escola de música e belas artes do paraná anderson roberto

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escola de música e belas artes do paraná anderson roberto
ESCOLA DE MÚSICA E BELAS ARTES DO PARANÁ
ANDERSON ROBERTO ZABROCKI ROSA
TEORIA E PRÁTICA MUSICAL NO INÍCIO DO SÉCULO XVII
CURITIBA
2011
ANDERSON ROBERTO ZABROCKI ROSA
TEORIA E PRÁTICA MUSICAL NO INÍCIO DO SÉCULO XVII
Relatório de conclusão do projeto de iniciação
científica da EMBAP como bolsista da Fundação
Araucária de apoio ao desenvolvimento científico
e tecnológico do Paraná – 2010/2011.
Orientador: Prof.ª(a). Dra.(a). Léa Ligia Soares.
CURITIBA
2011
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente à Léa Ligia Soares, pela orientação dedicada e
paciência desde os primeiros esboços do projeto.
Agradeço à Fundação Araucária pelo apoio financeiro e a EMBAP pelo apoio
organizacional para o desenvolvimento da pesquisa.
A todos os colegas, amigos e professores com os quais pude conversar
sobre os assuntos abordados no trabalho, contribuíram muito ao fazer sugestões e
se mostrarem interessados sobre o tema, me apoiaram e motivaram no decorrer da
pesquisa.
RESUMO
No início do século XVII surge um novo estilo de composição musical nomeado
seconda prattica por suceder o estilo antigo, portanto, prima prattica. Ambos os
estilos de composição se fundamentam sobre os princípios e regras de contraponto,
mas o que os diferencia, é a questão do tratamento das dissonâncias. Portanto, a
questão “dissonância” é o tema central desse trabalho, pois foram as dissonâncias
consideradas proibidas nas obras de Claudio Monteverdi (1576-1643) que o
motivaram a criar o termo seconda prattica, justificando assim a sua forma de
compor, assim como de outros compositores de seu tempo, precursores da música
barroca (1600-1750). Os exemplos que demonstram as possibilidades de novos
usos de dissonâncias que caracterizam a seconda prattica foram extraídos dos
tratados de contraponto de Vincenzo Galilei. E as regras essenciais para a
composição no estilo prima prattica tem como referencial o teórico Gioseffo Zarlino.
As regras e exemplos de ambos os estilos são apresentados para comparação, com
o intuito de aproximar os pontos em comum e as principais diferenças entre as duas
práticas de composição, principalmente no que diz respeito às dissonâncias.
Palavras chave: prima prattica, seconda prattica, contraponto, Gioseffo Zarlino,
Vincenzo Galilei, tratamento e preparação de dissonâncias.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 5
1.1OBJETIVO GERAL................................................................................................ 9
1.2 OBJETIVOS ESPECIFICOS................................................................................ 9
2 TEORIA E PRÁTICA MUSICAL NO INÍCIO DO SÉCULO XVII........................... 10
2.1 Prima prattica e seconda prattica....................................................................... 10
2.2 Gioseffo Zarlino................................................................................................... 11
2.3 Vincenzo Galilei.................................................................................................. 12
3 “A ARTE DO CONTRAPONTO” – REFERENCIAL PARA A PRIMA PRATTICA
.................................................................................................................................. 13
3.1 Soggetto.............................................................................................................. 14
3.2 Modo................................................................................................................... 14
3.3 Tratamento de dissonâncias e instruções rítmicas............................................. 16
3.4 Notas suspensas (sincopas)............................................................................... 17
3.5 Cambiatta............................................................................................................ 18
4 O TRATADO DE VINCENZO GALILEI COMO CODIGO DA SECONDA
PRATTICA................................................................................................................ 20
4.1 Expansão das possibilidades de uso das dissonâncias..................................... 20
4.2 Dissonâncias suspensas.................................................................................... 22
4.3 Acréscimo de segundas e sétimas..................................................................... 24
5 CONFRONTAÇÃO DE PRINCIPIOS, PRIMA PRATTICA X SECONDA
PRATTICA............................................................................................................... 26
6 CONCLUSÃO....................................................................................................... 27
REFERENCIAS....................................................................................................... 28
5
1. INTRODUÇÃO
Minha busca por respostas relacionadas com a teoria e pratica musical no
início do século XVII teve início quando me deparei com um madrigal intitulado
“Ecco, Silvio” de Claudio Monteverdi (1567-1643). Senti-me duplamente provocado
pela obra em questão, primeiramente pela dificuldade de estabelecer um padrão
tonal ao ouvir e cantar a peça, havia mudanças de alturas e “colorações” que me
deixaram intrigado. Comecei a analisar, eis a segunda provocação, não consegui
estabelecer uma lógica tonal, identifiquei acordes, graus, cadências, mas nada disso
foi satisfatório para minha tentativa de compreender como Monteverdi estruturou
aquele madrigal. Continuei com essa questão por um tempo, cheguei a esquecer
dela por não encontrar possíveis explicações, até que em uma aula de história da
música da renascença o professor fez a seguinte observação; apesar de muitas
obras do fim do renascimento apresentarem formações cordais e outros traços que
lembram o tonalismo, trata-se de um período pré-tonal, em que a música era
pensada contrapontisticamente e estruturada sobre modos. As obras desse período
não devem ser encaradas sob os mesmos parâmetros analíticos que utilizamos ao
estudar a música de Mozart ou Beethoven.
Com essas novas informações obtidas, encontrei um livro que parecia ir
direto às minhas questões, “Monteverdi's Tonal Language” (CHAFE, 1992). Nesta
leitura descobri que precisava compreender melhor alguns conceitos e ideias de
teóricos, matemáticos e compositores do período de Monteverdi. Conceitos de
modos, hexacordes, contraponto, prima prattica e seconda prattica. Foi com base na
leitura inicial de Eric Chafe que elaborei o projeto do presente trabalho, por isso, no
principio busquei conhecer o pensamento de inúmeros teóricos, compositores,
sistemas filosóficos, matemáticos e por fim, descobrir como ocorreu a mudança do
pensamento modal para o tonal. Absolutamente “sem noção” e sem foco é o que
penso hoje, mais de um ano depois de iniciar as leituras e anotações para o
trabalho.
Ao iniciar os estudos, comecei pela questão dos modos (POWERS, 2001).
Procurei as origens da teoria modal para ter um panorama histórico desde a idade
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média. Logo percebi que a organização modal estava fundamentada sobre
princípios matemáticos, filosóficos e questões de temperamento dos instrumentos,
ou seja, muitas variáveis para se fazer alguma afirmação, ainda mais se levarmos
em conta o tempo; mil, novecentos, trezentos anos. Mesmo considerando apenas o
início do século XVII, não é possível afirmar a real importância da utilização dos
modos numa composição musical. Havia convenções para o estabelecimento de um
determinado modo na musica descrita nos tratados de Zarlino e obras de Palestrina,
o modo era apresentado na voz do tenor e repetido na voz do soprano, o que
indicava sobre qual modo a música foi composta. Essa forma de atribuir o modo da
composição é bastante discutido, pois, além do tenor, outras vozes se desenvolvem
independentes numa composição a várias vozes, ou seja, cada uma delas poderá
apresentar um modo diferente, o que tornará o reconhecimento de um único modo
para a peça difícil e muitas vezes ambíguo, tanto analiticamente como
auditivamente. No início do artigo intitulado “Renaissance modal theory: theoretical,
compositional, and editorial perspectives” (JUDD, 2008). Judd escreve que a palavra
“modo” é uma das que apresenta maior riqueza de nuances e termos problemáticos
no discurso renascentista sobre música.
Um dos principais problemas de tentar analisar obras polifônicas sobre a
ótica da teoria modal é que sem sempre é possível manter a prevalência de um só
modo. Teóricos do século XVI já tratavam dessa questão em seus textos, um desses
teóricos foi Pietro Aaron, que afirmava que todos os compositores celebres deixaram
de trabalhar sobre modos, pois, já não era relevante para o equilíbrio das obras.
De acordo com Judd, o habito de atribuir um modo à polifonia está ligado a
antiga tradição monofônica. O próprio conceito de modo pode ser questionado por
ter sofrido no decorrer da história, leituras e distorções diversas. Na leitura dos
textos de Judd encontrei outro trabalho que poderia ser referencial para meu estudo,
“Is mode real” (POWERS.H,1992) do qual procurei me apropriar do conteúdo, mas
assim como na leitura de Eric Chafe, me faltou “bagagem” para acompanhar o
raciocínio do autor e percebi que estava me afastando dos objetivos gerais do
trabalho, estava correndo o risco de centralizar o assunto numa resposta que pode
não existir: a real importância que os modos tinham para a composição.
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Ainda com relação aos modos e questões que me isentei de apresentar no
corpo do trabalho, estão as questões dos sistemas de oito, doze modos e suas
nomenclaturas das quais encontrei referências, mas não houve tempo suficiente
para desenvolver no trabalho.
No que diz respeito ao contraponto, mais especificamente ao tratamento das
dissonâncias, a principal referência para a teoria musical no século XVI foi Gioseffo
Zarlino, portanto, será a fonte dos exemplos e regras da prima prattica -, o estilo
prevalente durante o século XVI e início do XVII, sobre tudo na música sacra. Ao
iniciar o desenvolvimento do trabalho tinha como intuito selecionar obras de Claudio
Monteverdi para encontrar as diferenças existentes entre o contraponto usado em
suas obras e o contraponto ensinado por Zarlino. Algo que logo percebi ser árduo e
talvez pouco frutífero, pois, a ruptura de Monteverdi com a tradição não é tão radical
como imaginava ao ler textos que falavam de debates acalorados sobre as
divergências que surgiram com os usos de novas possibilidades de dissonâncias por
alguns compositores modernos, considerados transgressores. Essas dissonâncias
que eram estritamente proibidas foram utilizadas nos madrigais de Monteverdi, de
forma homeopática, apenas em momentos que o texto pede reforço dramático. De
maneira geral, Monteverdi não só respeita a maneira tradicional de escrever obras
polifônicas como também compôs toda sua obra sacra seguindo estritamente o
estilo prima prattica.
Não encontrei formas de listar as possibilidades de dissonâncias que
Monteverdi utilizava em suas composições e como faria as comparações com a
prima prattica. O ideal seria haver um teórico equivalente a Zarlino, que tivesse
escrito a respeito das regras do contraponto para a seconda prattica. Dessa forma,
encontraria as informações organizadas com certa didática, o que tornaria o dialogo
com Zarlino mais direto. Esse teórico foi encontrado em um texto de Palisca
intitulado “Vincenzo Galilei’s counterpoint treatise, a code for the seconda prattica”
(1956).
De acordo com Palisca, em uma carta de Monteverdi escrita em 1633,
Monteverdi declara sua intenção de escrever algo que preferia não chamar de
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tratado, mas seria voltado para a questão do estilo moderno de composição.
Monteverdi chamaria o trabalho de “Melodia, overo seconda prattica musicale”, mas
o trabalho não foi realizado. Nesse texto, Palisca sugere que os tratados de
Vincenzo Galilei sejam tomados como referenciais teóricos da seconda prattica,
expõe as causas e razões pelas quais os escritos de Galilei podem ter sido
negligenciados por tanto tempo e principalmente, destaca em exemplos as principais
mudanças sugeridas por Galilei na ampliação de possibilidades no tratamento e
resolução de dissonâncias.
Para atingir o intuito desse trabalho e por fim, expor alguns aspectos da
teoria e prática musical do início do século XVII, serão apresentados os conceitos de
prima prattica, seconda prattica e alguns autores referenciais para esse assunto
(Monteverdi, Zarlino, Artusi). Para ilustrar as questões essenciais que fundamentam
e diferenciam as práticas composicionais do período em questão, serão
apresentados exemplos, trechos de obras e comentários.
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1.1 OBJETIVO GERAL
Compreender quais foram as mudanças ocorridas na teoria e prática musical
no início do século XVII, suas implicações e justificativas.
1.2 OBJETIVOS ESPECIFICOS
Dentre
as
questões
que
serão
estudadas
e
apresentadas
no
desenvolvimento do trabalho, destacam-se os seguintes objetivos:
a. Adquirir uma maior compreensão a respeito da teoria musical
renascentista.
b. Compreender obras dos séculos XVI e XVII de acordo com o
pensamento da época, incluindo a questão da modalidade, tratamento de
dissonâncias, cadências polifônicas.
c. Encontrar exemplos que ilustrem elementos característicos de cada
estilo de composição prima prattica e seconda prattica.
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2. TEORIA E PRÁTICA MUSICAL NO INÍCIO DO SÉCULO XVII
No início do século XVII novas ideias musicais se consolidaram no que diz
respeito ao desenvolvimento de uma linguagem musical que visava expressar maior
intensidade e conteúdo emocional aos ouvintes. Essas ideias musicais consolidadas
constituem o que é conhecido como o início do período barroco (1600-1750). De
acordo com Grout; Palisca (2001), o período barroco apresenta duas praticas
referentes aos estilos de composição musical da época, um estilo antigo e outro
moderno, conhecidos também como prima prattica e seconda prattica. Essas
distinções foram estabelecidas por Claudio Monteverdi (1567-1643) no prefácio de
seu quinto livro de madrigais (1605).
Por prima prattica entendia o estilo de polifonia vocal representado pelas
obras de Willaert e codificado nos escritos teóricos de Zarlino; pela seconda
prattica entendia o estilo dos modernos italianos, como Rore, Marenzio e
Monteverdi (Grout; Palisca 2001).
Monteverdi distinguia os estilos da seguinte maneira: na prima prattica a
música domina o texto, enquanto na seconda prattica é o texto que determinava a
forma da música. O estilo moderno consiste da expansão nas possibilidades e
regras de composição para a expressão dos afetos do texto na música. O principal
motivo de Monteverdi escrever esse prefácio foi rebater as criticas de G.M. Artusi
(1540-1613) escrita anos antes em uma publicação intitulada “L’Artusi, ovvero, Delle
imperfezioni della moderna musica” (1600). Neste tratado, o autor indicou o que
considerava irregular na forma de compor dos compositores modernos, colocando
em evidência o madrigal Cruda amarilli de Monteverdi como exemplo de imperfeição
e negligência das regras para uma composição harmoniosa.
A resposta de
Monteverdi foi reapresentada de forma estendida e comentada por seu irmão, Giulio
Cesare Monteverdi em 1607 ao fim do Scherzi Musicali , obra de Claudio
Monteverdi.
Na resposta escrita por Giulio Cesare, são justificadas as decisões
composicionais de C. Monteverdi e citados nomes de compositores que são
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representantes da prima e seconda prattica. Faz referência a Gioseffo Zarlino (15171590) como autoridade no que diz respeito às regras da prima prattica (STRUNK,
1965). Zarlino, portanto, será a fonte teórica utilizada nesse estudo no que diz
respeito às regras do estilo de composição que Monteverdi atribuiu o nome de prima
prattica, e como teórico representante da seconda prattica, Vincenzo Galilei (15201591). A decisão de utilizar os escritos de Vincenzo Galilei como referências parte
da leitura do artigo de C.Palisca “Vincenzo Galilei’s Counterpoint Treatise: A Code
for the Seconda Pratica” (1955) em que o autor apresenta pontos em comum entre
os conceitos de seconda prattica apresentados por Claudio Monteverdi e as ideias
expressas nos tratados de Vincenzo Galilei. Os tratados de Galilei abordam
questões do contraponto e a maneira como as dissonâncias eram empregadas pelos
compositores citados por Monteverdi, como os fundadores da seconda prattica. O
intuito dessa aproximação dos teóricos e suas praticas é compreender os preceitos
teóricos imprescindíveis para a composição musical em cada um dos estilos. Serão
investigadas as diferenças composicionais existentes entre as “praticas” e os
principais indicadores e características que definem uma obra como pertencente a
prima prattica ou seconda prattica.
2.1 Gioseffo Zarlino
Zarlino foi um dos principais teóricos musicais no século XVI. No seu livro
Le istitutione harmoniche, é tomado como referência na historia da teoria
musical. Ele integrou a teoria especulativa à teoria prática e estabeleceu os
moldes composicionais de Adrian Willaert como modelo de escrita
contrapontística (Palisca).
Do principal escrito teórico de Zarlino, Le istitutione harmoniche (1558) a
terceira parte é de especial interesse para o presente estudo, nessa parte serão
apresentados os princípios para a composição polifônica. Apresenta os requisitos
para a elaboração do que ele considerava uma boa composição, alguns desses
requisitos serão apresentados em exemplos no decorrer da exposição.
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2.2 Vincenzo Galilei
Vincenzo Galilei alcançou amplo reconhecimento como alaúdista e teórico
musical, foi reconhecido até mesmo pelo famoso reacionário G.M Artusi que em seu
escrito Trattato apologético (1589), faz referência a Galilei com o seguinte titulo:
“Signor Dottore Vincenzo Galilei nobile Fiorentino Mathematico, Musico Teorico,
Pratico: Sonatore de Leuto et Mastro da Scola.”
Embora Galilei nunca tenha utilizado o termo seconda prattica em seus
escritos, apresentou os mesmos princípios citados por Claudio Monteverdi para
justificar a maneira moderna de se compor, na qual as regras de contraponto se
tornam menos rígidas para que os textos na música se tornem mais expressivos.
Os escritos de Galilei sobre o contraponto foram negligenciados por muito
tempo pelo posicionamento transgressor apresentado pelo autor ao tratar das regras
de contraponto e questões da expressão da palavra na música.
Uma das razões pela longa negligência que o tratado de Galilei
sofreu, além do fato de os manuscritos não serem nenhum modelo de boa
escrita, é que muitos estudiosos se recusavam a acreditar que aquele
Galilei, o arqui-inimigo do contraponto pudesse de alguma forma ter
contribuído com algo valoroso para a teoria desse assunto. (PALISCA,1956)
O tratado de contraponto de Vincenzo Galilei é dividido em duas partes, Il
primo libro della prattica del contrapunto intorno all’uso dele consonanze e Discorso
intorno all’uso delle disonanze, com base nesses dois escritos Claude Palisca listou
as principais colocações de Galilei para a expansão das possibilidades
composicionais dentro da técnica do contraponto, esses exemplos serão
apresentadas no capitulo que trata das contribuições de Galilei para a expansão das
possibilidades do uso das dissonâncias.
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3. “A ARTE DO CONTRAPONTO” – REFERENCIAL PARA A PRIMA PRATTICA.
A “Arte do contraponto” como teoria da composição polifônica era
para Zarlino o centro da música prática e ao mesmo tempo base da mais
compreensiva reunião dos temas em teoria musical. Zarlino não apenas
considerava em detalhes todos os aspectos tradicionais do contraponto,
mas, também procurava definir requerimentos e regras adicionais para a
composição polifônica (SACHS,2001).
A arte do contraponto, nome dado à terceira parte do livro Istitutione
Harmoniche de Zarlino trata da maneira de se compor a duas ou mais vozes
utilizando a técnica do contraponto. Indica a existência de duas formas de
contraponto, o contraponto simples que trabalha apenas com consonâncias e
valores iguais entre as notas e o contraponto diminuto em que se trabalha com
dissonâncias e variedade de divisões nos valores das notas.
Ainda em um dos capítulos iniciais, Zarlino expõe o que considera mais
importante para uma boa composição, trata da questão do soggetto, que para ele é
indispensável para se iniciar uma composição. Cita a arte da poesia de Horácio para
justificar a importância do soggetto e diz que assim como a poesia precisa de um
tema, história ou conto como ponto de partida para ser adornado e agradar os
ouvintes, o mesmo acontece com a música a partir do soggetto. Outra
recomendação importante de Zarlino faz referência ao uso das consonâncias, que
devem ser prevalentes numa composição, muitas dissonâncias também ocorrerão
no processo de composição, mas, deverão ser tratadas de acordo com as regras de
preparação e resolução. Zarlino também ressalta a importância da diversidade de
movimentos melódicos e harmônicos entre as vozes para criar equilíbrio e escreve
sobre a importância da escolha de um modo para a composição. Por último, trata da
importância do texto na escolha do caráter da música, a música deve complementar
o texto, se o texto for alegre, a música não poderá apresentar modos ou soggettos
tristes.
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3.1 Soggetto
O soggetto para Zarlino era a base da composição, sem ele nada poderia
ser criado. O soggetto pode consistir de um Cantus firmus, cantus figuratus ou
partes imitativas. Para Harold Powers o soggetto representa um real desafio para o
os compositores renascentistas, pois, não estava ligado apenas com a condução
das vozes, mas sim na sua própria elaboração, variando- o ou combinando-o com
outro material melódico. O soggetto não deve ser visto necessariamente como um
simples sujeito melódico com ritmos iguais ou misturados, pode ser um duo ou no
caso da técnica de paródia, a composição toda.
3.2 Modo
Em Zarlino, o modo do tenor é o que determina o modo da composição e
normalmente é compartilhado com o soprano numa peça a quatro vozes enquanto o
alto e o baixo se desenvolvem no modo plagal ou vice versa. O modo geralmente é
definido em termos de características melódicas, pelo ambitus, finalis, tom recitativo
ou espécie característica.
Mas considerando a analise de obras e textos do período que tratam da
questão “modo”, o modo não deve ser visto de maneira tão simples. No artigo
intitulado “Renaissance modal theory: theoretical, compositional, and editorial
perspectives”, Cristle Collins Judd afirma que a palavra “modo” é uma das que
apresenta maior riqueza de nuances e termos problemáticos no discurso
renascentista sobre música. Um dos principais problemas de tentar analisar obras
polifônicas sobre a ótica da teoria modal é que não é possível manter a prevalência
de um só modo. Teóricos do século XVI já tratavam dessa questão em seus textos,
um desses teóricos foi Pietro Aaron (1480- 1550) que afirmava que todos os músicos
celebres deixaram de trabalhar sobre modos, pois, já não era relevante para o
equilíbrio das obras.
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Muitas referências dos séculos XV e XVI indicam que o modo deve ser
expresso na voz do tenor. Mas, teóricos do mesmo período questionavam essa
padronização e classificam como não validas. Atestam que não é possível atribuir
um só modo a uma composição polifônica, pois, cada voz carrega uma estrutura
melódica diferente. Ou seja, cada voz apresenta um modo.
Judd apresenta ainda outras informações que sobre possíveis origens do
costume de atribuir modos às composições, uma das origens desse hábito pode
estar ligada a antiga tradição monofônica. O próprio conceito de modo pode ser
questionado por ter sofrido, no decorrer da história, leituras e distorções diversas;
para o músico de hoje é muitas vezes utilizado como um termo “guarda chuva” para
toda música que não apresenta características claras da harmonia tonal (ou atonal).
Há tantas nuances e diferentes posicionamentos no que diz respeito à
utilização da teoria modal na música do período em questão, que mesmo atendo-se
somente a esse tópico haveria dificuldades de cercar o assunto e apresentar
informações mais detalhadas da real importância dos modos ou como classificar se
tal composição é elaborada sobre modo “X” ou “Y”. Discorrer sobre esse assunto
exigiria toda uma investigação dedicada apenas ao tema modo.
Considerando as hipóteses de Judd, que justifica a atribuição de modos
como mera formalidade herdada dos tempos da monofonia ou para fins comerciais
no alto renascimento, a questão dos modos parece secundária para o período em
questão. A partir de agora o foco será a questão de preparação e tratamento de
dissonâncias, tema central de controvérsias entre teóricos e compositores do fim do
século XVI e início do XVII, ponto de origem dos termos prima e seconda prattica.
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3.3 Tratamento de dissonâncias e instruções rítmicas
Para
Zarlino
a
composição
deve
apresentar
predominantemente
consonâncias, as dissonâncias devem surgir com menor frequência e quando
surgirem, devem ser preparadas e resolvidas de maneira que não interfiram na
harmonia e equilíbrio da peça. Abaixo exemplos de como preparar e resolver
dissonâncias.

Toda a composição deve começar no battere (tempo forte); se uma
das partes iniciar depois, deve ser ao menos após uma pausa de
mínima (frequentemente se utiliza uma semibreve sincopada).
Ex. Kyrie da Missa “Sanctificatus” - Palestrina.
 Nos tempos fortes do compasso haverá apenas consonâncias. As
dissonâncias só podem surgir nos tempos fracos, devem ser atingidas por
grau conjunto e deixadas também por grau conjunto, nunca por salto.
Exemplos:
•
Exemplos copiados de: SACHS.K; DAUHLHAUS.Carl Counterpoint em The New Grove
Dictionary of Music and Musicians pp560. Ed. SADIE. S. Oxford University Press,Oxford
2001.
17
A música não deve ter movimentos rápidos de início, devem ser
adicionadas notas mais rápidas gradativamente. Semínimas devem apenas ser
acrescentadas no levare (tempo fraco).
Kyrie da missa Sanctificatus – Palestrina. Semínimas acrescentadas à composição no
levare
3.4 Suspensões (sincopas).
As notas sincopadas dissonantes deverão ser resolvidas obrigatoriamente
por grau conjunto descendente:
18
As sincopas consonantes podem ser seguidas de salto para outra
consonância:
3.5 Cambiata
Outra maneira de tratamento de dissonância está na utilização da cambiata.
O exemplo abaixo é a formula apresentada por G.M. Artusi em L’arte del
contraponto, 1586 (SACHS,2001). É a descrição mais antiga dessa utilização. Essa
formula normalmente é apresentada como parte da cadência e prepara uma
suspensão.
Trata-se de um conjunto de cinco notas consistindo de quatro semínimas
descendentes em grau conjunto, a segunda e a terceira são dissonâncias seguidas
de movimento ascendente. A terceira nota, uma dissonância irregular era chamada
de cambiata.
Exemplo de cambiata por G.M Artusi
19
As outras duas formulas de cambiata consistem de quatro notas, a cambiata
dissonante e a consonante. Nos dois exemplos um salto de terça descendente é
feito para a terceira nota das quatro e seguido por movimento ascendente por grau
conjunto.
O exemplo de Pietro Pontio consiste, na maioria das vezes, de quatro notas,
uma semínima dissonante em tempo fraco saltando para uma terça descendente e
em seguida uma segunda ascendente.
A forma ascendente é rara, mas a
descendente ocorre tanto na cambiata dissonante quanto consonante (a progressão
normalmente é 8-7-5 e 6-5-3) pode aparecer estendida ritmicamente e metricamente
deslocada, continua como resolução de suspensão. Fux, Jeppesen e outros
chamaram a semínima que salta irregularmente de uma dissonância “cambiata”.
Pietro Pontio (Ragionamento di musica, 1588)
Exemplo de cambiata consonante (Zarlino)
20
4. OS TRATADOS DE VINCENZO GALILEI COMO REFERÊNCIAS DA SECONDA
PRATTICA
Sachs, 2001: “Primeira tentativa sistemática de conciliar a teoria do
contraponto às recentes inovações nas técnicas composicionais atribuídas a
Cipriano de Rore e proclamada por Monteverdi com o título de seconda prattica”.
Essas inovações às quais Sachs se refere, são aquelas que possibilitam
maiores liberdades no tratamento das dissonâncias, inovações que permitem que as
dissonâncias sejam acrescentadas sem alguns dos procedimentos considerados
obrigatórios na prima prattica. As dissonâncias deixam de serem usadas apenas
como notas de passagem e passam a representar elementos importantes para a
estrutura e expressão musical. Galilei enriqueceu as possibilidades de composição
fazendo das dissonâncias elementos mais frequentes na textura polifônica.
4.1 Expansão das possibilidades de uso das dissonâncias
Na regra geral, a nota dissonante equivalente ao tempo do pulso (mínima), a
dissonância deve ser inserida no tempo fraco (levare) e nunca no tempo forte
(battere). Mas para Galilei, quando se trata de notas de menor valor; semínimas,
colcheias e semicolcheias, as consonâncias e dissonâncias podem se alternar sem
levar em conta se ocorrerão em tempo forte ou tempo fraco. Com isso, Galilei rejeita
o principio de que numa sequencia de quatro semínimas, a segunda e a quarta
podem ser dissonantes enquanto as outras obrigatoriamente consonantes, C D C D
(C= consonância e D= dissonância). Galilei apresenta outras possibilidades na
alternância de consonâncias e dissonâncias, as mais recorrentes são: D C C D, C D
D C, D C D C, e ocasionalmente outras formulas (PALISCA, 1956).
21
Exemplos:
a)
b)
c)
d)
22
e)
4.2 Dissonâncias suspensas.
A seguinte contribuição de Galilei consiste no relaxamento das regras
referentes à resolução de dissonâncias suspensas.
Na forma tradicional de
resolução, a nota dissonante suspensa é resolvida por grau conjunto descendente
enquanto a outra voz permanece fixa. Para Galilei a nota dissonante suspensa pode
ser resolvida por salto, assim como por grau conjunto ascendente; duas vozes
podem ser suspensas simultaneamente sobre uma terceira voz e duas ou mais
suspensões podem ocorrer simultaneamente em música para três ou mais vozes.
a) Resolução de suspensão por salto para consonância.
b) Movimento simultâneo em direção à resolução.
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c) Resolução ascendente.
d)
e) Resolução em outra dissonância
De acordo com Galilei, as dissonâncias de quarta aumentada e quinta
diminuta poderiam ser tratadas como qualquer outra dissonância preparada,
como notas de passagem e suspensões regulares ou irregulares.
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Quando resolvidas em suas próprias consonâncias, esses intervalos de
quarta aumentada e quinta diminuta poderiam ser adicionados normalmente
como dissonâncias.
a)
b)
4.3 Acréscimo de segundas e sétimas por salto em tempo forte
Galilei reconhece que esse tipo de dissonância pode agredir aos ouvidos
mais sensíveis, ainda mais por se tratar de escrita a duas vozes. Numa escrita a
três ou mais vozes apenas uma das vozes pode soar dissonante num
determinado tempo.
a)
25
b)
c)
26
5. CONFRONTAÇÃO DE PRINCIPIOS: PRIMA PRATTICA X SECONDA
PRATTICA.
A prima prattica foi o estilo de composição musical prevalente na música
culta europeia do século XVI, sobre tudo na musica litúrgica. A seconda prattica
não representa uma total ruptura com o estilo antigo de composição, pois, a
maior parte dos fundamentos da composição polifônica são mantidos. Portanto, a
seconda prattica consiste da ampliação de possibilidades de uso de dissonâncias
no contraponto, justificáveis pelo propósito de ressaltar os elementos expressivos
do texto nas músicas. De maneira sintética, as principais diferenças entre as
praticas estão listadas na tabela abaixo.
Prima prattica

Seconda prattica
Em um conjunto de quatro semínimas

duas
além
ocasionalmente três (C D C D), (C D D C),
da
possibilidade
do
uso
da
Suspensões
podem
ser
dissonantes,
(D C D C), (C D D D).
cambiata.

Em um conjunto de quatro semínimas
duas podem ser dissonantes. (C D C D)
(sincopas)
dissonantes

Suspensões
podem ser resolvidas somente em grau
resolvidas
conjunto descendente.
consonância,
dissonantes
por
por
salto
grau
podem
para
ser
uma
conjunto
ascendente ou descendente e para outra
dissonância.

Progressões nunca podem ser feitas para

uma nova dissonância.

nova dissonância
Dissonâncias só podem acontecer em
tempo
fraco
ou
Progressões podem ser feitas para uma
com
preparação
sincopada seguida de resolução regular
por grau conjunto descendente.

Dissonâncias podem acontecer em tempo
forte sem preparação sincopada se uma
resolução regular vir em sequencia.
27
6. CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo compreender a aspectos da teoria e
prática musical do início do século XVII. A pesquisa desses aspectos apresentou
questões e conceitos que se mostraram importantes para a compreensão do
assunto, os principais pontos foram as duas práticas composicionais que existiram
no período em questão, prima prattica e seconda prattica, que revelam ideais e
propósitos diferentes para a composição musical e por consequência, apresentam
escritas contrapontísticas com regras distintas. A seconda prattica não representa
uma ruptura completa com a prima prattica, a maioria das regras de condução e
equilíbrio das vozes é mantida, as maiores diferenças estão na questão de
tratamento de preparo de dissonâncias, justificadas na seconda prattica como
elementos de destaque para reforçar as ideias expressas nos textos cantados.
28
REFERÊNCIAS
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