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LAZER, MEIO AMBIENTE E ENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO Prof. Victor Andrade de Melo Universidade Federal do Rio de Janeiro Resumo: Este artigo tem por objetivo, a partir de experiências desenvolvidas em comunidades de baixa renda na cidade do Rio de Janeiro, apresentar algumas reflexões sobre as possibilidades de trabalhar com a problemática do meio ambiente urbano nos programas de lazer desenvolvidos em tais comunidades. Parte-se do princípio que a dissociação entre cidade e cidadão conduz a graves problemas para as considerações ligadas ao meio ambiente urbano e que os programas de lazer podem contribuir no restabelecimento de tal relação, fundamental para a superação da atual ordem social. Por fim, apresentam-se algumas dimensões a serem consideradas pelos que pretendem trabalhar em comunidades de baixa renda a partir de uma perspectiva diacrônica e não funcionalista. "A deterioração do ambiente urbano parece-nos hoje (...) uma das mais desastrosas conseqüências da Revolução Industrial, sob vários pontos de vista: a estética, as comodidades da população, o saneamento e a densidade demográfica" 1. "Para os manos da Baixada Fluminense à Ceilândia Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia" 2. "E quem te disse que miséria é só aqui? Quem foi que disse que miséria não ri? Quem tá pensando que não se chora miséria no Japão? Quem tá falando que não existem tesouros na favela? A vida é bela, tá tudo estranho 1 . THOMPSON, 1987, p.185. . Extrato da letra da música 'Capítulo 4, versículo 3', composta por Racionais MC. 2 É tudo caro, mundo é tamanho" 3. Primeiras palavras Penso ser básico começar assumindo os limites de minha contribuição, bem como o lugar do qual estarei falando. Não sou um especialista em assuntos ligados à ecologia, nem tampouco estive envolvido com projetos específicos dessa natureza, mas um animador cultural que teve diversas experiências com projetos de lazer em comunidades de baixa renda na cidade do Rio de Janeiro4 e se deparou com a necessidade de tematizar questões ligadas ao meio ambiente em seu cotidiano de trabalho. Obviamente que tais questões estavam diretamente ligadas aos problemas específicos da cidade do Rio de Janeiro, uma cidade reconhecida por sua bela e grande área verde e por ser extremamente conflituosa em sua dinâmica social, e suas repercussões naquelas comunidades. Logo, o que procurarei apresentar neste texto é a sistematização de algumas reflexões colhidas a partir de minha experiência concreta nesses últimos anos. Penso que seja possível apresentar algumas dimensões a serem consideradas por aqueles que se envolvem com comunidades dessa natureza, estabelecendo alguns parâmetros de atuação e canais de diálogo/troca de experiências. Comecemos por compreender um pouco da cidade do Rio de Janeiro, seus problemas e como isso tem repercussão nas questões ligadas ao meio ambiente. O Rio de Janeiro - uma cidade partida e contraditória "...O Rio é uma cidade de cidades misturadas. O Rio é uma cidade de cidades camufladas. Governos misturados, camuflados, paralelos, Sorrateiros, ocultando comandos. (...) Rio 40 graus, cidade maravilha Purgatório da beleza e do caos" 5. 3 . Extrato da letra da música 'Miséria no Japão', composta por Pedro Luís. . De forma mais sistemática e aprofundada com a comunidade do Morro dos Macacos, conjunto de favelas situado no bairro de Vila Isabel, e com a comunidade do Morro do Borel, conjunto de favelas situado no bairro da Tijuca. 5 . Extrato da letra da música 'Rio 40 graus', composta por Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer. 4 Depois de anos vivendo de fama e glamour, nas duas últimas décadas parece não cessar a associação da cidade do Rio de Janeiro a imagens ligadas à violência, à desordem, ao caos urbano. O que teria acontecido com aquele habitante bon vivant e amistoso, representações outrora tão comuns acerca do carioca? O que teria havido com aquela cidade que de tão bela era a imagem do Brasil no exterior? Como uma cidade que fora centro dos acontecimentos do país, tanto no âmbito da política quanto no da cultura, chegara a tal ponto de deterioração? À busca de culpados por tal situação, equivocadamente mais do que de soluções (como de costume nesse país de injustiças e superficiais resoluções), a responsabilidade acaba sendo imputada, explicitamente ou não, às favelas da cidade e às comunidades que lá residem. Considerações lineares e distorcidas as consideram responsáveis principais pelos problemas da cidade, como se alguém morasse naquelas condições simplesmente por desejo, desviando o eixo central e desconsiderando a complexidade da questão. Não são poucos os exageros e as limitações em tais compreensões. Primeiro porque se realmente o problema é grave, o Rio de Janeiro continua sendo uma bela cidade e seu cidadão não perdeu todas as características no passado tão propaladas. O que efetivamente houve é que destruiu-se o 'mito' do Rio de Janeiro a partir do momento em que a cidade deixou de ser a capital do país, descortinado-se problemas que sempre existiram e simplesmente acirraram-se com o debilitar das condições econômicas da população brasileira, com o aumento das injustiças no âmbito nacional e com a decorrente destruição de certos valores sociais. Tal processo tem impactos significativamente maiores em uma cidade global da dimensão do Rio de Janeiro, que teve ainda que conviver com todos os problemas advindos da perda de sua condição de capital. Quanto às favelas, em artigo anterior já apontei o absurdo daquelas considerações. Trata-se de culpabilizar a vítima, de não enxergar a raiz do problema: "Se nestas comunidades estão situados setores significativos do crime organizado, estes são minoritários se comparados ao número de pessoas/trabalhadores honestos que lá residem, a despeito das difíceis condições de vida. Além disso, os verdadeiros patrocinadores da 'desordem' não moram nas favelas, mas estão muitas vezes bem instalados nas coberturas e mansões das partes nobres da cidade" 6. É óbvio e não se deve negar o aumento da violência urbana e do processo de favelização da cidade, mas as origens dos problemas devem ser radicalmente procurados na própria história da cidade, onde desde há muito tempo vêm se acirrando as desigualdades sociais. As favelas cariocas surgiram na transição do século XIX para o século XX, quando as preocupações com a inserção do Brasil no mercado capitalista internacional conduziram a um saneamento das partes consideradas nobres da cidade-capital (o centro e a Zona Sul), relegando à população mais pobre os piores espaços da cidade, destinados ao 'uso sujo' necessário para manter uma imagem artificialmente criada7, e o descaso governamental. A diferenciação e o benefício favorável às camadas mais abastadas financeiramente já estava presente desde que começa-se a construir a imagem de 'Cidade Maravilhosa' e o que temos assistido recentemente é simplesmente o acentuar desse processo pelos motivos já expostos. Para se ter uma idéia melhor, somente na Zona Oeste da cidade, a população residente em favelas passou em 12 anos (19801991) de cerca de 65 mil habitantes que viviam em aproximadamente 15 mil residências para mais de 120 mil pessoas residindo em cerca de 29 mil casas8. Isto é, praticamente dobrou o número de pessoas que sem outra opção tiveram que se alojar em comunidades dessa natureza. O que se observa então é tornar-se mais aparente os paradoxos da cidade: uma cidade partida em que alguns têm acesso a muitas coisas (e efetivamente a cidade oferece muito), mas grande parte dos habitantes pouco podem desfrutar. Nesse processo, o cidadão dissociase da cidade, não a reconhece, não se identifica completamente com ela. 6 . MELO, NASCIMENTO, 1999, s.p. Esse artigo foi aprovado para ser publicado na revista 'Licere' (no prelo). 7 . Segundo Nina Maria de Carvalho E. Rabha (1985), 'uso sujo' pode ser definido como: "...as funções indispensáveis ao funcionamento da cidade, que por serem marcadas por consumo de áreas ou poluição sonora ou visual, devem ficar próximas ao centro, mas não tanto a ponto de macular sua simbólica imagem" (p.43). 8 . PIRES, 1996. Obviamente que isso muito interessa aos que pretendem manter a atual ordem social. Ao separar o cidadão da cidade, esvaziase a dimensão do coletivo e dificulta-se a articulação de possibilidades concretas de reivindicação. Contudo ao mesmo tempo que tal processo interessa aos detentores do poder, também cria repercussões negativas para estes, que de alguma forma também tornam-se reféns da violência e do desgaste do espaço urbano. Já que trata-se de individualizar as lutas e de 'salve-se quem puder', as pessoas passam a pragmaticamente buscar soluções para 'sobreviver' e os valores tendem a se extinguir à luz da necessidade. Qual a relação desta discussão introdutória com a questão do meio ambiente urbano? Muito próxima e direta. Por que não jogar lixo no chão de uma cidade a qual não se reconhece como sua? Por que se preocupar com árvores, quando se necessita habitar? Por que se preocupar com o esgoto quando mal se tem condições de comer? Como pensar em saúde se ela é negada para a maior parte da população? E como pensar em 'educação para a ecologia' quando a rede pública de escolas está destruída pelo descaso histórico dos responsáveis por sua manutenção? Ora, a dissociação de cidadão e cidade tem impactos diretos na questão do meio ambiente urbano. Claramente vemos o paradoxo de termos uma cidade que tem uma das mais belas paisagens naturais do mundo e um enorme complexo de área verdes (entre as quais a maior floresta urbana do mundo: a Floresta da Tijuca) convivendo ao lado de habitações que não têm sequer a estrutura básica de 'sobrevivência'. Assim sendo, direta ou indiretamente, o complexo urbano (onde incluem-se os bens naturais) deteriora-se tanto por descaso governamental quanto por falta de cuidado do cidadão-sem-cidade. Exemplos claros disso são a invasão da Floresta da Tijuca pelo processo de favelização, o volume de lixo que é atirado nas ruas e a destruição da rede pluvial da cidade. Como reverter tal situação? Pretendo apresentar uma reflexão sobre um caminho possível e situar o lazer como uma estratégia para encaminhar uma solução plausível. Reintegrar o cidadão à cidade - uma proposta "Quem é dono desse beco? Quem é dono dessa rua? De quem é esse edifício? De quem é esse lugar? É seu esse lugar. É meu esse lugar? Também é seu. É, eu quero meu crachá. Sou carioca" 9. Meu argumento central é claro e direto: qualquer tentativa de tematizar e trabalhar com as questões ecológicas e do meio ambiente de forma restrita e superficial, encerrada nela mesmo, tende ao insucesso ou ao não exponenciar de todas suas possibilidades. A chave do processo deve ser a reintegração do cidadão à cidade. Enquanto o cidadão não reconhecer e reivindicar a cidade como efetivamente sua, enquanto não se der um banho de cidadania na cidade, todas as medidas serão sempre paliativas. Aliás, exemplos de ações paliativas, sempre sem sucesso, são o que não faltam no Rio de Janeiro. Podemos dar citar alguns deles. Em 1992, quando a cidade sediou a Conferência Mundial para Meio Ambiente (ECO-92), o Rio de Janeiro sofreu um grande processo de intervenção urbana. Mais tarde confirmou-se o que alguns setores críticos já denunciavam naquele momento: a maior parte das remodelações foi promovida nas zonas mais ricas da cidade, para agradar aos olhos dos turistas e dos chefes de estado estrangeiros; as reformas foram feitas de forma apressada e com material de baixa qualidade, que logo se desgastou; como não se privilegiou a implantação de projetos sérios de educação, não houve uma modificação nos costumes dos cidadãos, que também pouco contribuíram para preservar as reformas e continuaram a destruir o meio ambiente; além do mais, as comunidades não foram mobilizadas e consultadas acerca das mudanças a serem promovidas. Por fim, a injustiça e desigualdade social continuaram da mesma forma. Fatos semelhantes também ocorreram com o projeto Rio-Orla, com os projetos na época da candidatura do Rio de Janeiro aos Jogos Olímpicos de 2004, com o projeto Rio-Cidade, com as intervenções promovidas devido a recente reunião internacional de cúpula entre países latino-americanos e europeus ('Cimeira') e tem acontecido com o Projeto Favela-Bairro. Sempre se faz uma maquiagem na cidade, 9 . Extrato da letra da música 'Rio 40 graus', composta por Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer. não se articula a comunidade, os projetos educacionais são escassos e a injustiça social não diminui. Mas o que o lazer e os animadores culturais tem haver com isso? Muito. Trata-se de reconhecer os potenciais educacionais das atividades de lazer para reintegrar cidade e cidadão e para estimular a auto-organização das comunidades. As possibilidades de lazer estão entre as primeiras negadas e desconhecidas em uma cidade partida. Basta observar a distribuição geográfica das oportunidades de acesso a bens culturais pela cidade. No caso do Rio de Janeiro, exatamente no eixo Zona Sul-Centro localiza-se a maior parte dos teatros, cinemas, museus, centro culturais, bibliotecas etc. No eixo Zona Norte-Zona Oeste, onde reside a camada mais pobre da população, as possibilidades são escassas e qualitativamente complicadas, embora algumas dessas comunidades tenham se organizado à busca de solucionar (ou ao menos minimizar) o problema10. Mas não se trata somente de 'má distribuição geográfica'. Se assim o fosse, poderíamos argumentar porque os habitantes das favelas situadas nas zona sul e central da cidade não freqüentam e acessam tais oportunidades. Trata-se, na verdade, de uma questão de educação. Falo de estímulo e mediação. O animador cultural que trabalha em comunidades de baixa renda deve apresentar ao cidadão as diversas possibilidades de lazer que sua cidade possui. E nesse processo, historicizar a cidade, contribuir para o refletir sobre seus problemas, contribuir com a re-identificação da/com a cidade. Numa cidade como o Rio de Janeiro isso é plenamente possível mesmo com os impeditivos ligados à situação financeira. A cidade possui parte significativa de monumentos/bens públicos e muitas atividades culturais oferecidas de forma gratuita ou a preço acessível. Além disso, existem muitas disponibilidades locais pouco conhecidas. Isto é, se esses bens culturais não são conhecidos e utilizados, em grande parte é devido ao desconhecimento e falta de educação para tal, e o animador cultural, em um processo de diálogo e mediação, pode dar uma grande contribuição na resolução desse problema. 10 . Cito o exemplo da Lona Cultural de Bangu, uma iniciativa da comunidade local, somente agora relativamente apoiada pela Prefeitura da cidade. Mas qual a especificidade dos trabalhos nessas comunidades? É o que tentarei abordar no último item. Por agora reitero que creio que o grande problema da cidade é a separação entre cidade e cidadão e que o animador cultural pode contribuir para a superação dessa dissociação por meio das atividades de lazer. Nesse sentido também poderia contribuir para o repensar sobre o meio ambiente urbano, não só por tematizar as questões relativas a destruição do espaço urbano no interior das atividades, quanto porque tais problemas também são frutos da dissociação que tentei argumentar. Os problemas do meio ambiente urbano, na verdade, têm uma dupla dimensão: pobreza e ignorância, sendo aquela também fruto dessa. Assim, podemos atuar significativamente à busca de reduzir a ignorância, tendo em vista que isso deve direta e indiretamente contribuir para não somente reduzir, como superar a situação de pobreza. Obviamente que não se trata de jogar as responsabilidades exclusivamente para as comunidades. Os poderes públicos devem ter políticas ambientais claras, articuladas com intervenções no sentido de superar as desigualdades e as injustiças sociais. Mas para tal as comunidades também devem estar organizadas, não só para eleger representantes que encaminhem a perspectiva apontada, como para cobrarem uma atuação efetiva dos poderes constituídos. Trata-se de recuperar a cidadania do cidadão. O cidadão deve reconhecer que da mesma forma que deve ter um compromisso com a manutenção do meio ambiente urbano (em todas as dimensões possíveis), também deve cobrar intervenções governamentais nesse sentido, não só de forma paliativa, mas estruturais nesse modelo de sociedade. E se as atividades de lazer e o animador cultural não podem sozinhos dar conta desse intuito, por certo não podem ser negligentes no que se refere a sua possível contribuição. Seria tão questionável acreditar que por si só as atividades de lazer tenham um potencial suficiente para promover uma mudança da estrutura social, quanto acreditar que tais atividades se referem a uma prática desinteressada, sem conexão com a realidade e sem contribuição para a superação do status quo. Apontamentos de quem trabalhou em comunidades de baixa renda Por certo trabalhar nessas comunidades não é tarefa das mais fáceis e carrega importantes peculiaridades que devem ser consideradas. Entre os fatores dificultadores, no caso do Rio de Janeiro, podemos levantar: a) Comunidade desconfiada - depois de anos sendo ludibriadas por políticos e/ou projetos que somente têm interesses pessoais, normalmente para obter ganhos imediatos (eleição, veiculação na mídia etc), cada vez mais as comunidades crêem menos na intencionalidade e se engajam menos nas propostas. Mesmo os profissionais bem intencionados por diversas vezes sentem-se desamparados com o término inesperado das propostas quando estas já não mais interessam a seus planejadores maiores. Isto por certo tem aumentado as dificuldades de implementação de projetos efetivos, em uma perspectiva diacrônica que realmente tenha em vista uma ação prolongada e que traga benefícios à tais comunidades; b) Violência - A crescente violência, normalmente associada ao tráfico de drogas, tem alterado significativamente as características das comunidades (por exemplo, reduzido sensivelmente suas possibilidades de vivência do espaço público) e colocado muitos animadores culturais em situação de risco; sem falar que os obriga a um processo de negociação bastante complexo com as estruturas de poder marginal que existem organizadas em tais comunidades. c) Falta de recursos - grande parte dos projetos nessas comunidades é financiado ou por órgãos governamentais (por exemplo, secretarias municipais e estaduais) ou por fundações internacionais (como Fundação Kelloggs, Fundação Ford etc.). Lamentavelmente muitos desses financiadores estão mais interessados em resultados imediatos, não respeitando o tempo necessário para implementação com qualidade dos projetos, ou estabelecem simplesmente a quantidade como critério de julgamento da eficiência dos projetos, desprezando qualquer discussão qualitativa11. d) A situação de pobreza - a própria característica de pobreza da comunidade (aqui compreendida em uma dimensão ampla) por certo exige maior cuidado e responsabilidade do animador cultural. Com tal quadro, ao animador cultural cabe ainda mais profundamente compreender a necessidade de respeitar a dinâmica da 11 . Uma discussão sobre as dificuldades de relacionamento com fundações internacionais de financiamento pode ser encontrada no estudo de Melo e Nascimento (op.cit.). comunidade, reconhecer e capacitar lideranças, construindo um trabalho com a comunidade e não para a comunidade. Não se trata de unilateralmente apresentar um conjunto de atividades, mesmo que o animador cultural pense entender os anseios da comunidade em que se insere, mas sim implementar um programa em conjunto, tendo claro que sua intervenção educativa se dá desde os momentos anteriores à implementação do programa propriamente dito e prossegue na avaliação e desdobramentos de todo o programa12. Mais ainda, não cabe ao animador cultural chegar à comunidade com preconceitos e acreditando que exista uma ligação direta entre pobreza e infelicidade; nem tampouco acreditar que o processo de dominação cultural se dá de forma completa, anulando definitivamente todas as suas manifestações culturais. Os que já tiveram possibilidade de trabalhar em comunidades de baixa renda sabem que nada é mais falso. Nas favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, mesmo que tenham ocorrido mudanças significativas nos últimos anos em virtude do aumento da pobreza e da violência, nos finais de semana são facilmente observáveis festas familiares, pagodes, bares cheios, eventos ao redor de campos de futebol, presença constante da população nas escolas de samba. As ruas são ocupadas por gente disposta a se divertir. Pode-se (e deve-se) questionar a restrição de possibilidades de vivência de momentos de lazer, mas não se pode dizer que não exista alegria nesses momentos. Aliás, os que conhecem bem o Rio de Janeiro sabem o quanto a alegria é estratégia de subversão nessa cidade. Mais ainda, nessas comunidades existe uma vida cultural própria e mesmo iniciativas de manutenção de suas formas tradicionais de diversão: "A novidade cultural da garotada, Favelada, suburbana, classe média, marginal, É informática metralha. 12 . Uma discussão simples, mas bem apresentada, fundamentada e interessante sobre a ação comunitária de lazer pode ser encontrada nos artigos de Nélson Carvalho Marcellino (1996), José Luís de Paiva (1996) e Andréa Destefani e Maria de Fátima S. Grillo (1996). Outro artigo interessante é o de María Jesús Morata García (1997). Uma experiência de capacitação de animadores culturais pode ser encontrada no artigo de Melo e Nascimento (op.cit.). Sub-UZI equipadinha com cartucho musical. De batucada digital" 13. Deve-se compreender que mais do que violência, essas comunidades também respiram música, arte, cultura. Mais do que consumidores acríticos, também são produtores e estabelecem resistências em seu cotidiano. Tal dimensão é bastante clara no Rio de Janeiro, onde as fronteiras entre morro e asfalto ainda não são excessivamente demarcadas. A linguagem das favelas rapidamente invade as ruas da cidade. A música, cujo maior exemplo é o próprio samba, se mistura a muitas outras iniciativas culturais. Ao animador cultural cabe reconhecer tal dinâmica, incentivála e dela partir em sua proposta de mediação. Também reconhecer os grupos locais que têm tido dificuldades de manter suas tradicionais manifestações e tentar contribuir para revitalizar tais atividades. Nos morros do Rio de Janeiro são bastante comuns exemplos desses grupos, como o caso do Jongo, no Morro da Serrinha, e da Folia de Reis, no Morro da Mangueira14. Também sugere-se que o animador cultural procure articular seu trabalho com outras iniciativas já em curso nas comunidades. Normalmente existem muitas associações, igrejas, ONGs, entre outras, que desenvolvem projetos com objetivos diversos. Uma ação necessária é a de articulação e colaboração mútua no que for possível, obviamente iniciativa que deve ser precedida de uma cuidadosa análise dos intuitos reais das instituições identificadas. Por fim, no que se refere especificamente a trabalhos com a temática do meio ambiente/ecologia, gostaria de chamar a atenção para dois enfoques que devem ser evitados. Um deles é a tematização do assunto a partir de uma realidade que não é concreta à comunidade. De pouco vale, por exemplo, uma discussão sobre a situação das baleias em uma comunidade que nunca as viu e/ou tem problemas mais concretos com os quais deve lidar. Mesmo uma discussão de preservação de árvores, por exemplo, pode 13 . Extrato da letra da música 'Rio 40 graus', composta por Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer. 14 . Uma discussão interessantes quanto ao papel do animador cultural como articulador e incentivador dos grupos da comunidade pode ser encontrada no artigo de Toni Puig Picart (1997). ser pouco efetiva quando a necessidade de um local de moradia tornase mais urgente. Penso que se deve começar a discussão por questões cotidianas, efetivamente reconhecidas pela população. Como por exemplo, a questão dos ratos, do lixo e da falta de saneamento básico. Não só fica mais fácil, quanto se pode conceder maiores contribuições, partir desses problemas que podem ser identificados cotidianamente, para daí ampliar-se paulatinamente a discussão sobre o meio ambiente urbano/ecologia. O outro enfoque usualmente pensado e solicitado é uma abordagem superficial das atividades de lazer que de alguma forma citem (pelo menos na visão distorcida de alguns) uma suposta questão ecológica. Por exemplo, algumas vezes fomos convidados para 'fazer recreação em um projeto de dia de educação para a ecologia'. Tão questionável quanto pensar que um 'dia de educação' é suficiente para tratar a complexidade do problema, era a proposta dos que nos convidaram. Pensavam eles que poderíamos 'fazer brincadeiras com músicas de bichinhos' ou 'fazer as crianças pintarem flores e animais'. Ora, não preciso nem tecer grandes comentários sobre a limitação e distorção de tal compreensão. Certamente não é nada parecido com isso que estamos propondo. Cremos sim, que o animador cultural tem nas atividades de lazer uma grande potencial de contribuição para que as comunidades de baixa renda pensem e repensem sobre as questões relativas ao meio ambiente urbano. Mais isso se dá quando auxilia a reintegrá-los criticamente à cidade, quando contribui para sua auto-organização e quando revitaliza culturalmente seu espaço de convivência. E por certo esse é um processo longo e que requer muita dedicação, paciência e preparo. Referências bibliográficas DESTEFANI, Andréa, GRILLO, Maria de Fátima S. Resposta e reflexo - Dois tipos de resultados e suas peculiaridades. In: MARCELLINO, Nélson Carvalho (org.). Políticas públicas setoriais de lazer: o papel das prefeituras. Campinas: Autores Associados, 1996. p.55-60. GARCIA, María Jesús Morata. Animación sociocultural y desarrollo comunitario. In: Trilla Jaume (coord.). Animación sociocultural: teorías, programas y ámbitos. 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