escola de música e belas artes do paraná anderson roberto
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ESCOLA DE MÚSICA E BELAS ARTES DO PARANÁ ANDERSON ROBERTO ZABROCKI ROSA TEORIA E PRÁTICA MUSICAL NO INÍCIO DO SÉCULO XVII CURITIBA 2011 ANDERSON ROBERTO ZABROCKI ROSA TEORIA E PRÁTICA MUSICAL NO INÍCIO DO SÉCULO XVII Relatório de conclusão do projeto de iniciação científica da EMBAP como bolsista da Fundação Araucária de apoio ao desenvolvimento científico e tecnológico do Paraná – 2010/2011. Orientador: Prof.ª(a). Dra.(a). Léa Ligia Soares. CURITIBA 2011 AGRADECIMENTOS Agradeço imensamente à Léa Ligia Soares, pela orientação dedicada e paciência desde os primeiros esboços do projeto. Agradeço à Fundação Araucária pelo apoio financeiro e a EMBAP pelo apoio organizacional para o desenvolvimento da pesquisa. A todos os colegas, amigos e professores com os quais pude conversar sobre os assuntos abordados no trabalho, contribuíram muito ao fazer sugestões e se mostrarem interessados sobre o tema, me apoiaram e motivaram no decorrer da pesquisa. RESUMO No início do século XVII surge um novo estilo de composição musical nomeado seconda prattica por suceder o estilo antigo, portanto, prima prattica. Ambos os estilos de composição se fundamentam sobre os princípios e regras de contraponto, mas o que os diferencia, é a questão do tratamento das dissonâncias. Portanto, a questão “dissonância” é o tema central desse trabalho, pois foram as dissonâncias consideradas proibidas nas obras de Claudio Monteverdi (1576-1643) que o motivaram a criar o termo seconda prattica, justificando assim a sua forma de compor, assim como de outros compositores de seu tempo, precursores da música barroca (1600-1750). Os exemplos que demonstram as possibilidades de novos usos de dissonâncias que caracterizam a seconda prattica foram extraídos dos tratados de contraponto de Vincenzo Galilei. E as regras essenciais para a composição no estilo prima prattica tem como referencial o teórico Gioseffo Zarlino. As regras e exemplos de ambos os estilos são apresentados para comparação, com o intuito de aproximar os pontos em comum e as principais diferenças entre as duas práticas de composição, principalmente no que diz respeito às dissonâncias. Palavras chave: prima prattica, seconda prattica, contraponto, Gioseffo Zarlino, Vincenzo Galilei, tratamento e preparação de dissonâncias. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 5 1.1OBJETIVO GERAL................................................................................................ 9 1.2 OBJETIVOS ESPECIFICOS................................................................................ 9 2 TEORIA E PRÁTICA MUSICAL NO INÍCIO DO SÉCULO XVII........................... 10 2.1 Prima prattica e seconda prattica....................................................................... 10 2.2 Gioseffo Zarlino................................................................................................... 11 2.3 Vincenzo Galilei.................................................................................................. 12 3 “A ARTE DO CONTRAPONTO” – REFERENCIAL PARA A PRIMA PRATTICA .................................................................................................................................. 13 3.1 Soggetto.............................................................................................................. 14 3.2 Modo................................................................................................................... 14 3.3 Tratamento de dissonâncias e instruções rítmicas............................................. 16 3.4 Notas suspensas (sincopas)............................................................................... 17 3.5 Cambiatta............................................................................................................ 18 4 O TRATADO DE VINCENZO GALILEI COMO CODIGO DA SECONDA PRATTICA................................................................................................................ 20 4.1 Expansão das possibilidades de uso das dissonâncias..................................... 20 4.2 Dissonâncias suspensas.................................................................................... 22 4.3 Acréscimo de segundas e sétimas..................................................................... 24 5 CONFRONTAÇÃO DE PRINCIPIOS, PRIMA PRATTICA X SECONDA PRATTICA............................................................................................................... 26 6 CONCLUSÃO....................................................................................................... 27 REFERENCIAS....................................................................................................... 28 5 1. INTRODUÇÃO Minha busca por respostas relacionadas com a teoria e pratica musical no início do século XVII teve início quando me deparei com um madrigal intitulado “Ecco, Silvio” de Claudio Monteverdi (1567-1643). Senti-me duplamente provocado pela obra em questão, primeiramente pela dificuldade de estabelecer um padrão tonal ao ouvir e cantar a peça, havia mudanças de alturas e “colorações” que me deixaram intrigado. Comecei a analisar, eis a segunda provocação, não consegui estabelecer uma lógica tonal, identifiquei acordes, graus, cadências, mas nada disso foi satisfatório para minha tentativa de compreender como Monteverdi estruturou aquele madrigal. Continuei com essa questão por um tempo, cheguei a esquecer dela por não encontrar possíveis explicações, até que em uma aula de história da música da renascença o professor fez a seguinte observação; apesar de muitas obras do fim do renascimento apresentarem formações cordais e outros traços que lembram o tonalismo, trata-se de um período pré-tonal, em que a música era pensada contrapontisticamente e estruturada sobre modos. As obras desse período não devem ser encaradas sob os mesmos parâmetros analíticos que utilizamos ao estudar a música de Mozart ou Beethoven. Com essas novas informações obtidas, encontrei um livro que parecia ir direto às minhas questões, “Monteverdi's Tonal Language” (CHAFE, 1992). Nesta leitura descobri que precisava compreender melhor alguns conceitos e ideias de teóricos, matemáticos e compositores do período de Monteverdi. Conceitos de modos, hexacordes, contraponto, prima prattica e seconda prattica. Foi com base na leitura inicial de Eric Chafe que elaborei o projeto do presente trabalho, por isso, no principio busquei conhecer o pensamento de inúmeros teóricos, compositores, sistemas filosóficos, matemáticos e por fim, descobrir como ocorreu a mudança do pensamento modal para o tonal. Absolutamente “sem noção” e sem foco é o que penso hoje, mais de um ano depois de iniciar as leituras e anotações para o trabalho. Ao iniciar os estudos, comecei pela questão dos modos (POWERS, 2001). Procurei as origens da teoria modal para ter um panorama histórico desde a idade 6 média. Logo percebi que a organização modal estava fundamentada sobre princípios matemáticos, filosóficos e questões de temperamento dos instrumentos, ou seja, muitas variáveis para se fazer alguma afirmação, ainda mais se levarmos em conta o tempo; mil, novecentos, trezentos anos. Mesmo considerando apenas o início do século XVII, não é possível afirmar a real importância da utilização dos modos numa composição musical. Havia convenções para o estabelecimento de um determinado modo na musica descrita nos tratados de Zarlino e obras de Palestrina, o modo era apresentado na voz do tenor e repetido na voz do soprano, o que indicava sobre qual modo a música foi composta. Essa forma de atribuir o modo da composição é bastante discutido, pois, além do tenor, outras vozes se desenvolvem independentes numa composição a várias vozes, ou seja, cada uma delas poderá apresentar um modo diferente, o que tornará o reconhecimento de um único modo para a peça difícil e muitas vezes ambíguo, tanto analiticamente como auditivamente. No início do artigo intitulado “Renaissance modal theory: theoretical, compositional, and editorial perspectives” (JUDD, 2008). Judd escreve que a palavra “modo” é uma das que apresenta maior riqueza de nuances e termos problemáticos no discurso renascentista sobre música. Um dos principais problemas de tentar analisar obras polifônicas sobre a ótica da teoria modal é que sem sempre é possível manter a prevalência de um só modo. Teóricos do século XVI já tratavam dessa questão em seus textos, um desses teóricos foi Pietro Aaron, que afirmava que todos os compositores celebres deixaram de trabalhar sobre modos, pois, já não era relevante para o equilíbrio das obras. De acordo com Judd, o habito de atribuir um modo à polifonia está ligado a antiga tradição monofônica. O próprio conceito de modo pode ser questionado por ter sofrido no decorrer da história, leituras e distorções diversas. Na leitura dos textos de Judd encontrei outro trabalho que poderia ser referencial para meu estudo, “Is mode real” (POWERS.H,1992) do qual procurei me apropriar do conteúdo, mas assim como na leitura de Eric Chafe, me faltou “bagagem” para acompanhar o raciocínio do autor e percebi que estava me afastando dos objetivos gerais do trabalho, estava correndo o risco de centralizar o assunto numa resposta que pode não existir: a real importância que os modos tinham para a composição. 7 Ainda com relação aos modos e questões que me isentei de apresentar no corpo do trabalho, estão as questões dos sistemas de oito, doze modos e suas nomenclaturas das quais encontrei referências, mas não houve tempo suficiente para desenvolver no trabalho. No que diz respeito ao contraponto, mais especificamente ao tratamento das dissonâncias, a principal referência para a teoria musical no século XVI foi Gioseffo Zarlino, portanto, será a fonte dos exemplos e regras da prima prattica -, o estilo prevalente durante o século XVI e início do XVII, sobre tudo na música sacra. Ao iniciar o desenvolvimento do trabalho tinha como intuito selecionar obras de Claudio Monteverdi para encontrar as diferenças existentes entre o contraponto usado em suas obras e o contraponto ensinado por Zarlino. Algo que logo percebi ser árduo e talvez pouco frutífero, pois, a ruptura de Monteverdi com a tradição não é tão radical como imaginava ao ler textos que falavam de debates acalorados sobre as divergências que surgiram com os usos de novas possibilidades de dissonâncias por alguns compositores modernos, considerados transgressores. Essas dissonâncias que eram estritamente proibidas foram utilizadas nos madrigais de Monteverdi, de forma homeopática, apenas em momentos que o texto pede reforço dramático. De maneira geral, Monteverdi não só respeita a maneira tradicional de escrever obras polifônicas como também compôs toda sua obra sacra seguindo estritamente o estilo prima prattica. Não encontrei formas de listar as possibilidades de dissonâncias que Monteverdi utilizava em suas composições e como faria as comparações com a prima prattica. O ideal seria haver um teórico equivalente a Zarlino, que tivesse escrito a respeito das regras do contraponto para a seconda prattica. Dessa forma, encontraria as informações organizadas com certa didática, o que tornaria o dialogo com Zarlino mais direto. Esse teórico foi encontrado em um texto de Palisca intitulado “Vincenzo Galilei’s counterpoint treatise, a code for the seconda prattica” (1956). De acordo com Palisca, em uma carta de Monteverdi escrita em 1633, Monteverdi declara sua intenção de escrever algo que preferia não chamar de 8 tratado, mas seria voltado para a questão do estilo moderno de composição. Monteverdi chamaria o trabalho de “Melodia, overo seconda prattica musicale”, mas o trabalho não foi realizado. Nesse texto, Palisca sugere que os tratados de Vincenzo Galilei sejam tomados como referenciais teóricos da seconda prattica, expõe as causas e razões pelas quais os escritos de Galilei podem ter sido negligenciados por tanto tempo e principalmente, destaca em exemplos as principais mudanças sugeridas por Galilei na ampliação de possibilidades no tratamento e resolução de dissonâncias. Para atingir o intuito desse trabalho e por fim, expor alguns aspectos da teoria e prática musical do início do século XVII, serão apresentados os conceitos de prima prattica, seconda prattica e alguns autores referenciais para esse assunto (Monteverdi, Zarlino, Artusi). Para ilustrar as questões essenciais que fundamentam e diferenciam as práticas composicionais do período em questão, serão apresentados exemplos, trechos de obras e comentários. 9 1.1 OBJETIVO GERAL Compreender quais foram as mudanças ocorridas na teoria e prática musical no início do século XVII, suas implicações e justificativas. 1.2 OBJETIVOS ESPECIFICOS Dentre as questões que serão estudadas e apresentadas no desenvolvimento do trabalho, destacam-se os seguintes objetivos: a. Adquirir uma maior compreensão a respeito da teoria musical renascentista. b. Compreender obras dos séculos XVI e XVII de acordo com o pensamento da época, incluindo a questão da modalidade, tratamento de dissonâncias, cadências polifônicas. c. Encontrar exemplos que ilustrem elementos característicos de cada estilo de composição prima prattica e seconda prattica. 10 2. TEORIA E PRÁTICA MUSICAL NO INÍCIO DO SÉCULO XVII No início do século XVII novas ideias musicais se consolidaram no que diz respeito ao desenvolvimento de uma linguagem musical que visava expressar maior intensidade e conteúdo emocional aos ouvintes. Essas ideias musicais consolidadas constituem o que é conhecido como o início do período barroco (1600-1750). De acordo com Grout; Palisca (2001), o período barroco apresenta duas praticas referentes aos estilos de composição musical da época, um estilo antigo e outro moderno, conhecidos também como prima prattica e seconda prattica. Essas distinções foram estabelecidas por Claudio Monteverdi (1567-1643) no prefácio de seu quinto livro de madrigais (1605). Por prima prattica entendia o estilo de polifonia vocal representado pelas obras de Willaert e codificado nos escritos teóricos de Zarlino; pela seconda prattica entendia o estilo dos modernos italianos, como Rore, Marenzio e Monteverdi (Grout; Palisca 2001). Monteverdi distinguia os estilos da seguinte maneira: na prima prattica a música domina o texto, enquanto na seconda prattica é o texto que determinava a forma da música. O estilo moderno consiste da expansão nas possibilidades e regras de composição para a expressão dos afetos do texto na música. O principal motivo de Monteverdi escrever esse prefácio foi rebater as criticas de G.M. Artusi (1540-1613) escrita anos antes em uma publicação intitulada “L’Artusi, ovvero, Delle imperfezioni della moderna musica” (1600). Neste tratado, o autor indicou o que considerava irregular na forma de compor dos compositores modernos, colocando em evidência o madrigal Cruda amarilli de Monteverdi como exemplo de imperfeição e negligência das regras para uma composição harmoniosa. A resposta de Monteverdi foi reapresentada de forma estendida e comentada por seu irmão, Giulio Cesare Monteverdi em 1607 ao fim do Scherzi Musicali , obra de Claudio Monteverdi. Na resposta escrita por Giulio Cesare, são justificadas as decisões composicionais de C. Monteverdi e citados nomes de compositores que são 11 representantes da prima e seconda prattica. Faz referência a Gioseffo Zarlino (15171590) como autoridade no que diz respeito às regras da prima prattica (STRUNK, 1965). Zarlino, portanto, será a fonte teórica utilizada nesse estudo no que diz respeito às regras do estilo de composição que Monteverdi atribuiu o nome de prima prattica, e como teórico representante da seconda prattica, Vincenzo Galilei (15201591). A decisão de utilizar os escritos de Vincenzo Galilei como referências parte da leitura do artigo de C.Palisca “Vincenzo Galilei’s Counterpoint Treatise: A Code for the Seconda Pratica” (1955) em que o autor apresenta pontos em comum entre os conceitos de seconda prattica apresentados por Claudio Monteverdi e as ideias expressas nos tratados de Vincenzo Galilei. Os tratados de Galilei abordam questões do contraponto e a maneira como as dissonâncias eram empregadas pelos compositores citados por Monteverdi, como os fundadores da seconda prattica. O intuito dessa aproximação dos teóricos e suas praticas é compreender os preceitos teóricos imprescindíveis para a composição musical em cada um dos estilos. Serão investigadas as diferenças composicionais existentes entre as “praticas” e os principais indicadores e características que definem uma obra como pertencente a prima prattica ou seconda prattica. 2.1 Gioseffo Zarlino Zarlino foi um dos principais teóricos musicais no século XVI. No seu livro Le istitutione harmoniche, é tomado como referência na historia da teoria musical. Ele integrou a teoria especulativa à teoria prática e estabeleceu os moldes composicionais de Adrian Willaert como modelo de escrita contrapontística (Palisca). Do principal escrito teórico de Zarlino, Le istitutione harmoniche (1558) a terceira parte é de especial interesse para o presente estudo, nessa parte serão apresentados os princípios para a composição polifônica. Apresenta os requisitos para a elaboração do que ele considerava uma boa composição, alguns desses requisitos serão apresentados em exemplos no decorrer da exposição. 12 2.2 Vincenzo Galilei Vincenzo Galilei alcançou amplo reconhecimento como alaúdista e teórico musical, foi reconhecido até mesmo pelo famoso reacionário G.M Artusi que em seu escrito Trattato apologético (1589), faz referência a Galilei com o seguinte titulo: “Signor Dottore Vincenzo Galilei nobile Fiorentino Mathematico, Musico Teorico, Pratico: Sonatore de Leuto et Mastro da Scola.” Embora Galilei nunca tenha utilizado o termo seconda prattica em seus escritos, apresentou os mesmos princípios citados por Claudio Monteverdi para justificar a maneira moderna de se compor, na qual as regras de contraponto se tornam menos rígidas para que os textos na música se tornem mais expressivos. Os escritos de Galilei sobre o contraponto foram negligenciados por muito tempo pelo posicionamento transgressor apresentado pelo autor ao tratar das regras de contraponto e questões da expressão da palavra na música. Uma das razões pela longa negligência que o tratado de Galilei sofreu, além do fato de os manuscritos não serem nenhum modelo de boa escrita, é que muitos estudiosos se recusavam a acreditar que aquele Galilei, o arqui-inimigo do contraponto pudesse de alguma forma ter contribuído com algo valoroso para a teoria desse assunto. (PALISCA,1956) O tratado de contraponto de Vincenzo Galilei é dividido em duas partes, Il primo libro della prattica del contrapunto intorno all’uso dele consonanze e Discorso intorno all’uso delle disonanze, com base nesses dois escritos Claude Palisca listou as principais colocações de Galilei para a expansão das possibilidades composicionais dentro da técnica do contraponto, esses exemplos serão apresentadas no capitulo que trata das contribuições de Galilei para a expansão das possibilidades do uso das dissonâncias. 13 3. “A ARTE DO CONTRAPONTO” – REFERENCIAL PARA A PRIMA PRATTICA. A “Arte do contraponto” como teoria da composição polifônica era para Zarlino o centro da música prática e ao mesmo tempo base da mais compreensiva reunião dos temas em teoria musical. Zarlino não apenas considerava em detalhes todos os aspectos tradicionais do contraponto, mas, também procurava definir requerimentos e regras adicionais para a composição polifônica (SACHS,2001). A arte do contraponto, nome dado à terceira parte do livro Istitutione Harmoniche de Zarlino trata da maneira de se compor a duas ou mais vozes utilizando a técnica do contraponto. Indica a existência de duas formas de contraponto, o contraponto simples que trabalha apenas com consonâncias e valores iguais entre as notas e o contraponto diminuto em que se trabalha com dissonâncias e variedade de divisões nos valores das notas. Ainda em um dos capítulos iniciais, Zarlino expõe o que considera mais importante para uma boa composição, trata da questão do soggetto, que para ele é indispensável para se iniciar uma composição. Cita a arte da poesia de Horácio para justificar a importância do soggetto e diz que assim como a poesia precisa de um tema, história ou conto como ponto de partida para ser adornado e agradar os ouvintes, o mesmo acontece com a música a partir do soggetto. Outra recomendação importante de Zarlino faz referência ao uso das consonâncias, que devem ser prevalentes numa composição, muitas dissonâncias também ocorrerão no processo de composição, mas, deverão ser tratadas de acordo com as regras de preparação e resolução. Zarlino também ressalta a importância da diversidade de movimentos melódicos e harmônicos entre as vozes para criar equilíbrio e escreve sobre a importância da escolha de um modo para a composição. Por último, trata da importância do texto na escolha do caráter da música, a música deve complementar o texto, se o texto for alegre, a música não poderá apresentar modos ou soggettos tristes. 14 3.1 Soggetto O soggetto para Zarlino era a base da composição, sem ele nada poderia ser criado. O soggetto pode consistir de um Cantus firmus, cantus figuratus ou partes imitativas. Para Harold Powers o soggetto representa um real desafio para o os compositores renascentistas, pois, não estava ligado apenas com a condução das vozes, mas sim na sua própria elaboração, variando- o ou combinando-o com outro material melódico. O soggetto não deve ser visto necessariamente como um simples sujeito melódico com ritmos iguais ou misturados, pode ser um duo ou no caso da técnica de paródia, a composição toda. 3.2 Modo Em Zarlino, o modo do tenor é o que determina o modo da composição e normalmente é compartilhado com o soprano numa peça a quatro vozes enquanto o alto e o baixo se desenvolvem no modo plagal ou vice versa. O modo geralmente é definido em termos de características melódicas, pelo ambitus, finalis, tom recitativo ou espécie característica. Mas considerando a analise de obras e textos do período que tratam da questão “modo”, o modo não deve ser visto de maneira tão simples. No artigo intitulado “Renaissance modal theory: theoretical, compositional, and editorial perspectives”, Cristle Collins Judd afirma que a palavra “modo” é uma das que apresenta maior riqueza de nuances e termos problemáticos no discurso renascentista sobre música. Um dos principais problemas de tentar analisar obras polifônicas sobre a ótica da teoria modal é que não é possível manter a prevalência de um só modo. Teóricos do século XVI já tratavam dessa questão em seus textos, um desses teóricos foi Pietro Aaron (1480- 1550) que afirmava que todos os músicos celebres deixaram de trabalhar sobre modos, pois, já não era relevante para o equilíbrio das obras. 15 Muitas referências dos séculos XV e XVI indicam que o modo deve ser expresso na voz do tenor. Mas, teóricos do mesmo período questionavam essa padronização e classificam como não validas. Atestam que não é possível atribuir um só modo a uma composição polifônica, pois, cada voz carrega uma estrutura melódica diferente. Ou seja, cada voz apresenta um modo. Judd apresenta ainda outras informações que sobre possíveis origens do costume de atribuir modos às composições, uma das origens desse hábito pode estar ligada a antiga tradição monofônica. O próprio conceito de modo pode ser questionado por ter sofrido, no decorrer da história, leituras e distorções diversas; para o músico de hoje é muitas vezes utilizado como um termo “guarda chuva” para toda música que não apresenta características claras da harmonia tonal (ou atonal). Há tantas nuances e diferentes posicionamentos no que diz respeito à utilização da teoria modal na música do período em questão, que mesmo atendo-se somente a esse tópico haveria dificuldades de cercar o assunto e apresentar informações mais detalhadas da real importância dos modos ou como classificar se tal composição é elaborada sobre modo “X” ou “Y”. Discorrer sobre esse assunto exigiria toda uma investigação dedicada apenas ao tema modo. Considerando as hipóteses de Judd, que justifica a atribuição de modos como mera formalidade herdada dos tempos da monofonia ou para fins comerciais no alto renascimento, a questão dos modos parece secundária para o período em questão. A partir de agora o foco será a questão de preparação e tratamento de dissonâncias, tema central de controvérsias entre teóricos e compositores do fim do século XVI e início do XVII, ponto de origem dos termos prima e seconda prattica. 16 3.3 Tratamento de dissonâncias e instruções rítmicas Para Zarlino a composição deve apresentar predominantemente consonâncias, as dissonâncias devem surgir com menor frequência e quando surgirem, devem ser preparadas e resolvidas de maneira que não interfiram na harmonia e equilíbrio da peça. Abaixo exemplos de como preparar e resolver dissonâncias. Toda a composição deve começar no battere (tempo forte); se uma das partes iniciar depois, deve ser ao menos após uma pausa de mínima (frequentemente se utiliza uma semibreve sincopada). Ex. Kyrie da Missa “Sanctificatus” - Palestrina. Nos tempos fortes do compasso haverá apenas consonâncias. As dissonâncias só podem surgir nos tempos fracos, devem ser atingidas por grau conjunto e deixadas também por grau conjunto, nunca por salto. Exemplos: • Exemplos copiados de: SACHS.K; DAUHLHAUS.Carl Counterpoint em The New Grove Dictionary of Music and Musicians pp560. Ed. SADIE. S. Oxford University Press,Oxford 2001. 17 A música não deve ter movimentos rápidos de início, devem ser adicionadas notas mais rápidas gradativamente. Semínimas devem apenas ser acrescentadas no levare (tempo fraco). Kyrie da missa Sanctificatus – Palestrina. Semínimas acrescentadas à composição no levare 3.4 Suspensões (sincopas). As notas sincopadas dissonantes deverão ser resolvidas obrigatoriamente por grau conjunto descendente: 18 As sincopas consonantes podem ser seguidas de salto para outra consonância: 3.5 Cambiata Outra maneira de tratamento de dissonância está na utilização da cambiata. O exemplo abaixo é a formula apresentada por G.M. Artusi em L’arte del contraponto, 1586 (SACHS,2001). É a descrição mais antiga dessa utilização. Essa formula normalmente é apresentada como parte da cadência e prepara uma suspensão. Trata-se de um conjunto de cinco notas consistindo de quatro semínimas descendentes em grau conjunto, a segunda e a terceira são dissonâncias seguidas de movimento ascendente. A terceira nota, uma dissonância irregular era chamada de cambiata. Exemplo de cambiata por G.M Artusi 19 As outras duas formulas de cambiata consistem de quatro notas, a cambiata dissonante e a consonante. Nos dois exemplos um salto de terça descendente é feito para a terceira nota das quatro e seguido por movimento ascendente por grau conjunto. O exemplo de Pietro Pontio consiste, na maioria das vezes, de quatro notas, uma semínima dissonante em tempo fraco saltando para uma terça descendente e em seguida uma segunda ascendente. A forma ascendente é rara, mas a descendente ocorre tanto na cambiata dissonante quanto consonante (a progressão normalmente é 8-7-5 e 6-5-3) pode aparecer estendida ritmicamente e metricamente deslocada, continua como resolução de suspensão. Fux, Jeppesen e outros chamaram a semínima que salta irregularmente de uma dissonância “cambiata”. Pietro Pontio (Ragionamento di musica, 1588) Exemplo de cambiata consonante (Zarlino) 20 4. OS TRATADOS DE VINCENZO GALILEI COMO REFERÊNCIAS DA SECONDA PRATTICA Sachs, 2001: “Primeira tentativa sistemática de conciliar a teoria do contraponto às recentes inovações nas técnicas composicionais atribuídas a Cipriano de Rore e proclamada por Monteverdi com o título de seconda prattica”. Essas inovações às quais Sachs se refere, são aquelas que possibilitam maiores liberdades no tratamento das dissonâncias, inovações que permitem que as dissonâncias sejam acrescentadas sem alguns dos procedimentos considerados obrigatórios na prima prattica. As dissonâncias deixam de serem usadas apenas como notas de passagem e passam a representar elementos importantes para a estrutura e expressão musical. Galilei enriqueceu as possibilidades de composição fazendo das dissonâncias elementos mais frequentes na textura polifônica. 4.1 Expansão das possibilidades de uso das dissonâncias Na regra geral, a nota dissonante equivalente ao tempo do pulso (mínima), a dissonância deve ser inserida no tempo fraco (levare) e nunca no tempo forte (battere). Mas para Galilei, quando se trata de notas de menor valor; semínimas, colcheias e semicolcheias, as consonâncias e dissonâncias podem se alternar sem levar em conta se ocorrerão em tempo forte ou tempo fraco. Com isso, Galilei rejeita o principio de que numa sequencia de quatro semínimas, a segunda e a quarta podem ser dissonantes enquanto as outras obrigatoriamente consonantes, C D C D (C= consonância e D= dissonância). Galilei apresenta outras possibilidades na alternância de consonâncias e dissonâncias, as mais recorrentes são: D C C D, C D D C, D C D C, e ocasionalmente outras formulas (PALISCA, 1956). 21 Exemplos: a) b) c) d) 22 e) 4.2 Dissonâncias suspensas. A seguinte contribuição de Galilei consiste no relaxamento das regras referentes à resolução de dissonâncias suspensas. Na forma tradicional de resolução, a nota dissonante suspensa é resolvida por grau conjunto descendente enquanto a outra voz permanece fixa. Para Galilei a nota dissonante suspensa pode ser resolvida por salto, assim como por grau conjunto ascendente; duas vozes podem ser suspensas simultaneamente sobre uma terceira voz e duas ou mais suspensões podem ocorrer simultaneamente em música para três ou mais vozes. a) Resolução de suspensão por salto para consonância. b) Movimento simultâneo em direção à resolução. 23 c) Resolução ascendente. d) e) Resolução em outra dissonância De acordo com Galilei, as dissonâncias de quarta aumentada e quinta diminuta poderiam ser tratadas como qualquer outra dissonância preparada, como notas de passagem e suspensões regulares ou irregulares. 24 Quando resolvidas em suas próprias consonâncias, esses intervalos de quarta aumentada e quinta diminuta poderiam ser adicionados normalmente como dissonâncias. a) b) 4.3 Acréscimo de segundas e sétimas por salto em tempo forte Galilei reconhece que esse tipo de dissonância pode agredir aos ouvidos mais sensíveis, ainda mais por se tratar de escrita a duas vozes. Numa escrita a três ou mais vozes apenas uma das vozes pode soar dissonante num determinado tempo. a) 25 b) c) 26 5. CONFRONTAÇÃO DE PRINCIPIOS: PRIMA PRATTICA X SECONDA PRATTICA. A prima prattica foi o estilo de composição musical prevalente na música culta europeia do século XVI, sobre tudo na musica litúrgica. A seconda prattica não representa uma total ruptura com o estilo antigo de composição, pois, a maior parte dos fundamentos da composição polifônica são mantidos. Portanto, a seconda prattica consiste da ampliação de possibilidades de uso de dissonâncias no contraponto, justificáveis pelo propósito de ressaltar os elementos expressivos do texto nas músicas. De maneira sintética, as principais diferenças entre as praticas estão listadas na tabela abaixo. Prima prattica Seconda prattica Em um conjunto de quatro semínimas duas além ocasionalmente três (C D C D), (C D D C), da possibilidade do uso da Suspensões podem ser dissonantes, (D C D C), (C D D D). cambiata. Em um conjunto de quatro semínimas duas podem ser dissonantes. (C D C D) (sincopas) dissonantes Suspensões podem ser resolvidas somente em grau resolvidas conjunto descendente. consonância, dissonantes por por salto grau podem para ser uma conjunto ascendente ou descendente e para outra dissonância. Progressões nunca podem ser feitas para uma nova dissonância. nova dissonância Dissonâncias só podem acontecer em tempo fraco ou Progressões podem ser feitas para uma com preparação sincopada seguida de resolução regular por grau conjunto descendente. Dissonâncias podem acontecer em tempo forte sem preparação sincopada se uma resolução regular vir em sequencia. 27 6. CONCLUSÃO O presente estudo teve como objetivo compreender a aspectos da teoria e prática musical do início do século XVII. A pesquisa desses aspectos apresentou questões e conceitos que se mostraram importantes para a compreensão do assunto, os principais pontos foram as duas práticas composicionais que existiram no período em questão, prima prattica e seconda prattica, que revelam ideais e propósitos diferentes para a composição musical e por consequência, apresentam escritas contrapontísticas com regras distintas. A seconda prattica não representa uma ruptura completa com a prima prattica, a maioria das regras de condução e equilíbrio das vozes é mantida, as maiores diferenças estão na questão de tratamento de preparo de dissonâncias, justificadas na seconda prattica como elementos de destaque para reforçar as ideias expressas nos textos cantados. 28 REFERÊNCIAS CARTER, Tim. “Monteverdi” The new grove dictionary of music and musicians. London: MacMillan, 2001. CHAFE, Eric. Monteverdi's Tonal Language. New York: Schirmer Books, 1992. GROUT, D. J & PALISCA, C. V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2001 JUDD, Cristle. “Renaissance modal theory: theoretical, compositional, and editorial perspectives” The Cambridge history of western music theory. 6.ed. Cambridge: Cambridge University Press,2008. PALISCA, Claude. “The Artusi-Monteverdi Controversy” The Monteverdi Companion. Ed. Denis Arnold e Nigel Fortune. PALISCA, Claude. “Baroque” The new grove dictionary of music and musicians. London: MacMillan, 2001. PALISCA. Claude. Galilei’s Counterpoint Treatise: A Code for the “Seconda Prattica”. Journal of the American Musicological Society, Vol.9,No. 2 (summer,1956), pp.81 -96. University of California Press on behalf of the American Musicological Society. PALISCA.Claude V. Theory, theorists em The New Grove Dictionary of Music and Musicians pp359-376 (25). Ed. SADIE. S. Oxford University Press,Oxford 2001. POWERS, Harold; WIERING, Frans. “Mode” The new grove dictionary of music and musicians. London: MacMillan, 2001. REMPP, Frieder. 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