- Gavagai

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JAN.JUN 2015 | VOLUME DOIS | NÚMERO UM
G A V A G A I
ISSN 2358 0666
R E V I S T A
I N T E R D I S C I P L I N A R
D E
H U M A N I D A D E S
GAVAGAI - REVISTA INTERDISCIPLINAR DE HUMANIDADES
Periódico do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA / DIRECCIÓN POSTAL / MAILING ADDRESS
Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim
Gavagai – Revista Interdisciplinar de Humanidades
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Gavagai: Revista Interdisciplinar de Humanidades/Universidade Federal da Fronteira Sul - Campus
Erechim. - vol. 2, n. 1 (jan./jun.2015). - Erechim: [s.n.], 2015.
Semestral
1. Periódico. 2. Interdisciplinar. 3. Ciências Humanas.
4. Humanidades. I. Universidade
Federal da Fronteira Sul.
II. Título.
CDD: 300
Bibliotecária responsável: Tania Rokohl – CRB10/2171
GA V A GA I - RE VI ST A I NT ER DI S CI PLIN A R D E HU MA NID AD E S
Erechim, v.2, n.1, jan./jun.2015
I S S N : 2 3 5 8 -0 6 6 6
3
GAVAGAI
ERECHIM
V.2, N.1, JAN./JUN. 2015
ISSN: 2358-0666
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Atilio Butturi Junior - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
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Jerzy André Brzozowski - Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim (UFFS)
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4
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5
SUMÁRIO / TABLA DE CONTENIDOS / TABLE OF CONTENTS
APRESENTAÇÃO / Presentación / Presentation
007
Atilio Butturi Junior
MODERNIDADE E ANTI-MODERNIDADE NO RIO DA PRATA / Modernidad e antimodernidad en Rio de
009
la Plata / Modernity and anti-modernity in the River Plate
Fábio Feltrin de Souza
NOTAS DE ICONOLOGIA: IMAGEM E TEOLOGIA NAS LETRAS LUSO-BRASILEIRAS / Notas de
021
iconología: imagen y teología en la literatura luso-brasileña / Iconology notes: image and theology in luso-brazilian
letters
Felipe Lima da Silva
PRODUÇÃO DE IDENTIDADE: O CASO DO INFORMATIVO SEMANAL DA UFFS, CAMPUS
034
ERECHIM / Producción de identidad: el caso del boletín semanal de la UFFS, campus Erechim / Production of
identity: the case of the weekly bulletin of UFFS, campus Erechim
Marcio Santin
VOZES DA DESRAZÃO – A SUBJETIVAÇÃO NO DISCURSO BIPOLAR / Voces sinrazón – la subjetividad
en el discurso bipolar / Voices of unreason: subjectivation in bipolar discourse
Camila de Almeida Lara
050
6
O CINEMA E AS PRISÕES DA REALIDADE: REFLEXÕES SOBRE A MEMÓRIA A PARTIR DOS FILMES O SHOW
062
DE TRUMAN, MATRIX E AMNÉSIA / El cine y las cárceles de la realidad: reflexiones sobre la memoria y la verdad
de las películas El Show de Truman, La Matrix e Memento / The cinema and prisons of reality: reflections on
memory and truth from the movies The Truman Show, The Matrix and Memento
Fábio Lúcio Zampieri e Gerson Wasen Fraga
ESCOLA PARA MENINOS: O DISCURSO ANDROCÊNTRICO NO LIVRO DIDÁTICO / Escuela para
075
niños: el discurso androcéntrico en libros de texto / School for boys: the androcentric discourse in textbooks
Susie Silvana Barboza Moreira e Atilio Butturi Junior
DANTE ALIGHIERI E O DESLUMBRAMENTO DO OLTRETOMBA / Dante Alighieri y el deslumbramiento
de oltretomba / Dante Alighieri and the dazzle of oltretomba
Silvana de Gaspari
091
8
APRESENTAÇÃO
PRESENTACIÓN / PRESENTATION
v.2,. n.1. jan./jun. 2015
Este número de Gavagai – Revista Interdisciplinar de
Humanidades, que inaugura o segundo ano de
existência do periódico do Mestrado Interdisciplinar
em Ciências Humanas da Universidade Federal da
Fronteira Sul, traz sete artigos, de pesquisadores de
vários campos do saber e de diversas universidades.
O número se inicia com o texto de Fábio Feltrin de
Souza, intitulado Modernidade e anti-modernidade no
Rio da Prata. O autor parte de vasta pesquisa teórica e
procura refletir acerca da heterogeneidade dos
discursos da modernidade ocidental e que caracteriza
a produção dos intelectuais da Argentina do século
XIX que ficaram conhecidos como a “geração de 1837”.
O segundo artigo, Notas de iconologia, é de autoria de
Felipe Lima da Silva. No escrito, o pesquisador volta-se
para a sermonistica luso-brasileira do século XVII,
avaliando a retóritca barroca cuja estratégia se marca
pelo apelo às sensações visuais na produção e na
disseminação da doutrina moral e religiosa.
Produção de identidade: o caso do Informativo Semanal
da UFFS, campus Erechim, é o terceiro artigo desta
Gavagai, escrito por Márcio Santin. A proposta do
trabalho é analisar, segundo os pressupostos da
Análise do Discurso de Linha Francesa, a produção da
identidade da UFFS, notadamente construída segundo
enunciados sobre o “popular”
O quarto texto, Vozes da desrazão – a subjetivação no
discurso bipolar, escrito por Camila de Almeida Lara,
recorre à arqueogenealogia foucaultiana para analisar
a produção do sujeito bipolar em dois depoimentos
extraídos do site Mental Help, a fim de observar as
relações de poder e de resistência que constituem a
subjetividade dos “bipolares”.
Fábio Lúcio Zampieri e Gerson Wasen Fraga são
autores do quinto artigo deste número, O cinema e as
prisões da realidade: reflexões sobre a memória a partir
dos filmes o Show de Truman, Matrix e Amnésia . O
texto percorre o problema da memória e sua relação
com os conceitos de “real” e de “verdade”,
estabelecendo relações possíveis entre três películas e
a discussão das vicissitudes e das potências da
memória.
O sexto artigo que compõe o volume é de autoria de
Susie Silvana Barboza Moreira e Atilio Butturi Junior.
Intitulado Escola para meninos: o discurso
androcêntrico no livro didático, traça uma análise de
livros pertencentes ao PNLD 2014 de Língua
Portuguesa e deixa entrever relações de gênero e
poder heteronormativamente marcadas nos discursos
que atravessam o material de ensino e aprendizagem
que constitui o corpus de pesquisa.
O último artigo deste número de Gavagai é de autoria
de Silvana de Gaspari e volta-se para a poesia italiana.
Trata-se de Dante Alighieri e o deslumbramento do
oltretomba , texto em que pesquisadora retoma a
Divina Comédia não apenas de uma perspectiva
autotélica, mas como marca político-social do
Trecento, exigindo um papel crítico para o fenômeno
literário em geral.
Depois de apresentar os artigos, cabe fazer o
agradecimento já costumeiro a todos aqueles que
colaboram para o “acontecimento” desta Gavagai:
autores, revisores, colaboradores, leitores, críticos e
entusiastas. Finalmente, também marcar de forma
entusiasmada a possibilidade de trazer à lume mais
uma edição do periódico e colocá-lo efetivamente em
seu segundo ano de circulação.
Atilio Butturi Junior
Editor-chefe
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 007-008, jan./jun. 2015.
10
MODERNIDADE
E ANTI-MODERNIDADE
NO RIO DA PRATA
MODERNIDAD E ANTIMODERNIDAD EN RIO DE LA PLATA
MODERNITY AND ANTI-MODERNITY IN THE RIVER PLATE
Fábio Feltrin de Souza ∗
∗
P ro f es s o r ad j unt o I I I d o c urs o d e L ic enc iat ur a em H is tó r ia e d o P ro g ra ma d e P ó s -G rad uaç ão I nte rd is c i p li na r em C i ênc ias
H uma nas d a U FFS . E -m ail : f ab io .f eltri n8 1 @g ma il.c o m.
Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata
11
RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT
RESUMO: Este artigo tem por objetivo problematizar a noção de modernidade
contida nos textos dos intelectuais argentinos da chamada geração de 1837. A partir
das reflexões do Antoine Compagnon, Raul Antelo e Michael Löwy, é possível
identificar na obra desses intelectuais indícios de saberes anti-modernos.
Diferentemente do que a tradição autonomista apontou, os letrados argentinos
estariam sintonizados com uma determinada esteira de pensamento defendida em
periódicos franceses, citados a todo instante nos textos literários, em cartas e textos
políticos publicados nos periódicos de Santiago do Chile, Montevidéu e Rio de Janeiro.
Dessa forma, seguindo esse percurso de investigação, pode-se afirmar o caráter dual
e heterogêneo da modernidade.
PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Anti-modernidade. Rio da Prata. Geração de
1837.
RESUMEN: Este artículo pretende problematizar la noción de modernidad contenida
en los textos de intelectuales argentinos de la llamada generación de 1837. A partir de
las reflexiones de Antoine Compagnon, Raúl Antelo y Michael Lowy, se puede
identificar en la obra de estos intelectuales evidencia de un conocimiento antimoderno. A diferencia de la tradición autonomista señaló, los argentinos estavam
sintonizado con una cadena de pensamiento defendido en los periódicos franceses,
citada en todo momento en los textos literarios, cartas y textos políticos publicados en
revistas de Santiago de Chile, Montevideo y Río de Janeiro. Así, siguiendo este camino
de investigación, se puede afirmar el carácter dual y heterogénea de la modernidad.
PALABRAS-CLAVE: Modernidad. Antimodernidad. Generación de 1837. Rio de la
Plata.
ABSTRACT: This article aims to problematize the notion of modernity contained in
the texts of Argentine intellectuals of the generation of 1837. From the reflections of
Antoine Compagnon, Raul Antelo and Michael Löwy, it is possible to identify
indications of anti-modern knowledge in the works of these intellectuals. Unlike the
autonomist tradition pointed out, the Argentinian literates were tuned in to a lineage
of thought defended in French periodicals, cited at any moment in literary texts,
letters and political texts published in journals of Santiago de Chile, Montevideo and
Rio de Janeiro. Thus, following this path of research, the dual and heterogeneous
character of modernity can be affirmed.
KEYWORDS: Modernity. Anti-modernity. River Plate. Generation of 1837.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 009-020, jan./jun. 2015.
12
1 INTRODUÇÃO
El romanticismo, pues, es la poesía moderna
que fiel a las leyes esenciales del arte no imita,
ni copia, sino que busca sus tipos y colores, sus
pensamientos y formas en si mismo, en su
religión, en el mundo que lo rodea y produce
con ellos obras bellas, originales. En este
sentido, todos los poetas verdaderamente
românticos son originales y se confunden con
los clásicos antiguos, pues recibieron este
nombre por cuanto se consideraron modelos
de perfección, o tipos originales dignos de ser
imitados. [...]
Nuestra cultura empieza: hemos sentido solo
de rechazo el influjo del clasicismo; quizá
algunos lo profesan, pero sin séquito, porque
no puede exisitir opinión pública racional
sobre materia de gusto en donde la literatura
está en embrión y no es ella uma potencia
social...el romanticismo no es más que el
liberalismo en literatura. (ECHEVERRIA, 1991,
p.53)
O poeta argentino Esteban Echeverría traduz nesse
trecho o modelo de distanciamento da arte antiga,
observado partir do século XVIII na Europa. Os ditos
modernos haviam se voltado contra o classicismo
francês quando introduziram o conceito aristotélico
de perfeição e progresso e passaram a questionar a
imitação da arte antiga a partir da construção de uma
densa relação consigo mesmo. Isso ficaria mais
evidente com a elaboração de Hegel (1995) sobre a
subjetividade, esse princípio dos novos tempos. Essa
subjetividade é a produção de uma autoconsciência
marcada pela busca de liberdade e reflexão, típica do
sujeito-burguês,
atomizado
e
individualizado
(KOSELLECK, 1999). A modernidade se quis como uma
libertação de todas as referências do passado; no caso
da literatura, o romantismo (o espírito burguês por
excelência) se pôs em frontal oposição ao classicismo.
Nessa modernidade, o passado não esclareceria o
futuro, não lhe forneceria substrato referencial. A
História, compreendida como uma universalidade,
como um singular coletivo, realizaria o trabalho de
autoprodução. Poetas como Echeverría ou pensadores
como Considerant, Marx, Kant ou Sarmiento
acreditavam que a diferença do novo mundo em
relação ao antigo residia no fato de que o moderno
abre-se para o futuro, criando dessa forma um
distanciamento entre o espaço de experiência e o
horizonte de expetativas. Esse distanciamento é para
Koselleck (2011) umas das marcas da modernidade,
sobretudo se o encaramos, assim como o historiador
alemão, como uma máquina de produzir o novo e de
maneira acentuadamente acelerada.
A palavra moderno, entretanto, já estava em uso desde
o século V da era cristã. O papa Gelásio I utilizava esse
termo para distinguir os contemporâneos dos antigos
padres da Igreja e não conferia qualquer distinção
qualitativa ou hierárquica. Presente e passado
estariam, portanto, imbricados numa constrangedora
continuidade entre aqueles que haviam seguido os
passos do Cristo e os padres que, àquela época,
disseminavam sua doutrina. Desde então, a palavra
latina modernus significa simplesmente “agora” ou
“tempo de agora” (JAMESON, 2005, p. 27). Ela vai
ganhar um sentido opositivo quando os Godos tomam
Roma e ali instalam seu povo. Dessa forma, o adjetivo
antiquas vai designar a antiga organização política do
Império Romano em comparação ao reino Godo.
Entretanto, ela não se refere à continuidade teológica
do cristianismo observada entre as duas civilizações.
Afirmar a existência de uma “tradição moderna” talvez
seja o primeiro e mais evidente dos paradoxos da
modernidade. O moderno, portanto, funcionaria mais
como um termo político de distinção entre o novo e o
clássico, produzindo sequestros e apagamentos no
ordenamento discursivo desde então, do que uma
terminologia pura, ingênua e otimista.
Que histórias indisciplinadas precisam ser contadas,
portanto? Pretendemos neste artigo problematizar a
noção de modernidade atribuída às práticas e aos
textos dos intelectuais da chamada geração de 1837.
Para isso, pretendemos analisar fluxos e conteúdos
contidos em suas produções, cotejando com textos de
europeus, lidos por Antoine Compagnos e Raul Antelo,
como sintomas de saberes anti-modernos. A
modernidade pode será lida, portanto, como um
tortuoso e labiríntico percurso cuja avaliação seria
realizada por suas margens (BUCK-MOSS, 2000).
Desse modo, o próprio documento, entendido como
arquivo, precisa de outras elaborações, outras
genealogias, outras aproximações, que permitam
infiltrar nas lacunas que a tradição iluminista
provocou com seus sequestros. Essas outras
genealogias dos objetos da modernidade revelam que
todo documento avaliado como uma produção
cultural é ao mesmo tempo um documento de
barbárie, de violência. Esta noção é essencial, pois há aí
expansão nos critérios de seleção, como também a
afirmação radical de um modo de interpretar esses
documentos: o passado é descortinado como ruína,
sobre a qual construímos o presente, como um único e
gigantesco arquivo povoado de fantasmas. Quando se
fala de arquivo, não se pode esquecer que toda
inscrição deve-se associar um modo de leitura e de
interpretação, de outro modo teríamos um arquivo
Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata
13
literalmente morto. O elemento político domina todos
os momentos do trabalho no arquivo, da seleção,
passando pela conservação e pelo acesso, chegando à
leitura dos documentos. Documentos que são
doravante lidos como arquivos, recheados de tempo
que trazem a potência da vida e da morte. Em outras
palavras, desvendar os sintomas e saberes antimodernos ou de crítica às concepções clássicas de
modernidade contidas nos documentos produzidos é
restabelecer seu caráter dual e heterogêneo
(ANTELO, 2007).
2 UMA GERAÇÃO NO EXÍLIO
Expulsos da Confederação Argentina, os letrados da
chamada geração romântica de 1837 construíram
refúgio fora das fronteiras geográficas de seu país.
Buscando alternativas para o ‘progresso’ argentino,
esbarraram numa ferrenha oposição a suas ideias e
posturas. Seguiram o caminho do exílio, da
peregrinação, do incerto desterro em terras
estranhas. Entre cartas, artigos e romances em jornais,
poemas e escritos políticos suas produções trazem as
marcas da dor, o tom nostálgico da distância, a
impossibilidade do regresso e a necessidade de
construir uma nação moderna. A dispersão pelos
países da América do Sul como Chile, Brasil e Uruguai
os fez entrar em contato com outros letrados, como os
italianos e franceses exilados em Montevidéu, ou
ainda, com pintores viajantes como Johann Moritz
Rugendas e Raymond Monvoisin. A constante
peregrinação colaborou para que ideias circulassem e
para que o continente, em sua parte mais meridional,
estivesse, de alguma forma, integrado, ainda que por
vias subterrâneas, seguindo as pegadas dos
peregrinos.
O ponto de partida é Buenos Aires na primeira metade
do século XIX; mais especificamente, junto aos jovens
da elite letrada identificada com o romantismo
(VIÑAS, 1964). Dos países latino-americanos, a
Argentina foi um dos primeiros em que o romantismo
penetrou de maneira mais substantiva (MATIN, 2001).
Isso está intimamente ligado à formação, em 1837, do
Salón Literarío, nome pelo qual ficou conhecido o
agrupamento daqueles “intelectuais”. Os encontros, os
debates e as discussões aconteciam na livraria de
Marcos Sastre (MARTIN, 2001). 1 O Salón tinha o
propósito de ser um fórum de debate, como um centro
socializador de “intelectuais”, que, de algum modo,
1
Uruguaio radicado na cidade de Buenos Aires. Sua livraria era um
espaço de grande circulação de idéias.
2
Criada por iniciativa de Maria Encarnación Ezcurra, esposa de Rosas,
a Mazorca (Sociedade Popular Restauradora) era uma organização
comungavam de um horizonte semelhante de idéias e
pensamentos. Um lugar onde questões relativas ao
campo das artes e da cultura eram discutidas;
percepções políticas e artísticas eram afirmadas,
trocadas, redefinidas.
Os debates no Salão Literário eram inspirados pelos
românticos europeus como Goethe, Lamartine,
Guizot, Rousseau, Walter Scott, Willian Blake,
Madame de Staël, Chateaubriand, Lord Byron, Fourier,
Saint-Simon, Mazzini e outros. As leituras desses
autores eram mescladas com as intervenções dos
próprios argentinos que naquele momento
preocupavam-se com a fundação cultural da nação,
com a concretização da Revolução de Mayo. O grupo
tem a clara inspiração do fervor que alguns países da
América do Sul experimentaram após as
independências. Esses jovens da elite letrada
justificavam sua posição de vanguarda e condutores
da nação em direção ao futuro a partir da
argumentação de Cousin sobre o princípio da
soberania da razão (DONGHI, 2004, p.15). Isso porque o
grupo em torno do Salón acreditava ser o único capaz
de concretizar o plano inicial de Mayo. Contudo, ainda
que num primeiro momento o grupo tenha se
aproximado de Rosas, a “geração” de 1837 não seria a
base intelectual para o governo do caudilho. Além
ordenar o fechamento do Salón, em 1838, Juan Manoel
Rosas controlava toda a imprensa, perseguia seus
opositores e não admitia qualquer manifestação
contra seu governo.
Rosas não era presidente da Argentina, era
governador de Buenos Aires. No entanto, com uma
série de acordos com outros caudilhos governava todo
território com amplo apoio popular. Durante o auge do
governo rosista, em que a repressão e controle foram
usados de maneira mais acentuada, há apenas a
circulação de 32 jornais, dos quais apenas oito eram
argentinos. Número bem inferior aos trinta jornais
argentinos que circulavam na década de 1830 e ínfimo
perto dos noventa da década de 1850. Mediante a
repressão e o medo da Mazorca, 2 a vida em Buenos
Aires tornou-se insustentável. O exílio era o caminho.
A “geração” do Salón Literário buscou um seguro
desterro para suas idéias e proposições. Chile, Bolívia,
França, Inglaterra, Brasil e Uruguai foram os países
escolhidos por estes “intelectuais”. Vou me deter aos
exílios no Brasil, Uruguai e em certa medida na
experiência chilena, tendo, contudo, como base o
extra-oficial, mas patrocinada pelo Estado. Uma espécie de política
secreta. Seus agiam em bandos e tinham total liberdade para torturar
e matar qualquer inimigo e qualquer dissidente do grupo de Rosas. Cf.
DI MEGLIO, Gabriel. Mueran los salvajes unitários: la Mazorca y la
política en tiempos de Rosas. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 2007.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 009-020, jan./jun. 2015.
14
trânsito de conteúdos e os manejos conceituais
necessários para construção de um discurso nacional.
3 ESTEBAN ECHAVERRIA: ANTI-MODERNO?
Dentro disso, o trecho do poeta argentino Esteban
Echeverría, selecionado no início deste artigo, aponta
para uma das principais modalidades românticas de
reencantamento do mundo: um retorno às tradições
religiosas, de tal forma que se poderia considerar a
religião como uma das principais características do
espírito romântico (LÖWY, 1995). Tanto é que a
religião
foi
parte
integrante
do
projeto
contrarevolucionário e anti-moderno observado na
França no século XIX (CAMPAGNON, 2007, p. 140), e,
assim como no Prata, significava um retorno à vontade
divina, contra a vontade bruta e inóspita do povo. No
entanto, isso não significa afirmar que os românticos,
em suas variadas vertentes, tendessem a uma
reaproximação com a Igreja enquanto instituição. Os
letrados argentinos, por exemplo, por mais que
afirmassem, como Hegel (1978), que o cristianismo é o
mais bem acabado dos credos, pois era a religião
absoluta, colocavam-se frontalmente contra os
poderes da Igreja Católica, principalmente no que se
referia à educação. Essa tradição presente na base das
práticas literárias e filosóficas do romantismo se
aproximaria, como disse Weber, de uma mística. O
alemão escreveu em Ética protestante e o espírito do
capitalismo que a razão seria iluminada a partir do
fortalecimento do elo com o divino, pois, assim, a
ordem das coisas estaria garantida. A contemplação
mística e a vocação racional não são excludentes, ao
contrário, são continuidades (WEBER, 2008, p. 215).
Isso fica à mostra quando observamos que as filosofias
do progresso do século XIX são marcadas pela carga
escatológica do judaico-cristianismo, como no caso do
marxismo e do liberalismo. Seu telos tornou-se
intramundando, como se pode ler no texto do
periódico uruguaio escrito por argentinos exilados El
Iniciador, participe desse enredo internacional:
La religión y la Filosofia promueven todos os
elementos del progeso, gritan la completa
emancipacion de la Humanidad. La religión
razona, la filosofia cree. El pensamiento ya no
lucha, ordena. Los pueblos obran. La lucha es
material. Los pueblos adornan sus cienes con
los laureles de sus brillantes victorias. [...] las
3
GUTIERREZ, José Maria (Org.). América Poética. Valpariso: Imprenta
de Mercúrio, 1846, p. 172. Em outro texto, Echeverría lia a noite a gesto
da boa reflexão: “La noche estaba oscura, fria y ventosa: yo me
encerre, como de costumbre, temprano en mi cuarto, y me puse
apoltronado en mi marquesa a cavillar. Las cavilanciones son el origen
fecundo de todos los prodígios que desde Adan y Eva han
escandalizado la tierra, pues grima al cielo, y regocijando al infierno.
Ellas han engendrado todos eses monstros gigantescos que vagando
lágrimas del Cristiano son lágrimas de vida, de
alegría, de liberdade y progreso. La
melancolia es el matrimonio del infortúnio y
liberdad. (El Iniciador, n. 8, Monteviéu,
01/08/1838).
Os românticos exilados em Montevidéu proclamavam
a união entre religião e filosofia, pois assim a luta do
povo, o agente da salvação, conduziria a sociedade ao
desejado telos, à liberdade. No limiar aberto entre esse
dois pólos, que aparentemente estão opostos, o
pensamento moderno é lavado ao confim, à soleira, lá
onde o pensamento opera uma dobra sobre si. O lado
de fora não é um limite fixo do pensamento, tampouco
uma oposição (DELEUZE, 1988, p. 104). Pensar a
modernidade como dobra é identificar no lado de fora
um componente de uma interioridade; ou, ainda,
pensar essa modernidade romântica como uma
exterioridade sem interioridade a produzir lados de
dentro do lado de fora. Afirmar que exista um lado de
dentro do pensamento, o impensado ou o adormecido,
é evocar o que os clássicos já diziam sobre as diversas
ordens do infinito. A partir do século XIX as dimensões
da finitude do pensamento vão dobrar do lado de fora,
constituir uma profundeza, uma espessura recolhida
em si, como Echeverría, a cantar a noite, o outro do dia,
o outro, a luminosidade da razão.
O noche! Oscuridad! Del alma mia
Alimento precioso;
Tu majestad sombria
Place a mi pensamiento barrascoso
De anhelar con la turba fatigado
Los bienes mentirosos
Del mundo deslumbrado
Me acojo en tus asilos misteriosos
[...]
Tempestades, naced, fragosos vientos
Dejad vuestras cavernas
Y que los elementos
Quebrantem sus murallas sepiternas.
[...]
Alli olvido deleites y pesares,
Y todo lo mundano,
Y sin temor de azares
Vuelo altivo, cual jenio sobrehumano
Y mirando se faz el universo,
Exento de conflito,
Com sus jenios converso;
Mi pensamiento vaga en el infinito. 3
por ele mundo dan, ora al traste con los impérios y republicas, ora le
suben a los cuernos de la luna para de allí dejarlos caer a plomo y
desmenucen contra las rocas de su própria nulidad. Y cuando el
meollo lo concibe sataruado de la cierta dosis de fiebre ambiciosa,
fanática, guerera, satírica, maquiavélica, de entonces! Pobre mundo,
pobre humanidad! La tierra toda forma una batalla de gemidos y
lamentos que atruenan aún a la matéria e insensible y asordan al cielo.
Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata
15
Assim como Novalis, o grande representante do
romantismo alemão, o poeta argentino canta a noite e
seus fascínios. Ela é o espaço dos sortilégios, dos
mistérios e das magias; o momento em que o poeta
encontra com suas dores, seus fantasmas, seu eu
amortecido pelas vicissitudes da vida; a noite nubla as
certezas, torna os objetos mais profundos, rugosos;
nela, o poeta vaga pelo infinito, pela busca por algo
fora, no exterior do ser: o romantismo celebrou a noite
e a opôs ao racionalismo ordenado (LÖWY, 1993, p. 53)
e fez da noite uma estética de si, contrapondo-a aos
modos de assujeitamento das instituições nos século
XIX (FOUCAULT, 1997). Vagar entre seus encantos e
surpresas era promover outras escritas no corpo,
escritas que escapassem às docilizações da maquinaria
racional.
Echeverría, em seus versos, celebra o caráter dual da
noite, sendo possível destacar uma tendência de perda
ou caída, na mesma medida em se que observa o
florescimento de um valor demasiado caro à
modernidade: a subjetividade individual. Apenas o eu
pode vagar e refletir sobre sua condição. O
desenvolvimento da riqueza do eu, em toda sua
profundidade e complexidade, dá conta de
compreender a construção dos afetos e o desejo de
liberdade. O desenvolvimento do sujeito individual
está diretamente relacionado com o aparecimento do
valor burguês no capitalismo (LÖWY, 1993, p. 26).
Nessa fase da modernidade, os indivíduos são
suscitados a viver de maneira independente e
preencher funções determinadas na vida social. Esses
indivíduos,
entretanto,
transformam-se
em
individualidades subjetivas que começam a promover
investidas no mundo interior de seus sentimentos mais
particulares. Dessa forma, eles entrariam em
contradição com o sistema baseado na maquinaria
racional e no cálculo. O romantismo representaria
uma espécie de revolta afetiva reprimida, em prol do
sentimento e da imaginação. Esse valor moderno e ao
mesmo tempo anti-moderno, pois é dobra sobre si, foi
também pensado pelo poeta Estevan Echeverría:
En efecto, si el racionalismo, considerándolo
como una potencia virtual y solidária, debía
concluir que el hombre es sensación,
sentimineto y conocimiento invisiblemente
unidos, porque de estos tres modos se
manifesta la trindad de su alma, era preciso
que estudiando al hombre en su estado
natural de vida de relación con sus
semejantes y el universo, la filosofia
preparase outra solución, que unida a la
solución psicologica nos diese una definición
completa del hombre y sus relaciones. Esta
tentativa la hizo la Francia al fin del siglo
XVIII, proclamando por la boca de Turgot y
Condorcet la doctrina de la perfectibilidad,
presentida anteriomente por Pascal, Perrault,
Fontenelle y otros (ECHEVERRIA, 1991, p.
414).
Nesse trecho, Echeverría se aproxima de Schiller. O
alemão chamou de ingênuo o estado anterior à
civilização e de sentimental o estado posterior à perda
da ingenuidade. Para ele, os homens corrompidos não
poderiam pensar ingênua ou sentimentalmente. O
homem sentimental, contudo, seria como um adulto
em relação à criança, pois sofre na vã tentativa de
retornar a ingenuidade (SCHILLER, 1991, p. 49).
Schiller rejeitava o mundo das formas concretas e
lembrava que o romantismo percorreu por zonas
inexploradas do ser, trazendo o problema, já
apresentado, da subjetividade. Da desconfiança em
relação à realidade e um artificial ordenamento das
coisas, Schiller e Echeverrería ergueram sua obra e a
colocaram ali entre o infinito absoluto e o finito
relativo, situando-se entre o visionário e o
contemplativo, o desajustado e o alheio. Estão na fenda
obscura da modernidade.
Dentro da operação de buscar o fora do dentro e o
dentro do fora, o pensamento moderno parece estar
no meio de dois grandes espelhos a produzir um
reflexo que tende ao infinito. Nisso, a modernidade se
abre e perde o controle de sua própria imagem e
quanto mais o reflexo de afasta do primeiro reflexo,
mais deformado o pensamento se encontra. No
entanto, ele é ainda o mesmo. O lado de fora é uma
interioridade de espera. Mas, esse duplo não é uma
projeção do interior, é, como desvio, uma
interiorização do lado de fora, pois não é o
desdobramento do um, é uma reduplicação do outro.
Por isso, é possível dizer que todo anti-moderno é
antes um moderno, ou que modernidade é o outro de si
mesma. O rasgo, doravante, não será mais um acidente
do tecido, mas a regra sobre o qual o tecido se torce, se
reduplica. Não há nesse gesto qualquer busca ou
preocupação com a intencionalidade que se está
investigando, pois esta intencionalidade do ente se
superaria em direção à dobra do ser (DELEUZE, 1988,
p. 177). No duplo do mesmo, cada autor aqui trabalhado
é também um arquivo temporal, uma heterogeneidade
furada e entrelaçada com um exterior que não se
finda.
Levar a modernidade até sua margem e fazê-la tocar
seu duplo no exterior é também levar autores e textos
[...]”. In: ECHEVERRÍA, Esteban. Obras Escogidas. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 1991.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 009-020, jan./jun. 2015.
16
no limiar de sua coerência, pois é no confim, nessa zona
de nublamento que os perigos tornam-se iminentes.
Nossos olhos se acostumaram a desviar dos desvios,
das fendas, das rachaduras, das curvas. Acostumaramse a procurar o caminho reto. No entanto, ser moderno
é jogar-se no labirinto e o imperativo do presente é
armar outras genealogias, passar por outros lugares,
jogar a modernidade contra ela mesma e perceber na
extremidade e no centro seu duplo a pulsar a potência
do não. A dança moderna se perde no ruído surdo e se
confunde com sua sombra. O próprio romantismo
como expressão máxima da modernidade nos séculos
XVIII e XIX apresenta-se como um enigma de duplos.
Sua diversidade abundante resiste às tentativas de
redução, mas também e, sobretudo por seu caráter
contraditório, oposto e assimétrico. Ele é
revolucionário e contra-revolucionário, cosmopolita e
nacionalista, monarquista e republicano, racionalista e
irracionalista, comunitário e individualista, místico e
sensual, revoltado e melancólico, combativo e passivo,
democrático e aristocrático. Tais contradições não são
observáveis apenas no espectro conhecido como
romantismo, podem ser percebidas também na obra de
um único autor e, às vezes, no mesmo texto; seja ele
político, poético, literário ou plástico. Os escritos dos
letrados do Prata se revelam perfeitos habitantes do
reino dos duplos, das contradições e dos paradoxos
constituintes da modernidade anti-moderna. Dessa
forma, me valho das ponderações dos críticos Raul
Antelo e Antoine Compagnon no que se referem a
diagnosticar sintomas dessa anti-modernidade ou
contra-modernidade, como o repúdio ao sufrágio
universal, uma aproximação de uma dimensão
religiosa e sagrada e um reencantamento do mundo
pela natureza.
4 A SOMBRA DO SUFRÁGIO
No Rio da Prata, o sufrágio universal e um governo
numericamente representativo pareciam estar fora
de questão, visto que Juan Manoel de Rosas, o grande
inimigo dos letrados de 1837, contava com uma
expressiva popularidade, tanto em Buenos Aires, como
nas outras províncias. Echeverría (1948, p. 104)
escreve que “el sufragio universal dio de si cuanto
pudo dar: el suicidio de pueblo por sí mismo, la
legitimación del despotismo”. Não era possível,
portanto, permitir a todo conjunto da população o
acesso imediato ao governo e recomenda uma
gradativa concessão, iniciar por “un punto de
arranque que nos llevase por una serie de progresos
graduales a la perfección de la instituición
democrática” (ECHAVERRIA, 1948, p.106). Para isso,
tanto a autoridade, quanto a centralidade do exercício
do poder, deve permanecer nas mãos de uma elite
ilustrada, dita como natural por Echeverría, detentora
de uma hierarquia igualmente natural, “la unica que
debe realmente existir, aquela que trae su origen en la
naturaleza misma y consiste en la inteligência, viturd,
la capacidad de mérito probado” (ECHEVERRIA, 1948,
p. 108), pois
La soberania del pueblo solo puede residir en
la razón del pueblo, y que solo es llamada a
ejercer la parte sensata y racional de la
comunidad social. La parte ignorante queda
bajo y salvaguardia de la ley dictada por el
consentimiento uniforme de pueblo racional.
La democracia, pues, no es el despotismo
absoluto de las masas, ni de las mayorías; es el
régimen de la razón (ECHEVERRIA, 1948, p.
201).
Os ignorantes, portanto, não saberiam distinguir entre
o bem e o mal, por isso apenas os ilustrados deveriam
participar da cena política. As massas estariam
privadas do exercício da soberania, das liberdades
políticas e do pleno gozo das liberdades. O excerto
acima pertence ao texto Dogma Socialista, de Esteban
Echeverría. Publicado no último número do periódico
El Iniciador, em 1838, o texto antecipava em quase dez
anos o horror que Baudelaire tinha das massas, do
sufrágio e da democracia (COMPAGNON, 2007).
Antes das agitações de 1848, em 1846, o poeta e critico
francês, sempre lido como uma das alegorias da
modernidade, já tratava a liberdade e o direito das
massas com ironia e sarcasmo. É, no entanto, em Mon
coer mis à nu, que vai disparar contra toda forma de
atuação das massas nas ruas da convulsionada Pátria:
Mon ivresse en 1848. De quelle nature était
cette ivresse? Goût de la vengeance. Plaisir
naturel de la démolition. Ivresse littéraire;
souvenir des lectures. Le 15 mai. Toujours le
goût de la destruction. Goût légitime, si tout
ce qui est naturel est légitime. Les horreurs de
Juin. Folie du peuple et folie de la bourgeoisie.
Amour naturel du crime. Ma fureur au coup
d'État. Combien j'ai essuyé de coups de fusil!
Encore un Bonaparte! Quelle honte! Et
cependant tout s'est pacifié. Le Président n'at-il pas un droit à invoquer? Ce qu'est
l'Empereur Napoléon III. Ce qu'il vaut.
Trouver l'explication de sa nature, et sa
providentialité (BAUDELAIRE, 1876, p. 678).
Se o liberalismo entendido em sua pureza impossível
representava a arquitetura de uma nova ordem,
Baudelaire sentia aí uma desmesurada inclinação à
Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata
17
destruição; um prazer irredutível pela destruição. O
poeta desconfiava das capacidades humanas, da
democracia, da massa, inclusive da soberania popular
que logo levaria a Napoleão III e que já havia levado
Rosas. Ambos chegam ao poder com o consentimento
do povo, por sua vontade voluntária. Os horrores
sentidos tanto pelo poeta francês, como por seu colega
argentino, foram, aos seus olhos, possíveis de serem
efetivados
com
o
consentimos
do
povo.
Chateaubriand partilhava desse mesmo pensamento
quando se reportou a Napoleão: “os franceses querem
de forma instintiva o poder; não amam em absoluto a
liberdade, só a igualdade é seu ídolo”. Agora bem, a
igualdade e o despotismo mantêm laços secretos. Por
esses dois aspectos, “Napoleão teria sua origem no
coração dos franceses” (CHATEAUBRIAND, 1957).
Nessa esteira argumentativa, é possível constatar que
as ditaduras plebicitárias de Napoleão III e Rosas
representariam, por várias gerações, o pecado original
do sufrágio universal tanto na França, como na
Argentina. Baudelaire dizia que não há governo mais
razoável e seguro que o aristocrático e que a
monarquia ou a república, baseadas na democracia,
são débeis. Essa doutrina teocrática e providencialista
nasce do ódio contrarrevolucionário à soberania
popular e ao sufrágio universal. Os anti-modernos
compartilhavam desse ódio pela igualdade política.
Tanto para a geração que fez a Revolução de Maio em
1810, na Argentina, como para os letrados de 1837, a
democracia deveria ser o governo para o povo, mas
não o governo do povo. Deveria haver uma gestão
calculada daqueles que poderiam participar do jogo da
cidadania, daqueles que poderiam efetivamente
comungar da aurora dos novos tempos, desse tempo
moderno trazido pelos ventos da razão, pela
tempestade do progresso. Essa gestão emanaria do
Estado e de sua estrutura regida pelo império da lei.
Essa lei e essa ordem deveriam manter-se pela
violência justificada de seus comandantes. Dessa
forma, se aplicaria a regra pela sua exclusão; o que
acaba por incluir toda uma maquinaria administrativa
sobre a vida, um cálculo sobre os desígnios dessa vida.
Assim, abre-se sobre a modernidade uma nova forma
de governamentalidade, uma nova maneira de gestar a
vida, baseada numa matemática a construir corpos
dóceis, perfeitos e disciplinados, capazes de cumprir as
expectativas dos ilustrados dirigentes da pátria. Os
propósitos de Echeverría e Baudelaire reafirmam a
tese de que o estado de exceção é uma norma. Esse
paradigma parece estar na base de toda construção
jurídico-estatal, na medida em que os regimes
democráticos se orientariam, como exercício de sua
prática política, por um paradigma que encontra seu
fundamento em formas totalitárias de governo, tanto
que, à época da Assembleia Constituinte Francesa,
ocorrida entre os anos de 1789 e 1791, o estado de sítio
foi proclamado. Esse estado de sítio militar deveria
cumprir o papel de protetor do estado democrático de
qualquer ameaça externa, ou possíveis desordens
internas; ele significa a suspensão da lei com o objetivo
de defender essa mesma lei. Esse mecanismo regido
por um insolúvel paradoxo era uma alternativa extrajurídica de proteção da ordem jurídica, uma suspensão
da democracia, para mantê-la em sua essência
(AGAMBEN, 2007).
Longe da democracia radical idealizada por Hidalgo e
Artigas, seu enunciado aprece se assemelhar com o
paternalismo autocrático de Rosas. Além disso, parece
trazer uma fagulha, um sintoma do humanismo, que
desembocou nos regimes militares na América Latina
ou ainda no nazismo, um fenômeno biopolítico por
excelência. Nesses regimes, ditos de exceção, a prática
melhoramento da raça e do “deixar morrer, fazer
viver”, denuncia as táticas absolutamente sombrias de
gestão da vida que poderia viver. Com isso, a
modernidade e a nação moderna criaram,
discursivamente, o outro, o inimigo a ser exterminado.
O “judeu” dos pampas seria o índio, o negro e o gaucho.
Nessa operação política, em que a ausência da lei é uma
regra aplicada àqueles em que a exclusão é uma ação
de Estado, esse “outro” é privado de sua voz, é privado
do testemunho, pois o lugar que esse novo sujeito, o
“outro” desprezível, ocupa na linguagem é o do semhistória. O testemunho joga-se no plano da linguagem,
não como o que resulta da impossibilidade de dizer,
mas como um sistema de relação entre o dizível e o
indizível; entre o que se pode dizer e aquilo que é dito.
É aquilo que fica entre as potencialidades da
linguagem e a sua possibilidade efetiva. Falar é
colocar-se nesta cisão entre o que é possível dizer e
aquilo que é dito.
O testemunho é, assim, uma efetivação possível, uma
possibilidade de dizer que carrega a potência do nãodizível. É neste limite, no limite da sua própria
possibilidade, que os testemunhos dos indígenas,
gauchos e negros se afirmariam como o único relato
possível de uma barbárie inimaginável, que, no
entanto, foi imaginada e calculada na formação das
nações no século XIX. Com esse trato do discurso,
invertendo os nexos produtores de verdades
históricas, há uma clara afronta ao que Hegel havia
instaurado no princípio do século XIX, ao teorizar
sobre os povos sem história. Assim como o filósofo
alemão foi o sustentáculo teórico para as atrocidades
cometidas em África, Sarmiento foi o responsável pela
caça sistemática aos indígenas dos pampas argentinos.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 009-020, jan./jun. 2015.
18
Afirmações mais radicais e explícitas como aquela de
Sarmiento, escondem-se num discurso mais
cadenciado e otimista, como neste contido no jornal El
Iniciador. Neles, liberdade e progresso eram tomados
como universais sem rosto e sua concretização era
uma certeza do desenvolvimento das sociedades. No
entanto, quando abertos ou lidos à contra-pêlo,
desvendam e anunciam o sintoma da catástrofe da
modernidade. A interrogação desses conceitos pode
conduzi-lo ao seu limite:
El grado de progreso de estes ramos distintos
señala el grado de civilizacion de un pueblo,
cuanto mas la inteligência se desarrolla tanto
mas se acerca á la perfeccion, á la verdadeira
liberdad, porque pues no nos ponemos en
camino? Pero esta voz no se oye y por todas
partes reina el silencio, la inércia, y si nostros
sentimos la necesidad de alzarla los primeros
y los décimos francamente, como querriais
negarnos la iniciativa de la época nueva que
presentamos? Y como pode veniros el
pensamiento de que insultamos a nuestros
padres? – la edad no da el privilegio de la
sabiduria, la sabiduria de los padres es la
herancia de los hijos; es una conquista ya
hecha á laquê los hijos deben agregar otras
nuebas, logo es falso que el pasado sea el
maestro de provenir; es un error admitirlo sin
examen, y para convernirnos basta
observarcuantos câmbios de ideas y
combinaciones en los hechos se han sucedido
desde la historia de los tiempos mas remotos
hasta los nuestros (El Iniciador, Monteviéu,
01/09/1838).
Era consenso entre os letrados de 1837 a necessidade
de superar o estado do caudilhismo para construir
uma nação civilizada aos moldes do que idealizavam
ser a Europa. O caudilho, esse líder local, militar e
geralmente carismático, era ao mesmo tempo um
símbolo e uma materialidade para seus opositores.
Sarmiento acreditava que o caudilho era o espelho em
que se refletiam as crenças, as necessidades, as
preocupações e os hábitos de uma nação em uma
determinada época do desenvolvimento histórico. Ele
seria o inimigo premeditado do progresso, “el hombre
natural surgido de las profundidades del selvaje suelo
americano, heredero de la tradición medieval
espanhola” (SARMIENTO, 1977, p. 18). Não seria o
Espírito do Mundo, aquela força a mover os moinhos
da história e do progresso; era, entretanto, o espírito
popular, a representação mais bem acabada da
barbárie. Para Sarmiento e seus colegas, era preciso
interromper esse ciclo impedindo que as massas
participassem do jogo político e retirando o caudilho
do poder, utilizando, se preciso fosse, a força para que
a lei e a razão sejam postas em seu lugar. A instauração
de um regime regido pela racionalidade ocidentalilumunista do liberalismo estava atrelada, portanto, ao
emprego da violência. Nesse ponto, os discursos
demonstram sua irmandade; são gêmeos siameses: os
letrados de 1837 carregavam, ao mesmo tempo, o
espírito irracionalista do romantismo e o desejo de
colocar a Argentina na esteira do racionalismo e do
positivismo.
O repúdio às massas, à democracia, essa vergonha do
espírito humano, compartilhado pelos letrados da
região do Prata e da Europa e representado pela
citação de Sarmiento, parece abrir um arquivo
“ilustocrata”, cuja primeira aparição remonta aos
escritos de Platão sobre o rei-filósofo. Crítico de todas
as formas de governo, em especial da democracia, por
considerá-la a mais degenerada de todas, Platão criou
uma alternativa a essas formas impuras. Nela, o
supremo governante seria um filósofo cuja educação
seria para tirá-lo do reino das sombras, lapidando sua
alma (anima) para o encontro com o supremo bem.
Para Platão, o verdadeiro espírito filosófico é aquele
que não se deixa levar perturbar pela imperfeição e a
variedade das opiniões (doxa); ele buscaria a unidade
na diversidade, atingiria, portanto, a imagem
fundamental, universal e imutável das coisas, ou seja, a
ideia ela-mesma. A educação do filósofo se basearia
numa espécie de acese espiritual: a alma que atingisse
o topo do conhecimento, que tocasse a suprema
justiça, o supremo bem, a suprema igualdade, estaria
pronta para governar. Platão, com isso, buscava
assegurar que nenhum sofista, seus grandes inimigos,
e que nenhum demagogo, o exemplo de degeneração
da democracia, manipulassem as massas, pois elas
ainda estariam presas às vontades, à superficialidade,
às manipulações, pois não seriam detentoras das
verdadeiras formas do conhecimento.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Da natureza, disse Reclus, emanaria o sol a aquecer
todos os exilados que vagavam pelo mundo; fossem
eles os expulsos da pátria, das cidades babilônicas que
se multiplicavam no século XIX, os viajantes ou os
auto-exilados (RECLUES, 1866, p. 381). As florestas, as
ervas, as nuvens, as cachoeiras, as árvores, as rochas,
as tempestades, o mar, o deserto, enfim, todos os
fenômenos da natureza forneciam uma consistente
constelação infinita de símbolos, pronta (assim como
mundo) para ser descoberta, apresentada, criada. Ela
se tornou, para os românticos, a fonte de todas as
belezas, a certeza do toque divino sobre a terra.
Rousseau via no estado de natureza o perfeito
equilíbrio, possibilitando que o homem fosse tal como
Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata
19
é: bom por natureza. O homem natural vive em
harmonia consigo e com o meio, não deseja o que não
pode ter, vive a paz e não a guerra. A sociedade e o
império da razão transformaram o homem num ser
belicoso, mesquinho, degenerado, num ser que
precisaria de regras e leis, em mau, portanto.
Entre uma palavra e outra, entre um sonho e o desejo
de progresso, entre a crítica ao despotismo de Rosas e
a utopia do futuro, saltam, pulsam, brilham sintomas
anti-modernos no periódico El iniciador; são
fragmentos de uma modernidade composta também
pelo seu avesso, pelos seus paradoxos:
REFERÊNCIAS
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a vida nua I. Belo Horizonte: Humanitas, 2007.
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BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres completes. Paris:
Gallimard, 1876.
BUCK-MORSS, S. Hegel and Haiti. Critical Inquiry,
v.26, n.4, summer 2000.
La musa de Lord Byron es una de esas
emanaciones sagradas de la naturaleza; es un
soplo celestial. Enérgica, terrible, suave,
vulgar, apasionada, melancólica, sublime
como Dios, mágica como la sonrisa de una
viagen bella, pura, esperitual, es la naturaleza
que se canta a si misma, es el hombre que se
estasia en los mistérios de la creacion, que
eleva sobre la tierra que pisa......!! es una luz
eterna que va hasta el corazon, y baña las
profundidades de nuestro ser y no conmueve,
y nos eleva, y no encanta (El Iniciador, n. 1,
Montevidéu,15/04/1838).
Do poeta do romantismo, Lord Byron, que tanto
inspirou escritores malditos, inclusive o próprio
Esteban Echeverría, emanaria esse “sopro celestial” do
encantamento do mundo pela natureza. Suas
produções eram, para os editores do periódico, o que
existia de mais puro e ideal; eram sublimes
manifestações divinas. Fragmentos dela cintilavam e
comoviam os corações a pulsar o anseio por uma nova
quimera. O trecho selecionado revela o sintoma de
uma cultura que tornou possível a aparição desses
estilhaços que só podem ser lidos em rede. Saberes
políticos, poéticos e teológicos se imbricam numa
inusitada aproximação: são ao mesmo tempo
interrupção dentro de um saber cristalizado e
interrupção no caos que se arma partir de outras
genealogias da modernidade. Detectar um dos signos
daquele tempo é unir Baudelaire, Echeverría e Walt
Whitman (WHITMAN, 1998, p. 138), é desvendar como
nas duas margens do Rio da Prata, se pode construir
uma terceira margem e ler aquela experiência fora das
explicações
consagradas
pela
historiografia
tradicional.
CHATEAUBRIAND,
François-Rene. Obras
completas. São Paulo: Ed. das Américas, 1957.
COMPAGNON, A. Los Antimodernos. Barcelona:
Acantilado, 2007.
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1988.
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2004.
ECHEVERRÍA, Estevan. Dogma socialista y otras
páginas políticas. Buenos Aires: Ediciones Estrada,
1948.
Obras escogidas. Caracas:
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Biblioteca Ayacucho, 1991.
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Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata
22
NOTAS DE
ICONOLOGIA:
IMAGEM E TEOLOGIA
NAS LETRAS
LUSO-BRASILEIRAS
NOTAS DE ICONOLOGÍA: IMAGEN Y TEOLOGÍA EN LA LITERATURA LUSO-BRASILEÑA
ICONOLOGY NOTES: IMAGE AND THEOLOGY IN LUSO-BRAZILIAN LETTERS
Felipe Lima da Silva ∗
∗
Me str an do e m Li te r atu r a B r asile ir a – P r ogr a ma de P ós- gr adu aç ã o e m Le t r as da U n iv e r sid ade d o E st ado do R i o de J an e ir o – U E R J .
E - mail: fe lipe . lim a2f@ g mail. c om.
Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras
RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT
RESUMO: Este artigo propõe examinar a recorrência do paralelo entre imagem e
discurso nas letras luso-brasileiras do século XVII, as quais foram amplamente
tributárias da eloquência pictórica, especialmente, nos sermões sacros. A partir do
mecanismo da Ekphrasis, o pregador expõe as descrições como se pintasse um quadro
diante do público. Esse emprego das palavras, enquanto ‘cores’ do quadro do discurso,
serviu para que a sociedade do espetáculo apresentasse suas práticas artísticas,
fundamentando-as nas teorias dos mais renomados preceptistas da tradição
clássica. No curso da análise, foram discutidas noções de visualismo, alegoria e
linguagem que se entrelaçam no campo das teorias pictóricas que ancoram o
pensamento seiscentista.
PALAVRAS-CHAVE: Imagem. Retórica. Sermão.
RESUMEN: Este artículo tiene la intención de analizar la repetición del paralelo entre
la imagen y el discurso en la literatura luso-brasileña del siglo XVII, que habían sido
extensamente influenciados por la elocuencia ilustrado, en espacial, por los sermones
sagrados. A partir del mecanismo de Ekphrasis, el predicador expone las descripciones
como si estuviese pintando un cuadro ante el público. Este empleo de las palabras
como “colores” del cuadro del discurso fue importante para que la sociedad del
espectáculo presentase sus prácticas artísticas, basándolo en las teorías de los
preceptistas más famosos de la tradición clásica. En el curso del análisis, es necesario
discutir las nociones de visualismo alegórica, así como la noción de lengua
comprendida por la sociedad del siglo XVII.
PALABRAS CLAVE: Imagen.Retórica. Sermón
ABSTRACT: This article intends to examine the recurrence of the paralel between
image and discourse in Luso-Brazilian letters in the seventeenth century which, as it
is known, were widely tributary to the so-called pictoric eloquence, specially, in
sacred sermons. From the Ekphrasis' mechanism, the preacher exposes the
descriptions as if the painted a picture in front of the audience. The use of the words,
as the 'colors' of the discourse picture, has served in order to the show society
presented theirs artistic practicals, basing them in the theories of the most known
preceptists of the Classical tradition. During the analysis, the concepts of visualism,
allegory and language will be discussed and how they intertwine in the field of
pictoric theories which ground the sixteenth century thought.
KEYWORDS: Image. Rhetoric. Sermon.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015.
24
“O que se dizia mais vivamente não era exprimido por palavras,
mas por sinais; não se dizia, mostrava-se”.
(Jean Jacques Rousseau)
1 ESTADO DA QUESTÃO
As imagens feitas para significar algo
diferente daquilo que os olhos vêem têm
como regra certa e universal a imitação dos
monumentos assentados nos livros e
entalhados nas medalhas ou em mármore pela
indústria de latinos, gregos e dos mais antigos
inventores dessa arte (RIPA, 2005, p. 23).
Tomando como ponto de partida as linhas de força da
Introdução do renomado tratado, do início do século
XVII, de Cesare Ripa, o Iconologia, esta investigação
propõe examinar uma das práticas recorrentes das
manifestações artísticas e culturais do século XVII: o
primado do paralelo entre imagem e retórica na
construção dos discursos de ordem sacra, que
constituíram a base do uso e da invenção de imagens
cujas flutuações podiam ser controladas nas regras de
um discurso legitimado pela autoridade de uma
hermenêutica instucionalizada. Especificamente:
pretende-se propor uma discussão da potência
persuasiva realizada pelo viés das sensações visuais,
que desencadeiam o prazer do auditório e,
prioritariamente, funcionam como meio de
disseminação do ensinamento das doutrinas em uma
sociedade na qual se desenvolve uma cultura massiva
– como é o caso da cultura barroca –, cujo caráter
dirigido apela, frequentemente, para uma eficácia da
imagem visual no âmbito da ars bene dicendi.
Sem pretender, nestas linhas, mapear integralmente o
solo teórico da história do paralelo entre retórica e
pintura, acentuemos que no pensamento platônico é
notável a condenação da retórica e da pintura em
detrimento de emulações de um conhecimento e de
aparências tomados por falsos, cuja produção, como se
pode ver nos eminentes diálogos do Górgias e do Fedro,
constitui um corpo de práticas “feias” que visam ao
agradável sem preocupação com o melhor,
designando-se,
portanto,
por
“vaidades”
ou
“adulações”. Nessa esteira, a retórica será sempre
pensada em paralelo com a pintura e a pintura em
termos de retórica, como se a definição de cada uma
enunciasse a metáfora da outra; isto, pois, na
morfologia de tal pensamento, a condenação dos
exercícios de ambas as práticas se justifica no
fortalecimento da musculatura da lógica que constitui
a razão metafísica do pensamento platônico.
Evidentemente, não se pode afirmar que Platão
condenou todas as práticas que visassem ao
“agradável”, mas apenas aquelas que, segundo sua
visão, se preocupavam unicamente com o prazer em
detrimento de uma finalidade primeva referente ao
bom e ao justo. Acerca desse ponto, Jaqueline
Lichtenstein (1999, p. 48) observa que “toda a tradição
tenaz, iconoclasta, multiforme em sua monotonia, fará
dessa definição o objeto paradigmático de um
puritanismo moral e estético”.
Como se sabe, na via do pensamento platônico, o
caráter da retórica é de instrumento que não está
vinculado ao bom e ao justo, pois é uma ferramenta que
corrompe as virtudes, por estar associada às sensações
mundanas que nos afastam do campo das ideias – em
síntese: é uma arma sofista. Mais, o tema da retórica em
Platão, frequentemente, esbarra-se nas considerações
tecidas em torno do phármakon, atribuindo à retórica
uma conotação de droga que corrompe por meio do
discurso oral, ou principalmente pelo discurso escrito,
já que faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais ou
habituais. Segundo nos indica Jacques Derrida em sua
valiosa proposta de leitura sobre o tema:
Esse phármakon, essa "medicina", esse filtro,
às vezes remédio e veneno, introduz-se já no
corpo do discurso com toda sua ambivalência.
Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa
potência de envolvimento podem ser —
alternada ou simultaneamente — benéficas e
maléficas. O phármakon seria uma
substância, com tudo o que esta palavra possa
conotar, no que diz respeito a sua matéria, de
virtudes ocultas, de profundidade críptica
recusando sua ambivalência à análise,
preparando, desde então, o espaço da
alquimia, caso não devamos seguir mais longe
reconhecendo-a como a própria antisubstância: o que resiste a todo filosofema,
excedendo-o indefinidamente como nãoidentidade, não-essência, não-substância, e
fornecendo-lhe, por isso mesmo, a inesgotável
adversidade de seu fundo e de sua ausência de
fundo (DERRIDA, 2004, p. 265).
No extremo oposto, Aristóteles garantirá à retórica o
espaço de “uma técnica rigorosa do argumentar”
(PLEBE, 1968, p. 38), centralizando-a no campo das
artes neutras, que “como a faculdade de observar, em
cada caso, o que este encerra de próprio para criar a
Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras
25
persuasão” (ARISTÓTELES, I, 1355b1, 2013). Além disso,
o estagirita esvazia a retórica de todos os valores
pejorativos atribuídos a ela no momento em que
centraliza a figura de eminência do éthos do orador,
declarando que “a persuasão é obtida graças ao caráter
pessoal do orador, quando o discurso é proferido de tal
maneira que nos faz pensar que o orador é digno de
crédito” (ARISTÓTELES, I, 1356a1, 2013).
Se efetivamente tudo inicia com Platão em termos da
querela entre retórica e pintura, é só com Aristóteles
que se oficializa aquilo que podemos nos referir pelo
signo de um conflito, ao qual a oposição
Platão/Aristóteles serve, ao mesmo tempo, de ponto de
partida e de paradigma para a questão em foco. Mas, o
recuo a Aristóteles nos obrigar a acentuar que foi este
que, reivindicando um espaço ao lado do terreno da
doxa do platonismo, reposicionou a conduta
moralizante da téchne rhetoriké, transportando-a para
a figura do orador que agora é o responsável pelas
consequências boas ou ruins que podem ser geradas
através da técnica dos discursos.
Antes de passarmos ao terreno das letras ibéricas do
Seiscentos, é relevante destacar que ambos os
filósofos aqui mencionados contribuíram para a
formação do pensamento da ortodoxia católica.
Aristóteles será reciclado para assumir o lugar de um
dos pilares da arte retórica nos discursos sacros, junto
aos eminentes tratadistas Cícero e Quintiliano,
formando uma trindade da eloquência, só para não
destacar a extensiva corrente de preceptistas que
serviram também de lastros para a sapiência erudita
do século XVII, entre alguns deles A Retórica para
Herênio, do Anônimo romano, por volta de 80 a. C, o
tratado de Tácito sobre os oradores, no séc. I d.C e por
muitos textos de autores conhecidos como rhetores
latini minores etc.(cf. HANSEN, 2013). Paralelamente, a
importância de Platão é marcante quando analisamos
o substrato da metafísica ocidental forjada no âmago
do Cristianismo, cuja primazia, durante séculos, foi
coroar com devoção e ilustríssimo labor a matéria do
essencialismo que proporciona lógica ao Mistério que
equilibra a dialética de ordem teológico-política da
Igreja Católica do século XVII. No que tange ao campo
da imagem, Platão nos legou o olhar atento para seu
aspecto sedutor, fazendo-nos imprimir sobre as
práticas ligadas ao ornamento e ao prazer um critério
fundamental para que estas possam existir enquanto
práticas de representação: desde então “o Belo será
obrigado a exibir seus atestados de boa conduta moral
1
Cabe destacar que não será o propósito deste trabalho salientar a
querela promovida nos textos de Quintiliano sobre a oratória
ciceroniana em torno da eloquência que lança mão de um discurso
e metafísica que passa a ser, assim, o único fundamento
e garantia de beleza” (LICHTENSTEIN, 1999, p. 48).
2 RETÓRICA E TEOLOGIA:
O/PELO SIGNO SEISCENTISTA
(RE)MAPEANDO
Fazendo um corte transversal no vastíssimo corpus da
história e das polêmicas que gravitaram na órbita do
paradigma entre retórica e pintura, para abreviar
nosso percurso, importa agora tecer algumas
considerações acerca dos efeitos de tal discussão e
suas implicações nas letras ibéricas luso-brasileiras.
Sabe-se que as práticas de representação dessa época
têm identificadas em suas produções uma demarcada
tributação à primazia das formas visíveis que
colocaram, com o tempo, a retórica em uma posição
difícil e pelo menos paradoxal 1. Nessa época em
questão, o sermão eclesiástico ocupa o lugar de
eminência
enquanto
exemplo
de
gênero
demonstrativo que, conduzido por um pregador,
articula
efeitos
sensoriais
sintomaticamente,
produzindo
uma
“eloquência
silenciosa”
(LICHTENSTEIN, 1999, p. 95), cuja referência à imagem
do orador torna-se uma peça-chave no alcance ao
ponto culminante da oratória. Em síntese, a veemência
dos gestos, o franzir do cenho, lágrimas nos olhos,
expressões do rosto são elementos importantes no
momento
da
pregação,
pois
auxiliam
no
convencimento à medida que facilitam na captação
dos afetos do público.
Não se pode abordar a forma mentis pós-tridentina, que
privilegiou o uso das imagens em seus atos
interlocutórios de ordem religiosa, sem antes chamar
a atenção para a configuração do conceito de
linguagem do cenário ibérico. Conforme se sabe, a
linguagem opera como o agente fundamentalmente
mediador da produção de relações entre os
significados e os significantes. Analisando a operação
da linguagem e as relações de similitude produzidas no
século XVI, Michel Foucault nos auxilia a lançar luzes
para entender a concepção de linguagem do século
XVII, negando sobre esta a natureza de um conjunto de
signos independentes e uniformes que se refletem em
um espelho para anunciar sua verdade autônoma e
singular. Por outro lado, afirma ser a linguagem “uma
massa fragmentada e totalmente enigmática, que se
mistura aqui e ali às figuras do mundo, e com elas se
confunde” (FOUCAULT, 2005, p. 90). Isto posto,
sublinha-se ainda que tal questão, que já se encontrava
imagético. A esse respeito, destacam-se os importantes trabalhos de
Lichtenstein (1994) e Quintiliano (1944). Ver igualmente o interessante
capítulo de Alexandre Leupin, “Le parêtre” (1993, p. 19-39).
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015.
26
encorpada nas discussões mais remotas da Igreja,
apresenta-se concentrada e representada pela
dialética do signo ambivalente: “todo signo é signo de
uma dualidade constitutiva, instaurada pelo sistema da
dupla Escritura” (DELÈGUE, 1990, p. 24).
Ainda na esteira de As Palavras e as Coisas,
acentuemos com M. Foucault, para pensar os modos de
representação do século XVII, que a linguagem age
como a distribuidora das similitudes (as articulações de
semelhanças que ocorrem entre os signos e as coisas,
seja por: convenientia, aemulatio, analogia e simpatia) e
as marcas – abertura que permite perceber as figuras
visíveis que se ajustam no jogo das semelhanças entre
as coisas. Assim, podemos compreender que as formas
de representar o mundo para as sociedades do
Quinhentos e do Seiscentos ainda estão amparadas em
uma lógica de associação na qual o mundo é
reconhecido por meio de uma trama de semelhanças
de formas e de significados.
No âmbito de atuação do pregador e de produção da
liturgia sermonística, esses elementos de associação
serão importantes para criar formulações de alto grau
de dificuldade em relação às mensagens codificadas
presentes nas Escrituras Sagradas. Por meio de uma
linguagem que opera por associações, o pregador
católico elabora uma performance no púlpito que lhe
favorece, duplamente, assegurar sua autoridade de
única pessoa capaz de interpretar o texto Sagrado,
assim como atesta a funcionalidade e importância das
instituições retóricas legitimadas pelas autoridades ao
longo do tempo.
As observações precedentes nos permitem relacionar
o aspecto associativo da linguagem da época com o
pensamento deleuziano da dobra que, no percurso que
aqui traçamos, seriam as aberturas que facultariam as
pregas para o entrelaçamento de novas dobras, isto é,
as dobras seriam o resultado dessas relações entre as
semelhanças,
criando
uma
cadeia
de
correspondências entre seres, coisas, imagens etc.. Faz
bem lembrar, neste ponto, da relevante obra de H.
Wölfflin, Renascimento e Barroco, quando o filósofo
propõe o estilo seiscentista em termos de sua função
operatória primordial: fazer dobras.
Evidentemente que estas não são invenções do
referido período: há toda uma cadeia de pregas
advindas do Oriente, gregas, romanas, góticas,
clássicas (cf. WÖLFFLIN, 1985, p. 43), inclusive dobras
egípcias que já se encontram traçadas, na medida do
possível, na obra ilustrativa do pensamento de Mario
Perniola (2009). Não obstante não represente um
aspecto singular e restrito ao século XVII, a noção de
dobra é uma peça fundamental para as representações
dessa época, uma vez que se pensarmos nos sermões
de Antônio Vieira, por exemplo, entenderemos que o
mecanismo sobre o qual estes funcionavam era o
recurso de desdobramentos de argumentos, imagens,
citações bíblicas que eram encaminhados, ao longo do
percurso da pregação, para encerrar, na peroração do
discurso, uma mensagem revestida pelos dogmas da
Igreja. Dessa maneira, quando estuda o Barroco,
Deleuze chama a atenção, a todo instante, para a
ordenação que há entre esses elementos que se
desdobram, demarcando que essa harmonia está
resvalada pelas semelhanças, como vimos pelas lentes
de Michel Foucault, que formam uma dobra “que não
se separa em partes de partes, mas divide-se até o
infinito em dobras cada vez menores que guardam
sempre uma certa coesão” (DELEUZE, 1988, p. 9).
À luz de tais ideias que enformam a morfologia do
pensamento deleuziano, se é que podemos propor uma
forma para a filosofia de Deleuze, podemos perceber
as relações que se fazem presentes nos planos do
discurso e da representação seiscentista. Segundo
afirma Mario Perniola, a metáfora da dobra significaria
exatamente a plenitude do período, visto que “tal é o
mundo barroco, em que todas as coisas são dobradas
para ocupar menos espaço possível” (2009, p. 28).
Nesse ponto da investigação, importar declarar que
não podemos perder de vista o fato de que a noção de
linguagem para as épocas subordinadas aos preceitos
católicos é, extremamente, alegórica, pois ela já não
possibilitava a ligação direta com a essência da própria
coisa, o que promove é uma “sombra” do sentido que
remeta à coisa “original”, impossível de ser atingida
após a Queda do Paraíso. A respeito da referida
elucidação, destacamos a síntese esclarecedora de
Ana Lúcia de Oliveira (2003, p. 23), em seu estudo
acerca dos signos que se dobram pela agudeza dos
intérpretes eleitos: “o signo não garante mais o sentido
de que é portador: eis seu aspecto “arbitrário”;
substituto da coisa, ele pode apenas lembrá-la à
distância”. Para concluir tal raciocínio, postula-se que
“o saber das similitudes funda-se no levantamento
destas marcas e na sua decifração” (FOUCAULT, 2005,
p. 82). A linguagem, por conseguinte, singulariza-se
pelo seu elementar valor para a natureza, como
ferramenta que se propõe aos homens a decifrar as
coisas do mundo, garantindo-se residir entre as
plantas, as pedras e os animais (FOUCAULT, 2005, p.
90).
A partir de tal enquadramento e sua proeminência
inerente à esfera oratória da Península ibérica, o
sermão, que é produto de um conjunto de
Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras
27
intertextualidades e mediações textuais, servir-se-á da
linguagem com fins de “solidificação de uma ideologia
e de uma opinião massificadas” (MENDES, 1989, p. 212),
privilegiando os preceitos teológicos.
3 ENTRE O VISÍVEL E O DIZÍVEL
Por ora, deixando de lado esse atraente desvio pelo
(re)mapeamento do solo teórico da concepção de
linguagem para o século em foco, retomemos o fio de
nossa questão central. Para tanto, recorramos à análise
de Marc Fumaroli (1996) na qual aponta que desde o
fim da Antiguidade, a Igreja prolongou os debates
acerca da questão da legitimidade e do estatuto das
formas imagéticas pintadas ou esculpidas, dividindose, por sua vez, acerca desta outra forma da mímesis
que é o teatro, e o seu mediador, o ator. Nas palavras do
referido crítico:
[...] se as imagens plásticas, mesmo sendo
imóveis, puderam ser consideradas por Platão
e por toda uma tradição teológica como um
dos mais graves perigos da alma, os “ídolos”
teatrais, dotados de movimento e voz,
animados pelo corpo vivo dos atores, têm um
efeito bem mais imediato e poderoso sobre os
sentidos (FUMAROLI, 1996, p. 449).
Tal efeito sensorial 2 apresenta dialeticamente duas
consequências para a Igreja contrarreformista: por um
lado, o poder persuasivo que interessou ao teatro nos
colégios da Companhia de Jesus; enquanto, por outro, a
forte ligação com os sentidos mundanos que faziam do
homem um ser, cada vez mais, preso à sensibilidade,
quando “o ideal ascético exigia que o cristão se
desprendesse” (HATHERLY, 1997, p. 176) deste mundo
sensível.
A esses dados, acrescente-se ainda que a “eloquência
muda” é constituída pelos mais variados artifícios para
garantir o sucesso do discurso e o triunfo do orador.
No cruzamento das linhas da ação com a paixão o
corpo encarna os princípios da filosofia e da
linguagem, simbolizando por meio de gestos e
fundando por meio de práticas uma “retórica dos
corpos” (LICHTENSTEIN, 1999, p. 85) que possibilita
transformar o dizível em visível. Através do corpo, o
orador insinua as mais variadas emoções, produzindo
sobre o público uma simbiose entre os domínios do que
é dizível e o do que é visível; ação essa considerada uma
2
Este efeito sensorial pode, sob alguns prismas, ser identificado como
algumas das concepções amplamente refutadas por Tertuliano que
foram tematizadas no De spectaculis e no De idolatria. Segundo nos
lembra Alexandre Leupin (1993 p. 41-58), foram amplamente debatidas
por Tertuliano, nos referidos tratados, as manifestações de prazer e
divertimento que se davam pelo teatro, bem como por qualquer
das prerrogativas máximas da produção textual do
século XVII, para convencer sua massa de fiéis por
meio dos sentidos. Segundo nos indica o importante
historiador da cultura da sociedade do espetáculo:
Os olhos são os mais diretos e eficazes meios
de nos podemos valer em matéria de afetos.
Eles estão ligados, e inversamente, ao
sentimento. Para pôr em movimento a
vontade, como já vimos que pretende o
Barroco, nada comparável em eficácia à
possibilidade de entrar pelos olhos
(MARAVALL, 2009, p. 392).
Ao lado da eloquência corpórea, alinham-se as
diversas figuras da representação pictórica que
podem esboçar-se gradativamente de acordo com o
interesse do orador. Por meio de uma iminente
visibilidade, as formas “derivadas” do corpo retórico
assumem espaço na prédica, constituindo, por sua vez,
as significações do corpo alegórico, a figura das
representações emblemáticas, a poesia silenciosa das
pinturas que, no ato exegético do orador, expõem-se ao
público enquanto modelos sensíveis que atendem à
pedagogia da época, na qual o pragmatismo didático do
sermão devia se submeter ao discurso figurado para
colocar diante dos olhos do auditório um discurso que
se convertesse em imagem, pautando-se, para isso, no
proceder da Ekphrasis, cujo primado é a descrição de
elementos como eixo do exercício retórico, ou seja, por
meio de palavras que reflitam imagens.
Nesse ponto não se pode deixar de destacar o eixo da
problemática que a filosofia platônica tanto se
dedicou, posto que, para o referido filósofo, a analogia
entre pintura e retórica se justificava, exatamente,
nessa cumplicidade profunda que havia entre os dois
modos de representação que buscavam os mesmos
efeitos. Dedicando-se a um ponto que tende a nos levar
a enxergar a questão dessas práticas como
ornamentos que não são apenas suplementos, mas
excessos, que deveriam ter seu uso controlado, Platão
plasmou um paradigma, conforme nos convida
lembrar Jacqueline Lichtenstein, que perdurou ao
longo da tradição das artes plástica e retórica:
“pintores e oradores terão sempre de se defender da
acusação de serem sofistas” (1999, p. 59). Por outro lado,
analisando os diálogos platônicos e a comunicação
entre os temas, conceitos e retomadas argumentativas
que ocorre no cerne destes, Ana Lúcia de Oliveira
propõe uma questão na qual a própria definição de
aparente idolatria. Esta última, em especial, era tomada como crime
capital do gênero humano, passível de condenações. De acordo com
Leupin, a paixão pelas imagens, assim como a idolatria que se estendia
à ornamentação (retórica inclusive) era largamente combatida, dado
que “a idolatria é o lugar onde o homem reencontra o Diabo” (LEUPIN,
1993, p. 54).
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015.
28
sofista cunhada por Platão é ambígua a ponto de
capturar até a figura do protagonista filosófico de seus
diálogos: Sócrates (cf. OLIVEIRA, 2002, p. 22).
Mas retomemos nosso foco central de atenção,
aludindo ao âmbito da sermonística, por sua vez, por
meio do juízo crítico de José Antônio Maravall que
destaca, acerca do ponto em questão, um valioso dado
na estrutura histórico-massiva da época que se
convencionou chamar de Barroco:
[...] Nos sermões chega a ser comum servir-se de
hieróglifos impressos ou estampados, de pinturas dadas
à decifração, que reforçam o apelo dirigido ao
espectador ou ao público que escuta, abrindo uma
brecha em sua atenção para penetrá-la de uma
doutrina ou de um sentimento admirativo, de
suspensão, de estupor etc., que facilitarão a captação
desse público (MARAVALL, 2009, p. 390).
Faz-se figurativo, ainda sobre a questão da imagem no
âmbito da ortodoxia católica, o pensamento de
Georges Didi-Huberman, que nos esclarece acerca da
demanda de uma exigência do visual, promovida pelo
desejo de exercitar os sentidos por meio de uma
“existência de poderosas teologias da imagem” (2013, p.
37), na qual a pragmática eclesiástica buscava, antes de
qualquer coisa, fundar, no espaço do rito e da crença,
sua própria “eficácia visual” (DIDI-HUBERMAN, 2013,
p. 38). Assim, o Cristianismo conjugou como termo
essencial a toda economia da conversão, a prática de
encontrar no próprio visível, o Outro do visível, a
saber, o índice visual sintomaticamente divino (cf.
DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 38).
Sem pretender fechar a questão, importa destacar,
brevemente, que a demanda pelo índice visual que
remetesse à figura de Deus – que já havia recebido,
pela ala extremista da Reforma, na primeira metade do
século XVI, uma expressão enérgica do ponto de vista
da iconoclastia religiosa, acentuou-se, ainda mais, no
início do século XVII. A diligência dos significados
codificados na figura de Deus vestiu-se com os tecidos
do dogma tomista do Verbo Encarnado, tornando-se
um tema, no mínimo, que merecia atenção dos grandes
Padres da Igreja, uma vez que
pressupunha
precisamente o acesso do divino ao visualismo de um
corpo e constituía, por assim dizer, o mistério central
de toda a civilização cristã.
Esse tema do mistério que é o substrato não só da
metafísica de toda crença do Cristianismo, mas ainda a
matéria que torna possível o próprio estatuto da
linguagem motivada, bem como explica os
acontecimentos históricos, deu forma e originalidade
ao mundo das imagens no Cristianismo, da época
patrística até o Concílio de Trento. Isso significa dizer
que, desde os primeiros eclesiásticos gregos e
Tertuliano no Ocidente, o sintagma do “mistério
eucarístico” definiu o lugar ambíguo e fascinante no
qual o pensamento cristão posicionou, ou
reposicionou, o problema da imagem, em seu sentido
concreto bem como em seu sentido teológico, face ao
judaísmo bíblico e ao paganismo antigo. Acentuemos
as palavras de Marc Fumaroli que sintetizam a fusão
entre retórica e teologia, em vista de uma aliança que
potencializasse as armas usadas na cristianização talvez a principal delas: o discurso de persuasão que
move as massas de fiéis para imprimir sobre os mesmos
o selo da instituição que comandava as formas de
pensamento da época. Leiamos as palavras do crítico:
A rhetorica sacra, filha do Verbo divino e
herdeira de sua eficácia, pôde se prevalecer,
não apenas de uma memória Greco-latina,
mas de uma majestosa tradição oratória
cristã, de que a Igreja Católica se prevalece
com orgulho face a uma Reforma que quer se
ater apenas à Sagrada Escritura (FUMAROLI,
1995, p. 205).
Entre os principais elementos dessa peregrinação pela
essência da Providência que se guarda de modo
codificado nas mais variadas formas presentes no
mundo, destacam-se a leitura da História e os grandes
homens que nela existiram como ponto fulcral da
recorrência da imagem, visto que agora esses
elementos serão tomados como paradigmas
prefigurativos que servirão de modelo da tradição
para o próprio sermonista ilustrar um pensamento ou
uma doutrina. Além disso, “tudo está no texto”
(DELÈGUE, 1990, p. 24), mas de maneira não
esclarecida, exigindo, portanto, uma interpretação
que teça sentidos por meio de analogias, fazendo das
palavras das Escrituras fios que sirvam para tecer
imagens que saltem aos olhos daqueles que ouvem o
hermeneuta em seu apogeu no púlpito.
Assim sendo, ajustado às técnicas retóricas e ao
contexto da época, o sermão funciona como uma
imperial máquina de guerra que prende a atenção do
auditório com os arquétipos do direito natural, tritura
com os conceitos predicáveis e refina com as agudezas
dos conceitos, plasmando-se como um “jogo ou drama”
que mobiliza a sensibilidade dos ouvintes, além de se
constituir como uma arquitetônica e decorosa
estrutura retórico-conceitual pautado, muitas vezes,
pela organização de uma série de imagens figurativas
que ilustram o pensamento de um orador a fim de, por
espelhamento, ilustrar uma dada doutrina.
Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras
29
A partir das observações anteriores, pode-se
considerar que, em linhas gerais, a pregação
seiscentista ao se configurar na ordem do discurso
imagético obedece a uma lógica regida, a priori, pelo
próprio pregador. Podemos dizer que o pensamento
religioso da época, que fundamenta a produção dos
sermões, ao lançar mão de imagens, obedece à coesão
de dobras, redobras e desdobramentos que se
originam do cerne da prédica, isto é, todo aparelho
retórico é utilizado como dispositivo para construir
imagens que, por sua vez, se duplicam em outras
imagens que representam eminentes referências
bíblicas, exemplos, metáforas, alegorias que se
conjugariam sob uma perfeita harmonia, como se pode
ver pelas lentes de Gilles Deleuze.
4 DA ARQUITETURA DO PENSAMENTO
ARQUITEXTURA ALEGÓRICA
À
Em relação à alegoria, maiores desdobramentos
fazem-se necessários neste ponto da presente
investigação. Considerada menos uma figura de
elocução do que um tropo, a alegoria - nas
representações litúrgicas do século XVII - funcionou
como meio sensível produzido pelo orador para a
“palpabilidade” do auditório em relação à doutrina
pregada. Iniciemos nossa abordagem utilizando as
lentes de um dos eminentes teóricos da época, père
Bernard Lamy 3, para falar do conceito em foco: “a
alegoria é criada quando, ao falar, parecemos dizer
algo diferente daquilo que dizemos de fato, como a
etimologia dessa palavra assinala. É uma continuação
de várias metáforas.” (apud DELÈGUE, 1990, p. 70).
Nessa mesma esteira, Paul Zumthor propõe uma
definição esclarecedora para o conceito em questão,
caracterizando-o como um modo de leitura 4, fundado
no cerne de práticas e ideias emaranhadas, contudo,
que se destaca por uma concepção centralizada:
[...] se o sentido está nas coisas, a verdade não
reside nelas. A verdade permanece
paradigmática; o sentido se desenrola
sintagmaticamente. A linguagem comunica o
segundo, mas vela a primeira. Exige portanto
uma dupla intelecção, a fim de manifestar o
liame que os une. A inteligência das palavras
que dizem as coisas permite empreender seu
“sentido literal”; pela via da analogia, a
inteligência do sentido literal faz aceder ao
sentido “alegórico” [...], relativo a uma verdade
concebida como transcendente ou essencial
(ZUMTHOR, 1978, p. 79).
Articulemos, ao nosso breve mapeamento, a definição
plasmada por Heinrich Lausberg demarcando a
insistência das definições em reiterar, sobre o conceito
em foco, certa noção de continuidade ou cadeia de
metáforas. Leiamos: “a alegoria é a metáfora
continuada como tropo de pensamento, e consiste na
substituição do pensamento em causa por outro
pensamento, a que está ligado, numa relação de
semelhança” (LAUSBERG 1982, p. 249). Ao lado da ideia
de sentido polivalente, acrescentemos o seu valor de
uso que é amplamente marcado pelos teólogos
medievais, para quem a alegoria serviu de instrumento
de defesa para formar um campo de forças que
limitasse as interpretações da Bíblia ao controle de
intérpretes eleitos, a fim de superarem todas as
dúvidas heréticas (cf. CEIA, 1998, p. 22).
Ancorada na preceptiva antiga do aticismo, a figura
em questão consistia em uma modalidade da elocução,
uma espécie de “procedimento construtivo” (HANSEN,
2006, p. 7) que a Antiguidade greco-latina e cristã,
continuada pela Idade Média, denominou “alegoria dos
poetas”. Segundo Adolfo Hansen o conceito é fundado
na expressão alegórica, em uma “técnica metafórica de
representar e personificar abstrações” (2006, p. 8).
Nas práticas discursivas da Antiguidade, a oposição
retórica entre o sentido próprio e o sentido figurado é a
chave operatória para a esquematização alegórica. O
segundo termo, nesse sentido, que é considerado o
‘desvio’, é posto em lugar do primeiro termo,
considerado ‘próprio’ ou ‘literal’, transladando-se a
significação de um objeto a outro, para – em uma
dinâmica de transporte semântico, como assinalou
Aristóteles no proêmio do livro terceiro da Retórica,
séculos antes, e Emanuele Tesauro, em seu tempo, em
seu Il cannocchiale aristotélico (2014) – produzir novas
significações a partir de eixos semânticos distantes.
Recolhendo, sob um breve esquema, as informações
anteriores, apreende-se, portanto, que a metáfora é
constituída de um tropo de léxico, valendo pelo
processo de substituição de um termo isolado, na
medida em que a alegoria vale pelo seu aspecto
enunciativo que, nas prismáticas lentes de Erich
3
Ainda sob a clave da preceptiva sacra da época em questão, cabe
mencionar a análise do eminente jesuíta aragonês, Baltasar Gracián,
que considera a função retórica da alegoria como uma categoria de
“agudeza composta”, em que as coisas espirituais pintam-se sob a
figura de coisas materiais e visíveis por meio de uma inventio
orientada pelo desempenho do orador que busca encenar de forma
material e visível conceitos abstratos e morais. Para maiores detalhes,
consultar GRACIÁN, 2011.
4
Ao lado da alegoria, Paul Zumthor (1978) elenca a alegorese,
afirmando que esta se configura como um modo de escrita marcante
do fim da Antiguidade que complementa o processo de leitura da
alegoria. Diametralmente oposta, a alegorese percorre inversamente
o plano operatório da alegoria: parte de uma verdade, engendrando
dos elementos destas uma littera que assume as categorias de tempo e
espaço, bem como implica uma narrativa.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015.
30
Auerbach, carrega o sentido de “algo real e histórico
que anuncia alguma outra coisa que também é real e
histórica” (1994, p. 27).
À guisa de síntese acerca do que estava em questão na
passagem anterior, examinemos, agora com as lentes
de Jean Pépin, a conceitualização da alegoria, que,
então, se determina sob um novo enquadramento
teórico a partir da virada da Antiguidade para a Idade
Média, considerada, nesse momento, não mais como
simples figura retórica, mas como modo de expressão
religiosa (1976, p. 492). A rigor, não se trata
simplesmente de uma mera conversão conceitual que
ocorre no xadrez dos ornatos retórico-poéticos, mas
de uma alteração significativa no processo alegórico.
Em primeira instância, tem-se uma alegoria
construtiva ou retórica – “alegoria dos poetas”; de
outro modo, uma alegoria interpretativa ou
hermenêutica – “alegoria dos teólogos”, podendo-se
afirmar serem ambas simetricamente opostas, mas
complementares, pois, “como expressão, a alegoria dos
poetas é uma maneira de falar e escrever; como
interpretação, a alegoria dos teólogos é um modo de
entender e decifrar.” (HANSEN, 2006, p. 8). Em termos
gerais, pode-se compreendê-las pela sua matriz
semântica, que, neste caso, se sustenta por meio de um
substrato básico: a alegoria dos poetas é
fundamentada na semântica de palavras, enquanto a
alegoria dos teólogos é uma “semântica” de realidades
reveladas, supostamente, por coisas dispostas no
mundo; funciona, portanto, como o meio o qual o
exegeta cristão lança mão para exprimir,
sensivelmente, os significados ocultos da própria
história (cf. PÉPIN, 1976, p. 492).
Mas não passemos em silêncio sobre as motivações que
regem a produção das alegorias, que colocam como
ponto importante o conceito da mímesis, cujo título
remete não só aos contornos do pensamento
platônico 5, que configura a exemplaridade passada dos
procedimentos técnicos e os efeitos de imitação, mas
também “[à] ficção comparativa do presente das suas
operações sobre eles, sendo termo auto-referencial e
evidenciador da sua alegorização” (HANSEN, 1994, p.
48). No deslocamento temporal em que se acumulam as
mais variadas mutações ideológicas das sociedades, o
procedimento figural é interceptado e ressemantizado
por outros para fim de se subordinar a novos critérios 6
5
A esse respeito destacam-se o paradigma dicotômico da
representação acerca das noções de cópia e simulacro que se originam
no eixo da conceitualização platônica, bem como o deslocamento
desqualificativo sofrido pela mímesis ao longo da tradição das artes
plásticas e literárias que remontam a teoria platônica. Para maiores
esclarecimentos, ver DELEUZE, 1969, p. 292-307 e FERRAZ, 1999.
6
Amplamente debatido por Walter Benjamin (2013), o conceito de
alegoria sofreu um corte decisivo na passagem do século XVII para o
– analógicos, retóricos, gramaticais, estéticos,
sociológicos, hermenêuticos, e rever os seus
“processos formadores nos discursos particulares, que
exemplificam o processo como composição
metaforicamente histórica de ‘realidades miméticas’”
(HANSEN, 1994 p. 49). Em amplos traços, é uma
reconstrução de uma realidade que se reveste de
resíduos históricos de um referencial discursivo,
ordenada pela verossimilhança que se dirige ao
destinatário, equivalendo a uma:
Realidade técnica de convenção discursiva
que classifica os textos estilisticamente,
incluindo-os no padrão geral de “mais” e
“menos”
da
grande
matriz
de
sensível/inteligível
aplicada
como
especificadora dos modos fundamentais de
formar (HANSEN, 1994, p. 49).
Ainda observando a questão através das lapidadas
lentes de Adolfo Hansen (1994; 2006), no “clássico”,
como assim essas épocas históricas são denominadas
pelas gerações a posteriori, a forma inteligível dos
conceitos tem perfeita correspondência na forma
sensível da representação (cf. 1994, p. 50). Toda e
qualquer disparidade para mais ou para menos no
duplo sensível/inteligível provoca a decadência na
representação e um avanço na perda da beleza. Desse
modo, não esqueçamos que o discurso antigo busca a
beleza como eficácia no desempenho técnico dos
efeitos, preocupando-se com o delectare, sem, por
outro lado, deixar de priorizar a prescrição da máxima
ciceroniana na qual a beleza baseia-se na verdade que
esta se encarrega de fazer evidente (cf. FUMAROLI,
2009, p. 689). E mais: segundo Mario Perniola, a
concepção de beleza para os jesuítas, que não é de
matriz platônica, apresenta-se sob a ordem de uma
aplicação dos sentidos inseparável da indiferença: “el
significado de su vínculo paradójico reside em la
disponibilidad para aceptar, elegir y querer cualquer
forma histórica, sin atribuirle um valor absoluto o
definitivo” (PERNIOLA, 2011, p. 158).
Focalizando-se, sobretudo, na clave da discussão dos
ornatos retórico-poéticos, reciclados pelas mais
diversas matrizes de pensamentos dogmáticos de cada
época específica, assinala-se, em linhas gerais, que o
uso das figuras de elocução promove uma beleza que
se sintoniza com a militância das letras sacras
XVIII, solidificando-se tal ruptura no XIX, que o destituiu do seu valor
histórico consagrado pela dogmática católica, passando a exercer, na
tradição romântica, o papel de uma relação convencional entre uma
imagem significante e seu significado sem qualquer interseção nos
limites de um antagonismo temporal. Portanto, a significação
alegórica recebe proporções, na clave romântica, que a distingue e
afasta dos efeitos simbólicos que continha nos períodos antigo e
medieval.
Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras
31
seiscentistas, subordinadas a um critério de verdade
preexistente no âmbito da moral cristã. Não cabe,
nestas linhas, problematizar a discussão promovida
por Gerárd Gennete (1972) em torno da noção de figura
no âmbito da retórica e da língua corrente que se
ampara em concepções cunhadas, em sua maioria, a
posteriori, ao período que aqui nos debruçamos. Em
contrapartida, acentua-se, porém, que é ainda Marc
Fumaroli, em sua obra magna L’Age de l’eloquence,
quem nos esclarece sobre a recorrência do discurso
pictórico: essa prática de produzir imagens sensíveis
aos afetos do público condensa-se, segundo o referido
crítico, na rubrica de “retórica das pinturas”, em que
prevalece a prática metafórica da translação: “roubada
do mundo, a evidência sensível é transferida para a
Presença real” (FUMAROLI, 2009, p. 680). Mais,
segundo o acadêmico francês, a “retórica das pinturas”
jesuítica demanda do mundo sensível as cores da
verossimilhança as quais ela crê dever ornar o mistério
da Redenção (cf. FUMAROLI, 2009, p. 690).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que não se perca de vista o objetivo traçado aqui,
torna-se oportuno retomar um tema já enunciado e
que diz respeito aos sentidos humanos, que servem ao
pregador enquanto meios que recepcionam o
resultado da articulação entre os objetos, as pessoas e
as imagens cognoscíveis; assim, ativa-se a sensibilidade
do público para que busquem compreender,
estritamente, as operações analógicas engendradas
pelo exegeta. Esse mecanismo de estimular no leitor ou
no ouvinte o prazer de resolver uma dificuldade vai ao
encontro do preceito estético-religioso recomendado
pelo jesuíta Baltasar Gracián: “no se contenta el
ingenio com sola la verdad, como el juicio, sino que
aspira a la hermosura” (2011, p. 442). A referida beleza
do discurso produzido no âmago da actio engenhosa
do pregador é o que possibilita aflorar o prazer do
ouvinte que irá saborear as analogias codificadas em
chaves dialético-retóricas nos sermões.
A parenética, por conseguinte, torna-se um theatrum
sacrum no qual se representam as engenhosas
agudezas de um pregador que joga com os sentidos do
público, descobrindo os sentidos místicos em pinturas,
emblemas, hieróglifos, exemplos e retratos, através de
uma gigantesca transferência metafórica que
enriquece o espírito (cf. FUMAROLI, 2009, p. 680) e faz
com que o sensível, o palpável, o admirável aos olhos e
aos sentidos interiores se despertem. Registra-se,
ainda, que a constância pelas metáforas em cadeias –
que,
segundo
Chaïm
Perelman,
servem
frequentemente à argumentação de forma positiva (cf.
2009, p. 150) – é amplamente presentes nos sermões
seiscentistas.
Rigidamente regrado segundo a clave do decoro
específico à parenética, o sermão deve operar sob um
delicado equilíbrio entre a aguda ornamentação que se
põe em cena por meio da elucidação e o exercício dos
sentidos humanos que constroem o arcabouço
alegórico de que a pregação se reveste, bem como o
imperativo moral pressuposto em todas as produções
textuais jesuíticas. Para melhor compreensão do que
aqui está em questão, é importante lembrar que a
racionalidade do sermão eclesiástico, muitas vezes, é
plenamente figural, permitindo aproximar objetos e
conceitos os mais distantes, assim como tudo através
de um princípio substancialista que fundamenta não
só as similitudes retóricas, como também os
procedimentos alegóricos plasmados nas obras do
período em questão.
É válido considerar que o domínio do engenho
ordenado pelo desempenho e pela dramaticidade
concretiza-se diante do público, expondo aos fiéis à
imanência do Mistério com o mundo terreno,
preservando o pensamento da época que se ancora no
finito intrinsecamente ligado à infinitude. O que está
em jogo na passagem anterior é a matéria bruta porém, paradoxalmente, refinada - que sustenta a
lógica do pensamento neoescolástico do século XVII e
todas as práticas letradas que nele são produzidas:
trata-se da elocução engenhosa, aguda, difícil que se
acomoda perfeitamente à hermenêutica, cuja tarefa é
descobrir nos objetos sinais de Deus. Em síntese, a
agudeza busca relações ocultas entre objetos
extremos, repondo no discurso o mesmo processo
alegórico-misterioso que está posto nas coisas criadas
e que necessariamente assinalam o seu Criador.
Até então, observamos brevemente a extrema
contaminação entre o visível e o dizível – uma
constante da produção letrada do Seiscentos,
considerando-a nessas formas híbridas, tais como os
emblemas, que se propõe a unir a imagem e a
linguagem. Impõe-se sublinhar, por sua vez, que os
jogos alegóricos que se instituem no texto figuram-se
por meio do que Alexandre Leupin chamou de “uma
mímesis (orthographia)” (1993, p. 141), que consiste em
“constituir para o homem cristão um lugar da bemfeitura, ao mesmo tempo distanciada, mas análoga à
Feitura divina, e radicalmente diferenciada da ficção
idólatra da falsigrafia” (LEUPIN, 1993, p. 141, grifos
nossos).
Para que se complete o quadro sobre o qual refletimos,
pode-se afirmar uma forte evidência de um
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015.
32
racionalizado uso da alegorização, de perspectivas e
referências projetadas sobre o público à vista de
promover uma transferência de ensinamentos nos
sermões sacros, a partir do paralelo entre pintura e
retórica que se articula para ilustrar o pensamento do
pregador. Isto ocorre, pois, no século XVII: “pensar é
pintar” (LICHTENSTEIN, 1999, p. 143). Assim, na
condução dos significados das figuras de elocução que
acionam a sensibilidade do público, o pregador ajusta o
ornamento à conveniência, obedecendo aos limites de
um uso regulamentado pelo discurso e sempre
submetido aos imperativos da causa a ser defendida.
Recorrendo, pela última vez, à análise de Jacqueline
Lichtenstein (cf. 1994, p.112), trata-se de manter um
balanço entre a cor e a maquiagem na oratória, que não
deve se submeter à primazia do prazer em detrimento
da iluminação da razão.
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Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015.
35
PRODUÇÃO
DE IDENTIDADE:
O CASO DO INFORMATIVO
SEMANAL DA UFFS,
CAMPUS ERECHIM
PRODUCCIÓN DE IDENTIDAD: EL CASO DEL BOLETÍN SEMANAL DE LA UFFS, CAMPUS ERECHIM
PRODUCTION OF IDENTITY: THE CASE OF THE WEEKLY BULLETIN OF UFFS, CAMPUS ERECHIM
Marcio Santin ∗
∗
M es tr and o e m E s tud o s L i ng u í s tic o s (P P G E L ) p e la U FFS , C a m p us C hap ec ó . E -mai l: m arc io _s a nti n@y a ho o .c o m.b r.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015
36
RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT
RESUMO: Este estudo tem por objetivo compreender o processo de produção de identidade
institucional da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim, no
Informativo Semanal, gênero institucional que tem como finalidade produzir e veicular
discursos acerca de suas atividades, atuação e funcionamento para a comunidade acadêmica.
Tem-se, como filiação teórica, embasando o estudo, os trabalhos da corrente francesa de
Análise de Discurso (AD), fundada por Michel Pêcheux. Trata-se de uma pesquisa de cunho
teórico-analítico, na qual, por meio dos recortes discursivos (RDs) se procederá ao gesto
analítico, de acordo com as regularidades destacadas, a saber: ações de ensino, atividades de
extensão e programas institucionais/sociais. Para tal, se apresentará, em um primeiro
momento, a discussão de alguns conceitos caros à linha teórica, mobilizados no decorrer do
aporte analítico, como língua, discurso, sujeito, identidade, interdiscurso, formação discursiva
(FD). Em seguida, inicia-se o gesto de interpretação, no intuito de compreender o
funcionamento discursivo do corpus e os sentidos que nele se inscrevem e emergem. Percebese que o caráter popular é recorrente nos processos institucionais, caracterizando um
momento de identificação que constitui a imagem da instituição. Ademais, a inserção da
comunidade acadêmica e externa representa outra marca nos discursos da UFFS,
consolidando a filiação à uma FD “popular”.
PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso. UFFS-Campus Erechim. Identidade.
RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo comprender la identidad institucional del
proceso de producción de la Universidad Federal de Frontera Sur (UFFS), Campus Erechim en
el Boletín de Información, género institucional que tiene como objetivo producir y transmitir
discursos acerca de su actividad, el rendimiento y el funcionamiento de la comunidad
académica. Ha sido, como la afiliación teórica, apoyando el estudio, el trabajo de la corriente
francesa de Análisis del Discurso (AD), fundada por Pêcheux. Es un carácter teórico y analítico
de la investigación, en la que, a través de los fragmentos discursivos (FDs) se procederá al
gesto analítico, de acuerdo con las regularidades destacadas, como las acciones educativas,
actividades de difusión y programas institucionales / sociales. Con este fin, lo hará, al principio,
una discusión de algunos conceptos caros a la línea teórica, movilizado durante la
contribución analítica, como el lenguaje, el habla, el asunto, la identidad, interdiscurso,
formación discursiva (FD). Entonces comienza el acto de interpretación con el fin de
comprender el funcionamiento discursivo del corpus y la forma en que cae y emerge. Con
efecto, es perceptible que el personaje popular recurrente en los procesos institucionales, con
un momento de identificación que es la imagen de la institución. Por otra parte, la inclusión de
la comunidad académica y externa es otra marca en los discursos de UFFS, la consolidación
de la membresía a un FD “popular”.
PALABRAS CLAVE: Análisis del Discurso. UFFS-Erechim Campus. Identidad.
ABSTRACT: This study aims to understand the process of identity production in the case of
the Weekly Bulletin published by the Erechim campus of Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS). The periodical fits into an institutional genre that aims to produce and spread
discourse about the institution's activities, and is targeted at the local academic community.
This study is based upon the French line of Discourse Analysis (DA), founded by Michel
Pêcheux, and is a theoretical-analytical resarch that uses the concept of Discursive Frames.
The analysis will focus on some of the recurring themes from the published news: teaching
actions, outreach activities and institutional/social programs. In order to carry that out, we
first discuss some theoretical concepts, such as language, discourse, subject, identity,
interdiscourse, and discursive formation. Then, we move on to an attempt at interpretation,
in order to understand the discursive workings of the corpus and the senses that are inscribed
into it and emerge from it. We notice that the main feature that characterizes the image of
this institution is that of being “popular”. Moreover, the presence of both the academic and
the external communities is another feature of the discourse found therein, consolidating the
concept of a “popular” discursive formation.
KEYWORDS: Discourse Analysis. UFFS - Campus Erechim. Identity.
Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim
37
1 INTRODUÇÃO 1
2 O APORTE TEÓRICO
Concebendo a língua como uma forma de significar e
simbolizar que possibilita a interação entre os sujeitos,
pretende-se,
neste
estudo,
compreender
o
funcionamento discursivo do Informativo Semanal (IS)
da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS),
campus Erechim, por meio do qual se produzem e se
veiculam informações acerca de suas atividades,
atuação e funcionamento, para a comunidade
acadêmica, tendo em vista a identidade que a
Instituição cria neste documento, a partir da inserção
em determinadas formações discursivas (FDs).
Esta seção tem por objetivo trazer à tona a discussão
de alguns conceitos teóricos importantes para o
desenvolvimento deste estudo e caros à linha francesa
de Análise do Discurso. Parte-se da conceituação de
língua para compreender como se dá sua articulação
com o sujeito e com o discurso.
Tem-se como corpus desta pesquisa o recorte feito nos
Informativos Semanais da UFFS, campus Erechim,
produzidos durante o ano de 2013, totalizando 46
publicações distintas.
Esta materialidade linguística, veiculada por meio de
listagem de e-mails cadastrados junto à Assessoria de
Comunicação do campus, quando do ingresso dos
discentes na instituição, tem por finalidade
intermediar a comunicação entre o campus e a
comunidade acadêmica, compreendendo docentes,
discentes e técnico-administrativos.
Desta forma, por meio de notícias, notas e reportagens
publicadas sobre o cotidiano dos sujeitos e da
Universidade, procura-se atender a toda a
comunidade, constituindo-se em um mecanismo de
utilidade pública, dando visibilidade às atividades
ocorridas na esfera acadêmica e construindo a
identidade da Instituição.
Assim, para dar conta do que se propõe neste estudo,
se tecerão considerações acerca dos conceitos de
língua, sujeito e discurso, buscando compreender sua
inter-relação e funcionamento, partindo do
pressuposto de que a língua é elemento constituinte
dos sujeitos e dos discursos, embasando o percurso
teórico.
Após o constructo teórico, dá-se seguimento com a
formação da Instituição e como esta se marca em seus
documentos normativos e norteadores para, em
seguida, apresentar como se organizou o corpus do
estudo. Passa-se, então, ao gesto de interpretação que
se propõe, finalizando com as principais considerações
e contribuições deste artigo.
A língua, para a corrente francesa de AD, não
representa um sistema perfeito, uma unidade fechada,
transparente, mas sujeita ao equívoco, a falhas, e é
afetada pela incompletude. Conforme defende
Orlandi, “[...] o lugar da falha e incompletude não são
defeitos, são antes a qualidade da língua em sua
materialidade: falha e incompletude são o lugar do
possível” (2009, p. 12).
A língua constitui a materialidade do discurso, é “[...]
aquela da ordem material, da opacidade, da
possibilidade do equívoco como fato estruturante, da
marca da historicidade inscrita na língua. É a língua da
indefinição do direito e avesso, do dentro e fora, da
presença e ausência.” (FERREIRA, 2005, p. 17). Isso
permite afirmar que a língua é passível de falhas,
enganos, permitindo que nela sentidos diversos
irrompam, consoante com o que propõe Pêcheux
(2012, p. 53) “Todo enunciado é intrinsecamente
suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo,
de deslocar discursivamente de seu sentido para
derivar para um outro”.
A língua, então, é compreendida como um sistema
sujeito a perturbações, mal-entendidos, justamente
por sua opacidade, não transparência. Os sentidos
produzidos pelos jogos que se faz com a língua não
residem nas palavras, mas são frutos das formações
discursivas (FDs) que os sujeitos se inscrevem,
atrelados às condições de produção em que o
enunciado foi produzido.
Assim, a língua é a “[...] base comum de processos
discursivos diferenciados [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 81),
o que implica entendê-la como a materialidade
discursiva destes processos, materialidade discursiva
dos dizeres. Em outras palavras, se constitui enquanto
condição de realização dos discursos, situação que
engloba as esferas histórica e social.
O discurso constitui o objeto teórico da Análise de
Discurso, objeto histórico-ideológico que se produz
1
Artigo apresentado como requisito final para obtenção do título de
especialista em Teorias Linguísticas Contemporâneas, pela UFFS,
Campus Erechim, orientado pelo Prof. Dr. Atilio Butturi Junior.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015
38
socialmente por meio de sua materialidade, a língua.
Pêcheux (1969) define o discurso como “efeito de
sentidos entre interlocutores”, como o lugar de
contato entre a língua e a ideologia. Partindo da ideia
de que o discurso é uma construção sócio-histórica,
realizado sob certas condições de produção, isto
implica compreender que este reflete determinadas
concepções de mundo de seus sujeitos-autores,
concepções estas que retratam as formações
ideológicas que os constituem e com as quais aqueles
se identificam.
Assim, discurso para a AD, é onde se encontram as
questões acerca da língua, da história e do sujeito, é o
campo em que se entrecruzam tais concepções,
tornando o objeto da teoria discursiva um terreno
heterogêneo e multifacetado.
O sujeito, para esta perspectiva, é sempre cindido,
clivado e descentrado. Segundo Orlandi (2012), há um
deslocamento da noção de homem para sujeito, que se
constitui na relação com o simbólico, na história. Para
a estudiosa, “[…] o sujeito discursivo funciona pelo
inconsciente e pela ideologia” (ORLANDI, 2012, p.
20).Neste sentido, para a teoria do discurso de linha
francesa, que se constitui numa teoria não-subjetiva,
concebe-se o sujeito interpelado pela ideologia,
constituindo-se na relação entre língua e história.
A AD toma emprestado alguns dos conceitos
elaborados pelo francês Louis Althusser, sobretudo
aqueles produzidos no texto Ideologia e Aparelhos
Ideológicos de Estado, editado na França em 1969.
Próximo de Pêcheux e de seu grupo, Althusser coloca
a noção de sujeito como termo essencial na construção
da ideologia. Segundo ele, só existe prática através e
sob uma ideologia, a qual só existe através do sujeito e
para sujeitos. Assim, para o autor “[...] toda a ideologia
interpela os indivíduos concretos como sujeitos
concretos, pelo funcionamento da categoria de sujeito”
(ALTHUSSER, 1970, p. 98-99, grifos no original).
A partir de Althusser, Pêcheux cria o termo formasujeito para designar o sujeito afetado pela ideologia.
Para Althusser “[...] os indivíduos são sempre-já sujeitos.”
(ALTHUSSER, 1970, p. 102, grifos no original). A
ideologia, nesta perspectiva teórica, integra processo
fundante do indivíduo, que é sempre por ela
interpelado, constituindo-se em sujeito. Transposta
para a AD, a discussão de Althusser ganha outros
contornos. Segundo Pêcheux (2009), o sujeito é
acometido por dois tipos de esquecimentos fundantes,
a saber:
a) Esquecimento número 1: é da instância do
inconsciente, de natureza ideológica, dá ao sujeito a
ilusão de ser fonte do sentido de seu discurso.
Conforme Orlandi (2012), este remete à ilusão de
controle do dizer, ao sonho adâmico de ser a origem do
sentido.
b) Esquecimento número 2: de natureza préconsciente/consciente, dá ao sujeito a ilusão
referencial, fazendo acreditar que existe uma relação
direta entre pensamento, linguagem e o mundo. Este
esquecimento é da ordem do dizer. Consoante Orlandi
(2012), produz a impressão de realidade do
pensamento, indicando relação direta, sendo que o
discurso reflete o conhecimento objetivo que se tem
da realidade.
Assim, o sujeito, pela teoria discursiva, é incompleto,
constituindo-se pela ilusão de ser a origem do dizer
(esquecimento número 1) e pela ilusão de
transparência de seu discurso (esquecimento número
2). Todavia, a ideia de sujeito uno, dono de seu dizer e
origem dos sentidos, embora imaginária, é inerente a
ele. Relendo Lacan e a psicanálise, a AD parte do
princípio de que a noção de sujeito é formada por meio
da relação dinâmica entre alteridade e identidade.
Então, a constituição da identidade do sujeito só se dá
por meio da relação com o outro, remetendo a duas
ideias que orientam esta teoria: a) a noção de que
sujeito e sentido são constituídos no e pelo discurso, e
não são dados a priori; b) a noção de descentramento
do sujeito que perde seu destaque ao integrar-se no
funcionamento discursivo.
No presente trabalho, é importante destacar como a
AD pode pensar o conceito de identidade, a partir das
relações entre o sujeito e o discurso. Coracini (2000),
acerca da identidade, afirma que esta
[...] se forma ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, ela não poderia ser
vista como algo inato, existente na
consciência no momento do nascimento
como querem algumas correntes lingüísticas.
Apesar da ilusão que se instaura no sujeito, a
identidade permanece sempre incompleta,
sempre em processo, sempre em formação.
Assim, em vez de falar de identidade como
algo acabado, deveríamos vê-la como um
processo em andamento e preferir o termo
identificação, pois só é possível capturar
momentos de identificação do sujeito com
outros sujeitos, fatos e objetos. (CORACINI,
2000, p. 150)
O processo de identificação remete à questão da
contínua incompletude, uma vez que o sujeito é
atravessado por diversas vozes, constituído pelo
outro, pela alteridade. Tais dizeres, longe de fixarem o
sujeito, consolidando suas características, o situam em
Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim
39
permanente movimento e transformação (CORACINI,
2000).
Assim, neste artigo, considera-se adequado trabalhar
com a noção de processo de identificação em
detrimento à identidade, uma vez que esta última
passa a noção de algo pronto, acabado, estável,
concepções diversas do que se compactua. EckertHoff (2004, p. 72) aponta que “[...] a noção de identidade
(logocêntrica) carrega a ideia de um sujeito totalizante
e homogêneo, que não leva em conta a multiplicidade
de discursos e de dizeres que o constituem [...]”.
mesmo discurso. Para a AD, este conceito é
ressignificado, passando a ser entendido como um
campo que determina o dizer, em situação específica.
Pêcheux (2009, p. 147) coloca que “[...] chamaremos,
então, formação discursiva aquilo que, numa formação
ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada
numa conjuntura dada, determinada pelo estado da
luta de classes, determina o que pode e deve ser dito”.
Pêcheux (2009) defende que toda FD dissimula, pelo
efeito de transparência que nela se instaura, sua
vinculação com respeito ao “todo complexo com
dominante” das formações discursivas, definido pelo
autor como interdiscurso, instância que compreende o
conjunto das formações discursivas, inscrevendo-se
no nível da produção dos discursos.
Compreende-se, assim, a linguagem enquanto
elemento constitutivo do sujeito. Este, descentrado,
deixa de ser a origem do seu discurso, conforme os
esquecimentos apontados por Pêcheux (2009), para
ser entendido como uma construção heterogênea, em
que ressoam discursos diversos, lugar de significação
historicamente constituído, marcando-se no discurso
e deixando traços de identificação, de acordo com suas
filiações a determinadas FDs.
Segundo Orlandi (2012), o interdiscurso representa
assim o já-dito, a memória discursiva, os sentidos já
estabilizados pelo discurso e aqueles silenciados,
porém resistentes. Se configura pelo atravessamento
de dizeres, em constante movimento, fundindo-se e
enleando-se.
O sujeito se constitui na relação com a alteridade, por
meio da relação com o outro, nunca sendo fonte única
do sentido, tampouco elemento de origem do discurso.
Ferreira (2000) destaca que o sujeito estabelece uma
relação ativa no interior de uma determinada
formação discursiva, afetando e sendo afetado em sua
prática discursiva.
Sujeito, língua e discurso se relacionam por sua
inscrição na história, de acordo com as posições
discursivas a que se filiam, produzindo e mobilizando
sentidos consolidados no interdiscurso. Assim, o
interdiscurso refere-se à possibilidade de dizer,
remetendo a todos os discursos já produzidos e que
repercutem nas palavras do sujeito.
A FD funciona como o lugar de articulação entre
língua e discurso, regulando o dizer, o que o sujeito
pode e deve dizer, dada sua posição de acordo com a
Formação Ideológica (FI) a que se filia. As fronteiras
das FDs não são estanques, fixas, mas permeáveis,
possibilitando aproximações, de modo que o sujeito
possa se identificar com mais de uma formação
discursiva em determinado discurso. Neste sentido,
entende-se que a FD é definida a partir de seu
interdiscurso, por meio da relação com a FI e em
contraste com as demais formações discursivas com as
quais estabelece relações de aliança ou de
afastamento.
A noção de FD deriva do conceito proposto por
Foucault (1997) que a entendia como uma regularidade
nos enunciados, sendo possível agrupá-los num
2
Assume-se para este estudo, Discurso Oficial como sendo o discurso
do Estado, expresso por suas leis, portarias, decretos,
Instituições/Entidades Oficiais (Universidades, Secretarias,
Ministérios, etc.), programas, projetos e/ou sujeitos autorizados,
devidamente investidos de poder para tal, e que representa a vontade
da coletividade, representando o discurso de direito.
3 O DISCURSO OFICIAL DO INFORMATIVO
SEMANAL
3.1 O Informativo Semanal
De acordo com o discurso oficial 2 da UFFS, aqui
representado pela Instrução Normativa (IN) n° 005 3, de
27 de maio de 2014, que dispõe sobre as Diretrizes da
Diretoria de Comunicação, o principal objetivo desta
área é tornar a missão da instituição visível e que seja
apropriada pelos públicos de interesse, ou seja,
divulgar a Instituição como um bem público que todos
têm o direito de acessar.
3
Os documentos que compõem o corpus do estudo foram extraídos
do ano letivo 2013, porém a portaria que subsidiou a análise fora
emitida somente em 05 de maio de 2014. Anterior a IN n°. 005/2014,
não existia documento oficial, publicizado, que normatizava a
Comunicação Institucional. Em virtude do exposto, para a análise dos
IS de 2013, fez-se uso da referida IN.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015
40
Embora a construção de uma imagem institucional
decorra do trabalho da comunicação, esta sofre
influência (positiva ou negativa) pela ação de sua
comunidade. Considerando o exposto, o trabalho da
Diretoria de Comunicação, segundo a referida IN, é
consolidar uma imagem positiva da Universidade,
divulgando seus pontos fortes e as ações específicas
desenvolvidas, beneficiando a toda a comunidade
acadêmica.
Surge o Informativo Semanal, doravante denominado
IS, como mediador deste processo, no qual se
materializam
os
objetivos da
comunicação,
construindo a imagem positiva da UFFS, por meio da
divulgação das ações desenvolvidas na instituição e de
interesse à comunidade. O IS produz efeitos de
transparência, deixando a comunidade acadêmica
informada sobre as ações, projetos e programas
desenvolvidos no âmbito do campus. Através de e-mail,
servidores, docentes e técnico-administrativos, bem
como discentes, recebem estas informações
semanalmente.
Assim, importa destacar o que pode e deve ser
apresentado nestes informativos, de acordo com o
definido pela Diretoria de Comunicação na IN (2014, p.
7-8):
Divulgação de editais, serviços, acordos
interinstitucionais e de interesse do público
interno; Divulgação de oportunidades para
pós-graduação em instituições públicas e/ou
parceiras da UFFS, desde que a vaga
disponibilizada seja relacionada a algum
curso ou serviço oferecido pela Universidade;
Divulgação de cursos e oportunidades
relacionados à UFFS ou instituições
parceiras; Divulgação de eventos que estejam
relacionados à UFFS e que tenham seu
conteúdo relacionado com ensino, pesquisa e
extensão; Divulgação de prêmios, concursos e
editais que estejam vinculados às áreas de
conhecimento da Universidade ou que se
configurem como oportunidade para a
comunidade universitária; Divulgação de
resultados de premiações, concursos e editais
que estejam vinculados às áreas de
conhecimento da UFFS e que não se
configurem como promoção pessoal do
premiado; Divulgação de eventos culturais
que tenham parceria, realização ou apoio da
UFFS ou nos quais a comunidade
universitária tenha condições especiais
(descontos integrais ou parciais); Divulgação
de cursos, eventos e demais atividades que
não sejam restritas a um público específico de
um departamento ou curso e que sejam
abertos aos demais interessados; Pedidos de
divulgação de portarias do Gabinete do Reitor
e das direções dos campi; Informes da
Reitoria, pró-reitorias, diretorias e unidades
administrativas de caráter estratégico.
(UFFS, 2014, p. 7-8)
O que pode e deve ser dito, conforme esta IN,
determina que se contemplem discursos positivos, que
enalteçam a imagem institucional, situação que
interdita todo e qualquer sentido contrário a esta
construção. Por se tratar de um discurso oficial da
instituição, não há relação direta com o discurso do
Governo Federal, embora haja um diálogo possível, já
que o terreno é o da mesma formação ideológica.
Trata-se, nessa perspectiva, de determinações
internas,
construções
implementadas
pela
comunidade interna (servidores da UFFS), na
constituição da instituição.
Neste caso, compreendendo a consolidação de uma
imagem positiva, apenas o que se enquadrar nos
parâmetros definidos pela UFFS será veiculado no IS.
Do contrário, o assunto será silenciado, interditado,
não sendo incorporado ao discurso, ou seja, não
constituindo o intradiscurso e, consecutivamente, a
memória discursiva, consolidando a identidade da
instituição de acordo com o que esta determinou.
3.2 A Constituição da UFFS no Discurso Oficial
O discurso de criação da UFFS está marcado pela
mobilização dos movimentos sociais, força que se faz
presente na construção da sua identidade, definição
de sua missão, objetivos, diretrizes e políticas de
ensino, pesquisa e extensão. Ao enunciar-se como
Universidade, a UFFS constrói um discurso que exige
alguns princípios que seriam “norteadores”: como ser
uma universidade de qualidade e comprometida com a
formação de cidadãos, ser democrática, autônoma e
com respeito à pluralidade de pensamento e à
diversidade cultural, com a garantia de espaços para
participação dos diferentes sujeitos sociais.
Tais princípios “norteadores” são constituídos no e
pelo discurso, criando uma polissemia de sentidos,
filiando a Instituição a uma Formação Discursiva
“popular” 4. Porém, a FD “popular” permanece com
contornos indistintos, marcada por enunciadospadrão: comprometida com o social, com a mudança na
4
O texto descreverá a Formação Discursiva “popular”, aqui referida,
mais adiante.
Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim
41
sociedade, com a pluralidade de ideias e princípios,
com a inclusão de sujeitos e a inserção de quem quiser
fazer parte deste novo espaço. No entanto, não há um
cerceamento dos sentidos. Em nenhum momento se
define o que se entende, especificamente, por estes
princípios “norteadores”, deixando em aberto os
sentidos e criando uma imagem de inclusão, de que
tudo é permitido.
Trevisol, Cordeiro e Hass (2011, p. 32) corroboram com
a institucionalização desta imagem, destacando que
“[...] trata-se, portanto, de uma universidade que nasce
da sociedade, para ser um bem público a seu serviço.
Significa concebê-la e realizá-la tendo como ideiaforça o princípio da democratização [...]” que ocorre a
partir de dois movimentos. O primeiro deles é o da
democratização de dentro para fora, ou seja, implica
em uma aproximação e envolvimento com a sociedade
através de uma relação próxima, interativa e solidária,
tornando a sociedade o sujeito das atividades de
ensino, pesquisa e extensão. O segundo é o movimento
da democratização de fora para dentro, que propõe
romper com os modelos tradicionais de conceber a
universidade.
Para elucidar o processo de construção da UFFS,
Trevisol (2011) o compara ao trabalho de um jardineiro,
pois,
[...] eles sabem que o pensar e o fazer, a ideia e
a ação, a concepção e a execução devem
andar juntos. Não há jardim sem jardineiros.
Os jardins são obras das pessoas que sonham,
que
concebem
e
se
dedicam
apaixonadamente até o fim de vê-los
realizados. Assim como qualquer invenção
humana, a UFFS precisa pensar-se
cotidianamente; e o seu projeto de
universidade não está dado, nem concluído. A
reflexão e o debate abertos e permanentes, de
cuja intensidade dependerá, em boa medida, a
qualidade acadêmica e a organicidade de sua
inserção social. (TREVISOL, 2011, p. 27)
Aqui, ressoa a imagem de sujeito pautado na razão, que
detém as rédeas em suas mãos e que dele depende o
caminhar, o construir, o futuro, pois é sua ação que
determinará o vir-a-ser. Neste sentido, a formação
discursiva racional, de sujeito cartesiano, pautado na
lógica, demarca a construção da instituição, ao passo
que se compara à ação de um jardineiro, que
“condiciona” a formatação de seu jardim, ou seja, a
consolidação da instituição, fruto de sua ação, de sua
vontade. A ilusão de controle do dizer, de controle dos
sentidos, se faz presente.
A marca do popular também aparece pelo discurso de
ampla participação do que se chama de “movimentos
sociais” e seus sinônimos. Como já afirmado, desde sua
concepção e em toda a trajetória da construção da
UFFS, o discurso oficial encontra-se marcado pela
presença de diversas entidades públicas, movimentos
sociais como Fetraf-Sul, Via Campesina, Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB),
Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outras
Organizações não Governamentais (ONGs). Estas
forças sociais, que constituem a comunidade na qual a
UFFS encontra-se inserida, representaram a vontade
da população de ter uma Universidade Federal e
contribuíram para com sua implantação. Sendo assim,
a instalação da UFFS foi um ato que contou com
diversos segmentos, com a participação de muitos
atores sociais, fato que marcou a posição popular em
sua formação inicial.
Outra característica que assinala o compromisso da
instituição com suas origens e com o debate popular
amplificado é a política de cotas, que determina o
ingresso pelo ENEM (Exame Nacional do Ensino
Médio), no qual cerca de 90% das vagas na graduação
são destinadas para estudantes que cursaram ensino
médio apenas em escola pública, segundo informações
constantes no sitio eletrônico da UFFS 5.
No capítulo II – Dos Princípios, Finalidades e Objetivos do
Estatuto da UFFS, reitera-se o compromisso assumido
junto aos movimentos sociais e às organizações da
sociedade civil, de manter o diálogo permanente. Além
deste, outros princípios fundamentais aludem à
inclusão social, o respeito às diferenças de qualquer
natureza, ao pluralismo de ideias, à gestão democrática
e à responsabilidade social e ambiental, princípios que
reafirmam, em sua essência, o respeito aos atores
sociais que lutaram para que a UFFS fosse uma
realidade.
O artigo 5º do Estatuto da UFFS (2010), que trata dos
objetivos institucionais, retoma o compromisso com a
esfera social, através de ações que envolvam o diálogo
entre a universidade e a população através da
pesquisa, da extensão, do conhecimento da realidade
do seu âmbito de atuação e da abertura à participação
5
Disponível em:
<http://www.uffs.edu.br/index.php?option=com_content&view=artic
le&id=90&Itemid=822>.Acesso em: 03 set 2014.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015
42
da população nos assuntos que envolvam a
universidade, conforme evidenciado nos parágrafos
VI, VII, VIII e XVI:
VI. Estimular o conhecimento dos problemas
do mundo presente, em particular os
nacionais e regionais, prestar serviços
especializados à comunidade e estabelecer
com esta uma relação de reciprocidade;
VII. Promover a extensão, aberta à
participação da população, visando à difusão
das conquistas e benefícios resultantes da
criação cultural e da pesquisa científica e
tecnológica geradas na instituição.
VIII. Fazer da extensão universitária um
diálogo permanente entre universidade e
sociedade, visando à produção conjunta de
avanços, conquistas e benefícios resultantes
da criação cultural e artística, e da pesquisa
científica e tecnológica;
XVI. Manter-se aberta à participação da
população,
promovendo
amplo
e
diversificado intercâmbio com instituições,
organizações e movimentos da sociedade.
Volta-se, novamente, à FD “popular”, recorrente no
discurso oficial, no discurso de criação da
Universidade que, em vários momentos, marca-se pela
inserção dos movimentos sociais, pela abertura de
espaços para inclusão, pelas ações de considerar os
anseios sociais, enfim, por permitir e desejar ser
modelada, enquanto instituição, pela sociedade que a
cerca, que faz uso de seus serviços e atividades.
O termo “popular” faz referência direta ao povo, que
pertence ao povo, que tem sua origem no povo, que o
representa, bem como sentidos ligados à democracia,
ao poder que emana das escolhas e vontades dos
sujeitos, que constituem a sociedade, o povo. Todos os
sentidos referenciados vinculam-se à FD “popular”, na
qual repercutem e agregam valor.
Estes e outros sentidos se concretizam materialmente
nos discursos do IS, constituindo a imagem pretendida
institucionalmente, na qual é retomado o slogan da
instituição: “instituição de ensino superior pública,
popular e de qualidade” 6. O qualificador “de
qualidade”, presente no slogan, tem por finalidade
romper com o sentido negativo que repercute dos
termos “público, popular”, pois associados ao senso
comum, quando se trata de um bem público, como o
transporte, os banheiros públicos, por exemplo,
geralmente se atrela uma visão negativa, carregada de
problemas sociais e dificuldades. O mesmo ocorre com
o adjetivo “popular”, que agrega uma conotação
pejorativa, depreciativa à ação, como é o caso de
mercados e feiras populares, nas quais o “popular” se
refere à parcela da população menos favorecida
economicamente. Neste sentido, quebrando este
paradigma criado pelos adjetivos “público” e “popular”
presentes na sequência, filiando a toda uma rede de
sentidos, instaura-se o qualificador “de qualidade”, que
delimita certos sentidos, censurando outros e
resultando em uma identidade institucional positiva.
4 A CONSTRUÇÃO DO CORPUS
Segundo Pêcheux (1994, p. 57), um “[...] campo de
documentos pertinentes e disponíveis sobre uma
questão [...]” constitui um arquivo (em sentido amplo).
Para Orlandi:
O arquivo em análise de discurso é o discurso
documental, memória institucionalizada. Essa
memória tem relações complexas com o saber
discursivo, ou seja, com o interdiscurso, que é
a memória irrepresentável, que se constitui
ao longo de toda uma história de experiência
de linguagem. (ORLANDI, 2002, p. 11)
Ao compreender o funcionamento discursivo dos
documentos que compõem o arquivo evita-se
reproduzir a história dos fatos e se mostra seu
processo de constituição. A formação do arquivo já
representa um gesto de interpretação, pois ao se
selecionar determinados documentos, deixa-se de
selecionar outros, o que representa uma escolha do
analista, de acordo com as formações discursivas e
ideológicas a que este se filia.
Compreende o arquivo deste estudo os Informativos
Semanais produzidos durante o ano de 2013,
produzidos e veiculados no/pelo Campus Erechim da
UFFS.
Sobre a metodologia de constituição do corpus, foram
extraídos recortes discursivos (RDs). Conforme
defende Orlandi (1984, p. 16), “[...] o recorte é naco,
pedaço, fragmento. Não é segmento mensurável em
sua linearidade [...]” e continua, “[...] o princípio segundo
o qual se efetua o recorte varia segundo os tipos de
6
Conforme definido na página eletrônica da UFFS, disponível em
<http://www.uffs.edu.br/index.php?option=com_content&view=artic
le&id=90>, acesso em: 21 set. 2014.
Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim
43
discurso, segundo a configuração das condições de
produção, e mesmo o objetivo e o alcance da análise”.
Os recortes feitos nos documentos do arquivo têm por
objetivo compreender o funcionamento discursivo e
os efeitos de sentidos produzidos pelos discursos.
Buscando tecer o gesto de interpretação, se destacou
as seguintes regularidades:
RD1 – Ações de Ensino
RD2 – Atividades de Extensão
RD3 – Programas Institucionais/Sociais
Após este processo, foram retiradas Sequências
Discursivas (SDs) 7 dos documentos, compondo o
corpus de análise, e agrupadas nos RDs de acordo com
suas regularidades. Assim, esta seleção, conforme
defende Orlandi (2012), já é um primeiro exercício de
análise, uma vez que se delimita o objeto de estudo de
acordo com o que se pretende estudar, compreender
os sentidos que nele se instauram, emergem.
5 O GESTO ANALÍTICO
Neste momento, se passa ao gesto analítico, de acordo
com as regularidades agrupadas dos documentos que
compõem o arquivo do trabalho. Retomam-se, então,
os recortes discursivos previamente elencados.
RD1 – Ações de Ensino
SD1 – A especialização é gratuita 8. As aulas vão acontecer no
Campus Erechim, nas sextas à noite e sábados durante o dia.
SD2 – Cerca de 25 estudantes [...] participaram no último
sábado (4) de uma saída de campo na aldeia Kondá, do povo
Kaingang, em Chapecó. [...] objetivo da saída de campo foi
proporcionar aos estudantes presenciar um evento
específico da comunidade, que tem ligação com os
conteúdos que eles estudam em sala de aula, especialmente
dentro da disciplina de Antropologia da Performance.
SD3 – Educação Popular e Metodologias Formativas foi o
tema selecionado para abrir o curso “Formação de Jovens em
Agricultura Sustentável, Gestão e Inovação Tecnológica” na
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus
Erechim. A atividade é fruto de uma parceria entre a
Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
7
As SDs serão, no entanto, apresentadas apenas quando de sua
análise, em momento posterior, evitando que se duplique a
informação.
(Fetraf-Sul/CUT), UFFS e Ministério do Desenvolvimento
Agrário.
SD4 – Conforme a coordenadora do PIBID Geografia, Ana
Maria de Oliveira Pereira, o projeto, denominado “Geografia é
Show” teve como objetivo proporcionar aos estudantes do
Ensino Médio a construção do conhecimento geográfico de
maneira mais significativa. “Para isso realizamos atividades
como trabalho de campo, entrevistas com pessoas da
comunidade, construção de maquetes, de globos terrestres,
de revista e também painéis”, explica.
Este primeiro RD traz à análise questões concernentes
ao Ensino. Trata-se de expor como esta área concebe
as ações populares, a questão da formação de uma
imagem popular, preocupada com a inserção social.
A SD1 apresenta duas marcas que inserem a
universidade no discurso público, na questão popular,
a saber: o uso do termo gratuita e o período de
execução desta atividade, sextas à noite e sábados
durante o dia. A ação de Ensino em foco retoma a
questão popular ao associar-se ao termo gratuita, que
implica em uma atividade sem custos, sem gastos ou
despesas para o participante, o que possibilita a
participação de qualquer um.
Ademais, o período de execução da pós-graduação
(sextas à noite e sábados durante o dia) possibilita
uma maior aderência social, permitem que uma maior
camada social participe, incluindo trabalhadores, que,
nesse período, possivelmente estejam de folga.
A SD2 procura proporcionar aos discentes uma
experiência
de
inserção
na
comunidade,
possibilitando a vivência da experiência acadêmica,
uma saída de campo, a prática social, presenciar um
evento específico da comunidade. Destaca-se,
também, que se trata de uma atividade em um grupo
social que representa um povo indígena, uma minoria
social atualmente, aldeia Kondá, do povo Kaingang.
Atitude que representa um movimento de inclusão
social, ao passo que procura inserir estes sujeitos no
seio, na comunidade acadêmica, bem como a
Universidade neste meio social, nesta minoria,
ampliando suas fronteiras.
importância para o processo de constituição de sentidos, no gesto
analítico proposto.
8
As expressões grifadas em negrito das Sequências Discursivas são
as marcas linguísticas analisadas com destaque, que detém maior
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015
44
A SD4, no mesmo âmbito que a SD2, também prevê um
trabalho de campo, levando os discentes a interagir
na sociedade em que vivem, para realizarem
entrevistas
com
pessoas
da
comunidade,
integrando-os e possibilitando o conhecimento do
espaço físico-social em que se inserem, trabalho que
culminará, posteriormente, no desenvolvimento de
maquetes, revistas e painéis.
A SD3, por meio de uma ação conjunta, parceria entre
a Federação dos Trabalhadores na Agricultura
Familiar (Fetraf-Sul/CUT), UFFS e Ministério do
Desenvolvimento
Agrário
(MDA), ou seja,
Universidade aliada aos movimentos sociais que
participaram de sua instalação, promovem atividade
que tem como tema principal a Educação Popular.
O RD2, por sua vez, apresenta como regularidade as
atividades de Extensão. Se passará a elas na sequência.
RD2 – Atividades de Extensão
SD5 – A UFFS surge nesse contexto das lutas ambientais e
sociais do Brasil, onde a Via Campesina e a Fetraf-Sul, junto
com muitos outros movimentos, pautavam a construção de
uma universidade que pudesse, ao mesmo tempo, oferecer
educação superior de qualidade e fosse muito preocupada
com essas grandes questões – que são questões que movem o
mundo, como a sustentabilidade, como a energia renovável, a
agroecologia. Enfim, os temas perpassam os nossos cursos, as
nossas linhas de formação, os nossos documentos
institucionais.
SD6 – [...] o objetivo do Fórum é manter vivo o legado freireano
de uma educação comprometida com a emancipação dos
seres humanos, articulando saberes e experiências
acadêmicas e populares. “Com o lema 'Paulo Freire e a
Educação nas Cidades', a 15ª edição do evento busca fortalecer
os vínculos entre pessoas e instituições que tenham na
educação um compromisso com uma sociedade mais justa e
democrática”, [...].
SD7 – Acredita‐se que a inclusão é um dos caminhos para a
democratização da educação, bem como para ampliar os
direitos, tendo em vista que a educação inclusiva
fundamenta‐se na concepção de direitos humanos, que
reconhece as diferenças como parte da diversidade humana.
SD8 – O PET/Conexões de Saberes do Campus Erechim é um
grupo que desenvolve atividades de ensino, pesquisa e
extensão, voltado a estudantes oriundos de comunidades
populares. Segundo o edital, entre seus objetivos está
possibilitar aos jovens de baixa renda e origem popular que
estudam na Universidade o desenvolvimento de suas
capacidades de produção do conhecimento, em consonância
com seus saberes próprios, formando-os para intervir como
atores das políticas públicas na UFFS – Campus Erechim [...].
SD9 – Promover um espaço de intercâmbio de experiências e
conhecimento em torno da temática “Agroecologia, Juventude
Rural e Universidade Popular: gerando educação e renda para
a permanência no campo com qualidade de vida”, esse é o
objetivo do III Encontro Regional de Agroecologia (Era Sul). [...]
é um evento de caráter regional, que abrange os estados do Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. [...] o público-alvo são
agricultores,
populações
tradicionais,
estudantes,
profissionais e pesquisadores das ciências agrárias,
extensionistas,
militantes
de
movimentos
sociais,
representantes
de
cooperativas,
Sindicatos
de
Trabalhadores
Rurais
(STR´s),
Organizações
Não
Governamentais (ONG's) e cooperativas e governamentais
ligadas ao campo e a questões ambientais.
SD10 – [...] o projeto cultural “In Loco, Música, Cinema e Espaço
Público em Erechim”, [...] promove mais um “Microfone Aberto”.
Desta vez a atividade, que tem como proposta promover
mensalmente a apresentação de grupos musicais locais e
regionais através de intervenções em espaços públicos e
comunitários, acontece no Ginásio do Bairro Atlântico, a partir
das 15 horas. [...]. Segundo o coordenador do projeto, professor
da UFFS – Campus Erechim, Cássio Cunha Soares, a intenção é
tirar um pouco a centralidade da universidade enquanto
espaço, “de as pessoas terem que se deslocar até o Campus
da UFFS para terem acesso aos projetos culturais”.
A SD5 rememora o processo de implantação da
Universidade, destacando o engajamento dos
movimentos sociais como Via Campesina, FetrafSul, além de outros, no processo de construção, onde,
por meio de lutas ambientais e sociais no Brasil, se
batalha para oferecer educação superior de
qualidade e que fosse muito preocupada com essas
grandes questões, situações destacadas e marcada
nos documentos institucionais.
A SD9 faz funcionar o mesmo processo. Destaca todos
os movimentos sociais e pessoas a quem se destina
determinado evento, como em um esforço para
aglomerar pessoas, um movimento inclusivo,
concedendo força ao caráter popular. Assim, coloca
que o evento “Agroecologia, Juventude Rural e
Universidade Popular: gerando educação e renda
para a permanência no campo com qualidade de vida”,
que se caracteriza por ser um evento regional com
abrangência dos três estados do Sul, tem como
público-alvo: agricultores, populações tradicionais,
estudantes, profissionais e pesquisadores das
ciências agrárias, extensionistas, militantes de
movimentos
sociais,
representantes
de
cooperativas, Sindicatos de Trabalhadores Rurais
(STR´s), Organizações Não Governamentais (ONG's)
e cooperativas e governamentais ligadas ao campo
e a questões ambientais.
Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim
45
Merece destaque também o termo Universidade
Popular. Esta caracterização já determina o tom e a
filiação de sentidos que se pretende com o evento. A
imagem de instituição popular encontra-se reforçada
no título do encontro, sendo destacada ainda mais
quando da discriminação detalhada do público-alvo,
movimento que abrange e inclui muitos sujeitos e
instituições filiadas aos movimentos sociais.
Na SD6 e SD7 a questão da educação é destaque. A
partir do momento em que se promove uma educação
comprometida com a emancipação dos seres
humanos, articulando saberes e experiências
acadêmicas e populares denota-se uma preocupação
com uma educação pautada num compromisso com
uma sociedade mais justa e democrática. E, com o
reconhecimento das diferenças, o qual é percebido
em uma educação inclusiva, que as abrange como
parte da diversidade humana, entende-se que a
inclusão é um dos caminhos para a democratização
da educação, bem como para ampliar os direitos.
Neste sentido, a educação é destaque para a promoção
de mudança social, processo que envolve a
emancipação dos seres humanos para uma sociedade
que reconheça na inclusão uma forma de promover
justiça e democracia. Ressoam sentidos de que a
educação é um caminho para a transformação social,
para a promoção da igualdade, da equidade, para a
melhoria da sociedade.
De acordo com a SD8 – O PET/Conexões de Saberes do
Campus Erechim é um grupo que desenvolve
atividades de ensino, pesquisa e extensão, voltado a
estudantes oriundos de comunidades populares. A
partir do momento que promove a inclusão social, por
um lado, o programa exclui por outro. A demarcação
dos sujeitos que podem participar, definido em edital,
determina o ingresso de estudantes de comunidades
populares, ação de inclusão social, mas ao
institucionalizar isto, exclui a participação de outros
sujeitos.
Desta forma, repercute, no entanto, um movimento de
homogeneização dos sujeitos, pois a partir do
momento que podem participar apenas jovens de
baixa renda e origem popular, tendo por finalidade
formá-los para intervir como atores das políticas
públicas na UFFS – campus Erechim e nos seus
territórios de origem, implica em um movimento de
transformação social, como se a consequência desta
ação fosse a padronização dos sujeitos, de acordo com
o que é considerado melhor, mais adequado,
ingressando em outra faixa social, que não mais a
popular, de baixa renda.
A SD10 apresenta um movimento diverso do que a
Universidade vinha apresentando nas sequências. Em
vez de abrir as portas para receber a comunidade
externa, neste a Instituição vai ao encontro da
sociedade, estendendo suas atividades à comunidade,
expandindo suas fronteiras e áreas de atuação.
Assim, tem-se a SD10 – apresentação de grupos
musicais locais e regionais através de intervenções
em espaços públicos e comunitários. Neste
movimento de expansão de suas fronteiras de atuação,
a Universidade busca sua inserção na comunidade,
interagindo e integrando com os sujeitos. Conforme
indicado nesta sequência, a intenção é tirar um pouco
a centralidade da universidade enquanto espaço,
“de as pessoas terem que se deslocar até o Campus
da UFFS para terem acesso aos projetos culturais”,
fazendo um movimento contrário e indo ao encontro
dos espaços públicos urbanos, saindo dos espaços
acadêmicos fechados.
Esta ação realizada pela instituição demarca outra
forma de incluir a sociedade em sua atuação, por meio
da interação social, fruto de projetos culturais focados
a determinadas parcelas sociais. A consolidação desta
identidade popular é constante e recorrente nos
processos institucionais, buscando sempre a
certificação e reconhecimento da comunidade
acadêmica e exterior.
Passa-se, agora, a analisar a RD3, que busca dar conta
dos Programas Institucionais/Sociais da UFFS.
RD3 – Programas Institucionais/Sociais
SD11 – A avaliação institucional também será realizada pelo
público externo. Visando a participação da comunidade
neste processo, será realizado no dia 21 de fevereiro, a partir
das 19h, no auditório da UFFS, o Seminário de Autoavaliação
Institucional com a Comunidade Externa. No evento, que
reunirá lideranças e representantes das entidades da
região de abrangência da UFFS – Campus Erechim [...].
SD12 – [...] Conforme o presidente do Conselho de Campus da
UFFS em Erechim e diretor do Campus, Ilton Benoni da Silva, a
posse dos integrantes do segundo mandato do Conselho têm
um “significado gigantesco” para a instituição, pois marca a
continuidade de um processo de construção de uma vida
universitária baseada nas discussões coletivas. “É de
conhecimento de todos, e penso que não é exagero, dizer que
nós nascemos como Campus já em processos coletivos de
diálogo, decisão e organização”, afirma.
SD13 – O primeiro diz respeito à seleção de estudantes com
possibilidade de requerer auxílios socioeconômicos, que
englobam os auxílios permanência, moradia, transporte e
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015
46
alimentação. [...] Depois dos dados analisados, pode solicitar os
auxílios conforme o Índice de Vulnerabilidade
Socioeconômica (IVS).
SD14 – O objetivo foi apresentar os setores da universidade, os
cursos oferecidos, a forma de ingresso, as políticas de apoio
estudantil e o funcionamento geral da instituição. [...] Para a
estagiária Vânia, a aproximação da universidade com os
estudantes das escolas públicas, sobretudo da classe
popular, é um dos grandes desafios da UFFS. “Muitos
estudantes dos bairros populares ainda não veem a
universidade como uma possibilidade e um direito ao seu
alcance. Por isso, cabe à universidade apresentar a sua
proposta e motivar os estudantes a ingressar no ensino
superior”, diz.
SD15 – [...] pelas histórias que circulavam entre os meios
militantes e ativistas de que esta seria uma universidade
intrinsecamente envolvida com os movimentos sociais.
Quando fui convocado, portanto, considerei dois fatores: de
um lado a possibilidade de participar de um processo de
construção de uma universidade efetivamente engajada
com as lutas e movimentos sociais do país e, de outro,
questões familiares.
A SD11 apresenta o programa de avaliação
institucional que tem por finalidade traçar um quadro
avaliativo para a própria instituição. No entanto,
verifica-se um processo participativo amplo, que
pretende ver o que o público externo tem a dizer.
participação
da
Destaca-se
novamente
a
comunidade, a congregação de lideranças e
representantes das entidades da região de
abrangência da UFFS em um contínuo movimento de
inserção social, consolidando esta identificação com o
popular, desde seu processo de constituição enquanto
instituição.
De acordo com a SD12 e SD15, marca-se o discurso a
formação da UFFS – campus Erechim enquanto
instituição que fora desenvolvida por meio de um
processo de construção de uma vida universitária
baseada nas discussões coletivas, que reflete em uma
universidade intrinsecamente envolvida com os
movimentos sociais. Segundo se destaca, nascemos
como Campus já em processos coletivos de diálogo,
decisão e organização, o que remete à possibilidade
de participar de um processo de construção de uma
universidade efetivamente engajada com as lutas e
movimentos sociais do país.
Nestas sequências, destaca-se novamente a questão do
desenvolvimento enquanto instituição, pautada na
discussão coletiva, considerando os anseios sociais, a
inserção dos movimentos sociais, os quais se referem a
parcelas sociais até então excluídas do processo social-
democrático mas que encontraram lugar e vez nesta
instituição. Destaca-se novamente a filiação à
Formação Discursiva “popular” e à Formação
Ideológica da inclusão, da abertura de espaços sociais.
A SD13 apresenta o programa que concede auxílios
socioeconômicos, que englobam os auxílios
permanência, moradia, transporte e alimentação,
aos estudantes, de acordo com o Índice de
Vulnerabilidade Socioeconômica (IVS). O objetivo é
constituir-se em uma política de manutenção das
parcelas de estudantes provenientes de camadas
populares, ou seja, de parcelas sociais menos
favorecidas economicamente. Através deste índice
(IVS) delimitam-se os sujeitos (de X a Y correspondem
aos menos favorecidos economicamente) que podem
vir a receber auxílio. Os demais que não se enquadram
nesta parcela estão fora do processo. Tal situação, ao
passo que visa a inclusão, contém em si o movimento
contrário, interditando a participação de “todos”.
Já na SD14, retrata-se um movimento de “captação” de
futuros estudantes, por meio da abertura da
Universidade aos estudantes de escolas públicas, para
que estes tenham conhecimento das possibilidades de
ingresso e acesso. Segundo relato da estudante Vânia,
a aproximação da universidade com os estudantes
das escolas públicas, sobretudo da classe popular, é
um dos grandes desafios da UFFS. “Muitos
estudantes dos bairros populares ainda não veem a
universidade como uma possibilidade e um direito
ao seu alcance. Por isso, cabe à universidade
apresentar a sua proposta e motivar os estudantes
a ingressar no ensino superior”. A Universidade
atende ao exposto pela estudante, ao abrir suas portas
e se fazer conhecer, identificando-se com a formação
discursiva “popular” que perpassa todo seu processo
de constituição, em seus documentos oficiais e, de
forma específica, o IS.
Na FD destacada acima, o sentido de inclusão social,
que prevê a inserção dos vulneráveis, é representado
pelos termos escolas públicas, classe popular,
bairros populares, pelo acréscimo constante de
movimentos sociais (Fetraf-Sul, MDA, CUT, MAB,
MST, entre outros), assim como por meio das minorias
sociais, representadas pelas comunidades indígenas,
juventude rural, agricultura familiar, etc. Também
compreende-se o movimento de abertura institucional
como um gesto de inserção social, pois a partir do
momento em que a Universidade abre suas portas para
a participação da sociedade como um todo, inserido
neste processo comunidade acadêmica e comunidade
externa, a inclusão social acaba se tornando
consequência.
Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim
47
O SD16 não foi enquadrado em nenhum recorte, pois
trata da questão do silêncio, da interdição do dizer,
categoria não destacada enquanto regularidade, tendo
em vista sua ocorrência. Assim, tem-se:
SD16 – O Informativo Interno Semanal é produzido
pela Assessoria de Comunicação do Campus Erechim.
As informações aqui divulgadas têm como único
objetivo informar a comunidade acadêmica sobre
ações cotidianas do Campus e de interesse de
docentes, estudantes e técnico‐administrativos. Esses
dados não devem ser utilizados para divulgação ao
público externo. Em caso de solicitações neste
sentido a Assessoria de Comunicação deverá ser
informada.
Embora haja uma ligação à FD “popular”, a qual
perpassa toda a filiação de sentidos, é possível
constatar que certos sentidos neste discurso são
silenciados. De acordo com o IS, Esses dados não
devem ser utilizados para divulgação ao público
externo. Apesar de se tratar de um gênero de
circulação
institucional,
de
veiculação
das
informações ocorridas semanalmente na rotina
acadêmica, estas estão circunscritas à comunidade
interna, sendo vetada a divulgação externa,
movimento contraditório, uma vez que, conforme
presente na materialidade discursiva, há um constante
movimento de inclusão da comunidade no seio
acadêmico. Neste momento, ocorre o oposto, um
fechamento, uma exclusão da sociedade externa.
Orlandi assevera que “[...] falar é esquecer. Esquecer
para que surjam novos sentidos mas também esquecer
apagando os novos sentidos que já foram possíveis mas
foram estancados em um processo histórico-político
silenciador. São sentidos que são evitados, designificados” (ORLANDI, 1999, p. 61-62).
No entanto, estes sentidos silenciados, censurados,
não desaparecem completamente, restam resquícios,
marcas de discurso em suspenso, impregnados na
memória. Ainda segundo a autora, concordando com
esta perspectiva, “[...] não há como não considerar o
fato de que a memória é feita de esquecimentos, de
significação. De sentidos não ditos, de sentidos a não
dizer, de silêncios e de silenciamentos” (ORLANDI,
1999, p. 59).
A memória está sujeita a “furos”, “buracos”, que
correspondem a lugares em que, devido à interdição,
ao silenciamento, o sentido “falta” desaparece, uma vez
que este processo faz com que as FDs sejam
silenciadas, interditadas; Situação que inviabiliza que
certos sentidos possam fazer (outros) sentidos.
Pensada a noção de censura pela noção de silêncio,
esta compreende qualquer processo de silenciamento
que limite o sujeito no percurso de sentidos.
Durante o período que compreende o recorte feito no
corpus de análise deste estudo, aconteceram
movimentos estudantis, movimentos grevistas,
paralisações de servidores em virtude de greve, entre
outros. No entanto, no IS, não houve ocorrência destes
fatos, não sendo discursivisado, incorporado à rede de
sentidos. Assim, este silenciamento, conforme defende
Orlandi, constitui uma tentativa de interdição dos
sentidos, fazendo com que estes não se fixem na
memória discursiva, no interdiscurso.
Embora se tratassem de movimentos da comunidade
acadêmica, que perpassam valores e sentidos da FD
“popular”, estes foram silenciados no discurso oficial,
pois segundo as orientações institucionais sobre a
Comunicação, de acordo com a Instrução Normativa nº
005/2014, os informativos devem enfocar aspectos
positivos da imagem institucional, construindo-a a
partir da divulgação de ações e atividades que
remetam este valor à comunidade.
Ainda sobre o silêncio, Orlandi (2007, p. 53) coloca que
“[...] ao dizer algo apagamos necessariamente outros
sentidos possíveis [...]. Assim, o silêncio é constitutivo
do dizer: ao enunciar x apaga-se a possibilidade de
enunciar y e z... [...].”.
Silenciar sentidos é preciso, uma vez que a língua não
permite que se diga tudo, sempre algo escapa, falta,
desliza. Quanto mais se fala, mais silêncio se instala,
maior gama de sentidos se fazem presentes e a
completude se torna apenas uma ilusão (necessária),
um fecha aspas, um ponto final, sem, no entanto,
cercear os sentidos possíveis. Algo sempre fica no
silêncio.
Com isto, ao se tratar da Formação Discursiva
“popular” quando da institucionalização de uma
imagem positiva da Universidade, que corrobora com
os princípios “norteadores” presentes no discurso
oficial, chama-se a atenção para determinados
sentidos, circunscritos a esta rede de sentidos, porém,
interdita-se outros. Sentidos estes filiados a
Formações Ideológicas distintas, mas na qual a FD
“popular” encontra base para fixar seu discurso, fazer
circular determinados sentidos e não outros, criando o
movimento de identificação na materialidade
discursiva dos Informativos Semanais.
As FIs presentes no material analisado podem sem
compreendidas nas seguintes temáticas: discurso da
inclusão social; discurso sindicalista, representado
pelos movimentos sociais; discurso público; entre
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015
48
outras. Todavia, embora exista esta diversidade de FIs,
o gesto de análise focou-se na FD “popular”, que
perpassa os discursos trabalhados e orienta para o
processo de criação e consolidação da identidade
institucional, movimentos de identificação com o
discurso oficial, que se iniciam no processo de
constituição da Universidade e se concretizam ao
longo de sua caminhada.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A constituição da UFFS enquanto universidade
popular é um fato recorrente e muito marcado na
materialidade dos discursos veiculados no IS.
Identifica-se, desde sua criação, o envolvimento da
sociedade, quer seja pelos movimentos sociais que
influenciaram o processo, quer seja pela abertura
institucional e constante demanda de participação da
comunidade acadêmica e externa.
Os espaços abertos pela UFFS para a inserção social
vão ao encontro com a formação discursiva “popular”
que atravessa os seus discursos. Neste aspecto, cria-se
um movimento de filiação com a FD, na qual a
Universidade atende e alimenta a identificação criada.
A construção da UFFS, em seu discurso oficial, está
impregnada por diversas vozes, composta pelos
movimentos sociais, que intervieram no processo
desde a consolidação inicial da universidade, situação
que deixa marcas em seu movimento identitário e
acaba direcionando ações. Desta forma, a formação de
uma imagem positiva no IS implica em transparecer os
compromissos
institucionais
assumidos
nos
documentos
constitutivos,
que
a
marcam,
institucionalmente, deste seu surgimento.
O processo de identificação é constante. Nunca se tem
uma identidade definida, formada, completa, pois esta
encontra-se em contínua construção. O mesmo ocorre
com a imagem institucional da UFFS, em que se
depreendem processos de identificação, de acordo
com a formação discursiva e ideológica a que se filia,
integrando discursos que se fixam na memória
discursiva, no interdiscurso, criando uma imagem com
certa estabilidade, porém não fixa, concluída, acabada.
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Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015
51
VOZES DA DESRAZÃO
–
A SUBJETIVAÇÃO
NO DISCURSO
BIPOLAR
VOCES SINRAZÓN – LA SUBJETIVIDAD EN EL DISCURSO BIPOLAR
VOICES OF UNREASON: SUBJECTIVATION IN BIPOLAR DISCOURSE
Camila De Almeida Lara ∗
∗
M es t ra nd a d o P r o g ra ma d e P ó s -G rad uaç ão em L ing uís tic a d a U n iv ers id a d e F ed er al d e S ant a C a tar in a. E s p ec ia lis t a e m
T eo rias L ing uís tic as C o nt e mp o râ ne as p ela U n iv ers id ad e Fed er al d a F ro n tei ra S ul, c a mp us E rec him . E -mai l :
c ami laa lar a0 4 @g mai l.c o m.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015.
52
RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT
RESUMO : Nesse trabalho, a partir do pensamento de Michel Foucault sobre o sujeito,
o discurso e o poder, propõe-se uma análise de discursos produzidos por dois sujeitos
ditos portadores do transtorno bipolar publicados no site Mental Help, na forma de
depoimentos. Nesses discursos procura-se saber se é possível perceber que o processo
discursivo é o lugar onde os sujeitos inscrevem-se e ao mesmo tempo resistem a uma
dada ordem do discurso na qual estão inseridos, nesse caso o site. Para analisar tal
processo discutem-se as ideias de sujeito e subjetividade bem como a caracterização
de normal e patológico e a construção da bipolaridade enquanto produção discursiva.
As conclusões apontam que embora marcas de subjetivação como forma de
resistência possam ser encontradas nas enunciações bipolares, os sujeitos ainda
inscrevem-se na ordem discursiva médico-psiquiátrica.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Subjetividade. Transtorno bipolar.
RESUMEN: En este trabajo, a partir del pensamiento de Michel Foucault sobre el
sujeto, el discurso y el poder, se propone un análisis de discursos producidos por dos
sujetos dichos portadores del transtorno bipolar publicados en el sitio Mental Help en
forma de testimonios. En estos discursos se busca saber si es posible percibir que el
proceso discursivo es el lugar en donde los sujetos se inscriben y, al mismo tiempo, se
oponen a una dada orden del discurso en la cual están sometidos, en este caso, el sitio.
Para analizar tal proceso se discute las ideas de sujeto y subjetividad así como la
caracterización de lo normal y patológico y la construcción de la bipolaridad como
producción discursiva. Las conclusiones señalan que, aunque los rasgos de
subjetivación como forma de resistencia pueden encontrarse en las enunciaciones
bipolares, los sujetos todavía se inscriben en la orden discursiva médico psiquiátrica.
PALABRAS CLAVE: Discurso. Subjetividad. Transtorno bipolar.
ABSTRACT: The aim of this article is, from the thought of Michel Foucault on the
relation between subject, discourse and power, to propose an analysis of discourses
produced by two subjects said to be patients of bipolar disorder. The speeches were
published on the Mental Help site in the form of testimonials. In these testimonials we
seek to know if it is possible to notice that the discursive process is where the subjects
are part of and at the same time resist to the discursive order in which they are
inserted, in this text, the site. To analyze this process, we discuss the ideas of subject
and subjectivity as well as the characterization of normal and pathological and the
construction of bipolarity as a discursive production. The findings indicate that
although subjectivity marks as a form of resistance can be found in bipolar utterances,
the subjects are still inserted on the medical-psychiatric discursive order.
KEYWORDS: Discourse. Subjectivity. Bipolar disorder.
Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar
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1 INTRODUÇÃO
A figura do louco se produz por meio dos discursos
proferidos e a doença mental só tem realidade e valor
de doença no interior de um dispositivo que a produz e
a reconhece (FOUCAULT, 1975). Se o dispositivo 1
produz a doença mental como fato mórbido haveria
uma diferença entre o normal e o louco, entre o normal
e o patológico.
Assim, a ideia que temos da loucura se reporta a uma
“coisa em si”, a uma realidade que ela pretende
apresentar. Se a loucura existe e não é uma mera
criação discursiva, tudo que se pensa e pensou sobre
ela marca sua existência. Isso implica em que apenas
atingimos a verdade sobre a loucura através da ideia
que formamos dela em cada época (VEYNE, 2011).
A partir dessa relação de produção discursiva sobre a
loucura, a anormalidade e seus regimes de dizer, este
trabalho, desenvolvido em duas etapas, uma teórica e
uma analítica, tem como objetivo refletir sobre a
possibilidade de processos de subjetivação como
formas de resistência, a partir de discursos produzidos
em mídias eletrônicas pelo sujeito dito bipolar.
2 SUJEITO E FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO
A problematização do sujeito é um dos pontos
primordiais nos trabalhos de Michel Foucault que,
segundo Bruni (1989, p. 01), iniciou um duplo escândalo
ao anunciar, na obra As palavras e as coisas, a morte do
homem; primeiro, pois esse homem não é uma
realidade plena, mas uma figura do saber
contemporâneo, “um efeito produzido pelas novas
estruturas da epistemé surgida no fim do século XVIII”;
segundo, pois é o homem “[...] que impede o
pensamento de pensar ou que leva a saberes confusos,
heteróclitos e incertos como são os saberes das
modernas Ciências Humanas”. Weinmann (2006)
acredita que essa postura decorre da presunção de um
conceito de sujeito universal e constituinte da
experiência humana. Esse sujeito seria o elemento que
dispõe de toda produção discursiva com pretensão de
cientificidade.
O autor (2006, p.16) argumenta que, para analisar um
sujeito em sua constituição histórica, é fundamental
adotar uma atitude cética em relação aos universais
antropológicos – verdades universais quanto à
natureza humana ou às categorias que se aplicam ao
sujeito - encontrados nas práticas discursivas, uma vez
que suspeitar desses universais traz como
questionamento quais as condições que permitem
reconhecer um sujeito como doente mental. Assim, a
“constituição de um sujeito se dá na imanência de um
corpo de saberes, que o toma como objeto, na forma de
um conhecimento legítimo”.
O trabalho de Foucault, segundo Butturi Junior (2012,
p.83), aponta em sua problematização do sujeito duas
possibilidades: a partir de práticas coercitivas e
segundo o imperativo das práticas de si. Nessa segunda
etapa – o imperativo das práticas de si – Foucault
procura investigar o modo de relação que os sujeitos
têm consigo mesmo, como o indivíduo constitui-se
como sujeito de suas próprias ações. Essa experiência
de si, porém, não significa ir em busca de um eu
genuíno e livre de qualquer contaminação, ao invés
disso “[...] implica a constituição de si como sujeito
moral, tomado como efeito de subjetivação,
sustentado em exercícios e práticas de si histórica e
socialmente localizáveis”. (SOUZA, 2003, p. 39).
Para Souza (2003), o projeto do filósofo francês se
concentra em estudos acerca das condições em que
surgem práticas de liberdade nas quais o sujeito se
transforma em um processo onde a subjetividade está
associada a diferentes domínios que “[...] no limite do
código moral, descrevem um movimento incessante
de subjetivação” (SOUZA, 2003, p. 38).
Segundo Bampi (2002, p.130), a produção de Michel
Foucault possibilita a análise sobre o modo como os
indivíduos são conduzidos e conhecidos por outros
indivíduos e, a esse ponto de contato “[...] entre o modo
como se dá essa condução e esse conhecimento e
modo pelo qual os indivíduos se conduzem e
conhecem a si próprios”, Foucault chama de governo:
Foucault destaca a importância de levar em
conta não apenas as técnicas de dominação,
mas também as técnicas do eu. Isso implica
atentar para a interação entre esses dois tipos
de técnicas, ou seja: para os pontos em que as
tecnologias de dominação dos indivíduos uns
sobre os outros recorrem a processos pelos
quais o indivíduo age sobre si mesmo e, em
contrapartida, os pontos em que as técnicas
do eu são integradas em estruturas de
coerção. (BAMPI, 2002, p. 130)
1
Entende-se por dispositivo o proposto por Deleuze (1990): o conjunto multilinear de enunciações formuláveis, os objetos visíveis, os sujeitos em dadas
posições, as três grandes instâncias que Michel Foucault distingue – Saber, Poder e Subjetividade.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015.
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De acordo com Weinmann (2006), inquirir acerca da
constituição de um discurso requer que se coloque o
problema da liberdade dos sujeitos e sua relação com a
verdade. Isso significa pensar as formas de resistência
ao poder que se realizam através das práticas
coercitivas e do imperativo das práticas de si. Essas
práticas nos interessam à medida que tornam o
discurso do sujeito bipolar um discurso de resistência.
A partir dos conceitos de sujeito e formas de
subjetivação torna-se necessária a discussão sobre a
normalidade e a patologia e sobre o processo de
construção discursiva do sujeito bipolar, para então se
analisar as marcas de subjetivação como formas de
resistência que aparecem no discurso bipolar.
Weinmann (2006) também afirma que a genealogia
foucauldiana torna densa a constitutividade entre
liberdade e poder, pois Foucault assume uma incitação
recíproca de poder ou resistência, legando à
subjetividade um papel tático de modificações
microfísicas no interior dos dispositivos e dos
diagramas. Weinmann (2006) ressalta que essa tensão
de nunca acabar provoca uma luta na produção da
subjetivação:
3 ESTIGMA E IDENTIDADE - A NORMALIDADE, A
PATOLOGIA
E
A
CONSTRUÇÃO
DA
BIPOLARIDADE
É porque há forças no sentido do seu
assujeitamento que a subjetividade resiste e
toma a si própria como objeto de elaboração.
Entretanto, nesse movimento não se funda a
si mesma, nem descreve a verdade inalienável
do seu ser, contrapondo-se às identidades
impostas pelos dispositivos em que se insere.
Nessas práticas de liberdade, é ainda em
relação a critérios de verdade historicamente
estabelecidos que o sujeito constitui-se [...]
(WEINMANN, 2006, p.18)
No caso do poder e das práticas de assujeitamento, a
hipótese formulada por Foucault é de que haveria três
tipos de tecnologia política: a do suplício, ligada ao
poder do soberano, a da punição, cujo objetivo era
reformista, e a disciplinar, fundamentada num poder
sobre o corpo produtor de interioridade. De acordo
com Butturi Junior (2012, p.84) “[...] essa última
configuração do poder é justamente capaz de produzir
a alma no corpo como um efeito de poder".
A hipótese da sujeição total é, segundo Butturi Junior
(2012), contestada no texto de Foucault, de 1979, Sobre
a prisão, pois o autor considera que existe resistência
mesmo quando se exerce o poder do soberano,
justamente porque seus atos seriam capazes de
transformar os afetos da multidão. Em O uso dos
prazeres, Foucault passa a investigar aquilo que
engendra as resistências, ou seja, as relações que os
sujeitos travam com a verdade e o poder.
Para Souza (2003, p.42), o conceito de Foucault sobre
resistência mostra-se diretamente ligado ao de formas
de subjetivação, uma vez que “[...] resistir e subjetivarse remetem a um modo de produção do sujeito cujas
relações de força agem tencionando-se, mas nunca
obstruindo-se”.
O que hoje se produz discursivamente como normal
está ligado à norma, à regra. Canguilhem (2000) afirma
que a norma designa o enquadramento, o que não está
à direita ou à esquerda, o que está no meio. Deste modo,
é normal aquilo que "está em conformidade". Mas, há
também um sentido usual, comum, que se refere à
maioria dos casos em uma determinada espécie. “A
norma é aquilo que fixa norma a partir de uma decisão
normativa”(CANGUILHEM, 2000, p. 95).
Para Foucault (2001, p. 62), a ideia de Ganguilhem
sobre a normalidade é importante uma vez que a
norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de
qualificação e um princípio de correção. Ou seja, a
norma não tem por função excluir ou rejeitar, “[...] ao
contrário, ela está sempre ligada a uma técnica
positiva de intervenção e de transformação, a uma
espécie de poder normativo”.
Foucault (1975) questiona sob quais condições seria
possível falar de doença mental no campo da
psicologia e quais relações poderiam se definir entre
os fatores da patologia mental e os da patologia
orgânica. Segundo o filósofo, todas as psicopatologias
ordenaram-se segundo dois problemas
[...] as psicologias da heterogeneidade que se
recusam [...] a ler as estruturas da consciência
mórbida em termos de psicologia normal; e, ao
contrário, as psicologias analíticas ou
fenomenológicas que procuram aprender a
inteligibilidade de toda a conduta, mesmo
demente, nas significações anteriores à
distinção do normal e do patológico.
(FOUCAULT, 1975, p.5)
Para Foucault (1975), a confusão sobre a distinção
entre o normal e o patológico na medicina mental
provém do fato de se dar – na medicina mental – o
mesmo sentido, de se aplicar maciçamente às noções
de doença, de sintomas e de etiologia que se aplicam na
medicina orgânica, conceitos esses que deveriam ser
utilizados apenas na medicina somática. O cerne da
Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar
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patologia mental não deveria ser procurado em uma
“meta-patologia”, mas na relação histórica entre “o
homem e o homem louco e o homem verdadeiro”
(FOUCAULT, 1975, p.5).
Assim, o filósofo francês (2001) analisa, em Os
anormais, curso ministrado no Collège de France, entre
1974 e 1975, o domínio da anomalia constituído a partir
de três elementos que começam a se isolar e a se
definir a partir do século XVIII. Ao primeiro desses
elementos Foucault (2001) nomeia de monstro humano:
A noção de monstro é essencialmente uma
noção jurídica - jurídica, claro, no sentido lato
do termo, pois o que define o monstro é o fato
de que ele constitui, em sua existência mesma
e em sua forma, não apenas uma violação das
leis da sociedade, mas uma violação das leis da
natureza. Ele é, num registro duplo, infração
às leis em sua existência mesma. (FOUCAULT,
2001, p.69)
O segundo elemento que compõe o domínio da
anomalia é o que Foucault (2001) chama de indivíduo a
ser corrigido. Enquanto o contexto de referência do
monstro humano era a natureza e a sociedade, o
contexto de referência do indivíduo a ser corrigido é
limitado à família, à escola, à polícia. Outra diferença
entre o monstro e o indivíduo a ser corrigido é a taxa
de frequência com que essas anormalidades
apareceriam. Enquanto o monstro humano é uma
exceção, o indivíduo a ser corrigido é um fenômeno
recorrente, e “[...] é esse seu primeiro paradoxo – a
característica de ser, de certo modo, regular na sua
irregularidade” (FOUCAULT, 2001, p.72).
O terceiro pilar da construção da anomalia seria o da
criança masturbadora, cujo campo de aparecimento
seria um espaço restrito, a cama, o corpo e não mais a
natureza e a sociedade ou a família como nos casos do
monstro humano e do indivíduo a ser corrigido.
Segundo Foucault (1975), a medicina mental tentou
inicialmente decifrar a essência da doença mental,
agrupando sinais que a indicariam. Constituíram-se
então uma sintomatologia na qual são realçadas as
correlações constantes, ou somente frequentes entre
um tipo de doença e sua manifestação débil. E, também,
uma nosografia na qual as formas da doença são
analisadas segundo suas fases de evolução, a
2
Nesta seção, em nenhum momento se adotou uma postura
teleológica ou naturalizante em relação aos discursos de produção da
bipolaridade. O que se mostra é, pelo contrário, como os discursos
alternância de sintomas e a sua evolução no decorrer
da doença.
Nesse contexto teórico de produção discursiva das
patologias, é preciso que se volte à constituição do
conceito de "bipolaridade", a partir das séries
discursivas que o constituem 2. Sabe-se que o que se
produz discursivamente como “bipolaridade” remonta
há vários séculos e evidencia a ideia de Foucault sobre
a sintomatologia e a nosografia das doenças mentais.
De acordo com Del Porto (2004), os termos "mania" e
"melancolia" que apareciam entre os antigos ainda hoje
correspondem a seus conceitos originais. Foi Araeteus
da Capadócia (que viveu em Alexandria no século I
d.C.) quem escreveu os principais textos que chegaram
aos dias atuais, referentes à disfunção de humor. Foi
ele também o primeiro a estabelecer um vínculo entre
a mania e a melancolia, concebendo-as como aspectos
diferentes do mesmo problema que, embora mais
abrangentes e imprecisos, em seus aspectos principais,
remetem às séries de discurso que descrevem o que
hoje se produz como doença bipolar.
Del Porto (2004) ressalta, ainda, que na França, no
século XIX, Falret e Baillarger descreveram,
independentemente, formas alternantes de mania e
depressão, nomeadas por Falret de folie circulaire e por
Baillarger de folie à double forme e que representariam
formas alternantes de uma única doença. Essa
descrição corresponderia às primeiras concepções
explícitas de uma doença maníaco-depressiva como
entidade nosológica única (ALCANTARA et al., 2003).
No entanto, foi Kraepelin que, ao separar as psicoses
em dois grandes grupos, da demência precoce e da
insanidade maníaco-depressiva, consolidou os
conceitos em que as modernas classificações baseiamse (DEL PORTO, 2004).
De acordo com Del Porto (2004), até o fim da década de
1890, Kraepelin dividia a enfermidade maníacodepressiva em numerosos e complexos subtipos, mas
na sexta edição de seu Tratado de Psiquiatria ele
adotou um ponto de vista unitário, considerando que a
enfermidade maníaco-depressiva abrangia os estados
depressivos, a mania simples e os quadros circulares.
Na oitava edição de seu tratado, Kraepelin incluiu a
maioria das formas de melancolia e da mania em seu
conceito de insanidade maníaco-depressiva. Pouco
tempo suas ideias – que se baseavam em um modelo
médico fortemente enraizado em observações clínicas
assimilaram diversos conceitos e objetos para forjar o aparecimento
de 'algo'.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015.
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mas que não excluíam os fatores psíquicos e sociais –,
alcançaram grande aceitação na psiquiatria europeia.
Discursivamente, é possível observar como os
mecanismos postulados por Foucault, em A ordem do
discurso (1996), para controlar a proliferação
discursiva são coordenados para a produção do
discurso da medicina acerca da então chamada
psicose maníaco-depressiva.
De uma perspectiva de ordenação dos discursos,
quando Kraepelin retoma os conceitos de Falret e
Baillarger, nota-se o que Foucault (1996) caracterizou
como o primeiro procedimento interno de controle
dos discursos: o princípio do comentário, ou seja, o
desnível entre os textos do século XIX sobre a
caracterização da doença maníaco-depressiva e os
tratados de Kraepelin, que desempenham papéis
solidários.
Esse princípio é o que permite construir
indefinidamente novos discursos e diz pela primeira
vez aquilo que já havia sido dito e repete o que não
havia sido dito. O comentário seria uma forma de dizer
algo além do texto, mas sob a condição de que o texto
mesmo seja dito e de certo modo realizado. Como
postulava Foucault (1996, p.26), “[...] o novo não está no
que é dito, mas no acontecimento de sua volta” Assim,
são os comentários que perfazem as novidades sobre a
suposta doença, retomando discursos anteriores e
construindo um verdadeiro (devidamente discursivo)
para a "patologia".
O segundo princípio de rarefação do discurso, o autor,
também é visualizado na construção discursiva da
bipolaridade. É no nome de Kraepelin que está a
garantia da coerência da noção de bipolaridade, uma
vez que foi ele quem agrupou os discursos sobre a
bipolaridade, tornando seu trabalho, para a medicina
mental, a origem das significações da doença bipolar.
No entanto, segundo Foucault (1996), desde o século
XVII, a função do autor se enfraquece no discurso
científico e apenas nomeia uma síndrome, um teorema.
Essa ausência é fundamental para a constituição da
patologia, visto que o discurso da ciência se pauta pelo
apagamento subjetivo, pela crença na verdade factual.
Os discursos produzidos sobre a bipolaridade também
seguem um terceiro princípio de controle do discurso,
a disciplina, que se opõem tanto ao princípio do
comentário quanto ao do autor. Diante desses, a
disciplina constitui “[...] um sistema anônimo à
disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem
que sentido ou validade estejam ligados a quem
sucedeu ser seu inventor” (FOUCAULT, 1996, p.30).
Nas disciplinas, “ [...] o que é suposto no ponto de
partida não é um sentido que precisa ser redescoberto
[...] mas aquilo que é requerido para a construção de
novos enunciados” (FOUCAULT, 1996, p.30).
Segundo Foucault (1996), o princípio da disciplina
constrói-se a partir de proposições que podem conter
erros, que têm funções positivas e uma eficácia
histórica, e também de “verdades”. Assim, os primeiros
discursos sobre a doença bipolar fazem parte dos erros
mencionados pelo autor com função positiva, pois a
partir dos conceitos formulados anteriormente é que
Kraeplein esquematiza os sintomas da doença e
descreve-a como uma única enfermidade, operando
positivamente para a produção de um campo
autônomo para a disciplina - psiquiátrica ou
psicológica.
Essa construção discursiva de insanidade maníacodepressiva, no interior da disciplina psiquiátrica, é
exposta de maneira clara em Foucault. Na obra Doença
mental e Psicologia, o filósofo (1975) esquematiza
descrições clássicas das doenças mentais para fixar o
sentido originário desses termos, ressaltando que
algumas descrições cujo arcaísmo foram resultado e
ponto de partida. A descrição da mania e da depressão
são relevantes sobremaneira para esta pesquisa:
Magnan denominou "loucura intermitente"
esta forma patológica, na qual vêem-se
alternar, a intervalos mais ou menos longos,
duas síndromes entretanto opostas: a
síndrome maníaca, e a depressiva. A primeira
compreende a agitação motora, um humor
eufórico ou colérico, uma exaltação psíquica
caracterizada pela verborragia, a rapidez das
associações e a fuga das idéias. A depressão,
ao contrário, apresenta-se como uma inércia
motora tendo com o fundo humor triste,
acompanhada de hipo-atividade psíquica. Às
vezes isoladas, a mania e a depressão estão
ligadas mais frequentemente por um sistema
de alternância regular ou irregular [...]
(FOUCAULT, 1975, p.7)
Para Foucault (1975), essas análises têm a mesma
estrutura conceitual que as da patologia orgânica, pois
utilizam os mesmos métodos para organizar os
sintomas em grupos patológicos. Ou seja, supõe-se que
a doença é uma essência apontada pelos sintomas que
a manifestam. Anterior a eles, se descreve um fundo
esquizofrênico disfarçado sob sintomas obsessivos
[...] mas anterior a eles, e de certo modo
independente deles; descrever-se-á um fundo
esquizofrênico
oculto
sob
sintomas
obsessivos; falar-se-á de delírios camuflados;
supor-se-á a entidade de uma loucura
maníaco-depressiva por detrás de uma crise
Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar
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maníaca ou de um episódio depressivo.
(FOUCAULT, 1975, p.8)
Assim, ao lado do estigma sobre a essência da doença
mental existe um postulado naturalista que considera
a doença como uma espécie botânica, como essência
natural manifestada por sintomas específicos. Entre a
patologia orgânica e a patologia mental não haveria
“[...] uma unidade real, mas uma semente, e por
intermédio destes dois postulados, um paralelismo
abstrato” (FOUCAULT, 1975, p.08). Ou seja, o problema
da unidade humana e da totalidade psicossomática
permaneceriam abertos.
Segundo Foucault (1975, p.9), o peso desses problemas
fez derivar a patologia para novos métodos e
conceitos. A noção da doença mental como totalidade
psicológica faz crer que a doença seria uma “alteração
intrínseca da personalidade, desvio progressivo de seu
desenvolvimento”. A doença mental só teria realidade
e sentido no interior de uma personalidade
estruturada, elemento no qual se desenvolve e critério
que permite julgá-la, “é ao mesmo tempo a realidade e
a medida da doença” (FOUCAULT, 1975, p.10)
Foucault (1975) ressalta que é somente pelo artifício da
linguagem que se pode atribuir o mesmo sentido às
doenças do corpo e às doenças do espírito. Assim, a
noção de personalidade na psiquiatria tornou difícil a
distinção entre normal e patológico. Citando Beuler,
Foucault (1975) demonstra essa dificuldade quando se
opõem dois pólos da patologia mental, o das
esquizofrenias com ruptura do contato com a
realidade, e o grupo das loucuras maníacodepressivas, psicoses cíclicas, com o exagero das
reações afetivas. Essa análise parece definir tanto as
personalidades normais quanto as mórbidas, uma vez
que não depende de uma visão precisa dos processos;
ela permite somente uma apreciação qualitativa que
ocasiona todas as confusões.
Como se pode notar, desde o século XIX até a
contemporaneidade,
ao
longo
dos
estudos
médico/psiquiátricos sobre a bipolaridade, a produção
do conceito de bipolaridade, os objetos afetados por
ele e os sujeitos então constituídos têm sido
deslocados. Nesse processo, várias nomenclaturas
foram atribuídas a fim de circunscrever a suposta
doença. Assim é que a psicose maníaco-depressiva de
outrora foi renomeada para Transtorno Bipolar e hoje
também é chamada de Espectro Bipolar. Para Fukue
(2011), a mudança da nomenclatura “psicose maníacodepressivo” para “transtorno bipolar” procurou
atenuar o carma que o termo “maníaco” conferia
àqueles que sofrem do transtorno. Na psiquiatria, o
termo “maníaco” refere-se aos quadros de euforia
(mania) apresentados pela pessoa afetada pelo
transtorno afetivo bipolar e, em seu sentido
pejorativo, evidencia a ideia de louco. A mudança do
nome da doença busca, em parte, redefinir/determinar
a pessoa que sofre com a oscilação entre quadros de
euforia (mania) e momentos de depressão, afetando
diretamente na produção dos sujeitos bipolares e sua
relação com a patologia e/ou a loucura.
A mudança do nome da doença deixa evidente a ideia
de um conceito flutuante sobre ela. A denominação
Espectro Bipolar é utilizada pela psiquiatria e amplia a
prevalência do transtorno bipolar na população em
geral. No entanto, essa definição é ainda polêmica, uma
vez que o próprio conceito de "espectro bipolar" ainda
não foi adequadamente avaliado em estudos
populacionais (FUKUE, 2011).
Mesmo com as dificuldades para elaborar uma
definição conceitual e um objeto específico que
constituam a "personalidade maníaco-depressiva",
estima-se, segundo a ABTB (Associação Brasileira de
Transtorno Bipolar), que cerca de 1,8 a 15 milhões de
brasileiros sejam “portadores do transtorno”, nas suas
diferentes formas de apresentação. De acordo com a
ABTB, atualmente o chamado Transtorno Bipolar (TB)
é caracterizado, pela psiquiatria, por alterações de
humor que se manifestam como episódios depressivos
alternando-se com episódios de euforia (também
denominados de mania), em diversos graus de
intensidade.
O Transtorno Bipolar seria, de acordo com os discursos
médico/psiquiátricos recentes, condição médica
frequente. O TB tipo I, se caracterizaria pela presença
de episódios de depressão e de mania e, em tese,
ocorreria em cerca de 1% da população geral.
Considera-se os chamados “quadros mais brandos” do
que hoje se denomina “espectro bipolar”, como o
Transtorno Bipolar tipo II (caracterizado pela
alternância de depressão e episódios mais leves de
euforia - hipomania); a prevalência pode chegar a até
8% da população.
Os inúmeros sujeitos considerados como "portadores
de transtornos bipolar", na atualidade 3, procuram
3
Ressalta-se que, na presente pesquisa, adota-se uma postura de
suspensão acerca da verdade dos conceitos da doença bipolar que se
aplicam aos sujeitos portadores do transtorno, uma vez que somente
com essa postura pode-se chegar a uma forma de um conhecimento
legítimo como proposto por Weinmann (2006).
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015.
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ajuda em diferentes espaços midiáticos e através de
depoimentos concedidos a sites como o Mental Help,
expressam seus conflitos internos e externos,
produzindo assim discursos variados. Na próxima
seção, serão analisados dois depoimentos de sujeitos
bipolares publicados no site Mental Help (2014). É nesse
espaço de subjetivação que o presente texto aponta
que é possível evidenciar marcas de subjetividade
como formas de resistência, no discurso bipolar.
4 AS VOZES DA DESRAZÃO
A construção de um "verdadeiro discursivo" sobre a
loucura só é atingida a partir da ideia que formamos
dela por meio de discursos produzidos sobre a doença
mental nos dispositivos em que ela se manifesta. Os
discursos médico/psiquiatras apontam uma nosologia
clara sobre a sintomatologia bipolar e seguem os
mecanismos de controle da proliferação discursiva;
são coordenados para a produção do discurso da
medicina acerca da então chamada psicose maníacodepressiva.
me da a impressão de que estou muito mal. Desde o dia
que descobri me senti feliz e até mesmo agradecida, pois
só assim entendi a vida louca que tive até o hoje. Meus
amigos ficaram tão felizes quanto eu pois ´so assim eles
entenderam que não fazia nada por mal. Tenho 40 anos
sou casada tenho três filhos 20, 13 e 09 anos, meu marido
foi a única pessoa que já me conheceu em crise e mesmo
sem saber em alta ou em baixa ele sempre foi meu porto
seguro. Me trato hoje pois fui investigar um problema do
meu filho mais velho e lendo o livro tendência a distração
me vi e o que foi mais triste vi meu filho do meio também,
luto hoje para ajuda-lo a superar e seguir a vida. Fiz um
grupo de estudo com 5 pessoas, la descobri o quanto é
doloroso não se aceitar. Eles vivem mal são tristes,
escondem das pessoas como parentes e amigos, por
vergonha ou até mesmo raiva e deixam passar o que a
vida tem de melhor o amor de quem nós ama. Gostaria
muito que todos vocês que se sentem tristes por serem
assim parecem por alguns minutos todos os dias se
olhassem no espelho e dissesse oi amigo me ajuda a
passar mais este dia pois eu te amo. Vou encerrar pois
seria capaz de passar o dia contando fatos ótimos que me
aconteceram desde a descoberta. Beijos
Depoimento 02
É, pois, no entendimento dos sujeitos bipolares não
como realidade plena, mas como figuras produzidas
pelo saber contemporâneo que se propõe um esboço
para uma análise de processos de subjetivação como
formas de resistência nos discursos produzidos por
esses sujeitos. A fim de observar os processos de
constituição dessa forma de sujeito, bem como de suas
possibilidades de resistência, este artigo tomou como
corpus de análise dois depoimentos publicados no
Mental Help. Partiu-se do princípio de que eles não
esgotam uma teoria geral das formas de subjetividade
em relação à suposta patologia, mas apontam traços
importantes para se entender o funcionamento
discursivo da produção de si via discurso.
O site Mental Help, criado por Rubens Pitliuk,
psiquiatra chefe do hospital Albert Einstein e sua
equipe, aborda doenças e tratamentos psiquiátricos e
disponibiliza uma seção em que é possível postar
depoimentos acerca do transtorno bipolar. Nessa
seção, foram escolhidos dois depoimentos publicados
no site e que estão transcritos, a seguir, na íntegra.
Depoimento 01 4
oi tenho bipolariade e sou dda, descobri que tenho essa
particularidade a dois anos, chamo de particularidade
pois a trato com todo carinho, pois dizer que sou doente
sofro de bipolaridade de humor, um nome novo para
substituir um outro, que rotula a pessoa de forma cruel.
Depois de nove meses vivendo feliz, e sem remédio (o
médico suspendeu o lítio) caí outra vez na depressão. É
confortante saber que não estou sozinha, pq a impressão
que dá é essa. Gostaria de escrever mais mas não me sinto
em condições agora. Escrevo principalmente para me
solidarizar com a pessoa que escreveu o primeiro
depoimento da lista, que falou tudo que eu sinto. Tenho
43 anos, sou casada e tenho filhos. Tenho vergonha de ser
deprimida num mundo em que a alegria é requisito
básico, mesmo que falsa. Tenho o privilégio de estar
sendo tratada por um grande médico, em quem tenho
total confiança. Estou tomando efexor, demora a fazer
efeito. Sei que um dia vou ficar boa mas ter paciência de
esperar é que são elas. É muito duro. Um beijo em todos.
A.
Nos depoimentos transcritos, observa-se que os
sujeitos se submetem à ordem do discurso na qual se
posicionam para falar, embora pequenos traços de
resistência apareçam nas enunciações transcritas.
Retomando os conceitos de Foucault sobre os
princípios externos de controle e delimitação dos
discursos que põem em jogo o poder e o desejo,
percebe-se, inicialmente, que os enunciados
4
Os depoimentos foram transcritos tal qual aparecem no site, sem
alteração textual ou gramatical.
Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar
59
produzidos pelos sujeitos bipolares retomam pelo
menos um deles: a interdição, e evidenciam a ideia que
os sujeitos se submetem à ordem discursiva em que
estão inseridos – neste estudo, o site Mental Help, em
relação direta com o saber médico-psiquiátrico.
Para postar o depoimento sobre a doença bipolar,
antes é necessário que se leia uma série de orientações
disponíveis no site e que restringem o direito da
palavra do portador do transtorno. O que se percebe é
que o próprio site Mental Help interdita toda a
produção discursiva que não estiver seguindo tais
orientações e faz com que os sujeitos que queiram
postar seus depoimentos se submetam a elas. Abaixo,
destacam-se algumas dessas regras:
1. Lembre-se que a maioria das perguntas
alguém já perguntou antes.
2. Não é ético comentar diagnóstico ou
tratamento de outro médico sem conhecer o
paciente. Mas todo paciente tem o direito a
uma segunda opinião, o que não quer dizer
consulta por e-mail.
6. Como convencer uma pessoa a se tratar:
imprima as páginas correspondentes ao
assunto e dê para ela ler. (MENTAL HELP,
2014)
A sexta regra ditada pelo site demonstra qual é sua
função social, o tratamento dos portadores do
transtorno bipolar. Na HomePage do site, o objetivo de
seus criadores é demonstrado na formulação “Deixe os
preconceitos de lado e procure tratamento
psiquiátrico antes que seu problema complique ou
cronifique.”
Percebe-se que os discursos produzidos pelo site
jamais questionam o conceito da patologia; na seção
“Sua Saúde”, que apresenta artigos sobre algumas
doenças mentais, o conceito de Foucault de interdição
é mais uma vez aparente nos discursos
médico/psiquiátricos. Em um dos artigos sobre a
bipolaridade, lê-se: “Para os leigos 'Mania' quer dizer
repetição de hábitos ou atitudes. Para os médicos
Mania é o seguinte: [...]" (MENTAL HELP, 2014), o que
demonstra que apenas o discurso produzido por quem
está no interior da disciplina, é o autor legítimo e o
sujeito privilegiado da enunciação do verdadeiro –
nesse caso, os psiquiatras responsáveis pelo site, que
validam o espectro do verdadeiro ou correto.
Na análise dos dois depoimentos dos sujeitos
portadores do transtorno percebe-se que, ao mesmo
tempo em que eles se submetem à ordem discursiva,
também a rejeitam. Ambos aceitam a doença tal como
descrita pela sua nosografia, o que pode ser
visualizado no início dos enunciados, “tenho
bipolaridade” e “sofro de bipolaridade de humor”.
Contudo, cada paciente compreende a doença de
modo diferente, o que é demonstrado pelos verbos
utilizados “tenho” e “sofro”. O sujeito do primeiro
depoimento também reforça a ideia da aceitação da
doença quando enuncia que em seu grupo de estudos
percebe o sofrimento daqueles que não aceitam a
bipolaridade, o que é materializado no enunciado “la
descobri o quanto é doloroso não se aceitar”.
No primeiro depoimento, evidencia-se a ideia de que a
doença mental remete a um estigma: o doente mental
é aquele cujo discurso não pode circular com o
discurso do outro, da razão. O depoente inscreve-se na
ordem do discurso sobre a desrazão quando enuncia
que sua vida era caracterizada por atitudes “loucas”:
“Desde o dia que descobri me senti feliz e até mesmo
agradecida, pois só assim entendi a vida louca que tive
até o hoje” (grifo meu).
As enunciações “tenho bipolaridade” e “sofro de
bipolaridade de humor” remetem também ao conceito
formulado por Foucault em A história da sexualidade I A vontade de saber, a confissão: a fronteira entre a
singularidade, a afirmação de si, e o assujeitamento, a
submissão ao outro. Segundo Cunha (2002), a
confissão é uma das técnicas de si, um dos modos pelo
qual o indivíduo estabelece uma relação consigo
mesmo e produz uma série de operações sobre seus
pensamentos e sua conduta. No entanto, essa é não
apenas uma entre as outras técnicas. Elemento
fundamental na tradição cristã deslocado e
transformado em estratégia de constituição das
Ciências Humanas a partir do século XVIII (junto, pois,
à Psiquiatria e às posteriores Psicologia e Psicanálise),
o dispositivo da confissão pode ser lido como “[...] a
matriz do modo, como, na civilização ocidental, o
sujeito pode produzir um discurso de verdade sobre simesmo.” (CUNHA, 2002, p.2).
Nesse processo de dizer-se, de narrar a si mesmo como
"doentes", os sujeitos bipolares afirmam-se como
portadores do transtorno subjetivam-se e ao mesmo
tempo inscrevem-se na ordem do discurso sobre a
bipolaridade, pois tornam-se o que acabaram de
enunciar, sujeitos portadores do transtorno bipolar.
Dessa perspectiva, na formulação de seu depoimento,
percebe-se que o sujeito 01 também diz ser
diagnosticado como DDA (Distúrbio de Déficit de
Atenção) e utilizou o verbo “ser” para expressar esse
diagnóstico, enquanto para expressar a bipolaridade
utiliza o verbo “ter” – como se a bipolaridade surgisse
como uma condição passageira, transitória, ao
contrário do que acontece com o Distúrbio de Déficit
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015.
60
de Atenção (DDA), por esse não remeter à ideia da
loucura.
doente mental “Fiz um grupo de estudo com 5 pessoas,
la descobri o quanto é doloroso não se aceitar”.
No segundo depoimento, observa-se que a formulação
“sofro de bipolaridade de humor, um nome novo para
substituir um outro, que rotula a pessoa de forma
cruel” demonstra que a depoente acredita que a
modificação da nomenclatura sobre a bipolaridade é
positiva, uma vez que parece tirá-la do regime da
loucura. Nos dois casos, há uma assunção da marca
discursiva que aponta o fora-da-norma e o desnível
existente entre universos mais próximos da desrazão
(a bipolaridade) e aqueles mais "normais" (o DDA).
Retomando o texto de Bampi (2002) sobre a
resistência, percebe-se que a interação entre as
técnicas de dominação – interdição – e as técnicas do
eu – confissão – estão integradas em uma estrutura de
coerção, o que faz com que o discurso do sujeito
bipolar, embora apresente traços de resistência, ainda
seja um discurso inscrito na ordem discursiva do
discurso médico/psiquiátrico.
A temporalidade também é uma marca que, no
depoimento 02, evidencia o processo subjetivo,
instaurado pela cisão entre "tempos de normalidade" e
"tempos de patologização". Assim é que a formulação
“Gostaria de escrever mais mas não me sinto em
condições agora” demonstra a possibilidade do sujeito
estar vivenciando uma crise da doença (marcada pelo
imperativo adverbial do "agora", o tempo do
enunciado). Por isso, a experiência de si marca a
hesitação quanto a dar seu depoimento.
No depoimento 01, as marcações temporais
demonstram que o tempo age no sujeito e dá forma a
ele. Na formulação “descobri que tenho essa
particularidade a dois anos [grifo meu]" a ideia da
doença como algo transitório é clara. Até então o
depoente era “são”, agora ele está no espectro da
loucura. Nas formulações posteriores como “Desde o
dia que descobri me senti feliz e até mesmo
agradecida, pois só assim entendi a vida louca que tive
até o hoje [grifo meu]", o discurso se inverte e o sujeito
passa da insanidade à normalidade. O artigo definido
"o", anterior a marcação do tempo (hoje), também
evidencia o processo subjetivo no depoimento 1. O
hoje é o tempo do depoente; a partir dessa marcação,
ele não é mais "louco".
Ainda que apresentem constantes marcas de
assimilação da ordem discursiva médico-patológica,
também a subjetivação como forma de resistência
aparece, nos discursos bipolares transcritos, como
uma tênue linha entre o assujeitamento e a resistência.
O depoente 01 nomeia a doença bipolar de
particularidade, atenuando assim seu “problema”, o que
é materializado na seguinte enunciação “[...] tenho essa
particularidade a dois anos, chamo de particularidade
pois a trato com todo carinho, pois dizer que sou
doente me da a impressão de que estou muito mal [...]".
Logo depois disso, porém, inscreve-se na ordem do
discurso médico sobre a doença e aceita-se como
Embora a dimensão do si-mesmo apareça nos
discursos produzidos pelos supostos portadores do
transtorno, ela não aparece como uma linha de fuga,
como a ruptura de um dispositivo para a instauração
de um outro. Logo, ressalta-se que o processo subjetivo
como forma de resistência a determinado dispositivo –
nesse estudo os discursos da medicina acerca da
bipolaridade -, não apresentam relevância no
funcionamento discursivo geral dos depoimentos, que
tendem mais à manutenção da "regra moral", da ordem
discursiva psiquiátrica.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse trabalho, procurou-se traçar uma análise dos
processos de sujeição e de resistência em discursos
produzidos por sujeitos ditos bipolares. Para isso, fezse necessário explorar os conceitos de discurso,
sujeito e subjetivação tal como descritos por Michel
Foucault, filósofo cujos textos foram alicerces para
toda pesquisa.
Além dos conceitos explorados, também foi necessário
discutir e caracterizar os sujeitos portadores do
transtorno bipolar, mas com a adoção de uma postura
de suspensão acerca da verdade sobre a doença
bipolar e da caracterização nosólogica que se aplica
aos sujeitos portadores do transtorno.
No que concerne às conclusões deste texto, verifica-se
que, ao serem intimados a falar sobre si, os sujeitos
bipolares inscrevem-se na ordem do discurso da razão,
o discurso médico-psiquiátrico. Embora algumas
marcas de subjetivação como forma de resistência
possam ser encontradas nos depoimentos transcritos,
percebe-se
que
existência
dos
discursos
médicos/psiquiátricos sobre a bipolaridade, discursos
esses repletos de poder coercitivo e vistos como
discursos da razão, fazem com que a subjetivação
opere com pouca liberdade e com menos resistência
Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar
61
nos discursos dos sujeitos inscritos e auto-inscritos
como bipolares.
FOUCAULT, M. História da loucura. São Paulo: Perspectiva,
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Wanderson Flor do Nascimento].
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna
Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015.
62
Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade...
63
O CINEMA E AS PRISÕES DA
REALIDADE: REFLEXÕES SOBRE A
MEMÓRIA A PARTIR DOS FILMES O SHOW DE TRUMAN,
MATRIX E AMNÉSIA
EL CINE Y LAS CÁRCELES DE LA REALIDAD: REFLEXIONES SOBRE LA MEMORIA Y
LA VERDAD DE LAS PELÍCULAS EL SHOW DE TRUMAN, LA MATRIX E MEMENTO
THE CINEMA AND PRISONS OF REALITY: REFLECTIONS ON MEMORY AND TRUTH
FROM THE MOVIES THE TRUMAN SHOW, MATRIX AND MEMENTO
Fábio Lúcio Zampieri *
Gerson Wasen Fraga **
*Professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected].
**Professor de História da Universidade Federal da Fronteira Sul. E-mail: [email protected].
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 062-074, jan./jun. 2015.
64
RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT
RESUMO: Este artigo tem o objetivo de refletir sobre a construção da memória enquanto prisão do
real como resultado acabado, mesmo sendo processo de uma análise subjetiva e fragmentada. Para a
construção deste real, ou da verdade, as memórias e representações são tomadas como guias por seu
efeito de realidade, mesmo relativizadas pelo seu tempo e espaço e sofrendo transformações e
colaborações enquanto processo inacabado. Então, a memória e as representações operam de maneira
mimética à presentificação de uma versão que já não está lá, nesta duplicidade que pode ser contada
através do cinema. Neste trabalho são analisados três filmes que exploram o limite entre o real e o
imaginário, onde as verdades dos protagonistas são substituídas por dúvidas e questionamentos. São
eles: O Show de Truman, Matrix e Amnésia. A representação feita pelo cinema enquanto obra de arte
opera em determinado grau de realidade, confirmando, negando, transformando, sobrepujando ou
transfigurando o real. A busca de uma realidade que faça sentido ao personagem é o laço que, de certo
modo, une este tipo de filme. A complexidade da nossa época e o grande número de versões para o
mesmo fato acaba por dissimular a noção de verdade absoluta, condição tão reconfortante para o ser
humano. O que é o bem e o mal, o certo e o errado quando os fatos apresentados podem ser
manipulados? A resposta, talvez, seja identificar a fragilidade da realidade e adotar os valores
universais para criar a construção da memória ao invés de (re)afirmar valores absolutos.
PALAVRAS-CHAVE: Memória. Simulacros. Realidade.
RESUMEN: Este trabajo tiene el objetivo de reflexionar sobre la construcción de la memoria mientras
la cárcel de lo real como resultado acabado, a pesar de ser proceso de un análisis subjetivo y
fragmentado. Para la construcción de este real, o da verdad, las memoria y representaciones se hacen
como guías para su efecto de realidad, incluso en el contexto de su tiempo y espacio y sufriendo
transformaciones y colaboraciones como proceso inacabado. Así, la memoria y las representaciones
operan de manera mimética a la presentificación de una versión que ya no está allí, en esta duplicidad
que puede ser contada a través de cine. En este trabajo se analizan tres películas que exploran los
límites entre lo real y lo imaginario, donde las verdades de los protagonistas son reemplazadas por las
dudas y preguntas. Ellos son: "El Show de Truman", "La Matrix" e "Memento". La representación hecha
por lo cine como una obra de arte opera en un determinado grado de realidad, confirmando, negando,
torneado, sobrepujando o transfigurando lo real. La búsqueda de una realidad que tiene sentido para
el personaje es el vínculo que, en cierto modo, une a este tipo de película. La complejidad de nuestro
tiempo y la gran cantidad de versiones del mismo hecho resulta de disimular la noción de verdad
absoluta, condición tan reconfortante para los seres humanos. ¿Qué es el bien y el mal, lo correcto y lo
incorrecto, cuando los hechos que se presentan pueden ser manipulados? La respuesta, tal vez, es la
identificación de la fragilidad de la realidad y adoptar los valores universales para crear la
construcción de la memoria en lugar de (re)afirmar los valores absolutos.
PALABRAS CLAVE: Memoria. Simulacros. Realidad.
ABSTRACT: This paper has the objective of reflecting upon the construction of memory as a prison
of the real as finished result, despite being a subjective analysis and fragmented process. For the
construction of this real, or the true, memories and representations are taken as guides for their
reality effect, even relativized for their time and space, and suffering transformations and
collaborations as unfinished processes. Thus, memory and representations operate in a manner that
is mimetic to the presentification of a version that is no longer there, this duplicity that can be told
through cinema. This work analyzes three films that explore the boundary between the real and the
imaginary, where the truths of the protagonists are replaced by doubts and questions. They are: "The
Truman Show", "Matrix" and "Memento". The representation made by the movies as a work of art
operates at a certain degree of reality, confirming, denying, overturning, surpassing or transforming
the real. The quest for a reality that makes sense to the character is the tie that, somehow, unites this
type of film. The complexity of our time and the large number of versions of the same fact turns out
to conceal the absolute notion of truth, so reassuring condition for human beings. What is good and
evil, right and wrong when the facts presented can be manipulated? The answer, perhaps, is to identify
the fragility of reality and adopt the universal values to create the construction of memory instead of
(re)state absolute values.
KEYWORDS: Memory. Simulacra. Reality.
Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade...
65
1 INTRODUÇÃO
A História, ciência do passado analisado a partir das
questões do presente, estudo das ações humanas ao
longo do tempo, instrumento que amálgama
identidades coletivas, não é, com efeito, uma arte do
intelecto que ofereça como resultado final
construções mentais completas e acabadas, em que
vislumbramos a totalidade de nosso objeto. Sujeita à
subjetividade do historiador e aos contextos que o
cercam, a narrativa histórica, qualquer que seja, se
apresenta como fragmentária, obra condenada ao
inacabado e passível de contraditório. Ainda que suas
bases não sejam feitas de areia, não são igualmente
imunes às alterações que ocorrem nas estruturas de
poder constituídas pelos homens. Com estas frases
iniciais não queremos defender aqui um relativismo
absoluto. Não há como (ou não deveria haver como)
negar, por exemplo, toda a carga de maldade intrínseca
ao nazi-fascismo, a face assassina das ditaduras de
cunho civil-militar na América Latina ou mesmo os
efeitos do colonialismo europeu sobre o continente
africano. Procurar elementos positivos em tais
estruturas só pode ser entendido como ação destinada
a lhes conferir legitimidade aos olhos de qualquer
pessoa desprovida de senso de humanidade.
Pretendemos antes iniciar alertando para o fato de que
os elementos a partir dos quais reconstruímos o
passado são maleáveis, sujeitos à alterações não apenas
pela nossa vontade pessoal, mas também pelo desejo
daqueles que, em uma fórmula orwelliana, controlam o
presente para controlar o passado e, controlando o
passado, controlam também o futuro.
À História, assim, não cabe o papel de “mestra de vida”,
pois, pela sua característica de produto humano, está
constantemente a minitrar lições comprometidas com
projetos e visões de mundo determinadas. Ainda assim,
entre suas matérias-primas estão as memórias e as
representações, elementos que operam como guias em
sua constituição, uma vez que têm efeito de real, isto é,
efeitos de verdade. Tais colocações iniciais nos
apresentam o problema de como definir o termo
“verdade” e o que é, em essência, a própria “verdade”,
uma vez que os fatos, quando ocorrem, estão ligados
exclusivamente ao seu tempo e seu espaço. À medida
que as informações relativas a determinado "fato" são
repassadas, são transformadas, ganhando a
colaboração das vivências e noções éticas de quem as
emite. Poderíamos aqui lembrar de Sabrina Loriga, que,
ao analisar a reflexão histórica de Siegfried Kracauer,
comenta:
Em outros termos, o conteúdo do mundo
histórico remete à vida em sua plenitude,
como nós a vivemos comumente, dia após dia.
Para afirmar seus direitos, a história precisa
aceitar ser suspensa em um nível muito mais
baixo que aqueles das ciências da natureza, da
filosofia da história ou da arte. A história não
visa as coisas últimas, mas as coisas
penúltimas, aquelas que surgem antes das
definitivas. Ela ocupa um espaço médio,
híbrido, que toca a vida cotidiana, marcada
por aquilo que é precário, indeterminado e
mutável (LORIGA, 2006, p 134).
Como possuem um aspecto mimético, a memória e as
representações encontram uma ligação relativa com o
passado, operando a presentificação de uma versão
que já não está lá, fato acontecido, contado,
representado. É nestas presentificações que reside a
duplicidade de, ao mesmo tempo, ser e não ser da
verdade contada através do cinema. Walter Benjamin,
citando Paul Valéry, caracterizou assim a
reprodutividade técnica:
Tal como a água, o gás e a energia elétrica,
vindos de longe através de um gesto quase
imperceptível, chegam a nossas casas para
nos servir, assim também teremos ao nosso
dispor imagens ou sucessões de sons que
surgem por um pequeno gesto, quase um
sinal, para depois, do mesmo modo, nos
abandonarem (BENJAMIN, 1992 [1955], p 76).
Neste texto serão analisados três filmes que se apoiam
em alguns pilares da filosofia moderna, explorando os
limites entre o real e o imaginário, onde os personagens
não têm certeza da realidade de suas vidas e suas
verdades
são
substituídas
por
dúvidas
e
questionamentos. Estes filmes foram escolhidos pelo
modo como a realidade mostrada é alterada para e pelo
personagem. Iniciamos com uma representação física
de realidade no filme O Show de Truman. Passaremos
depois para as representações mentais artificiais de
Matrix para, enfim, chegarmos às representações da
realidade do próprio personagem em Amnésia. Antes,
porém, teceremos algumas breves considerações a
respeito de nosso objeto maior neste estudo: o cinema
enquanto obra de arte e reflexão.
2 O CINEMA COMO OBJETO DE REFLEXÃO
O cinema enquanto obra de arte e objeto de reflexão
apresenta características específicas em sua relação
com o observador que o diferenciam de outras formas
de representação da realidade. Ainda quando tratamos
de obras de cunho documental, alheias a maiores
pretensões ficcionais, temos na totalidade do filme o
resultado de escolhas e recortes operados pelos
diretores, em uma seleção deliberada do que é
Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade...
66
apresentado ao final. De semelhante modo, as
narrativas que buscam abertamente a reprodução de
fatos históricos ou que meramente situam sua
narrativa no passado demandam um posicionamento
dos condutores do filme em relação ao tempo e ao
espaço reproduzido. Há aqui uma nítida aproximação
com o fazer da História, na medida em que o resultado
final do trabalho é perpassado pelos interesses e visões
de mundo daquele que guia a narrativa. Narrativa esta
que estabelece com o público uma relação entre o real
– ou algo que possua traços do real 1 – e o senso comum
a respeito de determinado tempo e/ou espaço 2. Sobre
isso, alerta-nos Rafael Quinsani:
Os sentidos do observador são suspensos,
como se estivessem fora do tempo e do
espaço, atribuindo-lhes um grau de
imaterialidade que preenche todos os
espaços de quem se dispõe a aceitar este jogo,
esta experiência. A projeção de um filme não
tem uma localização física e permanente, ela
não desenvolve uma cristalização afetiva do
objeto, pois no seu ato de exibição ela se
apresenta
impalpável,
fugaz,
desmaterializada. São justamente estas duas
categorias, tempo e espaço, que estabelecem
um ponto chave na reflexão sobre a imagem
cinematográfica e suas relações sobre as
implicações destes elementos para a história.
Tal imagem internaliza o duplo dentro de si
mesma e expressa a soma dos campos mentais
e materiais, as quais revalorizam ou pioram a
realidade que é exposta. Realidade que se
tenta capturar ao máximo possível com a arte
realista, onde a imagem objetiva tenta
ressuscitar nela as qualidades da imagem
mental (QUINSANI, 2009, p 38).
Assim, este simulacro de realidade proposto pelo
cinema não abarca a ideia de “reprodução” do real, uma
vez que esta ideia, em termos artísticos, demanda por
1
Pensemos aqui, a título de exemplo, nas despretensiosas e
normalmente enfadonhas “comédias pastelão” estadunidenses (como
os filmes da série Todo Mundo em Pânico), ou ainda nos filmes que se
passam em um universo paralelo, como Senhor dos Anéis, Star Wars
ou Harry Potter. Ainda que seus personagens vivam situações
absolutamente absurdas, transitem por universos paralelos ou
possuam eles próprios uma forma física ou materialidade diversa de
tudo o que conhecemos ou concebemos, estas devem fazer algum tipo
de sentido para quem assiste o filme, sob pena de não serem
efetivamente compreendidas e/ou dotadas de significado.
vezes atingir um grau de perfeição tão grande que
somente se distingue de suas cópias (falsificações)
através de exames para determinar a data em que foi
produzida (época e local). Walter Benjamin (1992
[1955]) determina que mesmo na representação mais
perfeita falta uma coisa, o aqui e agora da obra, sua
alma. A existência da obra – e portanto, do real – é única
em relação ao lugar em que foi feita e o motivo porque
foi concebida. 3 O cinema enquanto obra de arte opera,
antes, uma representação em determinado grau da
realidade. As representações podem confirmar, negar,
transformar, sobrepujar ou transfigurar o real. Com
isso modificam a definição de realidade criando ou
reconstituindo seu sentido, causando uma ilusão de
espírito. De certo modo, é isso que Baldrillard infere:
Quando o real já não é o que era, a nostalgia
assume todo o seu sentido. Sobrevalorização
dos mitos de origem e dos signos de realidade.
Sobrevalorização
de
verdade,
de
objectividade e de autenticidade de segundo
plano. Escalada do verdadeiro, do vivido,
ressurreição do figurativo onde o objecto e a
substância
desaparecem.
Produção
desenfreada de real e de referencial, paralela
e superior ao desenfreamento da produção
material: assim surge a simulação na fase que
nos interessa – uma estratégia de real, de neoreal e de hiper-real, que faz por todo o lado a
dobragem de uma estratégia de dissuasão
(BAUDRILLARD, 1981, p 14).
A reprodutividade técnica, condição típica da
sociedade industrial, nos mostra assim o seu efeito de
real, colocando-se no lugar deste para transmitir um
conceito, uma ideia. Trabalha assim sobre uma base
que o público receptor da mensagem traz consigo,
formada por elementos tais como seu campo de
experiências, suas visões de mundo, sua bagagem
cultural e mesmo sua memória. Esta começa no
insurgentes “nativos”) é muitas vezes visto rosnando para o herói e a
loira ocidentais cativos (mas imbuídos de integridade): 'Os meus
homens vão matá-lo, mas... eles gostam de se divertir antes'. Enquanto
fala, ele olha sugestivamente de soslaio, como o sheik de Valentino.
Nos documentários e nos noticiários, o árabe é sempre mostrado em
grandes números. Nada de individualidade, nem de características ou
experiências pessoais. A maioria das imagens representa fúria e
desgraça de massas, ou gestos irracionais (por isso, irremediavelmente
excêntricos). Espreitando por trás de todas essas imagens está a
ameaça da jihad. Consequência: o medo de que os muçulmanos (ou
árabes) tomem conta do mundo”. (SAID, 2010, p. 383).
2
Vale lembrarmos aqui das palavras de Edward Said, a respeito das
representações sobre os árabes no cinema estadunidense e nos
programas de TV do ocidente: “Nos filmes e na televisão, o árabe é
associado com a libidinagem ou com a desonestidade sanguinária. Ele
aparece como um degenerado excessivamente sexuado, capaz de
intrigas inteligentemente tortuosas, é verdade, mas essencialmente
sádicas, traiçoeiras, baixas. Traficante de escravos, cameleiro,
cambista, um patife pitoresco: esses são alguns dos papeis tradicionais
do árabe no cinema. O líder árabe (de saqueadores, piratas,
3
Voltando novamente aos filmes de caráter documental, podemos
lembrar que sua materialidade não se encontra na imagem
reproduzida, mas sim no momento de sua captura. Outro elemento
que afasta os documentários do plano real está na disposição das
imagens, uma vez que o trabalho de edição cola temporalidades
diversas, operando por vezes um jogo de idas e vindas temporais que
constroem sua narrativa, mas que evidentemente não corresponde à
temporalidade da vida real.
Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade...
67
individual, depois incorpora como sua a memória
social, como a história dos seus semelhantes. Quem
lembra determinado fato é o indivíduo, mas a memória
deste indivíduo se relaciona com outras memórias
presentes no seu meio.
Comumente, as pessoas lembram fatos ocorridos na
infância que foram passados pelos seus pais, lembram
"verdades" que contaram para elas e as incorporam a
suas próprias lembranças, criando assim novas
memórias. 4 Observamos, desta forma, que a nossa
percepção acerca do real pode ser transformada por
fatores externos, posto que a memória é criada,
contada e repassada de diversas maneiras, alterandose na medida em que é transmitida. O cinema, dentro
de tais operações, nasce com a intenção de simular o
extraordinário, além de mostrar cenas “reais” e
cotidianas, constituindo-se assim em mais um
elemento nesta constante recriação, abordando de
forma lúdica vários temas comuns ao ser humano,
como seus medos e aspirações.
Mas se o simulacro, enquanto processo de simulação,
torna-se cada vez mais verdadeiro ao ponto de
apresentar-se como o real, não seria também o revés
parte do dispositivo de real? Segundo Baldrillard (1981),
a ameaça da simulação está em volatizar os signos do
real, criando uma histeria de produção e da
reprodução do real como forma de mercadoria. O filme
a seguir faz, de certo modo, uma inversão do sistema
panóptico da TV que não é apenas vista, mas também
vigia,
exercendo
o
controle
social
do
indivíduo/protagonista.
2.1 No mundo falso a verdade vira show: estrelando
Tuman Burbank como ele mesmo
O Show de Truman (The Truman Show, Estados Unidos,
1998) foi dirigido por Peter Weir, tendo Jim Carrey no
papel principal: o personagem Truman Burbank.
Nascido de uma gravidez indesejada, Truman foi
escolhido e adotado por uma rede de TV a cabo para
estrelar um reality show extremo, tendo sua existência
transmitida desde seu nascimento 24 horas por dia. No
início sua vida é transmitida de modo tradicional, mas
na medida em que o personagem cresce, também
cresce a estrutura que o cerca, aprisionando-o em um
gigantesco cenário cheio de câmeras, onde a sociedade
4
Jacques Le Goff nos aponta para os fatores que envolvem a
construção da memória individual (e também do esquecimento), bem
como para o fato de que a memória coletiva se faz objeto das disputas
políticas. Segundo ele, “os psicanalistas e psicólogos insistiram, quer a
propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento [...], nas
manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a
afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória
individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de
forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se
senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
era inteiramente composta por atores contratados –
sua mulher, seu melhor amigo, todos –, com a missão de
tornar a vida de Truman semelhante ao “real”, embora
em um mundo idealizado. A ideia é transmitida ainda
no início do filme, através do personagem Christof (Ed
Harris) 5 , diretor do Show de Truman:
Já estão cansados de atores com emoções falsas?
Cansados de pirotecnia e efeitos especiais? Embora o
mundo em que habita seja, de certa forma, hipócrita,
Truman não tem nada de falso. Não tem roteiros nem
deixas. Não é sempre um Shakespeare, mas é genuíno,
é uma vida.
(Fala do filme O Show de Truman)
Figura 1 -"Trumania" a cidade de Truman. Fonte: Divulgação.
Figura 2 - Retrato de Truman feito com o mosaico de suas
imagens passadas. Fonte: Divulgação.
No mundo de Truman tudo que o cerca é artificial: os
cenários, as condições meteorológicas, até os carros
são sempre os mesmos – com a missão de passear na
cidade para dar a impressão que a vida segue seu rumo
normalmente. As ruas, os vizinhos, as bancas de jornal,
são todos simulacros especialmente criados para
conferir verossimilhança ao seu mundo. Até seus
traumas de infância são planejados para que nunca
deixe sua cidade. Nas companhias de viagens existem
cartazes explicando como o mundo lá fora é perigoso,
como as cidades são violentas e quantos acidentes
acontecem aos viajantes. Truman está assim
preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram
e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios
da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da
memória coletiva”. (LE GOFF, 2010, p 422).
5
Note-se a aproximação do nome do personagem Truman com a
expressão True Man (Homem de verdade, homem verdadeiro). A
aproximação de Christof com Christ (Cristo) não apenas é evidente,
como ainda “resplandece” na cena final.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 062-074, jan./jun. 2015.
68
condenado a viver, sem que o saiba, em um simulacro
de realidade.
Mas, o mundo falso de Truman começa a desmoronar
quando um incidente acontece: uma luminária
despenca do “céu”. O personagem olha e não vê nada,
nem avião, nem helicóptero, nem pássaros, nada. A
partir deste pequeno ocorrido, Truman passa a prestar
atenção a sua volta, buscando pistas que comprovem
ou desmintam sua percepção de realidade. Inicia então
o questionamento de sua vida perfeita e do quão real
são os fatos que estão acontecendo. Embora o
personagem esteja perto da verdade, o criador do show,
Christof, parece não se preocupar, e comenta em uma
entrevista para a TV:
Repórter: Christof, quero perguntar porquê acha que
Truman nunca chegou perto de descobrir a natureza
real do seu mundo até agora?
Christof: Aceitamos a realidade do mundo no qual
estamos presentes. É muito simples.
(Diálogo do filme O Show de Truman)
relações entre o fetichismo da mercadoria e o “mundo
real”.
Quando Truman começa a procurar insistentemente
pelas verdades atrás das coincidências, o mundo que
antes parecia ser tão real e antisséptico começa a
mudar, ficando hostil. Sua mulher acaba indo embora
dizendo que não aguenta mais trabalhar sob condições
tão estressantes; os caminhos que levariam para fora
da cidade passam a ser misteriosamente fechados, e
mesmo em seu trabalho, uma misteriosa nova colega
surge, com o objetivo de seduzi-lo e fazer assim com
que desista de seu intento de investigar a natureza do
mundo que o cerca. Truman acaba por concluir que
está cativo e faz o possível para fugir, conseguindo por
fim enganar a vigilância das câmeras. Após ser
procurando por todos os atores e figurantes de
Trumania, o criador do programa de TV, Christof,
acaba por encontrá-lo em um pequeno barco no mar
artificial do grande cenário em que se passa o
programa. Inicia-se então uma luta desigual entre
Christof e Truman, em que o primeiro comanda as
“forças da natureza” contra o barco, até este naufragar.
Neste ponto, Truman fala diretamente com Christof,
que, em uma cena de profunda influência religiosa,
responde através de uma voz que emana das nuvens:
Truman: Quem é você?
.
Figura 3 -Truman controlado. Fonte: Divulgação
Christof: Sou o criador do show de televisão que dá
esperança, alegria e inspiração a milhões de pessoas.
Truman: Então, quem sou eu?
Christof: Você é o astro.
Truman: Então nada foi real?
Christof: Você era real. Por isso gostam de assisti-lo.
Ouça Truman, lá fora a verdade é igual a do mundo
que criei para você. As mesmas mentiras. As mesmas
decepções. Mas no meu mundo você não tem nada a
temer. Nem você se conhece tão bem quanto eu.
Truman: - Nunca teve uma câmera na minha cabeça.
Christof: - Está com medo de partir.
Figura 4 - No ar. Fonte: Divulgação.
Truman nasceu e cresceu em um mundo "controlado",
feito para ele. A realidade do personagem é aquela na
qual ele vive, então suas expectativas, mesmo que de
consumo, são condicionadas como respostas ao seu
meio. Sua esposa, ao retornar das compras no mercado
de “Trumania”, vira-se para as câmeras escondidas,
destacando em sua fala as virtudes dos produtos
consumidos no programa (uma das tantas
“esquisitices” notadas pelo protagonista), em uma ação
de merchandising que nos faz refletir sobre as possíveis
(Diálogo do filme O Show de Truman)
Então, Truman despede-se de sua audiência e vai
embora. Os telespectadores vibram, felizes, e depois de
algum tempo mudam de canal, continuando a ver TV.
Truman vai viver sua vida anônima, fazer escolhas, ter
a ilusão que sua vida não é controlada por nada e que
pode fazer o que desejar, pois, como o personagem
mesmo afirmou, não havia uma câmera em sua cabeça.
Mas, e se a noção de realidade que o personagem tem
fosse manipulada diretamente em seu cérebro?
Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade...
69
seres humanos anestesiados enquanto fornecem
energia para o sistema. O mundo é uma simulação
eletrônica, uma realidade programada que nos
transforma em prisioneiros desta ficção.
Figura 5 - Truman acha o fim de seu mundo. Fonte:
Divulgação.
Figura 7 - Código Fonte da Matrix. Fonte: Divulgação.
.
Figura 6 - Truman despede-se de seu público. Fonte:
Divulgação
2.2 Matrix: a tecnologia como meio pelo qual se
manipulam as percepções
Figura 8 - Neo enxergando a "realidade" da Matrix. Fonte:
Divulgação.
Matrix (Matrix, Estados Unidos/Austrália, 1999), foi
dirigido pelos irmãos Lana e Andrew Wachowski,
tendo Keanu Reeves no papel do protagonista Neo, um
hacker que também trabalha como programador de
computadores. Além destas atividades, Neo dedica
parte de seu tempo a encontrar um misterioso hacker
do qual pouco se sabe além de seu codinome:
Morpheus. Para surpresa de Neo, é Morpheus quem o
encontra, fazendo-lhe uma revelação desconcertante:
tudo o que conhecemos como real é, na verdade, uma
ilusão, um mundo de sonhos comandados por uma
gigantesca máquina chamada “Matrix” que tira sua
energia dos seres humanos enquanto os cultiva
adormecidos. A obra se constitui em uma trilogia (1999,
2002 e 2003) com fortes elementos filosóficos e
religiosos, mas também da cultura pop (há jogos de
computador, animações e histórias em quadrinhos que
se inserem na narrativa da trilogia).
Se a manutenção da verdade é consequência de um
imaginário coletivo, sua filtragem pode ser
extremamente manipulada. Este é o mote pelo qual
vivem os personagens de Matrix. A descoberta pelo
protagonista Neo de sua condição representa o seu
nascimento para a vida real, tal qual Alice no País das
Maravilhas, quando é tragado pelo espelho que o leva à
realidade. Não é fácil para o personagem ter que lidar
com a descoberta de uma realidade fora dos padrões a
que estava acostumado. Outros personagens, porém,
estão tão ligados ao seu “eu virtual” que fazem de tudo
para permanecer ou voltar para dentro da Matrix.
Assim, quando o protagonista é levado a bordo da nave
de Morpheus, é tratado de forma a se habituar com a
nova realidade:
No filme Matrix as verdades são modificadas
diretamente no cérebro dos personagens, criando
simulações oníricas, ao contrário do filme O Show de
Truman, em que o simulacro era produzido em um
lugar construído especificamente para este fim. A
prisão aqui está no cérebro de cada um, sendo a
realidade alterada pela maneira com que captam os
sinais do ambiente virtual. Assim, Matrix propõe uma
realidade construída artificialmente, mantendo os
Neo: - Por que meus olhos doem tanto?
Morpheus: - Você nunca os abriu antes!
(Diálogo do filme Matrix)
Este pequeno diálogo entre os personagens coloca-nos
frente às interpretações pré-definidas às quais
estamos expostos em nossas vidas cotidianas, que nos
fazem olhar uma cena diversas vezes e não ver o
sentido para o qual ela foi criada. Da mesma forma,
podemos também assistir a um noticiário sem
entender o motivo pelo qual sua vinculação foi
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 062-074, jan./jun. 2015.
70
necessária ou quais interesses estão atrelados a sua
exibição. Em um mundo onde o consumo desenfreado,
a ostentação e o culto à beleza ditam as normas sociais,
diversas são as “Matrix” às quais nos ligamos
insensivelmente, procurando fugir da realidade
enquanto vivemos em um mundo de sonhos.
Depois de passar por uma recuperação corporal, dado
o tempo em que permaneceu servindo como fonte de
energia para os computadores, Neo é levado para um
mundo virtual que a resistência utiliza para
treinamentos. Nele, Neo fala com Morpheus:
Neo: - Estamos em um programa de computador?
Morpheus: - Acha mesmo difícil de acreditar?
[...]
Neo: - Isto não é real? (apontando para um sofá).
Morpheus: - O que é real? Como você define o real? Se
está falando do que consegue sentir, cheirar, provar e
ver, então "real" são simplesmente sinais elétricos
interpretados pelo cérebro.
(Diálogo do filme Matrix)
Os nossos sentidos nos determinam o que é realidade e
o que não é, mas é nosso cérebro que interpreta estes
sinais captados. Contudo, esta interpretação depende
de fatores subjetivos a cada um. É corriqueiro duas
pessoas que tiveram uma experiência em comum
contarem diferentemente o ocorrido, sendo que
nenhuma delas está faltando com a verdade; as pessoas
simplesmente interpretam diferentemente os fatos de
suas vidas. Igualmente comum é as pessoas utilizarem
as memórias de seus semelhantes para se recordarem
de eventos ocorridos, assimilando-as ao fim como se
suas fossem. Neste caso, elas reproduzem
discursos/interpretações vividos por terceiros até que
estes fatos comecem a fazer parte de sua história
pessoal. No momento em que todos os fatos acontecem
em sua mente a realidade pode ser torcida e estendida
até outros níveis. Então, em nossa vida, é nossa
percepção de realidade que torna as coisas do modo
que são para nós. Como no diálogo seguinte,
envolvendo outras personagens do filme:
O filme estabelece uma crítica ao mundo de
representações em que vivemos, onde estas por vezes
colocam-se no lugar de uma ideia ou objeto com uma
força muito maior que os objetos ou ideias reais em si.
A manutenção do controle realizada pela Matrix é
conduzida pelos agentes que podem estar em qualquer
lugar e se incorporar em qualquer pessoa, uma vez que
todas as pessoas estão inseridas na Matrix, servindolhe como fonte de energia e vivendo as ilusões por ela
geradas, em uma simulação mais real do que a própria
realidade.
Mas mesmo sendo prisioneiros de um sonho, os
personagens de Matrix possuem a capacidade de reter
a linha de tempo referente a cada um de seus atos. Suas
ações são contextualizadas e inseridas na realidade
que estão sonhando. Mas, e se assim não fosse?
2.3 Amnésia: a construção permanente da verdade
O filme Amnésia (Memento, Estados Unidos, 2000) do
diretor Christopher Nolan foi baseado no conto
Memento Mori de seu irmão, Jonathan Nolan. Neste
filme, o personagem Leonard Shelby (Guy Pearce),
após ser atacado por um assaltante, perde sua esposa,
assim como a capacidade de lembrar acontecimentos
recentes. Nesta trama, o personagem está fadado a
viver com as lembranças que ocorreram antes de sua
tragédia pessoal, buscando a vingança a qualquer
preço. Até aí o filme é comum, semelhante a todos os
outros do mesmo gênero. Mas como o personagem não
consegue guardar as coisas por mais de alguns
minutos, está sempre preso ao imediato. Suas
lembranças do passado são o agora, seu presente. Para
registrar suas memórias e conseguir vingar a morte de
sua esposa, impõe a si mesmo uma árdua disciplina de
registrar os fatos que julga importantes para resolver
o caso, tatuando-se, fotografando com uma máquina
Polaroid e escrevendo em pedaços de papel. Através
deste sistema pensa manter o continuum do tempo e
fixar a ordem dos fatos.
Mouse: Sabe o que isso me lembra? Trigo gostoso. Você
já comeu trigo gostoso?
Switch: Não, mas tecnicamente nem você.
Mouse: Mas é isso que falo. Exatamente. Porque você
se pergunta: como as máquinas sabiam qual era o
sabor do trigo gostoso? Elas podem ter errado. Talvez
o trigo gostoso tivesse gosto de aveia ou de atum. Você
fica se perguntando, frango, por exemplo, talvez elas
não soubessem o gosto de frango. Por isso talvez o
frango tenha qualquer gosto. E talvez elas...
Apoc: Cale-se!
(Diálogo do filme Matrix)
Figura 9 - Foto destruída, realidade alterada. Fonte:
Divulgação.
Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade...
71
sentindo-se obrigado a guardar suas memórias em
anotações.
Teddy: Não pode confiar a vida de um homem a fotos e
notas.
Leonard: Por que não?
Teddy: Elas podem não ser confiáveis.
Leonard: A memória não é confiável.
Teddy: Ora vamos...
Figura 10 - Nota para si, condicionando-se a lembrar. Fonte:
Divulgação.
O enredo de Amnésia estrutura-se em duas linhas
cronológicas distintas, uma respeitando e outra
rompendo com a linearidade do tempo, aproximandose assim da percepção do protagonista e
desconstruindo o sentido do tempo diretamente ou em
flashbacks. Este modo de mostrar a história reconstrói
a narrativa, buscando nas próximas cenas o sentido das
anteriores e fazendo a história ser contada do fim para
o início. Nas primeiras cenas, vemos uma foto Polaroid
de um cadáver que vai ficando cada vez menos nítida,
até tornar-se totalmente borrada. Percebe-se então
que o protagonista assassinou uma pessoa e o filme
está voltando no tempo e mostrando o que o
personagem já esqueceu.
Figura 11 - Registro em um pedaço de papel, pista? Fonte:
Divulgação.
Leonard: Sério, a memória não é perfeita. Nem é boa.
Pergunte à polícia. Depoimento de testemunha ocular
não é confiável. Tiras não apontam assassinos
lembrando coisas. Coletam fatos. Fazem anotações e
tiram conclusões. Fatos, não lembranças. É como eu
investigava. A memória muda o formato de um quarto,
a cor de um carro. Lembranças podem ser distorcidas.
São só uma interpretação, não um registro. E são
irrelevantes se você tem os fatos.
(Diálogo do Filme Amnésia)
A verdade presente nas ações do protagonista referese a sua percepção do que seja correto. Seus erros
podem ser apagados simplesmente queimando a
fotografia Polaroid ou escrevendo outra versão para
um fato. Ou simplesmente omitindo o caso por
completo ao não tomar uma nota. Neste sentido, a
verdade torna-se tangível ao esquecimento, podendo
ser eternizada – por uma tatuagem –, passageira, como
um texto escrito, ou somente sendo lembrada como
uma imagem em uma foto. Em outras palavras, a
verdade é resumida ao ocorrido sem o fator tempo; não
existindo tempo não existem restrições, não existem
referências de realidade. Como Leonard está
incapacitado de lembrar seus atos, sua conduta, boa ou
ruim, é incapaz de dar sentido àquilo que fizera por não
ter memória, sendo impelido a lembrar dos fatos que
acredita explicarem, ou estar o mais próximo possível
da verdade. Mas o que é verdade? Durante o filme um
diálogo entre o protagonista e o personagem Teddy
estabelece:
Leonard: - Você me fez matar o cara errado.
Teddy: - Não!
Leonard: - Ele sabia do Sammy! Porque eu contaria pra
ele?
Figura 12 - Anotação em seu corpo, memória guardada para
sempre. Fonte: Divulgação.
Amnésia trata de um homem que busca encontrar
sentido em suas ações. Leonard não está ensandecido,
somente perdeu a noção de tempo, preso ao imediato.
Seu atos não têm consequências, seu passado não
justifica o seu presente nem seu presente o futuro,
Teddy: - Você conta a todos sobre Sammy. Todos os que
ouvem. "Lembra-se do Sammy? Lembra-se do Sammy
Jankis?". E a história fica melhor a cada vez que conta.
Mente para você mesmo pra ser feliz. Tudo bem. Todos
fazemos isso. E daí que há detalhes que prefere não
lembrar?
Leonard: - Que diabos está dizendo?
Teddy: - Não sei. Sua esposa sobrevivendo ao ataque.
Não acreditando no seu distúrbio. O tormento... Dor e
angústia consumindo-a por dentro. A insulina.
Leonard: - Esse é o Sammy, não eu. Contei sobre o
Sammy.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 062-074, jan./jun. 2015.
72
Teddy: - Sim, como conta a você mesmo repetidas
vezes. "Condicionando-se a lembrar" "Aprendendo por
repetição".
Leonard: - Sammy deixou sua esposa se matar e foi
internado.
Teddy: - Sammy era um trapaceiro, um impostor.
Leonard: - Nunca falei que estava fingindo.
Teddy: - Você mostrou que ele era uma fraude.
Leonard: - Eu me enganei, esta é toda a questão. A
esposa de Sammy me procurou.
Teddy: - Sammy não tinha esposa. Era a sua esposa que
tinha diabetes.
Leonard: - Minha esposa não era diabética!
Teddy: - Tem certeza?
Leonard: - Minha esposa não era diabética. Acha que
não conheço minha própria esposa?
Teddy: - Só posso fazê-lo se lembrar do que quer que
seja verdade. Como o velho Jimmy.
Leonard: - Ele não era o cara certo!
Teddy: - Pra você ele era. Teve sua vingança. Aproveite
enquanto lembra. Que diferença faz se é ou não ele?
Leonard: - Faz toda a diferença.
Teddy: - Porquê? Nunca vai saber.
Leonard: - Vou sim. Vou sim. De algum modo vou saber.
Teddy: - Não vai se lembrar!
Leonard: - Quando acabar vai ser diferente.
Teddy: - Achei que sim, mas não se lembrou! Isso
mesmo. Ajudei-o a encontrar o verdadeiro John G. um
ano atrás. Ele já está morto.
Leonard: - Não minta pra mim!
Teddy: - Ouça Lenny. Fui o tira incumbido do caso da
sua esposa. Acreditei em você. Achei que merecia uma
chance de se vingar. Ajudei-o a achar o outro cara no
seu banheiro aquela noite. O que queimou sua cabeça
e estuprou sua mulher. Nós o encontramos. Você não
se lembrou. Então ajudei você a recomeçar a procurar
o cara que você já tinha matado.
[...]
Teddy: - Você não quer a verdade. Cria sua própria
verdade. Como seu arquivo policial. Estava completo
quando te dei. Quem arrancou 12 páginas?
Leonard: - Você?
Teddy: - Não. Veja, foi você!
Leonard: - Porque eu faria isso?
Teddy: - Para criar um enigma insolúvel.
(Diálogo do filme Amnésia)
A verdade, para este personagem, é idealizada sob as
circunstâncias que o levam a realizar os atos. Assim,
fica latente a sua tentativa de criar uma memória e,
através dela, justificar suas ações. Da mesma forma que
o personagem, estamos eternamente construindo
nossas memórias, fazendo interpretações dos fatos
históricos para que com isso possamos criar nossa
expectativa de futuro, sempre sob a ótica do tempo
presente. Segundo Côrtes (2005) “o passado é
reinterpretado constantemente pelo presente que, por
sua vez, se reordena a cada atualização do ontem e
reelabora novas projeções de futuro que, mais uma
vez, reforçam (ou não) a necessidade de outras visões
da História".
Figura 13 - Fotos Polaroid, para lembrar-se das pessoas.
Fonte: Divulgação.
Figura 14 - Trocadilho entre o nome do filme em Inglês e a
frase "some memories are best forgotten". Fonte: Divulgação.
A relação entre a verdade do personagem e o passado
é limitada ao que ele consegue carregar consigo e em
seu próprio corpo como memória. Como sua memória
é baseada em seus próprios registros, sua "verdade"
fica anexada a eles, como o personagem narra no início
do filme:
É preciso ser organizado para a coisa funcionar. Você
aprende a confiar no que escreve. Torna-se
importante na sua vida. Escreve notas para você
mesmo. Onde as põe também é importante. Precisa de
jaquetas com seis bolsos. Bolsos especiais para cada
coisa. Você aprende onde as coisas vão e como o
sistema funciona. E cuidado, não deixe os outros
escreverem por você. Coisas sem sentido ou que o
deixem perdido. Não sei o que leva alguém a tirar
proveito de alguém neste estado. Se você tem uma
informação que é vital, a resposta pode ser escrever no
corpo ao invés de no papel. Um modo permanente de
tomar nota.
(Fala do filme Amnésia)
Com isso, Leonard fica obrigado a sempre interpretar
seus registros à luz dos últimos acontecimentos,
perdendo a linha temporal que leva ao desenrolar de
cada fato, terminando por questionar não as suas
verdades, mas a existência do mundo fora de sua
mente. O personagem nesta hora tem a noção de que o
mundo percebido por ele é único, o que fica expresso
em seu último pensamento no filme.
Preciso acreditar em um mundo fora de minha mente.
Em que minhas ações ainda têm significado. Mesmo
que eu não me lembre delas. Preciso acreditar que ao
fechar os olhos, o mundo continua aqui. Acredito que
o mundo continua aqui? Continua a existir? Sim!
Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade...
73
Todos precisam de espelhos para se lembrar de quem
são. Não sou diferente... Onde eu estava mesmo?
(Fala do filme Amnésia)
3 CONCLUSÃO
Se a percepção do real oscila de acordo
definições pessoais de cada um, de acordo
filtros utilizados para perceber a realidade e,
impelida pela memória, depende-se dela
encaminhamento das ações futuras.
com as
com os
ainda, é
para o
A noção de verdade está ligada intimamente à de
realidade que é própria de cada ser humano. A verdade
do personagem Truman era a de seu mundo, que fora
planejado para ele, até o momento que percebera que
se tratava de uma prisão. Do mesmo modo os
personagens de Matrix estavam condicionados a uma
realidade onírica, definida por filtros que eram
programados por máquinas. Já o personagem de
Leonard, em Amnésia, estava vinculado unicamente a
sua noção de realidade, sua interpretação do real.
Como não conseguia se lembrar do que havia feito,
utilizava outras maneiras de passar adiante sua
memória, sua versão da história.
Todos os personagens que foram apresentados neste
texto buscam a verdade, queriam entender sua
realidade, em uma indagação comum de todos os seres
humanos pela memória, por sua própria história e por
sua identidade. A realidade de Truman, até sua
libertação, era uma prisão montada para o personagem
não saber o que acontecia, criada, como disse o
personagem Christof, "para a diversão de milhares de
pessoas". A prisão de Matrix era sua realidade virtual
criada para manter os seres humanos dormindo,
enquanto produziam energia para as máquinas. Em
Amnésia, Leonard era aprisionado por sua perda de
memória recente, não sentindo o tempo passar, o que o
levava a ser manipulado por outras pessoas.
No filme O Show de Truman, o personagem que até
então acreditava que sua vida representava a realidade
descobriu que ela não passava de uma criação de um
diretor de TV. Será que por ser criada a realidade é
menos verdadeira? Não serão todas as realidades
criadas a partir de determinadas ideias? Então como
saber qual a “verdade real”. Pesavento (1999, p.11) diz:
"[...] o historiador que trabalha com um tempo que
'corre' por fora da experiência do vivido, vai
representar o já representado, re-imaginar o já
imaginado. Nesta medida, imagens e textos são - para
ele - fontes sobre as quais vai colocar suas questões".
Podemos utilizar então as representações que
encontramos como guias de um imaginário coletivo,
que talvez não corresponda a uma verdade absoluta,
mas nos dê uma direção a seguir.
O laço que une estes filmes é o fundo temático da
necessidade existente em cada personagem de buscar
uma realidade que lhe faça sentido. O número
crescente de filmes produzidos a partir desta matriz
nos faz pensar como nossa sociedade atual está
fragilizada. Nossa época é muito complexa e a noção de
realidade pode ser facilmente perdida. Vivemos em um
mundo em que a reprodutibilidade atingiu um alto
grau e em que os objetos, as ideias, os conceitos podem
ser tirados do seu contexto, torcidos, esticados,
manipulados para determinados fins. Diante disto,
podemos pensar que só nos resta fazer como os
protagonistas dos filmes aqui analisados, ou seja,
construir uma verdade que possamos aceitar, seja ela
qual for, o que nos aproximaria também da definição
saramaguiana de cegueira (“somos cegos que vendo,
não veem”). Ou, em contrapartida, tomar a crítica da
fragilização da realidade como um motivo para
fincarmos pé em valores universais (ou que deveriam
ostentar tal status), tais como o respeito aos Direitos
Humanos,
à
diversidade,
à
democracia
verdadeiramente participativa ou ainda à manutenção
da vida sobre os interesses do capital. (Re)afirmar tais
valores como absolutos exigiria, assim, um exercício
permanente de não relativização da realidade, mas
também de construção, em nossa história e em nossa
memória, de parâmetros e signos capazes de nos guiar
por tal caminho.
REFERÊNCIAS
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Lisboa: Relógio D'água, 1981.
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Estados Unidos/Austrália, 1999, 136 min.
O SHOW DE TRUMAN (THE TRUMAN SHOW). Dir:
Peter Weir. Distribuição: Paramount Pictures. Estados
Unidos, 1998, 113 min.
Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade...
76
ESCOLA
PARA MENINOS: O
DISCURSO ANDROCÊNTRICO
NO LIVRO DIDÁTICO
ESCUELA PARA NIÑOS: EL DISCURSO ANDROCÉNTRICO EN LIBROS DE TEXTO
SCHOOL FOR BOYS: THE ANDROCENTRIC DISCOURSE IN TEXTBOOKS
Susie Silvana Barboza Moreira ∗
Atilio Butturi Junior ∗∗
∗
E s p e c i a l i s t a s e m T e o r i a s L i n gu í s t i c a s C o n t e m p o r â n e a s ( U F F S ) . P r o f e s s o r a d o E n s i n o M é d i o d a R e d e E s t a d u a l d e E n s i n o d o R i o G r a n d e d o
S u l . E - m a i l : su s i e m o r e i r a@ h o t m a i l . c o m .
∗∗
D o c e n t e d o P r o g r a m a d e P ó s - G r ad u a ç ã o e m L i n g u í s t i c a d a U F S C e do P r o g r a m a d e P ó s - G r a d u a ç ã o I n t e r d i s c i p l i n a r e m C i ê n c i a s H u m a n a s
d a U F F S. E - m a i l : a t i l i o . b u t tu r i@ u f s c . b r
Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático
77
RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT
RESUMO: Este artigo busca discutir e problematizar algumas questões relacionadas
ao gênero e à sexualidade presentes em livros didáticos de Língua Portuguesa. A
metodologia será dividida em duas etapas; a teórica, que tem como pilar a construção
discursiva da sexualidade e do sujeito na visão de Foucault; e a analítica, que observa
as regularidades discursivas sobre gênero presentes no corpus composto por três
livros didáticos de Língua Portuguesa, 6º anos, disponibilizados pelo PNLD, 2014, às
escolas públicas do Ensino Fundamental. Após os estudos, constatou-se que a
discriminação de gênero está fortemente presente em duas das obras analisadas e
somente um dos livros descritos apresenta alguma reflexão sobre a discriminação de
gênero e o machismo demonstrado algum cuidado em não haver predomínio do
masculino sobre o feminino nas imagens e texto utilizados. Em todas as obras
examinadas há um total silenciamento sobre a homossexualidade e constituições
familiares diferentes da heteronormatividade. Conclui-se que os livros didáticos
apresentam uma regularidade discursiva acerca do androcentrismo, da
heteronormatividade e uso de linguagem sexista.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Gênero. Livro didático.
RESUMEN: Este artículo tiene como objetivo discutir algunas cuestiones
relacionadas con el género y la sexualidad presentes en los libros de enseñanza de la
lengua portuguesa. La metodología se divide en dos etapas; el teórico, segundo la
construcción de la sexualidad y el tema en vista de Foucault, y el análisis, la
observación de las regularidades de género discursivo presente en tres libros
enseñanza de la lengua portuguesa, disponibles por PNLD en el año de 2014. Después
de los estudios, se encontró que la discriminación de género es muy presente en dos
de las obras analizadas y sólo uno de los libros descritos presenta una reflexión sobre
la discriminación de género y el sexismo mostrado algún cuidado de no construir una
dominación masculina sobre lo femenino en imágenes y texto utilizados. En las obras
examinadas hay un silenciamiento total de la homosexualidad y diferentes
constituciones de la familia heteronormatividad. Llegamos a la conclusión de que los
libros de enseñanza tienen una regularidad discursiva sobre el androcentrismo, la
heteronormatividad y el uso de lenguaje sexista.
PALABRAS CLAVE: Discurso. Género. Libro de texto.
ABSTRACT: This paper discusses and analyzes some issues regarding gender and
sexuality present in Portuguese textbooks. The methodology is divided in two stages;
the theoretical part, which is based on the discursive construction of sexuality and
the subject in Foucault's view, and the analytical, which observes the discursive
regularities regarding gender present in three Portuguese textbooks for the sixth
grade, provided by PNLD, 2014, to the public elementary schools. After the studies, it
was found that gender discrimination is strongly present in two of the analyzed books
and only one of the texbooks described reflects on gender discrimination and sexism
showing some caution in using images and text in which there is no predominance of
male over female. In all the books examined nothing was said about homosexuality
and family constitutions different from heteronormativity. It is concluded that
textbooks show a discursive regularity about androcentrism, heteronomativity and
the use of sexist language.
KEYWORDS: Discourse. Gender. Textbook.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015.
78
1 INTRODUÇÃO 1
No Brasil, o livro didático (LD) possui papel relevante
na educação e faz parte da memória de muitas
gerações, pois atua como mediador na construção do
conhecimento. Esse material didático, em muitos
casos, é o único apoio pedagógico utilizado na
educação formal das escolas públicas do país. Em tese,
estes livros devem materializar as transformações
sociais mais significativas, além de seguir critérios
mínimos de qualidade para se encaixarem no
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Entre
estas mudanças podemos considerar a nova
constituição familiar, as lutas feministas pela
igualdade de gênero e a luta pelos direitos dos
homossexuais.
O objetivo deste artigo é verificar se houve alterações
na representação do feminino e da família nos livros
didáticos de português direcionados ao Ensino
Fundamental. O corpus analisado é composto por três
livros didáticos de Língua Portuguesa (do professor),
do sexto ano 2 , de três coleções distintas que foram
distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático
oferecidos no triênio 2014/2016. O aporte teórico
fundamental
se
baseará
nos
estudos
arqueogenealógicos de Michel Foucault, no sentido de
se entender os discursos como materialização de
ordens do saber-poder específicas. Para analisar a
abordagem de gênero e sexualidade nas obras
didáticas este artigo pretende, na etapa teórica,
explorar as ideias de sujeito pontuadas, nos estudos de
Foucault, a construção discursiva da sexualidade, bem
como observar o papel da linguagem na construção do
sujeito, do discurso e da formação discursiva. A etapa
analítica busca observar quais as regularidades
discursivas sobre gênero presentes nos livros
didáticos.
2 O SUJEITO E A SUJEIÇÃO
O homem, figura central da filosofia e do saber
moderno, ser ativo com destino de conquistar a
natureza e evoluir e que tem como projeto central a
realização do ser, a construção do sujeito, é
abandonado por Foucault em As Palavras e as Coisas.
Para ele, o homem é uma figura do saber
contemporâneo produzido pelas estruturas das
ciências constituídas no fim do século XVIII, não é o
fundamento ou a essência de qualquer questão.
[...] pode-se estar seguro de que o homem é aí
uma invenção recente. Não foi em torno dele
e de seus segredos que, por muito tempo,
obscuramente, o saber rondou. De fato,
dentre todas as mutações que afetaram o
saber das coisas e de sua ordem, o saber das
identidades, das diferenças, dos caracteres,
das equivalências, das palavras – em suma, em
meio a todos os episódios dessa profunda
história do Mesmo – somente um, aquele que
começou há um século e meio e que talvez
esteja em via de se encerrar, deixou aparecer
a figura do homem [...] o homem é uma
invenção cuja recente data a arqueologia do
nosso pensamento mostra facilmente.
(FOUCAULT, 1999, p. 413)
Foucault propõe, assim, uma análise não sobre o
sujeito, ou sobre as razões que impedem o
desenvolvimento das potencialidades do homem da
filosofia tradicional. Pelo contrário, inicia sua análise
pelos processos de sujeição, pelo conjunto de
obstáculos que antecedem à constituição dos sujeitos
e que incidem sobre os corpos antes mesmo de
produzir consciências. Os homens são objetos de
poderes, instituições, saberes, ciências. Em sua aula
inaugural no Collège de France, Foucault retoma seu
projeto de atenção sobre o sujeito e o poder definindo
o papel central do que chama de discurso:
Suponho que em toda sociedade a produção
do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por
certo número de procedimentos que tem por
função conjurar seus poderes, dominar seu
conhecimento aleatório [...]. (FOUCAULT,
1999, p. 8-9)
Desse ponto de partida, seus estudos observarão como
os discursos são controlados, perpassados por formas
de poder que produzem sujeitos. Nesta aula, o francês
esclarece sobre os diversos procedimentos de
controle, tal como a interdição, que são os tabus que
limitam a enunciação de determinados temas, dentre
eles a política e a sexualidade. Traz à tona a oposição
da loucura e da razão para explicar como o discurso do
1
Este artigo é resultado da pesquisa realizada no Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Teorias Linguísticas Contemporâneas da
UFFS, campus Erechim, defendida no segundo semestre de 2014.
2
As escolas optam pela coleção (6º ao 9º ano) composta por livros do mesmo autor e que possuem uma mesma linha didático-pedagógica em cada
coleção.
Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático
79
louco é considerado nulo porque não atende às
exigências discursivas, não sendo visto como uma
palavra de verdade, tornando-se assim, sem validade,
exemplificando a exclusão pela rejeição e pela
separação. Foucault, em A ordem do discurso, nos alerta
que a separação ainda continua vagando entre as
pessoas: “a separação, antes de estar apagada, se
exerce de outro modo” (p.12).
Pensemos sobre as redes de instituições que penetram
e legitimam as relações entre os que retêm as palavras,
“a verdade” e os outros. Essa divisão entre o discurso
verdadeiro e o discurso falso que forma a nossa
vontade de saber. A partir daí, à Nietzsche, tudo se
passa como se “a vontade de verdade tivesse sua
própria história” (FOUCAULT, 1999, p.16).
Continuando os estudos sobre o discurso a que se
propõe, Foucault publica, entre 1976 e 1984, três obras
que vão abordar o tema “sexualidade” e que servirão de
base para estudos sobre gêneros e sexualidade
posteriores – notadamente aqueles que partem do pósestruturalismo: A História da sexualidade1: a vontade de
saber, no qual aborda a forma que a sexualidade foi
tratada a partir da época vitoriana até o século XIX,
evidenciando as relações entre poder produtivo e
dispositivo sexual; A História da sexualidade 2: o uso dos
prazeres, no qual faz uma análise das práticas
existentes em torno do sexo na Grécia Antiga e,
posteriormente, a mudança trazida pelo cristianismo
que associa sexo ao pecado da carne, distanciando-o da
noção de desejo; e A História da sexualidade 3: o cuidado
de si, em que Foucault expõe a relação do indivíduo
consigo mesmo, a preocupação como o uso dos
prazeres numa reflexão moral, médica e filosófica
possibilitando uma leitura crítica em torno da
condição humana contemporânea que permitiu uma
abertura para reflexões atuais em torno desse tema.
Os escritos de Foucault tiveram grande repercussão
em teorias contemporâneas do feminismo, do gênero e
da sexualidade. Dentre esses estudos, destaca-se o da
filósofa pós-estruturalista Judith Butler (2013), que
desenvolveu seus trabalhos direcionando os conceitos
de Foucault para as teorias feministas de gênero, com
a finalidade de expor os modelos naturalizados e
normativos de gênero e de heterossexualidade. Assim,
aprofundando o conceito de construção discursiva da
3
Essa construção discursiva da sexualidade elaborada por Foucault,
bem como o contexto cultural e a política de diferença sexual nos anos
1970 a 1989, serviram como catalisadores para as novas discussões de
gênero e sexualidade e para os estudos da chamada teoria queer.
Conforme Louro (2008, p.34-5): “[...] na cultura popular, queer
significava mais sensual, mais transgressor, uma demonstração de
liberdade, de diferença que não queria ser assimilada ou tolerada”.
sexualidade 3 de Foucault, Butler pontua que uma
identidade de gênero como “mulher” foi produzida
através
de
práticas
discursivas
contínuas
estruturadas
em
torno
do
conceito
de
heterossexualidade como a norma. Esclarece Spargo
(2006, p.52) que:
Para Butler, é através da repetição estilizada
de atos corporais, gestos e movimentos
particulares que o efeito de gênero é criado
como “temporalidade social”. Não nos
comportamos de determinados modos em
razão da nossa identidade de gênero;
adquirimos essa identidade e através desses
padrões
comportamentais,
os
quais
sustentam normas de gênero.
Assim, se a sexualidade é produzida discursivamente,
pode-se inferir que o gênero nada mais é do que um
efeito “performativo” aceito pelo indivíduo como uma
identidade
natural
(SPARGO,
2006,
p.49).
Consequentemente, a visão androcêntrica da
sociedade tida como natural torna-se apenas um
discurso ratificado pela ordem social que se constitui
em uma poderosa máquina simbólica que legitima a
dominação masculina.
A tese de dominação é, porém, relida segundo outras
inscrições teóricas. Assim é que, segundo Bourdieu
(2010, p.18), a divisão social de trabalho e a estrutura do
espaço designado, a homens e mulheres, são alicerces
dessa
dominação.
Nessa
problemática,
a
representação do próprio corpo não se constitui
somente da imagem do corpo, mas desde a origem toda
uma estrutura social está presente e interage,
inscrevendo nos corpos dos agentes esquemas de
percepção e de apreciação. Portanto, o corpo é
duplamente determinado socialmente. De um lado, por
uma identidade social naturalizada como, por
exemplo, nas mulheres: a delicadeza, a postura, a
atitude dócil entre outras. Por outro lado, os atos de
avaliação no espaço social reforçam os esquemas
através dos quais a representação social do próprio
corpo e suas propriedades corporais é aprendida e
hierarquizada, entre propriedades masculinas ou
femininas; entre dominados e dominantes e assim por
diante (BOURDIEU, 2010, p.79-80).
Inicialmente, o termo era utilizado pelas pessoas que achavam “gay” e
“lésbica” expressões inadequadas ou restritivas e preferiram “queer”
como identificador. Atualmente, a teoria queer é vista como uma
teoria sobre o gênero que afirma que tanto a orientação sexual, quanto
a identidade sexual ou de gênero são constructos sociais.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015.
80
De posição distinta de Bourdieu, Butler (2013) também
sugere que o que constitui o limite do corpo nunca é
meramente material, mas que a superfície, a pele, é
sistematicamente
significada
por
tabus
e
transgressões antecipadas. Em sua análise, as
fronteiras do corpo se tornam os limites do
socialmente hegemônico. Segundo ela, os gêneros não
podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas sim
produzidos como efeitos da verdade de um discurso
sobre a identidade primária estável. Percebe-se que as
identidades sexuais 4 e de gênero estão intimamente
inter-relacionadas, mas nossa linguagem e nossas
práticas frequentemente as confundem, tornando
difícil pensá-las distintivamente. O que se deve ter em
mente é o fato de que as identidades são sempre
construídas, elas não são dadas ou acabadas num
determinado momento. O que torna possível a
referência ao mundo descrita como atitude natural
não leva em consideração “as condições sociais de sua
possibilidade”. Para Bourdieu (2010, p. 17), tal fato
atribui às “arbitrárias divisões do mundo”, dentre elas
a divisão social entre os sexos, como algo natural,
legitimando-as.
Alguns estudiosos sugerem que, usualmente,
pensamos e trabalhamos sobre gênero numa matriz
heterossexual.
Essa
visão
androcêntrica,
heterossexual, impõe-se como natural e neutra,
dispensando justificação. É isso que nos leva a
considerar mais atentamente a necessidade de um
aparato teórico que leve em consideração o modo
como a sexualidade é regulada, e divulgada pelas
instituições do poder, pelo policiamento e censura do
gênero.
3 O PODER NA/DA LINGUAGEM
A relação entre o sujeito e a linguagem é central não
só para se compreender este último como um
constructo da modernidade, mas também para
problematizar o estatuto das ciências humanas que
foram instaurados por meio da linguagem e da relação
desta com esse sujeito. Foucault conclui que foi da
“sombra da linguagem” que se originou a noção de
sujeito da modernidade. Essa relação intrínseca entre
a linguagem e o sujeito é inquestionável, pois é a
linguagem que possibilita ao homem conhecer o
mundo e a si, representar seu pensamento, ter ciência
4
Este trabalho não trata de identidades de gênero conceitualmente;
entende identidade de gênero como produção discursiva, ou seja, não
como um conceito da ordem da natureza, mas como uma prática que
exige os corpos e os sujeitos para produzir identificações sempre
de sua condição e de sua finitude. Assim, é impossível
falar do homem sem falar antes da linguagem, já que
não é o homem que pensa a linguagem, é a linguagem
que diz o sujeito.
A relação do discurso com o poder, mencionada em A
ordem do discurso, evidenciou o discurso como prática
social permeada pela ação reguladora e produtora do
poder e das instituições. Portanto, é no plano do
discurso que se pode verificar tanto o controle quanto
a exclusão.
No que se refere ao gênero e à sexualidade de forma
mais direta, o papel da linguagem entendida como
discurso também é central e polêmico. Assim, em
Problemas de Gênero: feminismo e subversão da
identidade, no capítulo intitulado Linguagem, poder e
estratégia de deslocamento , Butler compara a visão da
escritora e feminista Monique Wittig ao da filósofa e
feminista belga Luce Irigaray. A autora ressalta que,
enquanto Wittig considera a linguagem um
instrumento de possível misoginia em sua aplicação,
mas não em sua estrutura, apoiando a crítica de
Simone Beauvoir de que não há uma “escrita feminina”,
Irigaray considera que a única maneira de se fugir da
“marca do gênero” seria a possibilidade de outra
linguagem e expõe a relação visivelmente “binária
entre os sexos como um ardil masculinista que exclui
por completo o feminino”. Butler considera que Wittig
“subestima o significado e a função da linguagem em
que ocorre a marca de gênero”. (BUTLER, 1990, p. 50).
É na perspectiva de que não devemos subestimar a
linguagem, conforme pontuam Irigaray e Butler, que
seguiremos este estudo.
Os movimentos feministas nos anos 1970 a 1980
tentaram transformar o sistema social, entendido
como a causa da opressão. Mas esse enfrentamento,
com o passar do tempo, transformou-se em uma luta
pela incorporação do feminino ao sistema social
vigente, aproximando-se do modelo étnico, visto como
grupo minoritário, passando a lutar pela obtenção de
direitos iguais e proteção do sistema (SPARGO, 1999,
p.27). Contudo, na atualidade ocidental, são raras as
sociedades onde mulheres e homens têm um
tratamento equitativo e o uso sexista da língua oral ou
escrita transmite e reforça as relações hierarquizadas
entre homens e mulheres. Foucault já salientava que a
manutenção do poder se dá pela ordem do discurso. O
móveis sobre o masculino, o feminino e suas diversas
interpossibilidades.
Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático
81
que se vê na sociedade atual pode ser lido sob a égide
de um discurso androcêntrico.
Em A arqueologia do Saber (2008. p.157), Foucault
acentua o caráter de luta política que imprimirá aos
enunciados na produção da História e conceitua as
práticas discursivas. Nesse sentido, procura “retirar do
campo das ciências humanas as certezas já
estabelecidas” a fim de que fiquem visíveis os próprios
discursos enquanto “práticas que obedecem a regras”,
apresentando os principais conceitos ligados à teoria
do discurso: o enunciado, a formação discursiva e o
arquivo. Inicia sua proposta tentando entender “os
acontecimentos discursivos que possibilitaram o
estabelecimento e a cristalização de certos objetos em
nossa cultura”; evidencia a emergência do enunciado
em sua “irrupção histórica” e em sua “singularidade de
acontecimento”. Se, de um lado, seu surgimento
“pressupõe articulações com outros enunciados”, de
outro, ele “é único, mas está aberto a repetições e se
liga ao passado e ao futuro”, está ligado a uma memória
e tem uma materialidade (GREGOLIN, 2004, p.88).
O enunciado, segundo Foucault (2008, p.31), “é sempre
um acontecimento que nem a língua nem o sentido
podem esgotar inteiramente”. Está ligado a diferentes
formas de expressão porque, embora ligado a “um
gesto de escrita” ou “à articulação de uma palavra”,
gera para si mesmo
[...] uma existência remanescente no campo
de uma memória, ou na materialidade dos
manuscritos, dos livros e de qualquer forma
de registro; em seguida, porque é único como
todo acontecimento, mas está aberto à
repetição, à transformação, à reativação;
finalmente porque está ligado não apenas à
situação que o provoca, e a consequências por
ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e
segundo uma modalidade inteiramente
diferente, a enunciados que o precedem e o
seguem. (FOUCAULT, 2008, p. 31-32)
Assim, segundo Gregolin, o autor passa a enxergar o
enunciado no interior de uma historicidade, que
produz uma “relação que envolve sujeitos, que passa
pela história, que envolve a própria materialidade do
enunciado” (GREGOLIN, 2004, p.90).
Ao descrever o enunciado, Foucault se questiona onde
estaria a unidade, a regularidade, uma “ordem em seu
aparecimento”, “correlações em sua simultaneidade”,
“transformações ligadas e hierarquizadas” que
possibilitariam a análise e a propagação dos
enunciados. Propõe-se, então, a descrever os sistemas
de dispersão, esclarecendo o conceito de formação
discursiva. Nesse sentido, afirma Gregolin, o filósofo
institui como campo das formações discursivas todo o
espaço histórico, visto estarem inseridos nele o
discurso, o sujeito e o sentido (GREGOLIN, 2004, p. 90).
Quando um acontecimento discursivo tem uma
regularidade na dispersão de enunciados, ocorre o que
Foucault chama de “positividade de seus discursos”.
Um acontecimento discursivo que apresente uma
regularidade na dispersão de enunciados possui um a
priori histórico que seria a positividade dos discursos
pertencentes a uma mesma formação discursiva. A
positividade nos revela “a massa de textos que
pertence a uma mesma formação discursiva”
(GREGOLIN, 2004, p.91). Foucault propõe que se pense
no conceito de “arquivo”:
[...] o arquivo é, de início, a lei do que pode ser
dito, o sistema que rege o aparecimento dos
enunciados como acontecimentos singulares.
[...] é o que define o sistema da enunciabilidade
do enunciado-acontecimento. [...] é o sistema
de seu funcionamento. [...] entre a tradição e o
esquecimento, ele faz aparecerem as regras
de uma prática que permite aos enunciados
subsistirem, ao mesmo tempo, se modificarem
regularmente. (FOUCAULT, 1986 apud
GREGOLIN, 2004, p. 92)
De acordo com Gregolin, Foucault ainda observa que
todo “o enunciado sempre tem margens povoadas de
outros enunciados”. Essas margens são como “redes
verbais”; uma série de outras formulações que formam
“uma trama complexa” de repetições e referências
implícitas ou explícitas através das quais a História é
construída, tanto pelos “jogos de enunciativos” quanto
pelas “batalhas discursivas” (GREGOLIN, 2004, p.9293).
Todo enunciado se constitui dessas redes verbais
compostas por outras formulações, às quais ele se
refere; mas, para que a História seja também
constituída por esses jogos enunciativos, é necessária
uma materialidade que pode ser uma “voz que o
enuncie” ou “uma superfície que registre seus signos”.
O enunciado tem necessidade de “uma substância, um
suporte, um lugar e uma data” e que, à medida que se
alteram, modificam também a própria identidade do
enunciado. O enunciado é, portanto, sensível às
diferenças “de matéria, substância, tempo e lugar”
(GREGOLIN, 2004, p.92-93). Dessa perspectiva, o livro
didático constitui-se em uma materialidade de
enunciados que possui certo status de objeto com
poder de alterar a identidade do enunciado já que, em
nossa sociedade, essa materialidade confere aos
enunciados o valor de “verdade”. Sua linguagem pode
sim estar propagando a naturalização de identidades
de gênero, de superioridade masculina, fazendo uso de
linguagem sexista que reforça a hierarquização das
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015.
82
relações entre homens e mulheres ou simplesmente
silenciando as minorias a fim de manter o status quo da
sociedade androcêntrica. Neste sentido, a escola é uma
instituição privilegiada na manutenção do poder e,
mais precisamente, a formação discursiva presente no
livro didático de Língua Portuguesa, com relação à
regulação do gênero “mulher” e da sexualidade, é o
recorte que se pretende observar. Para tanto, é
importante conhecermos um rápido histórico sobre os
programas que possibilitaram o uso, em grande escala,
do livro didático no Brasil.
desatualização, preconceito ou discriminação de
qualquer tipo são excluídos do Guia do Livro Didático.
Porém, alguns segmentos da sociedade atual, tais como
as mulheres, os negros, os homossexuais entre outros,
sustentam que não é o que ocorre.
Um dos critérios de avaliação para o livro didático
participar do Programa Nacional do Livro Didático é
que sejam seguidas as orientações dos PCNs –
Parâmetros Curriculares Nacionais – que são
referenciais elaborados pelo governo federal, com a
finalidade de servir como base comum na formulação
ou reformulação dos currículos escolares.
4 HISTÓRIA DO LIVRO DIDÁTICO
Hoje em dia, o livro didático coexiste no universo
escolar com outros materiais: audiovisuais, CDs,
internet etc. Porém, ainda continua tendo papel
principal no Ensino Fundamental da maioria das
escolas. O Instituto Nacional do Livro (INL) foi criado
em 1929 e tinha por objetivo legitimar o livro didático
no Brasil e auxiliar no aumento de sua produção. Em
1938, através do decreto Lei nº 1.006 de 30 de
dezembro, foi criada a Comissão Nacional do Livro
Didático (CNLD), que instituía a primeira política de
legislação para tratar da produção, controle e
circulação dessas obras (FNDE, [2014?]). Entretanto,
Freitag, no decorrer de seus estudos sobre o livro
didático, deixa claro que essa comissão tinha e ainda
tem mais função de controle político-ideológico do
que pedagógico (FREITAG, 1989).
Ao longo do tempo, o programa de distribuição e
produção de livros didáticos foi se aperfeiçoando 5 .
Somente em 1985 houve uma significativa alteração
no programa de produção e distribuição do Livro
Didático (LD), quando o atual PNLD (Programa
Nacional do Livro Didático) veio substituir o PLINDEF.
No entanto, o discurso pedagógico ainda estava sendo
deixado em segundo plano. O processo de avaliação
pedagógica dos livros inscritos para o PNLD só foi
iniciado em 1996 e passou por vários processos de
aperfeiçoamento até a publicação do primeiro Guia do
Livro Didático, no qual eram elencados os critérios de
avaliação para o livro participar do programa. Na visão
do FNDE e do PNLD, a partir daí, os livros que
apresentam erros conceituais, indução a erros,
5
Em 1945, a legislação de produção, importação e utilização do livro
didático fica consolidada. A partir daí foi restringido ao professor a
escolha do livro a ser utilizada por seus alunos, normativa nem
sempre cumprida pelos estados. Um acordo, em 1966, entre MEC e a
Agencia Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional
assegurou recursos para a distribuição gratuita de 51 milhões de
livros no período de três anos e o programa adquiriu continuidade.
Entre os anos 1970 a 1983, as alterações foram relativas à extinção e
criação de programas que visavam à produção e distribuição do livro
didático e de organizar recursos para a continuidade da distribuição
Os PCNs são desenvolvidos por áreas de conhecimento
e servem como um referencial para o fazer
pedagógico, sendo flexíveis e abertos. Definem
também os objetivos gerais e da área, bem como as
capacidades que os educandos devem desenvolver no
nível de educação em que se encontram. Compostos
por dez livros, os PCNs são direcionados aos níveis de
ensino específicos: Fundamental I, Fundamental II e
Ensino Médio. Os parâmetros do Ensino Fundamental
II, do 6º ao 9º ano, são compostos por dez volumes,
sendo que os temas transversais são desenvolvidos a
partir do décimo volume, assim distribuídos:
Apresentação, Pluralidade Cultural, Meio ambiente,
Saúde e Orientação Sexual.
No livro introdutório dos temas transversais a
Secretaria de Educação deixa claro ao professor que
[...] não se trata de que os professores das
diferentes áreas devam “parar” sua
programação para trabalhar os temas, mas
sim de que explicitem as relações entre ambos
e as incluam como conteúdo de sua área [...]
não se trata, portanto de trabalhá-los
paralelamente, mas de trazer para os
conteúdos e para a metodologia da área a
perspectiva dos temas. (PCN, 1998 p.27, grifos
nossos)
Isso significa dizer que a Orientação sexual, tanto em
seus objetivos quanto em seus conteúdos propostos,
deveria ser encontrada nos conteúdos das diferentes
áreas do conhecimento, sendo queque cada área, “[...]
assim como acontece com todos os Temas
gratuita de livros. Extinto o INL, criou-se a Fename (Fundação
Nacional do Material Escolar). Extinto esse programa, surgiu a FAE
(Fundação de Assistência ao Estudante), que incorporou vários
outros programas de assistência do governo, incluindo o Programa
do Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF). (FNDE, 2014,
grifos nossos).
Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático
83
Transversais, estará impregnando toda a prática
educativa” (PCN – Orientação sexual, p.307).
Cada uma das áreas tratará da temática da sexualidade
por meio de sua própria proposta de trabalho. Assim,
de acordo com o livro do PCN – Orientação sexual:
Com a inclusão da Orientação Sexual nas
escolas, a discussão de questões polêmicas e
delicadas, como masturbação, iniciação
sexual,
o
“ficar”
e
o
namoro,
homossexualidade,
aborto,
disfunções
sexuais, prostituição e pornografia, dentro de
uma perspectiva democrática e pluralista, em
muito contribui para o bem-estar das
crianças, dos adolescentes e dos jovens na
vivência de sua sexualidade atual e futura.
(PCN, 1998, p. 293)
O Livro 1 dos Parâmetros Curriculares do Ensino
Fundamental apresenta os objetivos gerais entre os
quais “[...] conhecer e valorizar a pluralidade do
patrimônio sociocultural brasileiro [...] posicionandose contra qualquer discriminação baseada em
diferenças culturais, [...], de sexo, de etnias e outras
características individuais e sociais [...];” e
“desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e
o sentimento de confiança em suas capacidades
afetiva, física, [...] estética, inter-relação pessoal e de
inserção social [...] (PCN, 1998, p.5).
Já os Parâmetros Curriculares voltados à orientação
sexual apresentam objetivos mais direcionados à
sexualidade,
colocando
que,
através
do
desenvolvimento dos temas transversais, os alunos
devem ao final do Ensino Fundamental ser capazes de
“respeitar a diversidades de valores [...] reconhecendo
e respeitando as diferentes formas de atração sexual e
o seu direito à expressão” [...]; “identificar e repensar
tabus e preconceitos referentes à sexualidade,
evitando
comportamentos
discriminatórios
e
intolerantes e analisando criticamente estereótipos”;
“reconhecer como construções culturais as
características socialmente atribuídas ao masculino e
ao
feminino
posicionando-se
contra
a
discriminação”[...] (PCN, 1998, p. 341). Também está
presente o reconhecimento do corpo, cuidados e
prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e
consciência crítica nas decisões voltadas à
sexualidade.
Ao justificar a “orientação sexual” como tema
transversal a Secretaria de Educação argumenta que:
É nas relações sociais que se definem, por
exemplo, os padrões de relação de gênero, o
que homens e mulheres podem e devem fazer
por serem homens e mulheres, e,
principalmente, quais são e quais deverão ser
os direitos de cidadania ligados à sexualidade
e à reprodução. O alto índice de gravidez
indesejada na adolescência, abuso sexual e
prostituição infantil, o crescimento da
epidemia da Aids, a discriminação das
mulheres no mercado de trabalho, são
algumas das questões sociais que demandam
posicionamento em favor de transformações
que garantam a todos a dignidade e a
qualidade de vida, que desejamos e que estão
previstas pela Constituição brasileira. (PCN,
1998, p. 307)
Retomemos Foucault para analisar o conceito de
"orientação sexual". Em O nascimento da medicina
social, palestra proferida no Rio de Janeiro, ele analisa
a história da medicina antiga até a medicina social
moderna e observa que a espécie humana “entra em
jogo nas estratégias políticas de um Estado”, o corpo
passa a se transformar em “uma realidade biopolítica e
a medicina uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT,
1979, p. 80). Consequentemente, surgiram “diversas
formas de controle do indivíduo e das populações”
(DANNER, 2010, p.143-157). A biopolítica cria, então,
instrumentos de formatação e normalização não só
das populações, mas dos indivíduos.
Torna-se necessário observar que os PCNs –
Orientações sexuais direcionam o tema sexualidade
como um problema de saúde social, quando o associa à
contenção de epidemias e gravidez indesejada. A
sexualidade passa a ser alvo de mecanismos de
controle dos corpos e da saúde da população,
evidenciando o biopoder. A discussão de gênero, como
se vê, está disciplinarizada dentro de uma perspectiva
de saúde nos Parâmetros Curriculares Nacionais.
Discursivamente, é importante ressaltar que as
relações de desejo exigem "orientação", como
demanda a biopolítica. Dessa perspectiva, os PCNs, a
“orientação sexual" como tema transversal deve estar
presente nos livros didáticos das áreas de estudos,
tanto em seus conteúdos, quanto em suas
metodologias. Em todos os livros dos PCN Ensino
Fundamental ou Temas Transversais é recorrente a
visão de que a educação é um meio importante para “o
processo de construção da cidadania”. Se os PCNs são
um norte a ser seguido, que embora abertos e flexíveis,
devem pontuar os conteúdos mínimos do Ensino
Fundamental no país, certamente, tanto os conteúdos
mínimos por áreas de estudo, quanto os temas
transversais devem estar presentes nos critérios de
avaliações do Programa Nacional do Livro Didático.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015.
84
Vários trabalhos acadêmicos têm abordado o livro
didático como tema de estudos, já que se trata do mais
extenso suporte didático nas escolas públicas
brasileiras; além disso, como se destina à formação de
crianças e jovens, torna-se um instrumento
privilegiado na construção de identidades, assumindo
também um importante papel político. Estes estudos
têm surgido nos ambientes acadêmicos e de suas
produções, mas também no ativismo feminista e de
outras minorias que vêm denunciando a educação
diferenciada de meninos e meninas, o uso de
linguagem sexista, ou discriminação de gênero ou
étnicas na educação e tentam construir estratégias de
combate a todo tipo de discriminação.
torna invisível a mulher, reproduzindo o processo
constante de sujeição e exclusão.
Tem-se em mente, aqui, observar os enunciados em
sua "raridade", como gostaria Foucault. Para isso, “é
preciso desfazer as familiaridades e as falsas unidades,
verificando as condições de raridade que permitiram a
emergência de um enunciado e não de outros [...],
averiguar com desconfiança os empreendimentos que
[...] não atentam para aquilo que os tornou possível
como saber” (BUTTURI JUNIOR, 2009, p.207).
Procedeu-se, a partir dessa visão, às observações mais
detalhadas dos livros didáticos:
5.1 Análise do Livro A
5 OS LIVROS DIDÁTICOS - ANÁLISES
Ao se proceder as análises dos livros didáticos de
língua portuguesa, 6º ano, optou-se por livros
oferecidos pelo PNLD 2014, de três editoras distintas:
livro A - Vontade de saber português, das autoras
Rosemeire Alves e Tatiane Brugnerotto, editora FTD;
livro B – Português linguagens, de William Roberto
Cereja e Thereza Cochar Magalhães da editora
Saraiva; e livro C –Universos – Língua Portuguesa 6 ano,
obra coletiva cujo editor responsável é Rogério de
Araújo Ramos, de Edições SM. Todos os livros possuem
o Manual do Professor com orientações extras, mas as
sugestões de respostas e orientações aos professores e
professoras estão juntas às questões.
Na apresentação das obras constatou-se que, nos
livros A e B, foi usada a linguagem no masculino (A leitor, escritor; B – caro estudante; bem humorado,
irrequieto, dinâmico, criativo); somente o livro C
iniciou com “Prezado aluno e prezada aluna” e assinam
o texto com “A equipe”. O livro A, escrito por mulheres,
usou o masculino na apresentação, mas assinou “As
autoras”. Já na apresentação do Manual do Professor, A
e C dirigiram-se ao educador e educadora, professor e
professora, mas todos utilizam o masculino como se
fosse uma forma neutra e universalizante. Entretanto,
o Censo Escolar da Educação Básica, de 2009 (INEP), já
confirmava a percepção geral de que o percentual
entre os educadores de Ensino Fundamental no país é
predominantemente feminino. São 82% de mulheres
na Educação Básica, 97% na Educação Infantil, 83% no
Ensino Fundamental e 65% no Ensino Médio. No
entanto, em um rápido estudo em qualquer gramática
da Língua Portuguesa, pode-se comprovar que não
existem substantivos neutros; portanto, usar o
masculino como neutro é no mínimo uma tradição
androcêntrica e um uso sexista da linguagem, que
Neste livro, verifica-se o uso predominante do
masculino como universalização na linguagem (os
motoristas, os pedestres, oriente/organize os alunos,
autor, professor, etc.) em detrimento do feminino que
aparece algumas vezes entre parênteses (tio (a), filho
(a)). As histórias são todas heteronormativas, casais
heterossexuais (p. 91) com reconstituição de discursos
de “malandragem”, “esperteza” masculina (então ela
passava cola pra ele na prova, p. 16) e da mulher “como
salvadora, cuidadora do homem”, bem como a
reafirmação de profissões de homens (medicina,
coveiro, bombeiro, p. 16, 103, 143, respectivamente) e
de mulher (comunicação, secretária, professora, p. 16,
196, 237). Na profissão considerada “de mulher” usa-se
o substantivo no gênero feminino.
Aqui, toma-se um enunciado exemplar. No estudo do
texto Engano, de Alexandre Azevedo (p.16), poderiam
ter sido problematizadas algumas questões com
relação ao gênero, mas as perguntas são voltadas
somente à compreensão e interpretação do texto.
Nesta unidade, a principal questão social apresentada
é o bullying, mas não se toca na questão de gênero ou
sexualidade, dando-se preferência para a religião e
padrões de beleza – este último sendo um tópico em
potencial para a discussão de gênero, visto serem as
mulheres as principais vítimas da imposição de
padrões de beleza. Seria importante e possível se
abordar tanto a homossexualidade (um dos alvos do
bullying),
quanto
a
estrutura
da
família
contemporânea. No entanto, nem nas sugestões
presentes no Manual do Professor ou nas sugestões de
respostas há desenvolvimento desses temas.
Por sua vez, as ilustrações reconstituem discursos de
feminilidade com meninas ao telefone, sempre
associadas ao falar bastante, fazer compras (p.17, 22, 31,
117), ou à delicadeza, beleza, cuidados com o outro e à
família (p. 33, 57, 91, 191, 237). Quando ligadas ao
negativo, são relacionadas à estética, (“baranga”,
Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático
85
“fofoqueira”, “bruxa”p. 30, 102, 113). Não há em nenhum
texto verbal ou não verbal menção de uma
constituição
familiar
diferente
da
heteronormatividade, de acordo com a qual a mulher
cuida da casa e filhos enquanto o homem trabalha fora
(p.21, 91,175, 207).
Figura 2 - Ilustração Livro A, p.91
Reforçam-se também os espaços fechados para as
mulheres, junto à família, à espera do amor ou com
profissões que replicam essa ideia de cuidado do outro.
Convém observar o menosprezo às aspirações da
mulher e às suas habilidades, presente na ilustração 2
e 3, respectivamente, as quais naturalizam as mulheres
como sujeitos de segunda categoria, com capacidade
inferior, dependentes dos homens e em situação
humilhante. O uso de expressões aparentemente
inofensivas em exercícios de estudos de gramática,
como ocorre nas situações ilustradas, são facilmente
detectadas e poderiam ser excluídas ou modificadas
para que meninas e meninos, ao fazerem tais
atividades, não fiquem à mercê da transmissão de uma
discriminação por gênero consolidada em nossa
sociedade.
Para os homens, surge uma pluralidade de lugares,
sempre os associando à força, esperteza, esportes
radicais, coragem e ao comando. Importante ressaltar
que a maioria das ilustrações presentes foram
produzidas para o livro, portanto, seriam de fácil
correção. O uso do diminutivo para demonstrar
desprezo poderia ter sido utilizado em outro contexto
que não o direcionado à mulher como “menininha
preguiçosa” (p.91). As tirinhas presentes na obra são de
diferentes autores, mas reforçam discriminações
presentes na sociedade e deveriam passar por um
crivo mais apurado, tanto por parte dos autores,
quanto das equipes do PNLD que avaliam esses livros,
a fim de não validar preconceitos através do livro
didático. Convém lembrar Foucault, que observou a
importância da materialidade, já que o livro didático
confere aos enunciados ali presentes um aspecto de
“verdade”.
Observam-se
algumas
fotografias,
principalmente de anúncios publicitários, com ênfase
em paisagens e figuras masculinas (em situação de
êxito).
O tema Heróis 6 foi abordado no capítulo 1, unidade 6,
na qual o heroísmo é associado, essencialmente, a
figuras masculinas. A parte dois dessa unidade é
composta por dois textos. O primeiro conta a história
de um menino que saiu de um centro de atendimento
socioeducativo para adolescente e se transformou em
um educador e, por isso, foi considerado um herói. A
pedagoga, porém, que o adotou e o levou a superar as
dificuldades, não recebe crédito algum. O segundo
texto conta a história de Helen Keller, menina com
deficiência múltipla que se tornou escritora e
conferencista, fato que faz com que ela passasse a ser
vista como um “milagre” e sua professora vista como
“persistente”. Contudo, na sequência do estudo do
texto, desenvolve-se o tema Heróis da realidade (p.241243) e todas as fotografias que servem de
exemplificação são de homens. Em nenhum momento
a palavra heroína foi usada (mas, “um milagre” e
“persistente”, p.235 e 240), como se o heroísmo fosse
uma característica estritamente masculina.
No encarte Orientações para o professor, nas
Orientações Gerais (Estrutura da Obra, Mapa de
Conteúdos e Orientações Metodológicas), as autoras
mencionam os Objetivos do ensino de Língua
Portuguesa previsto nos Parâmetros Curriculares,
mas não abordam nada relativo aos Temas
Transversais.
A “masculinidade como nobreza” (BOURDIEU, p. 71)
parece ser o discurso (nem tão implícito) que a obra
analisada reflete. Um apelo explícito à ordem, à
naturalização inquestionável, à hierarquização das
relações entre homens e mulheres, entre profissões
femininas e masculinas.
5.2 Análise do Livro B
O Livro B se inicia apresentando, no sumário, 20
pequenas ilustrações com predominância de imagens
de meninos, dentre as quais a única que apresenta uma
figura feminina reforça o discurso de preocupação
com beleza, no caso o peso, como característica
6
Convém lembrar que alguns temas são recorrentes nos livros
didáticos do 6º ano, entre eles: Heroísmo, Contos de Fadas, Lendas; e o
estudo das classes de palavras.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015.
86
feminina, conforme podemos verificar no conjunto da
obra.
O capítulo 1 aborda o tema Contos de fadas, Heróis,
vilões e outras personagens, com texto inicial cujas
protagonistas são mulheres; no entanto, quando se
encaminha a produção de texto todas as orientações
para reflexão sobre “o herói” e “o antagonista” são no
masculino, mesmo quando usa como exemplo as falas
das personagens femininas. Ao sugerir temas e
personagens para a produção de um conto, papéis
estereotipados de homem e mulher são reforçados,
como podemos verificar neste trecho:
[...] Uma história ocorrida nos dias atuais.
Nesse caso, trabalhem com outros tipos de
personagens, como, por exemplo, um garoto
corajoso e destemido, uma mocinha distraída
que adora ler, um cantor de rap, um
esqueitista, uma avó moderna, ou um herói às
avessas [...] para ser o vilão, escolham uma
feiticeira muito má, uma bruxa moderna [...].
(CEREJA; MAGALHÃES, 2012, p. 20)
Toda a unidade 1 gira em torno dos contos de fadas que
seriam úteis para se introduzir o tema dos estereótipos
femininos e masculinos através das questões ou das
orientações ao professor. Mas isso não ocorre, muito
pelo contrário, se reafirma constantemente, através
de textos verbais e não verbais, o papel de que cabe a
mulher cuidar dos filhos, da casa (p. 39, 76, 101, 105, 139).
O uso de pronomes possessivos relacionados à mulher
como posse também são comuns nas questões, como
por exemplo, “o que Moira, a mulher de Peter [...]”
(p.57). Apesar dos enunciados do Livro B, é salutar
lembrar de que as mulheres não são objetos – uso da
expressão “mulher de” em vez de esposa – como
implicitamente, o uso da linguagem sexista perpetua.
Como já se disse anteriormente neste artigo, a língua
tem um forte valor simbólico, já que o que não se
nomeia não existe, como Cervera e Franco salientam.
Portanto, excluir o feminino das palavras que indicam
profissões é reforçar os espaços abertos e
profissionais para homens e os fechados para
mulheres. Em um dos exercícios sobre adjetivos (p.87)
são listadas profissões para serem adjetivadas, mas
nenhuma delas está no feminino (cozinheiro, jogador de
futebol, modelo, médico, bombeiro, engenheiro, pintor);
por outro lado, as que se referem a mulheres quando
aparecem são sempre de professora, doceira, balconista
(p.147, 119, 144, respectivamente).
A configuração familiar heterossexual é reforçada em
toda a obra, bem como a ênfase na preocupação (da
7
Convém salientar que Semântica e discurso é o título do livro de
Pêcheux, para quem "o sujeito do discurso continua sendo concebido
como puro efeito de assujeitamento à maquinaria da Formação
Discursiva com a qual se identifica” (PÊCHEUX, 1975 apud BUTTURI
JUNIOR 2009, p.98). Ocorre, portanto, uma confusão por parte dos
mulher) com a aparência. Através desses textos se
poderiam abordar os estereótipos femininos e
masculinos presentes na sociedade, no entanto, não
são desenvolvidos nas questões de compreensão e
interpretação dos textos e/ou dos quadrinhos que
envolvem esse tema, nem tampouco, sugeridos nas
respostas ou orientações no Manual do professor.
Observe-se o enunciado abaixo:
Figura 1 - Ilustração Livro B, p.124
A “sugestão de resposta” da questão três, referente à
ilustração 6 (que é o questionamento de o porquê “ele
empregou a palavra macho junto à palavra baleia”),
tem a seguinte orientação: “Resposta pessoal.
Sugestão: por ser machista Bibelô não admite ser
comparado a algo feminino, no caso, uma baleia. Daí ter
empregado uma expressão que ele supõe ser a forma
masculina desse substantivo”. Enfatiza o machismo
como algo natural e a feminilidade como algo inferior
e indesejado.
Na introdução do Manual do Professor encartado no
final do livro B, o autor e a autora salientam que essa
nova edição “chega aos professores da rede pública de
ensino completamente revista, ampliada e atualizada”
[...], “tendo como horizonte a perspectiva do texto e do
discurso” (p.4 – grifos dos autores). Esclarecem,
também, sobre as cinco seções que compõem os
capítulos, entre elas: Trocando ideias, que leva “o aluno
a transferir essas ideias para a sua realidade concreta
e se posicionar diante delas” (p.9), mas que são
direcionadas para comportamentos e valores
específicos, tais como: “extrapolar, generalizar e
particularizar, respeitar opiniões alheias, técnicas de
conta-argumentação e persuasão” (p.9 – grifos dos
autores); e Semântica e discurso 7, que teria o objetivo
de explorar o texto a partir de uma “perspectiva da
semântica ou da análise do discurso e de observar a
‘ambiguidade ou a intencionalidade linguística’” [...]
(p.14 - grifos dos autores).
autores, já que a pragmática é quem trabalha com a intencionalidade
e não a AD.
Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático
87
Entretanto, não se verificou encaminhamento nas
questões para reflexões acerca do discurso e suas
intencionalidades e, nenhuma abordagem de temas
transversais direcionados à orientação sexual, como a
análise crítica de estereótipos homem/mulher
(abundantes na obra), que não são abordados nas
sugestões de respostas, tampouco nas orientações no
Livro do Professor. Observa-se um trabalho incessante
de reprodução de padrões sociais através da
linguagem verbal e não verbal que tendem a perpetuar
o padrão sexista de nossa sociedade. O suporte
institucional (escola) e o discurso androcêntrico que
circula nos textos presentes nesse livro didático, bem
como a linguagem sexista utilizada, legitimam a
exclusão feminina, naturalizando-a.
um adendo, algo que não pertence ao corpo da obra de
fato, pode vir a desvalorizá-lo.
Volta-se aqui ao apontamento feito por Foucault sobre
a materialidade como um constituinte do enunciado,
podendo atribuir a ele maior ou menor valoração.
Neste caso, atribuiria às orientações uma
desvalorização, pois nem sequer pertence ao corpo da
obra (orientações adicionais no final do livro). Verificase que a questão b, solicita que se escreva qual a visão
sobre a mulher presente nos textos e tem a sugestão de
resposta seguinte: “Na lenda indígena, a mulher é vista
como responsável pelos afazeres domésticos da tribo.
[...] No mito, a mulher é vista como um ser acometido
pela curiosidade, que acabaria por causar desgraça à
humanidade” (p.29, grifos nossos).
5.3 Análise do Livro C
No Livro C, já no Manual do Professor, a apresentação
inicial é diferente dos anteriores, dirigida ao
“professor” e “professora”. Porém, há no restante do
encarte a universalização da linguagem no masculino.
Os PCNs são mencionados no tópico que aborda a
diversidade regional para justificar “[...] uma
abordagem de pluralidade cultural e o empenho em
oferecer a maior variedade possível de pontos de vista,
seja na seleção de autores [...], seja na seleção de
situações exploradas pedagogicamente ou na seleção
de imagens que contemplem a diversidade de
costumes, dinâmicas sociais e etnias deste país” (p.6).
“A equipe” aborda também a interdisciplinaridade e a
inclusão preconizada nos PCNs; no entanto, os temas
transversais não são mencionados.
Ao descrever a obra, “a equipe” reforça que nas
sugestões de respostas será usado o ícone MP para
sinalizar que, no manual do professor, haverá
respostas e comentários adicionais das atividades
como, por exemplo, no estudo do texto Prometeu e os
primeiros homens, na atividade de Reconstrução dos
sentidos do texto, na qual há duas questões que
envolvem a mulher, preconceito social e estereótipo.
Há um encaminhamento através das questões e das
sugestões de respostas, além do uso do ícone (MP)
sinalizando mais orientações. No entanto, não há um
aprofundamento da questão, podendo haver, segundo
a visão da professora ou do professor, um reforço da
visão estereotipada da mulher, pois se deve procurar
no Manual do Professor, no final do livro, a orientação
que complemente as respostas pessoais do aluno. Tal
prática pode ser deixada de lado, já que não parece ser
fundamental para as respostas e só deve ser usada
“caso” alguma aluna ou aluno mencione ou questione a
visão preconceituosa. Nesse sentido pode-se observar
que a materialidade do enunciado, que aparece como
Já na questão seguinte, questiona-se se essa visão
sofreu alterações e nessa sugestão de resposta há a
expressão “resposta pessoal” que pode ser entendida
por alguns como qualquer opinião mesmo sem
embasamento teórico, evitando-se assim um debate e
reflexão mais consistentes. O efeito produzido é o de
validação do estereótipo feminino e não de
questionamento e reflexão sobre sua propagação na
sociedade. Um desses questionamentos, bastante
positivadores de um suposto “novo” feminino,
pergunta: “Que visão sobre a mulher é transmitida pela
lenda? E pelo mito?” (p.29). Por fim, nas Orientações, no
final do livro (p.91), encontra-se o seguinte comentário
adicional:
Depois da leitura (A reconstrução dos sentidos do
texto)
Comentário sobre a atividade 10;
Professor, você pode explorar os cinhceimentos prévios
dos alunos sobre a visão da mulher na sociedade
contemporânea. Lembre-os das mulheres que conhecem
o quais os espaços sociais que ocupam. Faça-os perceber
que,
principalmente
nas
sociedades
urbanas
industrializadas, após as conquistas dos movimentos
feministas, as mulheres, cada vez mais, dividem suas
tarefas (domésticas, de trabalho, de lazer, etc.) com os
homens. Do mesmo modo, os alunos podem argumentar
que a curiosidade é uma característica inerente ao ser
humano, tanto de homens como de mulheres.
Verifica-se, portanto, alguma abordagem sugerida nos
temas transversais, tanto através das questões, quanto
nas orientações à professora ou professor, relativas a
opiniões discriminatórias baseadas no sexo e análise
de estereótipos masculino e feminino. No entanto,
teriam maior peso e significação se estivessem na
sugestão de resposta, no corpo da obra, e se houvesse
um questionamento sobre se essas características
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015.
88
dadas às mulheres, na questão 10b, não são também
características presentes nas pessoas do sexo
masculino. Outra tentativa de inserção de tema
referente ao machismo pode ser verificada na obra.
Observe-se o enunciado a seguir:
aparecem circunscritas aos dramas da paixão (“Arrasa,
lindo”) ou visualmente marcadas pela exacerbação de
características tidas como femininas (cabelos,
indumentária etc):
Figura 3 - Ilustração, Livro C, p.207
Figura 4 - Ilustração, Livro C, p.213
Cabe notar que é uma mulher está dizendo que “lugar
de mulher é na cozinha” colocando-se assim, a própria
mulher
como
propagadora
do
machismo,
culpabilizando-a pela discriminação que ela mesma
sofre.
Outras abordagens estão presentes nos capítulos 10, 11
e 12, que giram em torno do tema futebol, narradores
de futebol e medalhistas em esportes variados.
Observa-se um cuidado nos textos verbais em
encaminhar reflexões que desmistifiquem a ideia de
esportes masculinos e femininos, bem como, na
seleção de imagens que procuram não privilegiar
culturas, etnias, gênero ou profissões. Não obstante
tais preocupações, nas 10 fotografias de esportistas,
aparecem sete homens e três mulheres. Mais adiante,
na apresentação do projeto anual de leitura de
romance, usa na sensibilização, a obra e o filme O auto
da Compadecida, de Ariano Suassuna, mas orienta o
professor quanto ao epíteto “safada”, supostamente
um resquício de uma cultura popular machista acerca
da sexualidade feminina (p.224).
Pode-se verificar que, em comparação às outras obras
analisadas, a equipe que produz o Livro C procura em
algumas situações conduzir reflexões sobre o
machismo, o preconceito de gênero, apresenta uma
seleção mais apurada de figuras, a fim de não
sobressair nenhum dos gêneros, embora se possa
observar que, em muitos momentos, ainda ocorre o
uso do masculino como universalizante na linguagem,
como em: juiz, jurados, advogados de defesa, promotores,
vistos na condução do júri simulado da página 117; ou
,ainda, na tirinha na qual os estereótipos de feminino e
de masculino permanecem rutilantes: enquanto os
meninos jogam, no centro da cena, as meninas ainda
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse curto estudo não visa desmerecer a importância
do livro didático que, em muitas escolas brasileiras,
ainda é o único suporte didático da professora e do
professor do Ensino Fundamental e, talvez, o principal
acesso a informações de milhares de alunas e alunos de
escolas públicas. Muito pelo contrário, sabe-se de sua
importância e, por isso, objetivou analisar, nessa
pequena amostra, os discursos dos preceitos
divulgados pelos PCNs – no que diz respeito aos Temas
Transversais – mais especificamente, os parâmetros
presentes no livro Educação Sexual. Constatou-se que
estes, em sua grande maioria, não são abordados nos
livros didáticos de Língua Portuguesa.
A prática discursiva está permeada e regulada pelo
poder e pelas instituições através da linguagem,
linguagem esta que possibilitou a visão do sujeito de
Foucault, como um constructo da modernidade. Não
se deve, portanto, subestimar o significado nem o
poder da linguagem. É através dela, dos discursos
produzidos e perpetuados, que o poder se sustenta.
Entretanto, como alterar a visão do “poder” se este não
está centralizado em um lugar específico? Desse modo,
é fundamental repensar o livro didático na
desnaturalização de relações entre homens e
mulheres, na desmistificação de estereótipos e papéis
considerados adequados para um ou outro gênero. Na
esteira dos estudos de Foucault sobre o discurso e sua
ordem, estudiosas e estudiosos feministas têm
denunciado não só a hierarquização, mas o
ocultamento da mulher, seu silenciamento e
invisibilidade promovidos pela sociedade.
Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático
89
Sabe-se que a escola não apenas cria estereótipos, mas
ela os dissemina e fortalece. Observou-se, tanto no
plano de análises textual quanto na escolha de textos,
assim como na criação e divulgação de imagens, a
presença
de
estereótipos
tradicionais
na
caracterização de traços e de atividades masculinas e
femininas. Esperava-se que, em livros didáticos
contemporâneos, autores e autoras evitassem vieses
de gênero, mas não foi o que se encontrou. Dos três
livros analisados apenas um demonstrou ter algum
cuidado com a questão, o que é promissor, não se pode
deixar de ressaltar. Mesmo assim, na apresentação das
obras, poderia ter-se usado uma redação mais
inclusiva, entretanto, quando esta ocorreu, apenas se
reforçou, através da materialidade (uso de /a ou (a)
após o substantivo masculino) a subordinação da
mulher. Percebeu-se em todas as obras analisadas uma
regularidade discursiva acerca da superioridade
masculina através de múltiplos discursos que regulam
e instauram a sociedade androcêntrica como
“verdade” absoluta e naturalizam a inferioridade
feminina, que sabemos, não passa de uma invenção
social, como o homem de Foucault. Contudo, talvez na
educação se encontre o único sistema onde os sujeitos
possam ter acesso a todos os tipos discursos e, onde
surge também a possibilidade de se manter ou
modificar esses discursos. Por isso, a preocupação de
Louro relativa a “uma prática educativa não sexista”
(LOURO, 1997, p.119), que poderia ter início na inclusão
deste tema, discriminação de gênero, nos cursos
superiores de educação e nos Curso de Magistério
para o Ensino Médio.
Assim, a despeito do que foi colocado até agora, o livro
didático poderá vir a ser um forte aliado contra a
discriminação de gênero e, apesar da lentidão
aparente, alguns avanços têm sido construídos, basta
observamos que dos três livros analisados, pelo menos
um já iniciou alguma abordagem e reflexão sobre o
assunto. Além disso, as produções acadêmicas vêm
salientando não só o uso da linguagem sexista como a
discriminação de gênero, bem como mencionando as
novas constituições familiares e outros temas que
sofrem interdição e controle através dos discursos.
Estudos que, aos poucos, penetram nas estruturas
discursivas e vão conquistando reconhecimento e
valorização.
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Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático
92
DANTE ALIGHIERI
E O DESLUMBRAMENTO
DO OLTRETOMBA
DANTE ALIGHIERI Y EL DESLUMBRAMIENTO DE OLTRETOMBA
DANTE ALIGHIERI AND THE DAZZLE OF OLTRETOMBA
Silvana de Gaspari
∗
∗
U niv e rs id ad e Fed e ral d e S an t a C ata ri na - U FS C . E - mai l: s ilv a nad eg as p ar i@g mai l.c o m .
Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba
93
RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT
RESUMO: Muito se fala sobre o Inferno dantesco, dando a entender, algumas vezes,
que as outras duas partes, o Purgatório e o Paraíso, não são tão interessantes quanto o
primeiro canto. Porém, este artigo busca desmiticar esta questão e apresentar todos
os cantos da Divina Comédia como uma fonte quase que inesgotável de elementos de
estudo e análise, que nos fazem entender não somente o momento literário e histórico
de Dante Alighieri, mas também o nosso momento literário e o papel político-social
que a literatura exerce no nosso meio sócio-cultural. Dessa forma, conceitos e ideias
como língua nacional, visões, imagens, caráter inovador, e, muitas vezes profético da
poesia serão abordados aqui, procurando abrir espaço para pesquisas que se situem,
dentro da contemporaneidade, como reveladoras e inovadoras, mesmo partindo de
uma obra escrita durante o Trecento italiano.
P A L A V R A S - C H A V E : Divina Comédi a.Dante Ali ghieri. P araíso dantesco.
RESUMEN: Mucho se ha hablado sobre el Infierno dantesco, dando a entender,
algunas veces, que las otras dos partes, el Purgatorio y el Paraíso, no son tan
interesantes como el primer canto. Sin embargo, este artículo busca desmitificar ese
argumento y presentar todos los cantos de la Divina Comedia como una fuente casi
inagotable de elementos de estudio y análisis, que nos hacen entender no solamente
el momento literario e histórico de Dante Alighieri, sino también nuestro momento
literario y el papel político-social que la literatura ejerce en nuestro medio
sociocultural. De esta forma, se abordarán conceptos e ideas como lengua nacional,
visiones, imágenes, carácter innovador y, muchas veces, profético, de la poesía,
procurando abrir espacio para investigaciones que se sitúen, dentro de la
contemporaneidad, como reveladoras e innovadores, incluso partiendo de una obra
escrita durante el Trecento italiano.
PALABRAS CLAVE: Divina Comedia. Dante Alighieri. Paraíso dantesco.
ABSTRACT: Much has been said about Dante’s Inferno, implying sometimes that the
other two canticas, Purgatory and Paradise, are not as interesting as the first one. This
paper seeks to demystify such issue and present all canticas composing the Divine
Comedy as an almost inexhaustible source of elements to be studied and
analyzed, which make us not only understand Dante Alighieri’s literary and historical
periods, but also our own literary period and the political and social roles that
literature plays in our socio-cultural environment. In this sense, concepts and ideas
such as national language, visions, images, and the innovative and often prophetic
character of poetry will be discussed. This is done with a view to opening up new
avenues of investigation situated within Contemporaneity, which are revealing and
innovative, even coming from a literary piece of work written during the Italian
Trecento.
KEYWORDS: Divine Comedy. Dante Alighieri. Dantesque Paradise.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015.
94
Dou início às minhas reflexões sobre Dante Alighieri e
o deslumbramento causado pela visão do Paraíso,
dialogando e dividindo minha surpresa com o
historiador Jean Delumeau (2003, p. 21), quando esse
nos relata que
Alumbramento foi o meu ao me ver pela
primeira vez diante do retábulo de Gand, que
talvez seja a mais rica das sínteses
paradisíacas
da
pintura
ocidental.
Alumbramento, sobretudo, dos visionários e
dos viajantes do além, cujos escritos e relatos
definiram as estruturas e revelaram as
belezas do paraíso cristão. Eles viram “abertas
as portas do céu”. Contemplaram “as
realidades do céu superior”: “uma morada
cujo piso era brilhante como ouro e prata”,
“eleitos tão belos diante do trono de Deus
quanto a luz do fogo”, o empíreo como “uma
rosa de pétalas extremas”. [...] Esse espetáculo
tinha seu lugar exato na parte mais alta dos
céus, de acordo com a cosmografia vinda de
Aristóteles e de Ptolomeu e tida por
intangível. Além disso, ele tornava-se crível
por uma teoria das evasões da alma,
certificada pelas melhores autoridades da
Antigüidade pagã e cristã.
Da mesma maneira, deslumbramento foi também o
meu, certamente não tão famoso e consagrado quanto
o de Delumeau, ao constatar quantos são os relatos de
viagens e visões do além registrados ao longo da
história, e ainda quantas são as concepções e as
imagens de paraíso relatadas pela literatura, ao longo
de muitos séculos. Talvez o filósofo Umberto
Galimberti (2003, p. 186) possa justificar essa
abundância de imagens ao afirmar que
O homem não tem nenhum valor se não
consegue exprimir algo que transcenda a sua
vida biológica, e a arte é uma forma deste
transcender. Mas também a arte não tem
nenhum valor se não reflete o ultrapassar do
homem, a sua superação da condição animal.
Lamentar mais pelo homem do que pela arte,
ou vice-versa, significa desconhecer a
essência do homem e o significado da arte. E
então os mortos serão sepultados sem ser
reconhecidos na sua qualidade humana, e a
arte se tornará pó sem ser reconhecida como
a marca do homem.
Então, não querendo fazer com que a arte se
transformasse em pó, foi que dei início a essa pesquisa.
Antes de iniciá-la, eu estava acostumada somente a
lidar com a visão do além de Dante Alighieri que, de tão
divulgada e detalhada, inspirou inclusive diversos
religiosos cristãos, extrapolando o campo literário,
com suas imagens do reino dell’oltretomba. Foi nesse
momento, então, que o semiólogo Umberto Eco veio
em meu socorro, assim como Beatriz fez com Dante, e
me esclareceu que:
Há trinta anos, refletindo sobre sua prática
como professor de literatura moderna, Lionel
Trilling observou que como meus interesses
pessoais me levaram a ver situações literárias
como situações culturais, e situações
culturais como grandes batalhas complicadas
sobre questões morais, e as questões morais
como questões relacionadas de certo modo
com imagens do ser pessoal escolhidas
gratuitamente, e as imagens do ser pessoal
relacionadas de certo modo com o estilo
literário, tomei a liberdade de começar com o
que para mim era interesse primordial [...]
(ECO, 993, p. 19).
Convencida de que o nosso ponto de partida deva ser
o que mais nos interessa, também tomei a liberdade de
começar pelo que me é mais próximo e primordial e,
assim, falando em imagens do além, acredito
impossível não falar da atualidade e da popularidade
desta temática. Dessa forma, mesmo que seja somente
a título de ilustração, cito o filme Um olhar do paraíso,
lançado em 2009, e que, apesar de ser uma ficção
policial, situa sua protagonista em um suposto
“paraíso”. Além disso, menciono ainda duas escolas de
samba cariocas, Imperatriz Leopoldinense e Mocidade
Independente de Padre Miguel, que tomaram como
temática, para seus desfiles, no ano de 2010: Do paraíso
de Deus ao paraíso da loucura, cada um sabe o que
procura (a Mocidade) e Brasil de todos os deuses
(Imperatriz). Essas são manifestações que extrapolam
o literário e, exatamente por isso, manifestam a
abrangência e a atualidade do tema aqui em questão.
Porém, apesar da atualidade do tema, se posso cometer
tal pecado sem ser punida em nenhuma esfera do
Inferno dantesco, é inegável que se veja a Divina
Comédia como uma espécie de resumo, talvez uma
síntese, uma formatação literária, de outras tantas
imagens extraterrenas, surgidas antes do poema, o que
faz dela tão mais atual quanto tantas outras formas de
desenvolvimento do tema no mundo contemporâneo.
É, então, pensando nessa contemporaneidade do
poema dantesco, que sinto a necessidade de me
justificar perante aqueles que esperam posturas
teológicas em relação aos textos com os quais trabalho
e que constituem o corpus de minha pesquisa. Assim,
deixo claro que não sou teóloga e nem almejo sê-lo, por
isso acredito ser importante, para a leitura deste
Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba
95
trabalho, que não se faça confusão entre teologia,
filosofia e mitologia.
Resumidamente, e da forma mais simples possível,
poderíamos entender que a teologia deva se
interpretada como a ciência que pensa Deus,
acreditando nele; a filosofia seria a arte de pensar as
idéias, inclusive de Deus; e a mitologia seria a arte de
investigar as revelações do divino nos contos da
natureza. Dessa maneira, fugindo da visão das três
ciências apresentadas acima, meu posicionamento é o
de uma estudiosa de literatura que se interessa pelas
descrições e imagens literárias do além. O crítico
literário Harold Bloom faz, em seu livro Anjos Caídos,
uma observação que considerei muito pertinente e
que me embasou nesta perspectiva de escolha:
Seria melhor explicar precisamente o que
quero dizer nessa introdução, já que muitas
pessoas
confundem
problemas
de
representação literária com as questões bem
diferentes de crença e descrença. Pode-se
provocar um grande sentimento de injúria
com a observação verdadeira de que o culto
ocidental a seres divinos é baseado em vários
exemplos distintos, porém relacionados entre
si, de representação literária. (BLOOM, 2008,
p. 15)
Meu campo de pesquisa, assim como afirma Bloom, é o
da representação literária. Por isso, foi através do
estudo e da leitura da Divina Comédia que cada vez
mais cresceu meu interesse a respeito das descrições
do aldilà encontradas na literatura. Fiquei fascinada
também ao verificar que o texto de Dante serviu
inclusive para que a própria igreja cristã, em algum
momento de sua história, se apoderasse de suas
imagens do pós-túmulo como reais e incontestáveis.
Essa foi uma descoberta que me aproximou mais ainda
do tema, pois, que o divino e mesmo a própria Bíblia
influenciem a vida de muitos ocidentais e, inclusive, a
própria literatura, é uma afirmativa muito comum, mas
que a literatura seja tão “convincente” a ponto de
influenciar a própria concepção religiosa, é já uma
questão razoavelmente nova e que mereceria ser
discutida.
1
“Langdon era bem versado na obra dantesca e sua fama como
historiador da arte especializado em iconografia fazia com que fosse
frequentemente chamado para interpretar a enorme variedade de
símbolos que compunha a paisagem concebida pelo autor. Por
coincidência, ou talvez nem tanto, ele dera uma palestra sobre o
Inferno de Dante uns dois anos antes. ‘Divino Dante: Símbolos do
Inferno.’ Dante Alighieri havia se transformado em um dos
verdadeiros objetos de culto da história, o que fizera surgir no mundo
todo sociedades dedicadas à sua memória. Seu mais antigo ramo
americano fora fundado em 1881, em Cambridge, Massachusetts, por
Henry Wadsworth Longfellow. O famoso poeta da Nova Inglaterra,
integrante do grupo conhecido como Fireside Poets – formado por
poetas que, de tão populares, eram lidos pelas famílias em frente à
lareira -, fora também o primeiro americano a traduzir a Divina
Além disso, mais do que ser usado como exemplo para
as penas divinas, o poema de Dante Alighieri tem sido
lido, ao longo dos séculos, e tem sido considerado uma
das maiores obras da literatura universal, pois,
possivelmente, tenha sido o primeiro poema a
apresentar tanto o divino como o terreno, fazendo-os
se encontrar em aspectos ligados à moral, à política, às
crenças e à sabedoria do período medieval. Uma obra
clássica na mais pura concepção do termo. Para o
escritor Italo Calvino (1991, p.10-12):
Os clássicos são livros que exercem uma
influência particular quando se impõem como
inesquecíveis e também quando se ocultam
nas dobras da memória, mimetizando-se como
inconsciente coletivo ou individual. [...] Os
clássicos são aqueles livros que chegam até
nós trazendo consigo as marcas das leituras
que precederam a nossa e atrás de si os traços
que deixaram na cultura ou nas culturas que
atravessaram (ou mais simplesmente na
linguagem ou nos costumes). [...] Os clássicos
são livros que, quanto mais pensamos
conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de
fato mais se revelam novos, inesperados,
inéditos.
Não seria o poema dantesco um dos mais clássicos
exemplos do que seria um clássico? Afinal, entre suas
definições, é muito comum ouvir as palavras:
influência, inesquecível, marcas, traços, revelador,
inesperado, inédito!
Além disso, de todas as temáticas possíveis de estarem
presentes nesta obra, que pode ser considerada uma
verdadeira summa medieval, a da viagem ao além, com
sua tríplice repartição em Inferno, Purgatório e Paraíso,
é certamente o fio condutor que, posteriormente, ao
longo dos séculos foi retomado, parcial ou totalmente,
por outros escritores, em diversas épocas e em
diversos lugares do mundo. Aqui se faz interessante
recordar alguns autores contemporâneos, brasileiros
ou já traduzidos para o português, que têm por
inspiração as obras de Dante Alighieri. É o caso, por
exemplo, de Giulio Leoni, Matthew Pearl, Arnaud
Delalande, Dan Brown (Inferno) 1, Eugenio Montale,
Comédia. Sua consagrada tradução para o inglês continua sendo uma
das mais lidas até hoje. [...] - Dante Alighieri, escritor e filósofo
florentino, viveu entre os anos 1265 e 1321. Neste retrato, como em
quase todos os demais, está usando na cabeça um cappuccio vermelho,
um gorro justo, trançado, com abas nas orelhas, junto com a túnica
vermelha Lucca. Essa é a imagem mais amplamente divulgada de
Dante. Langdon avançou os slides até o retrato pintado por Botticelli e
exposto na Galleria degli Uffizi que frisava os traços mais salientes do
poeta: seu queixo destacado e o nariz adunco. - Aqui, o rosto
inconfundível de Dante encontra-se mais uma vez emoldurado pelo
cappuccio vermelho, mas, nessa representação, Botticelli acrescentou
uma coroa de louros por sua expertise em artes poéticas. Um símbolo
tradicional emprestado da Grécia Antiga e até hoje usado em
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015.
96
Carlos Drummond de Andrade, Mario Prata e outros
tantos mais.
Neste ponto, gostaria de voltar a Dante Alighieri autor,
que declarou ter tido a Bíblia como uma das fontes
principais para seu trabalho, dando à sua Divina
Comédia uma grande presença no pensamento cristão,
principalmente com suas imagens do além. O
professor Jack Miles (1997, p. 15) afirma que “A religião
– a religião ocidental em particular – pode ser
considerada como uma obra literária mais bemsucedida do que qualquer autor ousaria sonhar.” Dessa
forma, tendo Dante como exemplo, será então
realmente verdade que a fé e a arte não podem
coexistir literariamente?
Diante dessa situação, o que se me apresenta é a beleza
e o poder dessas imagens, que incendiaram o
imaginário popular durante séculos, culminando em
sua expressão poética de maior destaque com Dante e
sua Divina Comédia. Para o poeta, a fé se transforma em
um potente material construtivo para a arte, que se
coloca diante dele. Seria a possibilidade de erguer um
monumento artístico, talvez mais duradouro que o
bronze, que se proporia em ser uma das maiores obras
de seu tempo. Dante nos faz observar que a idéia de
que a obra sirva à fé deva ser vista de outra forma, ou
melhor, devemos entender que a fé sirva à obra para
que esta encontre sua plenitude, e não o contrário. A
Divina Comédia pode ser entendida, de tal forma, como
a descrição da conquista da fé partindo-se dela mesma.
Cada canto do poema é uma progressão fiel aos
preceitos de fé, que parece crescer em concordância
com a obra. Sem as manifestações de fé das quais
Dante tinha conhecimento, não se poderia chegar à
narrativa final de seu poema. E, sem alcançar a beleza,
a tentativa de escrever a Divina Comédia seria vã. A
beleza da obra em Dante dá sentido à existência e até
mesmo às suas próprias convicções morais e
filosóficas, vinculadas às questões de fé conhecidas no
seu tempo.
E é por isso que Virgílio é escolhido pelo autor para ser
um de seus guias. Porque, como poeta, já havia descrito
o reino dos mortos e também porque, na Eneida,
acreditava-se ter ele preanunciado a vinda de Cristo.
Virgílio foi um grande poeta da antiguidade e autor de
várias obras, entre as quais está a Eneida, obra que,
segundo Dante Alighieri, o teria inspirado na escrita da
Divina Comédia. Eneida conta a história da fundação de
Roma por Enéas. Dante conhecia as obras de Virgílio e
se dizia influenciado por seu estilo poético. Ao longo
de muitos séculos, a égloga IV de Virgílio foi
interpretada como uma intuição pré-cristã da vinda de
Jesus Cristo, e o poeta visto como um profeta que teria
anunciado o início da era cristã. O poeta, guia de Dante
até o Paraíso Terrestre, é um professor de vida moral e
depois poeta da universalidade do Império Romano.
Virgílio mostra a Dante, já nos primeiros versos da
Divina Comédia que, antes dele, só Enéias e São Paulo
visitaram o reino dos mortos. Enéias porque foi
escolhido por Deus como pai de Roma e do Império
Romano. Ele teria visitado, como nos é narrado por
Virgílio, no Canto VI da Eneida, o reino dos mortos,
para obter de seu pai informações que lhe seriam
necessárias para levar a termo sua missão na terra. São
Paulo fez a suposta viagem porque deveria tornar mais
forte sua fé, sem a qual não existiria salvação. Enéias
teria recebido de Deus a missão de fundar Roma (a
representação do mundo pagão), sob cujo Império
haveria de nascer Jesus. E São Paulo teria a missão de
pregar e difundir a palavra de Deus aos homens
(representação do mundo cristão). Já Dante, por sua
vez, passaria a ter por missão guiar toda a humanidade
pela estrada do bem, desaparecida em função da
corrupção da Igreja (a representação do surgir de uma
nova era).
Seguindo com a imagem que o próprio Dante se
constrói de profeta, faz-se interessante conhecer a
situação de exílio vivida pelo autor, durante a
concepção da Comédia. Apesar de todo sofrimento
gerado perante esta situação de afastamento, este
exílio, elemento de desunião e destruição, pode dar
forças ao exilado, principalmente na questão da
criatividade, como uma forma de sublimação da sua
dor. Pode-se dizer que com Dante e Maquiavel este seja
um elemento determinante para a escrita da Divina
Comédia e do Príncipe. “Dante foi forçado, por seu exílio
de Florença, a reexperimentar seus mitos em solidão,
de onde surgiu seu magnífico poema A Divina Comédia.
E sem o exílio de Maquiavel, talvez O Príncipe nunca
tivesse sido escrito.” (MAY, 1993, p. 37). O exílio, que
trazia com ele a angústia da separação, a pobreza, a
companhia maldosa e vulgar, as humilhações, e
também os escárnios, delineou, em grandes traços, nas
almas sensíveis, que sofriam de todas as fraquezas,
grandes criações literárias, incitadas muitas vezes pela
representação simbólica que acompanhava o autor,
mesmo em sua solidão e afastamento.
Foi também nessa situação de exílio que muitos
apocalipses apócrifos foram escritos. A intenção das
narrativas apócrifas era atingir o homem comum. Por
isso são textos construídos com imagens simples,
descritas com vivacidade, com estilo repetitivo e
cerimônias de premiação de poetas laureados e ganhadores do Prêmio
Nobel.” (BROWN, 2013, p. 82-83)
Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba
97
linguagem teológica geralmente tida como pobre. Mas,
mesmo que se chegue à conclusão de que os apócrifos
sejam textos pobres do ponto de vista teológico e
linguístico, eles não deixam de ser um documento, em
nível popular, que apresenta as respostas que eram
dadas, na época, sobre a espiritualidade humana.
Respostas estas que nos oferecem elementos
importantes para entender os medos, os sentimentos e
as convicções morais da época em que surgiram, e que
permaneceram até a época de Dante, quando ele
escreveu sua Divina Comédia. As descrições do Inferno
e do Paraíso, as representações de anjos e demônios, as
correspondências entre culpa e punição nos trazem à
memória diretamente a obra dantesca, cujo autor,
mesmo sem podermos afirmar que tenha lido as obras
em questão, viveu em um ambiente saturado pelas
idéias ali descritas.
havido um ressurgir cultural da Itália e é quando
estudos não só literários, mas também teológicos,
filosóficos, jurídicos e científicos passam a se ampliar e
se desenvolver na península. Geralmente, um
problema comum, discutido por essas ciências, era o da
relação homem-Deus, o referente à missão moral e aos
deveres do homem, de disciplinamento de todas as
formas de saber herdadas da Antigüidade, e a
resolução de problemas da vida civil e política, todos
temas presentes na Divina Comédia 2.
E é pensando nas coisas divinas, muitas vezes
apresentadas somente nestes textos apócrifos, que
Dante chega a Tomás de Aquino, que definiu com
grande clareza os três momentos e os três níveis do
possível conhecimento das coisas divinas: duas se
referem a este mundo (razão e revelação), e a terceira
(visão) se realiza no outro mundo. A vida do além
ilustrada por ele, e relativa ao período que precede o
Juízo Final, é como será vista em Dante, na Divina
Comédia, que repropõe com grande força poética a
versão ortodoxa, proposta pelo filósofo, desta primeira
experiência das almas após a morte. Para Dante, a
razão norteia seu percurso pelo Inferno, a revelação
pelo Purgatório e a visão pelo Paraíso.
Mas por que Dante imagina fazer uma viagem
no além-túmulo para ver e descrever a
situação em que se encontram as almas dos
mortos e por que escolhe o poeta latino
Virgílio como guia no Inferno e no Purgatório
e Beatriz antes e S. Bernardo no final do
Paraíso? A razão da viagem está no fato de ele,
com a Comédia, propor uma redenção moral
da humanidade que via submetida ao apego
dos bens terrenos e às paixões mundanas e,
portanto, destinada à perdição eterna [...] E
esse fim escatológico e salvador propõe
alcançar uma descrição figurativa do além
túmulo. Desse modo, podemos, e devemos,
dizer que a Comédia é em essência um grande
livro escrito para a salvação moral da
humanidade, vale dizer para libertá-la, com a
ajuda e a assistência da graça de Deus, do
pecado a que o poeta, cristão e crente
absoluto, a via submetida. Nesse sentido fazse porta-voz moral e cultural, no sentido mais
alto e com força doutrinal e poética
excepcional, como veremos, do espírito da
Idade Média, ansiando não ao gozo dos bens
terrenos ou temporais, mas àqueles celestiais,
segundo a mensagem cristã, da qual Dante se
faz um convicto defensor. (DISTANTE, 1999,
p. 13).
Mas Dante não parece ter sido influenciado somente
pela visão tomista. Historicamente falando, e
aproximando-nos mais do período de Dante, tentando
seguir a orientação da formação intelectual da época,
já na segunda metade do século XII, é possível dizer
que a Europa ocidental foi inundada por várias
traduções do grego e do árabe. Os dois maiores centros
dessas traduções foram Palermo (Itália) e Toledo
(Espanha). Toledo foi um grande centro de cultura
multilinguística e teve um papel fundamental como
centro de estudo entre os séculos X, XI e XII. Entre os
principais tradutores de Toledo está Avendauth, que
traduziu a Enciclopédia de Avicena. Em muitos casos,
era o clero o responsável por essas traduções. Convém
lembrar ainda que, entre os séculos XI a XIV, parece ter
O espírito de Dante denota um sentimento de mundo
fundado sobre uma fé muito grande, um juízo seguro e
uma grande força de vontade. É possível observar que
se
para
nós,
homens
contemporâneos,
é
imprescindível saber quem somos, o que viemos fazer
aqui e para onde vamos, para o Dante da Divina
Comédia, o problema central é conhecer o lugar
limitado que ocupa o homem no universo, criado e
dominado por Deus. Ou seja, para Dante o homem não
é nada sem Deus. De tal maneira, toda a estrutura
simbólica de seu poema, tanto em seu desenho
figurativo como na sua organização de conceitos
morais, é baseada em uma total aceitação da vida cristã
assim como ela era concebida durante sua época,
mesmo que sua visão política seja completamente
2
direitos humanos, para depois indagar por que não seriam o direito à
arte e à literatura também importantes para a integridade física e
espiritual do homem.
Dessa maneira, é possível arriscar dizer que muito da
arte produzida até a Idade Média era impregnada pelas
ideias representadas nos apocalipses apócrifos.
Para Antonio Candido (1989), em seu texto Direitos humanos e
literatura, a literatura deveria atuar como agente formador do sujeito
social. O crítico literário, em um primeiro momento, destaca o que são
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015.
98
adiante de seu tempo e pense no homem como dono de
seu próprio destino.
Assim, um elemento muito forte para a representação
desta simbologia é a língua. Dante é considerado o pai
do idioma italiano porque reconhece a supremacia do
vulgar sobre o latim, em uma realidade cultural de
plurilinguismo que se apresenta durante a Idade
Média. O vulgar que ele propõe é uma língua literária
substancialmente toscana, de derivação siciliana, mas
toscanizada, a língua da sua poesia. O conflito
linguístico vulgar/latim, demonstrado em suas
reflexões, reflete diretamente o conflito político entre
uma concepção laica do Estado e uma concepção
eclesiástica, e propõe que a Itália só poderia ter uma
identidade político-cultural se seus intelectuais
adotassem o vulgar italiano e os valores que este
exprimia não só poética, mas também politicamente.
Com Dante, torna-se evidente, pela primeira vez, a
função pedagógica e civil dos intelectuais na formação
de uma língua italiana. Através da leitura da Divina
Comédia, o leitor culto italiano teria, pela primeira vez,
a clara sensação de pertencer a uma civilização que,
mesmo resguardadas suas características individuais,
possuía bases comuns. Graças à linguagem de Dante, a
sua integração se estende para além – nos reinos do
cômico, do pavoroso, do coloquial. Ninguém antes dele
tinha introduzido tais aspectos no domínio da
comparação entre os mitos clássicos e os bíblicos.
Talvez seja por isso que se torne possível dizer que
todo o saber da Idade Média se encontra condensado
na Divina Comédia. De poesia e crítica, o autor conhece
as poesias dos sicilianos e dos poetas toscanos e vê com
clareza o percurso da poesia que passa de um ideal
cortês a um mais espiritual dos stilnovisti. É ele também
um grande experimentador de diversos gêneros
poéticos e é este exercício que lhe prepara o caminho
para a Divina Comédia, onde se utiliza do trágico, do
cômico e também de uma pluralidade de linguagens. É
por isso que não se deve considerar que a Divina
Comédia represente um novo gênero, tão original e
extraordinário que Dante tenha criado do nada. Na
realidade, o grande mérito do autor está no fato de ele
ter reunido vários conceitos, vários pensamentos que
estavam adormecidos por trás de formas literárias já
existentes como: lendas, visões, tratados, sonetos,
canções e outros tantos gêneros literários já
divulgados na época, mas que, na maioria das vezes,
não tinham seu valor reconhecido. A substância de seu
“gênero inovador” está na tradição popular criada em
torno dos segredos da alma, e é esta imagem que o
3
“A representação e a lenda saem da sua grosseira vulgaridade e se
elevam aos mais altos conceitos da ciência; a ciência sai do santuário e
se faz povo, se faz mistério e lenda.” Tradução nossa.
autor quer representar. “La rappresentazione e la
leggenda esce dalla sua rozza volgarità e si alza a piú alti
concepimenti della scienza; la scienza esce dal santuario
e si fa popolo, si fa mistero e leggenda.” (DE SANCTIS,
1978, p. 146) 3
Indo ainda mais fundo nas questões que envolvem a
concepção e a interpretação da Divina Comédia,
Dante está falando das visões que se
apresentam a ele (ao personagem Dante)
quase como projeções cinematográficas ou
recepções televisivas num visor separado
daquela que para ele é a realidade objetiva de
sua viagem ultraterrena. Mas para o poeta
Dante, toda a viagem da personagem Dante é
como essas visões; o poeta deve imaginar
visualmente tanto o que seu personagem vê
quanto aquilo que acredita ver, ou que está
sonhando, ou que recorda, ou que vê
representado, ou que lhe é contado, assim
como deve imaginar o conteúdo visual das
metáforas de que se serve precisamente para
facilitar essa evocação visiva. O que Dante
está procurando definir será, portanto, o
papel da imaginação na Divina Comédia, e
mais precisamente a parte visual de sua
fantasia, que precede ou acompanha a
imaginação verbal. (CALVINO, 1988, p. 99).
Pela constatação de Calvino, podemos perceber que a
obra nasce de um encontro entre uma experiência de
angústia e uma forte convicção de princípios, de uma
forte reconquista da fé, que se reconhece no encontro
cotidiano com a realidade que tenta renegá-la. Esta fé
é fonte de expressão não só da angústia do poeta, mas
também de sua revolta em relação aos princípios
morais que estão sendo feridos pela Igreja naquele
momento histórico vivido por ele.
Por isso faz-se importante também entender os modos
pelos quais se articula a memória de Dante na Divina
Comédia. O primeiro é o já indicado no primeiro verso
do poema: a memória cronológica.
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi troverai per una selva oscura,
che la diritta via era smarrita. (Inf. I, 1-3). 4
Essa marca de tempo, que é fictícia na sua gênese, mas
que se nutre de elementos fortemente reais, fornece a
base para todo o poema e é seguida até o fim pelo autor.
O segundo modo de articulação da memória se liga a
acontecimentos que são verificados somente depois
de 1300, ou seja, quando Dante se utiliza da profecia
4
“A meio do caminho desta vida/ achei-me a errar por uma selva
escura,/ quando a via veraz deixei, perdida.” (Inf. I, vv. 1-3)
Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba
99
inclusive para narrar os acontecimentos que fazem
referência à sua própria vida. A união entre os dois
troncos de memória acontece espontaneamente e sem
criar problemas que não sejam de verossimilhança
geral. O autor se vale deste recurso para demonstrar
que, através da Divina Comédia, ele atravessa um
apocalipse pessoal, uma suspensão de toda lei moral e
racional: um drama do qual poderá salvá-lo somente
uma intervenção milagrosa, através dos clamores de
Beatriz.
O poema de Dante é, inclusive para seu próprio autor,
uma profecia. Ele não parece reconhecer que sua
poesia seja uma ficção. Muito pelo contrário, o poeta
diz ser sua narrativa a verdade, a verdade universal. “O
que o peregrino Dante vê e diz na narrativa do poeta
Dante pretende convencer-nos perpetuamente da
inescapabilidade poética e religiosa de Dante.”
(BLOOM, 1995, p. 81). E com Curtius (1957, p.394)
descobrimos que
Ainda que pudéssemos interpretar a sua
profecia, ela para nós não teria mais
significação. Os dantólogos não precisam
mais decifrar o que Dante ocultou, mas é
mister levar a sério o fato de que ele julgava
ter uma missão apocalítica. Ao explicá-lo, isso
deve ser tomado em consideração.
Ainda em consideração deve-se levar o fato de que a
natureza de Dante é tripartida:
Para dar início a qualquer discurso
interpretativo sobre a Divina Comédia, faz-se
indispensável, antes de mais nada, esclarecer
algumas questões. A primeira é esta: Dante é,
geralmente, distinto em três papéis: o de
autor, o de narrador e o de personagem. Como
autor é aquele que escreve a obra; como
narrador é aquele que conta aos autores os
acontecimentos que compõem a trama da
obra; como personagem é o protagonista dos
próprios eventos narrados. Naturalmente, a
sequência
autor-narrador-personagem,
válida para o leitor que se aproxima da Divina
Comédia e descobre no autor o narrador e no
narrador o personagem, se inverte
totalmente para Dante, o qual, de
protagonista de uma visão, se faz narrador da
mesma e, então, autor de uma obra que conta
aquela visão.[...] Algumas vezes, o autor, quase
que como querendo sublinhar a diferença
entre os papéis, (isto é, do narrador e do
personagem) e querer afirmar o seu direito
em exprimir juízos sobre o significado moral e
anagógico do acontecimento narrado, diz ‘da
nossa vida’ com o claro objetivo de envolver,
desde o primeiro verso, toda a humanidade na
experiência do personagem. (DE BELLIS,
[2000?], paginação irregular].
Dante autor, ao idealizar sua obra, tomou por base
muito de seu conhecimento do mundo pós-morte,
adquirido talvez através da leitura de vários textos
como, por exemplo: a Visio sancti Pauli, Il libro della
Scala ou mesmo o Apocalisse di San Pietro. Esta não é
uma afirmação que se possa fazer sem restrições, pois
não há fontes históricas ou literárias que comprovem
tal fato. Mas o que se pode dizer é que, estudando o
percurso trilhado por Dante e as escolhas feitas por
ele, seu texto se distancia dos textos canônicos e se
aproxima dos textos apócrifos, pouco divulgados na
época, principalmente em função de seu caráter
“popular” e “inovador”.
É ainda relevante o fato de que a personagem Dante
não representa somente ele mesmo, mas se coloca
como exemplo de cristão em busca da salvação. Essa
foi a forma escolhida pelo autor para que o leitor se
envolvesse em suas peripécias e participasse
ativamente de sua narrativa já que, assim como Dante,
o leitor também não conhecia seu próprio destino
eterno. Muitas vezes, no decorrer do poema, o poeta
fala da missão que lhe foi atribuída por Deus, que lhe
permitiu viver esta experiência do além, conhecer as
consequências do pecado, purificar seu espírito, como
exemplo para aqueles que buscam a salvação de suas
almas e a salvação de toda a sociedade civil e religiosa.
Esta matéria teológica da salvação, afrontada por
Dante autor, o expunha a riscos de suscitar,
principalmente no ambiente eclesiástico, muitas
reservas e objeções à sua obra. Os dominicanos foram
os principais questionadores do poeta. Já em relação
aos políticos, sua indignação poderia dificultar, ao
menos em um primeiro momento, a circulação da obra.
A adoção do vulgar era o obstáculo colocado pelos
intelectuais para reconhecer o poema como
verdadeira obra-prima; porém, mesmo diante de todas
essas dificuldades, a Divina Comédia teve uma grande
difusão, comprovada principalmente pelo elevado
número de manuscritos através dos quais foi
transmitida.
Parece evidente, mas é importante ressaltar que,
mesmo o poema tendo nascido em um momento de
grande efervescência não só política, mas também
religiosa e cultural, quase que à beira de uma crise, é de
uma sobriedade e de um equilíbrio que fascinam. O
autor vive em meio a tantas exaltações dos bens da
salvação, proclamada por tantas religiões, mas se
mantém fiel a seu objetivo maior, eximindo seu poema
de toda banalidade que aquele momento pudesse
denotar. Isso torna-se quase que evidente para todos
aqueles que acompanharam o peregrino Dante pelo
Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso, esperando o
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015.
100
fim triunfal, o momento em que as cortinas se abririam
e todos os mistérios seriam revelados. “Depois de
Dante, ficou difícil para os autores épicos lidarem com
a relação entre descida ao Inferno e busca do
conhecimento
ou
descoberta
do
futuro.”
(ZILBERMAN, 2003, p. 125).
Apesar de todas essas possibilidades, presenças
culturais e religiosas, e diferentes posições críticas,
torna-se possível afirmar que Dante integra todas
essas idéias e mundos em uma síntese que expressa
artisticamente a totalidade da concepção cristã
medieval das coisas terrestres e celestes. Mesmo que a
Divina Comédia fosse isentada de seu valor poético, ela
permaneceria como uma das mais originais criações
vistas até hoje, e que antecipou as linhas fundamentais
da filosofia humanista. Otto Maria Carpeaux (1965, p.
26) afirma que:
Foram esses letreiros que me ensinaram o
realismo histórico de Dante: a identidade do
Inferno com a vida turbulenta, odiosa,
vingativa do Trecento em Florença, a
identidade da vida de Dante com o Purgatório
e, em sua fé católica e filosofia escolástica, a
realidade do Paraíso.
Assim, é possível pensar que o escritor acreditasse, ou
pelo menos quisesse fazer crer, ter sido realmente
“raptado” e, dessa forma, ter recebido a missão de ser
um espírito profético, coisa já muito difundida pelos
religiosos anteriores e contemporâneos a ele. A Divina
Comédia é um poema que, mesmo sendo supostamente
embasado em uma literatura chamada de religiosa, não
pode ser lido baseado na autoridade da doutrina cristã,
mesmo que a Bíblia tenha sido amplamente utilizada
pelo poeta como fonte temática, estilística e narrativa.
Talvez seja por essa perspectiva não religiosa que
possamos pensar a idéia do título. Comédia nasceu no
momento em que o poeta se voltou para os clássicos
antigos para obter seu guia e iluminação poética. O
epíteto “divina” foi acrescentado na edição veneziana
de 1555, impressa por Gabriele Giolito e revisada por
Ludovico Dolce, além de ter sido usado, anteriormente,
por Giovanni Boccaccio. Muitas outras razões teve
Dante para definir como comédia seu próprio texto,
visto que comédia, neste caso, em contraste com
tragédia, é a obra cuja linguagem é totalmente
inadequada para exprimir a realidade que ele quer
representar.
La tragedia divina è stata tracciata in un
misterioso alfabeto non scritto e recitato
5
A tragédia divina foi traçada em um misterioso alfabeto não escrito
e recitado pelos anjos ao redor de Deus; para falar do mundo
sobrenatural, a Dante não resta mais que a linguagem humana que, aos
olhos e ouvidos de Deus, não pode parecer outro que Commedia,
dagli angeli intorno a Dio; per parlare del
mondo sovrannaturale a Dante non resta che
il linguaggio umano, che agli occhi e orecchi
di Dio non può apparire che Commedia, eroica
e patetica parodia della sua Tragedia altissima
e non scritta. Proprio nell’episodio di Gerione
Dante propone al lettore una definizione della
propria opera che è impastata di umiltà e di
superbia. (FERRUCCI, 2007, p. 140). 5
Assim, em oposição a tragédia, o autor usa o termo
comédia ainda no sentido que ele tem para a cultura
medieval. Dizendo comédia ele não quer se referir ao
teatro ou a um tipo de espetáculo, mas às distinções de
língua e estilo elaboradas pela retórica. Ele define a
comédia como: um gênero de narração poética. Para
Dante autor, o termo comédia se refere ainda a uma
obra que começa infeliz e termina em felicidade. Por
isso a narrativa começa no Inferno, onde se encontram
as almas atormentadas, e se encerra no Paraíso, lugar
das almas abençoadas, abrindo a possibilidade de
salvação para o homem enquanto indivíduo e para os
homens em geral.
Pensando-se, então, no caminho da salvação, o fascínio
do reino do oltretomba dantesco não está no que se
pode revelar, na visão que se lhe terá revelado, mas na
vivência do sentir. O certo é que, no momento da
leitura, o que vemos não é uma miscelânea de textos
antigos ou modernos, mas a junção de conceitos e
imagens que habitaram, e ainda habitam, o coração da
humanidade. O Inferno desenhado por Dante, por
exemplo, não contradiz substancialmente a figuração
herdada
da
Antigüidade,
a
quem
deseja
voluntariamente filiar-se, escolhendo como seu guia
Virgílio. Assim como Enéias, o herói de Eneida, o poeta
que narra A Divina Comédia desce ao inferno para
conhecê-lo: é lá que encontra as principais
personagens da história da Itália, passada e presente,
cujo juízo é filtrado pelos valores da igreja, a saber: os
pecados capitais, a venalidade, a concupiscência.
Dante poeta confere forma ao inferno, em cujo centro
inferior, como uma pirâmide invertida, coloca Lúcifer
ou Belzebu, imperador do mundo subterrâneo e
senhor de todo o mal.
Por todos os elementos expostos acima é que faz-se
importante ler o poema como uma obra “aberta” e não
como um bloco unitário pré-estabelecido em relação a
conceitos e formas. A interpretação se faz mais rica
quando feita a partir dos instrumentos artísticos
utilizados pelo próprio autor e que foram
amadurecendo com o tempo, através da reflexão sobre
heróica e patética paródia da sua Tragedia altíssima e não escrita.
Justamente no episódio de Gerião, Dante propõe ao leitor uma
definição da própria obra, que é cheia de humildade e soberba.
Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba
101
suas premissas teóricas, com o esclarecimento e o
distanciar-se das questões de cunho polêmico, já que a
Divina Comédia tem um narrador que também é
personagem da ação: é o herói que conta sua própria
história. Mesmo assim, não é possível perder de vista
que a obra é fortemente unitária, pois há nela uma
organicidade narrativa e uma coerência temática
muito grande. É uma obra total no sentido em que
apresenta uma matéria que implica, necessariamente,
dentro da perspectiva cristã, o envolvimento de todas
as habilidades das quais a mente humana é capaz.
La conoscenza della Commedia non è un
evento che si limiti ad interessare il mondo dei
retori, dei grammatici, dei filosofi, ma
condiziona in modo determinante lo
svolgimento della successiva letteratura
allegorico-didattica: un fatto, dunque,
d’eccezionale portata culturale, idoneo ad
investire ogni campo del sapere, ogni
atteggiamento morale, tutte le forme
dell’espressione letteraria. (PETROCCHI,
1998, p. 60).6
Este interesse geral, instigado pela obra, foi um dos
combustíveis para sua fácil e rápida divulgação. De
Dante não sobrou nem um autógrafo, nem mesmo uma
assinatura.
Todavia,
a
Comédia
difundiu-se
rapidamente graças à atividade dos copistas. Já na
metade do Trecento existiam, em Florença, oficinas
para a produção artesanal de cópias da Comédia.
(LUPERINI, 1989, p. VIII). Diversos documentos e
testemunhos nos indicam que a Comédia penetrou
amplamente também em ambientes de cultura não
especializada, inclusive entre os mercantes e artesãos.
A riqueza de seu conteúdo, o fato de ter sido escrita em
vulgar e a eficácia das máximas dantescas fizeram da
obra como que um depósito de sabedoria e sentenças
morais conhecidas pelo povo. E mais: além da
transmissão do texto escrito, em 1373, Giovanni
Boccaccio foi encarregado, pela República Florentina,
de fazer uma leitura em público da Comédia de Dante
Alighieri. Mas sua morte interrompeu a leitura no
canto XVII do Inferno. Atualmente, foi Roberto Benigni
quem executou esta tarefa e, pela leitura e
interpretação do texto dantesco, o ator recebeu o
prêmio Oscar TV 2008, como o evento televisivo do
ano.
O pensamento de Dante não cria uma filosofia nova,
pois tem a formação típica de seu tempo, fundada
6
“O conhecimento da Comédia não é um evento que se limite a
interessar o mundo dos retóricos, dos gramáticos, dos filósofos, mas
condiciona de modo determinante o desenvolvimento da literatura
alegórico-didática sucessiva: um fato, pois, de excepcional alcance
cultural, idôneo a penetrar em todos os campos do saber, todo
sobre uma base de cultura religiosa e clássica,
adquirida, sobretudo esta última, através das obras e
compilações da tarda antigüidade. E a Divina Comédia
não pode ser considerada uma obra filosófica e sim
uma obra de narração. O autor, Dante Alighieri,
constrói um personagem autobiográfico que conta,
envolvendo o leitor explicitamente, a experiência
extraordinária por ele vivida em uma época precisa de
sua vida, aos 35 anos. O narrador molda seu
comportamento sobre o dos profetas bíblicos: ele se
coloca como aquele que se refere a uma experiência
verdadeira de contato com o sobrenatural. O
comportamento profético é confirmado e justificado
no Paraíso, onde Dante recebe de autoridades
supremas o encorajamento para manifestar a sua visão
e transmiti-la aos homens com a mensagem que esta
contém. A viagem é um modelo espiritual, a conversão,
que concorre para criar a estrutura conceitual e
temática com que Dante organiza o poema: o problema
da salvação individual de uma alma perdida na selva do
pecado, e, o mais geral, da salvação de toda a
humanidade, que perdeu o caminho do bem,
principalmente por suas opções político-sociais.
E é, talvez, pensando no caráter teológico de sua
reflexão, que muitos intérpretes de Dante tendem a
encontrar as fontes de inspiração do seu poema na
tradição teológica, sem considerar que a idéia própria
da Comédia represente uma negação substancial de
tais fontes, mesmo se não declarada pelo autor. Mas,
em contrapartida a esta afirmação, o próprio poeta “[...]
in vista del viaggio ultraterreno prospettatogli da
Virgilio, esprime i suoi timori e i suoi dubbi e si giudica
indegno ad intraprendere una così ardua impresa,
affrontata solo da personaggi eccezionali designati da
Dio, come Enea e S. Paolo [...].” (BORZI, 1993, p. 21). 7
À inabalável fé na vida do oltretomba, como único e
verdadeiro caminho, unia-se, na obra de Dante, o forte
sentimento das coisas do mundo. Por isso, o
acontecimento terreno de cada indivíduo não podia
ser visto como uma realidade definitiva e única, mas
como uma ligação imediata entre céu e terra,
determinada pelo divino que, futuramente, seria a
realidade verdadeira,
[...] assim, o acontecimento terreno é uma
profecia ou figura de uma parte da realidade
divina total que será revelada no futuro. Mas
esta realidade não é apenas futura; já está
presente na visão de Deus e no outro mundo,
comportamento moral, todas as formas de expressão literária.”.
Tradução nossa.
7
“[...] em vista da viagem ultra-terrena, inspirada por Virgílio, exprime
seus medos e suas dúvidas e se julga indigno de levar avante tal tarefa,
enfrentada somente por personagens excepcionais designados por
Deus, como Enéas e São Paulo.”. Tradução nossa.
Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015.
102
o que quer dizer que, na transcendência, a
realidade revelada e verdadeira está sempre
ou atemporalmente presente. (AUERBACH,
1997b, p. 61).
A figura, como está localizada em dois momentos
distintos na linha do tempo, ficaria entre a ficção e a
verdade, o presente e o futuro. A figura pode surgir
como um ídolo, um sonho, uma visão, ou até mesmo
uma fórmula matemática, mas, em geral, terá sempre o
sentido de prefiguração. De tal maneira, mesmo a
Divina Comédia sendo a descrição do estado em que as
almas se encontram após a morte, seu tema continua
sendo o da vida sobre a terra e todos os
acontecimentos que a circundam. Isso é pertinente se
se pensa que Dante acreditava realmente na
convivência harmoniosa entre a história da salvação e
o poder secular, exercido pelos imperadores e papas.
Mas ele deixa claro, principalmente na Monarquia que,
para que isso ocorra, o poder temporal não deveria ser
exercido pelo papa, assim como o poder espiritual não
era pressuposto do imperador.
O poeta não acreditava somente na convivência
pacífica entre poder secular e religioso, mas também
na convivência de falas, histórias que se fazem por si,
que se utilizam das vozes de seus próprios
protagonistas para serem contadas. É dessa forma que
Dante torna sua obra polifônica e, utilizando-se deste
recurso, mais rica e verossímil. A polifonia prevê a
união de várias vozes, pois só assim, para Bakhtin
(2005, p. 26), há a possibilidade de se construir um todo.
Não ocorre, em cada romance, uma oposição
dialeticamente superada entre muitas
consciências que não se fundem em unidade
do espírito em processo de formação, assim
como não se fundem espíritos e almas no
mundo formalmente polifônico de Dante. No
melhor dos casos, como ocorre no universo de
Dante, elas, sem perder a individualidade, nem
fundir-se, mas combinando-se poderiam
formar uma figura estática, uma espécie de
acontecimento estático, à semelhança da
imagem dantesca da cruz (as almas dos
cruzados), da águia (as almas dos
imperadores) ou de uma rosa mística (as almas
dos beatificados). Nos limites do próprio
romance não se desenvolve, não se forma
tampouco o espírito do autor; este, como no
mundo de Dante, contempla ou se torna um
dos participantes.
Foi dessa maneira, juntando as vozes históricas e
relevantes para ele, que Dante, tão poeticamente e
com tanta criatividade, formatou praticamente todas
as imagens do aldilà que povoavam a mente dos
homens até a Idade Média. Foi ele quem, com sua
genialidade, ousou escolher o gênero apocalíptico e a
língua vulgar como forma de expressão de sua maior
angústia em relação ao ser humano. Além disso,
provou seu amor por sua terra que, naquele momento,
podia ser tomada, por ele, como o exemplo maior da
corrupção do homem. O que talvez os homens daquela
época não entendessem é que a força da arte e, em
conseqüência, sua persistência, romperiam barreiras e
fariam chegar até nós um dos textos de maior
relevância não só literária, mas também histórica do
medioevo. Dante, em sua genialidade, utilizou-se da
força da cultura, manifestada através de seu povo,
para produzir seu poema maior, assumindo o gênero
apocalíptico e o italiano vulgar como seus
instrumentos, na batalha contra a ignorância e a
prepotência intelectual vigentes na época. Por isso,
escolher a Divina Comédia como objeto de estudo é
mais que um desafio, é a possibilidade de se perceber
qual o verdadeiro papel que a literatura e as artes, de
forma geral, podem ter no mundo em que vivemos.
E aqui, mais uma vez, retomo a idéia de Dante como
escritor desvinculado do poder clerical da época, e, por
isso também grande chefe político, que se utilizou das
armas que lhes eram oferecidas para reverter a ordem
tida como “natural” das coisas. Escrever para a elite da
época era o previsível, mas voltar-se para aqueles
menos letrados, além de ser difícil, era condenar-se ao
esquecimento. Com essa escolha dantesca, ouso
afirmar que uma cultura jamais poderá ser
considerada erudita se não for permeada por uma
grande herança popular, que se vê recuperada nas
maiores obras do cânone que cultuamos hoje. É
também interessante observar que, a partir do
instante em que a literatura já não sabe onde começam
e onde terminam seus limites, as ciências humanas,
também em crise com suas fronteiras, se sentem
fascinadas pelo grande potencial dos textos literários,
que têm por virtude ouvir as vozes muitas vezes
ocultas e trazê-las para um diálogo onde o
inconsciente e o transcendente passam a ser a grande
estrela. Dessa forma é que vejo Dante como um
“resgatador”, como um poeta que soube ler, dentro da
sociedade em que viveu, a necessidade de mudanças,
principalmente conceituais a respeito da cultura e de
seu uso. Mário Praz (1982, p. 70) faz a seguinte
observação sobre Dante, que talvez exemplifique o
que eu gostaria de dizer:
Já em 1892, Janitscheck escrevera que “Giotto
descobriu em pintura a natureza da alma, tal
como Dante a tinha descoberto em poesia”, e
em 1923 Hausenstein concluíra que “São
Tomás de Aquino, Dante e Giotto são a
expressão teológica, poética e figurativa,
respectivamente, do mesmo pensamento”.
Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba
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Para Rosenthal, a arte de Giotto, como a
poesia de Dante, “representa o momento mais
alto de um processo de individualização”, o
qual consiste “de um lado, no surgimento e
progresso da chamada naturalidade, e de
outro na progressiva corporificação do
sobrenatural numa única vida humana”,
processo que se supõe ter começado na
França por volta de meados do século XII e
ter-se concluído na Itália nos primórdios do
século XIV.
Praz (1982, p. 81) é ainda mais contundente quando
afirma ter “Dante oferecido um espelho ao mundo da
eternidade [...]” A eternidade que oferece, ao homem,
um novo sentido de esperança, que transcende o
mundo terreno, invadindo o desconhecido e
fascinante reino do oltretomba.
No volume organizado por Bizzarri, Carpeaux (1965, p.
24), incumbido de falar sobre Dante, faz a seguinte
afirmação:
Certa vez, respondi a um repórter literário
que quis saber das minhas leituras habituais:
“Todos os anos costumo reler a Divina
Commedia inteira.” É verdade. Mas depois
assaltaram-me as dúvidas. Não me lembro
exatamente quem disse – talvez fosse
Tommaseo: “Legger Dante è un dovere,
rileggerlo è un bisogno.” Ler Dante é um
dever, sim, fosse mesmo só porque – o próprio
poeta diz – “mostrò ciò che potea la lingua
nostra.”
Desta forma, acreditando ter mostrado o que me
possibilitou nossa língua, é que finalizo estas
considerações e afirmo acreditar que o mais
importante não é saber se a Divina Comédia é
realmente divina ou se seus fatos são reais ou
inventados pelo autor, ou se o texto é reflexo de
alguma doutrina da época. Para mim, o que se faz
presente, a partir deste momento, é que a literatura é
algo que não cabe nos confins determinados pela
humanidade e que, por esse motivo, traz ao indivíduo a
possibilidade de refletir sobre seu próprio ser e tornar
a realidade deste mundo, ou do que está por vir, para
aqueles que acreditam nisso, melhor e passível de
mudanças. Aí é que acredito residir a magnitude de
Dante/poeta/profeta:
[...] Dante non poté produrre né imitatori né
continuatori: in parte perché la sua opera, la
Commedia, aveva caratteristiche eccezionali
di grandiosità e complessità che la rendevano
inimitabile, in parte perché, pur essendo um
8
“Dante não pôde produzir nem imitadores nem continuadores: em
parte porque a sua obra, a Comédia, tinha características excepcionais
de grandiosidade e complexidade que a tornavam inimitável, em parte
porque, mesmo sendo um verdadeiro laboratório de geniais inovações
vero laboratorio di geniali innovazioni e
soluzioni espressive, essa non inaugurava un
genere, ma anzi nel suo impianto raccoglieva,
perfezionava ed esauriva tendenze che
venivano
già
dall’epoca
precedente.
(LUPERINI, 1989, p. 152). 8
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