Edio de Exposio Digital IFCS

Transcrição

Edio de Exposio Digital IFCS
TEATRO DISPERSO, PONTOS DE ENCONTRO: PEQUENA ETNOGRAFIA
DRAMÁTICA
Bernardo Curvelano Freire
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Sociologia (com
concentração em Antropologia).
Orientador: Marco Antônio Gonçalves
Rio de Janeiro
Abril de 2008
TEATRO DISPERSO, PONTOS DE ENCONTRO: PEQUENA ETNOGRAFIA
DRAMÁTICA
Bernardo Curvelano Freire
Marco Antônio Gonçalves
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre
em Sociologia (com concentração em Antropologia)
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Marco Antônio Gonçalves
_______________________________
Prof. Luiz Fernando Dias Duarte
_______________________________
Prof. Emerson Giumbelli
_______________________________
Profa. Dra. Elsje Lagrou (suplente)
_______________________________
Prof.. Dr. Amir Geiger (suplente)
Rio de Janeiro
Abril de 2008
2
Freire, Bernardo Curvelano
Teatro disperso, pontos de encontro: pequena etnografia dramática/Bernardo
Curvelano Freire. - Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2008.
xxi, 260f.: il.; 31 cm.
Orientador: Marco Antônio Gonçalves
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de
Pós-graduação em Sociologia e Antropologia, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 182-191.
1. Antropologia da Arte. 2. Teatro. 3. Etnografia do teatro. 4. Agência. 5. Encontro
6. Dispersão 7. Autoria. I.Gonçalves, Marco Antonio II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação de Sociologia e Antropologia. III.
Mestrado.
3
RESUMO
TEATRO DISPERSO, PONTOS DE ENCONTRO: PEQUENA ETNOGRAFIA
DRAMÁTICA
Bernardo Curvelano Freire
Orientador: Marco Antônio Gonçalves
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia)
Partindo do pressuposto teórico da dispersão dos índices de agência que articulam a
localização implícita dos encontros próprios da produção teatral profissional, a
presente dissertação tem como objetivo formular problemas da ordem da descrição
etnográfica de uma prática artística. Não partindo de conceitos estáveis sobre a
definição das práticas pesquisadas, o presente esforço se deteve em acompanhar a
especificação formal de diversas modalidades de encontro até que, seguindo as
mediações pertinentes, uma montagem de uma peça pudesse ser devidamente
registrada.
Palavras-chave: teatro, agência, noção de pessoa, dispersão, encontro, sincronia e
sintopia.
Rio de Janeiro
Abril de 2008
4
ABSTRACT
DISPERSED THEATRE AND ITS ENCOUNTER POINTS: A SMALL DRAMATIC
ETHNOGRAPHY
Bernardo Curvelano Freire
Orientador: Marco Antônio Gonçalves
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia , Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia)
Starting by the theoretical presupposition of the agency´s indexes dispersion that
articulates the implicit localization of encounters that are proper of professional
theatrical production, the present work has as a goal to formulate problems of
ethnographical description of an artistic practice. Refusing to accept any stable concept
about the definition of the researched practices, the present effort detained itself in the
observation of formal specifications of different modalities of encounter following
pertinent mediations until a play´s production could be properly registered.
Kew-words: theatre, agency, notion of person, dispersion, encounter, synchrony,
syntopy.
Rio de Janeiro
Abril de 2008
5
Índice__________________________________________________________
Índice__________________________________________________________0
_______________________________06
TAKE DE UMA INTRODUCCIÓN SIN HOLD ON!........................................
........................................09
.............................09
I. ENCONTRAR O TEATRO, ENCONTRAR COM O TEATRO; ENCONTRARENCONTRAR-SE:
O TEATRO..............................
TEATRO.....................................................................
.................................................................................
.............................................................................28
......................................28
1.1. O que procurar..............................................................................................
procurar..............................................................................................28
..............................28
1.2. Como procurar: excursão teórica..................................
teórica..................................................................
...............................................34
................................34
1.3. Como procurar: método................................................................................
método................................................................................40
...............................40
1.4. Os primeiros passos e algumas situações.....................................................
situações......................................................
................................46
.......................
................................
1.5. O sujeito da ação, problemas de agência .....................
................................53
..............................53
1.6 O primeiro encontro: coordenadas................................................................
coordenadas................................................................56
................................56
1.7. Obstáculo perspectivo.....................................................
perspectivo....................................................................................
..............................................................69
...............................69
1.8. O sujeito da ação: sobre a noção de papel.....................................................
papel.....................................................72
.................................72
1.9. Notas de história da fixação do teatro brasileiro...................................
brasileiro...........................................
..................................82
........82
atores.....................................................
.................................86
1.10. Personagem, autoria e pessoa dos atores....................
.................................86
1.11. Ator, autor, técnica de fazer...........................................
fazer.........................................................................
................................95
..............................95
INTERVALO: Preleção contra a personagem....................
personagem......................................................
onagem......................................................98
..................................98
II. CONVERGÊNCIA............................................................................................
CONVERGÊNCIA............................................................................................125
................................125
2.1. Teatro disperso e encontrado................................................
encontrado.........................................................................
...............................1
.........................125
III. O BÊBADO E O ILUMINISTA: ALGUNS MODOS DO OBJETO “EU”
..................................................................
..................................................................157
.............................157
3.1. Passado ascendente e alianças fortuitas.........................
fortuitas.........................................................
rtuitas.........................................................1
................................157
gambá............................................................
...............................1
3.2. A galhofa do gambá..........................................................
...............................160
.............................160
Diderot.......................
................................
3.3. Dignidade e humanismo: logo antes de Diderot............
................................1
.....................163
3.4. Homem microcosmo.......................................................................................
microcosmo........................................................................................
...............................165
3.5 O sistema lá, nós aqui, o mundo mais adiante...................
adiante................................................1
.................................171
.............................171
3.6. Verdade experimental
experimental e ficção........................................................................
ficção........................................................................1
................................184
3.7. A interdição do Teatro Laboratório....................................
Laboratório.................................................................1
..................................187
.............................187
3.8. Por fim..................................................................................
fim...............................................................................................................1
....................................................................194
.............................194
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................1
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................196
.............................196
6
Ilustrações:
Planta baixa da sala Heitor VillaVilla-Lobos.............
Lobos....................................
..................................................................
.....................................................52
..............................52
Teatro Heitor VillaLobos........................................................................................
..............................55
Villa-Lobos..........................................................
..............................55
Sala Rogério Cardoso..................................................................
Cardoso................................................................................................
................................67
..............................67
Filipeta distribuída digitalmente de O que nos resta é o silêncio..........................126
..........................126
Anexos........................................................................................
Anexos.......................................................................................................................
.......................................................................................................................206
...............................206
7
DER TAG DER GESICHTER
Morgen ist der Tag der Gesichter. Sie werden
sich erheben wie Staub
und in Gelächter ausbrechen.
Morgen ist der Tag der Gesichter, die in
die Kartoffelerde gefallen sind. Ich kann
nicht leugnen, daß ich
an diesem Sterben der Triebe schuldig bin.
Ich bin schuldig!
Morgen ist der Tag der Gesichter, die meine Qual
auf der Stirn tragen,
die mein Tagwerk besitzen.
Morgen ist der tag der Gesichter, die wie Fleisch
auf der Kirchhofsmauer tanzen
und mir die Hölle zeigen.
Warum muß ich die Hölle sehen? Gibt es keinen anderen Weg
Zu Gott?
Eine Stimme: Es gibt keinen anderen Weg! Und dieser Weg
führt über den Tag der Gesichter,
er führt durch die Hölle.
Thomas Bernhard
8
TAKE DE UNA INTRODUCCIÓN SIN “HOLD ON!”
Um camponês sabe-se-lá de onde, e é por isso que é uma fábula, tinha seus
filhos a sua volta no leito de morte. Este mesmo camponês, além de dedicado à
família, gastou o que tinha de pontas dos dedos para fazer a terra frutificar. No fim de
sua vida via o fim de si, dos dedos e dos frutos. Diante da comoção ao redor de sua
morte ainda não vinda, mas eminente, o velho revela aos filhos haver escondido um
tesouro em suas terras. Dito isso morre sem direito à apelação. Abraçados ao corpo
do pai e receosos com o futuro no mesmo abraço os rapazes munidos de pá e enxada
reviram a terra em buracos em uma busca que, por dias, não revelou qualquer arca,
peça ou documento que viesse à tona. Fez-se a herança do pai.
Sem ter idéia de como começar um texto voltado a tantas responsabilidades em
um tempo de maturação tão precário, o que é certamente um dos infernos de Thomas
Bernard, não me vi com qualquer alternativa senão assumir minha precariedade, esta tão
rigorosa em seu inverno quanto é vigoroso o esforço em revirar a terra. Sem querer
explicar uma fábula já remediada, a pequena narrativa tão posta assim, na abertura,
marca a presença de duas outras fontes, dois fundos de recursos, fundações as quais este
resultado um tanto malfadado tem o privilégio de reclamar herança: Georg Simmel e
Denis Diderot, ambos mestres do inacabado e que, em momentos diferentes deste
trabalho de escrita surgiram como verdadeiros problemas no horizonte de tudo o que
pretendia e que, de alguma forma, na lida com o terreno herdado, nada vi além de terra.
A herança disciplinar do que apresento é tão difusa quanto a que pôde ser
afirmada, numa mistura de investigações bibliográficas e incursões em pesquisas de
campo, assim como violentas discussões entre ramais diferentes de pensamento. Aqui
estão envolvidos amigos sexagenários, professores honrados, desafetos importantes,
contentores da filosofia, peladeiros esclarecidos e, como não poderia deixar de ser,
livreiros e atores, estas duas classes de oficiantes às quais pertenci e ainda pertenço,
mesmo que de forma ainda amadora demais. E, como na seleção de meus parceiros de
campo que me serviram de objeto – num sentido semiótico não-pejorativo -, apresento a
dissertação como work in process.
9
Certamente esse não é um pedido de desculpas. É assim, sem culpa, que me
entrego às palavras de Júlio Cortázar:
“(…)El disco definitivo incluye el mejor take de cada uno de los trozos, y los
otros se archivan y a veces se destruyen; cuando muere un gran jazzman las compañías
de discos se lanzan a imprimir los takes archivados de un Bud Powell o de un Eric
Dolphy. Ya en sí es una gran maravilla escuchar cuatro o cinco takes de un tema del
que sólo se tenía la versión definitiva (que no siempre es la mejor, pero aquí se abre un
problema diferente); más admirable todavía es asomarse, écouter en el sentido que los
franceses dicen voyeur, al laboratorio central del jazz y desde ahí comprender mejor
algunas cosas.
(…)Cuantos takes habrá del mundo? El editado, éste, no tiene por qué ser el
mejor; en su escala, la bomba atómica podría equivaler un día Hold on! Del Bird, al
gran silencio. ¿Pero quedarán otros takes aprovechables, después?
Diferencia entre “ensayo” y take. El ensayo va llevando paulatinamente a la
perfección, no cuenta como producto, es presente en función de futuro. Y el take la
creación incluye su propia crítica y por eso se interrumpe muchas veces para
recomenzar; la insuficiencia o el fracaso de un take vale como un ensayo para el
siguiente, pero el siguiente no es nunca el anterior en mejor, sino que es siempre otra
cosa si realmente bueno.” Julio Cortázar – Melancolia de las Maletas
*
*
*
A palavra ensaio é aqui razão de comoção. A cada vez que ensaiava seu uso
percebia que seu peso se multiplicava, podendo quase ser utilizada como contraponto de
uma alavanca que poderia mover o mundo sem que eu tivesse o peso necessário para
acioná-la. Isso só aumenta a frustração de sabê-lo. O mau acabamento deste trabalho,
fruto tanto de limitações do pesquisador quanto da pressa das instituições de pesquisa,
me obriga a evocar uma história recente em minha vida, e longeva o suficiente para
sugerir que o que redigi pode ser um ensaio. A longa passagem de Cortázar chama
atenção para um outro ensaio, o teatral. Eu evoco uma certa tradição que, com o passar
do tempo, veio a se chamar ensaística e que, por vezes, veio a ser acusada de inimizade
em relação à verdade e, por outras, apontou sua intimidade com a humanidade e suas
10
relações horizontais, isto é, da humanidade antropológica. Não dispensando o enorme
guarda-chuva que as figuras de Montaigne até Clifford Geertz poderiam me dar, o que
aparecerá aqui é justamente a confirmação de uma precariedade que, aí sim sem me
remeter aos mortos desde já inocentados, é responsabilidade minha.
Ensaiar aqui é a proposta de um teste de averiguação. Não é ainda um relatório
laboratorial conclusivo. Ensaiar pode significar que escrevi algo como Blurred Genres
em Local Knowledge ou Philosophie des Geldes e, na soltura que uma exposição
permite, a demonstração assume ares de uma parada conceitual em que os termos se
apresentam em sua rede, com pouca remissão a outra autoridade que não a relação
escrever-ler, ainda que sem abandonar a exigência da prova. Ensaiar pode ser
considerado igualmente um encontro sistemático entre atores que, na tentativa de ver “o
que é que há conosco”, culmine em novos encontros talvez mais conclusivos, nem
sempre quanto ao que há para fazer, mas também quanto ao que houve de ser feito, o
que é o objeto e tema desta dissertação. Músicos, vestibulandos e pais de primeira
viagem em cursos de preparação podem participar do termo. Ensaiar sobre os ensaios e
apontar relações entre si, das diversas formas de ensaiar: escrevendo, encenando ou,
num caso mais à forma de histórias que prezam a duração das relações, nos remetendo
aos tubos de ensaio quando pertinente.
Não me parece justo, exatamente pela falta de conclusões e pelo passeio
intensivo do qual a dissertação é fruto e alvo, apresentar qualquer fórmula sintética que
permita com que se diga numa frase o que foi feito nesse trabalho. Esconderia demais o
jogo ou cometeria uma forma injusta de soberba. Desde meses de leitura e escrita até
quase decepar a ponta de meu dedo indicador na desmontagem dos aparelhos de cena no
último dia da peça O que nos resta é o silêncio, cujos trabalhos de montagem me ocupo
em descrever aqui, detalhes demais exigem franjas que nem sempre pude justificar e há
uma multidão de afirmações que soam duvidosas mesmo que promissoras caso sejam
lidas com a alma generosa. Esta é uma etnografia da vida que pude assumir ao lado da
vida teatral e ponto. Suas bases objetivas e considerações seguem fundamentalmente
necessidades descritivas, objetivo maior desta dissertação que, além de tudo, espera ter
cumprido seu papel como elaboração de uma teoria, o relato de um representante
enviado à cidade vizinha na mesma República das Letras que, ao ir ver, volta e conta.
Mas que nenhuma das palavras acima sirva para camuflar qualquer deficiência mais
grave, decerto existente.
11
*
*
*
Pois bem. Faz-se a pesquisa de campo. Escreve-se uma etnografia.
Invariavelmente a comparação se dá, articulada como método. Se não no que diz
respeito a outras culturas, ao menos apontando diferentes graus de uma mesma
realidade: compara-se a disciplina do etnógrafo com o que apresenta uma pequena
região do mundo. É no balanço delicado das forças em questão que se apresenta a
dificuldade da proporção. A alteração de escalas, a definição de tópicos e a
articulação dos exemplos em casos narrados em termos de lugar e dimensão do
quadro disciplinar geral, todos são movimentos que geram desdobramentos, novas
conexões de campos de e para pesquisa que culminam num efeito multiplicador de
objetos:
“Então alguém pode se imaginar escolhendo dois ou três elementos de
práticas de iniciação para considerações teóricas, sabendo que para nenhum caso
específico veio a atingir o caráter natural do fenômeno inteiro. Outras perspectivas
permanecem. Esta é uma versão dos problemas há muito familiar à classificação das
espécies.” (Strathern, 1991:xvi)
Daí, alternar considerações econômicas com rituais ou com a generalização de
eventos-caso revela séries de perspectivas parciais. Se parcial, há a implicação
multiplicadora da objetividade, uma vez que há sempre uma comunicação/conexão
inédita e inaudita, ou mesmo maldita. Algumas conseqüências podem aparecer deste
estado de coisas parciais, três delas em destaque:
1- Das conexões entre entidades a partir de novas configurações entre domínio e
pesquisa.
2- Das novas magnitudes das entidades (ou entes) considerados, revelando novos
detalhes, ampliando o escopo dos entes considerados.
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3- Da possibilidade de convergir diferentes escalas em um mesmo tempo de
abordagem de forma a:
“(...) mover das ações individuais para o rito, ou da comparação de muitos
rituais para a exemplificação dos elementos que têm em comum, ou das instituições
individuais para a configuração que deveras faz as relações entre fenômenos
parecerem “complexas”. Complexidade é culturalmente indicada no ordenamento ou
composição dos elementos que podem também ser apreendidos a partir da
perspectiva dos outros.” (id.ibid.:xv)
Ao acionar a figura das proporções relativas, é importante perseguir o
desenho, efetivamente cartográfico, da elaboração do problema da multiplicação de
entes e da perda de informação que gera parcialidade e institui a perspectiva como
singularidade da singularização. Assim, num infinito relativo de conceitos que
operam generalizações, os mesmos se designam como fronteiras geolingüísticas que
dispõe as distâncias em termos de proximidade. Mas qual é a parte do afastamento
que a proximidade evoca? Ora, lidar com o teatro implica em por em aliança o que
custa muito para manter-se separado. Não obstante a história recente do teatro no
meio universitário ter elaborado uma antropologia teatral com o apoio integral de
Victor Turner, cujo livro From ritual to theatre (1982) consta na série de publicações
sobre artes performáticas da Johns Hopkins University, as ressonâncias se ampliam
quando se percebem as semelhanças dramáticas entre Sandombu da vila Ndembu
(Turner,1996 cap. X) e Shylock de O mercador de Veneza, de autoria de William
Shakespeare. Na mirada do suporte mútuo que as disciplinas se oferecem, e o fazem
em parte ao distinguirem-se, a estratégia tomada tem como fundamento a pouca
precisão de seus primeiros passos. Trocando em miúdos, se me perguntassem o que é
isto, o teatro, diria que não sei. Mas sei chegar num ou noutro.
Visando suportar a decisão de lidar com objetos parciais e suas conexões,
mesmo não me atendo a uma pesquisa ortodoxamente semiótica, a definição de
13
Charles Sanders Peirce me parece fornecer a abrangência e a maleabilidade
necessárias para este começo nebuloso:
“Os Objetos – pois um signo pode ter qualquer número deles – podem ser
uma coisa singular existente e conhecida ou coisa que se acredita ter anteriormente
existido ou coisa que se espera venha a existir ou uma coleção dessas coisas ou uma
qualidade ou relação ou fato conhecido cujo Objeto singular pode ser uma coleção ou
conjunto de partes ou pode revestir algum outro modo de ser, tal como algum ato
permitido, cujo ser não impede sua negação seja igualmente verdadeira ou algo de
natureza geral, desejado, exigido ou invariavelmente encontrado sob circunstâncias
comuns.” (Peirce, 1972, 97)
Assim, teatro pode ter existido ou existir atualmente; pode ser objeto de
crença ou uma coleção de fatos, um conjunto de partes de teatro, não importa. A
evidente frouxidão desta definição tem como lastro a tríade que opera por
sobredeterminação, cujos termos são signo-objeto-interpretante, fazendo valer à
definição do objeto a situação da tríade em todo momento. Resguardando menor
rigor na aplicação e no prosseguimento do sistema lógico de Peirce, o que deixo claro
é que esta dissertação escolhe uma palavra como objeto, sabendo que a mesma é
inscrita ao trafegar em sucessivas formas relacionais, modificando-se a cada
atualização entre objeto-signo-interpretante. Esta abertura tem como pressuposto
não me dispor ao exercício totalitário de querer esgotar as séries infinitas do real, tão
caras a Georg Simmel (1987:109), cujo fundamento é o flerte com as situações
inacabadas específicas do balanço entre o virtual e o atual:
“(...) nascendo assim da total reciprocidade em virtude da qual cada segmento
deste ciclo determina o lugar de todo um outro – à diferença dessas linhas que se
voltam sobre elas mesmas, de onde cada ponto não se submete à mesma
determinação interativa de todos os pontos-de-vista imanentes.”
14
*
*
*
Se esta é uma pesquisa sobre o teatro no Rio de Janeiro, isto é, sobre algumas
das formas que o teatro (tradição) assume para viver, para manter-se ativo ou em
agência, é uma etnografia sobre algumas atualizações que o teatro sofreu durante a
pesquisa de campo (em andamento) nos anos de 2006-2007. Contudo não se trata de um
trabalho sobre o teatro carioca, dado que apresentações e publicações de outras zonas
administrativas, como as de Campinas, São Paulo e Oslo (Noruega) também são
referências, mesmo que implícitas. Além do que, é muito difícil cerrar as portas de um
município, mesmo com as proporções da cidade do Rio de Janeiro, devido ao fato de
políticas de financiamento, relações de mercado (editorial, em especial) e a
administração de cursos universitários de teatro caírem em espectros mais diversos de
relação e poder. Fora neste emaranhado que vim a me envolver ao pesquisar o teatro
que, de uma forma ou de outra, pôde acontecer na cidade do Rio de Janeiro, o qual vim
a me encontrar por um ou outro meio de forma dele participar, o que apresentado em
um só parágrafo soa como uma grande confusão. Certamente não há como lidar
diretamente ou mencionar tudo o que vim saber ser um evento teatral neste período. O
objetivo maior é o de apontar algumas práticas e experiências que constituem a vida
teatral e quais são alguns de seus desdobramentos sobre como saber o teatro e como isto
pode ser pensado por via de uma ou outra matriz disciplinar das ciências sociais.
Dispondo-me a pensar o teatro segundo a convivência estabelecida, talvez valha
à pena fazê-lo a partir de um detalhe que, de uma só vez, apresenta alguns agentes
teatrais importantes assim como algumas das formas pelas quais a tradição que aponta
para a persistência do teatro se mantém. O teatro possui seus próprios intelectuais,
especialistas geradores de discurso, teses dirigidas e diretoras de diversas formas
teatrais, seus cânones. Enfim, é uma tradição que ao mesmo tempo em que respeita
nacionalidades impõe às nações suas formas próprias de vigência; que se presta a
atividades culturais da mesma forma que exige disciplina das mesmas; que expressa
valores sociais desde que a sociedade se faça no teatro ao acontecer. Descrever qualquer
período de aprendizado significa sujeição a alguns dos termos dessa tradição.
Em meio a esta situação só duas alternativas parecem compactuar com alguma
honestidade nesta pesquisa. A primeira é a resignação. Ela pode ocorrer por via da
desistência, uma vez que, nos termos postos pelos teatrólogos, pouco ou nada teria a
15
oferecer. Assim, encarar os desdobramentos do método de Stanilawski, ponderar sobre a
tensão entre o Teatro Oficina e o Teatro de Arena na São Paulo dos anos 60, decidir
entre o teatro de rua e a estrutura de palco italiano ou falar sobre a pregnância da poética
aristotélica e o desafio brechtiano, etc.; todos são tópicos desenvolvidos por
especialistas e seria desonesto encará-los sem a devida deferência e sem a competência
exigida. Após algumas conversas em situações diversas, não sei bem o que é um
especialista em teatro. Alguns são responsáveis por sucessivos atentados aos estatutos
da arte em questão, outros são seus defensores ardorosos e eu mesmo corro o risco de
me transformar em um. Ao mesmo tempo é difícil saber quem está fazendo teatro, dado
que a estabilidade deste apontamento é igualmente vacilante. Algumas apresentações
são em teatros, com atores e peça, mas ouvi dizerem que “isto não é teatro”, o que vez
por outra sugere a emergência do estatuto da performance ou de uma outra prática de
apresentação que ignoro. Ainda como precaução, é preciso também diferenciar o teatro
quando se põe como adjetivo e como substantivo, dado que há eventos que são teatrais
sem serem propriamente o teatro que me vi pesquisando1.
É importante dizer que até mesmo uma antropologia teatral (e não uma
antropologia do teatro) vem se desenvolvendo nos últimos vinte anos (vide Barba &
Savarese, 1984; Pavis 1990), cuja pesquisa e performance em teatro vêm caminhando
em comunhão (Jackson, 2004), o que exigiria de mim algo mais do que a redação de
uma dissertação. A esta altura eu deveria estar às voltas com os ensaios que culminam
na estréia de meus resultados de pesquisa2.
Uma segunda alternativa, mais sintonizada com os objetivos de um pesquisador
prestes a recorrer a uma etnografia, é a de ir até aqueles que fazem teatro, que produzem
peças e perguntar como fazem o que fazem, o que fazem e como sabem o que fazem (e
vice-versa) constituindo uma abordagem dos processos formativos de uma atividade
teatral de teor fundamentalmente tecnológico, que é tanto o ato de apontar às práticas de
cultura em seus objetos de atividade produtiva quanto uma disciplina que põe em relevo
estes afazeres e seu sentido, digamos, mais astuto. Mas em qual medida os próprios
especialistas em teatro já não o fazem? E o fazem com qual medida?
1
Exemplos deste problema são explorados em Burns (1972) e em Williams (1969).
2
Sem pretender apontar uma bibliografia extensiva da relação entre titulação universitária e constituição
de um acervo performático pro espetáculo, vale à pena apontar o percurso das publicações do grupo
LUME, de base no Departamento de Artes Cênicas da Unicamp que em diferentes momentos de suas
atividades aliaram à formação de repertório todo um programa de pesquisas; vide Burnier (2001),
Ferracini (2001, 2006, org. 2006), Colla (2006), Hirson (2006).
16
Não bastando citar casos como os de Stanislawski, Boal ou Goethe, que são
autores que versam sobre os afazeres teatrais, é importante ter em vista a profusão de
pesquisas sobre elementos como linguagem cênica3, sistemas de ensaio4 e variações
modais do ofício, do ensino e da produção dos atores5. O que pareceria, em um primeiro
momento, ser um excesso de tráfego ou uma agremiação intimidante, me parece na
verdade a profusão de interlocutores, de informantes mesmo. São guias no processo de
aprendizagem que indicam pontos importantes acerca de como dar forma ao presente
trabalho, em especial no que tange o que difere o teatro das demais atividades
profissionais que, dado seu número incontável, exige a precaução de me remeter sobre
um de cada vez. São todos um pouco Beatriz.
Não fui suficientemente incisivo quanto a este ponto. As dificuldades que aponto
no desenvolvimento de uma etnografia do teatro não são exclusivas do campo de forças
no qual me envolvi. Parece-me mais ser uma especificação de problemas gerais, formas
de produção que deve, em qualquer modelo desenvolvido, apresentar com cautela as
formas e as produções que compõem o que é concreto em sua atividade mais rotineira
assim como na mais espetacular. Esta generalidade é um pouco aquela que permite que
se possa adentrar nos problemas do teatro a partir das condições da vida em geral e,
inversamente, absorver a vida em geral tal como é modelada à partir da influência do
teatro. Esta que é a corruptela de uma passagem da Filosofia do dinheiro de Simmel
(2002:15) deixa claro um pouco da orientação geral deste trabalho, mesmo que não
absorva inteiramente algumas das suas implicações, em especial no que tange às
essências objetivas dos fenômenos, problema ao qual me reservo o direito do silêncio
respeitoso. Mas nem por isso poderia me furtar de enfrentar alguns dos pontos nodais
deste ensaio exemplar, em especial sobre a configuração das formas de liberdade e
3
Vide Jean-Jacques Roubine, (1998); José Teixeira Coelho Netto, (1980); Gilles Girard e Réal Ouellet,
(1980).
4
Shomit Mitter, (1992) apresenta um manual sintético pouco profundo, mas se define pela gramática
obrigatória do teatro de pesquisa, com remissão aos diretores (encenadores) Stanislawski, Brecht,
Grotowski e Brook. Barba & Savarese (1990), Burnier (2001) por sua vez sugerem um sistema de
treinamento próprio e a partir da herança marcada pelas figuras presentes no livro de Mitter. O sistema de
ascendência que possa ligar os programas de Stanislawski e Burnier, por exemplo, dependem de
mediações diversas e não participam simplesmente de um ofício de leitura e comentário, dado que é
necessário encenar, encenação esta que remeta ao horizonte formal da herança dos encenadores
considerados maiores, os ombros a subir. De qualquer forma, qualquer lista está longe de ser exaustiva.
5
No caso, ator como compositor em Matteo Bonfitto (2002) ou o ator como xamã de Gilberto Icle, (2006)
dispondo ao ator ser algo como se fosse outra coisa, de forma igualmente disjuntiva>conjuntiva.
17
alguns dos sentidos objetivos da produção criativa e da dinâmica dos valores de troca
que, mesmo não sendo meu objeto de pesquisa, sugerem implicações quanto à aplicação
em requisitos formais de produção definidoras de termos de relação e horizontes de
relação que implicam formas de subjetividade nas formas de objetividade e vice-versa.
Uma vez que me preocupo em acompanhar a manifestação precisa de
agenciamentos, o que pode ser apontado como sujeito da ação assume papel central,
especialmente na concretização da complexa rede de imperativos entre vontade e
determinação que fazem das artes modernas um de seus campos de operação
fundamentais, especialmente em formas pragmáticas em que a determinação aparece
como vontade inabalável ou quando a vontade irrompe determinada em formas de
acusação de alienação.
Este jogo entre vontade e determinação encaminha o problema para a correlação
entre estados de arte e liberdade que, dado certo horizonte agonístico, não devem ser
tomados como uma frente de luta qualquer, pois como se pode discutir quanto a alguns
dilemas da cidadania, assim como é necessário apontar para cidadãos de segunda classe
(ou daqueles cuja vida não merece ser vivida6), é possível formular enunciados partindo
de noções de desenvolvimento e progresso que apontem para os cidadãos de ponta,
partindo do território no qual as artes se alinham com as técnicas e se tornam ambas
formas de vanguarda, seu nome de guerra. Isso me leva a coisa mais sintomática. Levame a perguntar, diante o universo das coisas que se faz enquanto se é moderno qual é a
diferença, isto é, o que uma disciplina artística produz?
Nos anos de ditadura no Brasil, isto é, a partir de 1964, ano do golpe militar,
vários grupos teatrais praticaram o que o Estado maior acusava ser subversão e que, no
ponto de vista de muitos de seus agentes, não era outra coisa senão vanguarda. O Show
Opinião, o Teatro Oficina, o Teatro de Arena e os CPC’s da UNE7 são somente os
exemplos mais famosos. No que consta esta subversão e em que termos ela é perigosa –
de que forma específica ela difere e desafia poderes? Grosso modo, o subversivo está
em espetáculos apresentados que veiculam palavras, frases e estados de pessoas
censurados pelo regime dado que desafiariam algumas disposições então vigentes no
Estado de direito. Desde a interrupção da periodicidade da escolha do governante por
via do sufrágio universal até o desafio aos bons costumes dos agentes de censura, a
6
vide Agamben, 2007:143-150
7
Sigla para Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes.
18
evocação das liberdades civis e dos direitos humanos se encadeia em séries objetivas de
expressão (Michalski, 1979:34-42,). Conta-se assim apresentações como Arena conta
Zumbi, que narrava histórias de resistência a formas de opressão que tanto dão forma à
trajetória dos quilombos; o teatro Oficina e o esforço imoral do dionisíaco e do teatro da
crueldade artaudiano; a montagem de Roda-Viva; todas situações que ameaçavam seus
integrantes, então sob a mira violenta da polícia política, que os acusava de serem
igualmente uma ameaça. Não exatamente pelo que eram, mas pelo que faziam, o que
não impede qualquer classificação. Afinal, há de se ter uma evidência, mesmo que
forjada, da subversão praticada.
Num primeiro momento o que chama a atenção são questões relativas à arte e
liberdade, temas concernentes à cultura popular, ao teatro épico, aos aparelhos de
repressão e ideologia do Estado, e cada um destes temas geraria questões próprias de
seu campo problemático. Neste trabalho, contudo, o que me conduz é outra mirada na
atividade subversiva8 de certo teatro que me faz perguntar por que não prender
personagens ao invés de deter os atores, que em si não são um problema político9?
Vale lembrar que o teatro como atividade não fora proibido. Arriscando uma resposta
possível, poderia dizer que personagens – os papéis – não podem ser presas por que não
existem. São de ficção. Mas então, por que proibir o que não existe? Como seria
possível fazê-lo? Disposta numa indefinição desagradável, em muito semelhante ao
paradoxo sobre as crenças descrito por Latour (2002)10 que vacila entre a existência
material e a forma simbólica como campos disjuntos que articula um como
epifenômeno do outro, a ficção enquanto problema de existência vige como aporia.
8
Que, vale notar, não é nada óbvia e se uso a palavra assim, de passagem, é por questões de espaço e
economia. O controle de atividades consideradas imaginárias tem longo percurso e vem sendo
investigado por uma quantidade grande de pesquisas, dentre as quais destacam-se as de Luiz Costa Lima
(1996, 1998, 2000) e Wolfgang Iser (1996). Por outra linha, mais cronológica, os trabalhos que visam
abordar o teatro como desafio à ordem política tem igual valor na configuração deste problema (Garcia,
1997; Poggioli, 1996)
9
O que não significa que o teatro subversivo será aqui objeto de trabalho. Não será. Mas sua
periculosidade histórica apresenta um problema, que é tanto ontológico, lógico quanto epistemológico
(Cândido, 1976) acerca da existência e das possibilidades de seres ficcionais, cujo estatuto é vacilante,
mas não menos real do que outros seres. A atividade de censura a estes seres aponta ao mesmo tempo
para sua existência e para seu estatuto fortemente diferenciado.
10
“Quando denunciam a crença ingênua dos atores nos fetiches, os modernos se servem da ação humana
livre, centrada no sujeito. Mas quando denunciam a crença ingênua dos atores na sua própria liberdade
subjetiva, os pensadores críticos se servem dos objetos tal como são conhecidos pelas ciências objetivas
que eles estabeleceram e nas quais confiam plenamente. Eles alternam então, os objetos-encantados e os
objetos-feitos, a fim de tornarem a se mostrar duplamente superiores aos ingênuos comuns.”(op.cit.:32).
19
Parece-me que o que se deve perguntar em contraponto a este impasse é: como é um
papel-personagem-de-ficção? Como é possível diferenciá-lo de um papel real? Um
papel de teatro é um ser humano11? Qual é a diferença entre censurar e prender? E então
se faz requerida uma descrição de uma cosmologia e dos seres então constituintes, e
para sua cosmografia me faço valer de todos os elementos que se num primeiro
momento me seriam um empecilho devido à pretensa humildade do pesquisador,
passam a ser elementos constituintes do cosmos e dos processos do teatro investigado,
mesmo que seja uma agenda, um endereço ou um mapa, uma vez que cumprem seu
papel na dinâmica dos encontros em ensejo teatral. O valor dado a elementos dotados de
obviedade, como os que efetivam encontros, no final das contas, não é gratuito, dada
sua condição imprescindível na operação das variantes implicadas que por fim
respondem a algumas preocupações específicas deste trabalho.
Mas antes de seguirmos estas linhas determinantes da coordenação de agências,
que é o nome do problema que levanto, vale chamar a atenção para um outro tópico, que
é o da elaboração de papéis sociais. Na tradição do pensamento sociológico esta
discussão parece ter ao menos dois pressupostos importantes: o da divisão social do
trabalho e o da ação social como fenômeno particularmente significativo12, ambos com
implicações para o estudo do teatro em geral, dado que abordo papéis de atores.
Contudo, quando aplicados ao teatro estes conceitos perdem parte de seu poder positivo
11
“Le personnage de la pièce, tel qu´il est dans le texte, n´est pas un être humain complet, pourrait-ont
dire, ce n´est pas um être humain comme le perçoivent nos sens – c´est l´ensemble complexe que la
littérature peut saisir d´un être humain. (...) Toutefois il a déposé le destin, l´apparence physique, l´âme
de ce personage dans le cours seulement unidimensionnel de ce qui ne relève que de l´esprit.” (Simmel,
2001). Ora, apontar para um fenômeno empírico unidimensional, sem tocar no tema da alienação – nossa
visão conta com uma elaboração tridimensinal, informa a ótica -, deve nos chamar a atenção para algumas
qualidades e desdobramentos da escrita como nexo de uma série de atividades. Vale notar que da escrita
se desdobram considerações sobre inscrição e outras formas de sentido que operam em silêncio, ou seja,
sem a presença de uma pessoa falante e dos encontros que a requisitam, como abordo mais adiante. Mas
a figuração do unidimensional já aponta para impossibilidade de prendê-lo. A prisão, de alguma forma, é
somente para tridimensionais encontráveis.
12
Vide Simmel in La differéntiation sociale; Durkheim in A divisão do trabalho social; Morgan in A
sociedade primitiva, Merton in Sociologia: teoria e estrutura , sobre a formulação da objetividade dos
papéis e sua relevância funcional, assim como variações quanto ao uso de noções de estrutura e função;
vide Weber in Economia y sociedad, Schutz in Fenomenologia e relações sociais; Becker in Uma teoria
da ação coletiva, Simmel in Philosophie de l’argent, Parsons in The structure of social action para a
abordagem da organização e orientação da sociedade pelo ponto de vista da ação. Este esquema não é
preciso e tampouco a citação dos autores indica uma cisão real, vide pelo fato de Simmel estar presente
em ambas as listas, assim como alguns autores citados somente em uma lista dialogam intensamente com
os que se dedicam a um outro foco. Contudo esta divisão remete a uma outra, mais recente, que põe sob
foco a diferença entre abordagens de caráter estrutural e outras propriamente voltadas à práxis ou à
pragmática. Não me parece necessário apontar para a interpenetração entre os esquemas, assim como para
meu desacordo com qualquer formulação que defina formas puras e impuras.
20
de referência e diferenciação, dado que são próprios de boa parte da realidade práticovocabular teatral, enquanto que na sociologia os papéis normalmente são remetidos a
questões de morfologia social e os atores sociais são considerados segundo sua relativa
racionalidade de escolha e conduta caracterizando as duas questões como diferentes
domínios da vida social. Mas a aplicação do conceito de papel social, assim como o
campo semântico que o envolve, que pode ser exemplificado pela noção de ação,
apresenta algo que merece atenção. Se há muito que dizer sociologicamente acerca dos
papéis, é aí que a metáfora teatral abunda. O campo teatral apresenta suas variações
acerca do tema, diferindo sobremaneira na forma de lidar com o que é um papel e como
desempenhá-lo. A diferença no trato, junto a outras diferenças, está em questão na
pesquisa e na pessoa realizadas.
Neste entrecruzamento de muitas mãos que não põe em questão somente dois
pólos, mas a evolução de um mundo, não cabe aqui apontar um começo de maior
positividade, como se fosse possível por via de um acervo metodológico pôr fim a
indefinição que gera o campo de metáforas teatrais presente na sociologia ou na
etnologia. A bem da verdade, na já referida multiplicação dos teatros possíveis, este
trabalho é mais uma contribuição do gênero. Isso não significa que será uma
contribuição caótica. Ela se dá segundo o problema das práticas de censura que, numa
lógica de policiamento, perseguição e caça (não confundir com predação), precisa ter
métodos (Méthôdos, caminhos) para encontrar sua presa e levar a termo sua busca,
fazendo o possível para não confundir dois Ferreiras Gullar: um deles, usuário de um
pseudônimo. Um quase nome. Um nome artístico. Um nome falso. Acabou que a
polícia política prendeu o “Ferreira Gullar” verdadeiro, justamente aquele a quem não
caçavam13.
*
*
*
13
Se levarmos a sério os problemas cosmológicos relativos aos nomes próprios em etnologia, que vão
desde os fundamentos de especificação e individuação de um operador totêmico (Lévi-Strauss, 1998) até
os problemas de ambigüidade-limite de um sistema taxonômico específico (Gonçalves, 1993), como lidar
com as variações de um “nome falso”: pseudônimo, nome artístico e, no caso de uma situação limite, o
evento falsidade ideológica? Embora a presente dissertação se dedique a algumas formas de encontrar
ostensões que possam se encaixar aos nomes falsos, e não aos nomes falsos propriamente ditos, a
remissão é importante dado o fundo problemático da ordem da classificação de identidades verdadeiras e
o regime de controle de corpos que ele implica.
21
Com o que se parece um Ferreira Gullar? O que é um Ferreira Gullar?
Assumo que se tratam de questões de tipo non-sense, uma vez que indica que há pelo
menos dois entes aos quais se aplica o mesmo nome e, no entanto, Ferreira Gullar
não é uma espécie e tampouco uma classe de seres, mas um nome próprio. Não é
assim que se pergunta por ele. Numa situação imperativa do tipo “encontre e me
traga Ferreira Gullar” num contexto urbano de multidão (Rio de Janeiro), o nome
próprio, assim sozinho, torna-se uma mediação insuficiente, especialmente no caso
de uma pessoa vir a se esconder com um nome falso. É quando a coisa fica
interessante de verdade.
Em 1970 foi expedido um mandato de prisão para Ferreira Gullar, o poeta,
devido suas atividades consideradas como subversivas. No mandato constam um
endereço e possivelmente as acusações, na suposição que, de fato, essas premissas
burocráticas tenham sido levadas em conta. Os policiais não portavam nenhuma foto
do subversivo. Batem à porta e perguntam, se é que perguntaram: “Ferreira Gullar?”;
“Sim.”; “Está preso por violar as determinações do Ato Institucional número 05”.
Pedissem antes para Ferreira Gullar discutir os conceitos de vanguarda e
subdesenvolvimento ou que elucidasse alguma passagem de A luta corporal; ou se
simplesmente portassem uma fotografia sua, é certo que descobririam que estavam
diante do Ferreira Gullar errado. Aquele que fora preso era o verdadeiro. O falso
Ferreira Gullar, o de fato subversivo, também se chama José Ribamar Ferreira, nome
oficioso e não de ofício, e se encontrava em outro endereço. O infortúnio da missão
policial lhe permitiu a fuga que, de outra forma, seria impossível.
O jogo dos nomes falsos, pseudônimo e heterônimo incluídos, é fonte de
extensos embaraços e histórias formidáveis, e implica na enorme dificuldade da
identificação dos seres humanos pela nomeação, pois como empreender uma
taxinomia rigorosa dos próprios taxinomistas, estes sujeitos que criam novos nomes
para si e os distribuem por aí? Afinal, fora José Ribamar que escolhera ser Ferreira
Gullar. É o que diz a lenda. Como já disse, há pelo menos dois Ferreiras Gullar, um
deles inventado. Um deles porta um nome fictício.
22
Mas a história não pára por aqui. O tempo pelo qual Ferreira Gullar fora preso
permitiu a Ferreira Gullar fugir para o exílio onde, no ofício de poeta e escritor de
artigos por correspondência para o falecido Pasquim, apresenta-se por escrito como
Frederico Marques – nome este mais propício à hermenêutica, só por provocação aos
iniciados em comunismo aplicado. Independente de seu estatuto de exilado, o então
Frederico Marques poderia seguir em novos nomes que levassem ao mesmo sujeito
não fosse quase impossível rastrear uma pessoa somente por seu nome.
Especialmente diante a massa de nomes nas grandes cidades. Poderia assinar novos
escritos também como Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos. Estes, então
nomes de autor, poderiam escrever belos artigos em defesa de Ferreira Gullar
(qualquer um dos dois), repetindo a manobra utilizada pelo filósofo escocês David
Hume no século XVIII, ou de Garcilaso de la Vega, el Inca, no século XVI.
Não obstante o engano cometido pelo DOPS – Departamento de Ordem
Política e Social - é importante pinçar alguns detalhes que permitem que se aborde as
mediações que dão forma às inferências acerca da identidade de uma pessoa. Basta
recorrermos ao Registro Geral que portamos em nossas bolsas e carteiras para
observarmos o cruzamento de referências de impressão: tipográfica, fotográfica e
digital (digo, dos dedos), promovendo uma convergência de meios que garantem de
alguma forma a veracidade específica e oficial do nome de seu portador. Um papel
somente marcado com tipos alfabéticos com uma ordem de prisão não consegue
sozinho determinar a quem a ordem se refere. Isso é importante, pois define o
engodo do DOPS. Entre os papéis sociais, o de celulose e o de carne e osso da
performance, há um universo de mediações a ser observado.
Esta introdução me é importante porque a dissertação que segue daqui parte
de uma incerteza que me serviu de hipótese. Ao eleger o teatro como objeto de
pesquisa, assim como pretendia registrar a montagem de uma peça, não pretendia
escolher tal ou qual grupo. Um tanto à moda do DOPS, mas sem culminar em
tropeços e torturas (espero), me dispus a circular entre teatros e a conversar com as
pessoas com as quais vim a me encontrar de forma a conseguir dizer o que
23
pesquisava. Ao dizer TEATRO, assim, no singular, as especificações sobre quem
pesquisar ou qual grupo, me eram requeridas. Mas eu não me importava tanto com
essas perguntas. O que eu queria era um convite. Foi o que me aconteceu a certa
altura no encontro com Carmen Zanatta, que após ouvir as idéias de um pesquisador
dando seus primeiros passos, convidou-me para uma apresentação da peça O que nos
resta é o silêncio, do grupo Dragão Voador teatro contemporâneo que, segundo ela,
aceitaria me abrigar como pesquisador residente.
Este movimento, o de me dispor a circular entre teatros, peças e pessoas parte
de uma desconfiança quanto à estabilidade de meu objeto de pesquisa. Assim como é
permitido inventar vários nomes para uma só pessoa, cujo modo do apelido me é a
mais cara, é possível sob o mesmo signo variar seu significado. É o caso da palavra
teatro, tão polissêmica e multiplicada em formas quanto disputada. Há teatros que
não ocorrem como teatro, como é o caso do teatro de operações em uma guerra, ou o
teatrinho de jogador de futebol ao não sofrer uma falta ou do drama diante a uma
situação fraca de sofrimento. Há também quem acuse o colega de profissão de não
fazer teatro verdadeiramente, num tipo de querela muito apropriada ao discurso de
algumas vanguardas artísticas contrapostas aos delatores conservadores. Afinal, é
claro que isso que faz Miguel Falabela não é teatro, assim como funk não é música.
Não, não é claro. O que é claro é que algumas palavras circulam no profundo
desacordo entre seus enunciadores quanto ao seu significado. Não poderia ignorar
este fato. Seria o mesmo que não levar em conta que um certo subversivo poderia ter
um nome suficientemente pouco singular.
Assim, minha dissertação é fruto de um esforço em etnografar o complexo de
mediações que permitem que, em primeiro lugar, uma pessoa como eu consiga
encontrar algo como o teatro na paisagem urbana conturbada da cidade do Rio de
Janeiro. Em segundo lugar, descrever o veículo da persistência que encaminhasse
este que vos fala até uma forma específica de lida com as práticas teatrais, meu
encontro com o teatro. Em terceiro lugar, registrar as formas de operação que o
grupo pesquisado articulou para que, na seqüência dos trabalhos e dos dias, viessem a
24
se reunir repetidas vezes até que, diante a economia que é própria da vida artística
burguesa, chegasse a se encontrar com seu público. Nesta forma ampliada de
circulação de pessoas por mapas e endereços que permitem a um pesquisador
conduzir sua pesquisa tal como descrito, é importante notar que o teatro como
significante e evento deve estar por aí. Disperso. E isso, eu imagino, fornece o
sentido do título deste trabalho.
Pondo em questão este complexo de dispersão e encontros, aliados a uma
convivência próxima e intensiva registrada em um diário de campo, em fotografias,
filmagens e gravações sonoras de conversas, uma série de temas e problemas, assim
como sua resolução por parte das decisões tomadas por Joelson (diretor), Carmen,
Léo, Junior, Ângela, Candice, Luciano e Zé Geraldo me permitiram desdobrar o tema
inicial em alguns horizontes específicos condensados em conceitos como os de
autoria, agência, saber-fazer, poder-fazer e, como não poderia deixar de ser, a noção
de pessoa, aqui problematizada quanto ao seu modo de ficção: as personagens.
*
*
*
Por fim, e para por fim começar, renovo a confissão. Esta dissertação é fruto de
uma pesquisa devotada à antropologia como profissional tanto quanto a uma atividade
amadora no teatro e como livreiro. Espero que estas marcas determinantes daquilo que
penso e de certa herança que trago comigo, façam-se visíveis no correr da leitura. É
minha forma de homenagem.
Homenagem aos antropólogos, como Luiz Fernando Dias Duarte, professor e
amigo, com quem nunca tive que concordar, e que abriu suas portas nesta cidade tão
cheia de tapas nas costas, cujos temas, de forma distorcida, se apresentam aos poucos
em muito do que escrevo; ou Peter Henry Fry, cujas perguntas certas acabaram por dar
forma à parte substantiva deste trabalho, mesmo sem saber; Celso Azzan Jr., sempre
atento a este indisciplinado irredutível e testemunha aurículo-ocular dos dez anos de
amizade e acidez, para quem ainda devo uma leitura; aos amigos indescritíveis do grupo
Naturata: em especial, Ivone Manzali, Neide Eisele, Naara Luna, Rogério Azize, Jayme
Aranha Filho, Rachel Aisengart Meneses, Patrícia Reinheimmer, Nicolas Viotti pela
25
amizade que excede em muito os muros do castelo que, bem ou mal, ajudamos na
manutenção; aos colegas de pós-graduação, em especial os de Jornada e da revista
Enfoques; a Marco Antônio Gonçalves, que aceitou uma orientação de alto risco sem
vacilar, até o fim; e mais adiante aqueles que, aparecendo um a um, contribuíram com o
desenvolvimento caótico de algo que imagino ser agora um vivente do mundo dos
textos legíveis: Leonardo Campoy, Thiago Carminati, Heloísa Helena de Oliveira
Santos, Bruno Marques, Bianca Arruda e Eduardo Dullo, este cuja dissertação pode ser
considerada irmã da presente, mesmo que as mesmas não se dêem lá muito bem. À
banca, Luiz Fernando Dias Duarte e Emerson Giumbelli, assim como outros
debatedores em outras ocasiões (Amir Geiger, Patrícia Birman e Miriam Goldemberg),
que exigiram, em maior ou menor medida, profissionalismo de um novo antropólogo.
Cabem aqui os amigos da filosofia, que em definição recente fariam
antropologia sem pessoas dentro, e que, sem sombra de dúvida, figuram nas cenas de
maior desafio, bom humor e maior rigor na generosidade com aquele que assina esta
dissertação: Fábio Antônio da Costa, Gabriel Leitão, Rommel Luz e Taís Pereira.
Homenagem aos livreiros como Daniel e Silvia Chomski, que receberam um
desconhecido vindo de São Carlos na livraria que respira por si e que abrigou tantos
outros perdidos da Avenida Rio Branco como Henry, Mauro, Pedro, Rafael, Rodrigo, e
Eduardo que, bem ou mal, e sob a severa vigilância de Nora, me apresentaram uma
outra versão para algumas práticas de família; aos que fazem do território da livraria
Berinjela um solo sagrado cujo bom humor e inteligência não cedem à implicância dos
termos neutros e que obrigaram mais uma vez o pensamento silogístico a ceder às
paixões do vernáculo: Zílio, Nonato, Marecha, Zé Antônio, Hilda Machado (à sua
memória, vida sem fim), Carlito, Mauro Trindade, Stênnio (e Sabrina mais a recémchegada Ana Clara), Rubinho, Rodrigo, Emílio, etc.
Homenagem aos atores de antes, de quando pisava no palco sob a regência de
José Tonezzi e na companhia de Javier, Cecília, Thiago Barral, Juliana e etc., que ainda
fornecem a memória de um fim de espetáculo extenuante e de certa extenuação
espetacular; aos atores de então, cuja confiança e generosidade só me fazem querer
voltar aos tempos de campo para o triunfal retorno à convivência: Joelson, Ângela,
Candice, Carmen, Lucas, Leonardo e Luciano, acrescidos pela luz de Zé Geraldo. O
último capítulo, em grande parte, é minha dedicação ao risco assumido por eles ao
acolherem um estranho e lhe dar casa, comida e roupa lavada por tanto tempo.
26
Homenagem ao multimídia Paulo Camacho, determinante mesmo para esta
pesquisa, uma vez que fora membro ativo da expedição rumo ao mundo especificado no
teatro além de testemunha privilegiada de outras tantas venturas, parceiro em efeito
mesmo quando ausente. Homenagem aos alunos dos idos tempos de Cinemaneiro.
Homenagem aos amigos sempre presentes nas mesas fartas que ofereço ou nas quais me
oferecem: Lia, Luana, Zulma, Zaíra, Indira, Bruno, Helô, Suzanna, Ivone, Neide,
Nonato, família Berinjela.
Tanta homenagem e tão pouco para reforçar o vôo cego que a paternidade e a
maternidade implicam, especialmente quando diz respeito a um filho que se muda de
cidade para cidade em busca de uma conexão privilegiada que não sabe dizer qual seria.
Não consigo imaginar como prestar graças a meus pais que me acompanham com
tamanho zelo apesar da distância e por fazerem o mesmo com meus irmãos. Não sei
dizer, mais uma vez, o amor de vó que temos com tanta força e com igual freqüência,
digo, o tempo todo. E o que dizer de minha mulher, esposa, parceira e cúmplice da mais
eficiente célula subversiva da história, que nos momentos chave do mundo
contemporâneo, deixa o mundo contemporâneo se lascar quando ficamos de abraço e
beijo.
Esta pesquisa foi realizada com o financiamento do CNPq, dos meus pais, da
minha avó Clodomira, e minha esposa Cláudia sem os quais esta pesquisa jamais teria
ocorrido.
27
I - ENCONTRAR O TEATRO, ENCONTRAR COM O TEATRO;
ENCONTRAR-SE: O TEATRO.
1.1. O que procurar.
Saber o teatro, qualquer teatro que me for apresentado, aprender com ele a partir
da relação estabelecida com seus agentes e escrever sobre esta experiência.
Considerando ser este o rumo da escrita desta dissertação cabe em primeiro lugar
apresentar um problema de fundamento reiterado insistentemente no percurso que
antecede a pesquisa de campo: quem pesquisar? Sobre quem vim escrever? Esta
preocupação, bastante legítima, tomou forma e cor durante a banca de seleção de
mestrado, nas conversas de orientação e de amigos, nas reuniões de discussão em
disciplinas de metodologia. Enfim, era este o foco dialético. A pressão de elaborar algo
que pudesse ser chamado de sujeito da pesquisa destoava muito do que eu pretendia
gerando um desconforto que só aumentava ao lado dos colegas, já articulados com
alguma sorte de informantes. É preciso recortar, selecionar o objeto, o que significaria
escolher quem será objeto de estudo (quem, e não o quê). Mas eu não tinha quem, e isto
por uma razão muito forte. Para um primeiro momento de definição, não importava. Eu
tinha o que pesquisar. Esta disposição simples e arbitrária num primeiro momento se
desdobrou em uma série possibilidades importantes para este trabalho. A principal delas
é a de que o objeto desta pesquisa, nem de perto, a pertence, embora a participe.
Este é um trabalho sobre o teatro. No singular. As razões para esta forma de
aproximação são várias e a mera enumeração não ajudaria a estabelecer critérios
razoáveis, tampouco suficientes, para tal. O fundamental neste primeiro momento é que
a aplicação substantiva da palavra é de uso coloquial, circulante durante pesquisa de
campo entre os pesquisados, e esta invariante locucionária é suficiente para acionar
relações que encaminhem aquele que fala sobre o teatro a alguma de suas modalidades.
É o que me leva a considerar que este teatro substantivo, no singular, é ao mesmo tempo
central para esta pesquisa e inabordável caso haja pretensão de uma definição
igualmente substantiva. Tal como é possível observar, o teatro opera um sistema de
alterações que fundam diferenças que são sempre casos específicos que não impedem
sua inteligibilidade e prática assim como sua dêixis mais dispersa, tornando possível
encontrá-lo em qualquer um dos teatros disponíveis; em uma ou outra cidade (ou no
quintal em uma festa), falar sobre o teatro de rua, assinar um documento político
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contrário (ou endossando) critérios de financiamento público das atividades teatrais,
participar das guerras de estética que negam as alternativas de ofício ou a fazem derivar
de si, trabalhar na construção civil ao erigir edificações de fins teatrais, assim como
assistir a um velho ator falar sobre sua arte teatral em um teatro. Tudo no singular e ao
mesmo tempo um conjunto de diferenças que multiplicam, indicando uma tradição e um
coletivo de agências discerníveis.
A partir da indeterminação inicial, este capítulo se deterá em abordar as formas
que garantem que o teatro seja um caminho possível lhe proporcionando meios de
dispersão sem que as formas de agenciamentos que carregam o substantivo no singular
teatro percam serventia. Esta estratégia segue de perto os desdobramentos da própria
pesquisa de campo que parte de territórios pouco específicos no que concerne a
atualização de formas teatrais, visando elucidar os problemas que fazem de um evento
teatral algo com o que se possa encontrar sem que um morador da cidade do Rio de
Janeiro tenha que efetivamente mudar de mundo ou, num sentido igualmente grave, seja
obrigado a abandonar qualquer forma específica de imagem de mundo, sendo acometido
de loucura, extradição ou abandono.
Algumas definições possíveis do objeto em questão
•
Recorrendo ao Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis (1999), pude
encontrar 41 definições de teatro (substantivo singular) que, longe de ser exaustiva,
dado que contempla uma historiografia européia (nele não constam o Teatro do
Oprimido, que há muito não é só uma coisa de um certo Augusto Boal, e tampouco o
Teatro da Natureza, que atingiu certa popularidade no Brasil dos anos da primeira
república e na Europa do XIX), oferece um contorno interessante ao problema.
Realizado segundo diretrizes de pesquisa histórico-científica em semiótica – o autor é
professor na Universidade Paris-VIII – os 41 verbetes apresentados na letra “T” sob o
signo do teatro estabelecem algumas fontes do teatro histórico moderno (experimental,
antropológico, burguês, da crueldade, agit-prop, etc.) articuladas a verbetes que
apresentam gêneros, desenhos e intencionalidades que reconhecem ao pendor artístico
da atividade a sua capacidade e missão de mirar objetos e constituí-los por via da
criação. Motivação, intencionalidade e interesse articulados dão base para a forma final
dos verbetes, não excedendo sequer aqueles que apontam para planos arquitetônicos,
como é o caso do TEATRO DE ARENA (op.cit.:380): “Teatro no qual os espectadores
29
são dispostos em torno da área de atuação, como no circo ou numa manifestação
esportiva. Já usado na Idade Média para representação dos mistérios, este tipo de
cenografia é novamente privilegiado no século XX (M. Reinhardt, A. Villiers, 1958 –
bibiografia citada) não só para unificar a visão do público, mas sobretudo, para fazer
os espectadores comungarem na participação de um rito em que todos estão
emocionalmente envolvidos.” . A referência ao plano da intencionalidade como
ambiente privilegiado teatral aponta para sua causa. O teatro assim definido é efeito de
humanidade.
O interessante é que a possibilidade de o teatro ser arte é reificada ou, seguindo a
pista a qual pretendo aprofundar, é componente de uma sorte de agência cósmicocaótica própria. Comparado a um dicionário da língua portuguesa, as acepções mudam
drasticamente, respondendo muito menos a um tipo qualquer de o que fazer e muito
mais satisfazendo as possibilidades de nominar ações que possam cair sob o juízo
assinalado “teatro”, suprindo o leitor de dêiticos possíveis. O Dicionário da Língua
Portuguesa organizado por Almeida Costa e Sampaio Melo (1986:1594) apresenta doze
definições as mais diversas, muito menos pontuais:
“Substantivo masculino: Lugar ou casa onde se representam comédias, farsas,
revistas, etc.; arte de representar; literatura dramática; a arte dramática; coleção das
obras dramáticas de um autor ou de uma nação; profissão de actor ou actriz;
Figurado: lugar onde se deu um acontecimento; ilusão; fingimento; hipocrisia; anatômico: sala própria para dissecação de cadáveres (nas Escolas Médicas); - de
guerra: divisão geográfica militar que abrange o território, mar e espaço aéreo dentro
dos quais decorrem operações correspondentes a um dos objectivos da estratégia; - de
operações: parte de um teatro de guerra no qual se desenrolam operações tácticas e as
atividades logísticas correspondentes. (Do grego Thèatron, “lugar donde se vê um
espetáculo”, pelo latim Theatru, id.).”
A diferença primeira que destaco é exatamente que o teatro definido pelo
dicionário da língua portuguesa citado não implica somente no significado do
significante, apresentando em detalhes o que é que alguém pode emitir como
significado ao apresentar a palavra teatro. A divisão interna do verbete é significativa ao
definir uma raiz (cujo conceito operador é drama) e uma figuração derivada, quase que
estabelecendo um teatro que é para valer, sério, verdadeiro, e um outro figurado, cuja
30
sintaxe que determina seu sentido escorrega ao apontar para um tipo de situação na qual
pouca gente vai e volta para contar o que houve – caso seja necessário retomar a theoria
grega cuja ação é a de ir ver-ouvir, voltar e contar – que é o caso da guerra. O
fundamental, contudo, é que o dicionário Pavis é voltado para profissionais de teatro e
seus afins, enquanto o segundo é um dicionário para leitores de uma língua e por isso
determinam diferentes fontes, formas e desdobramentos de sentidos, levando mais ou
menos a sério alguns aspectos conotativos da palavra que, no primeiro caso, é o próprio
horizonte de reificação dada sua especificidade disciplinar.
Assim, não só qualquer consideração sobre um teatro de operações inexiste,
como dentre os 41 verbetes constituídos pela palavra teatro, o mais próximo de
qualquer acepção militar é o teatro de guerrilha: “teatro militante e engajado na vida
política ou na luta de libertação de um povo ou de um grupo.”(Pavis, op.cit.:382). Mas
de qualquer forma, o horizonte no qual o teatro é já uma arte está definido, mesmo que
o significado de arte não esteja. Aquele que busca um dicionário sobre teatro já deveria
estar informado disso, deve assumir este grau de reificação. Caso contrário, como lidar
com o editorial do Caderno Especial 2 da Revista Civilização Brasileira (1968) sobre
Teatro e Realidade Brasileira, no qual se destaca exatamente um plano polêmico de
outro grau em que especificações sugerem não só a imediata constatação do teatral no
campo de definições de um Dicionário Pavis como apresentam as polêmicas nacionais
que só fazem sentido a partir de uma noção presumida de teatro? O último parágrafo
segue como transcrito:
“Vamos do otimismo de Nelson Werneck Sodré ao negativismo de Tite de
Lemos, da “abertura pessedista” de Oduvaldo Vianna Filho ao radicalismo de Luiz
Carlos Maciel; Anatol Rosenfeld faz sérias restrições aos conceitos estéticos de
Augusto Boal, enquanto Cacilda Becker nega a existência da dramaturgia brasileira
que Flávio Rangel afirma ser de extraordinária vitalidade. Mas “a verdade é a
totalidade”. E a polêmica é oxigênio indispensável à sobrevivência da liberdade, sem a
qual qualquer verdade humana se esvazia do movimento dialético que a definia como
tal e adquire a feição mortuária das estruturas dogmáticas.”
Esta singular multiplicação de relações de significado não é, certamente, uma
maldição que o teatro destina ao seu pesquisador. Na verdade, me parece uma
instabilidade mais ou menos distribuída no campo de pesquisas no qual este trabalho se
31
situa cujo horizonte é o da própria inscrição de objetos e suas conexões, nem sempre
contempláveis pelo esforço de classificação num léxico preciso e que, por sua vez,
raramente é contemplado pelas forças de contingência das histórias que se contam. Nem
sempre aquilo que fora teatro ontem é necessariamente teatro hoje e, se deixou de sê-lo,
não impede que venha a ser amanhã ou hoje mesmo, fazendo da vida teatral um entrar e
sair de fase. Parece impossível eliminar a controvérsia do horizonte de qualquer
definição. Mas não percebo este movimento sozinho. Uma história das vanguardas
amplia isto que ora se põe como um desejo pelo novo e pela mudança a ser feita e que,
na trajetória da arte no ocidente acompanha sem ser um agente descolado, a constituição
de diferentes formas de viver em sociedade fazendo as vezes do que se chama
desenvolvimento, evolução ou progresso, sem serem sinônimos (Poggioli, 1996). Há
teatros antinômicos em nome do tempo que evocam, o de mudanças, mudanças estas
operadas pelos recursos de apresentação teatral, mesmo que sabidamente pouco
disseminados numa sociedade de massas.
Há também vezes nas quais algumas atividades teatrais se encontram com o
difícil projeto de evitar fazer cenas de forma que sejam “muito teatro” – isto é,
demasiado formais; pro forma – exatamente na finalidade de manter a precisão da
atividade teatral, recorrendo a uma necessidade de inovação ou aprimoramento cuja
finalidade estética parece cair tão bem no conceito de ostranenie14 próprio das
linguagens da arte moderna. Mas não é preciso ir tão longe. Atento à vida teatral, um
ator pode vir a se perguntar como foi que realizou determinada cena ainda ontem,
apresentando um aspecto de fuga da forma estável e precisa. O ator, neste aparte, é tanto
aquele que muda como aquele que deve se estabilizar. E aqui está muito bem localizado
no mundo ao qual pertence, acompanhando as fases de apresentação próprios do objeto
em questão. E é nesse sentido que a pesquisa com atores é amparada por um aspecto
específico: é no percurso de trabalhos de atores que pude ver o teatro em suas etapas de
14
Do russo. Significa estranhamento. Pedra de toque dos estudos sobre literatura da geração de
pesquisadores chamados de formalistas russos, círculo que germina logo antes da Revolução Russa e que
tem em suas fileiras nomes como os de Vladmir Maiakovski, Roman Jakobson, Boris Tomachévski,
Vladmir Propp e Iuri Tyiniánov fileiras nomes. O signo do estranhamento fundante da experiência poética
e artística do modernismo sugere que formalmente a expressão do campo apresente elementos
diferenciais e especificadores do fenômeno lingüístico, que passa a não ser mais o de uma comunicação
ordinária, mas sim poética. Para uma síntese desse problema, vide Eikhenbaum (1976), onde a faculdade
lingüística da literariedade é definida. Em Bourdieu (2007) o estranhamento operado pelas artes modernas
surge como elemento de distinção de campo das classes artísticas. As duas referências constituem uma
leitura ampla de um dos problemas importantes desta dissertação, a saber, o da especificação convergente
das diferenças que são tanto do plano da experiência vivida do sentido (no caso organicista do
formalismo) quanto de uma dinâmica social das classificações (no caso das formas de distinção de Pierre
Bourdieu).
32
produção, migrando entre momentos específicos da atividade de pôr o teatro em
circuito. Em outras palavras, apresentá-lo ao mundo mais uma vez.
Tanto cuidado ao definir o eixo entre objetos de pesquisa, de problemas a serem
postos, diz respeito à circulação do teatro como significante vulgar e impreciso. A
recorrência do problema da escolha de quem pesquisar, mesmo quando mediada por
relativos e afins, apresentava uma mesma complicação. O teatro é auto-evidente e,
como sugeriu Emerson Giumbelli acerca da religião (2002), todos tinham algo a dizer a
respeito. Mas nenhum deles realmente fazia teatro. Nem com tijolos. O objeto se
encontra disponível aos mais diversos interesses, se dá ao desfrute, permite
controvérsia. As cautelas quanto aos objetos auto-evidentes merece alguns cuidados
exatamente por isso.
Uma vez que, tanto a antropologia da arte como a antropologia urbana, lidam
com um campo de objetos dotados de familiaridade com o público leitor, trabalhos que
falam sobre o futebol, o casamento, uma procissão, ou outro caso de encontro de
grupos, tomam como fato já formulado a delicada prática de encontrar o objeto de
pesquisa. O teatro... todos sabem o que é isto, dado que lá está. Todos podem dizer algo
sobre o mesmo sem precisar manifestar qualquer cuidado especial quanto aos termos
que aplica ou aos aspectos que elege serem relevantes e suas práticas implicadas. Posso
fazer o mesmo. Mas basta perguntar o que é isto, o teatro, e logo a definição escapa,
como o tempo de Santo Agostinho. Multiplica-se em possíveis alternativas, como pôde
ser mostrado: um prédio, um endereço, uma arte, uma abordagem, um rumo, uma
faculdade humana, uma birra infantil (lembrando que os gêneros teatrais são igualmente
polissêmicos: comédia, drama, tragédia, igualmente abundantes em alternativas de
significado), um curso de ensino técnico ou universitário. Ora, a definição da pesquisa
deveria, tendo em vista não me deixar levar pela possível obviedade do objeto,
apresentar uma ordenação dos dados de experiência de campo que me permitissem
mostrar como encontrar o teatro em sua multiplicação e no caso desta pesquisa, como se
encontrar com o teatro multiplicado até que, em alguma linha de condução, venha a se
especificar. Afinal, sem acionar os dispositivos corretos, esta pesquisa culmina em uma
impossibilidade tal como a prática teatral como constituída, cujas formas e linhas de
conduta culminam em alguns dos encontros que lhe são característicos.
33
1.2. Como procurar? - excursão teórica
Se algo pode ser utilizado em uma etnografia de meios urbanos a partir das
leituras de registros etnográficos de populações viventes em topografias outras, como
a do Alto Xingu, do Vaupés, da Alta Birmânia ou das populações nilotas no sudeste
africano, é o hábito saudável de localizar, por escrito, as tais populações por via de
referência a mapas ou outras modalidades de coordenação da navegação (latitude,
longitude), visando apontar as formas então utilizadas para encontrar esta ou aquela
população. A validade destes registros tem valor imprescindível para a configuração
de dados de pesquisa, e na recente etnologia tem se abordado este tipo de referência
enfaticamente ao apontar relações entre deslocamentos coordenados em perspectiva
comparada, do ponto de vista simbólico sobretudo.
O primeiro volume das Mitológicas de Claude Lévi-Strauss, O cru e o cozido,
constitui referência suficiente, em especial sobre a constelação das plêiades e a
configuração de um tempo simbólico de longa duração articulada nos mitos
ameríndios presente no segundo capítulo da quarta parte (Duplo cânon invertido)
que revelam traços de uma economia de pensamento que abrange uma enorme
quantidade de povos e relações localizadas e articuladas em pares de oposição de uma
simbologia que orbita em torno do par de constelações Corvo:Órion e seus outros
nomes que, por fim, responderiam a uma constante. Segundo Lévi-Strauss “a
astronomia fornece a verificação externa dos argumentos de ordem interna (...) De
fato, resulta de todos esses dados que, se Órion pode ser associado à estação seca,
então o Corvo poderá sê-lo à estação das chuvas” (1992:227) conferindo validade
comparativa à seqüência mítica água celeste:água proveniente de baixo que
caracteriza a contraposição da estação das chuvas e das secas relacionadas a agentes
míticos homônimos às constelações. O aspecto externo do mapeamento astronômico
permite que se avalie a validade sincrônica e diacrônica de comparações, como no
exemplo da relação das constelações com as estações a partir de relatos tão desiguais
quanto são as fontes de Lévi-Strauss, permitindo articular diferenças do tipo
ali:antes::ali:agora
ali:antes::ali:agora do tempo dos sistemas de transformações, mesmo quando este tipo
34
de avaliação não é imediatamente apreensível no conteúdo de um ou outro mito de
um ou outro povo. Os mapas articulam as mesmas invariâncias – podemos chamar de
constantes coordenadas – que o antropólogo belgo-francês procura dispor:
“Perguntamos apenas qual a relação entre a marcha de uma constelação a
num hemisfério e a da constelação b no outro. Essa relação é constante, qualquer que
seja o período a que decidamos nos referir. Para que nossa pergunta tenha sentido,
basta, portanto, admitir, em conformidade com verossimilhança, que conhecimentos
astronômicos elementares, e sua utilização para a determinação das estações,
remontam a uma época muito antiga na vida da humanidade, que deve ter sido
aproximadamente para todas as suas frações.” (id.ibid.:226)
Mais do que cortejar o texto de Lévi-Strauss que, por si só mereceria toda
minha atenção numa lógica de esforços equiparáveis, o que é decisivo é a atenção
dada ao nexo de coordenadas, sua diferença e seu padrão de diferenciação que
permitem estabelecer o nexo de um tempo simbólico tão esquecido quando se faz
remissão às teorias estruturais da história em etnologia. Este padrão, assim como o
seu limite de aplicação me chamam a atenção exatamente porque é ele um dos
problemas da presente dissertação. Não almejando qualquer esboço de comparação
com sociedades amazônicas, ou melanésias, o que me chama a atenção são os
mecanismos de disposição em localizações. Parte decisiva da argumentação de LéviStrauss no capítulo mencionado de O cru e o cozido dizia respeito à abrangência da
mitologia enquanto teoria, versando sobre a ordem das águas e seu correlato com
constantes de constelação que apresentam ao pesquisador uma medida estável de
profundidade temporal. A remissão ao mito de Apolo como protótipo, ou diagrama,
da constatação de constantes astronômico-meteorológicas assume a universalidade e
a concretude das formas de orientação cosmológicas, isto é, que se remetem à
definição das diferenças entre os termos e forças constituintes do mundo.
35
Este problema das investigações em antropologia assume um outro caráter
quando se põem os olhos na seqüência de artigos sobre mapas e wayfinding, e que
tem em Alfred Gell o foco da discussão. Se os mapas são pontos de partida em formas
de mediação entre culturas, permitindo estabelecer por fim qual seria a referência
astronômica precisa dos mitos analisados por Lévi-Strauss, o que entra em questão no
debate Frake/Gell/Ingold é a universalidade objetiva do mapa como forma presente
em diversos estilos cognitivos culturais.
A elaboração do problema parte da necessidade de Charles O. Frake (1985)
em defender a tão atacada racionalidade medieval (you shall not forget the dark
ages), em especial dos navegadores que, deparando-se com uma realidade tecnológica
que alia funcionalidade de utensílios com os demais seres com os quais o sujeito
cognitivo se depara, precisa resolver problemas importantes. Sem usufruir o
complexo de mapeamento dos navegadores modernos, abordar os métodos de
aplicação da rosa dos ventos na orientação espaço-temporal é uma ótima
oportunidade de defender a universalidade do sistema cognitivo, assim como a
resposta positiva e funcional das tecnologias de orientação. O que caracteriza a
orientação medieval, já que os mapas precisam ser interpretados mais pelas suas
lacunas do que por sua precisão e ostensividade, é a capacidade do navegador de ir
além da informação dada, o que Frake considera ser a essência da cognição
(id.ibid.:260). Assim, mais do que mapas propriamente ditos, o que há disponível
para o navegador medieval é um mapa cognitivo, ou mental map.
Na mesma edição da revista Man, Alfred Gell (1985) não só responde a Frake,
como formula uma teoria acerca dos mapas, fazendo-os quase uma faculdade
cognitiva de orientação segundo a fórmula de wayfinding. Sua preocupação,
especificamente no que diz respeito ao cognitivismo professado por Frake, é a
excepcionalidade da navegação, critério delicado de prova da racionalidade do
homem medieval comum. Afirmar esta universalidade com bases em práticas
excepcionais significa dizer que o primitivo é primitivo, exceto quando faz coisas
excepcionais. Diante da barreira posta por Frake, Gell se pergunta sobre como este
36
sujeito, cognitivo em todo momento, encontra os caminhos mais banais, num tipo de
maestria prática que o faz se aproximar de Pierre Bourdieu quanto ao significado de a
palavra “cultura”, por vezes descrita como se fosse um mapa. O que ora interessa,
assim como para o prosseguimento da polêmica, é que há de se considerar a diferença
entre mapas tomados como artefato e mapas segundo sua variação mental maps. A
dessemelhança não pode ser ignorada. Afinal, é dela que partimos, de forma a
contornar algum tipo de diferença intrínseca, a saber, daquilo que pensam os nativos
e daquilo que se utiliza para, por fim, aproximar-se daquilo que os nativos pensam.
Mas para tanto é preciso fazer muita coisa:
“Nem mapas mentais são tão dessemelhantes de mapas artefactuais para ser
falha a qualificação como mapas absolutamente, ou se os mapas mentais são
realmente como mapas, não podem ser invocados na explanação de performances de
wayfinding reconhecíveis espacialmente que, por definição, ocorrem sem a
assistência de mapas.” (Gell, id.ibid.:274)
O que desponta do tipo de mapa artefactual para o qual Lévi-Strauss chama a
atenção nas mitológicas como médium comparativo é que, mais do que operar
alguma razão representativa entre desenho, figura e referência, também estabelece
uma lógica de coordenadas cuja relação entre termos, como a idéia de pontos A e B e
uma trajetória presumida, define como operam as unidades de localização em
conjunto. Estas coordenadas implicam não somente na organização em um
ordenamento específico em cujo sistema de ordem lógica opera imanentemente em
grau psicológico, como os termos de relação apontam proporções categoriais de
caráter de co-ordenação.
Toda sua reflexão a respeito de artefatos (1992, 1998) visa apontar para esta
diferença fundamental entre as razões pelas quais algo é feito e sua relação com
qualquer entidade de representação figurativa que, como se pode perceber, fica em
segundo plano. O que é fundamental no desvendamento de formas profundas de
37
abordagem do reconhecimento das práticas é o sistema que permitem proposições
indutivas do tipo que leva ao conceito de índice de agência.
agência Dada a preeminência da
lógica na elaboração de uma teoria de mental maping, que aproximaria os gregos do
mito de Apolo, os índios americanos da seqüência mitológica ao astrônomo Jean
Claude Pecker, Gell propõe três tópicos de entendimento que definem 3 graus de
wayfinding: a) o território, b) o mapa do território e c) imagens do território, que
levam-no a inferir sobre a coordenação entre imagens e termos de praxiologia.
O que permeia tanto argumentação de Gell quanto de Frake é a orientação
fundamental de navegação nas práticas de encontrar caminhos decisivas na
orientação agentiva. Dada uma correlação entre dois pontos não-figurativos
encontrados na paisagem, é possível partir da abstração para então figurar, por via de
gerações de imagens, as propriedades figurativas da relação ver-paisagem.
Ponderando sobre este conjunto problemático no qual o mapa mental é a origem
ideativa do artefato, Tim Ingold (2005:77) pondera:
“(...) habitantes nativos podem não conseguir determinar seu lugar no espaço
de acordo com algum sistema independente de coordenadas, insistindo todavia, com
razão, que sabem onde estão. Isso, como mostrarei, ocorre porque os lugares não têm
posições e sim histórias.”
Aliando os modos de trajetória de um mapa, que prevê a relação entre uma
posição e outra ao de wayfinding (de um lugar a outro em uma região), Ingold define
não somente a tópica dos graus de abstração [(-)região::espaço(+)] como esta relação
estabelece uma assimetria propriamente tecnológica: mapear (no infinitivo) e
conhecer são distintos de um mapa. É esta distinção ressaltada que ora interessa,
dado que ajuda a definir sobre quem e com quem se argumenta.
Assim, a afirmação de que descobrir um caminho não significa que o
caminhante opera a confecção de qualquer mapa mental exige de Ingold um passo
decisivo que é o da depuração tecnológica daquilo que funciona como uma figura de
38
linguagem infeliz do ponto de vista pragmático (Austin, 1975:14): o mapa não é uma
transcrição, mas uma inscrição que ocorre numa esfera disciplinar de confecções de
objeto-mapa.
Contudo, se este tipo de organização de dados é relevante, no caso da
etnografia urbana a coisa se dá conforme um outro registro: os mapas fazem parte da
lógica de endereçamento pesquisado, isto é, são dados constituintes do espaço e do
manejo de trânsito em pesquisa centrais, do tipo que permite remontar as reformas
urbanas de um Haussman ou de Pereira Passos ou de fundamentar a correlação entre
modernismo, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, arquitetura, urbanismo, nacionalismo e
Brasília num eixo de conexões e feitorias que culminam na efetiva construção de
uma paisagem. Uma rua, antes de posta em rua, passa pela inscrição numa série de
outras superfícies que operam ao seu lado como referência de uma rua a ser feita,
inscrita no corpo da terra. As forças do tipo que constituem o mapa como utensílio e
objeto enunciado apontam para a diferença profunda que determina um mapa, e seu
sistema, utilizado à Lévi-Strauss e tal como o requisita uma pesquisa em uma cidade.
Nos termos de Peter Gow é possível absorver um pouco do que significa, em
primeiro lugar, haver antonímia entre landscapes e matas fechadas (de onde não há
escapatória visual), assim como o que significa a complexidade das formas de
diferença na localização que, possivelmente, prescindem dos mapas tal como seria
possível universalizar segundo uma orientação cognitivista:
“Mirando uma paisagem amazônica desflorestada, estamos olhando para um
ambiente visual construído a partir de mapas e de um simulacro do ambiente
temperado do norte. Muito da recente colonização da Amazônia procedeu ao longo
de estradas que, elas mesmas, tiveram sua primeira existência como linhas
desenhadas através de espaços vazios dos mapas.”(1995:43)
39
A landscape em muito tem a ver com linhas que se impõem, especialmente
nas regras de sua figuração em pinturas15 e em sua projeção urbanística e regiões
extensas, que servem de local da participação do teatro no Rio de Janeiro num
sistema mais abrangente de encontros que articulam a agenda e os endereços
segundo uma forma peculiar da articulação de tempo e espaço que, como se verá,
pode incluir mapas como objetos referentes de objetividades outras e pessoas como
foco da mesma articulação. Esta será analisada partindo dos mecanismos agenciados
para que eu, como pesquisador-ainda-não-especialista e transeunte, pudesse
encontrar o teatro para então seguir os mecanismos que o teatro-encontrado efetiva
de forma que venha a ser encontrado especificamente a partir dos elementos em
agência, para que atores teatrais venham a se encontrar.
1.3. Como procurar: método
Dado o emaranhado próprio à dificuldade de formular a disposição de locais e o
desenvolvimento de trajetórias, assim como sua orientação imediata, não soa arriscado
dizer que saber encontrar algo é uma arte. Propriamente reificados, os métodos de busca
que operam correspondências concretizam forças de intensidade e extensão, atualizando
modos de relação entre caminho, caminhar, lugar e espaço, assim como horizontes de
medida para cálculo de tempo de tráfego. As variáveis de medida dos métodos
disponíveis, contudo, rivalizam com o plano incomensurável da diferença imediata, isto
é, entre a norma e o evento. Afinal, há sempre a perspectiva de se perder ou,
desempenhando alguma forma de rapidez, pode-se perder alguma coisa ou encontrar
algo imprevisto. Mas, e é no que me fio, uma vez perdido, é possível se encontrar/é
possível encontrar. O que dizer da arte de se encontrar, ou de encontrar algo na arte,
como por exemplo, uma personagem, fruto de ação (δραµα)?
Há que se considerar o tipo de interrupção que a relação de encontro propicia,
especialmente para a presente dissertação. O momento de uma apresentação teatral
impõe aos presentes uma série de ações que submetem os participantes a uma série de
15
Vide Panofsky (1993), Baxandall (1991, 2006) e Alpers (1983) sobre a história da elaboração lenta e
complexa da figuração como forma de descrição de constantes e coordenadas e sua intrínseca relação com
alguns eventos da Renascença.
40
obrigações que definem o caráter de sua participação, submetendo-se a agências, assim
como impondo outras tantas das quais é fonte. Valer-me aqui de um sistema de tempoespaço, que é para onde segue o argumento, tem como prioridade exatamente pôr em
perspectiva o fundamento da experiência teatral normal (modal?) a partir de algumas
evidências importantes de sua constituição. Apresentar uma peça de conteúdo narrativo,
por exemplo, significa apresentar personagens e uma seqüência de ações que possam
não somente ser assistidos, mas compreendidos, postos em um sentido localizado na
própria apresentação experimentada. Não há uma vida inteira para apresentar a história
da vida de, por exemplo, Romeu Montecchio. Mas é claro, como venho tentando
sugerir, o que há para ser encontrado nem sempre se reduz a esse quadro.
Principalmente porque, tal como é de se esperar num argumento de matriz etnográfica,
as atividades de encontrar não se restringem a um plano solipsista de agência de
localização. Para critério de entendimento ampliado e distribuído das competências de
encontrar, vale acrescentar que as atividades de localização entre as quais insiro o
teatro, é tanto encontrar algo quanto encontrar-se-com. Daí o valor de um aparte sobre
Erving Goffman (Encounters, 1961).
Na abertura do referido livro, Goffman procura apresentar uma investigação
sobre interações16 sob foco e fora de foco entre pessoas, cuja diferença é a atenção e a
convergência das ações entre os envolvidos em uma dada situação. Num primeiro
momento, Goffman recusa a distinção analítica entre unidades de organização e
processos de interação, preferindo distinguir tipos de unidades, elementos e processos
abrangendo situações corriqueiras da forma pela qual elas se ordenam em processo –
processo e organização seriam então uma só e mesma coisa e não um o reflexo da outra;
não há
traduções nomotéticas ou abordagens de funções latentes. Doing is being
(op.cit.:77) – ou então, fazendo e sendo. Não por acaso, a primeira forma conceitual
forte e de particular relevância na abertura de Frame analysis (1986) são as unidades
naturais, inefáveis, das interações sob foco (focused gathering, encounter, situated
activity system) características dos enquadramentos primários, que são interações
praticadas como tais, em seus próprios termos e limites, e em-si objetivadas no
enquadramento (framework). Assim, os envolvidos se deparam com problemas do
16
Longe de ser um lobo solitário, ao sugerir que agir é inter-agir, isto é, que se age com alguém ou algo,
Goffman escreve sobre ação social de maneira bastante afastada das considerações mais calculistas do
individualismo metodológico. Não bastando a sugestão que são os momentos que possuem seus homens,
e não ao contrário, os desdobramentos de sua teoria da ação possuem fundamentos lastrados numa
perspectiva porosa de presença e pensamento humanos.
41
sistema, que são os próprios limites da ação tímica (euforia e disforia) e, diante destas
fronteiras, a demarcação de a partir de quando/onde ocorre de se fazer uma e outra
coisa.
É neste contexto que o capítulo sobre a diversão em jogos (1961:17-72) aborda,
entre outras coisas, dois pontos centrais para este trabalho. Em primeiro lugar, de como
pensar um modelo segundo a lógica de um sistema de atividades situado, o que
configura a diferença entre play e gaming (jogo/jogar e jogando). Em segundo lugar,
como o regime de modificações de roles (convencionalmente traduzidos como “papéis
representados”) próprio aos jogos em muito nos aproxima de uma certa abordagem do
ficcional.
A principal razão para a evocação do trabalho de Erving Goffman advém da
possibilidade de alterar certas preocupações acerca do teatro, em especial as dedicadas à
análise do espetáculo. Alguns trabalhos famosos de semiologia teatral fazem uma
minuciosa incursão nas formas significativas teatrais, elaborando intensos programas de
pesquisa, como são os casos exemplares de Bogatyrev (2003) e Honzl (2003). Contudo,
suas análises têm como objetivo abordar o espetáculo, isto é, aquilo que já se apresenta
como teatro a ser visto (ou o ser-visto), pago e julgado, como um produto final já
assistido. Os eventos com os quais esta pesquisa se depara são de outra ordem.
A ênfase na contribuição de Goffman diz respeito à propriedade conferida ao
fenômeno do encontro, que é uma das formas possíveis de se reduzir o teatro (um
encontro entre pessoas – e papéis, objetos, cenas...) cuja repetição com envolvidos
pode culminar, como no caso, em práticas de ensaio e outras reuniões que são
procedimentos pelos quais o teatro vem a ocorrer, ocasiões em que as peças e
personagens são feitos, como se fossem jogos, que embora não traduzam o que “na
verdade” acontece na cena final – como se qualquer cena não fosse suficientemente
verdadeira -, revela as outras cenas que convivem com as cenas da peça em sua estréia,
mas são disjuntivas cronologicamente. Isso significa que aponto para as extensões do
teatro para além do espetáculo, embora ainda relativas ao teatro, procurando reforçar as
atividades que fazem do trabalho coletivo um objeto comum e que leva pessoas à sua
confecção a partir do manejo de seu encontro. Seguindo a abordagem de Goffman,
detenho-me num primeiro momento em relatar a montagem do teatro como reunião de
envolvidos focados considerando cada um dos ensaios segundo a proposta de Julio
42
Cortazar (1968): takes com vistas a um futuro em prol do qual há de se aprimorar o que
se faz17.
Assumir esta referência significa abordar o encontro (focused reunion) como: a)
foco de atenção visual18 e cognitiva singular, b) com abertura mútua e preferencial entre
os participantes, c) culminando na ampliação mútua da relevância das ações e d) na
aglomeração ecológica vis-à-vis que maximiza a oportunidade de cada participante
perceber o monitoramento que o outro participante faz de si, evocando um princípio que
Goffman chama de we rationale, que é um “fazemos ao mesmo tempo – e sabemos
disso” que possui suas regras e modalidades. E é aí que a diferença entre play e gaming
toma força, uma vez que “a play of game has players; a gaming encounter has
participants”. 19
Contudo, esta lógica do encontro que Goffman tanto se esforça para preservar
como índice de interação sofre aqui uma alteração sutil de perspectiva, uma vez que o
encaminhamento ao encontro (isto é, a ordenação dos vários encontros e seus fins) é tão
constituinte dos problemas quanto o plano interativo face-a-face. Este que é o plano do
método (méthôdos; caminho, encaminhamento) prontifica os elementos estruturantes
que são próprios à pergunta que faz Ingold (2005:98): “o que significa saber onde se
está?” sobre mapas e que aqui, de outra forma, faço sobre os endereços para encontros.
Isto porque, tal como é possível sugerir (Duarte, 1999), há uma ambigüidade dos
sentidos que gostaria de reforçar, que versa sobre a articulação do sentido/sensibilidade
e sobre a configuração do sentido/significado próprios ao simbólico que, na dinâmica da
articulação topográfica de tempo e espaço, sugerem peculiaridades dos encontros
17
Contudo, vale apresentar o desajuste que a perspectiva do “melhoramento” apresenta. Espero poder
apresentar a oscilação das formas de apresentação que melhoram as cenas, assim como a idéia de
melhoria pode estar atrelada com uma outra noção, que é a de momento, isto é, que as práticas de
aperfeiçoamento não estão necessariamente ligadas com critérios de perfectibilidade mas de plasticidade
adaptativa e contingente.
18
No caso, prefiro substituir visual por imagética, uma vez que, como vemos logo a seguir, estão em
questão outros modos de imagem, como a acústico-auditiva.
19
É importante notar que os participantes envolvidos nem sempre são envolvidos como corpos presentes.
Citações, críticas de jornal, restrições orçamentárias, limites de tempo para ensaio, apoio cultural, são
entes e formas de envolvimento que atuam na ausência por via de formas as mais diversas de mediação.
Boa parte do esforço da pesquisa deve se focar em compreender o fluxo de relações que importam ao
teatro. Não é respeitoso esquecer também que a temática da participação possui sua história na
antropologia, compondo parte do cenário do pensamento sobre a magia e o pensamento primitivo que,
incapaz das conexões propriamente lógicas, sugere participações das coisas nos eventos, alienando as
relações de causa e efeito, por exemplo, da ordenação sucessiva dos eventos entre si. O nome de Lucien
Lévy-Bruhl deve bastar como referência.
43
realizados em cidades, em especial na cidade do Rio de Janeiro e seus caminhos que
conduzem a encontros teatrais.
Considerando que há uma grande variedade de encontros, e basta passear para
tanto – e é isto que busco desenvolver, é disso que trato – não é qualquer encontro que
gera teatro. Basta investigarmos o que acontece em uma mesa cirúrgica, num
laboratório de genética, num tiroteio no morro São Carlos (Estácio, Rio de Janeiro) e os
diferentes regimes de censura e sanções, assim como de suas conseqüências. Aquilo que
é peculiar de uma prática qualquer parece vincular-se às formas de co-presença
(Giddens, 2003:47-190) entre os participantes e, de alguma forma, participá-las do
encontro, como enfatizamos acima.
Elaborações como as de Huizinga (2000) ou de Lévi-Strauss (1997) que sugerem
ser o jogo um espaço-tempo descolado do quotidiano cujas regras de desempenho são
livremente consentidas, no primeiro caso, ou uma aplicação de formas simbólicas de
disjunção (isto é, aprofundamento das diferenças entre os participantes), no segundo
caso, complementam a cena de preocupações sobre a atividade teatral figurar como um
momento. Mas estas apropriações do lúdico são muito semelhantes ao que chamo
“recorte do espetáculo”, presente na antropologia e na sociologia, que ou o definem
como momento de efervescência (ou fusão das consciências), de matriz durkheimniana
e que tem seu epicentro nos trabalhos de Jean Duvignaud (1966, 1972), ou como
relações de liminaridade controlada segundo momentos discretos do fluxo do
quotidiano, como é o caso dos escritos de Victor Turner (1982). Este corte tem o mesmo
tipo de dificuldade que têm as abordagens de Bogatyrev (op.cit) e Honzl (op.cit), que
mesmo que façam menção às fontes de significado e estruturas geradoras do espetáculo
(como a estrutura social, que é o caso de Turner, por exemplo), acabam por ocultar o
técnico-jogador e as técnicas de fazer (Gell, 1992).
Não se trata, contudo, de abordar as etapas de montagem, isto é, os ensaios de
teatro, como fenômeno indiferente ao quotidiano. Mas jogo bem jogado, e aqui
seguimos os apontamentos de Goffman, lista e atenta para aquilo que importa20 ao
encontro dos participantes a partir de dispositivos já operados fora de enquadramento do
jogo, mas com sua diferença demarcada – que é o que permite, inclusive, que o jogo
seja identificado e que seus participantes sejam encontrados. A manutenção dos
procedimentos se daria pela incorporação das regras, pela regeneração da agência
20
O que é importado, o que é gerado por correspondência e implicação.
44
possível e pelo afastamento do irrelevante para a ação. Atenta para o que funciona e o
que não funciona como conexão.
Esta fórmula que pensa mecanismos via-jogo diferencia os objetivos de jogo em
termos de interesse e em termos de agência, dado que se da primeira forma o interesse é
pensado como jogar o jogo e então “ganhar ou perder”, no segundo caso (gaming) o
jogar é pressuposto (o que sugere a inefabilidade, a naturalidade do teatro-jogo a partir
da constatação da existência do ambiente teatral, no caso) e as considerações são da
ordem do gerúndio: jogando. Trato o jogador como objetividade de jogo – está entre
jogadores que igualmente jogam - diante objetividades de jogar (subjetividade incluída),
isto é, é um participante. Contudo, como um encontro qualquer, o jogo pode acabar de
diversas formas: algumas a partir do término formal, outras por via de um acidente ou
mal sucedidos (seqüências desagregadoras) etc., nem sempre previsíveis ao play, mas
sensíveis no gaming.
Enfocar a produção de papéis, todavia, põe em cheque qualquer definição
apressada relativa à autenticidade lastrada numa divisão social do trabalho. E no caso,
como já vimos, trata-se de abordar a construção de papéis ficcionais segundo sua
técnica, cuja conseqüência ulterior é a de que não seja necessariamente “de verdade”, o
que em nada significa que a verdade e suas formas não lhe participam. A evocação deste
aspecto do ficcional em muito tem a ver com apressada definição do lúdico sugerida21,
que são duas formas de fazer coisas como se fossem outras, apresentando formas
transitórias de atuação que são elaboradas visando configurações conjuntivas
singularizadas22. O que ora interessa, portanto, são as técnicas pelas quais estes papéis,
que são como se fossem outros, são feitos e diferenciados dos demais – lembrando que
objetos de cena também “cumprem um papel”, que pode ser cenográfico, por exemplo –
21
Wolfgang Iser (1996), em um artigo de considerações sobre o fingir do ficcional chama a atenção para
os fatos de ficção, que apresenta analogias importantes para a configuração deste trabalho. Ao dissertar
acerca da relação entre o que é e o que não é ficção, nos diz: “cada relação estabelecida não só altera a
facticidade dos elementos, mas ainda converte em posições que obtêm sua estabilidade através do que
excluem. O que é excluído se matiza na relação realizada e lhe dá o seu contorno; desta maneira o que se
ausenta ganha presença.” (op.cit.:20). Ora, a definição que o sistema de atividades situadas põe sob foco
e enquadramento é uma forma de atestar a relevância daquilo que está e deve estar fora de quadro no
momento de jogo. Caso contrário, as fronteiras do que é feito neste ambiente de diferença têm sua
diferença rarefeita. Ao mesmo tempo põem em jogo os desdobramentos técnicos que permitem que ao
mesmo tempo se operem distinções importantes e uma condução que leva o não-praticante a encontrar os
objetos de arte como tais, que é o que se depreende do conceito de “convention”, de Howard Becker
(1982).
22
É então que a conjunção como se põe com se pronominal (como a si). O fato de se conjugar com o
pretérito imperfeito – de um tempo de outrora que não bem se concretiza; como se fosse – só reforça o
horizonte transitivo do problema.
45
e, tão importante quanto, quais os recursos utilizáveis para que possamos encontrá-los o
que exige que se dê voz ao que é feito das luzes, da direção, dos endereços, dos números
telefônicos, do calendário, etc.
Não que se vá constatar que “uma bola amarela pintada num fundo azul-bebê é
um sol pintado na parede com os traços de Van Gogh e as cores de Edward Munch”
(como me foi informado ter ocorrido), mas de presenciar e descrever os procedimentos
– conversas, experiências, leituras, repetições, anotações – pelos quais se chegam até ela
e como é que esta forma é considerada suficiente para a montagem de um certo
espetáculo teatral, cenas que geram e regeneram cenas. É óbvio que o objetivo é montar
a peça, mas este objetivo em nada revela sobre como se dará o procedimento tomado
como suficiente. Não se fará qualquer genealogia filológica da personagem Hamlet, mas
sim como o corpo de um ou mais atores chega a uma presença que é um Hamlet, ao
mesmo tempo em que é um ator com outro nome e isto se possa saber.
1.4. Os primeiros passos e algumas situações
Sou morador da cidade do Rio de Janeiro desde 2003. Não surpreendente, meu
local de nascimento e as demais cidades onde morei não impediram nenhum contato
com o teatro desde cedo. Não sou carioca. A primeira vez que assisti a uma peça de
teatro eu tinha por volta de 4 anos, se não me engano, quando ainda era morador de
Campinas. Fui levado pela mão de minha mãe para assistir no Teatro Castro Mendes a
uma adaptação infantil de Alice no país das maravilhas protagonizada por Myriam Rios
num espetáculo, segundo lembro, no qual tudo era prateado. Minha mãe, na época,
soube da chegada da peça à cidade por via de jornais, me informou por telefone e, como
tantas outras pessoas, considerava este tipo de iniciação infantil às artes algo importante
– quanta diferença com tanto do que se passou com a relação entre o teatro e seu
público não muito tempo antes. O teatro pode ser parte da educação infantil, o que está
longe de ser uma realidade perene. Daí por diante, minha convivência com o teatro
ocorreu por aulas, condução escolar para novos espetáculos, cursos e atividades como
ator amador que, no caso de serem somados, fazem a monta de uns 10 anos de atividade
pedagógica.
Minha prática como morador do Rio de Janeiro é bastante mais recente, mas
muito mais intensa e que teve como colégio preparatório viver em outras cidades que
46
pouco me preveniram, por sua vez, sobre a experiência das muitas dimensões da
Avenida Rio Branco. Embora soubesse da máxima de “olhar para os dois lados antes de
atravessar”, vi que a Av. Rio Branco tinha mais lados que um número dois pudesse
agüentar. Mas o fato geométrico de a rua ter ao menos dois lados sem dúvida me
permite novas deduções. Ressoavam, ao mesmo tempo, as palavras sobre a vida mental
nas grandes cidades, tornadas um risco sensível logo após a saída da estação de metrô
do Largo da Carioca, que está no mapa, mas ainda não fazia sentido como lugar. Era um
ponto num risco num mapa cujo único preparo fornecido era a de um percurso possível.
Diante destas peculiaridades posso dizer que sou qualificado como nativo. Há
condições de eu ser meu próprio informante. Desde os mecanismos de encontro até as
formas práticas de saber o teatro tem aqui representação. Bastaria, portanto, eu decidir o
que fazer, isto é, finalmente escolher com quem e quando realizar uma pesquisa de
campo, ou simplesmente recorrer a minha biografia. Contudo, além do já apontado
sobre as dificuldades da segurança ontológica das etnografias em meio próprio, há mais
algumas dificuldades que considero importantes, como: a) dada minha proposta de
pesquisa original, eu deveria acompanhar um trabalho qualquer do começo ao fim que
como veremos, não é bem um estudo de caso, o que deve coincidir entre um tempo
hábil meu e um tempo próprio para o trabalho dos atores; b) as várias alterações que o
teatro realiza acerca de sua definição – e aqui surge uma nova aporia, pois há problemas
conceituais e de transmissão de imagens – que dificultam basear qualquer foco de
trabalho em uma escolha pessoal, mesmo que objetiva; c) a definição por sua vez é,
hipoteticamente, resultado da própria rede de encontros e fazeres que eu me proponho a
descrever, o que evoca permitir que as tensões constituintes me guiem sobre os
problemas que se reservam a quem faz teatro. Diante disso, e munido com o que muitos
amigos, colegas e professores tinham conhecimento adquirido de uma ou outra faceta
do teatro, me permiti ouvir propostas sobre o que fazer e a quem procurar, como já
relatado.
Por falta de disponibilidade – cumpria quantidade considerável de créditos das
disciplinas obrigatórias – não poderia simplesmente dispor de uma quantidade enorme e
inconstante de tempo para uma pesquisa de campo. Assim, me permiti simplesmente
assistir e tentar conhecer algumas pessoas que constituem o que é chamado meio
teatral – o que me leva mais uma vez a supor que neste meio vivem seres
suficientemente singulares, mas profundamente integrados ao tráfego que gera
caminhos os mais diversos que perfazem as cenas urbanas da cidade do Rio de Janeiro.
47
Ao invés de perguntar sobre quem pesquisar, pedi informações sobre quais peças eu
deveria assistir antes que viesse a escolher. O tempo despendido nesta operação de
sorteio sugere algo como um banho-maria necessário para acompanhar alguns ritmos
diferentes, como o da espera antes dos espetáculos, as diferentes recepções em cada
sala, e da composição do público tal como ela se dava aos olhos.
Desde o princípio todos estes informantes, aqui um tanto sem nome, apontavam
peças e endereços que se firmaram aos poucos como referências de campo. A visita
repetida às peças, eventos e debates, culminaria hipoteticamente em encontros
igualmente repetidos propiciando uma ou outra conversa. Mas ao contrário do que vi
acontecer, a variedade de pessoas era suficientemente constrangedora a esta abordagem,
dada a combinatória necessária para que houvesse qualquer coincidência razoável. Fiz
valer qualquer evento fortuito seguindo somente uma restrição e regra, a única que
minha agenda permitia: seguir rumo ao teatro. Mas não só quando havia peças de teatro
em exibição no exato momento em que eu estivesse presente.
Um problema que escapa às considerações usuais sobre a vida teatral, com
exceção do registro de alguns diários autobiográficos, é que estes edifícios possuem
uma vida administrativa operante mesmo em dias em que não há espetáculo e que, ao
mesmo tempo, há espetáculos que ocorrem em teatros que não são teatro, como é o caso
do teatro de rua. O teatro João Caetano (Praça Tiradentes, s/ nO., Centro), localizado no
centro da cidade do Rio de Janeiro, a menos de um quarteirão da instituição que me
selecionara para uma vaga de seu Programa de Pós-Graduação, tem como programação
de atividades shows musicais populares, isto é, acessíveis até para quem não pode se
comprometer a gastar dinheiro nenhum com espetáculos, muito divulgada como
atividade cultural, sugerindo que qualquer evento neste nexo espaço-tempo, acontece
como forma de cultura o que, às vezes, soa à palavra indistinta. O teatro Cacilda Becker,
no Largo do Machado, tem boa parte de sua programação devotada à dança, apesar de
Cacilda Becker. Ligar nome e evento específico dificilmente me permitiria atravessar
parte da cidade após uma aula qualquer, e atingir a esmo qualquer evento que
coincidisse com o que buscava. É necessário saber coincidir tempo, espaço e ocasião na
busca, coisa que não fiz sozinho. É articulando todo um sistema de referências que se
permite este tipo de encontro entre pessoas que não se conhecem, mas se coordenam em
prol da assistência, uma forma específica de gaming.
Assistir na atual prática de espectadores disseminada denota uma certa atenção
visual-auditiva, isto é, da prática de ir-ver algo ou de se por diante uma tela de projeções
48
audio-visuais, como o cinema e a televisão, com fins de experiência do tipo we
rationale. Ter assistido algo evoca esta modalidade. Contudo, conota uma operação
sutil, mas nada invisível, e que é da gênese do problema da arte burguesa: a assistência a
qual o público devota ao artista ao pagar a entrada, por exemplo. Se esta relação pode
parecer espúria, deixa de sê-lo quando remontamos a história da arte até a fundação do
público burguês. A biografia sociológica de um Mozart que envelheceu pobre na falta
de público pagante, por Elias (1995), a configuração histórica do ofício do ator e a
dissolução das regras de corte descritas por Jean Duvignaud (1972) e a gênese histórica
do que Bourdieu chama de campo artístico de consumo circular (2003) – além do fato
de “assistir” e “assister” (em francês) serem cognatos, inclusive em sua polissemia, e de
em inglês “to assist” ser referente somente à piedade, isto é, à ajuda – apontam
elementos suficientemente fortes para sustentar esta hipótese, que fica um pouco menos
fraca. Isso porque se estabelece ao ato físico-auditivo uma forma de compleição moral
que destina ao que se assiste uma gama complexa de agências que situam as relações
partícipes de formas como a piedade e compaixão que, no limite, definem uma
modalidade de circulação de valores e produtos, assim como os horizontes de futuro e
de sociabilidade se entrelaçam no simples ato de se impor um espetáculo digno de
pagamento, isto é, de assistência23.
Assim sendo, passei o ano de 2006 e o de 2007 assistindo peças de teatro,
buscando sempre comprar ingressos antecipadamente e chegando com uma ou duas
horas de antecedência para ver o que se passa; fui a debates e participei de eventos nos
quais chegava igualmente cedo. Assisti por volta de 20 espetáculos diferentes, alguns
destes mais de uma vez, com o intuito de não somente aprender a participar dos
encontros, mas também entender como acompanhar uma temporada coisa que,
confesso, ainda não sei fazer. Uma temporada é tanto um ano quanto um período de
apresentação de um mesmo grupo num mesmo lugar com uma mesma peça com
prorrogações e encerramentos que se alternam, sendo a base da alternância o previsto
em programações. Há ao menos dois calendários: o da instituição das vias de teatro e o
da apresentação de espetáculos. Ao mesmo tempo, a identificação dos nomes e do que
se faz especificamente apresenta critérios de distinção próprios do conhecer pessoas que
23
Para a investigação do extrato moral das formas de relação espetaculares e suas conexões entre justiça e
piedade, vide Boltanski (1993); para uma revisão histórico-sociológica das formas de relação entre
dignidade, comunidade e pagamento, vide Castel (1998); para um ensaio sobre as conseqüências objetivas
do entrelaçamento entre pagamento, ethos e liberdade, vide Simmel (1987:345-373).
49
fazem teatro (Silva, 2004) e, ainda que posto num prisma exclusivamente dedicado a
uma abordagem sobre formas de hierarquia social (Bourdieu, 2007), não deixa de
imprimir outras zonas de efeito que permitem a correspondência entre pessoa e evento
específico.
A maior parte dos teatros/edifícios que freqüentei durante a pesquisa se
localizava ou no Centro da cidade ou na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Esta
circunferência tem por critério uma economia de tempo e comodidade concernente à
relação moradia-compromissos obrigatória para com o Programa de Pós-Graduação
com o qual tenho vínculos, e que ainda assim me permitiu à prática de assistência uma
gama razoável de escolha de espetáculos a serem contemplados24. Assim, o SESC de
Copacabana e o teatro Villa-Lobos (Av. Princesa Isabel, 440, Copacabana – Zona Sul),
o teatro do Leblon (Rua Conde Bernadotte, 26, Leblon – Zona Sul), o teatro Poeira (Rua
São João Batista, 104, Botafogo – Zona Sul), Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes –
Centro), a Casa de Cultura Laura Alvim (Av. Vieira Souto, 176, Ipanema – Zona Sul), o
Centro Cultural Telemar – hoje Oi Futuro – (Rua dois de Dezembro, Flamengo – Zona
Sul/Centro), o Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66, Centro) e o
Teatro Nelson Rodrigues do Caixa Cultural (Av. República do Chile, 230, Centro)
foram locais privilegiados por apresentarem espetáculos que ora satisfaziam minha
curiosidade como espectador, ora satisfaziam os critérios de indicação, oral ou impressa.
Essas indicações participam de um regime de sentidos muito extenso e que
valeria, por si só, todo um investimento de pesquisa, dado que não se trata somente de
uma relação linear de um telégrafo eficiente que consegue, absolutamente, dar seu
recado. Há uma série de problemas importantes acerca da possibilidade de levar adiante
uma indicação que evoca momento, reputação do indicador, o conhecimento de quem
ouve sobre os movimentos e endereços, a fidelidade da informação transmitida, etc. Ao
mesmo tempo, este jogo que soa absolutamente contingente tem uma outra parcela
24
O Guia OFF de Teatro, que é distribuído gratuitamente todos os meses nos teatros e é editado pela OFF
Produções culturais, lista 68 teatros na cidade do Rio de Janeiro, dos quais 58 se localizam no eixo Zona
Sul – Centro (o que não é bem um eixo). Independentemente da formação teatral ter se dado em escolas
diferentes que opõe lógicas de formação diante o mercado de trabalho a partir do binômio Casa de Artes
de Laranjeiras/Martins Penna, como bem marca a argumentação de Silva (op.cit.), a convergência para
locais diante o ofício teatral é clara, excetuando trabalhos que se dão fora de casas de espetáculo, que é
um dos problemas que orientam esta monografia. Certamente esta diferenciação Zona Sul – Centro está
longe de ser suficiente, mas também está longe de ser irrelevante, como veremos mais adiante. Vale notar
que os dados do guia OFF de espetáculos é numericamente discrepante dos oferecidos por Silva
(2003:228) a partir do Centro Técnico de Artes Cênicas/FUNARTE, que só para a região considerada
contabiliza 85 teatros. Ignoro as razões desta discrepância.
50
importante que excede os movimentos de conversa que são os artifícios de saber
articular e corrigir informações, de confirmar dados, de retransmitir os elementos na
situação adequada, que são problemas relativos à memória, aos endereços e às extensões
temporais (dos ciclos repetidos das semanas, dos anos que seguem, do tempo de
espetáculo). Esta gama de coordenadas e implicações também participa do ato de
conhecer pessoas25, que sugere, inclusive, que haja uma curiosa relação entre
assistência, vizinhança e o conhecimento de pessoas que dá forma, jurídica inclusive, ao
processo histórico das relações de produção, isto é, do trabalho. Não seria diferente com
o teatro, principalmente a partir do momento em que atuar é também um tipo de
atuação profissional (Castel:1998).
Um segundo ponto é de suma importância aqui, pois do assistir desdobram-se
problemas de visibilidade e acústica: é sobre perspectiva linear e das formas de apelo
que tornam a relação de pagamento profundamente complexa, inclusive no que diz
respeito ao financiamento das atividades por pessoas (físicas e jurídicas) em suas mais
diversas formas: do apoio cultural ao patrocínio, dos ingressos pagos aos convidados.
Visibilidade e assistência constituem um par importante a esta altura, pois culminam em
algumas das instituições teatrais propriamente fenomenotécnicas e, por conseqüência,
alguns dos desafios que a criatividade artística deve confrontar.
Os nomes de teatro, índice de endereçamento, por sua vez, são importantes para
que possamos perceber dois elementos centrais para que algo da vida teatral emerja. Em
primeiro lugar, a presença de nomes próprios como forma de gerar referência própria do
batismo de prédios é um duplo modificador, pois dá nome a edificações e forma
homenagens ou aponta condutas ético-estéticas, como o fazem também nos nomes de
condomínios, parques, praças e palácios. Os atos de nome, forma de gerar referência,
fazem tanto pela possibilidade de emitir coordenadas num mapa, como quando se
procura um endereço, quanto nos permite relatar uma história que repita o nome dado.
Há também localidades que têm como nomes uma referência a uma segunda
coisa, a uma instituição que faz do estabelecimento que visito para assistir uma peça um
ente beneficiado. O SESC, o Banco do Brasil, a Telemar (propriedade da Oi, de
telefonia celular) e a Caixa Econômica Federal não são público-espectadores, mas
prestam assistência. O fazem, antes de qualquer interesse ou dever (são duas estatais,
uma agremiação comerciária e uma empresa privada), por que podem. Fazem parte do
25
Para uma investigação da moral implicada no ato de compartilhar e indicar situações de assistência,
vide Boltanski (1999:cap. 03)
51
regime de possibilidades das pessoas: pessoas podem fazer coisas e pessoas com coisas
e pessoas. No caso são todas pessoas jurídicas, agências que fazem o mapa das artes,
como veremos. São, fundamentalmente, efeito de agência impessoal.
O que os nomes de teatro/edifício oferecem neste momento é a diferenciação de
nomes próprios, de nomes de pessoas, ou de nomes artísticos, não diferenciados por
qualquer plano jurídico, mas pela constituição da relação fama/anonimato. É possível
ser anônimo mesmo tendo um nome. E o nome anônimo é um problema aos que querem
ser assistidos, uma vez que se não é um nome importante é irrelevante, indiferenciado,
por quem se há de manifestar assistência, isto é, quem é digno? Qual é a diferença entre
Heitor e Villa-Lobos? Não imagino qualquer medida para esta pergunta, que é absurda,
mas um edifício grande que comporta três salas de espetáculo (uma delas de dimensões
suficientes para comportar uma quantidade de pessoas contabilizadas como uma das
melhores bilheterias de 2006; vide figura 01) e uma bela escadaria em endereço nobre, a
dois quarteirões da praia de Copacabana permite afirmar que uma diferença possível,
além da composição alfabética, é o batizado de um teatro/edifício. Ao que parece, VillaLobos é mais diferente (distinto?) do que Heitor. Mesmo morto, há poder de ação por
via de seu nome, que classifica o endereço em um plano de relações.
Fig. 01. Planta Baixa da sala Heitor Villa-Lobos (463 lugares); Fonte: site FUNARJ
52
1.5. O sujeito da ação, problemas de agência.
No capítulo 5 de O pensamento selvagem, Lévi-Strauss se pergunta, após
haver demonstrado a impossibilidade de qualquer constante substantiva entre grupos
sociais e grupos naturais na confecção dos totens, sobre os recursos de analogias
possíveis num sistema global de referência que possam operar contrastes que, no
caso, definem séries naturais e séries culturais. Considerando o sistema classificatório
uma forma de mediação lingüística, a diferenciação entre categorias abstratas e
categorias nominais oferece o horizonte desafiador que é o de aproximar o abstrato
ao cultural e a contraponto, o nominal oferece a vertente natural. No entremeio
semiológico, o programa lévi-straussiano segue:
“O fato significativo é menos a presença, ou ausência, deste ou daquele nível
que a existência de uma classificação “de passo variável” que fornece ao grupo que a
adota, sem mudar de instrumento intelectual, o meio de se colocar “no ponto” em
todos os planos, do mais abstrato ao mais concreto e do mais cultural ao mais
natural.” (1997:156)
Se por um lado os problemas de totemismo soam profundamente distantes da
realidade etnográfica que investigo, e o são, por outro, figura num dos dilemas da
especificação por nomenclatura que apontam ao endereço de perspectiva wayfinding
o tipo de operação que permite “passar da unidade de uma multiplicidade à
diversidade de uma unidade.”(id.ibid.:157) que, no conjunto das especificações faz
dos utensílios de encontro uma apresentação de suas linhas constituintes, algumas
delas forças de distinção social, manifestação das descontinuidades do real tão
expressivos na obra do antropólogo. Mas é difícil identificar sob quais séries um
nome próprio aplicado a uma classe de edificações permite distinguir nos sistemas de
diferenciação entre análogos das séries de natureza e de cultura. Sabendo que
natureza e cultura não dormem em noite tranqüila, o que me importa aqui é o valor
operatório dos nomes próprios como definidores de locais que, seguindo ainda Lévi-
53
Strauss, destotaliza a espécie classificatória e levanta aspectos parciais do indivíduo
lógico que evoca, não precisando muito para sugerir formas dinâmicas de conexões
parciais (Strathern, 1991).
O caso de um teatro como o Cacilda Becker ou o Villa-Lobos traz à tona uma
dificuldade e uma constante a respeito das variações sobre os nomes próprios que,
por fim, parecem articular categorias as quais não pertencem e que são subordinados
aos sistemas que articulam. O teatro, na forma de edifício, não é a pessoa que evoca,
mas na manutenção da função de apresentação, sendo a primeira o próprio edifício a
ser explorado em suas linhas arquitetônicas ou em sua beleza relativa, há de se erguer
uma analogia de efeito característico de uma homenagem. Nomear, caso algum
sentido da palavra consagração faça sentido efetivo, em algo tem a ver com o tipo de
correlação metonimizante que faz do teatro nomeado mais próximo ou mais afastado
do cânone evocado.
“Quando uma personalidade morre, o que desaparece consiste numa síntese
de idéias e de comportamentos tão exclusiva e insubstituível quanto a operada por
uma espécie floral a partir de corpos químicos simples usados por todas as espécies. A
perda de um parente ou de uma personagem pública – a homem político, escritor ou
artista – quando nos atinge o faz, portanto, da mesma maneira com que sentiríamos a
irreparável privação de um perfume, se a Rosa centifolia fenecesse. Desse ponto de
vista, não seria falso dizer que certas formas de classificação arbitrariamente isoladas
sob o rótulo do totemismo conhecem um uso universal: entre nós, esse totemismo
apenas se humanizou. Tudo se passa como se, em nossa civilização, cada indivíduo
tivesse como totem sua própria personalidade: ela é o significante de seu significado.”
(Lévi-Strauss, op.cit:239)
Esta passagem evidencia dois problemas sobre os nomes de salas de
espetáculos próprios de artistas falecidos de vulto. O primeiro é da ordem da aliança
ascendente que designa formas arquetípicas, ou fontes privilegiadas, de agência
54
artística fundada na elaboração de pureza artística do tipo “Villa-Lobos, o grande
compositor modernista brasileiro” que, a despeito dessa face, parece ser irrelevante
ter sofrido de gota ou apresentar qualquer traço desprezível, o que pode ser central
para uma história entre o sofrimento físico e as artes. Vale mais ser modernista ao
deixar com que as linhas do edifício correspondam com a sua fonte pessoal, pessoa
esta o relativo Heitor Villa-Lobos. A pessoa se torna um tipo, isto é, se apresenta em
parte de si, somente se correspondente ao arquétipo. Mas a relação é mais complexa e
diz respeito aos artistas que têm acesso efetivo a casa, ao montante do financiamento
necessário e ao tamanho mínimo de espetáculo no que tange à platéia esperada.
Assumir um espetáculo num teatro como o Villa-Lobos significa se alinhar com
necessidades de divulgação, formas de linguagem próprias a encontros de grande
porte, enfim, cumprir uma série de obrigações pragmáticas que apresentam que parte
de Villa-Lobos o teatro que segue existindo continua a portar. Possivelmente,
permite a aplicação do adjetivo “grande”. O desrespeito ao complexo espaçotemporal, especialmente se há vínculo entre venda de ingressos e tentativa de lucro,
culmina em fracasso. Há de se produzir grandezas compatíveis.
(Figura 02.Teatro Heitor Villa-Lobos,
Av. Princesa Isabel, Copacabana,
440; “Construção de arquitetura
moderna, assinado pelo arquiteto
Rafael Perez, realçando a linguagem
do purismo (anos 60 e 70), com uso
do concreto armado aparente” – texto
e imagem: site da FUNARJ)
O segundo problema apontado é o da humanização totêmica, que abre espaço
para que linhagens de trabalho, ou ascendências da ordem da afinidade ou aliança,
possam ser pensadas, tanto nos termos de uma influência fantasmagórica no sentido
aplicado por um Harold Bloom (2002) e seu “Shakespeare demiurgo da humanidade”,
55
até no que diz respeito a mecanismos privilegiados para e na mediação, que operam
situações de negociação que convergem diferentes momentos na constituição de
modos de tempo futuro, como do tipo de evocação de autores e dramaturgos que dão
base a orientações quanto aos trabalhos em realização: as produções.
1.6. O primeiro encontro: coordenadas
Dos dias 3 a 27 de agosto de 2006 o teatro Nelson Rodrigues hospedou, em curta
temporada, a peça Avenida Dropsie, cuja montagem a Sutil Companhia de Teatro
realizou, dirigida por Felipe Hirsch, fora razão de alvoroço na imprensa especializada, o
que culminou em uma série de apresentações com a casa cheia. Alguns elementos eram
destacados: tratava-se de uma adaptação26 de uma graphic novel27 de Will Eisner. O
cenário era grandioso, o elenco conduzia o ritmo das cenas com precisão e tranqüilidade
e a cenógrafa Daniela Thomas fazia, literalmente, chover no palco28. Como muitos
26
Se o presente esforço em apresentar a abrangência da linguagem das técnicas soa a exagero, a palavra
“adaptação” carrega uma história particularmente sugestiva dado que ela marca profundamente o debate
sobre a evolução das espécies – em especial sobre vulgatas do darwinismo – além de apontar para a
recente reformulação eletro-eletrônica dos recursos de hardware, que já denotou simplesmente
ferramentas, e hoje participa do tipo de recurso de validade adaptativa dos plugs, da voltagem e dos tipos
de mecanismos de junção/conexão. Se isto ainda soa um problema falso, basta retomarmos a história do
teatro moderno para percebermos que adaptar não é uma atividade que se valha por si só, sequer como
recurso. As poéticas que antecedem a modernidade não fazem menção expressiva deste tipo de atividade
(vide Carlson; 1997) tanto porque não faria sentido. Contudo, apontarmos para o jogo adaptativo que o
ofício teatral se permite, que se caracteriza por um enredo das extensões possíveis, a presente
caracterização de procedimentos teatrais tem mais chance de credibilidade. Afinal, parece que uma revista
em quadirnhos, unidimensional pousada num tablado, mesmo que no proscênio, não sobreviveria. Como
segundo desdobramento, vale apontar a suscetibilidade das artes a serem submetidas a análises
organicistas e vitalistas. A manifestação do simbólico não se encontra divorciado das fontes orgânicas de
energia e movimento, lembra-nos a psicanálise, o formalismo, o bergsonismo, o idealismo, o romantismo.
27
Revista em quadrinhos de temática considerada literária. Esta modalidade, cujo criador é exatamente
Will Eisner (autor de Avenida dropsie), é considerada a fundação de uma nova linguagem no mundo dos
quadrinhos pelo teor de suas histórias, matéria de meninotes até o pós-guerra.
28
Todas estas informações estão presentes na filipeta publicitária da peça, objeto sempre distribuído aos
que a assistem. Este papel, nem sempre dobrado, contém inúmeras informações que sugerem a circulação
dos seres que constituem a paisagem teatral. No caso, uma fotomontagem com os atores devidamente
caracterizados e em cena postos juntos ao título da peça. Dentro da dobradura um extenso texto sobre
Eisner escrito por Felipe Hirsch (o diretor), além de 14 parágrafos copiados de 14 diferentes fontes
jornalísticas enaltecendo as qualidades da presente montagem. Nas costas da dobradura consta a ficha
técnica (quem fez e responde pelo quê), o apoio cultural (que também é um apoio financeiro, mesmo
quando não envolve dinheiro; pode ser uma refeição gratuita que implica no adiamento de gastos) e
detalhes para contato caso algum leitor queira mais informações concernentes ao trabalho ou aos
trabalhadores envolvidos.
56
consideravam o evento importante, e eu sou admirador de Will Eisner, assisti-os. Foi
meu primeiro encontro com minha primeira informante.
Carmen era então aluna da graduação da UNIRIO. A conheci na fila da
bilheteria do teatro Nelson Rodrigues. Bem a tinha percebido e ouvi sua conversa com a
bilheteira. Perguntou quais bons lugares permaneciam disponíveis, uma vez que a peça
vinha de divulgação importante sugerindo haver concorrência pelos assentos. Pediu esta
informação por não conhecer a sala, condição a qual compartilhava. É via de regra que
um dos valores constitutivos da ida ao teatro de palco italiano é a visibilidade do que se
apresenta, o que transforma um bom lugar em um problema geométrico.
O esquema reproduzido nas salas de espetáculo que segue a cena italiana o faz
repetindo as constantes cúbicas de elaboração de profundidade do palco e do cone
projetado para seu lento estreitamento, permitindo à cenografia alguns artifícios de
illusio, isto é, formalizar distâncias entre objetos como se os objetos estivessem
separados pela mesma distância. Mesmo não usufruindo as possibilidades de
atualização desse jogo de armar, ele se encontra disponível. Bastaria, como sugeriu
Diderot (1986[1758]), dispor as peças e formar um quadro. Considerando a relação
privilegiada entre fileiras de cadeiras distribuídas uniformemente e um ponto de fuga
que contemple igualmente as extremidades do bloco de assentos, o ponto de fuga se
situa ao centro da razão bloco de cadeiras:palco29, caso se considere o proscênio como
a hipotenusa de um triângulo retângulo isósceles, figura plana do cone tridimensional. A
referência ao sistema que coordena a definição do espaço representativo segundo
formas geométricas precisas que
define o campo de visão segundo universais de
profundidade e afastamento, assim como em sua disposição e proporção adequadas à
posição do observador que induz a distância real entre os objetos a partir destas
coordenadas constantes é melhor contemplada na seguinte passagem de Panofsky
(1993:54):
“A descoberta do ponto de fuga, enquanto “imagem dos pontos infinitamente
distantes de todas as ortogonais”, constitui, num determinado sentido, o símbolo
concreto da descoberta do próprio infinito. Porém, outro aspecto relevante desta
29
Para uma história da absorção da cena à italiana na arquitetura do teatro, vide Duvignaud (1966:216232) e Kernodle (1936). O livro dirigido por Daniel Couty e Alain Rey (1981) apresenta uma iconografia
rica e indispensável. Para uma absorção das proporções e coordenadas, basta um exercício com a figura
01.
57
quadro reside no sentido totalmente novo que confere ao plano de fundo enquanto tal.
Este plano deixa de ser apenas a superfície inferior de uma “caixa espacial”, fechada à
direita e à esquerda, cujos limites são definidos pelos cantos do quadro. Torna-se a
superfície do fundo de uma faixa de espaço que, embora esteja delimitada atrás pelo
tradicional fundo dourado e, na parte, pelo plano do quadro, se pode considerar como
um prolongamento arbitrário para qualquer dos lados.”(...) “O quadro transformou-se
numa simples “fatia da realidade”, no sentido em que esse espaço imaginado se
propaga em todas as direções, ultrapassa o espaço representado, sendo, exactamente, o
caráter finito do quadro a chamar a atenção para a infinitude e continuidade do
espaço.” (id,ibid.:57).
Poltronas numeradas permitem toda uma ordem de decisões e antecipações de
espaço e zonas de interesse, perspectivas do inédito – ou da repetição, quando se assiste
duas vezes ou mais na mesma sala, em um registro que liga número, letra (coluna e
linha, respetivamente) à ambiência fora de lugar por via de quadrantes. Comprar o
ingresso numerado pode se transformar em um exercício de memória do geômetra, que
no caso se faz simultâneo ao/à comprador(a) ou ao (à) bilheteiro(a), mas sempre
operando pela regra dos quadrantes, tão comum na indexação cartográfica. Não por
acaso a bilheteira, quando diante do hiato de decisão de Carmen, mostrou um mapa das
cadeiras disponíveis (as não disponíveis tem seus números destacados e colados no
bilhete do comprador se fazendo ausentes no mapa, dado que já atualizados na posse
temporária do comprador) apontando para as posições de melhor visibilidade.
As cadeiras numeradas são eixos de ordenadas e abcissas nem sempre
correspondentes para o comprador do bilhete, que pode não dominar o acervo técnico
necessário (é enorme a quantidade de pessoas que se perdem ao procurar seus lugares,
que são alugados, isto é, de posse temporária), mas é instrumento sempre disponível à
compra. Os lados pares e ímpares informam por sua vez que o teatro possui uma metade
– no caso da sala Nelson Rodrigues –, uma divisão simétrica de colunas (ímpares à
direita, pares à esquerda) cuja convergência do 1 e do 2 culminam na coluna do centro
de qualquer linha alfabética, a precisa convergência que situa os bons lugares, próximos
da representação simétrica do infinito. Uma vez memorizado, é possível decidir o lugar
que se quer à distância, sem vizinhança, como por telefone, por exemplo. Mas nem
Carmen nem eu conhecíamos a sala. De quê adianta um mapa se ele não corresponde a
qualquer trajetória conhecida? A bilheteira nos serviu de guia. Há de saber a visibilidade
58
que um quadrante oferece, especialmente quando todos os lugares centrais – os
melhores segundo a regra da perspectiva linear, fundamento das salas modernas de
teatro – estão ocupados pela seleta ocupação de espectadores convidados, como fora o
caso de Antônio Fagundes, que é tanto um ator quanto um endereço; Teatro Antônio
Fagundes. Esta cena é quase uma matryoshka. Quase.
Carmen comprou o ingresso segundo a indicação da bilheteira. Eu havia visto a
numeração. Pedi o ingresso ao lado, dada a garantia reservada à Carmen. Paguei metade
do valor devido à carteira de estudante, o que me permite despender metade do
sacrifício de um cidadão ordinário – esta é uma daquelas situações em que há o cidadão
extra-ordinário. Saí da bilheteria com o ingresso da poltrona J19 nas mãos, que me
custou R$15,00 (pouco mais que 1% do que disponho mensalmente para a pesquisa via
CNPq), e me encaminhei para a Avenida Chile. Logo na saída do teatro, recostada na
parede, estava Carmen, com um mapa na mão. Rodava-o estendido diante os olhos. Ao
responder minha oferta de ajuda, disse estar procurando o caminho para o Centro
Cultural Banco do Brasil e encontrava dificuldades. É moradora de Niterói. Não sabia
encontrar o caminho.
O mapa em questão é de distribuição gratuita. Porta o título Mapa das artes Rio
de Janeiro, editado em São Paulo com tiragem de 30.000 exemplares (10.000 em
inglês). Não obstante, este mapa datado de 2004 teve uso em 2006. Esta informação é
relevante exatamente porque o objetivo fundamental deste instrumento não é de
simplesmente apontar caminhos possíveis na cidade do Rio de Janeiro – lembrando que,
em geral, mapas urbanos apontam caminhos rodoviários e linhas ferroviárias, e não para
pedestres, o que geraria um tipo de registro um tanto diferente; para ir do Largo São
Francisco de Paula até o teatro Nelson Rodrigues existem atalhos, coisa que mapa
algum se esforçaria por... mapear. O mapa em questão buscava também apresentar ao
usuário caminhos específicos para: a) museus e centros culturais (identificados por
pontos azuis), b) galerias e escritórios de artes (pontos cor-de-rosa), c) espaços
institucionais (pontos verdes) e d) ateliês, serviços e outros (pontos cor-de-laranja),
embora registre somente vias de médio e grande porte, salvo os detalhes de ampliação30.
Cada um dos itens é acompanhado por um texto descritivo sobre as instalações,
serviços prestados e exposições em cartaz. Estas que são categorias impressas no mapa
30
Há disponível uma versão on-line do mapa: www.ferstman.com . É sugestivo que a apresentação de um
sistema de endereçamento que é um mapa de uma cidade, ou de parte dela, esteja disponível num sistema
de endereços ausentes da necessidade de vizinhança. É tanto o caso dos mapas quanto o acesso eletrônico
de rede.
59
com códigos de cores que apontam analógica e criteriosamente em pontos (a menor
unidade geométrica euclidiana) o lugar mapeado referente à classe de lugar apresentam
um mecanismo muito usual; os quadrantes, tal como nas cadeiras cativas do teatro
Nelson Rodrigues, para o caso de não haver um guia sequer, wayfinder.
Colunas em alfabeto, linhas em números, apresentando o Centro da cidade
(composto também pela Lapa, Santa Teresa, Glória e a Saúde) em um outro mapa
ampliado no canto superior esquerdo. O mapa ampliado (classificado como DETALHE,
em vermelho) seria uma repetição perfeita não fosse a ausência do código de cores que
caracteriza o mapa integrado da cidade, ausência suprida pela ampliação. É com um
mapa de 2004, que tem como ênfase topográfica o circuito das artes plásticas, que
Carmen procurava o Centro Cultural Banco do Brasil (localizável em D1, 69).
Retomando: Centro Cultural Banco do Brasil, rua Primeiro de Março, 66,
Centro, D1/69. Sem procurar induzir qualquer raciocínio de Carmen, não é possível
encontrar qualquer marca específica do tipo VOCÊ ESTÁ AQUI que tanto fora possível
ver nos mapas fixados em tripés nos shopping centers, hoje extintos em prol da lógica
da circulação de consumidores. Diante de um mapa é preciso saber tanto de onde se
parte quanto para onde se vai e por qual caminho, assim como por quais meios se
cumpre o trajeto, dado que estes meios constrangem ou impedem caminhos possíveis.
Os riscos do caminho também são adequados, mas riscos não se fixam.
Como disse, o mapa das artes é um mapa das vias de automóveis, metrô, bonde e
trem. Carmen se encontrava a pé. É impossível conseguir diferenciar, a partir do mapa
exclusivamente, uma praça menor (como a do Buraco do Lume) de um conjunto de
edifícios. É preciso que o usuário esteja apto a articular, se pôr em correspondência,
com as atividades de localização que impõem, inclusive, saber articular o sem número
de pontos cegos que fazem do mapa um mapa, e não o próprio caminho. Dir-se-ia se
tratar de uma representação, mas representação de quê? O mapa está no lugar do
caminho ou de algo distinto? O que o mapa representa e, talvez tão importante quanto
isso, quem ele representa? E mesmo sabendo quais são as regras de funcionamento do
mapa, como Carmen pôde se perder nele? Não fora nele que se perdeu, mas no meio do
caminho entre mapa e paisagem.
Não seria absurdo dizer que o mapa é um objeto com funções identificatórias,
propiciando ao usuário a possibilidade de encontrar lugares sem nunca ter se deparado
com ele. Isto significa que, diante critérios comuns de referência e proporções, nele se
vêem fixas relações de lugares sem serem a configuração mesma de espaços em regime
60
de co-presença, sem os lugares mesmos estarem de forma alguma figurados, como a
ressalva de Gell (1985) aponta. Mas a complicação se aprofunda quando análogos
mapeados não se encontram no espaço de trânsito, como sói acontecer, o que impõe ao
usuário uma série de atitudes, lembrando que se o agente é um usuário potencial
significa que ele detém recursos que o habilitam a recorrer a este artefato. Michael
Baxandall, em seu trabalho sobre o olhar renascentista sugere o conceito de estilo
cognitivo, caro para Alfred Gell, para definir a relação das relações que se fazem ao
definir as propriedades representativas de um desenho específico. Olhando uma planta
baixa de uma torre, cuja definição gráfica se dá na sobreposição de um círculo sobre um
retângulo; nesta sobreposição o círculo está centralizado na figura, o retângulo tem nas
linhas laterais de extremidade direita e esquerda uma pequena descontinuidade regular
aos dois lados; o círculo por sua vez é descontínuo no ponto extremo direito e, nesta
descontinuidade, se liga a um retângulo interno igualmente descontínuo.
“A percepção que possamos ter dessa configuração dependerá de muitos fatores
– em particular do contexto da configuração, que no momento se encontra
voluntariamente suprimido - , mas não menos das capacidades interpretativas de cada
um, das categorias, dos modelos e dos hábitos de dedução e analogia” (1991:38)
O que, por sua vez, constituem disciplinas, formas de obediência às formas.
Afinal, as linhas brancas grosseiras sobrepostas aos polígonos acinzentados no mapa
das artes não é outra coisa senão uma variante deste problema no qual, como sugere
Gell (op.cit.), nenhuma representação figurativa toma lugar. Isso vale para o mapa das
artes na medida em que, na apresentação de proporções de uma vista aérea, sugere por
fim um sistema de perspectiva presumido, isto é, não-apresentado. A perspectiva já é
uma coisa-do-mapa. Há de se respeitar o objeto e as conexões que promove,
especialmente se sua objetividade é fruto exatamente de seu plano conectivo31.
É nesta atitude diante do mapa que delineamos dois problemas importantes para
a presente pesquisa que dão justificativa deste longo trecho sobre orientação, encontros
e endereços. Em primeiro lugar ela dá ensejo a uma abordagem particular sobre o
desencantamento do mundo, tal como Certeau (1994) nos apresenta. Em segundo lugar,
31
Sobre a conectividade da escrita e os desdobramentos propriamente dispersivos das práticas que
promovem o registro de formas da racionalidade moderna, ver Latour (1986).
61
porque nos permite ligar código e performance a partir de zonas indeterminadas de
apreciação semântica que fazem do encontro um exercício de autonomia próprio das
ações individuais, isto é, que só poderiam ser articuladas por um certo ponto de vista,
como o de Carmen perdida e o meu, oferecendo informações por via da conversa
interessada.
Se o desencantamento do mundo opera uma desarticulação entre práticas de
conhecimento científico e um sentido teleológico professado pelo mundo, tal como a
ciência como vocação em Max Weber (1993) – tese a qual não pretendo rebater - a
oferta de Michel de Certeau é de outra ordem, dado que performática. Num longo trecho
de seu livro em que versa sobre a configuração dos mapas como objetos solitários e
silenciosos – instrumentos estáveis (op.cit:235) - , afastados dos percursos (poderia
dizer purificados, no sentido empregado por Bruno Latour [1997]), Certeau culmina
numa reflexão sobre a escrita e a transformação dos espaços de locução que sua
disseminação implica. No alvorecer da modernidade, datado entre os séculos XVIXVII, a escrita ainda teria como centro a sagrada Escritura que amarra ao mesmo tempo
letra e voz, do cântico dos cânticos até a voz mediadora que faz dos “usuários” ouvintes
de uma voz habilitada para ler, própria do sacerdote. Há pouco tempo que se lê em
silêncio32:
“Ora, por razões analisadas em outra instância, a “modernidade” se forma
descobrindo aos poucos que essa Palavra não se ouve mais, que ela foi alterada nas
corrupções dos textos e nos avatares da história. Não se pode ouvi-la. A “verdade” não
depende mais da atenção de um destinatário que se assimila com uma grandiosa
mensagem identificatória. Será o resultado de um trabalho – histórico, crítico,
econômico. Depende de um querer-fazer. A voz hoje alterada ou extinta é em primeiro
lugar esta grandiosa Palavra cosmológica, que se percebe não vir mais: ela não
atravessa a distância das eras. Desapareceram os lugares fundados por uma palavra,
perderam-se as identidades que se julgava que elas recebiam de uma palavra. É
preciso guardar o luto. Agora, a identidade depende de uma produção, de uma
32
Esta que é uma afirmação de Certeau, “ler sem pronunciar em voz alta ou meia-voz é uma experiência
“moderna”, desconhecida durante milênios” (op.cit.:271), pode ser confirmada em trabalhos como os de
Roger Chartier (1998, 2001, 2003), Marshall Macluhan (1972) e Carlo Ginzburg (1987), e sugerem tanto
uma mudança complexa da concretização da ação oral, assim como no aprofundamento reificador, tal
como produção de objetividade, do horizonte da escrita.
62
iniciativa interminável (ou do desapego e do corte) que essa perda torna necessárias.
Mede-se o ser pelo fazer.”(op.cit.:228)
Não busco medir a profundidade desta citação, mas ater-me no sutil
apontamento da evidência dos fazeres necessários para a localização que Carmen não
cumpria apesar de ser versada nos métodos de aplicação dos meios necessários,
evidente pela sua educação formal. Um mapa não é um objeto utilizável sem que se
possa fazer uma leitura dele, em especial do tipo que se inscreve na forma de nomes de
ruas, fundamento chave de sua decodificação, além de ser necessária uma articulação de
relações básicas alfanuméricas e perspectiva fundando uma vista aérea simulada. Sem
isso Carmen jamais poderia abstrair qualquer noção de VOCÊ ESTÁ AQUI, no caso
evidenciado pela repetição: Av. República do Chile, tanto no mapa quanto em uma
placa de rua. Nem pensaria em fazê-lo, dado que é uma requisição do objeto (imagine
que você está voando...). Sem essa repetição o mapa seria um absoluto desperdício
utilitário diante sua lógica dedutiva. Mas ainda assim este mapa é um instrumento
razoável uma vez que ele é portador de um número de agências que inscrevem nele
somente convenções (Becker, op.cit.) de lugar: nomes de ruas, encontros de esquinas,
nomes de bairros, monumentos públicos e, obviamente, a localização precisa de galerias
e outros endereços importantes para as artes plásticas por referências a quadrantes. É um
mapa das artes, afinal.
O sistema apontado do mapa (pontos codificados por cor, tipologias de lugares
com listagem dos nomes específicos destes, desenho geométrico do entroncamento das
ruas segundo a repetição de seus nomes e esquinas, quadrantes que referendam partes de
bairro com os nomes específicos de lugares) exige que se faça leitura coordenada,
permitindo que se diga que ele representa o mesmo sistema de ruas e entroncamentos
que ajudam a gerar, quando em projetos (protótipos) arquitetônico-urbanísticos
articulam, em diferentes graus de detalhe, um mesmo princípio de coordenadas que
propiciam ruas e endereços. A diferença entre um mapa e uma rua é de grau, e não de
natureza, dado que um mapa pode ser, pode ter sido, ou ainda é, uma rua, ainda que
virtualmente.
Como não se trata de um mapa da cidade, mas um mapa das artes na cidade, é
possível pensar que em sua confecção haja o interesse em acompanhar as mudanças de
temporadas que, tal como no teatro, caracteriza o ir e vir das exposições, a abertura e o
fechamento de espaços. Isto implica em falarmos de, e com, um mapa que é também um
63
periódico, inscrito no agendamento de atividades, operação que propicia sincronia em
âmbito massivo. Ora, o que tenho em mãos é a segunda edição, a de dezembro de 2004.
No editorial o jornalista (e não geógrafo ou urbanista) Celso Fioravante assina um
pequeno texto anunciando a mudança de alguns anunciantes – que não são apoio
cultural; muito pelo contrário - , todos galerias de arte (com exceção de uma casa de
leilões e da agência de design gráfico que é responsável tanto pelo mapa carioca como
paulistano), que são a fonte de recursos financeiros, uma vez que se trata de um objeto
de distribuição, e não de confecção, gratuita. Além de Fioravante e dos anunciantes,
vemos citados, como colaboradores, mais seis pessoas, ocupando funções como
redação, revisão, consultoria, assistência e fotografia de capa. Fioravante tem seu nome
repetido em três funções: edição, redação e a curiosa marca de jornalista responsável
cujo MTB é 18015 (sic), lembrando que esta locução destacada resolve ao mesmo
tempo um problema jurídico de um objeto sob tutela (autoria e autoridade; autorictas) e
permite falar sobre a qualidade da conduta do jornalista Celso Fioravante. Além destes
envolvidos são citados o provedor de e-mail UOL, a Fonte Design, a Festman que
publica o mapa na Internet, e a Gráfica Ipsis (que tem seu nome ao lado do tipo de papel
e do montante de impressão). Considerando que se trata de um objeto final que busca
atender orientações e valores de todos estes agentes mais os possíveis 30.000 da tiragem
que ninguém sabe exatamente quem são (10.000 deveriam saber ler em inglês), não é
absurdo sugerir que este é um mapa para todos e para ninguém, cuja imprecisão de
remetente não deixa a dever a nenhum Zaratustra33.
Seguindo alguns critérios acerca da pureza dos objetos (Latour, 1997) e da
distribuição da pessoa (Gell, 1998), um mapa tem tanta agência, tantas pessoas
envolvidas em sua purificação, que os critérios de máxima objetividade perpassam às
formações coletivas que impedem a identificação cosmológica de um “quem fez”, o
que é próprio do âmbito da pessoa jurídica, que implica em responsáveis, representantes
de autoria – qualquer semelhança com o estatuto da autoria da encenação teatral
(Roubine, op.cit), ou sobre a autoria cinematográfica não é mera coincidência. Mas isto
diz respeito ao objeto enquanto coisa feita, e não como um elemento de relação então
posto em relação, pois me parece que todo usuário de mapa deve ter consigo não
33
Na edição de maio de 2007 algumas alterações substantivas foram anotadas, como o acréscimo de 7
endereços considerados relevantes e uma redução de cinco mil exemplares, não sobrando qualquer
tiragem para as edições em inglês.
64
somente um mapa, mas um corpo correspondente. Caso contrário, fica impossível
superar o fosso de um instrumento silencioso, uma vez que:
“(...) elaborar um mapa elimina, ou “extrai”, os movimentos de pessoas
enquanto vão ou vêm entre lugares (descobrir-caminho), e também a recapitulação
desses movimentos ou gestos de inscrição (mapear). Cria, desse modo, a aparência de
que a estrutura do mapa surge diretamente da estrutura do mundo, como se o
mapeador servisse meramente para mediar uma transcrição para outra. Chamo isso
ilusão cartográfica. Um aspecto dessa ilusão reside na suposição de que a estrutura do
mundo, tanto quanto a do mapa que pretende representá-la, esteja fixa, sem considerar
o movimento dos seus habitantes. Como um palco de teatro, do qual todos os atores
misteriosamente desapareceram, o mundo – como é representado no mapa – parece
deserto, destituído de vida.” (Ingold, 2005:96)
Encontrar um caminho, que abrange o sentido do método de fazer, ou uma forma
de saber-fazer, não isola os objetos de orientação. Não se pode esquecer que os mesmos
objetos, como os de propriedades cartográficas, não são a própria atividade de
orientação, esta definida pelas matrizes de movimento, formas de tráfego e sua lógica,
seu sentido, suas histórias. Para a definição da objetividade dos objetos problemáticos é
possível voltarmos à prática da purificação que dá forma fenomenotécnica34 a este tipo
de objeto a partir do que nos descreve Latour sobre enunciados tomados e vividos como
fatos adquiridos (1997:77) tão apropriados à definição de Foucault (1997:89):
“ (...) função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir
da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem
sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e
que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação.”
34
Latour chama atenção para a técnica reificada, absorvendo alguns critérios classificatórios de Gaston
Bachelard. Este aporte visa dar conta da imediaticidade do recurso técnico dos aparelhos de laboratório.
Imaginando que qualquer cidadão jovem é um cientista em potencial (lembrando que eu mesmo fora ator
e hoje trilho as sendas do mundo científico sem qualquer salto ontológico mais profundo), qualquer
purificação científica soa a elemento técnico potencial. Bem podemos arriscar sobre como o mapa das
artes é resultado de toda a história da cartografia transformado em não-cartografia, mas em um acervo
técnico público legível em alfa-numéricos de um jornalista.
65
Se o mapa em questão é um índice tanto de caminhos possíveis (e não dos
caminhos mesmos) quanto de um enorme conjunto de índices de agência que apontam
para uma generalidade, e não para qualquer especificidade, é razoável se perder uma
vez que o sentido de um mapa como este é exatamente o de não apontar nenhuma
trajetória específica para Carmen, a começar por não portar nenhuma inscrição do tipo
VOCÊ ESTÁ AQUI, e nem poderia. O que não significa que ela não pudesse articular
elementos do mapa de forma a vir a se encontrar diante dele estabelecendo as analogias
necessárias para caminhar do teatro Nelson Rodrigues (Av. República do Chile, 230) até
o Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66) em tempo hábil. Eram
por volta das 15 horas e ela deveria voltar, assim como eu, até as 19 horas, horário do
espetáculo. Sintopia e sincronia. Contudo, uma vez de volta ao teatro Nelson
Rodrigues, o ingresso indica exatamente onde se deve estar: J19.
A clareza do posicionamento de uma sala de cena italiana, cujo desenho respeita
a ordem das coordenadas de visibilidade, aos poucos fora chocada com outras
perspectivas, estas bem menos estáveis, apresentando coordenadas bastante menos
definidas. Não bastando o libelo do teatro de rua, que pude tanto ler a respeito quanto
ouvir, que vê no palco italiano a morte do teatro, outras situações se mostraram
igualmente desafiadoras para esta descrição, como a do grupo que me aceitou como
antropólogo residente, atividade posteriormente batizada como a de assessor teórico.
Após o espetáculo no teatro Nelson Rodrigues no dia 17 de agosto de 2006, no
qual fui convidado a assistir a um outro espetáculo pela mesma Carmen a qual guiei até
a metade do caminho ao Centro Cultural Banco do Brasil, apresentava-se a
possibilidade de uma pesquisa de campo pra valer. Joelson Gusson, diretor da peça,
poderia abraçar a realização da presente pesquisa. Não fora de outra maneira.
No dia 14 de agosto de 2006 fui à casa de cultura Laura Alvim assistir O que nos
resta é o silêncio. A promessa de Carmen é a de que seria uma apresentação de um
trabalho experimental, sem narrativa linear, isto é, qualquer tipo de encadeamento que
ordenasse o começo, o meio e fim – o que, em outros termos, deixa a hermenêutica um
pouco sem base para estabelecer a gênese, as mediações e a finalidade da ação
dramática. Fica-se esperando Godot. Dispondo já do ingresso, mapa de apontamento de
onde se está, localizando o assento, desaparece. O aluguel do assento na sala Rogério
Cardoso não apresenta numeração nenhuma. Somente o dia e a hora do espetáculo, além
da indicação do nome o qual se deveria buscar entre os vários cômodos batizados
existentes na edificação. As ruas se estendem porta adentro em forma de corredores e as
66
placas de endereço admitem a identificação pela repetição. A sala Rogério Cardoso é
um endereço dentro do endereço e isto se pode deduzir.
Figura 03. Sala Rogério Cardoso; palco preparado para
espetáculo musical;
Fonte: site FUNARJ.
A clareza das regras, estas do tipo dedutivo no qual há de se encontrar aquilo
que se espera, evanesceu quando entrei para assistir o espetáculo. Uma saleta de paredes
negras, com teto baixo e pouco mais de dez metros de cumprimento em pouco
correspondia com a paisagem escondida dentro de um teatro como o Nelson Rodrigues.
Quase sem espaço e luz, bastante asfixiante, e cadeiras ao redor do proscênio, e não à
frente, esboçando um confronto entre pagantes e assistidos. O programa distribuído na
entrada da Casa Laura Alvim cumpria a requisição de apresentar a apresentação futura.
A rede de agências de financiamento e apoio cumpria a demanda por publicidade. O
Governo do Estado do Rio de Janeiro e sua Secretaria do Estado de Cultura, pela ação
da FUNARJ, recebem destaque no evidenciamento das forças que suportam a
apresentação deste espetáculo para maiores de 18 anos.
Focando na articulação das regras formais de localização em situação de
movimento, o programa apresenta o quê? Apresenta algo mais do que um mapa ou um
ingresso? Especifica onde se está, gerando outra sorte de sentidos que não somente o
topográfico ou administrativo. Considerando que o ingresso para a sala Rogério
Cardoso não oferece lá grandes garantias de localização, uma leitura mais detida do
texto informativo do programa da segunda temporada de O que nos resta é o silêncio
oferece indícios mais específicos quanto a que se passa:
67
“Eu tinha algumas questões. Queria falar sobre escolhas, e como podemos
influenciar a nossa vida e as de outros com pequenos atos. É um pensamento quase
budista: de que nós somos feitos de simples escolhas cotidianas. Um outro ponto que
eu queria tocar era o silêncio.”
“...o silêncio que pretendo aqui delimitar não é aquele que antecede qualquer
palavra um querer dizer mas, antes disso, é aquele que se situa depois da palavra
quando não só as respostas, mas também as questões vêm a faltar. Falo do silêncio
como impossibilidade real de representação, como discurso detido... É a falência da
ilusão, a corrosão de um discurso levado à ultimas conseqüências, à maneira do ponto
de fuga nas perspectivas.” (Do ensaio “Espiral do silêncio: a clínica do real” de
Graziela Ribeiro dos Santos Costa Pinto)”
“No início de 2005 propus aos atores desse trabalho no qual cada um deveria
criar um personagem que lhe possibilitasse falar de questões relevantes para ele
mesmo. Durante quatro meses nenhum dos atores sabia o que o outro estava
construindo e a única informação comum era que determinada noite essas
personagens estariam juntas num fim de festa. Criei então algumas conexões entre
elas e ensaiamos por seis meses sem que essas personagens se expusessem
abertamente. A vida não é assim? Quem nós conhecemos realmente?”
“O resultado cênico aparece como um flash dessas relações, sem a
problematização nem o desenvolvimento de um conflito ou estória central. É como
se o espectador, através desse flash, pudesse intuir todo o resto e criar a sua própria
versão da estória. - Joelson Gusson”
Mas o texto não oferece muito para a prática de deduções, ao menos no que
tange os objetivos de descrição do encontro teatral. Daqui por diante outra espécie de
raciocínio me fora exigido.
68
1.7. Obstáculo perspectivo.
Casa da Glória, dia 19 de abril de 2007. Pela primeira vez entro no casarão que
abrigaria o grupo nos próximos dois meses e meio. Subo a pé pela ladeira da Glória.
Solando em paralelepípedos, desacostumado dos caminhos íngremes, passo pelo
número 98. Joelson avisa por e-mail que a primeira entrada à vista seguindo a mão da
rua não serviria aos membros do grupo. Tanto pior. Todos os dias de trabalho, nas
quartas, quintas e sextas, ver o Outeiro da Glória pela manhã após uma caminhada pelos
bairros do Flamengo e Catete, isto é, subia-se a ladeira visando contornar o casarão e
após a escadaria da igreja cercada pela visão da baía de Guanabara, utilizar a entrada de
serviço. A caminhada já me era um tanto quanto íntima pelo percurso realizado para
freqüentar o centro da cidade. A ladeira da Glória, nesta primeira vez, me deixou
desconfortável. E são duas as razões. Antes do alvorecer efetivo, há pouca circulação de
pessoas na referida ladeira. Pode-se contar nos dedos. A maior parte, dormindo ao chão
ou pulando as cercas do pequeno jardim em frente ao Outeiro. Há uma estreita relação
entre caminhar e invadir. A segunda razão fora o cansaço.
No primeiro dia, subi a pé, passei pela entrada do Outeiro e não entendi. Não
deduzi por onde entrar. Seguindo o caminho três alternativas razoáveis se apresentavam.
Contornar o Outeiro à direita, seguir em frente ou descer pelo elevador. Considerando
que a entrada de serviço do casarão se localizava após o Outeiro, não poderia ser na
descida da ladeira. O elevador do Plano Inclinado, fora de questão. Contudo, a ruela à
direita é, por fim, um beco sem saída que acaba numa garagem de portão marrom. À sua
direita, uma pequena escada que culmina numa outra porta. À esquerda, a administração
do Outeiro. Não consegui presumir onde terminava o monumento. Como o combinado
era o de esperar, não arrisquei nenhuma campainha. Tampouco esperava encontrar
ninguém, dado o vazio da rua e as portas ainda fechadas de tudo por lá. Só não sabia
onde esperar. A lógica na numeração se perdeu no momento em que não havia um 98
gravado ao lado da garagem ao fim do beco. Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a
linha do horizonte? O que vejo é o beco.
A bem da verdade, ciscava de um lado para outro tentando estar às vistas caso
qualquer mal entendido tivesse ocorrido. Dei a volta na igreja e desci a ladeira algumas
vezes até avistar o primeiro ator que aparecesse.
O dia seguiu na apresentação do casarão. Entramos todos pela portinha ao lado
da garagem. Passada a primeira sala, que guarda material de cena de outros grupos
69
envolvidos com a Fomenta Produções, chegamos a um corredor bifurcado. De um lado,
seu prosseguimento. Do outro, uma escada à esquerda, de fundo escuro mesmo à luz
elétrica. Finda a escada e chegamos na sala onde deveria ocorrer o ensaio. Grande e
espaçosa. Cinco portas enormes, envidraçadas, que dão para a para a piscina. Uma sexta
para uma escadaria. Uma sétima por onde entramos. Duas janelas enormes à esquerda
desta porta. Pé direito alto e paredes pintadas em creme. Havia lâmpadas fluorescentes
penduradas por todo lado, frutos de ensaio de um grupo de dança do qual participa
Gustavo, namorado de Joelson. Piso dividido arquimedianamente entre taco e azulejo
hidráulico. E no meio de tudo isso, ao centro, uma pilastra com pouco mais de um metro
de largura e 50 cm de profundidade. No meio.
O programa da temporada de O que nos resta é o silêncio na Casa de Cultura
Laura Alvim (temporada ocorrida um ano antes) não me ajudou a entender muita coisa,
não apresentou um sentido mais preciso de tudo o que eu viria. Contudo, antecipa
algumas fórmulas sobre a obstrução da visibilidade preponderante no espetáculo e que
sugere algumas chaves de entendimento quanto aos caminhos tomados para a expressão
de sentido. Um movimento de cena em especial, esta que descortina as criações
individuais dos atores, criações as quais o texto do programa faz menção, trouxe numa
só vaga uma série de problemas relativos a um espetáculo que se dedica a esconder
cenas dos espectadores.
Em dado momento o pequeno espaço de cena era cortado em cinco, a partir da
divisória imposta por cortinas tão pretas quanto as paredes, deixando com que cada
divisão comportasse uma parte do público e somente um ator, ator este que desempenha
uma performance particular. No meu caso, ficara junto a mais dois espectadores, estes
na parede do outro lado da sala, e Ângela Delphim. Sua cena individual constava em
cantar enquanto trocava de roupas, substituindo um vestido de festa bronze-dourado por
um outro preto, acompanhado por uma meia de seda posta na cabeça fazendo as vezes
de máscara. Enquanto prosseguia, pediu para que eu ajudasse com o zíper. Distribuiu
cartas de tarot aos espectadores. Perguntava sobre o medo de cada de saber sobre o que
poderia acontecer no futuro. Não havia como, contudo, me desligar dos sons oriundos
das outras divisórias, que participavam insistentemente do que acontecia diante dos
olhos. O artifício de perguntar se os assistentes gostariam de mudar de assento,
procurando talvez um outro ponto de vista, logo antes o fechamento das cortinas só
acentuava a tensão. Não imaginei roubar no jogo, isto é, não tentei assistir o que
acontecia para além do cortinado, mesmo que diante de uma situação na qual o
70
obstáculo parecia fornecer algum tipo de conexão específica. O mesmo tipo de
obstrução que uma peça sem linearidade narrativa oferece, pois a cadeia de causas e
efeitos sofre de interrupção abrupta. Assim como, quase um ano mais tarde, na casa da
Glória, uma pilastra no meio do salão, sempre impediria que alguém assistisse algum
ponto de fuga presumido.
Quando perguntavam a Joelson sobre o que tratava o espetáculo, ele me disse,
respondia que era sobre a escolha. Caso insistam em saber mais, manda assistir o
espetáculo. Mas o espetáculo, tal como se pode desenhar, não é exatamente assistível.
Numa lógica de valor de ingresso, paga-se para ver a todos e termina-se por assistir a
um só ator enquanto os outros ainda estão em cena. Não foram poucas as vezes em que
ouvi queixas no momento de fechamento das cortinas, murmúrios declamando um
pálido “não vale” numa nítida referência à privação dos sentidos.
Assim, como informar em campos sem dedução possível? Especialmente se a
oferta de orientação cruza regimes e opera a indicação do impresso para o movimento
gestual? Não é esta uma forma de antecipação da crítica, apontando ao público as bases
do entendimento mínimo ao expor temas e intenções? O programa é um objeto que
marca o passo que se dá rumo ao divórcio da dedução da localização de endereços
visando outras espécies de raciocínio igualmente devotadas à orientação dos sentidos.
Não é mais um mapa. O conjunto de impressos de relativa autonomia que orientam a
assistência teatral passa a ser de outra ordem. Veicula imagens, tipografia menos
estável, intencionalidade da apresentação a ser presenciada. A relação entre o antes do
espetáculo e o depois assume uma feição específica, singular. Mas essa singularidade
não ocorre gratuitamente, e presenciá-la tampouco. O percurso descrito nas páginas
acima visa identificar, mesmo que de forma pouco detida, o grau de dispersão em redes
de circulação no qual o teatro se insere, algumas delas constituintes igualmente do
espaço cênico, compondo um suporte técnico cuja extensão é difícil medir, mesmo
sendo este o mesmo que fornece o conjunto de medidas utilizadas na elaboração do
ambiente cênico pesquisado.
Ter um ente bem distribuído (dispositivos) a todos e que, como qualquer técnica
requerida pelos afazeres, acarretam em responsabilidades individuais que me suprem de
uma linha de condução, esta que se faz necessária para aprender saber alguns elementos
obrigatórios do teatro, mesmo que não sejam absolutamente teatrais. Todas as
referências indicadas sem exceção exigiam que, ou eu soubesse ler ou soubesse chegar
em algum endereço numa certa data e horário. Este que é o papel dos instrumentos que
71
posicionam lugares e sincronizam temporalidades são como regras do jogo sem que este
precise ser jogado por ninguém em específico. A atividade teatral a ser etnografada
constaria exatamente em transformar este eixo de relações em algo singular sem deixar
de participar desta zona de referências codificadas e importantes, dado que o artista
burguês precisa de assistência. Articular estes encontros, que surgem como práticas de
sincronia
e
sintopia
exigem
dos
agentes
responsabilidades
individuais,
responsabilidades estas que no encaminhamento da pesquisa performatiza a primeira
alteração, pois é tomando o ator como porta-voz de um teatro/endereço e de um sistema
de referências para encontros (wayfinder) que talvez haja forma de articular algumas
propriedades de evocação e provocação características de diferenciações, tal como na
série teleológica simmeliana (Simmel,1981) na qual os afazeres implicam em
aprofundamento das diferenças entre os termos de relação.
A extensa rede de conexões para as quais eu chamo a atenção em muito tem a
ver com dois movimentos importantes, que são características de dois movimentos
determinantes para o prosseguimento desta dissertação. O primeiro é o de botar o
teatro no mapa, o que significa inscrever o teatro no papel, cujas conseqüências de
ordem técnica são várias. O segundo movimento diz respeito à seqüência serial que
funda o sentido de tirar as coisas do papel.
1.8. O sujeito da ação : sobre a noção de papel 35
A língua portuguesa, vez por outra, oferece frutos suculentos. Para este
trabalho, por exemplo, a ambigüidade da palavra papel, caso me detenha ao que aqui
interessa, se flexiona designando tanto uma superfície opaca e muito fina derivada de
celulose ao mesmo tempo em que vem a significar, diante os esforços do pensamento
das ciências sociais, o que em inglês se expressa como role. Meio que evidenciando
uma historiografia que carece de algumas demonstrações importantes, este item de
capítulo se dedica à investigação desta ambigüidade assim como de sua relevância
central para as discussões que procuro apresentar. Correlacionar os dois graus de
35
Considerável número de conceitos e temas desenvolvidos neste item encontra ressonâncias, mesmo que
nem sempre harmoniosas, com os trabalhos publicados por Duarte (1983, 1986) e Duarte & Giumbelli
(1994), cuja remissão é, aqui, fundamental.
72
realidade da palavra papel culmina aqui num problema que é da ordem histórica
dada sua própria estrutura como suporte físico da mesma. Numa forma de conexão
que revela entranhas de relações imprescindíveis, o interesse destas notas de caráter
histórico de pequeno porte visa não somente formular alguns problemas relativos aos
atores como especificidade própria da burocracia de sua apresentação, como permite
que se faça o que é próprio de um trabalho etnográfico e apresente um tipo de
comparação valiosa, pois, pensando com as palavras de Hans Ulrich Gumbrecht
(1998:11):
“(...) não deveria ser nosso interesse dispensar o passado, controlando-o em
conceitos eficientes, mas somente pôr a nós mesmos e ao nosso presente em
confronto com as imagens as mais ricas possíveis da alteridade histórica.”
Independentemente de qualquer alinhamento mais aguerrido ao programa de
pesquisas que Gumbrecht defende, a evocação da diferença histórica como alteração
de formas cultivadas e manutenção de fontes de força de sua realização tem grande
valor. O trabalho do historiador citado é uma história da literatura que parte da
materialidade do suporte de comunicação de forma a redistribuir algumas questões
acerca da fundação de relações que culminem em estruturas de poder e
possibilidades estéticas (leia-se doutrina da experiência afectiva). Meu gancho, o que
utilizo para recrutar a pesquisa de Gumbrecht, atrela-se ainda à noção de pessoa e das
modalidades menos artístico-distintivas de sua distribuição, como os curricula, e sua
estreita relação com outros registros dos feitos e efeitos de inscrever agências no
papel. Se por um lado os traços constituintes das personagens enquanto escritura se
dão como registros do que se entende na relação literatura/belles lettres e sua relação
com as filosofias de então, dos poderes de soberania, dos casais ilustres, todos presos e
distribuídos pela impressão que fica (tipográfica), por outro lado, na apresentação de
si é o se escrever como pessoa que aparece num ato que assume dimensões formais
73
próprias, participando daquilo que é uma variante discursiva moderna por
excelência: a confissão laica.
Seguir a historiografia de Gumbrecht significa evocar um esquema importante
de sua condução desta relação com o passado historiográfico, a saber, a alteração do
estatuto do observador do mundo e sua inscrição no mundo enquanto tal a partir da
idéia de cascatas de modernidade36. Assim, a distinção entre observador de primeiro
grau e de segundo grau, sendo este que observa a observação que se faz, serve de
gancho para as propriedades mais específicas de sua análise. A imprecisão do aporte
que realizo ao buscar abrangência dispersiva do suporte técnico constituinte do
universo teatral é adequada quando referida aos modos de reforma bastante relevante
nas regras das artes (plásticas, principalmente) e no sistema de ordenamento do
trabalho social que, por sinal, se distribuem com eficácia em diversas extensões de
confecção de mecanismos de comunicação. Identificar esta ruptura com o alvorecer
da Renascença, longo trajeto, implica em apontar para a fundação do humanismo
enquanto conjunto de enunciados que fundam outras ordens de diferença em relação
à cristandade. Para começar, as leis de perspectiva. Acompanhando o raciocínio de
Reinhart Koselleck:
“(...)A gênese do Estado absoluto autônomo foi acompanhada de uma luta
incessante contra profecias políticas e religiosas de todo tipo. Ao reprimir as
previsões apocalípticas e astrológicas, o Estado apropriou-se à força do monopólio da
manipulação do futuro. Com isso, levado certamente por um objetivo anticlerical,
tomou para si também uma tarefa que pertencia à velha igreja. (...) De maneira geral,
pode-se dizer que uma política severa tinha sido capaz de eliminar lentamente, do
campo da formação e da decisão da vontade política, as renitentes esperanças
36
Se no trabalho de Gumbrecht esta noção é acompanhada de um prelúdio a uma teoria da pósmodernidade, sugerindo um fundo caótico que faz da reflexão da modernidade muito mais um movimento
browniano do que a uma sucessão de efeitos encadeados que operam numa freqüência de coerência de
relações, em Latour (1986) a relação é a da sucessiva constituição de problemas que, uma vez vinculados
a um acervo técnico, um novo acervo técnico deve ser processado para suprir as deficiências
experimental-constatativas dos primeiros. Ambos os campos efeituais interessam a este trabalho,
especialmente porque concernem aos problemas de adaptação e especificação.
74
religiosas para o futuro, que então grassavam, depois da desagregação da igreja.”
(2006:29)
A constituição das formas monopolistas, como a da violência legítima que
tanto vexa o poder soberano, implica em formas de policiamento e administração
que exigem do centro de poder um sistema de manutenção por via de tributação e
amplo controle militar daquilo que, outrora, se dispunha a uma rede de prestações de
vassalagem e atividade de mercenários que, um pouco à forma de artistas-ciganos,
deveriam receber por serviços prestados sem maiores vínculos de fidelidade (Elias,
1993). Ao mesmo tempo em que os poderes humanos assumem uma configuração
específica, propriamente humanista, as relações com o cosmos idem.
O hermetismo que subjuga a escala universal da hierarquia dos corpos
celestes ao sugerir que “aquilo que está em cima é como aquilo que está embaixo”,
propiciando à astronomia realizar comparações entre astros iguais não importando
sua magnitude, e não astros postos ao céu em ordem de próxima perfeição em escala
ascendente (Koyré,1979); as regras de confecção do sistema de perspectiva as quais a
lógica da perfeição se encontra na geometria dos corpos e seus sistemas de proporção
representativa, representação esta de lugares ocupados no espaço relativamente, cuja
perfeição é a da aplicação da imitatio figurativa (Panofsky, 1993; Baxandall, 1991;
Costa Lima, 1995) que, por sua vez, funda a necessidade de academias de arte com
vistas no ensino não só do ofício, mas do sistema de representação do mundo por via
da disseminação da lógica de proporcionalidade calculada (Baxandall, op.cit.;
Pevsner, 2003)37; a sutil alteração do significado de nobreza nas peças teatrais que, da
37
“A partir do momento em que a produção do texto deixou de ser atribuída à irrupção espontânea do
mundo sagrado, ela começou a depender da aplicação correta e da imitação das regras. É por isso que,
segundo a Poética de Aristóteles, ou pelo menos segundo alguns de seus comentadores, uma tragédia não
deve ser julgada por meio de sua representação, mas de sua leitura, que dá a medida de sua
conformidade com as regras.” (Chartier, 2002:21). Esta marca, própria do panóptico do século XVII
europeu não exerce outra coisa senão um profundo contraste com a representação dos autos e com sua
fórmula simbólica de apresentação, cuja relação com cortejos e desfile de símbolos sagrados é
indissociável de sua vida estética “como se pela simples representação da lenda fora de seu marco
sagrado, a intervenção dos públicos e, mais geralmente, da cidade, se manifestara por expor o juízo da
inevitabilidade do milagre ou da salida teológica” (Duvignaud, 1966:74) e que tem nos escritos uma
manifestação alienada da vida dos palcos e da palavra pública, cujo significado neste contexto é outro.
75
encenação de personagens nobres culmina na figuração de atos nobres em cena
(Duvignaud, 1972; Szondi, 1994); todos são movimentos de fundação da ordem de
observar as observações e de generalizar o ato reflexivo.
Não posso deixar de sugerir uma imagem tão gasta quanto eficiente quanto é a
imagem de um espelho diante de outro espelho que se por um momento soa abusiva,
logo adiante retoma sua lucidez. Desdobra-se a autoridade crítica numa espécie de
semiose infinita cuja força de aglomeração se dá exatamente no reforço do privado,
na figuração de uma intimidade dotada de poderes e deveres de discrição (Habermas,
1984; Koselleck, 1999; Elias, 1993). O problema nos joga, no caso deste trabalho,
diretamente no território da autoria,
autoria cuja relação com a auctoritas deve ser posta em
questão, uma vez que, diante os atos públicos, quem é o agente, o sujeito da ação?
Qual sua autoridade? Numa breve filologia do termo:
“(...) a palavra auctor do latim medieval conseguiu assumir tantos papéis:
auctor era, antes de tudo, Deus, provedor de toda significação; mas auctor era
também o patrono que patrocinava um manuscrito; mas auct
auctor
or era, provavelmente,
também o “inventor” do conteúdo de um texto (embora a questão dificilmente fosse
levantada); auctor era a pessoa que copiava o texto no pergaminho; finalmente, era
também a pessoa que emprestava sua voz ao texto recitando-o.” (Gumbrecht,
op.cit.:74)38
O movimento de deflagração da leitura que dissemina a atividade intelectual
cujo valor transcendente o neo-platonismo não cessa de evidenciar, exige uma massa
de esforços técnicos e pedagógicos, assim como numa profunda alteração da ordem
38
Tampouco vale à pena destacar, em primeiro lugar, a diferença entre auctoritas e potestas que num
sistema marcado pelo princípio da plenitude, articula um horizonte central da diferença entre poderes
dotados de complementaridade de hierarquias (Dumont, 2000:55), definindo os papéis do sacerdote e do
rei a partir da divina providência. Contudo, e é onde o argumento não apresenta maior interesse aqui, é o
da relação de implicação entre poder soberano e a esfera do sagrado rearticulada convergentemente na
figura absoluta do rei (Agamben, 2007; Benjamim, 1984, Duvignaud, 1955), assim como a sucessiva
dispersão destes poderes e convergências (Gumbrecht, 1998; Latour, 1986 – ambos sobre as cascata de
modernidade; Chartier, 1998) que culminam nas importantes ponderações sobre o poder disciplinar
contemporâneo e das formas privadas de controle, tal como evidente no artigo de Duarte (2006), que
conta com a fundação do humanismo como forma importante de disseminação.
76
política (o Brasil, enquanto colônia, nunca teve imprensa permitida pela Coroa
Portuguesa) nos permite apontar para outras transformações. O que Gumbrecht
chama atenção no trabalho que ora utilizo como base é que os canais de impressão
tiveram um percurso longo e diverso na sua consolidação como forma quotidiana de
comunicação. Escrever e ler como atividade de vocação, para atingir a proporção e
centralidade das mediações que ora possuem, deveria deixar de ser marcada por uma
divisão do trabalho social e deveria passar a assunção da dignidade humana na
conversão futura à cidadania que deveria ser transmitida a todos cumprindo o ideário
moderno de republicanismo e civilidade. Vale lembrar que os sinais gráficos que
constituem o alfabeto romano possuem uma história escrita pelos próprios signos
antes de quaisquer convenções relativas ao registro do vernáculo. A fala e a escrita,
até certo ponto, possuem caminhos distintos. Assumindo a escrita como mídia de
interação entre ausentes – fórmula que impõe uma metafísica própria cujo limite é a
incomensurabilidade psicológica entre entes comunicantes e autorais, e que se define
pela impossibilidade de reajuste do rumo do já escrito incitando a antecipação de
futuros possíveis por parte do autor da escrita –, há muito o que considerar quanto
ao respaldo performático da fala na comunicação presencial, em especial de sua
alteração comparada:
“Definitivamente, o corpo humano não era mais o veículo de constituição do
sentido; o corpo fora visivelmente separado do veículo do sentido, o livro, pela
introdução de uma máquina, a prensa de impressão. (...)O corpo fora separado da
consciência da comunicação.” (op.cit.:75 – grifo meu)
O divórcio que caracteriza o momento de emancipação do leitor é o mesmo
que emancipa o autor, ao mesmo tempo em que se inaugura uma lida com o tempo
das ações que destoa das formas anteriores exatamente porque a escrita, dada seus
efeitos inumeráveis, sujeitando o escritor à censura alheia (que lhe é alienada) exige
do mesmo um tipo de postura política prognóstica na qual seja “capaz de inscrever o
77
passado no futuro” (Koselleck, 2006:36) posto no eixo da única forma de consciência
possível: a do presente imediato, a própria definição estrita de moderno (hodierno).
Projetar o passado no futuro, isto é, situar o futuro como presente porvir, evoca uma
série de mecanismos de justificação que permitem implicar o passado no presente a
partir de um futuro passado que pode ser retro-ativado. Diferindo de uma ordem de
estabilidade astrológica que permite aos elementos mais distantes se dobrarem
reforçando sua similitude emulativa, a fórmula prognóstica refaz o campo e põe em
jogo os poderes de confecção textual-expressiva, e não somente as regras de
semelhança cósmica. Assim, ao escrever uma confissão que revele quem sou eu e
qual o sentido de minhas ações, junto aos cuidados de legibilidade, devo articular os
eventos do passado obstante ao presente das ações narradas, cuja via de acesso é a
retrodução39 de um momento pretérito que se projeta no futuro inscrito em seus
termos:
“O prognóstico implica um diagnóstico capaz de inscrever o passado no
futuro. Por essa qualidade futura continuamente garantida ao passado é possível
tanto assegurar quanto limitar o espaço de manobra do Estado.” (Koselleck,
op.cit.:36)
Escrever entre leitores anônimos significa se dispor às regras ao mesmo
tempo em que a estratégia de escrever numa situação de inconsciência corporal da
comunicação evoca um prognóstico da escrita presente a sua repercussão, pois é
neste tipo de correlação que traça diretrizes da autonomia objetiva do inscrito a
partir da autonomia entre leitores e escritores, não por acaso, provocada por uma
variante de poder disciplinar igualmente provocadora da administração de recursos.
A relação entre este sentido prognóstico da escrita com os objetivos gerais destas
notas concerne à disponibilidade a qual um papel permite a inscrição de um papel
39
“(...) é a adoção provisória de uma hipótese em virtude de serem passíveis de verificação experimental
todas suas possíveis conseqüências, de tal modo que se pode esperar que a persistência na aplicação do
mesmo método acabe por revelar seu desacordo com os fatos, se desacordo houver.” (Peirce, 1977:06)
78
(role), algo como casos de pessoa cujas obrigações de relação fazem convergir a
atividade burocrática, a vida das belles lettres e a possibilidade generalizada da
leitura dos mesmos.
Como estudo de caso, que só é um caso por poder se limitar à forma do
conteúdo, Gumbrecht apresenta a vida de Garcilaso de la Vega (El Inca), nascido
Gómez Suárez de Figueroa, em Cuzco em 1539 e morto em Córdoba em 1616.
Sujeito marcado profundamente pela administração da Coroa Espanhola viveu
exatamente no centro da fundação burocrática do reinado de Isabel de Castela e
Fernando de Aragão. Quando em Madrid, Garcilaso vive a centralização da vida
administrativa da cidade onde a administração estatal recai nas figuras de consejeros,
necessários para conquistar sua nobreza, já na formação de quadros de especialistas, e
que tinham como atividade primordial lidar com direitos de propriedades cuja
comprovação por parte do requerente deveriam ser cumpridas por escrito. Com esta
finalidade, aprofundando os mecanismos prognósticos de escrita, a documentação
apresentada deveria absorver os padrões de conteúdo e forma exigindo: genealogia,
um nobre intercessor e o respeito ao tempo de investigação da veracidade,
provavelmente inaugurando a experiência biográfica do tempo profundo, este o da
espera. A abrangência da ocorrência neste grau de mediação está no ato de contrição
confessional, antes uma forma de sujeição expiatória diante o Deus católico, e então
diante de um agente do Estado; antes em voz alta no confessionário, aqui por escrito
e em silêncio, sem qualquer fundamento subjetivo de expressão; se antes por
expiação, aqui por demanda. Também é digno de nota o fato de esta modalidade de
confissão estar longe de ser exatamente novidade em atividades de baixo teor sacro:
“As confissões de vida dos místicos e as autobiografias dos pícaros, mas
também inúmeros romances pastoris, eram encenados como projetos de identidade
pessoal, que remetiam a perguntas ou dúvidas de destinatários mais ou menos
anônimos, e freqüentemente eram dedicados a mecenas nobres (a burocracia
corresponde ao destinatário anônimo, enquanto o papel discursivo do mecenas
79
lembra o do intercessor jurídico). Algo análogo acontece, no plano coletivo, com as
crônicas contemporâneas, que se tornaram fontes para a história colonial espanhola.”
(Gumbrecht, op.cit.:121)40
No sentido de sua consolidação como modalidade de escrita, a confissão se
torna, portanto uma especificação de si. Esta forma de astúcia de apresentação pode
articular jogos de nomes próprios, como o de Garcilaso que, nascido Gómez Suárez
de Figueroa, assume o nome do pai espanhol, da mesma forma que, ao divulgar como
complemento de seu nome autoral em seus Cometários Reales de los Incas, El Inca,
manipula informações genealógicas, reclamando uma ascendência patrilinear que
não tinha. Seu pai era espanhol. Mas mais do que autenticidade, forma essencialista
que passa ao largo das questões apresentadas, o que funda a modificação da forma
confessional e a distribuição das competências de escrita e leitura são as requisições
da comunicação compacta (Gumbrecht, id,ibid.:132), definida nas técnicas de escrita
que devem fazer o papel (role) caber no papel.
Mas esta não é a única dimensão da dispersão técnica da confissão laica41.
Michel Foucault (1988:62-69) chama a atenção para a relação entre confissão e o que
se transformou numa pedra de toque sobre as questões em torno da sexualidade: o
dispositivo de sexualidade, em outros termos, como a repressão ao sexo se desdobra
na proliferação de discursos e saberes sobre sexualidade42. Partindo do momento
chave das scientia sexualis, Foucault chama a atenção para uma noção de forma do
discurso verdadeiro, especialmente daquele que fala sobre si – no modo de observar a
observação da modernização dos sentidos à Gumbrecht – própria da confissão. O ato
confessional elucidativo não diz somente o que foi feito. Deve reconstituir ao dizer
seus arredores, as imagens, os modelos e modos. Se “Pela primeira vez, sem dúvida,
40
Sobre os romances pastoris aos quais Gumbrecht se refere, vide Iser (1996, cap.2)
41
Para uma abordagem alternativa a presente, que faz menção à Bildung romântica de sujeito, tal como
no prosseguimento de dimensões terapêuticas da ordem confessional, vide Duarte (1983).
42
O que serve de chave para entendermos a relação entre a ficção e a censura. Vide Costa Lima (1986,
1988, 1989).
80
uma sociedade se inclinou a solicitar e a ouvir a própria confidência dos prazeres
individuais” (Foucault, op.cit.:63) o que se impõe na relação entre saber a si e sua
expressão (saber de si) é o domínio formal de se dispor, isto é, saber SE apresentar em
planos formais delimitados com vistas inclusive a causar prazer, como no caso dos
livros que se lêem com uma só mão que, não bastando o divertimento proporcionado
por sua leitura – o que implica numa geometria das proporções entre livro e corpo
sensível – é capaz de afastar a “meditação e o autodomínio” segundo artifícios os mais
sutis de grafismo alfabético, tão sucintamente descritos por Jean-Marie Goulemot
(2000). A utilização da confissão como instrumento não deixa de requisitá-la
formalmente, e ao mesmo tempo em que estabelece o que Foucault chama de
classificação dos prazeres impõe ao mesmo tempo os métodos (méthôdos) pelos qual
os prazeres se permitem classificar:
“É a “economia” dos discursos, ou seja, sua tecnologia intrínseca, as
necessidades de seu funcionamento, as táticas que instauram, os efeitos de poder que
os sustêm e que veiculam, - é isso, e não um sistema de representações, o que
determina as características do que eles dizem.” (1988:67)
Visando uma aproximação desta tecnologia intrínseca da economia dos
discursos que faz da confissão uma modalidade e do sentido prognóstico da ordem da
escrita difundida, sinalizar em direção à constância requerida aos termos de
administração (seja governamental ou rumo ao auto-controle civilizado) ou às
especificações técnicas de formas utilitárias de escrita definem alguns dos problemas
próprios do teatro. O primeiro diz respeito a como pôr o teatro no papel, na forma de
mapeamento e estabilização, significando controle. No segundo, mais próximo das
questões de minha pesquisa de campo, como tirá-lo então do papel para pô-lo em
cena.
81
1.9. Notas de história da fixação do teatro brasileiro
Todos os atores são nômades.
Antes de me comprometer apressadamente com qualquer juízo sobre os
caminhos da teoria antropológica contemporânea, este é um marco jurídico vigente no
Brasil até por volta de 1740, quando a profissão do ator, se considerada como tal,
apontava para um ofício de terceira classe, uma vez classificada como atividade infame.
As implicações contam: direitos castrados, proibição de exercícios de cargos públicos e
residência, quando permitida, em bairros isolados (Guinsburg, Faria & Lima,
2006:170). O nomadismo fica por conta dos direitos de cidadania e renda referidos por
Simmel (2001:260)
« Já que o indivíduo privado de direito em qualquer sentido não pode se ver
interditar o domínio dos interesses monetários puros, uma associação se estabelece
entre estas duas determinações e começa a jogar em direções múltiplas: assim, por um
lado, o homem pura e simplesmente de dinheiro é imediatamente ameaçado de
desclassificação social, no sentimento de que não escapará freqüentemente senão por
seu poder e seu role indispensável, enquanto que, de outro lado, a justiça é restituída
imparcialmente aos nômades da Idade Média nas relações financeiras, tanto quanto
mal foram reconhecidos, em todo lugar, seus direitos.”
Se é possível reconhecer na figura de relação puramente monetária uma
entidade de circulação por excelência, como é um dos fundamentos do dinheiro e seu
papel nas formas de associação modernas, aquele que vive de dinheiro ganho em
relações de fundamento exclusivamente mercantil se põe nu diante as contingências da
circulação de valores. A assistência financeira, o pagamento, o salário, em qualquer
situação de circulação reduzida, colore o comércio com tons de risco. Não bastando o
exemplo complexo e trágico da sociologia do gênio (Elias, 1995), na qual o artista que
se arrisca à autenticidade numa sociedade de corte se entrega à circulação restrita, ao
vínculo empregatício da corte e aos limites morais diante sua posição, o vínculo entre
arte e público apresenta a fragilidade deste vínculo exatamente diante situações em que
o público é tão restrito quanto a circulação monetária.
Nas fronteiras da modernidade, que não são exatamente cronológicas, a ausência
da corte na economia das artes impõe ao artista a situação de nomadismo do tipo que
82
exige de um artista renovar seu público na medida da extensão do repertório de
apresentações decerto limitada, cultivando o trânsito freqüente entre as cidades que vem
a servir de base para o exercício do descontrole diante a ordem política, a mesma ordem
com a qual um Mozart se indispõe. Mas o caso do teatro no interior do Brasil do século
XIX não oferecia nenhum arcebispo de Salzbourg para apelação. O teatro escapava do
regime de controle que o situaria no mapa.
A historiografia de Regina Horta Duarte (1995) é muito clara nesse respeito.
Vivendo um hiato entre a divulgação forte da vida da corte no Rio de Janeiro que
parecia ser uma Paris dos trópicos para os leitores de jornais, as cidades de Minas
Gerais assistiam aos espetáculos de circo e teatro com uma série de dificuldades quanto
sua estabilização ao seguir os ditames de ordem pública e alastramento dos
instrumentos de civilização do Estado. O elenco realizado pela historiadora não poderia
ser mais significativo para os propósitos deste trabalho. Sugerindo toda uma seção de
esquadrinhamentos das variáveis significativas da disposição das forças de controle
estatal, Duarte elenca: espaços, mapas, quantidades, limites, disciplinas, sedentarismos e
catequeses. Localizando o problema nos anos 30 e 40 do século XIX, proclamada
segundo o diagnóstico de caos insustentável no interior do país, a expansão dos poderes
administrativos via como meta formas as mais diversas de contenção dos distúrbios à
paz nacional,
“Muito mais que a estatização da sociedade, o movimento é direcionado para a
governamentalização do Estado, com a criação de práticas voltadas para o controle da
população em seus menores detalhes.” (op.cit.)
Entendendo o desafio proporcionado por populações ciganas, escravos fugidios
e fronteiras índias, a classe artística órfã de uma corte que lhe atenda, como é sabido ter
ocorrido com o grande ator do período, João Caetano, na cidade do Rio de Janeiro na
mesma época, o horizonte do controle não passa simplesmente pelo impulso
moralizador do espaço público no qual hábitos impudicos impróprios para uma boa
educação infantil abundavam, mas também pela incorporação aos instrumentos de
controle dos meios desta população ainda sem código de endereçamento postal.
“Paralelamente às tentativas de impedir a ocupação desordenada dos espaços
vários movimentos podem ser identificados. O mapeamento desses territórios os
83
dividiriam, tornando-os visíveis e incorporando-os ao ideal de uma integridade
territorial. A análise das estratégias em conflito, no período oitocentista, deixa
transparecer o enfrentamento em torno da demarcação de um território estriado, que
torna as populações sedentárias, em contraposição a uma ocupação nômade dos
espaços.” (op.cit.48)
Contudo, se os atores se aproximam dos vagabundos e larápios como a
legislação de 1740 indicava, em 1843 a instalação do Conservatório Dramático culmina
em uma outra ordem de controle sobre a classe artística que, mesmo que não
incorporada aos serviços da corte como um todo, passava a sofrer fiscalização cujos
limites de atuação restringidos eram regidos pelo império da lei. Já sob a inspeção de
uma inspetoria um código de boas maneiras identificava o papel do ator diante seu
público: o de conter seus rompantes diante a platéia. Ofender ao público, desobedecer à
inspetoria, apresentar somente o que for anunciado, realizar o espetáculo na hora
marcada e não estender o espetáculo além de um mínimo necessário (Guinsburg, Faria
& Lima, op.cit:170-171). Contudo a criação do Conservatório gerava o debate sobre as
diretrizes estéticas de um espetáculo adequado aos propósitos tanto da nação quanto dos
bons costumes, o que se seguiu de uma disputa ferrenha entre Machado de Assis e José
de Alencar (Duarte, op.cit.:126:133).
Não por acaso, o ideário formador de uma nova platéia se fazia presente nas
novas regras de conduta, fazendo do espetáculo igualmente, aos poucos, um lugar de
exercício obrigatório de boas maneiras de civilidade. A pontualidade certamente não
obriga somente aos atores, mas ao público. As demais restrições, como a proibição
gradual da utilização de chapéus e do fumo não designa outra coisa. As leis que se
fazem sobre o teatro, acompanhando sempre algumas diretrizes indispensáveis para a
instauração da ordem pública segundo os dispositivos do Estado, não faz outra coisa
senão estabelecer uma invariante comunicativa que não dependa de um decreto lido em
praça pública. O formato da lei prevê os delitos e as penas, assim como alguns
atenuantes e destrincha, aos poucos, as nuanças do sujeito de direitos. O que quero
destacar é que, uma vez registrado quanto ao local, a data, a hora e o teor do espetáculo,
o teatro passa a ter um papel diante a nação estatizada e situada em um eixo ordenal. E
este papel, tal como registrado na convenção do Conservatório fundado em 1843, é o de
““melhoramento da cena Brasileira por modo que esta se torne a escola dos bons
costumes e da língua” no sentido de “animar e excitar o talento nacional para assuntos
84
dramáticos”, além de corrigir os vícios da cena brasileira” e “interpor o seu juízo
sobre as obras”” (Guisburg, Faria & Lima, op.cit.:172). Cabia a correlação de forças
tirar este teatro do papel e estabelecê-lo em vias de fato. As delicadas relações de
financiamento do teatro por órgãos do Estado não faz outra coisa senão levar adiante as
dimensões do controle, estabelecendo diversas modalidades de teatro nacional, sempre
adaptadas à irradiação dos poderes, mesmo em 1968.
É importante notar que a implantação de uma cena teatral brasileira parte do tipo
de correlação que entende a agência contraventora segundo os termos de
reconhecimento estatal do teatro. Nisso não somente a variante moderna de autoria do
ato transgressor é reconhecida, como toda uma aura de mistério, sedução e poderes
carismáticos são reputados aos mestres desta arte de apresentação. O controle não é
senão o entranhamento gradual do poder de verossimilhança que o teatro promove cuja
extremidade é a formação de repertórios pedagógicos no teatro infantil. Mas que não se
leia qualquer relação entre entranhamento dos poderes civilizadores possíveis do teatro
com qualquer estabilidade conquistada à atividade como profissão. O que procuro
apontar na verdade é uma rede de conexões que precipitam a programação de uma
rotina de trabalhos que promovam a antecipação relativa de um tempo futuro, como sói
a administração da produção de um espetáculo, e que tem nas formas de registro móveis
imutáveis (Latour, 1986:07) o sistema de orientações necessário para o controle de
variáveis, sendo as personagens e a criação autoral seu centro problemático. É nesta
zona de definição que os mapas de espaços de cena, seu distanciamento, e os elementos
mais importantes, assim como sua eliminação e a disposição do público, servem como
instrumento de fixação dos termos indispensáveis, inclusive para Joelson Gusson. O
salão da Casa da Glória fora colocado no mapa (vide anexo).
Recuperando a fábula contada por Jorge Luis Borges, o mapa não pode ser a
repetição do território mapeado. Ao cabo e ao rabo, nele há seleção, combinação e autoindicação coordenada (Iser, 1996). Assim, na distribuição do espaço geométrico de um
retângulo, cabe definir as formas a serem combinadas e como, independente de onde o
mapa seja acessado, ele tenha informações o suficiente para que a referência aos entes
em relação seja repetida. O mapa é igualmente uma das formas de comunicação
compacta que aponta onde é que estão os entes regulares ou, ao menos, onde deveriam
estar.
85
1.10. Personagem, autoria e pessoa dos atores
A enorme distância temporal entre Garcilaso de la Vega, a querela da fundação
do Teatro nacional e minha relação com os trabalhos do grupo Dragão Voador teatro
contemporâneo precisa aqui de uma costura. E ela não custa muito. Ela se põe na
complexa divisão da competência entre as artes, o que negaria ao teatro sua
especificidade ao mesmo tempo em que aprofunda as conexões de reconhecimento
estatal da profissão atuante, altamente formalizada na circulação de curricula. Cabe
aqui formular em que, e como se concretiza, a relação entre autoria e os atores relativos.
Em uma dada altura desta pesquisa, quando os trabalhos na Casa da Glória
atingiam certo grau de desenvolvimento, acompanhei Candice e Joelson até a UNIRIO,
onde ambos estudavam43. Meu objetivo fora o de pesquisar na biblioteca da
universidade em questão, enquanto os dois a quem eu acompanhava rumavam para suas
respectivas salas de aula. Na caminhada entre o fim do almoço e a chegada ao campus,
Joelson me indicou leituras obrigatórias, cuja autoria seriam determinantes para que eu
entendesse o que se passa. A leitura me serviria de guia. Da mesma forma Celina Sodré,
diretora de teatro e professora de Joelson, Leonardo Corajo e de Lucas Gouvêa, fora
taxativa em me indicar leitura de textos que permitem a compreensão daquilo com o que
eu viria a me deparar. Foi quando os nomes de Stanislawski e Grotowski apareceram
com a força de definição, isto é, permitiriam elaborar uma imagem mais precisa dos
eventos concernentes ao teatro na figura de ancestrais e figuras de escrita na forma de
sinédoques/arquétipos.
Chamo a atenção para esta relação pois, no caso do teatro (e não só no seu caso)
a ascendência autoral por via de textos dotados de ancestralidade designam forças de
atuação que remetem à própria ordem do valor inscrito. O caso em questão é que os
autores-atores evocados, e sua citação é tanto uma evocação quanto uma filiação que
reclama uma herança, presentificam uma dobra de autoria. É tanto um quanto outro que
falam. Trabalhar ou definir um trabalho segundo as diretrizes dos trabalhos de
Grotowski, por exemplo, significa defender uma especificidade da performance teatral.
A despeito da indistinção com a qual há o hábito de desenhar o que determina a forma
teatral de expressão situando sua derivação de outros ramos artísticos (música, dança,
43
Joelson deve concluir este ano, 2008, seu bacharelado. Candice, por sua vez, é aluna do mestrado do
departamento de artes cênicas.
86
pintura ou o caso de síntese romântica do kunstwerk), o ator, dramaturgo e ancestral
Jerzy Grotowski registrara: o teatro é a arte de ator. O ator, mais do que agente, é
conditio sine qua non é possível apresentar uma peça:
“Em primeiro lugar, tentamos evitar o ecletismo, resistir ao pensamento de que
o teatro é uma combinação de matérias. Estamos tentando definir o que significa o
teatro distintamente, o que separa esta atividade das outras categorias de espetáculo.
Em segundo lugar, nossas produções são investigações do relacionamento entre ator e
platéia. Isto é, consideramos a técnica cênica e pessoal do ator a essência da arte
teatral.” (Grotowski, 1992:14)
Sem me dedicar a aprofundar nesta passagem ou em seguir num comentário à
obra de Grotowski, o que me interessa no presente momento é o fato de ter transcrito
esta passagem de um livro de Joelson, Joelson este que escreveu o texto do programa de
O que nos resta é o silêncio que, entre outras coisas, declara:
“(...) propus aos atores desse trabalho no qual cada um deveria criar um
personagem que lhe possibilitasse falar de questões relevantes para ele mesmo.
Durante quatro meses nenhum dos atores sabia o que o outro estava construindo e a
única informação comum era que determinada noite essas personagens estariam
juntas num fim de festa. Criei então algumas conexões entre elas e ensaiamos por seis
meses sem que essas personagens se expusessem abertamente. A vida não é assim?
Quem nós conhecemos realmente?”
Antes de sugerir um processo criativo no sentido em que criação assume alguma
conotação de ato demiúrgico, que sem dúvida é importante para a fórmula do artista
moderno que inova, que é original, o sentido de criação aqui pode despontar como
recurso pecuário, da manutenção doméstica de uma propriedade e dos seres vivos que
conferem à propriedade seu suprimento. Joelson aqui se alinha a uma reação importante
do teatro que, na busca de assumir sua autonomia e o controle de seu processo criativo
na figura dos atores, culmina no combate ao textocentrismo. Contudo este combate não
significa estabelecer um teatro analfabeto. Jean-Jacques Roubine, intelectual da vida
teatral, define o problema da seguinte forma:
87
“O que alguns definiram como a utopia de Craig44 caracteriza-se pela
supressão não tanto do texto dramático mas sim do autor, do predomínio e da
autonomia que ele exige, em vez de conformar-se em ser apenas um dos elementos do
espetáculo. Pois se o texto não é uma obra-prima, essa exigência do autor é
presunçosa. E se ele é uma obra-prima, comporta o inconveniente de bastar-se a si
mesmo. Confrontados com ele, os recursos do espetáculo reduzem-se a irrisórios
simulacros. E, uma vez levado à cena, ele permanece sendo uma espécie de corpo
estranho que o teatro não consegue integrar.” (1998:59)
O que serve de obstáculo é a pessoa que o texto traz consigo, sempre estranho ao
teatro exatamente porque a dignidade da escrita autoral se encontra na comunicação
com ausência de consciência, elimina-se a co-presença por via de mediação. A luta
contra o textocentrismo é mais uma escada da cascata de modernidade pela qual se
dissemina a autoria e, consigo, a auctoritas. Faz-se, dessa forma, uma linhagem própria
do teatro de ator que, nas ressonâncias entre propostas de espetáculo a definição do
espaço oferecido e o campo de negociações e circulação que os sentidos articulados pela
produção do espetáculo estabelecem45.
Daí a legitimidade da proposta de montagem de O que nos resta é o silêncio,
cuja atitude confessional é ao mesmo tempo uma demonstração dos poderes outorgados
aos atores, então sujeitos de criação e não encenadores de textos de outrem, e figuras
que carregam consigo uma rede de transmissões de competências cuja forma de
treinamento e formação estabelece este duplo vínculo entre autonomia criadora e
herança. A cena individual que assisti em minha primeira assistência de O que nos resta
44
Edward Gordon Craig (1872-19666): “Craig foi muito marcado pela teoria wagneriana do “drama
musical do futuro”, que preconiza uma nova arquitetura teatral como local e instrumento da fusão dos
diferentes elementos que integram o espetáculo: poesia, música, pintura, arte do ator. Entretanto, aos
olhos de Craig essa fusão exige não apenas um espaço adequado mas um condutor capaz e realizá-la; o
régisseur, que deve poder intervir em todos os níveis e a qualquer momento do espetáculo. Coerente com
esse enfoque, Craig preconiza um certo número de arranjos técnicos entre os quais a instalação de uma
cabine de comando e de um sistema de intercomunicação com o palco, a fim de permitir ao régisseur
dirigir o espetáculo enquanto este se desenrola.” (Roubine, op.cit.:138). Na seqüência disgnóstica do
papel de Craig e os componentes da encenação teatral, Roubine define a multiplicação dos palcos
possíveis a partir das novas fontes de intervenção e interação. Para uma avaliação mais detida do papel
desempenhado por Craig na história do teatro moderno, vide Aslan (1994:96-104) e Carlson (1997).
45
Esta é a razão pela qual algumas práticas teatrais assumem a não-representação, pois não estão lá
representando qualquer outra coisa, ou ninguém. Estão, como sói à sua profissão, assumindo os riscos de
uma apresentação.
88
é o silêncio é criação de Ângela, sob a direção de Joelson Gusson. A utilização de
objetos, os recursos de voz, a elaboração de um texto com regras de composição
sugeridas pela atriz visando a criação de uma personagem, enfim, a manutenção da
relação entre tempo, espaço, movimento e sentido faz da cena apresentada entre as
cortinas resultado de sua criação. Ângela, aqui, é demiurga.
Entendendo que o primeiro impulso deste trabalho seria o de investigar como é
uma personagem de ficção tal como se dá na apresentação teatral, a elaboração da
comunicação compacta de um curso de vida, tradução literal de curriculum vitae,
permite que se faça conexões importantes entre confissão, autoria, personagem e ficção.
Não é outra coisa que o seguinte documento apresenta.
______________________________________________________________________
CURRICULO
DADOS PESSOAIS:
NOME: Angela Maria de Figueiredo;
NOME ARTÍSCICO: Angela Delphim;
FUNÇÃO: Atriz;
REGISTRO PROF: - DRT nº. XXXX Liv.XXX Fls.X3v data 01/11/00;
IDENTIDADE: X.XXX.XXX - SSP-SP
CPF : XXX.XXX.XXX-XX;
LOCAL E DATA DE NASC.: Rio de Janeiro, 24/12/1947;
ENDEREÇO: Rua XXXXXXXXXXX, XX ap/XXX - XXXXXX -RJ Cep.XXXXX-XXX
TEL: (0XX) (21)XXXX-XXXX ou cel. (0XX) (21) XXXXX-XXXXX
E-MAIL: [email protected]
GRAU DE INSTRUÇÃO: superior
CURSOS
- Curso de Formação de Ator - CAL Casa das Artes de Laranjeiras - Mar/98 a
Ago/00;
- Formação teatral com Luiz Carlos de Vasconcelos, na UNIRIO, - 19/10 a
31/10/98;
- Canto - com Raul Serrador- outubro/98 até dezembro/02;
- Interpretação para TV - com Ignácio Coqueiro - Stúdio Barrozo Netto - 19/03 até
12/04/01 – 24horas;
89
- Oficina de Teatro, com Ana Kfouri – módulos I e II - Espaço III Teatro Villa Lobos 08 a 29/04 e 07 a 27/05/02, 24horas;
- Interpretação para Vídeo, TV e Cinema com Valter Lima Junior – Fundição
Progresso - Nov e Dez/02;
- A Poética do Ator Criativo Escritor de Si com Cacá Carvalho – Espaço SESC 13 a 24/09/04, 40 horas;
- Curso Técnico de Bailarino Contemporâneo, Escola Angel Vianna – março/03 a
julho/05;
- Proc. Criativo da Cia. Dos Atores – com a Cia. Dos Atores, Espaço SESC - 01/07
a 31/08/05;
- O Teatro Nô _ com Daniela Visco, no Espaço SESC – 03/11 a 24/11/05;
- A Comédia como Visão do Mundo – com Clarice Niskier, Espaço SESC – 10/01 a
07/02/06;
- Hata Yoga – Mestre Orlando Cani a partir de 21/03/2006 até sempre;
- Preparação para a Criação – com Fabiana de Mello e Souza, Espaço SESC 23/10 a 10/11/2006;
- O Prazer da Dança – com Soraia Bastos, Espaço SESC – 03/01 a 27/02/2007
PRINCIPAIS TRABALHOS:
I - Montagem O DIBUK de Sch-An-Ski - direção d/e Ana Teixeira e Stephane
Brodt, a Teatro Nelson Rodrigues em 07/00; personagens - mendiga e juiz ;
II - Montagem
Bonitinha, mas Ordinária de Nelson Rodrigues - Direção
Ivan
Sugahara - Cia. Os Dezequilibrados – na Casa da Matriz de 06/2001 a set/2002 Personagens: Todas as mães e Grã- Fina;
III – Televisão - participações: A Grande Família, episódio, Explode Coração; Linha
Direta – episódios: Caso Patrícia, Caso Antony, Ed. Joelma, Ginecologista; O
Golpe do Baú, novelas Da Cor do Pecado, O Profeta com o personagem Enny,
Minissérie JK personagem D. Rita - TV GLOBO;
IV – Dança Contemporânea - “Por um Fio” –– direção Toni Rodrigues -Teatro do
Jockey Proj. Terça Jovem 07 e 14/06/05 e Centro Coreográfico do RJ – de 01 a
03/07/05 realização e projeto da Escola Angel Vianna.;
90
V _6º Riocenacontemporânea – Performance “O QUE NOS RESTA É O SILÊNCIO”
–direção Joelson Gusson na Estação da Leopoldina 10/2005. (Projeto em
andamento).
VI _ Montagem e temporada da peça “O QUE NOS RESTA É O SILÊNCIO” –
ESPAÇO SESC de 8/6 a 18/6/06 e Casa de Cultura Laura Alvim de 27/07 a
24/9/06 - Direção Joelson Gusson
com a Cia Dragão Voador Teatro
Contemporâneo – PRÊMIO MYRIAM MUNIZ DO CONVÊNIO PETROBRÁS/
FUNARTE com temporada na Casa da Gloria de 01/06/07 a 17/6/07 personagem
Beatriz Brchner;
VII _ Filme - participação no Longa “SETE VEZES DINDI” direção Bruno Safadi,
Produção Roberto Talma, previsto para ser lançado em 2007;
VIII - 7º Riocenacontemporânea – participação em video na montagem “QUERO
SER ROMEU E JULIETA” da Cia OS DEZEQUILIBRADOS – Direção Ivan Sugahara
com estéia no dia 9/10/06 no Teatro Nelson Rodrigues RJ.
IX – Montagem e temporada da peça “HEDDA GABLER” de Ibsen - ESPAÇO SESC
de 21/6 a 12/08/2007 com direção de Floriano Peixoto e Michel Bercovitch –
personagem criada.
_____________________________________________________________________
Segundo um prisma de organização temporal registrado na listagem de tópicos
de habilitação, estão contidos aqui algo em torno de dez anos de história de formação e
trabalhos de alguém que ocupa a função de atriz. Ler este currículo implica em absorver
a síntese em listas e classes de eventos relevantes, eventos que definem entre si o nexo
de agências que o papel apresenta, inclusive justificando, no campo pragmático de
circulação, a apresentação de um nome artístico. A história presumida a partir dos
tópicos deve justificar como Ângela funciona como atriz. Nascida em 1947 se inicia nas
artes cênicas no ano de 98. A partir do ano 2000 consegue ser escalada para trabalhos
como atriz profissional para os quais há requisição de um número na Delegacia
Regional do Trabalho, igualmente presente em seu curriculum. De uma forma geral
delimita o espaço de tempo durante o qual uma história pode ser contada. Uma série de
eventos culmina por determinar a especificidade de Ângela como atriz segundo as
implicações concernentes ao que a ficha permite narrar, mesmo que não narre.
91
Seguindo a fórmula de Alfred Gell (1998), não somente há a distribuição de
componentes da pessoa física da atriz em sua manifestação burocrática em cada cópia
do currículo como são isolados índices de agência de outrem sobre ela, o que de alguma
forma serve de fiança quanto a um fato: a singularidade de sua apresentação por via de
representação burocrática não especifica sua autonomia absoluta, mas ao complexo de
forças que se impõem como disciplina. A consolidação de cada tópico implica em uma
relação de tempo de dedicação, desenhando no espaço do papel um espectro numérico
temporal. O valor do isolamento destas variáveis permite modificações sobre o
pensamento acerca da divisão do trabalho social segundo um eixo tridimensional da
crono-geografia (Giddens ,2003; Gell, 1992a) na qual o tempo dedicado ao trabalho é
também fundamento da divisão social do trabalho, apontando para a multiplicação de
papéis de um só ente referente.
Não obstante a divisão social do trabalho em papéis num mapa sincrônicofuncional, o que procede para a análise formal é a divisão temporal de cada agente em
vários papeís-funções possíveis à jornada individual. No que tange o currículo de uma
pessoa, vale perguntar quanto tempo é preciso fazer algo para que seja dela a habilidade
de fazer, isto é, para que assuma a autonomia necessária para formas específicas de
demiurgia, de criatividade legítima. Afinal, como ressalta Silva (2003), faz toda
diferença ser formada na CAL e não na Martins Penna. Mas esta diferença não é só de
local, mas de intensidade e intenções dispostos no tempo hábil, que é também o tempo
de habilitação. O efeito distintivo não concerne somente às causas que determinam a
carga classificatória de um diploma, mas também ao conjunto de pessoas que marcam
as produções de Ângela com técnicas de produção. Faz diferença ser formado pela
CAL. Mas seu corpo docente varia muito. Faz diferença igualmente ter a formação num
determinado período no qual um quadro de professores específico esteve por lá. Como
fora o caso de Celina Sodré, ascendente em relação a Joelson Gusson e Lucas Gouvêa.
O caso é que a relação implica em uma disciplina, implicadas no que se chama de
relações pessoais.
Refletindo sobre sua trajetória, Ângela confessa: “sou muito corporal”. Sua
constância diária nos ensaios que pude acompanhar deixa claro o teor de sua disciplina.
Exercícios lentos e cuidadosos, em repetição metódica, a dança praticada antes de cada
apresentação, a sutileza dos aquecimentos coletivos que coordenava. Se sua confissão é
verdadeira, ela dá acesso à verdade da pessoa, mesmo que em parte (parte esta medida e
fornecida em tempo de experiência). Parece ser o caso da atriz em questão. A
92
confirmação se encontra nas razões que ela manifesta serem decisivas para o convite de
Joelson. Segundo Ângela, fora convidada para fazer O que nos resta é o silêncio porque
canta. Está em seu curriculum: é efeito da ação de Raul Serrador. Mesmo que não
fizesse o curso com Cacá Carvalho, Ângela seria escritora de si só por redigir seu
currículo. Contudo, um ponto é particularmente nebuloso no caso em questão. Há
menção de um curso superior. Curso este não identificável na listagem apresentada.
Considerando este passado como irrelevante para sua apresentação burocrática como
atriz, Ângela decidiu excluir sua formação universitária e sua carreira que definiria sua
função nos idos tempos de antes de 1998. Não obstante, esta estratégia fecha um círculo
importante quanto à personagem de ficção, caso lembremos da definição de Wolfgang
Iser para os atos de fingir ficcionais:
“(...) cada relação estabelecida não só altera a faticidade dos elementos, mas
ainda que os converte em posições que obtêm sua estabilidade através do que excluem.
O que é excluído se matiza na relação realizada e lhe dá seu contorno; desta maneira o
que se ausenta ganha presença.” (1996:20)
Compondo a tríade seleção/combinação/auto-indicação distintiva da pragmática
da comunicação em ficção, a omissão presente não significa outra coisa senão a
convergência para um grau objetivado da relação definindo de antemão que o
procedimento incorporado ao texto opera os dispositivos básicos de compreensão de sua
manifestação. Se o teatro se situa num sistema de circulações nos quais deve se fixar em
formas administrativas de maior estabilidade que vem a caracterizá-lo como uma
profissão, dispondo responsabilidades como a regularidade e o respeito ao calendário
das atividades e obrigações para com as taxas de impostos aos quais se acrescentam
anuidades de sindicatos (como o SATED46), o ator deve circular segundo as formas
disponíveis nesta rede enorme. Sua forma privilegiada não deixa de ser o móvel
imutável (Latour, op.cit.) característico da lógica dos impressos. Não só o é como esta
dissertação acaba por desempenhar uma atividade complementar: distribuir a pequena
ficção de Ângela Delphim que revela se chamar Ângela Maria de Figueiredo que leva o
título impessoal de “currículo”.
46
SATED é sigla de Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões cuja história vincula
assistência da Casa dos Artistas e representação profissional nos canais competentes. A fundação do
SATED data de 1964, ano místico.
93
A forma curricular não deixa de se multiplicar. Leonardo Corajo, na composição
de Fernando, desempenha o papel de autoria. Um manuscrito em caderno de capa dura e
verde serve de suporte para a vida pregressa de sua personagem. Aquilo que informa o
programa do espetáculo O que nos resta é o silêncio marca o cume e o desfecho do
relato autobiográfico em forma de diário: a festa que serve ao drama. Não seria
impossível retomar alguns pontos da vida da personagem e compor um curriculum vitae
que, mesmo não contribuindo a favor de seu emprego numa empresa de respeito,
permite que tenha fundamento seu emprego na peça. Mas não houve menção a nenhum
fato de personagem. Suas motivações, o campo intencional, fora abandonado aos
poucos para que as cenas coletivas, sob a batuta de Joelson, viessem a tomar forma em
detrimento de cada uma das composições. A história da personagem, tal como uma
pessoa qualquer, serviria até o momento preciso do ensemble que daria seqüência à vida
das personagens. Seria possível escrever dali por diante. É possível ampliar o
curriculum. E isto se chama atualização.
Esse documento, no momento preciso em que desenvolvo esta passagem, serve
de ligação entre o inespecífico e o específico, entre o dedutível e o indedutível no teatro.
Os dispositivos para os quais tento chamar a atenção e que amarram o sistema de
endereços, a lógica da localização por dedução e a relação entre as táticas de circulação
e as formas absolutas dos meios de circulação, têm o compromisso de situar a extensão
que faz do teatro um evento participável por quem não o faz de forma a qualquer um
que, por menos que venha a participar, tenha algo a dizer sobre ele. Não somente porque
todo sujeito de direito em uma burocracia é um autor potencial (mesmo que tenha o
direito de ficar calado diante de uma acusação; mas não há problema uma vez que a
burocracia opera tecnologias silenciosas) mas porque os limites de sentido na
articulação espaço-temporal próprias à encenação aprofundam os modos de atualização
dos dispositivos. Cada atualização é um modo. Modifica.
A modalidade confessional com a qual nos deparamos ao ler esta história
curricular em tópicos evidencia um diferenciador da personagem Ângela Figueiredo:
apresenta indícios de acervo técnico de produção de efeitos. Cantar, dançar e escrever
exige recursos específicos que não podem ser ignorados, assim como sua aprendizagem
não pode ser reduzida a um quadro de alteração de classificação do sujeito. Não que isso
não ocorra, mas devem implicar, mesmo que não impliquem efetivamente, na
apresentação de níveis de auto-controle cuja fundação é o paralelo de um conhecimento
específico de si. As técnicas corporais são objeto de reflexão do curriculum assim como
94
desta pesquisa etnográfica: o artigo célebre de Mauss se encontra tanto em manuais de
sociologia e antropologia quanto no livro-referência de Eugenio Barba e Nicolau
Savarese A arte secreta do ator (1990). Não obstante o registro dos trabalhos anteriores
dá vez à relação de futuro do passado assim como sugere a convergência com o presente
no ato de leitura. Apresentar predicados aceitáveis passa pela lógica de apresentar
alianças passadas que informam quais novas alianças de produção este currículo
predispõe a personagem. Vale notar que o curriculum vale como apresentação entre
pessoas que não se conhecem (visando mais uma vez a categoria levantada mas pouco
trabalhada de Silva [2003]) e, posto que se dá entre pessoas ausentes, participa de
convenções que não pertencem a nenhuma delas. Vinca conexões impessoais.
O ator Jésser de Souza, do Lume de Campinas47, junto aos seus colegas,
ofereceu uma demonstração pública dos trabalhos de mímesis corpórea desenvolvidos
há vinte e um anos no mesmo grupo, fundado por Luis Octávio Burnier, ao lado de
outros dois atores-pesquisadores: Ricardo Puccetti e Carlos Simioni. Não me detendo
aqui na categoria de atores e pesquisadores, suficientemente sugestiva para uma série
de sugestões problemáticas, a demonstração pública de Jesser me permite pensar dois
movimentos ao mesmo tempo. Enquanto apresenta os efeitos do domínio da técnica
apresentada, as ressonâncias do que fala e apresenta nos encaminha para um segundo
momento desta dissertação, que é o da rede de participações da elaboração das situações
do teatro testemunhados na montagem de O que nos resta é o silêncio.
1.11. Ator, autor, técnica de fazer.
Enquanto as atividades de ensaio de O que nos resta é o silêncio não assumiam
corpo e forma, mantive-me disposto a coletar relatos e experiências junto ao cenário de
atividades do extenso calendário oferecido à cidade do Rio de Janeiro na época. Dentre
as possibilidades os dois meses de apresentações e cursos oferecidos pelo Lume
figuravam como uma possibilidade. Tentei me inscrever em atividades mais regulares
(até mesmo para colocar em meu curriculum) para os quais fui prontamente recusado.
Não tinha curriculum de ator, mas de mestrando em sociologia e antropologia. Satisfiz-
47
Grupo de pesquisa em artes cênicas de departamento homônio da Unicamp, com sede própria em
endereço emplacado com as mesmas placas da universidade.
95
me com as demonstrações abertas ao público. No dia 16 de março de 2006 fui à
demonstração do ator Jésser de Souza.
No momento não me detive muito no que uma demonstração implica e em como
isto articulava uma das palavras mais repetidas em ensaios por Joelson e os demais
atores: funcionar. Uma demonstração é uma prova, apresenta uma correlação
verificável, dado que posta diante dos olhos sujeita à repetição. No caso, o que estava
em questão era a estrutura do treinamento do ator, fundada nas relações que remetem a
Grotowski e ao método de mímesis corpórea. Evidenciando as formas de transmissão,
no caso por escrito, de técnicas corporais, a fonte Grotowski define muito bem do que
se trata a situação de demonstração.
“O treinamento consiste em exercícios elaborados pelos atores e adotados de
outros sistemas. Mesmo os que não resultaram de uma pesquisa pessoal do ator foram
desenvolvidos e elaborados a fim de satisfazer os objetivos precisos de método. A
terminologia pertinente aos exercícios escolhidos foi posteriormente alterada. Uma vez
que os atores adotem um dado exercício, estabelecem um nome para ele, com base em
suas idéias e associações pessoais. Conscientemente, tendemos a usar uma gíria
especial, desde que isto atue de forma estimulante sobre a nossa imaginação. (...) O que
se segue é um esboço inacabado de um dia de treinamento.” (1990:108)
Ao mesmo tempo em que estas palavras que eu cito não foram proferidas por
Jésser na ocasião vão me servir para definir algumas das situações presenciadas, dado
que apresentam algumas determinantes de a-presenciais para que o encontro seja
convergente. O prisma autoral que define que os atores possuem sua própria forma de
conectividade e que elaboram suas idiossincrasias significativas aprofundam as marcas
de um campo teatral na medida em que realizam demonstrações públicas de saber
fazer.
O dia de treinamento com Jésser, sua demonstração versara sobre um tema caro
aos componentes do Lume, desde a publicação do doutorado em semiótica de Luís
Octávio Burnier (1994)48: as relações entre método, pessoalidade e memória muscular,
matriz de movimento. Deitado no chão do palco enquanto os demais observam, Jésser
48
O dado de ser um doutorado em semiótica e não em artes cênicas é significativo, uma vez que diz
respeito a matrizes departamentais, correlações da burocracia do conhecimento científico, que entram em
questão. Mas não aqui.
96
falava de focar em si e esquecer o que há fora para gerar um dentro. Aos poucos então,
despertar a musculatura: rasgar a musculatura, torcer a toalha, relacionar-se com o
chão e empurrá-lo e, “como o planeta é maior, quem sai sou eu”, de forma a se levantar
os poucos. É preciso vazar a energia parasita e fortalecer uma relação autônoma com o
mundo maior. É neste sentido que o exercício de enraizamento se dá: forçar as pontas
dos pés no chão, uma a uma, fazendo com que a articulação do tornozelo ceda aos
poucos:
“- Se minha raiz tá firme, eu posso voar.” E o vôo se dá da cintura para cima,
enquanto o chão indispensável, é firmemente incorporado em cada movimento. É
preciso ceder ao chão. Reconhecer a assimetria de forças que, aos poucos, significa
público. No reconhecimento das forças do solo, Jésser aumenta a amplitude e a
velocidade dos movimentos, deixando que aos poucos sua coluna ceda. A coluna é sua,
a decisão de ceder é dele, não da coluna. Há de se deixar a coluna fazer. Na variação de
formas que seu corpo assumia, Jésser insistia na figura do solo maior:
“- Em nenhum momento eu estou interpretando. O que eu faço é empurrar o
chão e procurar o equilíbrio”. O que vale é ser aquilo que se esta fazendo, promover
uma figura corporal. E esta figura deve visar uma forma de ressonância energética que
vai além da superfície visível. É um modo de ação, cuja amplitude fica mais clara na
apresentação do valor de definir posições de performance, mais do que incômodas,
desconfortáveis, visando novas formas de atenção que não almejem qualquer repouso.
Atentar em como manter uma posição desconfortável exige a decodificação dos
relaxamentos. Nesse momento Jésser se deita no chão novamente. Contrai o abdômen,
torce o pescoço e levanta uma das pernas. Sua voz soa engasgada, rouca e mais grossa.
Fala, como artifício da voz engasgada, onde estão os pontos de tensão que condicionam
o aparelho fonador a emitir este grau de voz. Aos poucos, relaxa as partes da posição,
mas mantém a voz em seus pontos de tensão fundamentais. Levanta-se e começa a
dançar um misto de frevo e outras formas um tanto quanto acrobáticas. Emitia a mesma
voz sem alteração sonora, apesar da enorme variação postural. Mas o que mais importa
para este trabalho é que, em nenhum momento, apresentou-se qualquer reflexão,
qualquer exercício, concernente a personagens.
Intervalo.
97
PRELEÇÃO CONTRA A PERSONAGEM
O SEGUNDO DIA EM UM ATO: pequeno drama que versa sobre as dificuldades dos
afazeres teatrais, em especial no que diz respeito ao papel de ator e os perigos que o
rondam.
Joelson Gusson: diretor
Carmen Zanatta: assistente de direção
Lucas Gouvêa: ator, Vicente Costa Lourenço, Júnior
Leonardo Corajo: ator, Fernando César Moraes
Ângela Delphim: atriz, Beatriz Bruchner,
Bruchner, Ângela Maria de Figeueiredo, Chimbica
Candice Abreu Moraes: atriz, Leda
Luciano Moreira: ator, Ricardo Bruchner
Paulo Camacho: câmera
Bernardo Curvelano Freire: assessor teórico,
teórico, autor da presente dissertação
Marcão: caseiro
Crisitine: atriz ausente
Dia 01/08/2007, segundo dia de apresentação de O que nos resta é o silêncio. Esqueci
o caderno de campo em casa. O que
que segue é fruto das filmagens e da memória de seis
meses depois.
A estréia ocorreu com a insegurança e a expectativa normais. O engasgo de Leonardo
Corajo antes de soltar a primeira fala da peça é suficiente para dar o tom. A conversa
a seguir tem como mote o fantasma do segundo dia de um espetáculo. Algumas
considerações de Joelson sobre o que se espera deste grupo, em especial do grau de
naturalismo esperado nas cenas, servem de enquadramento mais geral do tipo de
problema levantado.
Por volta das seis e meia, já com o breu da noite dando as caras, Joelson resolve
chamar todos os atores, mais Paulo Camacho (que me ajudou na filmagem, com as
fotos e mais suporte técnico) e eu, para pontuar ou, como se convencionou na lida com
o diretor em questão, passar algumas notas. Seu caderno amarelo, contudo, não se
encontrava presente. Falaria de improviso.
Sentados ao lado da piscina da Casa da Glória, num pequeno pátio, ao redor de uma
mesa de plástico branco, estão todos presentes com exceção de Carmen. O território é
arborizado com mangueiras já grandes. Os andares do casarão e as escadarias
expostas servem de fundo.
Partindo da pausa que rememora, a véspera serviu de anteparo. A estréia, que balizou
todos os movimentos na articulação do ritmo de trabalho e seus horizontes de
atualização de formas, começou bem. Logo os erros de sincronia e seqüência foram
descritos, e diziam respeito ao cerrar de uma porta cuja responsabilidade era de Lucas.
Os atores foram responsáveis pela descrição e Ângela foi a responsável por chamar a
98
atenção ao problema. Considerando o nervosismo imanente à estréia, e cabe falar de
super-agitação dos nervos, o segundo dia traz uma carga oposta. A de relaxamento e
de, segundo o mesmo Joelson, tal como me disse alguns meses depois, durante o
Riocenacontemporânea, ressaca dos sentidos após o estresse e da superprodução
fisiológica relativa ao dia anterior. O prejuízo de um comportamento como este é
incalculável. O primeiro deles é o próprio relaxamento, que leva ao tipo de desleixo
que considera que o pior já passou.
JOELSON
É por isso que eu resolvi modificar algumas coisas na peça e vocês não vão ter tempo de
ensaiar Só pra vocês ficarem desesperados.
(risos)
Devido a descompassos a serem desvelados mais adiante, Ângela declara não se
assustar com mais nada, conduta neste momento contornada. Candice se lembra ter
feito uma marca que nunca havia ensaiado. A distância posta na cena do trenzinho, na
qual somente Lucas e ela estão em cena, é logo posta em ação, exatamente sem o
intuito de contornar o que seria o assunto do dia. Mas um pequeno desvio aconteceu.
Aproveitando o ensejo, Joelson retoma algumas notas que considera importantes para
a correção no segundo dia:
1- Luciano, em sua cena individual, fala “você está feliz por que?” muito tarde, o que
compromete as sincronias sonoras entre os nichos e a trilha sonora. Fora engolido pela
música de Mahler. Mas a marca de acionamento da música se deu de forma igualmente
imprevista. Esta marca deveria ser a tosse de Lucas. Uma vez que as cortinas já se
encontravam fechadas e a mesa de som fica restrita ao nicho de Leonardo na parede
sul49, estas marcas de sincronia entre a técnica (corpo de acionamento de aparelhos) e
os atores ficam ao sabor do vento e da voz.
Voltando à vaca fria, Joelson retoma o ritmo da estréia, cujo início promissor revelou
certa afobação que culminou na perda de uma coisa, um elemento, pelo qual se lutou
durante os ensaios: tirar o excesso de representação, excesso este fruto da tentativa de
recuperar um ritmo de cena que, pela calma parecia lenta..
JOELSON
É muito doido porque... tem um nível, um lugar assim que a gente tem que andar assim,
um fio sabe?... que você escorrega um pouquinho assim, um pouquinho pra lá um
pouquinho pra cá e dançou o negócio. E às vezes pode ser uma coisa muito exagerada e
que não fica exagerado, como é a hora da dança do Luciano, quando vocês entram
gritando e começam a dançar, brigar e não sei o quê, a hora das cenas individuais, né,
que tem um certo exagero e a gente tem que lembrar de concertar a cortina que quebrou
ontem.
LEONARDO
49
Vide mapa em anexo.
99
Ai meu Deus do céu, que pânico...
JOELSON
É. E tem ou outro lado que assim, uma... uma... uma maneira de estar ali muito
quotidiana, muito quotidiana, que como a gente infelizmente é treinado para não ser
quotidiano no teatro, ...
CANDICE
Pra representar.
JOELSON
... pra representar, esse é o lugar mais difícil de se estar. A não-representação. Né?
Mas... essa coisa...
(tosse)
... eu acordei de noite pensando isso assim e eu não consegui dormir mais... acordei às
cinco horas da manhã, pensando assim: ai, eu tenho que falar isso, tenho que falar
aquilo, e aí eu não conseguia dormir. E fui dormir eram umas oito horas, assim. E... que
eu fiquei pensando assim: como eu posso falar, é... não é no sentido de fazer entender.
É... Mas no sentido de... de eu conseguir instigar vocês a buscar um lugar que sai da
instância do representacional que a gente tá sempre agarrado nela, né?. Por que... o que
eu já acabei de falar, né? Vou repetir. A gente é treinado pra fazer teatro no palco
italiano, né, e nas escolas que são uma bosta, né, isso aí é uma verdade, são péssimas as
escolas... E a gente fica... fica com muito ranço, e mesmo com a gente fazendo, fazendo,
fazendo coisas, a gente acaba arrastando essas coisas atrás da gente. Eu tô sendo chato?
(murmúrios)
Incomodando vocês com isso? Que eu fico me...
(pequeno grunhido)
CANDICE
(ri)
JOELSON
Eu fico sem graça de ficar falando as coisas e parece que eu to falando coisas que todo
mundo já sabe, que é o óbvio ululante do negócio, entendeu, e eu não quero ser...
LEONARDO
Por isso mesmo
JOELSON
Não quero ser esse chato. Né? Mas ao mesmo tempo...
CANDICE
Você é a única pessoa que tá de fora que pode fazer isso.
100
JOELSON
Exatamente.
(pausa para limpar os óculos)
CANDICE
Sinto muito, né gente?
JOELSON
É isso mesmo.
CANDICE
Na próxima vez, na próxima estréia, você dorme com um gravador do lado. Aí você
acorda de manhã e blu-lulululum. Pronto. Aí pega e bota a fita...
JOELSON
É... Existem vários níveis. Disso. Dentro do trabalho de... com relação às pessoas. Né?
Não existe nenhum juízo de valor a respeito disso. O que você faz tá muito bom, você é
ótima. O outro já não é bom, nada disso, entendeu?
(consentimento)
É que existem níveis...
LUCAS
(murmúrio)
JOELSON
... diferentes dessa percepção. E que vão muito de acordo também...
(campainha, de volume alto; sineta)
... já chegou gente aí?
LEONARDO
Pode ser a Carmen.
CANDICE
Que horas são? Sete?
(murmúrios de investigação oral)
LUCAS
Sete e vinte.
JOELSON
Sete e vinte já. Vai ser rápida a conversa. Né? E... esses níveis eles é... eles vão variar
pra cada pessoa e também pra cada personagem que tiver fazendo, pra cada lugar que
tiver fazendo, então é uma coisa muito sutil...
101
CANDICE
Então tá numa cena e vai pra outra...
JOELSON
Isso.
CANDICE
O texto que vai falar... aí muda de lugar e fala de outro... porque a gente também varia
dentro disso. Exatamente porque esse lugar tá muito tênue, e tá difícil de manter.
JOELSON
Por isso que o que eu acho mais importante de estar aqui, ou de qualquer outro lugar,
é... da gente encontrar... são duas coisas. São duas coisas, duas coisas. Uma é a verdade
daquilo que está sendo feito. Tá? Essa verdade ela não depende do que está sendo feito.
Não depende se tá fazendo teatro de rua, gritando no meio da rua, ou se você tá fazendo
uma coisa completamente intimista, essa verdade, ela fica num lugar de que é assim,...
ai, eu me sinto tão péssimo
(risos discretos)
Que é um lugar assim... Quem está ali.? Naquele momento. O que me fez pensar muito
foi aquela conversa que nós tivemos ali no bar... que você falou da personagem....
CANDICE
Falei da personagem.
JOELSON
E que... É uma coisa que a gente ... pára muito poucas vezes pra conversar a respeito, e
que eu devia fazer isso mais, que afinal de contas eu fico exigindo, querendo fazer uma
coisa e eu devia falar mais sobre isso, esse pensamento que eu tenho sobre o que que eu
acho que é interessante no resultado da coisa. O que é muito importante, é... pra mim,
pode não ser pras outras pessoas, é a gente esquecer, abolir, totalmente, falei muito
disso na época d´As Criadas50, eu lembro que eu falei muito disso, abolir
completamente a instância de personagem. Vamos esquecer essa coisa. Vamos apagar
esse lugar de personagem. Essa pessoa que existe e que tá fora, nós vamos agora nos
concentrar nessa pessoa..., que a concentração, ela é inimiga da gente, a concentração,
ela fecha a nossa percepção. A gente não tem que ter concentração. A gente tem que ter
atenção. É o contrário. O que a gente tem que fazer é pra fora, não pra dentro. Né?
Quando uma pessoa concentra muito, está muito concentrado, na personagem, que é
diferente, é diferente da pessoa estar...
CANDICE
Alerta
JOELSON
... alerta.... E...e...e..e... E ao mesmo tempo concentrada...é.... Concentrada... não queria
usar essa palavra. Dela estar ali, alerta para fora e alerta para dentro, entendeu? Por que
essa concentração fecha, ela fecha a percepção, e você fica só num lugar. E esse lugar
50
Peça de Jean Genet que Joelson, Lucas e Leonardo montaram em 2005. A direção fora de Joelson.
102
da... esse lugar da personagem é um lugar muito perigoso. Muito perigoso, porque você
não tem o domínio disso, entendeu? É... tem uma coisa que eu queria que todo mundo
lesse... Candice já leu esse texto, acho que o Bernardo já leu que ele já comentou... Pra
gente conversar sobre isso depois ... que é um texto que foi escrito, isso eu acho a coisa
mais incrível do mundo, em 1758, 7, 8...? Mil setecentos e cinqüenta e alguma coisa, se
for 1757 tem duzentos e cinqüenta anos que foi escrito, né? Eu não sei se vocês já
leram, que é o Paradoxo do comediante (sic) do... Diderot. Diderot foi um daqueles
franceses que foi um dos enciclopedistas e tal, né? E ele escreveu esse texto, o
Paradoxo do comediante, na época lá, falando o quanto o teatro dramático, trágico,
representativo, e tal, o que é que ele achava que o ator tinha que fazer, né? E tem uma
frase nesse texto que eu acho muito clara, muito clara, que ele fala assim, é mais ou
menos assim, ele falando, que é um diálogo, né, é... é uma pessoa falando com outra
discutindo o que que é o papel do ator... do comediante, do ator, e ele fala assim: o cara;
quando termina o espetáculo, o ator, ele está cansado, elétrico, cansado, e o espectador
tá triste, digamos num drama, né, e o espectador tá triste, por que? Porque o ator se
agitou muito sem sentir nada e o espectador não se agitou e sentiu todas as coisas. Eu
acho isso de uma clareza enorme, sabe... GENTE, O TAMANHO DAQUELE
GAMBÁ!!!
CARMEN
Nossa!!!
(comoção de todos)
LEONARDO
(chamando o animal)
Diderot!!!
CANDICE
Ontem eu mostrei pro Lucas e o Lucas ficou meio que: não, cadê, cadê...
(comoção)
JOELSON
É DESTE TAMANHO!!!
LEONARDO
Diderot! Diderot!
CANDICE
A gente tava ensaiando aqui fora, e ele apareceu ontem...
LEONARDO
Faz o ninho em cima da árvore a árvore.
(comoção; fala-se de capivaras que Bernardo reclama ser sua área; Diderot ainda é
chamado como animal doméstico)
103
CANDICE
Vocês viram ontem os morcegos bebendo água na piscina?
JOELSON
É...
CANDICE
Você acha isso de uma clareza...
JOELSON
Eu acho isso de uma clareza muito grande pra gente entender desse... qual é o lugar, que
que é esse negócio de personagem? Entendeu? Porque assim, é...
(pausa)
...nossa...
(pausa maior)
(risos tímidos)
...ééé´... Eu entendo assim, que eu tô falando isso, o que eu entendo como eu faço
quando eu estou fazendo alguma coisa, quando eu tô num lugar de atuação, né.? No
lugar de ator. É... Existe um lugar que é: quem tá ali. Quem tá ali é a Ângela, Luciano,
Léo, Júnior, ali Candice. Quem tá ali. Agora, eu vou ver uma outra pessoa. E essa outra
pessoa ela vai... me vai ser mostrada a partir das pequenas coisas que essa pessoa faz.
Né? Pequenas coisas que essa pessoa faz, que a pessoa diz, né? Pequenas atitudes, mas
quem tá dizendo, quem tá fazendo, é o seu corpo e é a sua voz que tá fazendo.
Entendeu?
CANDICE
É que ontem, quando eu falei pra ele, pro Jô lá no bar, que a minha amiga, o marido
dela falou pra mim assim, que as pessoas ficam tentando conversar comigo como se
fosse eu, né, mas aí já tá durante a peça. Então sou eu, mas também não sou. Eu não vou
ficar falando, que foi isso que o Joelson orientou, ficar falando de coisas quotidianas, aí
eu falava, mas eu falava do jeito que eu tava falando, né?... Aí o André falou assim: ih,
ela já ta incorporando, aí fiquei calada. Não Falei nada. Eu já tenho uma resposta pra
isso na próxima vez. Aí, toda hora tem que ficar criando texto. Fazendo isso você tem
que criar o texto na hora. Aí eu vou ter que falar que eu não sou mais de santo de
macumba não, que agora eu sou budista.
(ri)
LEONARDO
Pomba-Gira.
CANDICE
Agora eu sou budista.
104
(ri)
Leda agora é budista. É...e aí ela falou assim: já é a perso... meio que já é a personagem.
Aí eu olhei pra ela e falei assim: eu sou eu, mas todos nós somos vários. Aí ela... ficou
olhando assim pra mim... Aí foi isso que eu tava falando pro Jô ontem, nesse papo, só
pra eu falar pra ele
(murmúrio)
JOELSON
Tá muito abstrato isso que eu tô falando?
LUCAS
Nem um pouco.
JOELSON
Nem um pouco? É..., então eu falei isso tudo porque eu quero voltar no assunto anterior,
que é a coisa da, do... desse lugar de verdade. Né? É... mas antes eu falei que tinha duas
coisas. Uma era essa coisa da representação e a outra coisa é que tá meio metido nisso
tudo que é a coisa da materialidade, palavra que eu gosto de usar e que eu já falei
algumas vezes, é... que é da gente entender que o lugar que a gente tá falando..
entendeu? É de uma mulher que senta na banheira e penteia o cabelo. Né?
CANDICE
É concreto.
JOELSON
É concreto. É concreto. Não tá em outro lugar. Não tá, não tá. Tá ali. Tá numa mulher
que usa um vestido horroroso com uns colares de pérolas, um negócio no cabelo e uma
luva só na mão (sic), tá nisso, entendeu? Tá nessa coisa, já tá ali, a gente, quando a
pessoa entra e vê a Ângela vestida daquele jeito, vamos supor, ela recebeu trocentas
informações na cabeça dela. Né? Já é muita coisa. Você não precisa de mostrar e fazer e
não sei o quê, não, ela já tá ali, aquela pessoa tá na frente dela, dentro daquela sala
pequenininha ali! Sabe?
CARMEN
Não é nem que ela já recebeu trocentas informações, mas ela já processou as
informações que ela faz também,que ela já tem.
JOELSON
Sim. Exatamente.
CARMEN
Ela faz as relações dela. Então, na verdade ela que... ela que faz, ela que processa as
informações...
JOELSON
É. E aí a gente... cabe à gente a esperteza de dar, de ir dando essas informações pras
pessoas. Mas através daqui, da, que é que é isso aqui, o meu braço, então eu sento e eu
falo: Léo, não põe o braço assim, isso é uma informação da materialidade do Césa... do
105
Fernando, naquele momento, né, que ali te coloca num lugar de mais fragilidade e que
você não coloca o braço aqui. Você coloca o braço aqui. É... voltando então à coisa de,
da verdade. É...
(pigarro)
Que é uma coisa assim. Todo mundo atinge isso. Entendeu? Todo mundo no trabalho
atinge isso. Em alguma instância. Né? É... mas algumas vezes foge, outras vezes fica
muito presente pra todo mundo, outras vezes não tem nada, né...? que é muito simples,
eu, eu penso assim, que é uma coisa muito simples, no final das contas. Muito simples.
Pra quem eu estou falando. Só isso. Pra quem eu to falando. Eu, eu, eu, esse corpo aqui,
e essa voz aqui, ta falando pra quem? Né? Então, eu não estou querendo dizer assim: eu
estou falando para este público de determinado assunto, eu tô falando da cena mesmo.
Né? Então, é... Um exemplo de uma cena que funciona muito bem. Que é a cena que é
Leda e Vicente. Né? Só conversando. Pra quem que eles estão falando? Eles estão
falando... um pro outro. Eles tão falando, conversando. Né? Funciona. Né? É que são
duas pessoas que tão conversando. Né? Pra quem? Né? Tá falando pra quem?
Entendeu? É... A Ângela tá com uma cara tão séria...! O que que é?
ÂNGELA
Por que eu não consigo atingir isso que você quer e eu tô preocupada.
JOELSON
Mas olha só.
ÂNGELA
Eu acho, assim, uma responsabilidade muito grande. Agora que você em dizer isso?
Agora depois que o espetáculo já tá...
JOELSON
Mas eu já falei...
ÂNGELA
Não... Você sempre lutou por isso, mas você tá falando de uma forma, pra mim, eu tô
com a carapuça lá no meu dedinho mindinho. Por que eu sei que eu faço tudo isso.
JOELSON
Mas a questão não é essa.
ÂNGELA
É péssimo.
JOELSON
Mas a questão não é essa. Esse assunto, ele tem que ser pensado e colocado, sempre, pra
qualquer pessoa. Entendeu? Hoje de manhã... eu vou dar um exemplo. Hoje de manhã,
por acaso, eu acabei que dei uma carona para a Denise, a Denise que veio aqui ontem, a
Denise Stutz, a Denise Stutz, ela tem uns cinqüenta anos de idade, ela foi fundadora do
grupo Corpo e ela é aplaudida pra dançar, quando ela entra as pessoas aplaudem ela.
Né? Aí ela veio me contar essa história, que ela deu um workshop lá do Piolim, só
aqueles atores fodas, bem mais velhos e tal, né? Ficou dez dias com eles, não sei o quê e
106
tal, e no final do workshop um cara falou assim: você podia fazer uma demonstração do
seu trabalho pra gente. Ela fez. Mas ela falou: foi um horror. Ela fez tudo o que ela tinha
falado pra ninguém fazer durante dez dias
(risos)
... ela fez. E ela tem consciência disso! E eu... ela falou: Joelson, foi horrível, ela falou
assim: gente, eu fiz tudo errado! E eles falaram: é, você fez tudo errado. NÉ? Que é um
lugar que a gente tem que pensar em se colocar nesse lugar sempre. Agora, não adianta
ficar se pensando assim: ah, porque eu vesti a carapuça até o pé. Não tem nada a ver
uma coisa com a outra. Entendeu? Não tem nada a ver. Uma coisa vai se ganhar agora, e
vai se perder daqui à pouco, e vai se ganhar de novo daqui à pouco. Né? A gente tem
que ter essa, essa maleabilidade de, de, de boa vontade com a gente mesmo, entendeu?
Porque é muito difícil a gente fazer uma coisa boa. No teatro. É muito difícil você
fazer... faz um minuto de cena aí, agora... Não faz. Faz? Não faz. Ninguém faz. Faz aí
um minuto, inventa agora uma coisa. Não faz, gente. Não faz, porque é uma coisa muito
difícil de fazer. Né? Então é um ganho diário. Você pode fazer uma coisa linda, agora, e
depois fazer uma coisa e: gente, que horror que eu tô fazendo, que é que é isso, por que
que eu tô fazendo isso?
(risos)
Né? É assim. É assim, você vê os grandes atores, incríveis, não sei o quê... Não entendi!
Por que essa pessoa tá fazendo isso? Entendeu? Então é uma coisa pra... o nosso
pensamento do dia-a-dia. Vou voltar de novo na mesma coisa. Quando eu falo dessa,
dessa, dessa verdade é: você tá ali. Dentro daquela sala. Quando você fala uma coisa,
você olha pra uma pessoa, é muito simples. Você olha pra uma pessoa, você fala uma
coisa pra ela. Eu tô falando aqui, por exemplo: Candice, vê só, tô te falando isso aqui.
Né? Mas se eu tô te falando isso você vai... eu tô falando com você.! Pápápápápá.
Entendeu? Quem eu tô fazendo agora? Eu tô fazendo o papel do diretor. Né? Mas eu
poderia tá fazendo a mesma coisa que você do mesmo jeito, se tivesse em uma outra
situação em outra posição. Né? E eu taria direto, aqui, falando com você, chegando em
você, olho-no-olho, entrando ali, né, com a distância que tem... entre a gente. Quando a
gente alcança esse lugar, não importa se o espetáculo tem esse histrionismo muito
grande, como era no caso d`as Criadas, como era no caso de vocês dois fazendo o
começo do Dissocia. Que era de morrer de rir, era super engraçado e tinha uma verdade
tão grande, o que vocês tavam fazendo, e era uma coisa que não tinha nada de
naturalismo, de todo mundo numa sala. Era palco italiano, de frente, vocês estão ali,
assisitindo a gente fazendo essa coisa e a gente ta aqui, pum-pá-pum-pá-pum-pá, um
com o outro, um com o outro, um com o outro, exageros, Luciano cai no chão e...
(choro farsante)
...sabe? Mas tem um lugar de verdade muito grande. Né? Naquela coisa. E essa verdade,
ela aparece quando você tem a noção de pra onde você tá falando. Pra quem você tá
falando. Né? Aí peguei o Léo outro dia na cena individual dele...é...O Léo foi e fechou a
cortina, escorou na pilastra; e entrou numa coisa entronizada. Aí eu falei com ele: Léo,
você fechou a cortina, você ta com um monte de gente em volta de você te olhando,
você tá aqui. Entendeu? Você tá aqui. Você, Leonardo, você tá aqui, nesta sala. Então,
olha pra essas pessoas, fala alguma coisa com elas, sorri pra elas. Entendeu? Fala pra
107
ela, chega na pessoa, pega nela: olha só, eu descobri que a felicidade acaba, quando ela
acaba
(murmúrio)
... Fala pra essa pessoa aqui. Entendeu? Se a gente consegue encontrar esse lugar a
gente consegue fazer qualquer coisa. Seja uma coisa toda pra fora, uma coisa muito
pequena, uma coisa no meio da rua, né? Esse ponto é um... é uma... é uma chave.
Muito... muito boa. Ontem tinha a questão de estar todo mundo muito nervoso. Né? Eu
tava muito nervoso, eu tava gelado.
LUCAS
É, a gente também tava muito nervoso.
JOELSON
Então tinha uma, uma coisa assim de Ah! E o Léo não conseguia começar a falar, não
saía a primeira fala...
CANDICE
Não, se o Léo não fosse trazer aquela cachaça ontem... Porque eu tava com um frio, tava
nervosa, gelada e com muito frio. Pô, ontem tava muito frio. Aí eu tum! Na cachaça.
(ri)
LEONARDO
É, ela deu uma deitada...
(risos)
CANDICE
Não, salvou. Valeu. Salvou mesmo.
JOELSON
Uma outra coisa... tem um outro pon... um outro ponto. São só... são só esses dois
pontos que eu quero falar. A coisa da verdade do, do que... pra quem que eu tô falando,
que que eu tô fazendo aqui...
CANDICE
Da materialidade
JOELSON
...agora nesse lugar, onde que eu tô, essa sala, essa sala tem uma coluna no meio, tem...
é muito importante isso, sabe? Essa sala tem uma coluna no meio, tem quatro portas do
lado de cá, tem duas do lado de lá, duas janelas aqui, tem uma porta que vai pra lá, toda
essa noção...
CANDICE
É verdade isso...
108
JOELSON
...entendeu? Do...
CANDICE
Do espaço
JOELSON
... Do espaço, de saber onde que eu tô, isso tudo te coloca num lugar. Te dá um ponto
de...
CANDICE
É a materialidade que você tava falando.
JOELSON
Exatamente.
CANDICE
Mas sabe por que que eu queria falar do negócio do espaço? Porque todas as pessoas
que falaram comigo, todas, me falaram do lugar. Todas as pessoas. Assim: gente, esse
lugar em que vocês tão fazendo o neg... aí eu... eu fiquei em casa lembrando do lugar.
Aí eu pensei: realmente, a gente tá fazendo a peça num lugar, numa sala comprida, com
uma pilastra no meio, com uma cores super-interessantes, uns sofás, toda uma
ambientação, umas portas maravilhosas, essas portas são uma coisa maravilhosa, tem
uma ambienta... a gente não tá numa...eu falei isso hoje pra uma amiga minha, eu falei
pra ela que é atriz e coisa e tal: a gente não tem um cenário, a gente tem uma locação, é
quase como se a gente tivesse fazendo um filme.
JOELSON
É...
CANDICE
É como se fosse, por isso que eu foquei brincando que a gente podia fazer o dogma,
botar uma câmera na mão e fazer o filme d´O que nos resta, porque é praticamente
como se fosse um filme, isso aqui. Assim, o ambiente...
JOELSON
Essa, essa, essa coisa que eu tô falando da representação
CANDICE
Ela...
JOELSON
No cinema ela é muito...
CANDICE
É, não tem.
JOELSON
Não tem...
109
CANDICE
Não tem representação.
LUCAS
É.
CANDICE
Não tem cenário. É locação.
JOELSON
Você tá ali, são duas pessoas conversando, são duas pessoas sentadas, são duas pessoas
brigando, discutindo, gritando uma com a outra, né? Elas tão ali, essas duas pessoas.
LUCIANO
Quanto menos fizer...
JOELSON
Quanto menos fizer...
LUCIANO
Por que fica grande. Na tela fica enorme...
JOELSON
Pois é.
LUCIANO
Aí fala: ai caralho, eu não devia ter feito isso.
JOELSON
Mas então deixa entrar no... na última coisa que eu queria falar, que era a...ai meu
Deus...
(pausa)
Nossa, gente! Me perdi. Ah, lembrei! É... tomando o exemplo do que aconteceu com a
cortina ontem. A cortina deu um... trec lá e que... não abriu, né? É... É mais uma coisa
assim de tomar um... tomar cuidado com, pensar o seguinte: nós estamos dentro dessa
sala, os expectadores estão dentro dessa mesma sala, a cortina quebrou, nós estamos em
tempo real, todo mundo viu que deu um problema, entendeu...? Então a gente não tem
que resolver aquela coisa com desespero. Entendeu? Quebrô! Vai lá... concerta... do
jeito que consegue concertar. Precisava da cortina aberta, é só um exemplo, ta Leó? Não
tô falando mal não, tá?
LEONARDO
(murmúrio de aceitação)
JOELSON
Pronto. Abriu a cortina. Entendeu? Caiu, quebrou. Um monte de caco de vidro, todo
mundo descalço. Não tem como fazer. Né? Vai lá, faz o negócio, limpa, aí tem que ter
110
esse savoir faire de... de que as pessoas sabem que a gente tá fazendo uma peça. Não é?
Sabe! As pessoas sabem! Parô! Ó, não tem como continuar. Esse é um caso extremo.
Um caso extremo. Mas eu tô querendo falar de uma coisa um pouquinho diferente. Que
é assim... É... as ações, que elas têm que ser executadas, é... elas tem que simplesmente
ser executadas. Então... eu vou voltar no exemplo de fechar as cortinas. Fechou a
cortina. Fechou? Fechou a cortina. Verifica se tá fechada. Tá bom, não tá atrapalhando
ninguém? Vai lá e fecha a outra cortina. Entendeu? Não tem que ter uma eficiência no
sentido que: a peça está bombando, nós temos que fechar essas cortinas, vamos agora
abrir as corinas, entendeu? Aí o que aconteceu? No caso da cortina. Tô falando isso do
Léo por que o Léo tem um punch muito forte. Ele tem uma coisa muito vigorosa, de
energia, e de um não sei o quê, e tal que atrapalha pra cacete, né, que ele se perde nessa
coisa, né? E aí, a cortina, a última cortina, ficou a parte da frente assim, fechando, e as
pessoas não viam nada, da peça. Né? Aí eu fui lá, enrolei a cortina dá licença, deixa eu,
passa pra cá, passei a cortina por trás, e tal, até uma menina falou assim: você não
precisava vir aqui, tá tudo bem. Tudo bem não, gente, tá péssimo. Vocês não tão vendo
nada. Vou deixar essa cortina desse jeito? Né? Mas, é... esse lugar de de que, estamos
aqui, no...
LEONARDO
Nós estamos no controle, também.
JOELSON
Controle, controle! Tá na mão, isso mesmo, tá na mão...
LEONARDO
Acontece.
JOELSON
... tá na mão. Né? Quem...você falou isso e eu lembrei de uma coisa muito importante
na minha vida, mas muito importante mesmo. Quando eu tinha assim, uns dezessete
anos, eu, acho que eu tinha uns dezessete ou uns dezoito anos, a Miriam Pires... E já
contei isso pra você... A Miriam Pires... ela já morreu, né? A Miriam Pires, aquela
senhora, ela foi dar uma palestra lá em Vitória. Eu morava lá em Colatina, no interior do
Espírito Santo e queria ser ator, era foda, e aí eu dei um jeito e fui lá em Vitória e vi a
palestra da Miriam Pires. Aí ela falou uma coisa que eu nunca esqueci na minha vida e
que eu achei o máximo. Ela falou assim: gente, o espectador não sabe nada. É você
quem sabe tudo. Ele tá lá...
CANDICE
Eu digo isso pros meus alunos, que engraçado...
JOELSON
Ele ta lá e ele vai fazer o que você quiser.
CANDICE
Você fala isso de um jeito.
JOELSON
Ele vai acreditar no que você quiser, entendeu? Ele não vai... ele sabe que quem tá com
a faca e o queijo na mão é você! Não é o espectador. Entendeu? Então, se a cortina
111
enganchou, tá na sua, entendeu? É você. Enganchou! Vira pra mim: Joelson, me ajuda
aqui. Não é? Não tô conseguindo... abrir. Tá na mão. Tá na sua mão! As pessoas vão
olhar e falar: ah, bacana. Não tem problema nenhum. Não tem problema nenhum...
LUCAS
É... Acho que fora isso também, a coisa do de acidente vem também a coisa de não
deixar se intimidar pela platéia. Porque às vezes a gente se deixa entrar numa onda
errada, numa onda errada de que: ah, o espetáculo não está funcionando, e o público
está com uma cara assim ou assado, não sei o quê, é que às vezes há públicos e
públicos...
(mumúrio)
, mas o controle é nosso. A gente tá ali, né?
JOELSON
(murmúrio que confirme a tese)
LUCAS
Tá na nossa mão.
CANDICE
Acho que isso aconteceu um pouco ontem, né. Porque a gente ficou muito assim,...o
público todo de amigo, todo mundo ator, todo mundo conhecido...
LUCAS
Eu não sei... eu não tenho a menor... a gente tava conversando sobre isso, eu a Candice e
o Léo. Aí eu falei que eu tava muito nervoso ontem e ela: ah, eu também; e o Léo: ah,
eu também. Aí o Léo falou assim: ah, eu nunca fiquei tão nervoso assim. Nem no SESC
nem no Laura Alvim. Aí a Candice: nem no Laura Alvim. Engraçado, nem eu.
(murmúrio)
(risos)
CANDICE
Aí a gente segurou as mãos, cara, a gente tava gelado.
LUCAS
Aí a gente pen...
CANDICE
Um negócio horroroso.
LUCAS
... ficou conversando assim, do por quê desse nervosismo todo, ontem aqui, né? Aí o
Léo falou uma coisa legal que eu acho que é, assim, porque... o foi que você falou?
Acho que foi, né? Do quê mesmo? O qual, qual foi...
112
(risos)
LEONARDO
Foi tão marcante!
LUCAS
Não! Eu sei o que é, mas você falou de uma maneira...
LEONARDO
Eu gosto disso. Ser fundamental na vida das pessoas.
LUCAS
Não, não... é que você falou de uma maneira bacana, assim... é, é... como é que é? Da
qualidade, como é que é o negócio?
LEONARDO
Eu não lembro também...
(risos)
LUCAS
Foi uma coisa muito importante.
CANDICE
Não...
LUCAS
Não, não... O que é que é? Aí o Léo falou assim: não, eu acho que a gente tá se sentindo
assim...
LEONARDO
Da nossa responsabilidade.
LUCAS
É que dessa vez, é... existe realmente uma, uma... uma vontade muito grande de fazer e
uma (incompreensível) do trabalho... da qualidade do, do trabalho. Né? O...
CANDICE
O trabalho foi ganhando.
LUCAS
Foi ganhando, ao longo dessas temporadas, e tal. Então, e tem a coisa do local, também,
o local perfeito pra fazer o espetáculo, tem isso tudo. Então, assim, a coisa mesmo de,
de... De tá... de tá....
LEONARDO
E eu me senti ontem com a responsabilidade...
113
CANDICE
Você tá acreditando...
LUCAS
Acreditando muito, né, e orgulhoso. Então, assim, é uma coisa de que aqui, né, pode
funcionar, pode dar muito certo e, e tá tudo certo, e os problemas todos que a gente
passou durante todas essas temporadas, né? Aqui as coisas são favoráveis, aí o Léo foi
nisso, né... então, enfim. Acho que rolou uma histeria mesmo, assim. Isso descontrola
por que o nervosismo também te leva pro lugar onde você se sente confortável, né? Que
é esse lugar da...
CANDICE
Da histeria.
(risos)
LUCAS
Da representação, talvez.
CANDICE
É, que mais...
LUCAS
A gente aprendeu isso...
CANDICE
É mais seguro...
LUCAS
Que é mais seguro, é óbvio! É óbvio!
CANDICE
O nervosismo é um descontrole. Gera um descontrole. Então você vai pra onde tem
controle. Na...
LUCAS
Exatamente. Então você vai pra onde tem controle. Pra onde você tem controle? Aonde
você tá acostumado a sua vida inteira vê... é ali!
CANDICE
...representação. É que você vai ter que se colocar de uma maneira muito mais exposta.
LUCAS
Muito mais.
JOELSON
Sim...
LUCAS
Muito mais. Total. Totalmente. Você se expõe através de... é.
114
LEONARDO
E tem outra coisa. O descontrole requer uma solução.
LUCAS
Dessa interpretação... dessa personagem, essa coisa
LEONARDO
A gente conversou ali fora. E todo mundo se sente responsável em dar uma solução.
Então a gente se encontrou ali, no meio, e falou: tá sem ritmo, né...
(risos)
... Aí todo mundo desembesta a correr.
LUCAS
É... Aí eu entrei pra fazer o monólogo, né... e fiz o monólogo em dois minutos!
LEONARDO
Tá na sua mão, tá na minha, tá na dele...
LUCAS
Não tinha a imagem, não tinha nada,
(murmúrio)
... foi completamente jogado fora. Até a hora em que eu me sento na cadeira. Pelo
menos eu achei assim.
JOELSON
Não foi tão assim também não...
LUCAS
Tá. Não, tudo bem, tá... Beleza, mas, assim, poderia ser melhor.
CANDICE
Menos imagem, menos...
LUCAS
Mas por isso, né... pra parar com essas bobagens, é... No final das contas, também... sei
lá... não foi isso tudo...
ÂNGELA
É pertinente isso que você tá falando. Porque eu acho que aqui a gente, nós cinco aqui,
eu acho que tá todo mundo super empenhado em fazer o melhor. Eu, por exemplo, sei
que eu sou a rainha de fazer tudo isso que o Joelson tá falando. Mas eu... eu não...
ontem eu até falei com o... com você... que, pra mim, é a maior dificuldade. É
exatamente chegar no natural. Eu acho que é a grande complexidade, e agora você diz
assim: ah, é muito fácil, você olha e faz... Pra mim, é exatamente o mais difícil, é o que
115
eu estou buscando, pra mim. Entendeu? Então, é... Aí eu vario. Às vezes eu faço, às
vezes não faço, mas eu tenho consciência da merda toda que eu fiz.
CARMEN
Mas eu acho não que é porque é fácil. É por que é simples, é porque às vezes a gente
complica...
ÂNGELA
É. Eu acho que a grande beleza do ator é quando a gente chega...
CARMEN
Chegar na simplicidade é que é difícil.
ÂNGELA
...na total folga, é que também eu não posso chegar num palco do jeito que eu tô aqui,
sentada assim, o pessoal batendo papo...
LUCAS
Tão batendo ali?
ÂNGELA
O Joelson tá dizendo que é assim...
BERNARDO
MARCÃO!!!
ÂNGELA
Eu acho que não é assim. Eu acho que você tem que ter alguma energia que você
precisa como ator. Eu entendo assim. Eu acho que o ator não pode ser a mesma coisa
que eu me levantando na minha casa, da minha cama. Eu acho que não é isso. Então,
esse, essa... esse pequeno fio que separa isso que você almeja, que eu também almejo,
do vir a conseguir, eu acho a grande, a grande sacada. Que eu, às vezes consigo, às
vezes eu não consigo. Mas eu tenho a consciência de quando eu não consigo. Entendeu?
Quando eu consigo eu nem tenho a consciência, mas quando eu não consigo, eu tenho
plena consciência... mas aí já rolou, já rolou, já... entendeu? Então, acho que isso tem
que ficar muito claro, porque a gente, todos aqui, estamos tentando. Então...Acho que
isso é importante. Pra mim, é importante...
JOELSON
É, mas eu não tô falando nesse... oi!
MARCÃO
Pode abrir já?
JOELSON
Não.
LEONARDO
Que isso?
116
JOELSON
É gente pra ver a peça?
MARCÃO
Acho que é...
LUCIANO
Caralho!
JOELSON
O quê... são quinze pras oito. A peça é nove horas.
CANDICE
Vai fazer esperar lá embaixo?
LUCAS
Toma um chope.
CANDICE
Esse pessoal não pode esperar aqui dentro não...
ÂNGELA
O povo tá querendo a senha, né?
LUCAS
Eu tô achando que é a senha.
JOELSON
Gente... Eles nem fizeram esses papéis ainda pra eu entregar.
ÂNGELA
O que é isso...!
JOELSON
Eles não me entregaram.
LEONARDO
Fala que abre oito e meio então?
CARMEN
Pega um programa, pega um programa...
CANDICE
Ah, é... Boa.
CARMEN
E entrega o programa.
CANDICE
Acho melhor deixar as pessoas entrarem, gente... elas vão ficar esperando?
117
ÂNGELA
Eu acho...
CANDICE
Não tem onde ficar.
JOELSON
(se levanta)
Deixa eu ir lá ver.
(Joelson se levanta do círculo que havia se formado ao lado da piscina. Entra e sai do
salão a fim de pegar os programas, levando à cabo a estratégia de Carmen.)
Fala pro Marcão pra ele prender o cachorro.
(Joelson desce a escadaria que serve de entrada para o público, na primeira porta onde
consta o número 98.)
PÚBLICO
Eu vim através do jornal. É... eu queria ver se eu pegava a senha e dez minutos antes do
horário eu voltaria aqui.
JOELSON
É que.. Ah, sim. Você volta aqui depois...
PÚBLICO
Sim. Quinze minutos antes.
JOELSON
É que... o... o... rapaz que tá preparando as senhas pra mim, ele não trouxe ainda. Então
eu vou te dar o programa do espetáculo.
PÚBLICO
Ele é válido como senha.
JOELSON
Sim. Você chega aqui, você fala: eu cheguei aqui, eu peguei esse programa...
PÚBLICO
Como é o seu nome?
JOELSON
Joelson.
PÚBLICO
Tá bom então. Obrigado.
118
JOELSON
É pra uma pessoa só?
PÚBLICO
É.
(resolvida a crise, Joelson retorna ao círculo formado ao lado da piscina. Na ausência
do diretor a conversa continuava)
BERNARDO
Cresceu quando tinha que crescer...
LEONARDO
Foi ótimo.
BERNARDO
Foi ótimo.
LUCAS
Se for pra São Paulo, né? Então eu acho, né, que a gente tem que...
CANDICE
Por que é uma pesquisa de linguagem, né?
LUCAS
Claro! A gente tem essa chance, né? Enfim, foi uma coisa que eu falei quando a gente
se reuniu quando... da, na... a gente veio fazer depois do prêmio Myriam Muniz, a gente
tem essa oportunidade na mão, né? Quem é que tem isso, né? Quem que tem?
Geralmente se faz um trabalho, faz uma temporadinha e acabou, né? É a terceira
temporada. Sabe? Como cresceu!
CANDICE
Re-elaborado, né?
LUCAS
Exatamente. Quantas coisas a gente descobre diariamente, né? E eu acho que esse tipo
de discussão tem que circular sempre. Sempre.
JOELSON
Por que essa busca, essa busca pela coisa... pela coisa mais simplificada, né...? Ela é a
busca mais difícil.
LUCAS
Exatamente.
ÂNGELA
Pois é. Exatamente.
LUCAS
E a gente tem um material completo pra fazer isso.
119
JOELSON
E isso...
LUCAS
Pra esse tipo de discussão não ficar na teoria, entendeu?
ÂNGELA
E eu mesmo não me sinto à altura pra aprender isso, assim, de fazer do início ao fim. Eu
tenho uma forma de concentração, eu tenho. É a minha maneira de trabalhar. Eu tenho
isso, eu gosto de fazer meu trabalho de corpo, eu gosto de puxar... até tô querendo ir lá
pra fazer...
JOELSON
Mas o que eu tô falando...
ÂNGELA
É um caminho que é meu.
JOELSON
... não é nada contra isso. O que eu tô falando não é nada contra isso. É muito pelo
contrário. É a favor disso. É a favor de você estar ligado. Eu só queria trocar o termo
concentração pelo termo: atenção. Que a concentração é uma coisa que fecha a pessoa,
ela fica ensimesmada, fica muito concentrada: não posso sair dessa coisa, que eu tô
agora. Eu chego num lugar... e não é isso. É o contrário. É: estar alerta. Estado de alerta.
O tempo inteiro. Entendeu? Encontrar essa, essa... essa coisa alerta. Se acontece uma
coisa, se você está muito concentrado na sua coisa, e acontece um problema, você não
sabe resolver o problema. Você não sabe falar uma coisa... e, e... resolver aquela
situação. Agora, se você tá alerta, pro que tá acontecendo em volta... de você, aconteceu
um negócio, você resolve na hora. Né? Eu vou dar um exemplo. Eu vou contar uma
história muito legal que aconteceu com a gente, né? A gente tava fazendo Crime e
Castigo...
LUCAS
Crime e castigo, tem várias histórias.
JOELSON
É. A gente fazia isso: a história da batata... todo mundo conhece a história da batata?
CANDICE
Não sei essa. Conta!
JOELSON
A gente fazia isso...
CANDICE
Tá gravando...
JOELSON
A gente tinha surpresas. A gente se preparava surpresas.
120
LUCAS
Durante a temporada.
JOELSON
Durante a temporada.
LUCAS
Que é um outro espetáculo como esse. Né? Nós trabalhamos muito. Então... então...
quando...quando a gente tem esse material na mão, que a gente pode tra... trabalhar, e
usar todas essas coisas que a gente busca, né? É uma oportunidade maravilhosa.
JOELSON
E aí...
LUCAS
... não fica na teoria. É na prática, né? Não fica só no nível da...
CANDICE
É legal...
LUCAS
... de... da discussão. Entendeu? A gente discute, pensa e... e... leva, né?
JOELSON
E aí a gente tinha essa coisa do, ... que a gente tava achando que a gente tava
mecanizando o trabalho. Repetindo o trabalho. Então a gente começou a preparar
surpresas uns pros outros durante a peça, pra pessoa levar um susto na hora e ter que
resolver aquele problema. E a maior surpresa, a mais complicada de todas que
aconteceu, e que... o personagem do Júnior, ele chegava na casa, ele dava um dinheiro
pra família enterrar o morto. Não tinha dinheiro pra enterrar o morto.
LUCAS
Que era o Joelson.
JOELSON
Que era eu.
LUCAS
Que ficava lá...
JOELSON
E aí, um dia o Júnior me chega, no meio da hora de ele me dar o dinheiro, ele vira pra
gente e fala assim: (murmúrios)... por que eu trouxe aqui essas batatas.
LUCAS
Por que eu passei no...
JOELSON
No supermercado...
121
LUCAS
Eu passei na feira.
JOELSON
Na feira... e eu trouxe aqui essas batatas. Aí, eu, a Cristine e a Ângela, a gente ficou em
pânico, porque eu era o morto mas eu ficava em pé, andando pela cena conversando
com as pessoas. E a gente ficou em pânico! Era um desespero, assim. Vamos nos salvar,
pelo amor de Deus!!! Como é que a gente vai sair dessa? Era assim! Um olhava pro
outro assim! E era muito bom, sabe por que? Sabe, gente, fica um negócio assim...
LUCAS
Fica viva. Fica viva, viva.
JOELSON
Muito real! Era um desespero muito real!
LUCAS
É. Em meio segundo...
JOELSON
Aí a gente ficou assim: Ah, batatas! A gente vai fazer uma ceia! E aí...
CANDICE
Uma sopa, com as batatas...
JOELSON
E aí a Cristine: É, uma ceia! Vamos fazer uma ceia! Uma ceia, sabe? Mas um desespero
tão grande!
CANDICE
Mas como é que resolveu?
JOELSON
Ficou nisso, na verdade. Fazer uma ceia.
LUCAS
Ficou nisso. Mas o desespero ficou ótimo, entendeu? Ficou super-vivo! Por que era
isso, uma pobreza absoluta, uma miséria... terrível, né cara. E o cara dá as batatas... E
ficou tão, né,?
JOELSON
É.
LUCAS
...verdadeiro, aquilo, né? E aquela mulher recebendo aquelas batatas...
JOELSON
E o bacana é que...
122
LUCAS
... e ao meso tempo o cara, era a única coisa que o cara podia dar...
CANDICE
A salvação que eles tinham era isso.
LUCAS
Enfim. Ficou cheio de significado. Foi muito legal, né?
JOELSON
E o bacana que eu acho desse exemplo, é, assim, a gente pensar esse, esse... como que a
gente tem que tá ligado no, no, no... na hora que a gente tá fazendo, no outro, nas outras
coisas que tão acontecendo em volta, em tudo que tá ali. Né?
LUCAS
Em tempo real.
JOELSON
Quando eu falo: essa sala, essas portas, essas par... essas pilastra, esse chão que é
diferente de um lado e do outro, vou ver como que eu piso, né? Tudo isso, né? E aí,
você, se acontecer uma coisa que dá uma, um problema, tem... imediantamente aí
aparecer uma solução, que tá todo mundo, né, pá! Né? Se, as... segurando ali o negócio.
Né? Ó... só mais uma coisinha. É... Essa é a última, tá? Rapidinho. É, é... Existe sim,
isso que você falou, dum estado diferenciado do ator em cena e da vida da pessoa que tá
fora de cena. Lógico. Ele existe. Não é o lugar absolutamente quotidiano, ali dentro.
Não é. É, tem lá... aqui é muito sutil, a diferença é muito pequenininha mesmo, né? Mas
esse lugar, ele existe. E eu percebo, é... que a, é... a existência desse lugar, ela, ela passa
muito numa, na questão da consciência... É... dessa coisa da consciência: de onde eu
estou, que que eu estou fazendo agora, né? Do... dessa capacidade do ator estar fazendo,
estar vendo o que ele está fazendo, ao mesmo tempo. Por que a gente faz isso. Né? A
gente sabe que se a gente faz assim com a mão...
LEONARDO
A mão tá colocada aí.
JOELSON
... a mão tá colocada aqui e ela tem determinado efeito. A gente sabe disso. A gente faz
isso. Né? E isso não tem nada a ver com quotidiano, que no quotidiano a gente não fica
pensando no que a gente tá fazendo. Né? E a gente em cena a gente pensa o tempo
inteiro. Eu tô pensando, a gente tá pensando, né? Onde que tá meu pé, onde que tá
minha, minha... pra que lado que eu tô virado, nesse momento, né? Existe um
engajamento de, de, de.... digamos assim, de energia, que não é o,o,o,... que a gente tá
fazendo aqui, agora. Batendo papo, e volta da mesa. Né? Por que, pode ser que do outro
lado também, que é a gente querer encontrar alguma coisa absolutamente quotidiana, e
ficar representando a gente mesmo. Né? Que é o que eu acho que eles fazem, por
exemplo, lá na (Nome Suprimido). Lá na (Nome Suprimido), querendo encontrar um
quotidiano, como eu conheço bem aquelas pessoas, eu fico olhando assim pensando: ai,
que saco! Que eu vejo que eles tão representando eles mesmos. Né? Que eles sabem
fazer melhor, mais bacana, mais bonito. Né? Ridículo. Mas... esse não é o nosso caso.
123
Nosso caso é só essa... estar ali. Estar presente. Né? Eu vou dar uma gargalhada: eu vou
dar uma gargalhada. É só isso. Entendeu? Falou uma coisa:
(ri)
Ri da sua cara. Entendeu? Né? Mas aí, a gente entra no lugar da representação. Eu vou
dar uma gargalhada:
(ri, tal um farsante)
(risos)
Entendeu? É muito... é um lugar muito pequenininho, né? Muito simples, né? Eu vou
bater na mesa. Puta que o pariu, Candice...
(bate na mesa)
... eu vou bater na mesa.
(marcando a fala)
Puta que o pariu, Candice! Já coloquei uma entonação: estou batendo na mesa!
Entendeu?
CANDICE
É fake.
JOELSON
É.
LEONARDO
Olha como eu bato!
JOELSON
Olha como eu bato na mesa muito bem!
(risos)
JOELSON
Tá? Podemos...
LUCAS
Devemos.
Saem de cena para entrar em cena.
124
II – CONVERGÊNCIA.
“A tecnicidade do objeto é, portanto, mais que uma qualidade de uso; ela é o que, em
si, se ajusta a uma primeira determinação dada por uma relação de forma e matéria;
ela é como o intermediário entre forma e matéria(...). A tecnicidade é o grau de
concretização do objeto.” (Simondon, 1969:72)
2.1. Teatro disperso e encontrado
Todos para dentro. É o que acontece quando Lucas Gouvêa, no papel de Vicente
Costa Lourenço, pergunta ríspida e impacientemente “se não vão entrar”, dirigindo-se
ao público. Enquanto isso não ocorria, o público esperava do lado de fora do casarão,
circulando num pátio que emoldura uma piscina, servidos de água e refrigerante pela
assistente de direção, Carmen Zanatta. Com as janelas do salão abertas era possível ver
os atores do lado de dentro e, do lado de fora Candice Abreu, no papel de Leda, recebia
um ou outro espectador. Ela já estava “meio assim”, disse um de seus amigos presente
em uma das apresentações, como que incorporando sabe se lá o quê.
Havia música ambiente e não se fazia idéia precisa acerca do momento no qual a
peça começaria. A expectativa indica, contudo, que a situação deste encontro há muito
tempo vinha sendo preparada. Desde a divulgação da data e hora de cada apresentação
que inscreve o espetáculo no que há disponível como trajeto e experiência na cidade do
Rio de Janeiro, e quem sabe mesmo antes, os elementos técnicos de apresentar e assistir
são cuidadosamente inventados e inventariados. É quase como se a diferença deste
momento com algum outro qualquer fosse de intensidade, orquestrada desde o
recebimento dos convites pelo público alguns dias atrás, conduzindo-se pela entrada
marcada com o cartaz da peça. O mesmo cartaz que marca a entrada é uma réplica do
frontispício do convite distribuído, permitindo a repetição exigida para a confirmação
dedutiva de um endereço. O texto, contudo, já impõe outro horizonte, mais desafiador.
Repetindo o já utilizado no programa distribuído no ano anterior, na Casa de Cultura
Laura Alvim, alguns pontos apresentam sentidos do que virá a ser mostrado, que vão
desde o preto e branco da fotografia parcial de Leonardo em suas asas de anjo (na pele
de Fernando) até um certo pessimismo existencial detida na última frase do segundo do
texto assinado por Joelson: quem nós conhecemos realmente?
125
(fig. 04, Filipeta digital do espetáculo que não contém as mesmas
informações que a filipeta impressa. Todos os leitores assistentes
devem se adequar ao mesmo tempo)51
51
O texto encaminhado por Joelson Gusson via e-mail é o seguinte:
“Queridos amigos,
“O Que Nos Resta é o Silêncio”, meu último trabalho e que agora está reestreando, foi apresentado pela
primeira vez como Work in Process no Festival Riocenacontemporânea de 2005, estreou em junho de
2006 na arena do Espaço Sesc em Copacabana e logo depois cumpriu temporada na Casa de Cultura
Laura Alvim. Além disso, foi contemplado com o Prêmio Miriam Muniz de Teatro concedido pela
126
Pontuar um processo criativo no qual cada um dos atores cria uma personagem
de forma a encenar questões relevantes para si, além de apresentar importantes
desdobramentos sobre a autoria do espetáculo, permite que se possa procurar algo em
especial: as personagens sugeridas, avaliadas como aprimoramento dos atores.
Praticando qualquer paralelo entre o real e o ficcional, onde reside a verossimilhança na
apresentação de auto-representações, que recebe o nome de mise em abyme52? Visando
a fórmula da observação de segundo grau própria da autoria moderna (Gumbrecht,
1998), criar personagens que representam as questões de si-mesmo, este o agente da
cena, faz com que a situação da representação como aparato diplomático de um sentido
outro, como o de um texto de Ibsen, seja um complicador, dado que embaralha os
índices de agência.
Ao entrar no salão onde se deu a apresentação, o mesmo público se depara com
o jogo de iluminação, a disposição de móveis e locais de assento que constituem o que
Funarte/Petrobrás. Ficaremos em cartaz de 31 de maio a 17 de junho (dia 31 é apenas para
patrocinadores, apoiadores e convidados do elenco). São poucos lugares então não podemos nos dar ao
luxo de chamar todos a quem gostaríamos para a estréia. Como este espetáculo ganhou o Prêmio
Miriam Muniz de Teatro nós resolvemos fazer as apresentações com entrada franca. É só chegar uma
meia hora antes pra retirar a sua senha. Eu estou enviando em anexo o convite virtual. Não é necessário
imprimir. Basta ir assistir. Aí segue o serviço:
O Que Nos Resta é o Silêncio
de 31 de maio a 17 de junho
Local: Casa da Glória (Ladeira da Glória, 98, Glória, RJ)
sextas e sábados 21 horas e domingo às 20 horas
ENTRADA FRANCA
Como chegar: De metrô, saltar na estação Glória, sair sentido Outeiro e subir a ladeirinha ao lado do
Amarelinho da Glória. De ônibus, saltar no mesmo lugar que de metrô. Se for de carro fique tranqüilo
pois tem muito lugar pra estacionar lá.Abraços a todos. Estou esperando por vocês lá. Ass: Joelson
Gusson”.
É evidente que, muito mais do que apresentar quaisquer credenciais dos significados que servem de
propósito à peça, sua maior preocupação está em fazer com que as pessoas tenham suporte técnico para
encontrar o local da peça na hora certa, em tempo hábil inclusive para encontrar o salão suficientemente
vazio para que caiba ao menos mais uma pessoa. Não deixa, contudo de fornecer alguns dos sentidos
absolutamente indispensáveis para o encontro teatral em orquestração.
52
“(Do francês, sem correspondente em português.)(...) A auto-representação (que também se chama
auto-referenciação quando o texto remete a si mesmo, e não ao mundo) é um caso particular de mise em
abyme (...) A auto-representação teatral diz respeito, na maioria das vezes, a uma representação
desdobrada, o que remete à forma bastante conhecida do teatro dentro do teatro.(...) O teatro tem muita
dificuldade em falar do teatro em termos teatrais, a saber, não literários e lingüísticos, mas cênicos e
lúdicos: até mesmo PIRANDELLO é um teórico muito falante.” (Pavis, 1999:245)
127
há para ser assistido, fazendo da casa e do salão sujeitos da experiência proporcionada.
As cadeiras e sofás que vieram a alojar o público não oferecem o confortável
afastamento entre atores e platéia dos palcos italianos, deixando indistinto o desenho
informador da boca de cena. A boca era igualmente garganta. Todos para dentro.
“Todos” quem?53
Antes de seguir com a identificação deste coletivo, cabe uma digressão
metodológica. O que ora apresento é circunscrito aos problemas desta pesquisa de
campo, segundo algumas possibilidades de descrição e articulações teóricas sugestivas
ao problema levantado em meu projeto de pesquisa, como já registrado, o da
descrição de como é um papel
papel-personagempersonagem-dede-ficção.
ficção É com o intuito de
desenvolver tal descrição que recorro à figura da dispersão, própria ao andamento do
trabalho do ator, que modifica seus papéis de forma significativa segundo a geração
de sincronias cuja coreografia coletiva amplia em extensão progressivamente,
partindo dos trabalhos individuais para atingir uma outra marca, a de um
agenciamento propriamente coletivo do evento teatral. É neste complexo de
expansão que a multiplicação de papéis assumidos por um ator durante o período
pesquisado aponta uma relação importante entre linhas de definição temporais,
montagem de papéis de ficção e de cenas teatrais, uma vez que as modificações
implicadas nesta relação culminam em desdobramentos da comunicação autoral
compacta segundo linhas de condução próprias da passagem entre segmentos
ambientais.
Se no começo do caminho houve maior dedicação às deduções e algumas das
implicações das técnicas de encontro, aqui o processo é fundamentalmente outro.
Considerando que lido com formas mais específicas de encontro, e que de alguma
forma definem a experiência mais própria aos trabalhos dos quais fui antropólogo
residente e assessor teórico, as articulações necessárias para promoção do evento são
de montante igualmente específico e se afastam, em certo sentido, das formas
corriqueiras de wayfinding, exatamente por haver o rompimento com a premissa de
53
Vide anexos.
128
que se está diante de uma landscape. Assim, visando o recurso da especificação como
objetivo de orientação dos atores em questão, me dedico a compor um quadro a
partir de séries teleológicas definidas por espécie. Numa aliança orquestrada entre
Simmel (1987), que move o pensamento por via de finalidades e valores, e Peirce
(1972, 1977) que articula formas diagramáticas de simbolismo e uma teoria dispersa
do sentido dos objetos, me preocupo em apresentar alguns eixos de relação do
sentido comum do testemunho teatral – mesmo que este sentido não seja
propriamente substantivo.
Assim, se parti da relação dos endereços e mapas que, dada a relação
constituinte da elaboração de diagramas de coordenação que preside a confecção da
compatibilidade entre cada uma destas formas de orientação, imagino ser razoável
inferir à especificidade do mapa, enquanto tal, agenciador de deduções no sentido em
que:
“Dedução é o modo de raciocínio que examina o estado de coisas colocado nas
premissas, que elabora um diagrama desse estado de coisas, que percebe, nas partes
desse diagrama, relações não explicitamente mencionadas, que se assegura, através de
elaborações mentais sobre o diagrama, de que essas relações sempre subsistiram, ou
pelo menos subsistiriam num certo número de casos, e que conclui pela necessária,
ou provável, verdade dessas relações.”(Peirce, 1977:05)
Isto nos leva à pergunta freqüentemente ouvida na porta de um casarão
transformado, provisoriamente, em casa de espetáculo: é aqui mesmo? Não só
conjuga-se nesse ato a repetição entre tipos gráficos e os pontos focais da paisagem
urbana em cartazes que nos últimos quatro séculos desempenham uma história
própria dos termos públicos de negociação e importância de temas (Chartier,
2004:91-129), como encontrar o cartaz e o endereço estabelece uma situação limite,
no qual o termo médio que garante a correspondência entre premissas e elaborações
subsistentes, cessa ou rarefaz, seu efeito. Salvo no método de encontrar poltronas
129
numeradas, o que não é o caso abaixo descrito, as coordenadas imanentes próprias do
recurso ao mapa deixam de ser requeridos pelas relações que se disporão. A
especificação dos termos de relação da situação do teatro exige outras formas de
diferenciação, outras espécies de raciocínio.
Começo com um dia de ensaio. 09 de maio de 2007, 22 dias antes da re-estréia
do espetáculo O que nos resta é o silêncio a ser apresentado pelo grupo Dragão Voador
teatro contemporâneo. O endereço - tanto dos ensaios54 quanto da apresentação - tem
um nome: Casa da Glória, localizada na Ladeira da Glória, número 98. Era um dia de
chuva e frio, daqueles que, como dissera Candice de Abreu (atriz), “faz com que
cariocas queiram pedir licença à sociedade”.
Já freqüentávamos o endereço havia quase um mês. Não entrávamos mais pelo
acesso de serviço. Marcão, o caseiro, já se dispunha a nos poupar da ladeira do endereço
de forma a chegarmos diretamente ao salão um a um, cada qual vindo de um lugar, com
diferentes razões para atrasos e cronogramas pessoais. É uma quarta-feira, 9:30 da
manhã. Na meia hora após o combinado para a chegada, os trabalhos de organização do
espaço de ensaio se deram quase que inteiramente, mesmo com o grupo desfalcado. O
básico da organização do salão no qual se ensaiava constava em varrer, especialmente
no primeiro ensaio da semana; trocar de roupa, prezando o conforto, em detrimento da
beleza, e a praticidade, em detrimento do asseio; e dispor os móveis no salão, mas
54
A referência direta à palavra ensaio possui um campo semântico vasto e particularmente interessante,
dado que abrange campos da experiência moderna muito diferentes entre si, mas que se permitem
reconhecer. Podemos lembrar, por exemplo, de Galileu Galilei, Il signatori, o ensaiador, em algumas das
fórmulas da ciência experimental, assim como o tipo de cuidado da confecção laboratorial by Boyle´s way
que opera isolamento de elementos pertinentes tal como uma sala de teatro moderna. Contudo, se esta
aproximação soa um tanto a improviso, cabe lembrarmos da fundação do drama burguês como gênero de
teatro moderno que, na pena de Denis Diderot (Paradoxo sobre o comediante, Discurso sobre a poesia
dramática, Da interpretação da natureza), é tratado em homologia às ciências experimentais, dando à
química especial relevância em sua elaboração do novo esforço do pensamento de revelar os fingimentos
os quais os eventos naturais se prestam ao lidar com os órgãos dos sentidos. O dicionário Pavis de teatro
(Pavis, 2003) é especialmente enfático no registro de que este momento, o ensaio, é mais de tentativas do
que de repetições, tal como no francês répétition. Reforça-se freqüentemente seu caráter de criação, em
oposição a qualquer forma mecânica de atividade, e daí a ênfase no que funciona, no que cumpre função,
no que gera organicidade, presentes na locução, tantas vezes acionada: isto funciona, isto não funciona. A
extensão da pregnância laboratorial é reforçada pelo já extinto Teatro Laboratório polonês, de Jerzy
Grotowski, e pelo Laboratório do Ator da cidade de Campinas, São Paulo, duas articulações bastante
contemporâneas, permitindo-me até formular alguma associação epistemológica entre formas ficcionais e
experimentação laboratorial, em especial no que tangem os conceitos formulados por Wolfgang Iser:
seleção, combinação e auto-indicação (1996). Volto a isso mais adiante.
130
somente quando os braços necessários estavam presentes. Conversa-se. São realizados
os aquecimentos.
As conversas passeiam pelos trabalhos e os dias, o cansaço da dupla ou tripla
jornada de trabalho (duas peças, aula e, num caso específico, a venda de doces
mineiros), além do relatório sobre um espetáculo ou fofoquinhas que dizem respeito a
uma ou outra pessoa as quais eu quase nunca sabia quem eram. Contudo, o que compõe
um quadro informativo do começo de um dia de trabalho a partir de relatos pessoais é
também prática significativa do que se faz em teatro, cujo ofício, em parte, é o de
conversar repetidamente as mesmas conversas, por pelo menos duas horas, como se
fosse uma primeira vez, até que ocorram a contento. É o que se pode chamar de ensaiar
as falas. Afinal, é disto que se trata significativamente o que é próprio do ensaio na
montagem das cenas e das ações das personagens. Mas não é tudo. Antes de atingirmos
este ponto tão teatral, a conversa é também a geração de exposições formais que, assim
como nas formas exploradas de dispor os móveis e demais objetos, dispõe pessoas. Não
servindo exatamente como apresentação de credenciais, é um dos vários atos de
memorização que o trabalho teatral obriga ao praticante, no sentido de saber com quem
se está falando, além de como se faz ou como deveria fazê-lo.
Até a primeira meia hora, nada dos meninos. Com exceção de Joelson Gusson,
diretor, Leonardo Corajo, Lucas Gouvêa e Luciano Moreira estavam atrasados. Quanto
a mim, não era um dos meninos. Era o antropólogo que veio a se tornar o assessor
teórico do grupo tal como registrado no programa da peça, participando de tudo de
acordo com o que me fora possível. Minha atuação, que até a presente data vem se
prorrogando, diz respeito à tarefa de pesquisa, de sugestão de leituras e de levantamento
de bibliografias comentada. Uma vez constatada a relevância da leitura correta: “Tem
que ler Grotowski”, me disse Celina Sodré; “Você tem que se preparar. Tem que ler
coisas como Stanislawski e Grotowski” me disseram Candice e Joelson; uma vez
constatada a relevância, saber indicar a bibliografia significa ampliar o acervo de frases
disponíveis, assim como referências para justificativa de decisões tomadas, entre outras
coisas. Há algo na evocação de um autor, de uma pessoa que não é um qualquer, que
permite dizer mais do que se o locutor não fosse apenas o médium, se falasse somente
por si. E o médium qualificado há de saber se diferenciar. De alguma forma este regime
de locuções de outrem pairava.
Já no nono dia de ensaio de uma peça que iria re-estrear, todos manifestavam a
clara intenção de esperar a cada um dos componentes para iniciar o aquecimento,
131
resguardados os limites de tolerância. A meia hora de atraso de ao menos um dos atores
se tornara uma regra. Mas a partir do dia 09 era o calendário, ao invés do ritmo interno
das cenas e do desejo pessoal, que povoaria o cenário das diretrizes de trabalho. Esta
data, estranhamente exata, me serve de marca da diferença de tempos e,
conseqüentemente, de ênfase em cada uma das atividades diárias. Ao ouvir a pergunta
de Candice sobre esperar um pouco mais a chegada dos meninos, Joelson fora seco:
“Não. A gente já está perdendo muito tempo”.
A referência ao coletivo é clara, compondo um tipo de ação que não cabe a cada
um e ao que faz individualmente, uma vez que o que se faz e o que se deixa de fazer,
cada vez mais, é um problema do grupo tomado como coletivo, e não da pessoa e suas
idiossincrasias. A remissão ao coletivo impessoal55 a gente, que é sujeito da frase
substituindo sempre o nome próprio do grupo56, encaro como índice de agência – no
sentido proposto por Gell (1998) -, afirmando que se alguns membros individuais
estavam atrasados, no plano impessoal o que ocorria era a falta de otimização do uso do
tempo disponível. Neste grau o tempo não é o de um sentimento íntimo da diferença
somente ou uma fonte de fluxo imanente, mas também uma unidade de medida posta
em quantidades como, por exemplo, 18 parafusos que, ou se têm à disposição, ou não.
No caso, a gente já perdeu parafusos demais. É preciso economizar. O sentido é um
pouco este. O tempo a ser articulado para a agência da gente não pertence a ninguém
em específico, afetando a todos, mesmo que não por igual.
Nessa economia o administrador da propriedade (tanto no sentido de οικοσ57
quanto das propriedades de elementos cênicos, tal como numa química dos acertos) é
Joelson, agente das agendas de trabalho que precisa fazer dos dias úteis, úteis. Esta
redundância é tão constituinte quanto o tipo de descompasso entre os acordos que o
grupo Dragão Voador, o qual passo a chamar de a gente, tem entre si e com a produtora
envolvida no processo. A configuração das relações dispostas no dia-a-dia faz com que
55
Sobre a noção de impessoalidade, além do comentário final sobre a noção de pessoa no presente
trabalho, vide Schérer (2000).
56
O nome Dragão Voador teatro contemporâneo eu não ouvi ser pronunciado em momento algum
durante os ensaios ou em qualquer outra situação em que eu estivesse presente.
57
“Casa, habitação; quarto, sala; templo; bens, família.” (Dicionário Grego-Português e PortuguêsGrego, Isidro Pereira, 1969)
132
diretor-agente-da-agenda componha um registro escrito de todos objetos a serem postos
em cena (como cadeados, bolas de gude, ternos, batons, bolas de soprar) ou para a cena
(extensões elétricas, abajures, lustres, caixas de som, cartazes, convites eletrônicos, lista
de convidados, lanches), cuja relação demanda nexos indissociáveis para a composição
das mesmas, incluindo a convocação do público: as datas e horas certas, lista de
convidados pessoais, carga e descarga do que é trazido ou levado embora, a
responsabilidade pelo transporte e preço do serviço (atores do grupo o fizeram sem
acréscimo do pagamento regular previamente acertado); programação visual etc. Este
trabalho, que é distribuído entre diversas pessoas, regularmente seria gerenciado pela
produção58. No caso a Fomenta Produções, produtora envolvida, seria responsável pela
mediação entre transportes de coisas por via das pessoas contratadas para trazer e fazer
elementos de cena, assim como distribuir pagamentos. Contudo, a forma de constituição
de a gente que pude presenciar não se fez por esta via. Privilegiando a economia de
recursos financeiros, bastante restritos por sinal, fez com que o ônus das atividades de
produção recaísse no próprio grupo, em especial no colo do agente da agenda, Joelson
Gusson. Sua prioridade neste quesito fora o de regularizar a sincronização da ação
externa em prol das necessidades internas de montagem de cenas e personagens, o que
nem sempre ocorreu a contento.
Diante do peso de produzir e encenar, a chegada dos meninos com meia-hora de
atraso gerou uma pequena preleção sobre o tempo disponível, tal como sua alocação
viável, e a distribuição de responsabilidades. Esta não foi, contudo, a única vez que uma
conversa geradora de mal-estar se deu, e tampouco seu conteúdo ético, digamos, fora
novidade, como a Preleção contra a personagem deixa bem claro. O que este tipo de
intervenção da parte de Joelson estabelece são eixos de assimetria de responsabilidades
58
“PRODUÇÃO TEATRAL: O inglês production tomado como encenação, realização cênica, sugere
bem o caráter construído e concreto do trabalho teatral que precede a realização do espetáculo. Às vezes
se fala de produção do sentido ou de produtividade da cena para indicar a atividade conjunta dos
artesãos ou executores do espetáculo (do autor ao ator) e do público (recepção). A produção do sentido
não termina, de modo algum, com o final da peça; prolonga-se na consciência do espectador e sofre
transformações e interpretações que a evolução de seu ponto de vista dentro da realidade social exige e
produz. [No Brasil, o termo produção teatral engloba todos os procedimentos adotados para o
levantamento material do espetáculo, abrangendo custos (a produção propriamente dita) e a
operacionalização da encenação (contratação e administração de pessoal artístico e técnico, aquisição
de materiais etc.(nota do tradutor)]” (Pavis, op.cit:307). Se muito das formulações sobre a arte, em
especial sobre estética, abordam problemas da produção de produções que as artes assumem, neste caso a
fórmula não é uma figura de linguagem ou um outro arranjo, pois uma das situações a serem resolvidas
(aqui um tanto no sentido musical) é a das relações de gênese da produção que produz o espetáculo. Este
tipo de problema pode ser desdobrado para outros campos, como o do cinema que não somente produz
produções como as des-produz também.
133
situadas com diferentes graus de importância e, por conseqüência, de agência, na
incorporação (embodiment) dos papéis. Durante o correr dos vários dias em que se
deram os ensaios, Joelson se queixou de uma série de situações: do excesso de evocação
de seu nome nas vésperas da re-estréia, do desequilíbrio entre sua oferta de soluções e a
apresentação de problemas por parte dos atores, do tom ríspido ao ouvir sobre as tarefas
delegadas enquanto que, ao prestar contas do que fez, o faz com polidez; todos
momentos nos quais se situa, marcando sua posição em diferença da posição dos
demais. Diante da agenda, o papel de diretor, tal como Joelson o faz, se dispõe em
assimetria.
Primeira diferença posta, e feitas algumas requisições sobre o que há de ser feito,
o dia 09 de maio pôde prosseguir. O aquecimento que sucede as conversas preliminares
situa outras diferenças de papel, ornamentando momentos que evocam habilidades e
propósitos particulares. Dada a falta de sincronia na hora de chegar à Casa da Glória,
cada um começou seu aquecimento tal como fora conveniente, mas sempre
individualmente, isto é, levando em consideração somente a si. Assim, os exercícios de
postura que participam dos trabalhos de Ângela Delphim (atriz), como habilitada em
balé contemporâneo (técnica corporal) pela escola Angel Vianna, não só lhe davam
recurso de enorme regularidade como veio a se tornar referência na sugestão de
aquecimentos coletivos. Candice Abreu, por sua vez, buscava apresentar novidades (o
avesso do regular) como bolas de massagem, escovas de chão para a ativação da
circulação sangüínea59 e passos de capoeira na qual era iniciante. Os meninos
mantinham uma rotina de alongamentos, vez por outra incorporando uma ou outra
fórmula apresentada pelos demais ou mesmo sugerindo algo. Esta que é uma disposição
freqüente em outras montagens de teatro, como pude investigar um tanto por alto, com
59
Da discussão da agência dos objetos há muito a ser formulado. Contudo, há algo que pode ser
apresentado como nota etnográfica. Se Candice apresenta a escova como objeto de aquecimento,
propiciando a ativação da circulação, pude ver em outro trabalho que corria paralelo ao O que nos resta é
o silêncio a utilização de um mesmo objeto como instrumento de limpeza e dor. Tive a sorte de poder
acompanhar a montagem de dois trabalhos do Dragão Voador. A segunda fora a que veio se chamar
Manifesto Ciborgue. A comparação revela tanto um método de trabalho como a ampliação das regras
consentidas de composição de cena. Tanto um trabalho quanto outro são oriundos da composição
individual, e solo, de partituras de ação física (vide Pavis, 2003; Bonfitto, 2002). No caso de Manifesto
Ciborgue cada ator deveria compor sua partitura privilegiando alguns objetos. Rodrigo Maia, que não
veio a permanecer neste trabalho, utilizou-se de uma escova de chão que, tal como Candice, a esfregava
pelo corpo. Fazia isso com tal força que sua pele enrubescia. Não o fazia para aquecimento, dado que já
estava ensaiando, mas sim para, de alguma forma, gerar sentido, estabelecer possibilidades, enfim, fazer
cena. Permito-me sugerir que considerar esta linha de condução evoca tanto perguntar o que se quis fazer
com a escova quanto perguntar o que é que a escova permite que se faça com ela.
134
a gente se desdobram em outras formas de preparação, coisa igualmente freqüente em
outros grupos, em especial os que se mantém durante mais de um projeto de montagem.
Se, em um primeiro momento, as ações se mostraram explicitamente individuais,
a despeito de quaisquer imitações, o aquecimento coletivo propiciava um segundo
momento no qual a gente é o sujeito da ação, quase que numa prévia da geração de
formas de sincronia que tanto caracteriza a marcação do tempo em cena, em especial
quanto às entradas e saídas da mesma, propósito das deixas60. Com o andar da
carruagem, o tempo despendido com o aquecimento individual, assim como na
elaboração de ritmo próprio, mostrava sinais de aceleração e perda de centralidade. O
dia 09 de maio marca esta diferença. Pela primeira vez não se esperou a chegada da
maioria dos atores. A gente estava perdendo tempo.
Não é grande coisa constatar que parte significativa do que é feito antes de se
passar às cenas em ensaio diz muito a respeito do que se faz fora do tempo dedicado ao
mesmo; e tanto o aquecimento coletivo quanto o sucessivo incremento da arrumação do
salão para a montagem das cenas servem de índice de agência externa e sua
convergência no coletivo a gente. Minha simples presença é indicativa deste tráfego
característico da ordem das diferenças que dá ao grupo sua composição específica, da
mesma maneira que diferentes elementos técnicos compõem um espetáculo. É este
tráfego que indica também que o acúmulo de encargos por desdobramento de funções
não é privilégio de Joelson.
Tentando me apresentar tão discretamente quanto possível durante os meses de
pesquisa de campo, tomando cuidado em não ser intrometido demais, mesmo apesar de
meus encargos adquiridos, dado que visava preservar o andamento regular das
atividades
em
cooperação
com
a
agenda,
senti-me
obrigado
a
acumular
responsabilidades me desdobrando em papéis que não somente o de antropólogo. Tinha
em mente a manutenção dos procedimentos que me propus a registrar. Queria tanto
quanto qualquer um que a peça estreasse. Desta forma assumi um cargo de assessor
teórico, ocupação batizada pelo próprio Joelson Gusson. Trocando em miúdos resolvi
60
“DEIXA: Palavra ou gesto de um ator* que sinaliza o momento de seu interlocutor entrar em cena ou
falar. Também indica aos técnicos nos bastidores (iluminador, encarregado do som) o momento em que
devem intervir. Atualmente, os atores são treinados a não ficar estreitamente ligados às deixas, mas sim
ao sentido da frase. No teatro brasileiro do passado, havia inclusive o costume de se entregar aos atores,
responsáveis por papéis* menos importantes, apenas a parte da peça em que atuavam, acompanhada das
deixas que deviam memorizar. Isso criava a estranha situação de alguns artistas só tomarem pleno
conhecimento da totalidade da peça nos ensaios corridos.” (Guinsburg, Faria & Lima, 2006:108) – grifo
meu.
135
facilitar quando pude, a vida da gente e acabei incorporado ao coletivo ao me desdobrar
em outras funções, como a de assessor teórico, cargo que descobrir ser mais comum do
que imaginava.
Meu primeiro acúmulo de encargos tomou lugar logo na primeira reunião do
grupo onde a gente discutiu a remontagem da peça que, após sua segunda temporada na
Casa de Cultura Laura Alvim (a primeira fora no SESC Copacabana), sagrou-se
merecedora do Prêmio FUNARTE Myriam Muniz que confere ao premiado dinheiro
para uma nova produção (qualificado por módulos de inscrição diferenciados pelo valor
concedido), alguma notoriedade, e uma obrigação póstuma ao prêmio. É obrigatório
agendar e efetivar novas apresentações do espetáculo mencionado em edital
estabelecendo, inclusive, um limite máximo quanto ao preço do convite61. A gente coletivo do qual eu ainda não participara em momento algum - se
encontrou na
UNIRIO, no dia 13 de abril de 2007, onde estudavam Joelson e Candice.
Para esta reunião Joelson havia preparado duas alterações importantes em sua
concepção da peça. Em primeiro lugar, desta vez seria somente o diretor, deixando a
personagem Ricardo para outra pessoa fazer62, pessoa esta que viria a ser Luciano
Moreira. Joelson, em conversa, me disse ser muito difícil dirigir enquanto atua, pois há
uma cisão irremediável entre assistir e fazer a ação planejada. Não podendo estar em
dois lugares ao mesmo tempo, a dupla função de atuar e dirigir exigia um segundo
olhar, o de um outro ator, que por fim, regulava suas próprias ações. O diretor é alguém
de fora que pode falar a respeito do que se faz em cena. Sendo muito ruim e muito
difícil controlar as etapas de direção, optou por não mais, coincidi-la com atuação. Isso
aponta mais uma vez para a assimetria do papel do diretor, que é o que olha e ajuda a
montar ao mesmo tempo em que prepara o terreno do tempo futuro, tanto da produção
quanto da disposição cenográfica e das sincronias de cena que permitem que o
61
As sessões de O que nos resta é o silêncio na Casa da Glória foram gratuitas para o público.
62
Aqui, criar uma personagem, é tanto um trabalho de montagem que vige no plano da invenção de
gestos e melodias vocais numa seqüência-partitura quanto de um tipo de pecuária da memória, na qual
marcas e intenções são geradas de forma a manter a personagem dentro dos limites de propriedade, isto é,
do que é apropriado segundo acordo de ensaio e sob domínio do ator. É no duplo regime desta relação
que é possível dizer que um dado ator é ator de tal personagem e que opera uma forma de
posse/possessão cuja agência precisa ser visitada. É particularmente significativo apontar este rumo de
formulação pois neste debate sobre as formas de possessão, é indispensável perguntar quem é o sujeito da
posse e quem é possuído. Neste sentido, o drama burguês diderotiano, ou a teoria das marionetes de
Kleist aplicam formulações sobre posse, como o das faculdades da razão no caso de Diderot. O mesmo
Diderot, porém, reconhece a possibilidade da insurreição dos órgãos contra a unidade central de controle,
a memória, como veremos. No dilema que tonifica formas rituais de possessão e formas de auto-controle,
o que me parece estar em questão é, em qual ser culmina o privilégio de agência possuidora dos outros
modos de ser e quais modificações ocorrem ao possuído.
136
espectador encontre o eixo de condução da peça. Para os atores o diretor é o público,
meses antes do público chegar. Para tanto, o diretor deve se encontrar com os elementos
de montagem antes dos demais assistentes. Um a um, se possível.
A segunda alteração portava mudanças no texto que implicavam desde a
reconstrução completa de Ricardo, visando atuação de Luciano Moreira, até a abertura
para novas idéias de fala e sentido de cena. O que foi significativo é que a entrada de
Luciano gerou problemas que vão além do tempo e das dificuldades implícitas do ofício
teatral. Luciano é muito baixo e qualquer cena mais intensa, como algumas presentes no
repertório de Joelson quando de sua apresentação como Ricardo, soariam ridículas. Sua
propensão à comédia, seu timing, exigia certa atenção dobrada: sobre o texto e sobre
suas ações. O desafio maior, contudo, se dava na proposta de montagem original. Cada
ator montou, isolado dos demais, uma cena pessoal (uma partitura) utilizando-se de
objetos significativos no que diz respeito às personagens e a si mesmos: Lucas trouxe
para sua cena fotos pessoais que, dado o fato de o corpo dele e de Vicente serem o
mesmo, apresentava certa ambigüidade, fazendo das fotos da vida do mesmo referente
plástico a apresentação de trechos de dois entes possíveis; Ângela utiliza, junto às cartas
de tarot distribuídas, uma chapa de raio-x que, de um diagnóstico de sua sinusite, se
transforma na apresentação de uma doença terminal da qual não se quer saber (ninguém
no público, à meia luz, saberia fazer qualquer diagnóstico; fica valendo o desespero de
Beatriz Bruchner). A peça fora construída ao redor destas cenas que continuaram um
segredo entre os atores por muito tempo. Mesmo durante as apresentações do espetáculo
as cenas pessoais se davam isoladas umas das outras por cortinas. Dado este estado de
relações, Luciano precisava, além de tudo, inventar sua cena, compor sua personagem,
sua pessoa de ficção, como o fizeram os demais. Estou falando, por fim, da importação
em procedimento de Luciano Moreira e da ampliação do tráfego de enunciações.
Luciano Moreira já trabalhava com Lucas Gouvêa em uma outra montagem – O
fantástico mundo de Dissocia -, o mesmo Lucas que faltara na primeira reunião para
participar de uma gravação no PROJAC, da rede Globo. Sua falta, além de indisposição,
gerou uma lacuna para os trabalhos do dia 13 de abril. O que nos resta é o silêncio é
uma peça de cinco personagens para cinco atores. Sem Luciano (ainda) e sem Lucas,
Joelson e eu atuamos como atores step, do tipo que ensaia na certeza de que não vai
estrear, fazendo da fala da personagem que lê mais uma deixa para a fala seguinte do
que uma fala propriamente dita. Diante a leitura pude dar voz a Vicente Costa
Lourenço, personagem a ser levado adiante, tal como já vinha ocorrendo, por Lucas
137
Gouvêa. Na leitura da qual participei fui por pouco tempo um tanto a gente como agente
provisório.
A chegada de Luciano Moreira algumas semanas depois e a presença regular dos
demais atores articularam um outro tipo de esforço: o de gerar um tipo de situação de
cena na qual os atores consigam prestar atenção entre si, atitude esta tomada como
oposta ao da concentração, uma variação da atitude de ensimesmados ou de
egocentrismo. A palavra de ordem, atenção, é característica do modo de trabalho
conseqüente ao problema básico, já resolvido, de se encontrar cinco atores para cinco
papéis. Os ensaios, a partir deste ponto, deveriam assimilar a presença dos novos
elementos e reconstituir a dinâmica de trabalhos vigente no ano anterior. Com este
objetivo, os primeiros dias de trabalho tomariam a forma de exercícios.
A ausência de Lucas (que viajou na primeira semana de atividades na Casa da
Glória) exigiu que o ensaio de cenas tivesse seu início adiado e permitiu, dado o caráter
dos exercícios, que eu também participasse como a gente um pouco mais. No quadro
em que Joelson propôs jogos de cena que absorvessem o tempo de ausência de Lucas,
ao mesmo tempo culminou por gerar tempos de sincronia propiciando discursos sobre
as dificuldades da vida contemporânea, em especial no que tange a atenção: as pessoas
já não prestam atenção entre si, não ouvem, não conversam. Os exercícios deveriam
minar, mesmo que parcialmente, este estado de coisas vividas pelos próprios atores a
partir de formas peculiares de sincronização que, mais adiante, deram base para a gente
trabalhar em articulação com uma razão de ser, quase que apontando para uma utopia
comunicativo-comunitária. É preciso, a cada dia, algo mais que aquecimentos
individuais.
Diagnosticados e re-mediados os problemas centrais das relações enunciadas
entre teatro e vida, dois exercícios propostos por Joelson tinham como meta gerar
soluções contingentes para situações de cena aplicados aos recursos de importância:
flow (fluxo) e raia, realizados sempre após o aquecimento individual. E aí já estávamos
na Casa da Glória, em seu salão de festas, nos aquecendo como a gente deve fazer,
respeitando a divisão interna do trabalho e, ainda mais, do assoalho. Seu piso é dividido
rigorosamente ao meio, cuja composição se dá por dois materiais diferentes, situando
em sua fronteira uma coluna retangular espessa no centro diagonal do retângulo da
planta baixa da sala. De um lado, azulejo hidráulico. Do outro, tábua corrida
envernizada. Por ser mais quente ao tato, e estamos falando de aquecimento da gente, a
duração dos jogos se encerrava no aconchego da madeira.
138
O flow consiste em simplesmente caminhar pelo espaço já delimitado, caminhar
este multiplicado em modos por apêndices de regra. Uma das restrições a este caminhar
fora o de fazê-lo em linha reta. Cada participante deveria traçar uma linha reta
imaginária no espaço e caminhar somente neste sentido. Na eminência de colisão, parar
e, então, absorver à caminhada outro segmento de reta projetado num diagrama mental
– o que, a esta altura, é muito familiar. Como complemento em outro momento tivemos
que, ao caminhar, nos dispormos a derrubar ou sermos derrubados suavemente. Se A é
derrubado, o que derruba, B, se deita sobre seu corpo e caso B seja derrubado, o oposto.
A diferença entre quem derruba e quem é derrubado se dá num contrato entre
velocidades, por exemplo, A é o que se projeta sobre B com maior velocidade. O jogo
de raia tem maiores extensões e variáveis.
Ainda restritos ao piso de taco, três atores se dispõem em três raias imaginárias
de áreas equivalentes e regulares. O exercício começa com o os três atores na mesma
extremidade da faixa. O objetivo é gerar ações simples sem interpretações gestuais ou
maneirismos (sem esboçar intenções) buscando somente reagir ao que fora feito ao lado,
de forma a propor um desdobramento. Nada de caretas, olhares e gestos preparatórios,
nada de manutenção de andamentos pares ou composição de ritmos regulares. Sem
gracinha. Nesse esquema, regras sobressalentes podem ser acrescentadas. No primeiro
dia desse exercício (02/05/2007), só foi permitido andar para frente, para trás, agachar,
deitar, levantar e saltar (para frente e para trás), sendo que diante qualquer deslize na
observância das regras Joelson intervinha. Mas no que isso importa?
Sem levarmos em conta que Luciano e eu começávamos a nos encontrar como a
gente(s), que outra agência operava? O meu afastamento destes exercícios logo mais
definia que, desempenhando qualquer papel que eu pudesse assumir, não seria como
participante da gente, o exato oposto do que fora exigido dos demais situando mais uma
assimetria. Na configuração da relação atores/papéis, uma rede se faz por via do
procedimento de concretização do trabalho coletivo de extensões impessoais.
Todos os atores ao mesmo tempo em que participavam da montagem de O que
nos resta é o silêncio, também traziam consigo outros compromissos. Leonardo, na
época aluno do curso de letras da Universidade Gama Filho, era professor de português
e teatro em Miguel Pereira e freqüentava o Estrela Matutina, terreiro de umbanda.
Luciano Moreira por sua vez é também músico, o que o habilita a trabalhar como diretor
musical, além de se desdobrar em duas outras produções, sendo uma delas um trabalho
sobre o Marquês de Tamandaré apresentado no Museu Naval do Rio de Janeiro.
139
Luciano e Lucas trabalhavam juntos em O fantástico mundo de dissocia. Lucas dava
aulas de teatro em Niterói, enquanto buscava conciliar um e outro trabalho que vieram e
se concretizar em novos projetos – dentre os atores em questão, foi o que em mais
estréias veio a atuar no ano de 2007. Ângela Delphim trabalhava na montagem de
Hedda Gabler (peça de Enrik Ibsen), dirigida por Floriano Peixoto. Candice encerrava
sua graduação em teatro pela UNIRIO e se preparava para a pós-graduação, ao mesmo
tempo em que também dava aulas de teatro. Joelson, além de dirigir e produzir O que
nos resta é o silêncio levava adiante sua graduação em teoria do teatro na mesma
UNIRIO e trabalhava como ator do Coletivo Improviso sob a direção de Henrique Diaz
e Mariana Lima. Não suficiente, é preciso ressaltar os anos de trabalho e formação
como atores, o que faz de cada qual uma rede não só de relações sociais, mas de
articulações que abrangem técnicas de fazer e desfazer específicas das atividades no
teatro em que são participantes, e que incluem desde noções precisas de ocupação de
espaço, rudimentos em instalação de luz e som e táticas de evocação de público, em
grande parte envolvidos na mesma rede de afazeres do teatro.
Exercícios como os de flow e raia são assimilados de outros trabalhos e
atividades, desde que constatadas sua funcionalidade, sua razão de ser, que pode ser
simplesmente inventada. O caso dos exemplos descritos é oriundo da experiência de
Joelson com o Coletivo Improviso, no espetáculo Não olhe agora. Sendo um espetáculo
de improviso teatral, o que os exemplos supradescritos apresentam como procedimentos
funcionais para um outro trabalho tão diferente, que pelas simples presença de um texto
e de uma partitura cênica mais rigorosa faziam, de um e de outro, duas formas bastante
diferentes de encenação?
Não posso oferecer um caminho certo para desenvolver este problema, em
especial da analogia de inferências sobre a eficácia de exercícios iguais para trabalhos
tão diferentes, mas nas oportunidades que tive de participar, ao ser um pouco a gente, a
dificuldade performática era candente. Olhar e fazer sem que se esboce qualquer duplo
sentido, qualquer profundidade ou sequer alguma tentativa de dizer algo mais a quem
assiste senão simplesmente o movimento que se faz, sem qualquer sofisticação. Pude
ouvir algumas vezes, assim como ler a respeito, sobre não somente a aplicação de cada
um dos exercícios mas também do conflito em atuar de uma forma tão contraditória em
relação ao que se aprende, em geral, nas escolas de formação de ator – como explícito
na Preleção contra personagem. A dificuldade em simplesmente fazer a cena num
somente agir, sem buscar interpretar intenções em cena, evitando as sendas da
140
motivação profunda da psicologia da personagem do jovem Stanislavski (1984; 1993),
por exemplo. Ângela, como é possível lembrar, confessou ter muita dificuldade com
este tipo de desenvolvimento, a saber, da busca de uma linguagem supernaturalista para
a encenação sem proscênio, que faria com que qualquer marca de intencionalidade
profunda se transformasse em caricatura da ação, e não simplesmente a ação
propriamente dita.
A busca da motivação da personagem a cada movimento sugere um aparato
gestual-expressivo que define um preparo de composição gerador de verossimilhança
que é a do trabalho de compor em profundidade, carregando cada marca da personagem
de um horizonte biográfico; dando ao movimento, à voz e à dicção um trabalho de
interpretação do ator. Ora, me disse Joelson em um dos primeiros ensaios, não é o ator
quem deve interpretar, mas o público. O ator deve agir e só. É neste núcleo
problemático que os exercícios propostos trabalham, fazendo com que a gente somente
faça a cena no mesmo tom e registro, um tanto à maneira das regras da raia onde deve
ser mantido o esforço de analogias entre movimentos que ocorrem ao lado compondo
aos poucos um sistema a ser expandido até, quem sabe, o público. É este o plano de
agência impessoal do coletivo?
De alguma forma a dinâmica do aquecimento coletivo como constituinte de a
gente também gerou desdobramentos diferenciais, em especial no papel assumido por
Luciano Moreira. A proposta de exercícios serem sugeridos por uma pessoa diferente a
cada dia convergiu para uma pessoa só, ao menos quando ela se encontrava presente. O
acervo de movimentos coordenados apresentado por Ângela, assim como sua disciplina
no trabalho de aquecimento, fez com que a gente encontrasse regularidade. O oposto da
disposição de Ângela fora a de Luciano, que por falta de hábito – e de habilitação, como
veio a confessar: “nunca fiz um trabalho assim” – se eximiu de propor qualquer
exercício de aquecimento coletivo.
Se estes exercícios são constituintes de a gente, esta que Joelson veio a
considerar estar perdendo tempo como se perdem parafusos, é por via deles que se dá
partida a uma lenta e dispersa montagem por importação e especificação de formas
objetivas de produção que, aos poucos dá margem a outro coletivo que assume a
eminência de sua atualização: o público. Se, num primeiro momento, as atividades de
ensaio se focavam mais no encontro entre atores e na memória da montagem da peça
realizada ainda em 2006, cujo suporte é o texto dramático visando levantar mais uma
vez cada uma das cenas, o segundo momento que tomo como marca do dia 09 de maio
141
de 2007, o da evidência da perda de tempo, é o da geração de público trazido pelo
método de agendamento, isto é, o estabelecimento de estratégias na apresentação de
objetos (cenário, iluminação, mesas e caixas de som, dímenes, convites, programação
visual, lista de e-mails, cadeiras confortáveis e bonitas, extensão para fios elétricos, etc.)
e da criação de datas nas agendas dos outros, convergindo a deles e a d´a gente.
Este esforço de acabamento que visa um encontro efetivo que gera a própria
economia do teatro, no caso uma prestação de contas com a FUNARTE e o encontro
com o público que forma a própria atividade teatral, me permite arriscar a formulação
do problema da seguinte forma. Estabelecido o paralelo entre a montagem da peça em
níveis experimentais característicos dos ensaios, é constituinte da elaboração dos papéis,
tanto os de ofício como os de ficção, a expansão dos níveis de sincronia
correspondentes característicos da especialização que o coletivo a gente desenvolve.
Pensando nestes termos imagino que este movimento que alia tempo, invenção de
pessoas (Duvignaud, 1972) e imposições da impessoalidade, tem relação com o que
Gilbert Simondon (1969) apresenta em sua reflexão sobre objetos técnicos, em especial
no que tange a especialização dos objetos seguindo diretrizes de consistência e
convergência. Seguindo este raciocínio:
“A especialização de cada estrutura é uma especialização de unidade funcional
sintética positiva, liberada dos efeitos secundários não investigados que amortizam seu
funcionamento; o objeto técnico progride por redistribuição interior de funções em
unidades compatíveis, realocando o acaso ou o antagonismo da repartição primitiva; a
especialização não se faz função por função, mas por sinergia por sinergia; é o grupo
sinergético de funções e não a função única que constitui o verdadeiro subgrupo no
objeto técnico.” (id.ibid..:34)
De repente me reporto aos objetos técnicos e não mais de uma peça, do teatro, de
papéis? Sem precisar recorrer à raiz grega do conceito de arte (techné), a evocação do
objeto técnico para definir a convergência ótima de esforços exigida por Joelson faz
com que eu apresente então qual objeto está em montagem, não sendo preciso muito
mais formular, dado que o próprio campo teatral me dá a resposta: o que está em
montagem é uma peça, ressonando em profundidade quase que metalúrgica. Mas
quando pensamos imediatamente no coletivo de agências que fazem do a gente agente,
percebe-se que há mais sendo operado e que fora, após as apresentações, alvo de
142
extensas conversas com alguns componentes do público. Os atores, quando “estão a
gente”, também estão por si, segundo sua própria habilitação, isto é, seu desdobramento
em papéis. Eles apresentam seu objeto trabalhado. Não falo do corpo, que é trabalhado
nos ensaios e não é o objeto em apresentação, isto é, não é o objeto técnico da
especificação sinergética progressiva, embora esteja lá como elemento. É a personagem
ou a figura que devem ser apresentados, pessoa de ficção, que é posta diante dos olhos
que, segundo sua destreza em fazê-lo, dispõe o ator nas apreciações acerca do que foi
feito. Lidar desta forma com o problema da apresentação teatral significa tomar a noção
de pessoa como objeto técnico que só se põe como tal, como pessoa que se possa
encontrar, por se dispor no mesmo grau de especificação sinergética. Considerando a
freqüência em que opera a definição de Simondon:
“O objeto técnico individualizado é um objeto que foi inventado, isto é,
produzido por um jogo de causalidade recorrente entre vida e pensamento no homem.
O objeto que é somente associado à vida ou pensamento não é um objeto técnico mas
utensílio ou aparelho. Não tem consistência interna, visto que não tem lugar associado
instituindo uma causalidade recorrente.” (Id. Ibdi.:60)63
Fazer do ator um oficiante que inventa ou cria64 pessoas a serem identificadas
como tal segundo um grau de coerência interna em um ambiente associado e daí abstrair
a correlação entre a noção de pessoa e a de objeto técnico. É um tanto demais tratar a
noção de pessoa como objeto criado? Há dois pontos a favor deste movimento. O
primeiro diz respeito ao suporte técnico dos objetos isto é, a forma dêitica de
reconhecimento da agência de uma pessoa. Não é outra referência senão a do próprio
Marcel Mauss a sugerir o corpo como objeto técnico mínimo (Mauss:2003:407),
justamente onde, como veremos, pousa a fonte da ação humana enquanto tal. Por outro
lado, há um desenvolvimento metodológico. Considerando o que se presta a constituir
um objeto etnográfico, em especial neste trabalho que aborda o teatro como encontro
63
Uma objeção a esta aproximação seria a de forçar uma situação na qual o teatro seja apresentado como
uma máquina. Contudo, se ocorre esta analogia não é por culpa minha. Um intelectual do teatro se
adiantou ao publicar, em 2003, The haunted stage: the theatre as memory machine (2006). Contudo, tanto
aqui quanto lá, qualquer conclusão a respeito de este ser um encaminhamento mecanicista é inútil pois ao
remetermos às máquinas de memória trabalhamos no nível de distinção fundamental das ciências da vida
que diferenciam a matéria orgânica da inorgânica, num primeiro momento, pela mesma memória que nos
remete à maquinaria orgânica do universo teatral, assim como o faz Simondon com os objetos técnicos.
64
E criar pessoas é um ofício bastante familiar: igrejas, pais, professores, enfim...
143
entre pessoas, o que permite este jogo de conceitos? Fazendo-me valer de uma
passagem de Raymond Firth:
“O que é admirável sobre tais opiniões populares modernas não é sua liberdade
do uso do simbólico, mas da forma aberta pela qual reconhece o uso e chamam-no
simbólico.” (1975:21)
O mesmo pode ser dito da noção de pessoa, tão recorrente nas províncias da
antropologia e seus comentaristas e, contudo, está longe de ser domínio de algum
monopólio das Associações Nacionais da disciplina. Não preciso me valer aqui de um
informante exemplar que expõe toda uma prática teatral no aspecto sagrado do ensemble
de pessoas, como o seria na leitura dos textos de Jerzy Grotowski (1990, 2007). Basta
mencionar a etnografia de Ana Amélia Brasileiro da Silva (2004) que revela um outro
problema, que é o do imperativo de “conhecer pessoas” do ofício teatral. Isso é
desenhado em sua dissertação como uma estratégia de um campo artístico que se define
fundamentalmente pela dinâmica do Q.I. (Quem Indica), e conhecer pessoas implica em
conhecer somente as que são importantes no meio teatral-televisivo que possam
oferecer emprego, encontro esse determinado fundamentalmente pela distinção entre
escolas de formação de atores. Contudo, nas possibilidades do ofício teatral, conhecer
pessoas apresenta um plano múltiplo de acepções. É inútil ignorar que nas cidades
vemos efetivamente pessoas em todo momento e as tratamos como tal, posto que a
pessoa é algo que se presta ao saber como um algo-lá dêitico. Aqui a categoria analítica
e o termo nativo se confundem quanto ao que se dá ao conhecimento que, tal como
circula no meio teatral, “saber é: saber fazer”. Como não lembrar de entrevistas de
atores que definem seu “trabalho atual”, sua personagem, segundo o que precisou
estudar da vida dos policiais, por exemplo, para fazê-lo bem? A pessoa é referente a
quem, ao ator ou ao policial? Ao se tratar de ficção, de nenhum dos dois e de ambos, e
este é o ponto, dado que é no encontro entre estas virtualidades que a pessoa de ficção
se atualiza.
Um corpo humano diante de outro, como é de se ocorrer no teatro, apresenta-se
num sistema de modificações que não se encerra no próprio corpo, caso o tomemos
como uma unidade estável, e sequer é necessariamente um problema central para a
agência teatral, caso seja tomada da mesma forma. Um plano de agências como o teatro
segundo sua multiplicidade de efeitos em muito me aproxima de algumas considerações
144
de Alfred Gell (1998) sobre a arte tomada como configuração de um sistema de
interações dotado de algumas características, especialmente na articulação de modos de
índice de agência com força intencional, transmitidas por via de espaços de condução e
em utensílios ornamentados que nos reconduzem ao gaming tímico de Erving Goffman.
Centrado na reflexão sobre o papel de mediação prática dos objetos de arte, Gell
propõe um sistema de equivalências por via da distribuição da pessoa que opera como
causa intencional do efeito que, nesta mediação semiótica, põe em mesmo plano os
objetos de arte, as pessoas e os agentes sociais. Desta forma, um corpo humano, se
médium de divindade possessora, não é menos objeto de arte que uma estátua ou uma
personagem de teatro, o que não significa que uma personagem é um corpo, mesmo que
seja visto lá65 – pude interpretar Khlestakov de O inspetor geral mais de um século após
sua gênese histórica, o que reforça a elaboração de que o teatro é povoado de mortos e
seus fantasmas trazidos à tona por máquinas de memória (Carlson, 2006) distribuidora
de pessoas. Visto o problema posto nesta dissertação, cabe reconhecer as modalidades
de agência indispensáveis para a elaboração de uma cadeia de reconhecimento de
índices de agência, situando a personagem, pessoa de ficção, como objeto técnico e
como um meio de encontro.
Sobre este desdobramento algumas palavras sobre o projeto maussiano fundador
podem apontar para os rumos que tomam esta pesquisa. Seguindo Mauss
(2003[1938]:371)
“De que maneira, ao longo dos séculos, através de numerosas sociedades, se
elaborou lentamente, não o senso de “eu”, mas a noção, o conceito que os homens das
diversas épocas criaram a seu respeito? O que quero mostrar é a série de formas que
esse conceito assumiu na vida dos homens, das sociedades, com base em seus direitos,
suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas mentalidades.”
De certo o que irrompe num primeiro momento é o que qualquer formulação
baseada em um sentido possível de noção e conceito pode sugerir. No caso de Mauss,
65
As opiniões sobre as pernas de Leonardo Corajo (ator), quando travestido em um vestidinho curto ao
fim de O que nos resta é o silêncio, compõem um caminho de conversação que discrepa das
preocupações acerca de sua competência como ator. É um pouco partícipe do horizonte de enunciados
sobre ser bom ou mau ator, isto é, se ele consegue ser diferente do que ele é, não ter algo diferente do que
ele tem, o que exigiria uma intervenção cirúrgica, uma tatuagem ou coisa do gênero. Não à toa parte do
esforço da atividade em teatro contemporâneo se pauta em conceitos como o de partitura e coreografia,
que balizam mais o acervo de movimentos significativos do que qualquer outra coisa.
145
assim como de parte significativa da escola dos Anées Sociologiques, a aplicação de
investigações de conceitos como os de tempo, espaço ou qualquer outra forma de
articular mundo e significado é atravessado pelos critérios de organização social por via
de representações mentais, mediadores centrais na fundação da sociologia disciplinar.
Não querendo implicar Mauss em uma ortodoxia que talvez não lhe seja peculiar, é
certo que esta ligação deve ser evidenciada. Contudo, dois outros momentos de sua
produção devem ser lembrados, a saber, de sua preocupação em lidar com a psicologia e
outras disciplinas, em especial no cuidado com o efeito físico da idéia de morte
sugerida pela coletividade e, como que na colheita de um terreno cultivado, na
elaboração de um esboço teórico sobre técnicas corporais. No movimento interno de
formulação de problemas quanto ao que diz respeito às idéias, que tem como uma de
suas formas os conceitos, não se pode ignorar a força do argumento do efeito e
articulação físicos das mesmas. Assim, qual é a diversidade conceito-efeitual (do qual
participam a história jurídica e moral dos povos) da idéia de “eu” compreendida nos
termos acima sugeridos? É disso que trata o problema, tanto o de Mauss66 quanto o
meu.
A ressalva se torna valiosa a partir do momento em que prestamos atenção em
dois passos lógicos do argumento de Mauss: um, que diz respeito à evolução histórica
do problema (Allen, 1996) ao qual não me dedico, e outro, que trata do plano que hoje
se convém chamar, mais uma vez, de performático. As considerações sobre os clãs Zuni
(Pueblo) quanto ao número limitado de prenomes possíveis explica a disposição de cada
ente nomeado como participante do clã no que tange a sua responsabilidade de remeter
seus atos ao coletivo nomeador inteiro. Tanto alguns elementos de organização social
quanto algumas formas específicas de levar a cabo o papel que lhe é devido, são
evidenciados.
66
O artigo de Márcio Goldman (1999) é significativo na defesa deste ponto, a saber, que a articulação dos
problemas de ordem classificatória devem comungar do esforço de articulação com as técnicas corporais,
o que é próprio do horizonte de um fato social total. Mas a remissão à segunda nota da segunda seção do
ensaio de Mauss seria suficiente, lá onde uma verdadeira política da encarnação é sugerida para uma
reflexão acerca da ética dos nomes: “Nem Davy nem eu insistimos sobre o fato de que o potlatch
comporta, além das trocas de homens, mulheres, heranças, contratos, bens, prestações rituais, em
primeiro lugar e em particular, danças, iniciações, e ainda: êxtases e possessões pelos espíritos eternos e
reencarnados. Tudo, mesmo a guerra, as lutas, é feito apenas entre portadores desses títulos
hereditários, que encarnam essas almas.” (Mauss, 2003:376, nota 02)
146
“(...) uma noção de pessoa, do indivíduo confundido com seu clã mas, já
destacado dele no cerimonial, pela máscara, por seu título, sua posição, seu papel, sua
propriedade, sua sobrevivência e seu reaparecimento na terra num de seus
descendentes
dotados
das
mesmas
posições,
prenomes,
títulos,
direitos
e
funções.”(id.ibid.:375)
Vale notar que não estamos falando de um nome por indivíduo, ou sequer por
pessoa, dado que a pessoa requerida é um problema de organização total e não
simplesmente um tipo de problema lógico entre nome, ostensão e necessidade. Isto
implica que o regime de modificação de nomes refaz o sistema de prestações pessoais, o
que opera desde novos nomes a reencarnação dos mesmos; no caso de minha pesquisa,
quantas vezes é preciso ser chamado por um nome como Vicente Costa Lourenço para
levar a cabo as obrigações de ser ator e portar o nome de Lucas Gouvêa? Isto deve ser
feito sincrônica e diacronicamente em relação a quais outras formas de agência?
É igualmente significativa a fórmula maussiana da extensão da pessoa que faz da
propriedade um tanto este duplo vínculo entre o caráter reativo da contigüidade lógica e
a esfera do domínio no qual uma pessoa impera, transmitindo-se por extensões as mais
variadas, exigindo de Mauss uma nova ressalva:
“É preciso acrescentar às listas expostas em “Ethnology of the Kwakiutl” que
os pratos, os garfos, os cobres, tudo é brasonado, animado, faz parte da persona do
proprietário e da família, das res de seu clã.”(id.ibid.:378)
Tudo o que importa para evocar o conceito de pessoalidade, mediador entre
seres diversos e formas temporais determinantes (reencarnação, transmissão, herança,
sazonalidade) que, diante do anteparo de uma totalidade que é o mundo que é o do caso,
evoca sempre um nível impessoal:
“Toda essa imensa mascarada, todo esse drama e esse balé complicado de
êxtases, dizem respeito tanto ao passado quanto ao futuro, são uma prova do oficiante e
uma prova da presença nele do naualaku, o elemento de força impessoal, ou do
antepassado, ou do deus pessoal, em todo caso do poder sobre-humano, espiritual,
definitivo. O potlatch vitorioso, o cobre conquistado, correspondem à dança impecável
e à possessão bem-sucedida.” (id.ibid.:378)
147
A configuração de um tempo de convergência que se anuncia como a forma
própria de apresentação de um impessoal teatral concretizado na progressiva elaboração
de consistência da gente faz do conta-gotas temporal, que é o calendário linear de
atividades, instrumento da especialização do que é propriamente impessoal na
constituição da pessoa de ficção encarnada, esta que dura na permanência do espetáculo
e que evanesce junto com a dispersão do público quando dos aplausos. Esta dispersão,
contudo, significa qualquer coisa menos o cancelamento de sua existência, pois
permanece como efeito dado à memória na confecção de marcas sincrônicas. Pude
conversar sobre o que pensaram alguns representantes do público acerca do espetáculo e
pude encontrar dois tipos de enunciação emergentes: sobre as qualidades da peça e
sobre a habilidade dos atores em fazer o que fizeram. No que diz respeito às
considerações primeiras, a manifestação de apreço com “gostei” ou “não gostei”, no
pretérito, seguiam-se de especificações mais precisas sobre as razões do gostar ou do
não gostar, enquadrando a experiência passada num problema de gêneros de
classificação: por exemplo, vaudeville astuto; pessimismo típico e inconseqüente. É
neste grau de consideração que coincidem espectadores pós-espetáculo e diretor durante
os ensaios.
Toda a orquestração administrada visa este encontro e, quanto maior a repetição
entre o que a gente se propôs e o que encontra o público, mais refinados parecem ser a
sintonia e o desdobramento da economia da assistência cuja base é a lenta elaboração de
elementos de expansão de sincronia de ações que, para atingir a massa do público,
assume proporções impessoais.
Quanto aos atores, a diferença entre os mesmos era ressaltada, atribuindo a um
ou outro melhor desempenho cuja comparação culminava em hipóteses sobre quem
trabalha melhor, como maior acuidade e em maior sintonia com o espetáculo
apresentado. Não por acaso a indicação desta melhor performance recaiu sobre os dois
atores que há mais tempo trabalham juntos nos moldes de ensaio e proposta de ação:
Lucas e Leonardo, de alguma forma melhor conectados diante da gente, os mais
entregues ao tipo de fluxo de relações que dá tangibilidade à efêmera presença da
pessoa de ficção tal como ela fora provocada, isto é, especificada como forma de
presença, de comunicação com consciência-de-si.
Independente deste registro sobre o pós-espetáculo, o que devo ressaltar é que,
de uma forma ou de outra, o pós-espetáculo já se desdobrava antes do espetáculo re148
estrear efetivamente. Ocorria de haver nos ensaios já um público que antes de estar lá,
presente, se punha virtual e disperso, somente disponível segundo táticas de expansão
do território teatral específico e pela convergência sucessiva desta dispersão para um
plano de consistência.
“O plano de consistência conserva apenas os estratos suficientes para deles
extrair variáveis que nele se exercem como suas próprias funções.(...) o plano de
consistência (ou a máquina abstrata) constrói contínuos de intensidade: cria uma
continuidade para intensidades que extrai de formas e substâncias distintas.” (Deleuze
& Guattari, 1996:87-88)
Não é outra coisa que sugiro senão um contínuo de intensidade entre diferentes
formas de encontro (segmentos) que opera exatamente pela distinção profunda entre
uma coisa e outra67. Seguir passo a passo na evolução destes movimentos exigiria
descrever a montagem das extensões, tanto elétricas quanto corporais, aplicando com
maior disciplina a relação entre uma sala de teatro e um laboratório que ensaia para
saber de verdade o que revelam por meio de mediadores como o são os papéis de ficção,
diagramando sincronia entre movimentos, performance e efeitos de luz oriundos da
extensão das redes até o ponto desejado (na referida química dos acertos), de forma a
poder encenar até mesmo um pensamento, como os da personagem Vicente Costa
Lourenço, que em jogos de sincronia antecipa trechos de seu monólogo final e, numa
67
Neste grau de abstração não é difícil reconhecer o campo de relações possíveis na teoria sociológica,
permitindo articular o papel que as abstrações assumem neste tipo de formulação. De alguma forma o que
almejo apontar ao estabelecer uma conexão entre impessoalidade e plano de consistência não é outra
coisa senão um tipo de indiferença fásica que, em um outro momento e com diferentes conseqüências,
fora próprio da reflexão simmeliana acerca do dinheiro, especialmente no que diz respeito às séries
teleológicas, tão importantes aqui. Cito: “L´être humain que nous disons dépourvu de caractere a pour
trait essentiel de ne jamais se laisser detérminer par la dignité intérieur et substantielle des personnes,
des choses et des idées, mais de se faire violenter par la puissance quantitative dont l´impressionnent les
particularités. Ainsi de l´argent: détaché de tous les contenus spécifiques et fait de quantité purê il
épouse, lui et les hommes gravitant tout autour, cette absence de caractère – l´envers presque
logiquement nécessaire des priviléges de la finance, ainsi de la majoration sociale des valeurs
monétaires par rapport auz valeurs qualitatives. Cette prépondérance de l´argent s´exprime d´abord
dans le fait d´expérience – déjà noté, que le vendeur montre plus d´intérêt et d´empressement que
l´acheteur.” (2001:252). No limite, trata-se das condições de participação de massa, horizonte inescapável
das considerações acerca da modernidade, que operam um registro dual de diferenciação na indiferença
relativa. Resta diferenciar a relação asintótica do simbólico assumida por Simmel (e demais formas de
significado sacrificiante-erótico, como nas obras de Bataille, Girard, Leiris e, num sentido kantiano,
Durkheim, Mauss e Hubert) em relação às teses do inconsciente lingüístico de figuras de classificação, no
caso de Lévi-Strauss, e do horizonte infinitesimal do esquema do double-bind presentes em Bateson e
Deleuze & Guattari. Cada uma das formas de indiferença constituinte de diferenciação aponta para um
complexo simbólico diferenciado, desafio específico das dificuldades aporéticas da definição da situação
das forças de norma e de evento (vide Agamben, 2002).
149
alteração de iluminação (da luz aberta para um só spot sobre Lucas) põe todos para
dentro de sua cabeça de ficção.
Essa morfologia de presença ficcional que desafia o modelo de proporções
anatômicas de um da Vinci (como o Nariz de Gogol) exige que se retome alguns
pressupostos para sua criação. Assim, montagem de uma peça de teatro, tal como
pretendo sustentar, é suficientemente isso: uma montagem. O nome que desencadeia
procedimentos monta uma engrenagem dos vários teatros possíveis: as casas de
espetáculo, as histórias escritas em formato dramático, as linhas estéticas, a expressão
exagerada de dor ou raiva, os cartazes, os convites etc., fazendo do teatro substantivo e
singular uma abstração que, segundo o vocabulário das práticas teatrais, revela uma
maquinaria a partir de uma peça.
Se me referi à cabeça de ficção de Vicente Costa Lourenço, personagem de O
que nos resta é o silêncio, o faço por uma razão. Indico nesta figura que, graças à
geração de sincronias cada vez mais intensivas (como as deixas das cenas e as
coreografias) e extensas (na conformação de uma agenda comum entre o grupo que se
auto-referencia como a gente e seu público-assistente) fora possível, num encontro
teatral, colocar a todos dentro da cabeça de Vicente, personagem performatizado pelo
ator Lucas Gouvêa. O acabamento dado à cena em um dos ensaios apresenta tanto o
grau de intensidade quanto de extensão que são requisitos para formular uma hipotética
validade da abordagem da noção de pessoa como objeto técnico teatral, assim como esta
hipótese pode se valer da relação impessoal implicada na invenção de pessoas de ficção
(personagens) a partir da extensão de sua pregnância técnica.
A peça encena, à sua maneira de narração, um fim de festa de casamento do
filho de Beatriz Brüchner. Este filho é uma personagem somente narrada. Não há ator
ou cena para ele. Já Beatriz foi feita por Ângela Delphim. Toda a ação é conduzida pela
situação de fim de festa no qual, aos poucos, as relações entre cada uma das
personagens tomam forma, recorrendo a uma série de jogos de apresentação, como o
que se passa logo no começo. O público se senta, na sala do casarão, ao redor dos atores
sem qualquer proscênio como fronteira. Os atores, ocupando somente metade do salão,
ao redor de uma mesa, desempenham suas falas. As personagens versam sobre uma
prostituta que Fernando, personagem feito por Leonardo Corajo, vira pelo caminho.
Feito isso, um corte se dá. Como no cinema, há uma ruptura na seqüência e o que é dito
não participa diretamente dos efeitos provocado pela conversa. A iluminação, que era
restrita à metade amadeirada do salão, se expande ao serem acionados todos os pontos
150
de luz. Cada personagem se apresenta falando seu nome e mais alguma coisa sobre sua
vida pregressa, presente e progressa. Um por um revelam como e quando vão morrer.
Este jogo de movimento dos atores, que é um posicionamento diferenciador de
situação de sincronias com os pontos de luz acionados em consonância com as caixas de
som,
permite outros cortes e outros momentos que constituem a elaboração da
apresentação da personagem. Os recursos técnicos elaborados e sincronizados
sinergeticamente (implicando ao mesmo tempo toda a diacronia necessária ao
procedimento) constituem a situação pela qual a pessoa se apresenta. Sendo assim, é
possível abduzir relações por formas diferenciais que se apresentam mais ou menos
consistentemente. É o caso da cena, do movimento sincrônico, em que se encenam
pensamentos de Vicente.
Lembro-me de tê-la assistido na já mencionada segunda montagem da peça, na
Casa de Cultura Laura Alvim, sala Rogério Cardoso. No meio de uma fala qualquer,
quando era encenado um conflito entre personagens, os atores param de se mover, como
se congelados. Uma luz vermelha substitui todos os outros pontos, num corte cromático.
Lucas enfia suas mãos nos bolsos do paletó do smoking e derruba uma quantidade
enorme de bolinhas de gude. Vi, gostei, mas só fui entender o nexo e estabelecer a
ligação de sentido da cena durante os ensaios na Casa da Glória, no dia 26 de maio
precisamente. Discutindo a cena, pensando em todas as mudanças que a peça deveria
sofrer por haver se deslocado de uma sala de teatro pequena (onde havia cenário) para
um casarão secular (onde havia uma locação) em atenção à materialidade do
espetáculo, Lucas e Joelson não se sentiam confortáveis com a forma de encaixe que o
simples momento de retirar bolinhas de gude apresentava. A luz vermelha fora cortada.
Algo deveria entrar em seu lugar. Acrescentaram falas-legenda, isto é, Vicente passaria
a dizer, neste momento, trechos de seu monólogo final que mencionam as bolinhas de
gude (ou as penas, os cadeados, enfim, objetos que retira do bolso em outras situações
homólogas). Fora necessária a produção de entimemas por imagem e texto para esse
novo contexto. As bolinhas deveriam dizer ao mesmo tempo em que eram ditas.
Uma vez marcada a posição na qual Lucas deveria realizar esta cena, fez-se
valer um novo ponto de luz: um pequeno abajur colocado no piso amadeirado em cima
de uma pequena estante, colado à enorme coluna que divide o salão. O cone de luz
amarela (lâmpada de filamento) projetada em direção ao teto, contrastada ao
desligamento de todos os outros pontos, gerava diferença por via de sombras e novos
contornos ao movimento e silhueta do corpo de Lucas. O congelamento das outras
151
personagens, promovendo uma diferença de velocidade, acentua esta diferença por sua
parca visibilidade, sem desfazer o liame, contudo. Neste momento, Lucas deve dizer;
Vicente deve dizer; ambos dizem em baixo tom: Milhares de bolinhas de gude, milhões
de bolinhas de gude, dentro da minha cabeça!, no que se segue o acionamento dos
demais pontos de luz. Esta fala, que passa a ser a legenda de um momento igualmente
ótico, é a situação da cena na cabeça de Vicente, a manifestação de um pensamento seu.
Não de Lucas. As bolinhas de gude, salvo escorregão, são sumariamente ignoradas dali
por diante. Pertencem a um outro frame, dentro do frame da narrativa da peça.
O que antes era uma cena em um silêncio vermelho passou a ser, meses depois,
uma antecipação de um monólogo a ocorrer somente no final da peça. É na repetição
verbal, mas não performática, que a fala “explica” sem demonstrar e as imagens
“mostram” sem apontar (não há dedução ou indução), como é característico da figura do
entimema. E a cabeça de ficção não se presta a respeitar qualquer morfologia craniana.
Ela se dá no encontro entre presentes, na apresentação de uma personagem cuja eficácia
não lhe pertence somente. É luz, som, texto, corpo, ator, direção e púbico em
combinação de forças que pertence a todos e a ninguém em específico, próprios à
sincronia gerada nas situações de encontro, horizontes da impessoalidade.
Detive-me em abordar alguns objetos e mecanismos de referenciamento de
endereços como mapas e nomes próprios emplacados em esquinas apresentando um
nível básico da atividade teatral pensada como encontro (Goffman, 1961): a dedução
semiótica que permite que se saiba e opere ao mesmo tempo os mesmos lugares por
parte dos vários agentes que intencionam participar do encontro. O que se apresenta por
via da figura do entimema imagético, na forma de explicação não verbal ou de descrição
por imagens acústico-visuais (repetição de fala e recursos de cena) é uma alteração, uma
modalidade diferente de aplicar diferenças a palavras e movimentos apresentados no
tempo-espaço compactos de uma apresentação teatral. Passa a ser necessário induzir,
retroduzir e fazer analogias de esquemas68. É quando o sistema de coordenadas que
serviu como um mapa até a porta do casarão cede às histórias a serem contadas como
referência a um tempo passado.
Do ponto de vista fenomenotécnico das práticas de localização, as implicações
dos sistemas de coordenadas não cessam, todavia. Mas o desdobramento das técnicas de
68
A referência aos conceitos peirceanos visa não se comprometer com quaisquer ortodoxias em
semiótica. Se aqui utilizo uma dada nomenclatura, mesmo que sob polêmica, o faço seguindo alguns
princípios de economia de texto na qual viso sugerir um nome para um modo de relação cuja definição
me apraz mais do que a ortografia do conceito.
152
encontro por vias dos diversos agenciamentos envolvidos atinge graus de velocidade
muito variados, e o tipo de estabilidade que um mapa opera, em grau de movimentações
de pouca intensidade, se comparados à velocidade de uma peça teatral, são a própria
manifestação do estático (estatístico). Se há toda uma vida para encontrar um endereço
num mapa, salvo catástrofe (vale citar o El Dorado, Terra de Preste João e País de
Cocanha, procurados eternamente em mapas nunca acabados), no teatro as formas de
sentido são enormemente mais efêmeras e velozes e, no entanto, seguem a série de
conexões da ordem de endereços num aprofundamento das diferenças específicas.
Chega-se a uma casa de espetáculos e se assiste a uma peça em seguida. As mesmas
pessoas fazem um e outro em seqüência natural.
Neste sentido, me detive fundamentalmente na articulação operada pelos atores
observados (os do grupo Dragão Voador teatro contemporâneo) no que diz respeito à
sutil confecção de relações propiciadoras de uma agenda comum entre público e peça,
assim como da organização da própria apresentação segundo uma ordem de encontros
possíveis. Estes encontros, que não são somente um jogo de perde-e-acha, dão luz à
delicada tensão entre os assistentes e os que se apresentam em um espetáculo. Afinal,
diante uma montagem, como apresentar um conjunto de movimentos e falas
coordenados sincronicamente, de forma a apresentar algo que permita ao espectador
responder à pergunta: mas sobre o que é a peça? Vale lembrar o corte próprio da forma
ficcional, que partindo de uma certa definição reconfigura em frames (Goffman, 1984;
Bateson, 1972) elementos que outrora se dispunham a um regime pragmático de
comunicação (Costa Lima, 1989) e que, dentro dos novos limites, não mais o fazem da
mesma forma. Seguindo a fórmula dos planos de consistência (Deleuze & Guattari,
1996), o que pretendo é mirar os contínuos de intensidade que impõem ao ficcional um
potencial de multiplicação do real, e não seu cessar temporário – ao menos não ao pé da
letra. A figura da dispersão teatral é suficientemente adequada se pensarmos que,
levando em conta o ritmo e a extensão do tempo de trabalho acompanhados, se tornou
imprecisa a diferença eficiente entre o quotidiano e o lúdico/teatral, não significando
contudo que essa diferença não exista69.
69
Aliás, se considerarmos que a ficção é uma língua secreta falha, com ramificações de publicidade, me
faço valer da seguinte passagem “Talvez seja, aliás, uma característica das línguas secretas, das gírias,
dos jargões, das linguagens profissionais, das fórmulas repetidas em jogos infantis, dos gritos dos
vendedores, a de valerem menos por suas invenções lexicais ou por suas figuras de retórica do que pela
maneira pela qual operam variações contínuas nos elementos comuns da língua. (...) ela coloca em
estado de variação o sistema das variáveis da língua pública.” (Deleuze & Guattari, 1997:40-41)
153
Ao recorrer ao que há de impessoal para a investigação da atualização da noção
de pessoa – que aqui é um tanto um objeto compartilhado – procuro situar o encontro
teatral como a constituição de um coletivo consistente, cujas ações, que portam sentido,
conduzem não tanto este ou aquele espectador, mas a própria organização da
experiência possível no momento teatral70 segundo seu prisma igualmente impessoal.
Os seres que Mauss relaciona ao lado de sua remissão passageira ao impessoal (“(...), o
antepassado, o deus pessoal, todo caso de poder sobre-humano, espiritual, definitivo.”
(2003:378)) apresentam o tempo mítico (que, quem sabe no caso moderno é o tempo
profundo) do antepassado, o da realidade relativa ao totem e seu desdobramento
cosmológico, ou qualquer coisa que se dê no nível da sobre-humanidade. Vale afirmar
que, no que diz respeito ao conceito de pessoa e seu fundo impessoal, ninguém, nem
mesmo o indivíduo moderno, está sozinho, apesar da solidão. Espalha-se por seus
objetos e por sua própria objetividade, recebendo-os por sua vez segundo sua própria
agência (que pode ser física, química, ótica, acústica, mística, estética, patética...).
Lastrando esses problemas em minha etnografia, uma peça pode ser pensada a
partir da configuração de um espaço cênico, como uma sala qualquer que se especifica
(Simondon, 1969:34) segundo a disposição de objetos de cena e objetos para a cena.
Nos primeiros listo bolas de gude, penas de ganso, ternos, calças, cadeiras, uma mesa
enorme, uma banheira, um trenzinho de brinquedo, alguns batons, um vestidinho
laranja, meia-arrastão, um violino, cortinas, fotos do ator Lucas Gouvêa e uma
radiografia da atriz Ângela Delphim, entre outras coisas. No segundo tipo de objetos
listo a extensão de fios elétricos, a tinta cor de goiaba na parede, os diversos soquetes, a
distribuição de pontos de luz num mapa do salão, mesa de luz e de som, um baú para
guardar quase tudo, caixas de som, etc. No entanto, esta distinção não é intrínseca aos
objetos tomados como coisa, mas segundo variações propriamente semióticas,
especificamente tomando a idéia de objeto a partir de uma sobredeterminação formal
entre objeto, signo e interpretante. As classes de objeto designam neste corte uma
fronteira importante, pois o que ajuda a compor a cena não necessariamente está em
cena, apontando para um complexo de agências que não limita a possibilidade de ação
70
A organização da experiência tomada como orquestração de graus de atenção pode ser tomada segundo
as lições e aportes de Erving Goffman (1971, 1984). Contudo, alguns dos desdobramentos do tipo de
sinergia que são mencionados em Fun in games dependem de um plano de relações mais extenso e
intenso do que o considerado por Goffman. Não basta haver pessoas, e o modo de relação do tipo we
rationale se dá num prisma propriamente ecológico, no sentido que é a totalidade da presença (presença
em e presença com) que permite que os efeitos de som e luz, calor e apreensão (do que não se vê) se
façam efetuar. Não por acaso a menção de Simondon (1969) é um tanto indispensável neste debate.
154
significativa à ação de pessoas, mesmo que, tal como no modelo de Gell (1998), possase inferir um complexo de pessoas distribuídas em efeitos de objeto71, mesmo que numa
extensão elétrica ou num filamento de lâmpada. Os objetos, no caso, possuem efeitos
outros articulados por planos de consistência, que vão desde a eletricidade até a
memória, e são objetivamente articulados para a constituição de pessoas em agência,
isto é, em performance.
Assim, a constituição de um efeito implica em pôr em relação estas duas
fronteiras que operam nos pólos da agência teatral entre o espectador e o ator, isto é,
entre pessoas, o fundamento da própria economia que especifica o teatro. Afinal, apesar
de tudo, há de se pagar/assistir os artistas que, no meio de todo este enorme coletivo de
objetos, fazem o que se espera deles: seus papéis. Bem ou mal, não outra coisa: uma
personagem, este ser que não surpreendentemente compõe o título de uma das seções do
célebre artigo de Marcel Mauss.
Ao que parece os atores com quem fiz pesquisa de campo são especialistas, à sua
maneira, aos assuntos que dizem respeito à pessoa. Como sói ao meio oficiante, saber
significa “saber fazer”. Ao cabo e ao rabo, se um ator sabe como é uma pessoa, monta
ações quanto ao como seria se fosse, ou o que deve fazer para fazer essa mesma pessoa
por um método qualquer, adentrando no regime do como se ficcional – no caso de o
conceito de figura substituir a de personagem. É assim que a faz de ficção e a apresenta
segundo as técnicas de apresentação articuladas às técnicas de assistência, visando
coincidir de alguma forma o mostrado com o que é visto. Numa acepção semiótica
ainda imprecisa, a pessoa é seu objeto técnico. Isso significa que tomada segundo sua
apresentação objetiva, como forma de presença, há técnicas de fazê-lo, técnicas essas
postas como habilitação, marca burocrática que indica a agência de outros sobre si,
reconstituindo sua formação, presentificando a forma futura do passado.
Nesse sentido, sugiro que aqui situar o problema em dois graus de agência que
permitem discernir o que e quem se assiste, a saber, a do coletivo a gente (tal como
formulado no texto apresentado à mesa) e a do individual-pessoal. E isto parte de uma
conexão fundamental. Joelson Gusson, diretor da peça, fora enfático: Ator não
interpreta. Quem interpreta é o público. O ator faz, age. “O que” se assiste é a peça.
“Quem é” assistido são os atores e os envolvidos diretos na produção da peça. Ela
71
Nesse sentido, uma personagem criada por um escritor russo, como Gógol, é tanto uma agência própria
e unidimensional (Simmel, 1996) quanto a agência da pessoa de Gogol enquanto a referência da
auctoritas literária.
155
mesma indica em um só golpe o sujeito da ação teatral (num modo de possessão da
demiurgia burguesa do artista criador72) e o circuito de ofertas e prestações
implicadas na atividade de assistência. Num diálogo hipotético, mas repetido à exaustão
durante os ensaios (e fora deles), procurar saber sobre qual espetáculo alguém foi
testemunha, pergunta-se: o que você foi assistir, dando à peça unidade (começo e fim),
tendo como resposta a esta pergunta o título da peça, seu nome próprio. Ou no que diz
respeito às personagens, vivos no território ambíguo entre o ser e o fazer (ser-feito):
Lucas fazia Vicente, um quem manipulado por criatividade.
Contudo, para reunir todos estes elementos em um só encontro, desde os tipos de
objetos, os assistentes, os atores e os demais envolvidos, a agência pessoal que dá forma
e sentido às personagens implica em mais do que me referir a uma ordem individualista
de constituição da pessoa. Digo “mais” porque é uma questão numérica de
superioridade que opera no plano que dá contorno, limites, poderes e consistência à
pessoa, em particular a pessoa de ficção própria ao ambiente teatral. Há uma multidão
existente em virtude de cada ato de personagem que se apresenta sob o signo do
encontro que se faz, no espectro da quarta pessoa do singular, esta ainda inexplorada.
72
Que por ser um modo sua atualização pode ser romântica, modernista, social-realista, surrealista,
simbolista. Por me referir a modos de fontes de aliança e sentido, como o são certas configurações de
ação coletiva, vale levar em conta as repetições problemáticas que dão aos enunciados centros d
articulação. Assim, sugerir a burguesia como centro tem como objetivo apontar para uma certa
configuração histórica de um modo de humanidade e humanismo, naquela que se funda sob o artifício das
representações de representações, ou seja, das formas ordinárias de abstração e seus corpos requerentes.
Este é o tema da última parte desta dissertação.
156
III. O BÊBADO E O ILUMINISTA: ALGUNS MODOS DO OBJETO EU
3.1. Passado ascendente e alianças fortuitas
De acordo com o ponto de partida desta dissertação não poderia me isentar do
ofício de considerar as fontes bibliográficas como acervo privilegiado de escritos
disponíveis de forma a elucidar ou utilizar como exemplo alguns dos movimentos ou
espécies de raciocínio. De alguma forma, um dos horizontes técnicos da formação de
um cientista social passa pelo sutil treinamento de lida com bibliografias, atendendo
à lógica de remissão, cronologia, campo conceitual, preferências pessoais e atenção às
disputas territoriais próprias do ofício. Lidar com livros e outras formas de ordenação
bibliográfica no que tange desde sua disposição de arquivamento até o arquivamento
em páginas de passagens e conexões entre documentos, resultam em uma tarefa
especializada. De outra forma, significa que não é tarefa para qualquer um. Para ser
antropólogo há de se reconhecer formas de dispersão dos acervos de maneira a reunilos em atos mais efêmeros de coletânea e indicação bibliográfica, há de se conhecer a
bibliografia exemplar e, quiçá, comentá-la.
Esta bibliografia se apresenta segundo o código de apresentação por autoria,
segundo zonas de função-autor (Chartier, 1998). Estas zonas que definem as
propriedades da antropologia, no caso da disciplina de leitura fundamental desta
dissertação, desdobram-se em outras modalidades de referência bibliográfica,
fazendo da preparação da escrita uma verdadeira devassa em bibliotecas e arquivos
públicos e privados. Respeitando a ordem dos livros, qualquer pesquisador treinado e
habilitado deve saber fazer o reconhecimento de acervos. Mas só diante o respeito da
ordem dos livros.
Não obstante, há de se considerar a edificação das formas de transmissão
teórica formuladas. Da função-autor, especialmente a partir do século XVIII francês
que vê no valor criativo o registro da propriedade autoral, a elaboração das teorias
exemplares, tal como transmitidas, o fazem pelo mesmo suporte bibliográfico,
fazendo do sistema bibliográfico uma fonte de teorias de grande alcance, espacial e
157
temporal, dado sua distribuição equivalente às fronteiras da República das Letras. O
sistema bibliográfico arregimenta grandes autores, e especialmente no eixo temporal
a propriedade do móvel estável dos impressos deve ser aqui posta em relevo. Quando
o que está em articulação são exatamente as formas abstratas de valor, tomadas
segundo a referência da ordem das referências bibliográficas tão importantes em
minha participação como a gente do Dragão Voador teatro contemporâneo, uma
outra dimensão da pesquisa de campo se revela, apresentando contornos ressonantes
que embaralham os limites da contribuição desta dissertação. O acesso privilegiado
ao conteúdo bibliográfico toma a forma de mediação entre campos uma vez que é ele
que permite acesso a frases silenciosas de um morto do século XVIII, ancestral do
grupo de teatro em questão pura e simplesmente porque em seu prognóstico da
atividade teatral Denis Diderot escrevera com clareza, em 1769, aquilo que Joelson
Gusson em 2007 quis dizer. E o disse no intuito de citá-lo. Citou-o numa prece73.
O valor deste tipo de contribuição, que visa ampliar o escopo das relações
presentes nas frases proferidas em vários momentos segundo uma coerência de
propósito qualquer, é difícil de precisar. Contudo ignorá-la é emprestar à minha
inserção em campo um papel secundário. A ampliação e a orientação dialogam com
um aspecto das atividades de composição de cenas muito importante. Valendo-me da
definição de Patrice Pavis e seu dicionário para especialistas:
“COMPOSIÇÃO DRAMÁTICA: “As artes poéticas constituem tratados
normativos de composição dramática. Enunciam regras e métodos para a construção
da fábula, o equilíbrio dos atos ou a natureza das personagens. Sua composição se
assemelha à da retórica: a disposição-modelo é considerada obrigatória.(...) É possível
uma teoria da composição dramática (ou do discurso teatral), desde que os princípios
do sistema sejam descritivos e não-normativos, e que sejam suficientemente gerais e
73
“Na prece o crente age e pensa. E ação e pensamento estão estreitamente unidos, brotam em um
mesmo momento religioso, num único e mesmo tempo.(...) A prece é uma palavra. Ora, a linguagem é um
movimento que tem um objetivo e um efeito; é sempre no fundo um instrumento de ação. Mas, age
exprimindo idéias, sentimentos que as palavras traduzem para o exterior e substantificam. Falar é ao
mesmo tempo agir e pensar: eis porque a prece pertence ao mesmo tempo à crença e ao culto.” (Mauss,
1979:103)
158
específicos para abarcarem todas as dramaturgias imagináveis.(...) A escritura
contemporânea, especialmente a pós-dramática e a pós-brechtiana, não mais obedece
a uma série de regras de composição, pois estas regras desapareceram desde que se
passou recorrer a textos não escritos originalmente para a cena.” (Pavis, 1999:62-63).
Não é necessário fazer muito esforço para perceber o quanto a noção de
composição aqui formulada é circunscrita a autoria/autoridade do dramaturgo. Parte
da premissa de que a composição se detém no procedimento de registro da seqüência
formal de intensidades e expressões postas no papel. Contudo, e esta é razão de
publicações como o livro de Matteo Bonfitto (2002), o ato de composição é já
distribuído como elemento de ofício do ator próprio a sua função politécnica, cuja
elaboração define relações em grande parte bibliográficas com uma série de
ancestrais definidos e postos em ação por via de sua evocação e citação. Não por
acaso, parte significativa das falas dos atores do grupo Dragão Voador é retirado de
poemas, trechos de contos e outras fontes literárias transmitidas em trechos
recortados e colados em cena. Não por acaso compartilham com seu assessor teórico
a prática de citações privilegiadas. Não por acaso têm formação universitária, seja ela
completa ou não.
Não busco formular nenhuma teoria do parentesco, mas a relação entre o
acesso a um sistema bibliográfico exemplar e algumas dimensões do pensamento de
Lévi-Strauss quanto ao totemismo em O pensamento selvagem são importantes,
especialmente no que tange ao tempo reencontrado, cuja dimensão objetiva na vida e
agência dos objetos, permite que se possa saltar, como num corte cinematográfico, ao
que fora pensado muito tempo antes. De alguma forma, o livro é uma churinga
aranda.
“(...) cada churinga representa o corpo físico de um ancestral determinado e é
solenemente atribuído, geração após geração, ao vivo que se acredita ser esse
ancestral reencarnado. Os churinga são empilhados e escondidos em abrigos naturais,
159
longe dos caminhos freqüentados. Periodicamente são retirados para inspeção e
manuseio e, cada uma dessas ocasiões, eles são polidos, engraxados e coloridos, não
sem que lhe sejam dirigidas preces ou encantamentos. Por seu papel e pelo
tratamento a eles reservado, apresentam assim surpreendentes analogias com os
documentos de arquivos que metemos em cofres ou confiamos à guarda de notários e
que, de tempos em tempos, inspecionamos com os cuidados devidos às coisas
sagradas, para repará-los, se necessário, ou para confiá-los a pastas mais elegantes. E
em tais ocasiões, também nós de bom grado recitamos os grandes mitos cuja
lembrança é reavivada pela contemplação das páginas rasgadas e amarelecidas: fatos e
gestos de nossos ancestrais, história de nossas moradas desde sua construção ou sua
primeira cessão.” (Lévi-Strauss, 1998:264)
Quem sou eu para negar a tradição – do teatro e da antropologia? O presente
capítulo é uma incursão no mundo mítico, dado que conceitual, de Denis Diderot,
aquele que disse antes de Joelson dizer, e disse-o claramente. Este é um capítulo de
assessoria teórica, como o é de certa maneira toda a dissertação.
3.2. A galhofa do gambá
O emaranhado de questões referentes ao que se pode reconhecer o que é digno, é
alvo das reflexões que seguem, decerto tímidas. Apontar para a dignidade como uma
faculdade universal, fruto de uma história irmanada da cidadania e da declaração
universal dos direitos do homem pregando a tolerância absoluta, é apenas uma das faces
de um procedimento que tem tudo para ser qualquer coisa, menos um exemplo de
linearidade. Tampouco as histórias que se contam são inequívocas. No alvorecer do
sensualismo moderno, na articulação acabada de diversas formas de materialismo
decisivas para a irrupção da civilização Ocidental, uma vibração sutil fazia dos alicerces
dos novos caminhos uma fonte perene de oscilação e, ao fundo desta vibração se ouve:
quando age o homem, quem é que age? – pergunta essa remissível ao ator que responde
160
hipoteticamente: “eu!”. Eu quem? – pergunta já elaborada acima, seguindo as intuições
preciosas de Marcel Mauss74.
O que quero pôr em quadro é simplesmente a força diferenciadora da fala –
potencial de conversação, que impõe à mesma um sujeito falante e a eminência de uma
crise a qualquer momento, mesmo que não haja qualquer indício de mal entendido. Não
é preciso nenhum senhor Prokarchin para evidenciar os problemas evidentes da fala
como forma de agência cósmica plena de conexões, disjunções e conjunções entre seres
e formas temporais. Pode-se aproximar por via de índios, loucos ou qualquer outro
absurdo para culminar na fórmula bem conhecida da desrazão. O que se oferece como
mote na presente etnografia é a aparição, nada sorrateira, de Denis Diderot, pela voz
evocativa de Joelson Gusson (vide Preleção). A evocação de seu nome, um apelido para
as idéias claras que Joelson queria transmitir. Pediu que todos lessem na forma de
acesso privilegiado a um autor importante. Na figura de autoria exemplar, significativa
em solo disseminador de autorias em todos os ramais de cidadania (crime incluído), o
que faz com que um autor, decerto comum, dado que é apenas mais um, se põe em
livros, venha ascender em relação ao que tão detidamente discutia os perigos de uma
personagem? E porque, para aproximar-me de Diderot e seu poder de locução, preciso
comentá-lo, e não tratá-lo como documento historiográfico? Apenas sigo o movimento
do próprio Joelson que trata a figura de Diderot como um autor que tem algo a dizer,
por escrito, mesmo que as intenções do escrito estejam afastadas em 248 anos do
momento preciso da locução:
“JOELSON
Diderot. Diderot foi um daqueles franceses que foi um dos enciclopedistas e tal, né? E
ele escreveu esse texto, o Paradoxo do comediante, na época lá, falando o quanto o
teatro dramático, trágico, representativo, e tal, o que é que ele achava que o ator tinha
que fazer, né? E tem uma frase nesse texto que eu acho muito clara, muito clara, que
ele fala assim, é mais ou menos assim, ele falando, que é um diálogo, né, é... é uma
74
“De que maneira, ao longo dos séculos, através de numerosas sociedades, se elaborou lentamente,
não o senso de “eu”, mas a noção, o conceito que os homens das diversas épocas criaram a seu
respeito? O que quero mostrar é a série de formas que esse conceito assumiu na vida dos homens, das
sociedades, com base em seus direitos, suas religiões, seus costumes, suas estruturas sociais e suas
mentalidades.” (2003[1938]:371)
161
pessoa falando com outra discutindo o que que é o papel do ator... do comediante, do
ator, e ele fala assim: o cara; quando termina o espetáculo, o ator, ele está cansado,
elétrico, cansado, e o espectador tá triste, digamos num drama, né, e o espectador tá
triste, por que? Porque o ator se agitou muito sem sentir nada e o espectador não se
agitou e sentiu todas as coisas. Eu acho isso de uma clareza enorme, sabe... GENTE, O
TAMANHO DAQUELE GAMBÁ!!!”
Daí por diante, Diderot traz clareza e vira uma personagem, palpável o suficiente
para que Leonardo Corajo viesse a atiçar o gambá chamando-o pelo nome do
enciclopedista. A mesma força da galhofa, que desloca nomes e significa uma presença,
faz um elogio da trajetória de um nome que, mesmo aplicado como nome falso,
preserva as conexões de evocação. Evocar um ancestral por via de uma citação que
transmite clareza concretiza uma força temporal. Caso contrário, bastaria pedir para que
cada um fizesse uma leitura do Paradoxo sobre o comediante, em silêncio, fazendo
valer a técnica mínima do tipo de comunicação separado do corpo. Mesmo que um livro
o seja para todos e para ninguém, o evento de leitura não é predito. É virtual, seja ele
qual for. Mas no caso, se cada um simplesmente lesse em silêncio, Joelson deixaria de
ser aliado de Diderot, evocado numa prece. No caso, o primeiro poder da citação é o de
dizer com clareza aquilo que se gostaria ter dito, mas a expressão é trans temporal, é
uma montagem. E este é o gancho que utilizo para trafegar pelas conexões indutivas
que, na expressão de Peirce (1977:06), não fará outra coisa senão determinar o valor de
uma relação, a saber, com um Iluminista morto a 248 anos de sua citação oral.
Os filósofos iluministas de cujo Iluminismo se vangloriam, visam aproximar as
ciências e as artes da linguagem vernacular, o que implica em falar e escrever com
clareza. Nos textos de philosophes, nada de corolário, escólio e teorema, próprios de
um classicismo retrógrado. O tempo voa para os iluministas. Prefere-se conseqüência,
observação e proposição (D’Alembert, 1994 [1759]:22). Mas cabe aqui uma ressalva
metodológica. Não existem mais falas de iluministas do século XVIII. O que há são
falas problematizadas, a que se dispõe pelo registro operado de um travessão ao canto
da página, ou na identificação da personagem falante, dando forma às técnicas de leitura
que nos permitem reconhecer um diálogo quando este passa diante dos olhos. Há um
mundo inexplorável cheio de cavernas e palácios dos quais, ou ninguém sai ou ninguém
entra, mas que faz do registro por escrito um entrave no balanço delicado entre o falso e
verdadeiro, por um lado, e o que pode e o que não pode ser, por outro. É com este tipo
162
de cautela, quase uma covardia de quem respeita um orixá, que chego a Denis Diderot e
a configuração moderna do auto-controle nos seus escritos, auto-controle tema da
preleção contra personagem.
Se leio sua obra, isto é, um conjunto de encadernações que, se repetidos em
forma de impressão e traduzidos como idênticos (identidade conferida pela própria
repetição constatável, letra a letra, espaço em branco a espaço em branco), dão em um
conjunto de escritos que tem como identidade autoral um nome próprio, o supracitado, o
endereço o móvel estável. Leio Diderot numa atitude de transferência, que recebe ao
mesmo tempo em que impõe uma rede de implicações, o todo parcial que o nome
carrega, numa conjunção significativa. Ponho em comunhão o que Diderot escreveu
fazendo do objeto feito a articulação da propriedade diderotiana – e então o texto é dele;
preposição e pronome pessoal, “de ele” – adequado à autoria (autoritas), ao mesmo
tempo em que assumo lê-lo sem preposição alguma, reconhecendo na escrita impressa
não só a propriedade de Diderot, mas ele próprio distribuído pelo conjunto de esforços
entre escrever, imprimir, traduzir e distribuir. Os traços que conduzem aquilo que se
reconhece como leitura da escrita traz consigo alguma propriedade ritual, algo de
mediúnico próprio ao trato com os mortos (todo leitor é meio kardecista). No meio de
uma massa de mediações a autoria sutilmente se distribui.
3.3 Dignidade e humanismo: logo antes de Diderot
Um dicionário da língua portuguesa de pouca fama, editado em 1986 (Costa &
Melo), ao pontuar o verbete dignidade não apresenta um só desenvolvimento mais
abrangente sobre o termo sem que sejamos remetidos a alguma idéia de hierarquia75.
Como é de seu significado corrente, este conceito impõe ao leitor um significado de
gradação e de diferença por via de princípios sagrados relativos à perfeição divina:
hieros arché. Isso, aqui, nos remeterá ao Renascimento histórico, em especial quando o
verbete do dicionário consultado sugere alguma ligação óbvia entre o que é digno e o
que é humano. Óbvia, mas a que preço? A distância cronológica entre o dicionário e a
75
“dignidade, s.f. qualidade moral que infunde respeito; consciência do próprio valor; gravidade;
grandeza; modo digno de proceder; respeitabilidade; cargo elevado; cargo especial num cabido;
honraria; autoridade; nobreza; princípio moral baseado na finalidade do homem, e não somente na sua
utilização como meio; -humana: valor particular que tem todo o homem como homem, isto é, como ser
racional e livre, como pessoa; moral da – humana: doutrina segundo a qual o princípio ético
fundamental é o respeito da pessoa humana em si mesma e nos outros. (Do lat. Dignitate-, “idi”).”
163
publicação de Oratio de hominis dignitate, de Giovanni Pico della Mirandola
(1993[1489]), nosso anteparo respeitoso, um exú para evocar (provocar?) Diderot, não
significará aqui outra coisa senão um caminho pelo qual há de se reconhecer a fundação
do problema da liberdade e da ação humana como incidente sobre o próprio agente,
instituindo com vagar e custo a figura do demiurgo de si tão cara para as formas
artísticas modernas.
O que desponta na antropologia de Pico della Mirandolla é a exaltação da figura
humana e seu mal-acabamento, o que o faz maravilhoso uma vez que desatrelado de
necessidades imperiosas e permite sua radical transformação por via do arbítrio. O
fizera diante da árvore do fruto do bem e do mal, poderá fazer quando quiser, para bem
ou para mal. Diante do paradigma da Queda (tão importante para as formas modernas
de objetivação da desrazão76), o renascentista põe à voz de Deus um discurso sobre o
mundo criado povoado por baixas formas de vida de grande variação, cada qual posta
em seu devido lugar. Ao homem, nenhum que não quisesse. O arbítrio localiza o ser que
logo é.
“Pelos outros, sua natureza definida é obtida às rédeas das leis que havemos
prescrito: a ti (homem), restrição qualquer lhe basta e é teu próprio julgamento, o qual
lhe confiei, que te permitirá definir tua natureza. (...) Poderá te degenerar em formas
inferiores, que são bestiais; tu poderás, por decisão de teu espírito, te regenerar em
formas superiores, que são divinas.” (op.cit.:09)
Disse-o Deus. As fontes e os propósitos do arbítrio, que já degenerou em Queda
do paraíso, são a evidência de dignidade posta como signo de algo outro, uma vez que
jamais especificado por necessidades, ao mesmo tempo que delimita a si-mesma, o que
é a humanidade, sempre Outra em relação à natureza, esta disposta em uma cadeia
hierárquica que define os seres segundo sua maior ou menor perfeição e que, no sistema
de Pico della Mirandola, tem no humano um mediador universal que assume diferentes
devires para diferentes disposições do espírito:
(quando é)... Vegetativo:devir-planta
Sensível: devir-besta
76
Vide Sahlins (2004)
164
Racional: devir-celestial
Intelectivo: faz-se anjo e filho de Deus
Não há questionamento da unidade de Deus, que é o centro irradiador de
existência. O que há é uma indefinição radical do humano cuja multiplicidade do devir
advém de uma insatisfação radical que culmina na degeneração a não ser que recorra às
formas de se encaminhar à unidade do espírito. Mas não há dúvida, e o próprio Pico
della Mirandola é taxativo: por migrar para qualquer natureza, por operar no todo da
unidade da criação, o humano é o microcosmo da criação, dado que a definição de si
não é oriunda de sua existência primeira, natural (zoé), mas sim de seu agir que
comprime tanto sua vontade como a totalidade de suas forças criadoras (bios; Cassirer,
2001:141). E é daqui que partimos para o nosso iluminista.
3.4. Homem, microcosmo
Senhorita de L’Epinasse: (...)Doutor, e vós não denominais isso desatino?
Bordeu: Perto de vós, certamente.
Senhorita de L’Epinasse: Perto de mim, longe de mim, é a mesma coisa, e vós não
sabeis o que estais dizendo. Eu esperava que o resto da noite fosse tranqüilo.
Bordeu: Isso produz comumente semelhante efeito.
Senhorita de L’Epinasse: de modo algum; pelas duas horas da madrugada, ele voltou
à sua gota de água, que chamava um mi...cro...
Bordeu: Microcosmo.
O sonho de D’Alembert – Denis Diderot
Imediatamente entramos no pensamento moderno tentando resguardar a
identidade das coisas diante das coisas, as coisas diante das palavras em um crescente
comércio de coisas e palavras, que passam aos poucos a serem diferentes entre si. É o
que nos indicará que, apesar de tudo, Diderot não é um renascentista, apesar de sua
herança. A partir daqui a magia é uma superstição, e a criação se define por outras
formas em relação à illusio.
A dificuldade de proferir a palavra microcosmo da Senhorita de L’Epinasse
(amante de D’Alembert) advém de uma seqüência de diálogos escritos por Diderot, que
165
projeta em dialética sua versão de cosmologia universal. Nela “o transporte de um
corpo de um lugar para outro não é o movimento, é apenas o efeito. O movimento está,
igualmente, quer no corpo transferido, quer no corpo imóvel” (op.cit.:152) permitindo
uma indiferença ôntica e uma diferença ontológica absoluta entre um ser humano e uma
estátua de mármore, esta eternizada pela pena de Condillac em seu Traité des
Sensations. Entendendo a cosmologia como a ordem absolutamente necessária de
habitação dos seres segundo suas propriedades particulares, imagino que tipo de
condução argumentativa seria necessária para que se pudesse isolar, tal como num
laboratório de física experimental – ambiente tão caro a Diderot e a este trabalho -, um
marcador diferencial do que é natural e do que é humano na vida humana, assim como a
ascendência que define a agência dominante, daquelas que dispõem indícios.
Imediatamente há de se resguardar a política dos efeitos, tal como imaginado por
Joelson e Candice na Preleção contra a personagem, em como a relação entre
movimento, força e transferência, fazem de um gesto um engodo, ou muito pelo
contrário.
O fundamento do auto-controle tão importante para a consolidação das
politécnicas que, por uma ou outra via habilitam a profissão de ator, corteja a temática
da relação entre natureza e humanidade que é elaborada segundo caminhos muito sutis e
tortuosos e que permitem que retomemos suas dificuldades, apresentando marcas de
disjunção e conjunção entre as duas redes cósmicas, o humano e o natural. A bem da
verdade, se foi possível retomar aos poucos que os seres humanos estão envoltos por
outros seres na natureza, há também estes outros seres que também são humanos, de
outras culturas, muitas vezes irracionais. Já estamos falando de momentos decisivos da
história da colonização européia que tem nas diferenças entre povos diferenças de
civilização, outro problema dominante77 e que se chama progresso.
Como parte de abertura de um quadro mais geral, que permite perceber nossa
personagem em movimento, um detalhe é importante. Diderot não está sozinho.
Escreve ligado a problemas postos que dão forma aos conflitos de sua época
culminando em censura, prisão e debates inflamados acerca do papel das ciências, das
77
Apesar de considerar indispensável a ressalva de Pierre Clastres (1978) na qual, apontar para objetos
como “culturas sem-x”, como “sem Estado” sugerindo uma carência diferencial, não colabora na
investigação do que elas efetivamente fazem e o que há por lá, esta ressalva não desautoriza a
antropologia de se ocupar também de culturas de civilização, sem utilizar o termo como unidade
comparativa, mas como especificidade absoluta de um processo formal de deflagração de atitudes e
pensamentos civis na forma de “civilizados”, isto é, na constituição de uma objetividade de subjetividades
que receba e explore o plano de consistência do que é civil.
166
artes e da humanidade. Mas se o objetivo é o de apresentar algumas das formas pelas
quais este tipo de diferenças emerge dos escritos de Diderot, assim como viso para
ressonâncias para a presente pesquisa de campo, não o faço para elegê-lo herói, mas
para registrar uma certa identidade cultural da polêmica na qual é participante e que
funda as possibilidades de citá-lo nos termos que Joelson o pôs. Neste sentido:
“É preciso reconstituir o sistema geral do pensamento, cuja rede, em sua
positividade, torna possível um jogo de opiniões simultâneas e aparentemente
contraditórias. É essa rede que define condições de possibilidade de um debate ou de
um problema, é ela portadora de historicidade do saber.” (Foucault, 2002:103)
Contudo, como afirmei, o que interessa é um confronto entre poucos escritos
relacionados de um mesmo autor. Evoco a figura do próprio Diderot que, ao por na voz
da Senhorita de L’Epinasse seu esquema, a fez vacilar com uma palavra que faz uma
atribuição à gota d’água: microcosmo78. Em minha exposição o philosophe fará a vez
de gota d’água, uma vez que sua cosmologia me habilita. Nela “toda coisa é mais ou
menos uma coisa qualquer, mais ou menos terra, mais ou menos água, mais ou menos
fogo; mais ou menos de um reino ou de outro” (Diderot, [1769]2000b:178) e que tem
em sua diferença algumas disposições no tempo, mas ocorre por um princípio bastante
diverso do que vemos na oração de Pico della Mirandola. De alguma forma, segundo a
prece à Diderot, suas palavras nos aproximam mais de nós mesmos à medida que nos
afasta dos demais.
Mas quem é que estou procurando neste ritual de leitura? Não parece haver
qualquer caminho mais certeiro. O que se desenha na forma de microcosmo do
iluminismo que o próprio Diderot nos permite arriscar é o sujeito de toda e qualquer
experiência, e a objetividade à qual é sujeito, que toma forma em seus escritos nos quais
se manifestam os objetos de savoir-faire79 tão indispensáveis aos vapores da utilidade
moderna que o movimentam no trato das ciências e das artes, sua forma de disciplina e
de aprimoramento de si e do mundo (Diderot;1989). Mas quem é que aprimora quem,
78
“Senhorita de L’Epinasse: (...)via em uma gota a história do mundo. Essa idéia parecia-lhe grande;
afigurava-se-lhe inteiramente conforme à boa filosofia, que estuda os grandes corpos nos pequenos.”
79
“JOELSON - Abriu a cortina. Entendeu? Caiu, quebrou. Um monte de caco de vidro, todo mundo
descalço. Não tem como fazer. Né? Vai lá, faz o negócio, limpa, aí tem que ter esse savoir faire de... de
que as pessoas sabem que a gente tá fazendo uma peça. Não é? Sabe! As pessoas sabem! Parô! Ó, não
tem como continuar.” Preleção contra a personagem, página 88.
167
uma vez que estamos sob efeito da pergunta: quem é que faz quando a humanidade faz?
Responder que o espírito é o agente da ação humana é classicismo. O que dizer da ação
puramente material, desta que funda questões sobre a materialidade tão importante para
o campo polêmico das artes contemporâneas e que soou fundamental para resolver
dilemas cênicos como, por exemplo, uma coluna ao meio da sala de espetáculo?
A relação desse dilema com o engenho de ator permite algumas considerações
prosaicas um tanto banais, mas proveitosas, sobre o que implica fazer algo no
iluminismo, assim como seu percurso literário até a provocação de Joelson em sua
preleção. Uma vez que no teatro vemos humanos simulando emoções, olhar para o
comediante significa atentar aquele que sabe fazer sem ser discípulo de suas afetações.
Esta operação é tão relevante que a vemos análoga a trechos inteiros de diálogos sobre
cosmologia e história natural, como em O sonho de D’Alembert. São ecos profundos do
que encontramos no Paradoxo sobre o comediante, texto seminal sobre a prática teatral.
Entre um e outro há um ciclo, uma vibração comum. Na abertura do Paradoxo, escrito
quase que no mesmo ano em que os diálogos até então citados, duas personagens
(Primeiro e Segundo) conversam sobre uma figura eminente de teatro inglês (Garrick,
ator inglês nascido no século XVII) que temia ser vaiada após apresentação de uma peça
na presença de sua mulher. Primeiro, que dá voz aos argumentos de Diderot acaba por
replicar, após aludir a sua tese acerca do efeito teatral, da seguinte forma:
“As vaias sufocam apenas os ineptos. E como formaria a natureza sem a arte um
grande comediante, já que nada se passa exatamente no palco como na natureza, e que
os poemas dramáticos são todos compostos segundo um certo sistema de princípios?”
(Paradoxo do comediante, [1769]2000b:31)
Estes princípios que descolam o palco de teatro do que é natural, sem jamais
romper com a natureza, aponta para um tipo de aptidão possível ao sistema de Diderot.
Mas esta possibilidade é muito cara pois a idéia de sistema de princípios, cuja fonte
experimental deve transformar-se em conceitos, abstrações, culminam exatamente no
tipo de coisa que “não existe”([1769b]2000 a:208) e que carece de exemplos para que
venham a ter concretude. Um sistema de definições matemático sem a referência de
trajetória, nada é. Não é outro o procedimento de demonstração de Diderot e suas
personagens ao apontar para o controle do imaginário que o palco exige. Esta relação, a
do imaginário com o seu próprio controle, é muito delicada e respeita quase como se por
168
um manual a operação de máthêsis ou ordenação do imaginário exposta por Foucault
(2002).
O dilema que é possível seguir pelas falas de Primeiro, do Paradoxo, dizem
respeito à vagueza de propósitos e especificidade que uma peça pode conter e da
possibilidade de dois juízos favoráveis a uma apresentação partirem de pressupostos
diferentes. É possível elogiar a direção, os atores, ou simplesmente o azul que serve de
cenário. Para lidar com este hiato o comediante ideal não pode ser qualquer um. É
preciso ser dotado de engenho80, como já dito, e conseguir comungar com seu entorno.
É então que transparece o mote deste diálogo. Diz Primeiro:
“(...) acho necessário que haja nesse homem (o comediante) um espectador frio
e tranqüilo; exijo dele, por conseqüência, penetração e nenhuma sensibilidade, a arte
de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de
caracteres e papéis.”([1769]2000b:32)
Nenhuma sensibilidade! Um tanto estranho para um filósofo tão devotado ao
sensualismo e às concepções específicas sobre a preeminência da matéria diante o
conhecimento, não fosse um problema muito especial acerca dos objetos empíricos em
questão, no caso, uma peça teatral. Dado que escrevo sobre um iluminista a partir de
algumas premissas de mediação ritual, é importante ressaltar que adentramos no mundo
da modernidade clássica que tem como um de seus principais exegetas Michel Foucault,
que vê este período a partir da ruptura com seu passado próximo pela alteração do
regime de enunciados (epistémê). Sumariamente, o passado próximo é o do
Renascimento de Pico della Mirandola, caracterizado por Foucault como um regime no
qual imperam quatro similitudes sintetizadas em quatro operadores epistemológicos:
aemulatio, analogia, simpathia e convenientia; sobre os quais não devo passar ao
menos sem expor a propriedade maior deste regime, as próprias similitudes. A prática
80
O que nos leva à correlação profunda entre a elaboração dos temas em questão, que aqui dizem respeito
às politécnicas nascentes e ao valor dos ofícios segundo a universalização das técnicas. Vale retomar os
escritos de Diderot, assim como as reflexões sobre a universalização da leitura (Chartier [2004],
Macluhan [1972], de Certeau[1994]) e da universalização em si dos procedimentos técnicos
característicos do iluminismo (Simondon, [1969]), que geram um agir em abstrato e então quantificável e,
tão importante quanto, apto à troca generalizada. O que remete uma coisa à outra e aprofunda os dilemas
entre criação e liberdade se dá exatamente na convergência entre a abstração do valor do tempo de
trabalho, assim como de suas formas, a multiplicação das técnicas e seu valor crítico-reflexivo e a
amplitude de possibilidades de situação de troca e, no caso teatral, de assistência que exigem do sujeito
agente competências de liberdade de tráfego num sistema de abstrações coordenadas (Simmel, 1987).
169
de investigação acerca do mundo na Renascença permitia indiferir os signos escritos e
os signos plástico-naturais, de forma que um fosse lido sendo um outro, embora nãoidêntico, sem nenhuma condição que não fosse o correto comentário de textos, suporte
no qual se realiza a máxima conheça-te a ti mesmo no qual a natureza divina se revela, e
que conduz o ser ao ser-intelectivo. Conhecer é, com efeito, tudo conhecer em si, sendo
o homem a justa medida que desvenda conexões ocultas próprias à magia, à astrologia,
à kabala, à alquimia e toda sorte de milagres (é época de simonismo). Não por acaso, a
noção de mimesis, que é um dos conceitos centrais para o discurso sobre as artes no
Ocidente, é um papel de tornassol do processo que procuro apontar, a saber, o da
constituição de um modo de agência moderno. Este conceito, tal como presente na
tradução latina fruto do esforço renascentista, aparece como imitatio, isto é, imitação da
referência, cópia mesmo segundo leis de perspectiva, por exemplo, o que é próprio da
eficácia por analogia de emulação e por afecção simpática, que emprestam à
humanidade exposta na oração de Pico della Mirandola seu aspecto protéico,
camaleônico. Só que esta emulação se referia à busca das leis de representação, próprias
dos ensinamentos clássicos divulgados pelo empreendimento humanista em questão, o
que evoca uma série de problemas, como o mecenato que impunha às artes uma
modalidade de relação e a determinação doutrinária dos símbolos e regras de seu uso.
Se a relação mecenas:artista liberal nunca significou exatamente uma relação servil
(vide o intenso tráfego dos artistas italianos entre principados no período) “em troca
sempre implicou o aspecto de destacar-se, de constituir para o nome do autor uma
genealogia “nobre”, separadora do homem de letras da gente vil e vulgar” (Costa
Lima, 1995:79) que abre as portas tanto para o reforço de um gradiente diferenciador
entre ofícios, assim como para a configuração final da arte cortesã. Da aproximação
entre poesia e poder81, vemos que a mesma anda de mãos dadas com a verdade, e
portanto com as leis que a regem como princípio.
“A vigência das normas, a manutenção da boa ordem, o seu próprio renome não
permitem liberalidades. Persuasiva, a palavra poética é integrante da retórica.
Mantém-se a consonância romana do poético com o retórico não pela inércia da
81
Vale notar que a ênfase dada à poesia, como a poesia dramática, é consonante ao platonismo vigente
em boa parte das teses do período quanto à diferenciação entre os ofícios, assim como a ordem das
autorias (Gumbrecht, 1998:74), entre as quais o ofício do ator não exercia nenhuma.
170
tradição senão porque responde à necessidade pragmática do Cinquecento.”
(op.cit.:82)
O caso do Iluminismo, o próprio território da modernidade clássica, apresenta
um desenho que, mesmo que próximo de uma semântica renascentista, dispõe de outra
sintaxe do conhecimento. Nas palavras de Ernst Cassirer:
“Em vez de se fechar nos limites de um edifício doutrinal definitivo; em vez de
restringir-se à tarefa de deduzir verdades da cadeia de axiomas fixadas de uma vez por
todas, a filosofia deve tomar livremente o seu impulso e assumir em seu movimento
imanente a forma fundamental da realidade, forma de toda existência, tanto natural
quanto espiritual.”(1997:10)
O que se apresenta como uma Weltbild iluminista tem par não somente com os
aspectos mais evidentes do ecletismo de Diderot e companhia, mas na nova forma de
controle das ações que visa impor ao próprio experimentador as rédeas do conhecimento
verdadeiro que, vale notar, desde o Discurso do método de Descartes, não se encontra
na leitura dos clássicos. Há uma cadeia dos seres, mas ela se estende por todos os lados,
e não nos comentários feitos às escrituras ou nos comentários aos comentários feitos às
escrituras que têm no homem a medida de todas as coisas, dado que seria o mediador
universal. Fornecer um método (caminho) que não seja apriori (Cassirer, op.cit.:26) e
que “demonstre a razão nos próprios fenômenos como a forma de sua ligação interna e
de seu encadeamento imanente” (id.ibid, idem) é o objetivo das investidas do
Iluminismo, em especial no que tange os fenômenos humanos.
3.5. O sistema lá, nós aqui, o mundo mais adiante.
Não ser sistemático, mas ter espírito de sistema. Este é o resumo deste primeiro
movimento. E nada mais adequado à condução de Diderot. O que emerge nos textos do
iluminista, em especial em seu Discurso sobre a poesia dramática ([1758]1986), é um
afastamento das poéticas que considera congeladas no tempo, não respeitando o
movimento natural das alterações característicos dos seres vivos, dos povos e dos
costumes diante o tempo progressivo, anulador da escatologia astrológica (Koselleck,
2006). Aquilo que veríamos como um sistema entranhado se torna o próprio
171
desentranhamento. Ser sistemático (classicismo) é infundir o sistema na indiferenciação
entre signo e objeto – o corpo incluído -, permitindo que o sujeito da ação se encontre
em ambas as extremidades da operação lógica; o espírito de sistema, ao contrário, evoca
antes de tudo a diferenciação do sistema em relação a todo o resto, fazendo da analogia
a comparação de diferentes entes a partir de uma atribuição representativa, o que põe o
sujeito do conhecimento em seu devido lugar, ao mesmo tempo em que o universaliza
como espécie humana, animal. Ao invés de abordar o humano pelas escrituras, vê seu
lugar em meio à natureza e sua ordem insondável.
O sistema objetivado culmina na necessidade das common measures permitindo
“analisar o semelhante segundo a forma calculável da identidade e da
diferença.”(Foucault, op.cit:73). A ordem privilegiada é a ordem do pensamento que
tem nas analogias a ordenação (máthêsis), isto é, a dissipação da confusão do mundo;
valores e objetos já não estão ligados pela necessidade, mas pela contingência relativa,
na geração de acervos úteis à comparação, seja ela sistemática ou metódica. Em outros
termos, o conhecimento é auto-conhecimento por via do controle da imaginação, dado
que as analogias de comparação entre os seres não lhe é determinada, mas atribuída por
uma série de relações provisórias ao procedimento de classificação próprias à taxinomia
nascente.
A despeito de alguns anacronismos importantes em sua obra, em especial no que
tange à universalização da noção de gosto, o livro de Colin Campbell (2001) compõe de
forma sugestiva aquilo que chama de hedonismo moderno a partir da imagem de artista
do sonho que, não bastando como alcunha do autor de O sonho de D’Alembert, aponta
exatamente para o engenho do esprit de systéme que tento evidenciar: “O grande
homem, se por infelicidade recebeu essa disposição natural (a sensibilidade, ou seja, a
extrema mobilidade de certos filetes sensitivos que, como cordas de um instrumento
musical, vibram em harmonias cuja repetição é a própria memória), ocupar-se-á sem
trégua em enfraquecê-la, em dominá-la, em tornar-se senhor de seus movimentos e em
conservar para a origem do feixe todo seu império.”(op.cit.:202).
No caso, a origem do feixe é a unidade da atividade da memória, cuja definição
é o poder de centro. Neste sistema a peculiaridade do funcionamento do corpo sensível,
sensibilidade esta comum entre o humano e o mármore, é o potencial anárquico das
afecções que, se descontroladas, agem a esmo seguindo seus próprios princípios de
funcionamento. O ser maior se encontraria possuído pelos órgãos, sempre rebeldes; há
conexão com as teorias de possessão e transporte (Nahoum-Grappe, 1994) e que, por
172
outra via, ressalta a relação entra posse de si e a moderna cidadania ainda em disputa
(Capitan, 2000). A autonomia agentiva de cada um dos órgãos abunda em diferentes
escritos de Diderot, revelando diferentes traços de possibilidades, como a memória
ativada pela fala da vagina desobediente e, num neologismo, incível em Jóias
Indiscretas (1986), da possível reforma da ciência por via da atenção cega, isto é,
desprovida do tato da visão na Carta sobre os cegos ([1749] 2000a), ou na simples
afirmação da autonomia em O sonho de D’Alembert (op.cit.). O auto-controle culmina
exatamente na opressão da manifestação das unidades próprias em prol de uma unidade
maior, seguindo a definição de virtude, que é o sacrifício de si-mesmo. O corpo de um
ser saudável é aquele em que a livre fruição dos órgãos como um si-mesmo é sacrificada
em prol de um bem comum, o que aponta para outra formulação certeira de Campbell
de um hedonismo racional, que visa finalidades, que possui um telos de definição
atribuída. Não é por outra razão que, seguindo ainda a Preleção contra a personagem
(pg. 89), o punch de Leonardo é tão prejudicial à figura que deveria apresentar. Sua
postura na cadeira de rodas não firmava, segundo Joelson, nenhuma fragilidade. Tudo
porque, por ímpeto, nunca dispunha os dois braços pousados nos braços da cadeira de
rodas, mas sim recostava seu corpo num dos lados somente, reforçando uma postura
sempre desafiadora.
Deste composto, algumas relações entre mundo e representação se fazem
necessárias. Em primeiro lugar, um signo é um ato criativo e imaginativo de
conhecimento82 que desfaz qualquer autonomia dos símbolos ocultos da Renascença.
Em segundo, o signo que operava simbolicamente (por reunião, associação) passa a
fazê-lo diabolicamente, isto é, por dispersões e “para que o signo seja o que é, é preciso
que ele seja dado ao conhecimento ao mesmo tempo que aquilo que ele significa”
(id.ibid.:83) ocorrendo por combinação. Em terceiro lugar, uma vez que o signo é
próprio à natureza e ao homem em combinação somente, sua relação atributiva deve
prestar serviço à memória e à sua instituição, pois deve ser recordável. É da ordem
arbitrária dos signos que se desloca a epistémê moderna, do conhecimento selvagem
renascentista.
82
“É este hábito sem-razão (déraison) que possuem, num grau surpreendente, os que adquiriram ou que
têm naturalmente o gênio da física experimental; a devaneios dessa espécie é que se devem várias
descobertas.” (Diderot([1754]1989:48)
173
Com este pano de fundo83, como não considerar que o método teatral deva
buscar alguma constância analógica na desigualdade entre os atores, especialmente que
representam com espírito, com sensibilidade? O dilema que enfrentam O Primeiro e O
Segundo do Paradoxo sobre o comediante é exatamente sobre a conduta adequada do
comediante diante a vaga precisão do poema dramático somada às vicissitudes do palco.
Se a repetição da atuação, especialmente quando boa, depende das sensações do ator,
como repetir tais condições dramatúrgicas se estas não são pessoais, mas as da peça
segundo seu conjunto técnico, que possui ritmos próprios, objetivos ao comediante, e
não subjetivos a ele? E o que isto tem a ver com a verdade, se um ator cansado pode
apresentar sinais de um ser vigoroso, fazendo-o hipócrita por definição84? Qual o
sistema de princípios que ordena a convenção teatral e que exige do ator a forma de
ação exigida por Diderot, sem que se retorne ao modelo renascentista, contudo? Preciso
aqui evocar uma terceira ruptura, já não mais histórico-filosófica ou epistemológica,
mas estética, pois na classificação dos seres, estamos falando da sistematização do
drama burguês (Peter Szondi,2004).
A primeira consideração específica no que concerne ao tema é a relação
complexa que os poetas usufruíam com a tragédia enquanto um gênero, especialmente
em sua caracterização nas poéticas, como a Ars grammatica de Diomedes, de IV a.C.,
de grande penetração no século XVII85, e que tinha como proposição acerca do trágico a
necessidade de se reportar à fortuna dos heróis – compostos pela figura duplicada da
nobreza – e por recorrer ao efeito do choro, ornamento que nos conecta com o conceito
de imitatio, imitação no sentido de cópia. Esta caracterização do trágico fazia do cômico
o território do vil (o da vila) e do baixo (idem), gerando uma polarização importante
entre o território da nobreza, em cujo período correspondia à equação alegórica
83
“Toda ciência não é senão uma combinação de signos. Excluiu-se a idéia separando o signo do objeto
físico, e só ligando de novo o signo ao objeto físico que a ciência volta a ser uma ciência de idéias; daí a
necessidade, tão freqüente na conversação, nas obras, de chegar a exemplos. Quando, após uma longa
combinação de signos, pedis um exemplo, não exigis de quem fala outra coisa exceto que dê corpo,
forma, realidade, idéia ao rumor sucessivo de seus acentos, aplicando a isso sensações experimentais.”
(Diderot,[1769]2000 a:208)
84
Aqui vale à pena recuperar a filologia do termo “hipócrita”, do grego hipocrités, cujo verbo referente é
hipocrinestai (Duvignaud, 1972:13), que se define pelo ato de representar uma personagem. O hipócrita é
o que role-play. Diante isso, não é de se espantar que, a partir da teoria dos feixes sensíveis, Diderot se
permita afirmar que os comediantes de respeito “não têm nenhum caráter pois representando todos,
perdem o que a natureza lhes deu; e que se tornam falsos, como o médico, o cirurgião, o açougueiro se
tornam duros.”([1769] 2000b:62), enfim, se torna um cidadão exemplar (Chartier, 2004; Costa Lima,
1988).
85
Para maiores detalhes, vide Carlson (1997: Prefácio e caps. 2 e 6).
174
(nobreza[ato]) = (nobreza[classe]), e o ambiente doméstico-burguês, fazendo do homem
comum agente da vileza, isto é, la cour et la ville. Mas a gradativa desarticulação dos
prognósticos do procedimento poético renascentista se abre para a configuração do
horizonte ficcional no qual, seguindo o prisma das representações de representações
característico que divorciam a palavra dos referentes análogos (Foucault, 2002), prepara
o deleite dos objetos de arte, evidenciando que a tragédia é um infortúnio sem
desafortunados, isto é, se o espectador sofre não é porque alguém morreu, mas porque a
morte da personagem o faz lembrar de algo, o remete às suas próprias emoções86. Põe
em questão o “eu” aplicável a uma generalidade infinita de objetos diferentes de outras
palavras, dado que não especifica qualquer classe de objetos e dispõe de “eu´s”
análogos fornecedores da conjunção própria ao espectador, forma indispensável do
enunciado da opinião e da piedade, ou do sofrer reflexivo pelo sofrimento representado
formalmente (Boltanski, 1999:66).
Isso indica nada mais nada menos do que a possibilidade de dissociação
diabólica apontada, na qual a relação de nobreza passa a se deslocar para as ações
dramáticas, e não para as dramatis personae, dado que é ficção assumindo seu lugar de
direito. Ao mesmo tempo, o espaço doméstico se transforma em um espaço não só
possível como também desejável como cenário, dado que é na compatibilização entre
efeito e memória (cena memorável!) que a emergência do drama burguês vem a se fixar,
traçando a tão delicada identificação entre público e espetáculo. Temos aqui a lenta
dissolução da arte cortesã, presa às regras de salão da corte, e passamos ao terreno das
questões sobre a ação eficaz e suas variáveis, especialmente na relação de manutenção
de um público regular.
A condução à poética do drama burguês, tem seu novelo desfeito aqui. Se por
um horizonte classicista devemos vincular o heroísmo ao trágico e o doméstico ao
cômico, o que dizer da inversão de Corneille com suas tragédie domestique e comédie
héroïque, ou de O mercador de Londres, de George Lillo, tragédia que tem como heróis
dois mercadores, e como resolução da trama de guerra um acordo comercial vantajoso
para as partes envolvidas pelo comércio empresarial (Szondi, op.cit.)? O horizonte
86
Não por acaso, as investigações do teatro referentes às formas de ser culminam em situações as mais
diversas. Vale mencionar que, em uma das conversas que antecedem o espetáculo, Candice fez menção a
uma amiga que reclamou do tempo e sua duração entre o breu que procede da morte das personagens no
desfecho da apresentação, ao som de Anthony and the Johnson´s, e o acionamento geral dos pontos de luz
como corte para a apresentação, confessional, dos atores. A avaliação de que fora tudo muito rápido tem
um fundamento. Não deu tempo de ela saber quem ela era diante tudo aquilo que havia assistido. Isto dá
base para sua queixa.
175
maior, e que corresponde plenamente à percepção de história natural esboçada pela tribo
dos iluministas, é que também os reis são homens, tal como Corneille anteriormente
dispõe. Na verdade, são homens fundamentalmente, dado que animais e somente
animais, mesmo que às vezes lobo do homem ou, por oposição, iluminado e autocontido. Desta nova organização na qual todos os sangues são pardos e perdeu-se o
reflexo do azul87, como reordenar o espaço cênico diante suas novas necessidades? O
que fazer desta natureza humana que:
“(...) se aloja nesse tênue extravazamento da representação que lhe permite se
reapresentar (toda natureza humana está aí: apenas estreitada no exterior da
representação para que se apresente de novo, no espaço branco que separa a presença
da representação e o “re” de sua repetição); que a natureza não é mais do que o
inapreensível tumulto da representação que faz com que a semelhança seja aí sensível
antes que a ordem das identidades seja visível. Natureza e natureza humana permitem,
na configuração geral da epistémê, o afastamento da semelhança e da imaginação que
funda e torna possíveis todas as ciências empíricas da ordem.” (Foucault, op.cit:98)
Não é outra a preocupação de Diderot ao definir o império da ordem de cena
teatral como o da verossimilhança, e não o da verdade, pois o que procura dar vazão é
ao que pode ser diante as possibilidades de criação, de gênio, e não a partir das regras
que caducam com o vento da história dos povos, ao mesmo tempo em que seriam
inúteis ao cultivo das virtudes. Caso contrário os nobres jamais teriam perdido seu lugar
na figuração do trágico e as peças não seriam nada mais do que a confusão dos sentidos,
razão de sua periculosidade histórica expressa em escritos como os de Platão,Tertuliano,
Rousseau, e uma ou outra junta de censura de Estados ditatoriais modernos. A burguesia
se torna digna de representação por exaltação na dramaturgia nascente, dado que ela se
apresenta agente de si.
Mas voltemos aqui ao valor da hipocrisia e à formulação do papel do teatro
como promotor de mudanças a partir da elaboração de um quadro (tableu) que
87
Vide Foucault (op.cit.:cap.V) para pôr em pauta como a cor perde valor classificatório, junto a uma
série de outras formas sensíveis, na prática das taxinomias. Contudo esta situação é ainda mais pregnante
ao situarmos o argumento burguês diante os salões, local de distinção do argumento segundo seu efeito
retórico diante máximas muita específicas de decoro. Mas se convidado, o burguês usufruía um espaço
comum. É neste espaço comum que as regras e máximas morais concernentes à civilidade e à correta
conversação eram postas em prática (Costa Lima, 1988; Chartier, op.cit.)
176
represente representações das condições de vida dos homens, em um horizonte possível
de entendimento, fazendo da poesia dramática um elenco de analogias centrais para sua
composição. Ao apontar para estas analogias, Diderot tem dois objetivos. O primeiro o
de buscar a promoção de um teatro histórico que acompanhe a dinâmica dos valores e
alterações que correspondem aos tempos de então, fazendo valer os bons exemplos
disponíveis na vida pública – todo sistema abstrato precisa de um -, publicidade esta
também vivida pela burguesia, o que a faz fonte de personagens possíveis. O segundo
propósito é o que visa bem articular valores e signos próprios a uma mimesis imitativa,
mas que tenha na imitação a forma de repetir efeitos – e não referentes – e que consiga
nisto promover no teatro uma boa associação88 entre pessoas que jamais se
encontrariam não fosse este momento:
“A platéia de comédia é o único lugar onde se confundem as lágrimas do
homem virtuoso e do perverso. Lá, o perverso se irrita frente às injustiças que
cometeria, sente compaixão pelos males que causaria, indignando-se diante de um
homem de seu próprio caráter. Mas uma vez recebida a impressão, ela em nós
permanece, a despeito de nós mesmos e o perverso deixa o camarote menos inclinado a
praticar o mal, como se um orador severo e duro tivesse ralhado com ele.”(Diderot,
[1758]1986:43)89
Neste trecho não somente encontramos no philosophe em questão a apologia de
uma forma específica de civilidade, não mais pautada pela honestidade e doação de si
dos tempos de outrora, mas pelo auto-controle e pela prática da hipocrisia (Chartier,
2004), como encontramos nesta prática teatral um horizonte específico de agência
moderna que em muito tem correspondência com a emergência do lazer, tal como os
sociólogos Norbert Elias & Eric Dunning (1992) vieram a descrever. Não digo que há
uma sociologia da função do teatro que seja transistórica, mas sim que o projeto de
conhecimento de Diderot é muito semelhante ao de alguém como Elias, dado que
88
Aqui a relação entre sociedade secreta, privacidade, caixa-preta e linguagens secretas é enorme e
procedente. Vide Isabelle Stengers (2002: cap. 05), Koselleck (1999: cap.02), Boltanski (1993), Deleuze
& Guattari (1996)
89
Não é preciso dizer que o diagnóstico de Diderot não é, de forma alguma, consensual. Na Carta a
D’Alembert, de Jean-Jacques Rousseau, uma posição diametralmente oposta se manifesta. Mas a
identidade cultural da polêmica ainda vale, pois não se evita a discussão do teatro como forma de efeito
civil.
177
ambos revelam a importância civilizatória da alienação relativa dos sentidos, assim
como reconhecem na educação dos sentidos por mímese (seja por excitação-jogo90 sob
controle por Elias, seja pela constituição de quadros de memória de analogias
fundamentais em Diderot) um método eficiente de influenciar as multidões gerando
boas associações (saudáveis, civilizadas), num tipo de relação experimental em que se
controle as variáveis, sendo o si-mesmo uma delas. O perigo maior aqui já não são os
sinais de fim do mundo, as propriedades do apocalipse. O perigo é a massa fora de
controle. Massa de órgãos, de sentidos, de cidadãos. Não se pode negar a existência do
perigo. Esta ressonância atinge, em parte, o trabalho do Dragão Voador que, ao final de
um espetáculo claustrofóbico e pessimista permite um tempo de apresentação dos atores
com falas que os situam como muito diferentes de tudo aquilo que apresentaram. É
preciso dar chances ao público-assistente.
Seguindo esta lógica, o diálogo dramático deve operar certa honestidade
confessional na qual o comediante deve “conhecer os sintomas exteriores da alma de
empréstimo(...),dirigir-se à sensação dos que nos ouvem, dos que nos vêem, e de
enganá-los pela imitação desses sintomas” ([1769]2000b:66) próprios do que é uma
ação honesta. Aproximando o conceito de plano à epistemologia, é possível encontrar
em Diderot uma definição que localiza a imaginação na composição destes planos. Se
na história (outra forma narrativa) o fato é um dado cujo fundamento é a prova (como
na história natural e a erupção das formas de definição do tempo profundo geológico),
na tragédia a operação imaginativa acresce nos tópicos de interesse e o poeta deve saber
definir a base e o detalhe da composição do plano de cenas (nesta ordem); na comédia
pode se inventar tudo. Mas dá-se visível o tipo de ordem planificadora que dispõe o
palco mapeado a mapeamentos mais abrangentes e menos específicos. O efeito de
realidade que se pretende não é o de refazer o referente, ou sequer prová-lo, como uma
situação de corte qualquer, mas de orientar o espírito em cumplicidade com a
compreensão, ao mesmo tempo em que seduz os sentidos. Com isto Diderot
([1758]1986:59-73) diferencia o verdadeiro e o verossímil.
A verossimilhança é o que permite que um homem possa julgar diferentes
produções ao invés de diferentes homens, que são todos iguais como entes, e fazê-lo por
via das formas de auto-controle realizadas pela prestimosa técnica. Se as formas de
ligação que constituem o plano de uma peça podem ser chamadas de unidade, é tão
90
Lembrando que a excitação-jogo em Elias & Dunning corresponde ao que Szondi (1994) ressalta na
formação do drama burguês, ser uma tragédia cujos infortúnios não trazem desafortunados.
178
importante ser possível identificá-lo como unidade de produção quanto perceber que sua
poética é devotada a esta unidade. O efeito longevo que serve de aprimoramento dos
homens por via da boa associação teatral exige a geração de liames aparentes e
sensíveis (Id.ibid:61) fazendo do sistema de representações teatrais um campo
experimental gerador de memórias afetivas, induzindo ao espectador a privilegiar
campos específicos de sensibilidade em detrimento de outros. É necessário afetar o
público aplicando as doses certas, na quantidade certa, especificando que tipo de
associações exemplares devem figurar o quadro de virtudes apresentado. É necessário
fazer os feixes constituintes do corpo vibrarem rumo ao autocontrole e constância
experimentais. O salto para a física experimental, a esta altura um tanto forçado,
mostrar-se-á um passo ao lado, pois vamos falar do que ocupa o lugar de Deus na
redefinição da dignidade (agência humana): a natureza.
“XXIV
ESQUEMA DA FÍSICA EXPERIMENTAL
A física experimental se ocupa, em geral, da existência,
existência das
qualidades e do emprego.
A EXISTÊNCIA engloba história
história, a descrição
descrição, a geração
geração, a
destruição.
conservação e a destruição
A história é dita dos lugares, da importação, da exportação, do
preço e dos preconceitos.
A descrição
scrição, do interior e do exterior, de todas as qualidades
descrição
sensíveis.
A geração vai desde a primeira origem até o estado de perfeição.
A conservação
conservação, de todos os meios de fixar este estado.
179
A destruição vai desde o estado de perfeição até o último grau
conhecido de decomposição ou de perecimento
perecimento; de dissolução ou de
resolução.
resolução
As QUALIDADES são gerais ou particulares.
Chamo gerais as que são comuns a todos os seres e que só variam
pela quantidade.
Chamo particulares as que constituem o ser como tal; estas
últimas são da substância enquanto massa ou da substância dividida ou
decomposta.
decomposta
O EMPREGO se estende à comparação
comparação, à aplicação e à
combinação.
combinação
A comparação se faz pelas semelhanças ou pelas diferenças.
A aplicação deve ser a mais vasta e variada possível.
A combinação é análoga ou bizarra.”
Denis Diderot – Da interpretação da
natureza
O principal efeito que o escrito-transcrito procura ter é o de induzir aos que se
interessam pela verdade a se unirem contra a resistência da natureza em ser
compreendida, mesmo a do próprio corpo. No que diz respeito ao que se dispõe aos
sentidos (input), só há caos ou carência de organização, como vimos. Os órgãos sequer
se combinam por si de forma coerente, unitária, sem o aparato de memória. Os cegos
operam maiores sutilezas com os sentidos que lhe restam demonstrando um estatuto
notoriamente totalitário dos olhos na configuração do entendimento (Carta sobre os
cegos; Adição à carta sobre os cegos). O sexo, na representação que nos dá a genitália
– especialmente a feminina, plena de vapores histéricos – é um constante desafio às
regularidades exigidas pelo comportamento civil, fazendo do humano um ser de duas
cabeças, ou ao menos duas bocas (Jóias indiscretas, Sobre as mulheres). Diante deste
impossível contexto no qual todos os órgãos do sentido parecem querer mandar em si,
sem qualquer propensão ao profundo um do espírito renascentista, como fazer da
180
filosofia aliada às artes técnicas e liberais um empirismo qualquer, fazendo do
sensualismo uma fonte de discursos sobre a verdade cuja fonte corresponde à relação: a
cada órgão dos sentidos, uma vontade?
A dignidade do homem, a configuração de sua humanidade dentre esta anarquia
é sua memória (Diálogo entre Diderot com D’Alembert, O sonho de D’Alembert). Mas
esta não lhe garante que é por si que tudo se faz. A inespecificidade do homem diante a
natureza que operava fora de si, como vimos em Pico della Mirandola, passa a ser
também uma questão interna, uma vez que externamente o que lhe garante
singularidade no iluminismo é sua organização corporal segundo maior número de
formas de relação com a natureza circundante ao mesmo tempo em que é capaz de
associação de idéias91, princípio da psicologia nascente. O foco, que fora outrora a
mediação externa, passa a ser então a organização interna.
Interna, mas não especulativa, pois se há confusão quanto aos dados externos,
há para os dados internos. “Os homens quase não percebem quão severas são as leis da
investigação da verdade e quão limitado é o número de nossos meios. Tudo se reduz a
ir dos sentidos à reflexão e da reflexão aos sentidos: entrar e sair de si.”
(1986[1754]:35; grifo meu), como se fosse necessário ser possuído pelas outras formas
segundo os critérios expostos e então possuí-las em jogo reverso; Laidem habeto,
dummodo te Lais non habeat92. Mas que não se considere a observação como forma de
ação suficiente: é preciso experimentar uma vez que “a observação exige apenas o uso
constante
dos
sentidos;
a
experiência
exige
gastos
contínuos”(id.ibid.:45),
especialmente na verificação de formas de utilidade e confecção de meios de
experiência laboratorial. Não à toa é o cansaço da ação, e suas formas sensíveis de
afecção, que o ator deve buscar. Não é outra fonte senão a perseguição da verdade da
experiência que busca Joelson, esta do tipo que permitira a Jésser de Souza demonstrar
as formas de desconforto como matriz de vozes outras que não as suas.
A utilidade antes de tudo, voltado à experimentação e à medida de todas as
coisas, de forma que se possa comunicá-la como uma experiência comum e não
segundo uma forma pessoal de registrar as memórias afetivas, exige que a percepção de
91
Da associação de idéias, aliada ao método mnemônico herdado das primeiras investigações sobre a
especificidade da organização mental humana, culmina na especificidade da humanidade diante a história
natural, a saber, a história das nações cujo caminho percorrido perfaz as sendas do progresso. Acúmulo de
experiências por via de corretas associações, tal como é a investigação científica do verdadeiro e do falso,
é o canal próprio da história da espécie. Para maiores considerações sobre a política e o dispositivo
temporal progressivo, vide Koselleck (1996) e Rossi (1992).
92
Tem Laís, de modo que Laís não te tenha.
181
oposições ou analogias possa ser considerada isoladamente e em sua combinação.
Diderot então nos oferece logo sete conjecturas que nos permitem aproximação com a
experiência científica iluminista e o isolamento de analogias que cumpram critérios de
empiricidade comuns a taxinomia. A primeira conjectura deve nos bastar. Versa sobre a
diferenciação entre os sexos.
O século XVIII é o século no qual se inventa a divisão entre os sexos. Esta que é
uma novidade retroativa para muitos é resultado de uma longa desfiguração do princípio
da plenitude que difundia hierarquia para todos o recantos do cosmos da cristandade
medieval, dotando os seres de graus de perfeição de acordo com o caminho que leva a
Deus. As formas de mediação possíveis que Pico della Mirandola descreve como
disponíveis ao homem se localiza neste sistema. Diante esta pontuação, na qual o
homem vacila entre formas e vem a ser considerado um animal, o que dizer da mulher, e
onde ela se encontra neste sistema de elos encadeados? A partir de uma minuciosa
investigação anatômica e de uma cuidadosa avaliação das possibilidades explicativas,
fez-se o diagnóstico: as mulheres são homens com menor quantum de calor, o que faz
de sua genitália uma formação orgânica não projetada para fora, não inflada pelos
calores que diferenciam o pênis de uma vagina. As analogias morfológicas vão além dos
tubos (Laqueur, 2001: Cap 3).
O ponto no qual nos encontramos, no contato mediúnico com o iluminismo
articulado no microcosmo Diderot, é exatamente o que culmina em severas redefinições
do campo entre os sistemas de explicação e a posição dos sentidos diante a imagem do
mundo (weltbild). A diferenciação entre os sexos culmina numa pletora de novos
campos de exploração e que tem na pena do nosso iluminista a definição de um modo
de operação que permite entrar e sair de si, como vimos. São considerações sobre a
placenta na Primeira Conjectura da Interpretação da Natureza e como ela é produzida
que geram questões como: ela é resultado das atividades orgânicas da mulher ou dos
encontros entre esta e o homem. Curto e grosso: quem faz(em) a placenta? De quem é a
agência, quem é o sujeito da ação – qual é a causa? Diante a hipótese de combinação
supõe-se que ela tem leis tão rigorosas quanto os da concepção, impondo uma
organização constante, como uma boa cidadã da polis iluminista. O que deve ser feito é
ir à mola (placenta) e procurar indícios de combinação e, por ser uma combinação, há
indícios de diferenças entre substâncias presentes diferentemente nos dois sexos. Caso
contrário, a forma ovóide da placenta seria agência puramente feminina e teria na ação
masculina repetida a força aplicada somente para seu desenvolvimento. O relato deve
182
atentar para a existência da placenta, de suas qualidades e seu emprego, tal como escrito
no esquema da física experimental. Não obstante, a divulgação deve ser finalizada de
forma a popularizar a filosofia que, na forma de metafísica experimental, ocupa o cargo
de controle dos sentidos por via da educação, procedida pela disseminação da leitura,
esta cada vez mais silenciosa e bem aprendida por Joelson-evocador-de-Diderot, e
diretor de O que nos resta é o silêncio.
O esquema no qual Diderot prepara a física experimental gera um circuito com
suas preocupações estéticas propriamente ditas. Da diferença entre a busca da verdade e
a da verossimilhança, aquela articulando o que pode ser verdade, e esta somente o que
pode ser no que tange ao campo dos efeitos de sentido, vejo nada mais do que uma
relação de fases-de-ser próprias ao entrar e sair de si não somente próprias ao serhumano, mas aos seus domínios também. Isso implica em considerar o si-mesmo um
domínio, uma propriedade químico-jurídica (Capitan, op.cit.). Na investigação da
verdade tal como exposta na natureza lá fora se estabelece uma medida de analogias
comparativas que apontam não somente o lugar das coisas, uma vez que as põe em
relação em um sistema que não lhes participa, dado o grau de abstração das medidas, o
que não permite a estipulação de causas finais e, por conseqüência, uma finalidade
substantiva para tudo. Não há sistema que possa ser exprimido em código e na natureza
ao mesmo tempo. Assim, há de se conferir liberdade de experimentação e composição
de forma que se possa explorar, com gênio, as analogias mais adequadas para a
popularização da filosofia que, mediante a educação dos sentidos é o recurso flagrante
do processo civilizatório e da universalização da humanidade como uma faculdade a ser
exercida, e não mais qualquer evidência segura de dignidade. Se o centro da unidade
corporal é a memória, é preciso lembrar-se como é ser humano. Inclusive, há de se
evitar as tentações de ser a personagem que se encarna no teatro. O fato de os órgãos
estarem em anarquia potencial, coisa, aliás, bem próxima da realidade política prérevolucinária, assim como da emergência da moderna ciência alienista, só aponta para
uma situação de risco potencial no qual o controle pode ruir a qualquer momento de
indisciplina.
Não é preciso reforçar que a distância histórica exige cuidados e que não é por
acaso que Joelson Gusson seleciona a prece diderotiana que lhe mais apraz. Anula a
fidelidade à autoria do poeta-dramaturgo, dado que participa, como vimos, das
inventivas contra o textocentrismo; recusa explicitamente o modelo de perspectiva na
composição de um quadro de costumes ao consentir e valorizar uma cena que impõe
183
uma pilastra no meio do caminho da assistência, impedido a visão completa da cena por
qualquer ponto de vista; rompe com o acordo tácito com os assistentes ao impedi-los de
assistir todo o elenco em cena em cada momento ao dispor cortinas fechadas que
transformaram a sala em 5 salas menores. Mas a preservação da dimensão do controle
do ator e o fundamento experimental da relação entre ficção e verdade persistem na
política dos efeitos materiais, pois é nestes dois domínios que se revela a consistência
do “eu” pessoal/possessivo, que se faz segundo um suporte técnico, igualmente
agentivo, o que se remete à auctoritas tão relevante para a fisiologia do ator.
3.6. Verdade experimental e ficção
Se durante a Preleção contra a personagem Joelson evoca um “lugar de
verdade”
próprio da busca dos trabalhos da gente e esse tópico fora recebido
silenciosamente, sem maiores repercussões, é de se levar em conta a longa história das
dificuldades entre o teatro e a verdade. Contudo, a remissão a Diderot, seu exemplo de
clareza e a força de apaziguamento que sua citação porta exige que haja maior vagar nas
considerações sobre alguns critérios sobre a verdade experimental, em especial como
nos procedimentos de cascatas de modernidade (Gumbrecht, 1998; Latour, 1986) que
venho tentando apresentar, se atrela ao poder imanente à ficção, poder este a ser
utilizado contra ela mesma. Mesmo que contra a personagem.
Se em algum momento fiz menção à oração sobre a dignidade humana de Pico
della Mirandola, o fiz porque o estatuto humanista de autoria, este que permite
identificar agência humana de posse de si e a verdade, porta consigo desdobramentos
importantes. O caminho que leva do olhar renascentista (Baxandall, 1991; Panofsky,
1993) e os problemas de fundação da liberdade a partir da responsabilidade humana
(Pico della Mirandola, 1993; Duvignaud, 1966; Benjamim, 1984; Cassirer, 2001) tem
na elaboração da verdade experimental um terreno fértil de formação de dois campos de
força, dois ambientes onde a natureza artificial do homem elaborada por Diderot toma
forma e que, por via dos mecanismos de retomada bibiográfica e manutenção dos
móveis estáveis de sistemas de perspectiva presumidos (mapas, quadros, filmes),
seguem vigentes no campo de agências convergentes à situação teatral abordada. De
alguma forma a ladainha diderotiana tem a ver com a novidade de Galileu, pois:
184
“(...) Galileu nos apresenta ao mesmo tempo o problema de um acontecimento e
uma primeira exploração de seus seguimentos, da significação que Galileu, tal como
ele é criado-situado-produzido pelo acontecimento, lhe confere.” (Stengers, 2002:91)
No desenho que confere vitória a Galileu como fundador das ciências modernas
de forma inconteste, Isabelle Stengers investiga como uma lei matemática opera
dispositivos abstratos para a identificação prática de classes (restritas) dos movimentos
acelerados que têm por protótipo o movimento pendular ou a queda dos corpos na
ausência de atrito. A fabricação da lei verdadeira, que não é nem um pouco menos
verdadeira por causa da invenção, reside em certas propriedades do ficcional nascente,
em especial na virada do drama e do romance burgueses.
A demonstração do Sistema galileano nos escritos Diálogos sobre dois sistemas
mestres de mundo e o Discurso a respeito das duas ciências novas assume a estratégia
da dialética platônica. No primeiro dos escritos, ao contrário do que se vê em diálogos
de um Dostoievski no século XIX, uma das vozes porta palavras mais razoáveis mesmo
que diante a eloqüência dos contendores (o que nos remete a uma fórmula expositiva
similar aos diálogos diderotianos, e tantos outros de ambição platônica). No segundo
escrito, o Discurso, uma das personagens, a que atende por Sagredo, se indispõe com
uma definição abstrata do tipo lei do movimento uniformemente acelerado, praticando
um certo grau de ceticismo. Não aceita a relação imediata entre teoremas, proposições e
corolários e um apontamento especificado.
“Em outros termos, Sagredo é um “relativista” antes do tempo: nenhum autor
de proposições abstratas tem meios de arrolar a natureza por testemunha para obter
uma decisão favorável, no que diz respeito à sua verdade. A rivalidade dos pontos de
vista humanos, puramente humanos, é intransponível. Toda definição é arbitrária. Toda
definição, diremos, é uma ficção, que remete a um autor.” (op.cit.:94)
Derivar a legislação absolutamente de uma fonte factual não exime o cientista de
sua função-autor (Chartier, 1998). Estabelecer a conexão factual implica em algum grau
a definição de formas abstratas apropriadas. A fonte desta conexão, já escreve Diderot
spinozista, é imaginativa. Representa representações (Foucault, 2002). Sua evocação
com vistas à promoção da verdade implica em restrições à liberdade autoral de Deus,
185
caso se fale do ponto de vista de Sagredo. Deus, já havia escrito Étienne Tempier, em
1277, é a manifestação do não-contraditório e exceder o domínio regido pelo binômio
fato-lógica é usurpação da autoridade d´Ele. É algo similar à condenação da cobrança de
juros entre irmãos perante Deus (Le Goff, 1989). Hipóteses como o vácuo e tragédias de
camponês herói são inaceitáveis.
O rompimento galileano se dá como insurgência à acusação de autoria humana,
dado que habilita a ficção como forma constituinte da razão, o que implica também na
destilação de um antídoto contrário à mesma, impedindo que o que diz um cientista
galileano possa ser uma ficção. No caso, o paradoxo faz a natureza falar – aliás, como
parece ser a natureza dos paradoxos nos escritos abordados neste capítulo. Mas para tal,
ao invés de responder porque, instituindo a relação entre evento e causa eficiente, que é
Deus, o Não Contraditório, o horizonte se firma na demonstração de procedimentos da
ordem do como, definindo as propriedades de movimento dos corpos em demonstrações
conjuntivas do tipo como se. Contudo, e este é o ponto, a conjunção científica que
afirma a ficção que é, se rebela contra ela de forma a qualificar, pela negação da ficção
em sua afirmação ficcional, o que é de fato científico. A autoria e a voz de personagens
dará vazão ao cenário, ao campo, ao plano de consistência: o plano inclinado, que
multiplicado culmina em diversas formas de engenharia, como a do Plano Inclinado do
Outeiro da Glória, vizinho do endereço no qual vim a fazer pesquisa de campo.
A composição do cenário das forças decompostas permite que seu autor
desapareça dando a vez ao testemunho, à confissão do fato promovido. Nesta montagem
por artifício “é o movimento encenado pelo dispositivo, que fará calar os outros
autores, que desejariam compreendê-lo de outro modo. O dispositivo opera, portanto,
em um duplo registro: “fazer falar” o fenômeno para “calar” os rivais” (op.cit.:104)
de forma a engendrar uma boa associação entre os termos-dispositivos. Assim, o
contínuo temporal entre efeitos permite ponderar sobre a velocidade instantânea de um
objeto em queda como igual e comprável ao passado e ao futuro, futuro esse
comunicado em prognóstico objetivo. Inventariadas as variáveis independentes, o plano
inclinado define um mundo fictício que obriga, no curso da controvérsia, a utilização de
termos do próprio mundo contestado pelo contendor. É um ato de censura e um
aprofundamento dispositivo. Enuncia-se por auto-indicação (Iser, 1990). Mas de resto, o
que interessa é o silêncio.
Enquanto a dinâmica do plano inclinado como ambiente, assim como nos
demais ambientes laboratoriais (os de sacro ofício do homo laborans), tem como
186
objetivo fazer cessar a controvérsia acerca de um teorema, uma proposição ou um
corolário, gerando um resto estável e silencioso (fenomenotécnico; vide Latour &
Woolgar,1997), o ambiente ficcional em sua circulação econômica deve conseguir fazer
a fala ressoar, uma das razões pela qual um ator não deve temer, ao contrário de
Garrick, a ação da crítica. Se os instrumentos e a instrumentação de isolamento e
condicionamento de ambos os ambientes (laboratório e teatro) aceitam sua signagem à
huis clos, seus desdobramentos, os efeitos, são de outra ordem. Se no laboratório
científico há de se comprovar que, diante certo tópico, pode cessar a agência humana,
no teatro moderno em salas93 os recursos silenciosos não fazem outra coisa senão provocar: os textos, os atores, as pessoas – e o faz mesmo que ao custo do silêncio das
personagens e dos dramaturgos, autoridades outras, de outro domínio. O teatro, a ficção
não-científica, deve gerar encantamento. No universo da autoria generalizada o teatro
deve fazer falar a crítica que, não surpreendente, põe a pessoa em segredo ou embaralha
suas formas de expressão em pontos codificados tendentes ao segredo, à linguagem
secreta ao modo das ficções curriculares. Suprime-a em parte. Nesta que é a regra da
civilidade moderna fundada na hipocrisia pública (Chartier, 2004).
“”Se, sem ser falso, não se escreve tudo o que se faz, então, sem ser
inconseqüente, também não se faz tudo o que se escreve”. Nesta frase de Diderot, a
virada histórica se manifesta. A crítica tornou-se tão soberana que continua a imperar
mesmo sem as pessoas que a iniciaram. A despersonalização que o indivíduo sofre pela
crítica emancipada exprime-se no fato de que ele se torna funcionário da crítica. A
manutenção do segredo –condicionada pela política e, princípio, verdadeiro arcanum
das Luzes – é submetida à lógica do Iluminismo que, destruindo privilégios, abole
tabus. Tudo é arrastado pelo turbilhão da esfera pública.” (Koselleck, 1999:103; vide o
nome suprimido na Preleção contra a personagem)
3.7. A interdição do Teatro Laboratório
Definir o ambiente de ficção pondo em analogia os laboratórios e as salas de
teatro apresentam, a montante, uma facilidade e a jusante, uma complicação. No
primeiro caso, a definição do espaço sob controle gera seus próprios termos de
93
Por oposição ao teatro de rua.
187
configuração de ensemble technique que dispõe elementos, indivíduos e encontro
naquilo que Friedrich Schiller definira como uma jurisdição apartada do mundo (no
caso do teatro). Assim, imediatamente nos deparamos com o ciclo disciplinar da
censura, que para operar como controle deve desdobrar possibilidades e constituir
formas de confrontação com os objetos censuráveis. O ato de censura não pode
prescindir do objeto censurado. Interromper uma peça de teatro em tempos de ditadura
exige participação do ensemble, mesmo que para praticar uma disforia profunda como é
a implantação de uma bomba num teatro.
Esta forma de entender o evento teatral, em especial da forma como presenciei
na montagem de O que nos resta é o silêncio tem nas composições sincronizadas e
coordenadas em sintopia, uma convergência de mecanismos de efeito cuja adequação
funcional pode muito bem ser pensada segundo elementos funcionais dispostos, cada
qual em posição singular. Todo o procedimento de fechamento da sala a partir da troca
de cores da parede visando fechar a sala, dos pontos de luz estrategicamente localizados
para prestar relevância à ação sob foco, a necessidade de uma conexão centralizada da
distribuição elétrica em uma mesa com dímeres para que, no movimento de uma só
pessoa, os vários componentes alterassem sua intensidade ao mesmo tempo, assim
como os longos ensaios necessários para determinar a ligação de tudo isso com a
apresentação das personagens, não aponta para outra direção. Fazer especificamente o
pretendido com O que nos resta é o silêncio implica em pôr todos dentro da caixa-preta
(huis clos), fazer do encontro uma forma de apartamento mesmo que isso não signifique
qualquer forma de ilusão representativa. A implicação aqui é simplesmente a da
especificação das formas de raciocínio, da organização da experiência, exigidos no
cessar do império da dedução.
Mas a intimidade entre algumas das práticas teatrais e os modos de verdade
experimentais gera uma dificuldade localizada exatamente no embaraço do objetivo dos
laboratórios, que é o de fazer cessar a controvérsia específica e deslocar dilemas de
abdução e indução para o plano dedutivo básico. Elaborar uma caixa-preta conceitual
(Latour, 2000) significa deixar as pessoas fora, dessubjetivar e fazer frutificar as
relações de objetividade puras. Pôr as pessoas entre quatro paredes, num quarto fechado
inclusive pelas cores numa espécie de sauna cromático-sonora, inverte a proporção,
razão da dificuldade sugerida logo acima.
De alguma forma os métodos implicados na convergência técnica dos encontros
que vim a descrever se situa em várias formas de fluxo próprios à circulação, seja de
188
valores, seja de pessoas, seja de energias, em grande parte localizadas em mapas,
tabelas e circuitos. Como é de se supor, este modo de reflexão, em algum grau devedor
da cibernética, significa que os pontos de convergência dispõem de entradas e saídas
(input e output), caso contrário sua circulação é interrompida. Não é por acaso que um
desafio das ficções, especialmente as utópicas, é o fim do tempo de vigência de suas
formas, seja no que tange à última página, seja na definição do tempo de espetáculo (2,
3, 4, 6 horas), que logo após seu término se encontram à mercê dos outros autores, os
funcionários da crítica de Reinhart Koselleck. O medo de palco é o medo da crítica.
No nexo proposto pela tradição da reflexão sobre a noção de pessoa com as
formas de presentificação do “eu” como forma conceitual de tal ou qual ilha (Mauss,
2003:371) que, no limite, permite formular o campo de enunciados do sujeito, ou seja, o
que é subjetivo, é relevante entender porque Jerzy Grotowski, um dos ancestrais
evocados por Joelson Gusson, se permite fazer ressalvas quando qualquer analogia entre
teatro, cuja essência é a técnica cênica e pessoal do ator, e ciência experimental é
proposta. Quando entrevistado por Eugenio Barba em 1964, Grotowski é questionado
sobre a apropriação entre teatro e laboratório, que conduz por analogia a alguma forma
de pesquisa científica. Eis sua resposta:
“A palavra pesquisa não deveria lembrar sempre pesquisa científica. Nada pode
estar mais longe do que fazemos do que a ciência sensu stricto,; e não só pela nossa
carência de qualificações, como também porque não nos interessamos por esse tipo de
trabalho.
A palavra pesquisa significa que abordamos nossa profissão mais ou menos
como o entalhador medieval, que procurava recriar no seu pedaço de madeira uma
forma já existente. Não trabalhamos como o artista e o cientista, mas antes como o
sapateiro, que procura o lugar exato no sapato para bater o prego.
O outro sentido da palavra pesquisa pode parecer um pouco irracional, uma vez
que envolve a idéia de penetração na natureza humana.” (Grotowski, 1990:24)
Os elementos mínimos exigidos para a pesquisa na natureza humana é a
presença do ator e a de uma platéia, isto é, o que se apresenta e o que interpreta
respectivamente.
189
“Não foi por mera coincidência que nosso Teatro-Laboratório se desenvolveu a
partir de um teatro rico em recursos – nos quais as artes plásticas, a iluminação e a
música eram constantemente usadas – para o teatro ascético no qual os atores e os
espectadores são tudo o que existe. Todos os outros elementos visuais são construídos
através do corpo do ator, e os efeitos musicais e acústicos através de sua voz. Isto não
significa que não empregamos a literatura, mas sim que não a consideramos a parte
criativa do teatro, mesmo que os grandes trabalhos literários possam, sem nenhuma
dúvida, ter efeito estimulante na sua gênese. Já que o nosso teatro consiste somente de
atores e espectadores, fazemos exigências especiais de ambas as partes. Embora não
possamos educar os espectadores – pelo menos, não sistematicamente - , podemos
educar o ator.” (id.ibid:28)
Esta forma elementar do teatro que determina os modos de pessoas em regimes
de co-presença que se desdobram em mil vias e modos, participando tão intensamente
nas exigências que Joelson formula na Preleção, em especial no que busca expor da
relação material entre espaço, proscênio e atitude de ator, quanto em desenhos
geométricos como os propostos por Teixeira Coelho (1980) sugerindo diagramas
triádicos mínimos da teatralidade que operam formas de diferenciação de
intencionalidade entre atores e público assistente, trazem consigo um modo próprio de
modernidade em cascata que, nos escritos de Luc Boltanski (1999), seu problema moral
é observado, a saber, o do encontro que leva o espectador a sofrer o sofrimento alheio e,
mais adiante, reagir por comentários94.
O estímulo ao qual Grotowski se refere não diz respeito a um curto-circuito entre
espectador e ator, mas a um sistema de desdobramentos que levam um espectador a
estar diante outro espectador logo mais. Lembrando que a tomada de posição sobre
algo, mesmo que somente na dimensão da fala, é assumir autoria diante um evento,
como o é um espetáculo teatral do qual este juízo se refere. A coalizão entre autorias
proporcionada em convergências de juízo aponta para alianças que, para além da
relação entre o crítico e os atores em cena, recaem em alianças e controvérsias no
ambiente do público, entre os assistentes. Quando Boltanski chama a atenção deste
94
Vale lembrar que, se a piedade dispõe de uma convenção de equivalência entre observante e observado,
sua participação no tipo de articulação que diferencia a pessoa moralmente em estâncias de juízo, seu
papel é oposto ao da justiça, dado que equalizam e desequalizam desigualmente um mesmo princípio de
reflexividade. A piedade, segundo uma apropriação de forças de organização social, oferece um nível
indiferente às diferenças que promovem a justiça. A piedade não é injusta. É a-justa.
190
terceiro incluído na relação espetáculo-público (o terceiro incluído é o público ao lado),
realiza uma operação semelhante à inclusão do irmão da mãe na elaboração dos
sistemas de aliança que, neste grau, confere às afinidades poder de definição em
sistemas de parentesco. Na situação da piedade manifesta diante o espetáculo incorpora
um quarto grau de observação; a do observador que observa um outro observador e sua
observação do sofrimento observado e mimetizado pelo ator. A relevância da formação
do público, tanto quanto a formação técnica dos atores, fica clara quando vista deste
modo, dado que o movimento sob foco é o das possibilidades de generalização e
dispersão de modos específicos de agência teatral.
Diante o que o próprio Grotowski define ser o treinamento do ator, não há
dúvida quanto a relação existente entre auto-controle e disciplina e seus desdobramento
numa assimetria entre os papéis dos atores em relação o público (dicotomia públicoprivado) cujo modo de produção resulta em objetivação do subjetivo95, em muito
diferente do procedimento autoral das ciências experimentais tal como apresentado por
Stengers (2002). Há de se imaginar a importância da disseminação de cursos de teatro
para a implementação de um projeto como o de Grotowski, que forma tanto os
assistentes, quanto os atores (eu mesmo cumpri ambos os papéis). Na verdade, ele
mesmo o descreve sugerindo a disseminação de uma educação secundária para o ator
segundo a criação de uma guilda após fazer menção ao desenho institucional das demais
artes que, visando maior plasticidade de suas técnicas, recorrem à educação integral
desde tenra idade. Assim, se educado para o teatro, ao invés de piano ou dança:
“(...) o aluno deveria receber uma educação humanística adequada, apoiada
não num acúmulo de amplos conhecimentos da literatura, de história do teatro e assim
por diante, mas num despertar da sua sensibilidade, apresentando-o aos fenômenos
mais estimulantes da cultura mundial.” (Grotowski, op.cit.:44)
O horizonte internacionalista deste modo de educação certamente pode inspirar
algumas considerações acerca de noções relativas a uma civilização Ocidental. Há
muito que ponderar sobre a validade de juízos deste escopo e os poucos que fiz espero
serem suficientes para a relevância dos problemas apontados. Mas no que espero ter
sido suficientemente claro é que o que desponta aqui é uma séria preocupação sobre a
95
O “eu” aplicável a uma generalidade infinita de enunciadores.
191
extensão e a função pública do ator como funcionário do teatro multiplicado, cuja
especificidade da convergência a qual pude pesquisar filia-se avessa à fama, que é uma
das formas de desfazer a assimetria que é fonte dos poderes do teatro-laboratório, o
teatro de pesquisa que permite a oclusão do ponto de fuga privilegiado na vista do
assistente. Joelson me escreveu, certa vez, o seguinte: “Uma dificuldade muito grande
pra mim é encontrar pessoas que entendam que o trabalho no teatro não tem glamour,
tem ralação e um pouquinho de glamour, mas só um pouquinho que fica quase sempre
na imaginação de quem está vendo. A maioria dos atores é muito preguiçosa e mente
muito pra si mesma. Dostoievski já dizia: “Quem mente pra si mesmo se ofende com
facilidade”, daí a gente tem aqueles atores todos melindrados que não sabem ouvir
uma crítica, ficam logo pessoalmente ofendidos e o diretor é que passa de grosso. Eu
conheço os dois lados deste lugar e posso dizer que os atores têm muito pouca
paciência e querem ser reconhecidos o tempo todo, eles querem os créditos o tempo
todo. E por outro lado o diretor está sempre sobrecarregado de coisas pra decidir e
imaginar e ainda por cima tem que fazer um esforço enorme para não ferir
suscetibilidades. É uma faca de dois gumes.” Não à toa, visando obstruir um ciclo
vicioso que leva à exposição padronizada uma aliança maldita com o público, Joelson se
permite, como diretor, encenar com uma pilastra entre o atore e o público. Mas a
pontinha de desejo do glamour, do público incondicional, do controle que leva à
constância moral não desaparece.
“No entanto, quem não alimenta um desejo secreto de atingir um sucesso
estrondoso?” (id.ibid.:39)
Quanta apreensão no dia de estréia! Quanto esforço em divulgar! Quanta
expectativa em encher o salão da Casa da Glória. Se Grotowski escreve a respeito da
aliança entre uma vida santa e outra cortesã, sendo a primeira devotada à abertura para
os procedimentos e formas que dispõe o ator completamente à cena, ao local específico,
aos desejos manifestos e aos sentidos disponíveis, a outra se deve a um fechamento
formal que compactua com os clichês e, diante da autoridade do espectador, anula a
responsabilidade e a liberdade autoral do ator, tão duramente conquistada.
“Não se trata do problema de retratar-se em certas circunstâncias dadas, ou de
“viver” um papel; nem isto impõe um tipo de representação comum ao teatro épico
192
baseado num cálculo frio. O fato importante é o uso do papel como um trampolim, um
instrumento pelo qual se estuda o que está oculto por nossa máscara cotidiana – a
parte íntima da nossa personalidade - , a fim de sacrificá-la, de expô-la.” (id.ibid.:32)
Não é à toa, a memória é tão privilegiada nas técnicas e afazeres, na definição
das formas de agência e da centralidade conferida a certos problemas. A batalha contra
o textocentrismo e pela difusão autoral da arte de ator culmina em um outro horizonte
que, nas preocupações de Diderot, não é outra coisa senão a rebelião contra o poder de
centro. Afinal, basear a atividade teatral na disseminação de memórias, como a memória
muscular, tal como aprendi na demonstração de Jésser de Souza e no doutorado de
Burnier (2001) atualizam uma enorme sucessão de deslocamentos, estes que mal
comecei a aprender.
A pulsão politécnica de Diderot implica na confirmação da cidadania plena aos
ofícios, o que os situa nas principais reinvidicações da burguesia no século XVIII, cuja
força ainda não parece ter cessado. Diderot ainda é evocado em prece. Situando o ator
como um ente sensível, o que Diderot propunha se encaixa na definição de uma
educação do corpo propício ao dever mercantil de repetição de um produto. O que
Grotowski, assim como Joelson e os demais na Preleção buscam é uma educação pelo
corpo, coisa de outra ordem e que se apresenta como horizonte nebuloso quanto aos
seus desdobramentos. Educação essa forjada no treinamento do ator e na figuração do
ator santo que, uma vez secularizado, desafia o público. Não se representa mais uma
personagem. Dá-se uma forma corporal, uma ação-física, deixando às personagens uma
vida ainda mais efêmera, entre os corpos e os objetos, na vida fugaz da atenção imediata
do público reunido e encontrado. Toda intencionalidade é uma atitude interpretativa do
espectador. É ele quem está nas mãos de quem se apresenta.
Mas qual é o sentido de ser educado pelo corpo? Como pensar o privilégio da
atenção em relação à concentração, a ação em relação à intenção, a figura corporal em
detrimento da personagem, que indicam um envolvimento que leva à negação da
possessão por outrem, reforçando a autonomia da agência do “eu” possessor-criador. O
que se buscou como horizonte de criação é mais um como eu faço do que como eu faço
um eu. Afinal, no intuito de acabar com a instância da personagem, como tanto reforçou
Joelson, o que entra em questão é “quem faz o quê?”. É-se o ator que, num ato de
entrega, ao sair de si em direção a uma outra autoria, caminha rumo a personagem ou
se, ainda em si o ator se apresenta para um púbico, este sim em busca da personagem,
193
mesmo que na busca de censurá-la, fruto do encontro orquestrado peça por peça da
montagem?
Perguntar sobre quem é que faz o quê na produção teatral, em suas fontes mais
banais e dispersas até as mais específicas possível, não visa por fim delimitar qualquer
essência fenomenológica do teatro. Tanto porque, muito pouco foi feito nesse sentido. O
sentido de todo este investimento em perguntar sobre a dignidade da ação criativa,
assim como o sujeito autor (agente), visa o espírito que anima a produção, esforço este
que não é conclusivo, mas é oportuno, ao apontar uma cisão, uma identidade de conflito
própria das formas de saber-fazer e poder-fazer específicos.
3.8.Por fim.
A complexa formulação que enreda os conceitos de pessoa e totemismo, tal
como Lévi-Strauss sugere ser a esfera da civilização Ocidental possui um problema
de ordem pronominal. O “eu pessoal” não se esgota em locuções que se referem ao
falante, dado que é um dispositivo de fala distribuído para outros “eus” falantes. Fala-
se “eu” impessoalmente. Recorrer ao individualismo como fonte centrípeta de
organização, sugerindo que ou o centro está fora, na morfologia incorporada em
ideologia, ou como imediata elaboração do individualismo de seus metodólogos,
perde a dimensão de que o “eu” é igualmente uma forma do outro, não só de um tu
ou de um nós, eles, mas de algo que se é, recorrente no horizonte do sabe-se lá quem,
coisa muito bem definida na noção de objetividade aperspectiva de Boltanski (1999),
remissível à quarta pessoa problematizada por Schérer (2000), esta que se é
indefinidamente até que seja especificada. Neste sentido, a mesma profundidade com
a qual o desenho do subjetivo culmina em incomensurabilidade, não cessam os
horizontes
de
mediação
incomensurabilidade
entre
generalizada
pessoas,
que,
operam
até
uma
mesmo
como
objetividade
fonte
de
indiferente
estabilizando os media de circulação, como o dinheiro, o metro e a escrita (Latour,
1986) de valor de relação indefinida, mas situável. As palavras de Simmel a respeito
são sintomáticas o suficiente para que possamos pensar em suas conseqüências, a
saber, que ao falar sobre “eu” abro vias para a alteridade se firmar como resposta de
haver a primeira pessoa como experiência legítima, que por sua vez serve de
194
fundação para o que “eu” faço e sou – não sou como ele, mas sou eu, tal como ele,
ele,
este eu que se é.
é
Reconhecendo no idealismo moderno a dedução do mundo a partir do eu
(1987:100), Simmel se pergunta se a alma não se origina do mundo, o mesmo
deduzido de si. Esta imagem de mundo implicada na alma, no espírito, e este lastrado
numa mesma imagem de mundo que possui suas implicações em formas que levam
ao sujeito a saber, traz consigo uma certa imagem de recomeço do esforço de saber,
decerto interminável:
“Às vistas do pensamento histórico, a alma é, com todos seus conteúdos e suas
formas, um produto do mundo – mas deste mundo que é ao mesmo tempo, porque
representado, um produto da alma. Ora, se se faz destas duas possibilidades genéticas
abstrações rígidas, cria-se uma angustiante contradição. Não vem ao caso se cada um
passa por um princípio heurístico que se encontra com o outro em um registro de
interação e de substituição recíprocos. (...) Naturalmente, o conhecimento não
obedece jamais a este esquema puro, e as duas orientações se misturam de forma
fragmentária, descontinuada e aleatória; sua contradição teórica é resolvida por sua
transformação em princípios heurísticos, a oposição se dissolvendo em interação, e a
negação mútua nesse processo infinito no qual se opera uma tal interação.”
195
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204
O dia das visagens
Amanhã é o dia das visagens. Elas hão
de se erguer como pó
e irromperão em gargalhadas.
Amanhã é o dia das visagens, que
quedaram pelo batatal. Eu não
posso negar que,
neste morrer dos brotos, sou culpado.
Eu sou culpado!
Amanhã é o dia das visagens, que carregam
na fronte minha agonia,
que possuem minha jornada.
Amanhã é o dia das visagens, que como carne
dançam sobre o muro deste cemitério
me apontando o inferno.
Por que preciso ver o inferno? Não há um outro caminho
para Deus?
Uma voz: Não há outro caminho! E este caminho
conduz para além do dia das visagens,
ele conduz pelo inferno.
Thomas Bernhard
(trad. Gabriel Leitão, com pitacos de Rommel Luz e
Bernardo Curvelano Freire)
205
Anexo 01. Alianças autorais pregressas levantadas durante O que nos resta é o silêncio
Denis
Diderot
José
Geraldo
Gerald
Thomas
Candice
Abreu
UNIRIO
FOMENTA
PRODUÇÕES
Carmen
Zanatta
Lucas
Gouvêa
C.A.L.
Joelson
Gusson
Leonardo
Corajo
Luciano
Moreira
Ângela
Delphim
Celina
Sodré
ANGEL
VIANNA
FUNAR
TE
Jerzy
Grotowski
206
Anexo 02. Pôr o teatro no papel, o mapa de cena: disposição espacial do cenário e
público com cortinas que dividem a cena, abertas.
207
Anexo 03. Disposição espacial dos pontos de luz dentro do cenário.
208
Anexo 04. Mapa da obstrução: com as cortinas fechadas. Não há a pilastra no meio do
caminho. Não no mapa.
209
Luz disposta espacialmente no cenário(01): como uma câmera
reage à luz e à entrada do público num dia de espetáculo.
Nesta outra forma de pôr o teatro no papel é possível
dimensionar efeitos vários de luz e movimento nos primeiros
segundos dentro da boca de cena que é um tanto quanto uma
garganta. Fotografada do ponto de vista do público.
Foto: Paulo Camacho
210
Luz disposta espacialmente no cenário (02): amanhecer de
Santa Tereza projetado sobre parede cor de goiaba, que é
bonito e fecha o ambiente – Leda se maquia.
Foto: Paulo Camacho
211
Luz disposta espacialmente no espaço (03): Fernando à
frente, na cadeira de rodas que circula pelo espetáculo e, ao
fundo, Beatriz Bruchner ao lado das janelas abertas, ainda
antes do convite ao público feito por Vicente: “Vocês não vão
entrar?”. Uma caixa-preta (huis clos) onde todos estão
dentro: as cadeiras de forro vermelho são destinadas ao
púbico.
Foto: Paulo Camacho
212
Pilastra ao meio do caminho: tábua corrida e azulejo
hidráulico e parede creme.
Foto: Bernardo Curvelano Freire
O que fora tema de minha primeira impressão quanto a sala, em um dia não
muito afastado do dia no qual fiz a fotografia, dizia respeito exatamente a pilastra
divisora, cujo desafio culmina em cenas nas quais, para que todos vejam o que é feito,
os atores não devem se ver. As relações entre visível e invisível assumem uma
constância que o jogo das cortinas da montagem na Casa de Cultura Laura Alvim não
adquirira. Passara a ser constante.
Ao fundo, o baú que concentra a guarda de boa parte dos objetos de trabalho,
desde roupas e figurino até embalagens plásticas com bolinhas de gude e uma mesa de
som de fabricação já considerada antiga.
As marcas no chão indicam: há outros usuários desta sala, dado que as fitas
crepe grudadas no taco pertencem a um grupo que ensaiava um espetáculo de dança e
atrás da pilastra afigura-se, irreconhecível, um mural de fotos de um grupo de capoeira
angola. Mas já não há marcas reconhecíveis da passagem do ISER neste casarão.
213
Pilastra ao meio do caminho: tábua corrida e azulejo
hidráulico e parede goiaba, cor de fechar a sala. Os pontos de
luz marcam formas de construção da visão, propiciam o ritmo
de olhares e põem o tempo e o espaço em forma coordenada
de movimentos deste encontro. Mas ainda assim é possível se
esconder por trás da pilastra.
Foto: Paulo Camacho
214
Aquecimento em chão quente com cortinas, dobradas, ao
fundo. Parede cor de creme (muito aberto para o espetáculo).
Candice derruba Leonardo de forma a deitar-se sobre ele num
exercício de sincronização em silêncio.
foto: Bernardo Curvelano Freire
215
Por uma obstrução ainda maior: Leonardo e Lucas brincam
com a luz antes de ensaiar as cenas individuais no nicho
destinado à cena do segundo. Com as cortinas fechadas há de
se ouvir, mas ver é roubar no jogo, o que é chato, mas não
necessariamente disfórico.
Foto: Bernardo Curvelano Freire
216

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