa da cidade, para
o negro de Vila Bela, vêm a ser esse ponto central, onde se deve iniciar a caminhada
desse homem por outros espaços. Ter um referencial no início da vida torna-se
fundamental para orientação do homem religioso.
O “corrigir a criança,” sempre se dá, quando esta se encontra em situações de
desobediência ou quando não cumpre as regras da comunidade. Se essa correção fosse
feita por alguém de fora do círculo da parentela, esse ato era e é ainda comunicado aos
pais, deixando claro que sempre é bem aceito pela família. Dessa forma vai se dando a
formação dessas crianças. O termo: “disque”, bastante corriqueiro nos depoimentos, dáse a idéia de que realmente se dava esse ensinamento. Não significa dúvida no
depoimento, mas indica a forma como o fato lhe foi passado, por exemplo, Maria
disque falo quem toma banho no rio sexta-feira santa, vira boto.
São esses ensinamentos, que vão acabar formando essa forte relação que os
negros vilabelenses tem com os seus santos. Religiosidade essa, que até hoje, chama a
atenção de todos que convivem com essa comunidade negra.
Como abordado aqui, o caminho histórico de Vila Bela, a levou a um relativo
isolamento de um mundo que não foi e nem podia ser almejado por aqueles negros.
Assim, esse relativo isolamento veio significar o grito de liberdade da raça, no sentido
de construir seus valores, sua identidade numa relação de alteridade, territorializavam
seus espaços. Uma liberdade que demonstrou a competência, a audácia em reconstruir
sua memória, num espaço onde, historicamente, o branco havia demonstrado abuso, e
abandono. E como resposta a esse abandono,os negros, buscaram força e vitalidade
naquilo que lhe fora mais peculiar, a sua tradição oral.
Através da tradição oral, os negros de Vila Bela reorganizaram uma sociedade
própria, reconstruíram sua identidade e/ou identidades. Impuseram aos símbolos de
arrogância e prepotência dos colonizadores, uma nova sociedade, simples, mas de
caráter duradouro. Re-territorializaram com propriedade por se encontrar alicerçada nos
segredos preservados pela memória coletiva, em especial das mulheres negras, e
100
repassados pela tradição. Os saberes e dizeres vão além dos obstáculos e das fronteiras
criados no acirramento do conflito inter-étnico.
101
IV- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pérolas negras, negras Mulheres
O que as aproximam além da beleza e do encantamento?
O tempo, a resistência ao tempo
As pérolas mantendo sua integridade física,
As mulheres negras, a integridade cultural, a identidade étnica, a memória.
Maria Adenir Peraro
Como historiadora não há a pretensão de recuperar esse passado em estudo “tal
como ele foi”. Isso seria absolutamente contraditório, tendo em vista que recontamos
histórias, e essa em especial, pois Vila Bela ainda é uma lacuna na historiografia local.
Esse é ainda um território que precisa ser mais e melhor analisado, em detrimento de
tantos detalhes e da riqueza histórica do local. Compartilhando com Benjamim216 que,
em vários de seus textos, nos fala que a história, muitas vezes se apresenta através de
minúsculos e brilhantes estilhaços oriundos de uma longínqua explosão original. È uma
tarefa exaustiva, a de reconstruir, de juntar os pedacinhos, as pistas e sobretudo
desconfiar (em especial das evidências). Somos como os restauradores, que a cada
pedacinho que colam ou pintam em suas obras, são as letras das histórias que serão
desenhadas em cada juntar de indícios, pistas e narrativas.
Ver uma sociedade rústica, desenhar através das lembranças o passado, e ainda
resignificá-lo, à medida que o território constituído como sendo de negros, passa a ser
divido com o outro. Ler e interpretar suas vozes e lembranças é como mergulhar no
mais profundo rio da memória em busca de pérolas. Foi um desafio selecionar, as
histórias que entraram ou que não estiveram presentes na escrita. E por isso nada
impede que essas reconstruções sobre a história de Vila Bela continuem...
Assim como pesquisadores, e com os recursos metodológicos que adotamos,
saímos como mergulhadoras a vasculhar, entre as fontes como se fossem rios, as
possíveis histórias de uma comunidade que bravamente, resiste, assimilando as
interferências do outro, re-elaborando uma nova convivência social, mas nunca
216
BENJAMIN, Walter. “O narrador”. Consideração sobre a obra de Nicolai Leskov, In: Obras
Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política - Ensaio sobre leitura e história de cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
102
esquecendo de seus antepassados, da sua cultura. Ao re-laborar o real, as lembranças
pululam através das falas... do contar, que dificilmente não venham acompanhados das
lágrimas, ora de tristezas, ora de alegrias.
Mesmo ciente das dificuldades na construção do conhecimento histórico, pelo
viés da história oral, foi essa nossa opção, uma vez que a memória dessa gente nos
remete a inúmeras análises. Suas falas, nos indicam indícios de como foi e como vivem.
Permite-se com essa metodologia, recolher os ensinamentos dos mais velhos com seus
hábitos, e falares na herança de um encontro secreto entre futuras gerações.
Como foi preciso dar um recorte, optamos por privilegiar depoimentos de várias
mulheres negras, de idades diferenciadas217, a fim de percebemos essa interação com o
meio, sobretudo aquelas que vivenciaram o período da vida no campo. As mulheres vão
produzindo um mundo simbólico da culinária, das danças, rituais, elas fazem isso
através de suas práticas, estão intrinsicamente ligadas com seu mundo cultural.
Um dos momentos mais difíceis da pesquisa, certamente foi selecionar os
depoimentos, que traziam cada um a sua maneira, belas narrativas. E não podíamos
deixar de fora um dos homens que foi poaieiro, e que na ocasião da entrevistas adorava
contar às histórias que aprendera com a sua mãe e tias, e de sua vivência na mata na
época da poaia.
No bojo dessas tradições, além das realizações do homem de Vila Bela, estão
também, todos os ensinamentos da comunidade, uma vez que essa tradição oral,
significou a sua vida, religiosidade, celebrações, ritos e descontração. Na medida em
que ocorria esse repasse oral, a comunidade tinha por finalidade, naquele momento, o
registro de cunho moral, religioso, e educativo, visto que nada era insignificante218. Era,
pois, uma tradição de caráter extremamente utilitário, pois, na rememoração dessa
cultura oral, foram encontradas regras que garantiram e determinaram, além da
sobrevivência dessa gente na região, a coesão comunitária. Daí a necessidade de um
217
A maioria das entrevistadas, são senhoras, o que costumo chamar de matriarca, com exceção da
depoente Claudia Maria Ramos e de Maria das Dores Ramos, as outras mulheres estão na faixa etária dos
70 anos e mais, tendo em vista que a longevidade é uma característica da comunidade. Relação de
entrevistados: Gregória Marques Ramos, Damiana Frazão de Almeida ( já falecida), Maria das Dores
Ramos Lopes da Silva, Matimiana da Silva ( já falecida) entrevista cedida por Acildo Leite da Silva, ,
Manoel Ricardo Ramos (ex- Poaieiro), D. Paula Fernandes, Eugênia da Silva Mendes, D. Beija, exímios
narradores, nos contam uma outra faceta da história.
218
Em especial para os mais velhos, nada passava batido, tudo era questionável, por isso a permanência
de alguns em se fazer respeitar pelos filhos de outros, pois o mais velho é quem sabe. Em Memória de
velhos, de Ecléa Bosi, vemos a explicação desse respeito, entre os mais “antigos”..
103
veículo fundamental de transmissão dessa voz, ocupar todos os espaços na vida da
comunidade. A voz estava presente do nascimento aos ritos fúnebre, sempre com o
intuito de registrar os momento que não eram configurados com as letras, mas sim com
o falar.
Em se tratando de uma tradição que trilhou por diversos caminhos, ou ainda, por
todos os caminhos219, o desafio maior torna-se percorrer essas trilhas, através da
memória dos narradores, principalmente, os mais idosos. É necessário para tanto,
recuperar essa voz e/ou vozes que se encontra adormecida, por não se sentir tão útil no
seio da comunidade. Isso fica patente quando os velhos, no seu processo de
rememoração, fazem questão de demarcar a diferença entre o que era “dante” com o
que é hoje220. Narrar é um ato fecundo, onde são gerados despertares da memória,pois
ela passa a ter cheiro, e às vezes até faces221.
Na rememoração da época de “dante222” a voz desses/dessas guardiães vão
conduzindo por espaços, tempos e rituais que fazem “ver” e “sentir” estruturas de
configurações espacial diferente, que se confunde com a ordem social do grupo.
Ao longo das entrevistas e das transcrições, observamos como foi significativa
a perda da Terra de Nosso Senhor, á área comunal, por isso a cidade passou a significar
muito, pois foi o espaço alternativo, de onde fizeram de seus quintais a sobrevivência.
Espaço este onde fomos brindados com suas interessantes histórias sobre suas vivências
no campo, e suas estratégias de sobrevivência na cidade.
Na reconstrução desses conhecimentos históricos relacionados à memória dos
negros e das negras dessa comunidade e da sua tradição oral, percebe-se a apreensão do
passado como a principal forma de apreensão do presente. Estas vozes permitiram e
permitirão a continuidade da comunidade negra de Vila Bela, colocando a salvo a sua
singularidade. Mediante as riquezas de detalhes resguardados em cada mexilhão, que
protege suas pérolas, protegendo, re-significando e preservando a cultura vilabelense.
Ouvir, os relatos, é um passear na memória feminina, onde a cartografia é diferenciada,
219
Trecho retirado da dissertação de Leite. Op. Cit., p. 293.
Sobre a oralidade da comunidade, e seu processo de re-laboração, frente ao processo de escrita,
destaco aqui a importância do projeto MOBRAL, para a cidade. Este projeto do Governo federal, como já
mencionado, oportunizou grande parte da comunidade no processo de alfabetização. Os grifos e itálicos
são meus.
221
Esse ato fecundo a qual me refiro, é o narrar dessas mulheres que no ato de rememorar, fala de cheiros,
cores, e faces.
222
Dante, como já mencionado faz referência ao passado, aquilo de antes e antigamente. Uma expressão
dificilmente encontrada nos relatos das mulheres e homens mais jovens.
220
104
pelas fortes expressões, medos, disputas, rivalidades em famílias, que não são ditas, mas
fazem-se presentes.
O poder se saber mais que o outro é evidente, sobretudo quando as famílias tem
alguma rivalidade, todos querem falar, algumas pérolas são tão raras acompanhada de
um vivenciar todo especial, outros ainda jovens, adquirem sabedoria,para serem melhor
avaliadas, nesse processo de resistência , convivência e re-significações.
Leva-se a crer que esta fase da história de Vila Bela foi impulsionada e
caracterizada pelo “fenômeno da voz humana com dimensão que determinava, ao
mesmo tempo, no plano físico, psíquico e sócio-cultural223”. Como um testemunho
vivo, essa tradição oral carrega e transmite todas as experiências dessa gente, sejam do
mundo religioso, suas devoções, milagres, e as do mundo natural.
A importância da memória, das lembranças transcende desentendimentos, e
fronteiras étnicas constituídas ao longo do processo de re-territorialização, numa relação
de códigos muito peculiares, as matriarcas vão simbolicamente territorializando os
espaços através de seus saberes.
223
ZUMTROR, 1993, p18.
105
FONTES:
FONTES ORAIS
RELAÇÃO DE ENTREVISTADOS:
NOME
Claudia Maria Ramos
IDADE
33 anos
OCUPAÇÃO
Engenheira sanitarista e
ambiental do Município-
D.Gregória Marques Ramos
78 anos
Quituteira-Costureira
e
(D. Góia)
rezadeira
D.Damiana Frazão de Almeida 86anos( falecida)
Benzedeira
D.Maria das Dores Ramos
D. Matimiana Francisca da 100 anos ( já falecida)
Quituteira/técnica
em
Nutrição
A contadora de histórias-
Silva ( D. Mati)
Benzedeira.
Sr.Manoel Ricardo Ramos
51 anos
82 anos
(ex-Poaieiro)
funcionário
e
aposentado
do município.
D. Paula Fernandes
89 anos
Parteira e Benzedeira
D. Eugênia Mendes
104 anos
Dona de casa
D. Beija
93 anos
----------------------------
FONTES:
Manuscritos:
Fundo: APMT, Livros de Receita e despesas-1778 – 1779..
Fundo : APMT, Série: Avulsos, Lata 1779B.
Fundo: APMT, Série: Correspondências, Lata 1778B.
Fundo: APMT, Posturas da Câmara de Vila Bela, Lata 1779B.
106
Trecho de manuscrito:
Estatutos municipais e posturas da Câmara.
Fundo: APMT, Posturas da Câmara de Vila Bela, Lata 1753A.
Sobre o Culto do Divino e da Igreja desta Vila - 1753
Como tenha (ilegível), particularmente da Igreja Matriz eu,
(parte ilegível,) é nua e em adorno, o que (ilegível) [...]
Acordaram que nunca esta Câmara desse licença e chãos
para e formar outra alguma Igreja, ou Capela, e
principalmente aos pretos e mulatos que regularmente são os
eu andam com Nossa Senhora do Rosário fora da Paróquia
[...]
FONTES IMPRESSAS:
TRANSCRIÇÕES DE FRAGMENTOS DE JORNAIS
Fundo: Arquivo Municipal de Cáceres
Jornal: O Estado de Mato Grosso
Ano:56 n° 12.735
04 de outubro de 1994
Destaque de página: Chacina em Vila Bela é investigada
Uma Chacina onde seis lavradores foram emboscados e três morreram, está sendo
investigada pela polícia de Vila Bela da Santíssima Trindade, na fazenda Sta. Izabel, da
empresa Badra S/A onde os crimes ocorreram quinta-feira última. A região é de
conflito, com invasões.
Fundo: Arquivo Público de Mato Grosso
Jornal: Diário de Cuiabá:
Caderno Diversas
Ano: III- 1 de dezembro de 1971- N° 754
Interesse: As riquezas da Amazônia começam a atrair interesse do empresariado
nacional. A superintendência de desenvolvimento da Amazônia já tem 22 projetos na
região, com investimento superior a 260,00 milhões de cruzeiros.
Fundo: Arquivo Público de Mato Grosso
Jornal: Diário de Cuiabá:
Ano: III- 17 de novembro de 1971- N°: 733
As doces terras da podridão moral.
107
Uma crítica ao departamento de terras de MT, durante o governo Fernando Corrêa.
Feita pelo correio da imprensa em 14/11/1971.
Fundo: Arquivo Municipal de Cáceres
Jornal: A voz dos Municípios
Ano:I n° 34
30 de Junho de 1985-p.06
MOBRALTECA irá a Vila Bela
Vila Bela da santíssima trindade foi escolhida para sediar o encerramento da série de
visitas da Mobralteca em Mato Grosso, no período compreendido entre 11 e 13 do mês
que vem. Das atividades culturais a serem apresentadas naquela cidade, pela
mobralteca, constam: danças do Congo, Chorado, evoluções folclóricas bem como ,
outras atividades que envolvam o cultural e o regional. Segundo informou o secretário
de educação daquele município, professor Ênio Fernandes Leite, para o encerramento
da temporada da mobralteca em Mato Grosso, em Vila Bela, está sendo esperado grande
número de autoridades de Brasília, de Cuiabá e de toda a região.
Fundo: Arquivo Público de Mato Grosso
Jornal: A Gazeta
Cuiabá- 06 de junho de 1995
Ano: 56 n°: 12913
Caderno 2
Exposições e shows regionais marcam inauguração de quilombo.
A fundação Vale do sol e o café quilombo do Quariterê, abrigam atualmente exposições
de artistas como a pintora Margarida Coelho, cujo tema principal é o trabalhador rural.
108
FONTE ELETRÔNICA
www.unidosdoviradouro.com.br
www.vilabela.com.br
www.naturlink.pt/canais/artigo.com.br .
Site Viradouro
Escola de samba fundada a 24 de junho de 1946, tem na sua
bandeira as cores vermelha e branca. Sua sede localiza-se na
Avenida do Contorno, 16, no bairro do Barreto, em Niterói.
A escola foi 18 vezes campeã nos desfiles desta cidade. No
ano de 1986, apresentou-se no carnaval da Cidade do Rio de
Janeiro, desfilando pelo Grupo 4, sem concorrer. A partir de
1987, começou a participar do concurso. Em 1990, desfilou
no Grupo 1, passando para o Grupo Especial. Em dezembro
de 1993, Joãosinho Trinta, vislumbrando uma lenda matogrossente como enredo para o carnaval do ano seguinte,
levou 130 componentes da escola, entre ritmistas e passistas,
para o Pantanal, onde desceram o rio Cuiabá, fantasiados e
tocando bateria. Em 1994, com o enredo "Tereza Benguela uma rainha negra no Pantanal", a escola conseguiu a
terceira colocação no Grupo Especial.
www.unidosdoviradouro.com.br
Fonte:
109
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VII - ANEXOS
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