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JAN.JUN 2015 | VOLUME DOIS | NÚMERO UM G A V A G A I ISSN 2358 0666 R E V I S T A I N T E R D I S C I P L I N A R D E H U M A N I D A D E S GAVAGAI - REVISTA INTERDISCIPLINAR DE HUMANIDADES Periódico do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA / DIRECCIÓN POSTAL / MAILING ADDRESS Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim Gavagai – Revista Interdisciplinar de Humanidades Av. Dom João Hoffmann, 313, Bairro Fátima, junto ao Seminário Nossa Senhora de Fátima Erechim – RS CEP 99700-000 E-mail: [email protected] DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Gavagai: Revista Interdisciplinar de Humanidades/Universidade Federal da Fronteira Sul - Campus Erechim. - vol. 2, n. 1 (jan./jun.2015). - Erechim: [s.n.], 2015. Semestral 1. Periódico. 2. Interdisciplinar. 3. Ciências Humanas. 4. Humanidades. I. Universidade Federal da Fronteira Sul. II. Título. CDD: 300 Bibliotecária responsável: Tania Rokohl – CRB10/2171 GA V A GA I - RE VI ST A I NT ER DI S CI PLIN A R D E HU MA NID AD E S Erechim, v.2, n.1, jan./jun.2015 I S S N : 2 3 5 8 -0 6 6 6 3 GAVAGAI ERECHIM V.2, N.1, JAN./JUN. 2015 ISSN: 2358-0666 EDITOR-CHEFE/ EDITOR JEFE / EDITOR-IN-CHIEF Atilio Butturi Junior - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) EDITORES EXECUTIVOS / EDITORES EJECUTIVOS / EXECUTIVE EDITORS Ani Carla Marchesan - Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó (UFFS) Cassio Cunha Soares - Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim (UFFS) Fábio Francisco Feltrin de Souza - Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim (UFFS) Jerzy André Brzozowski - Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim (UFFS) Roberto Carlos Ribeiro - Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim (UFFS) Roberto Rafael Dias da Silva - Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim (UFFS) 4 CONSELHO EDITORIAL / CONSEJO EDITORIAL / EDITORIAL BOARD Armando Chaguaceda • Universidad Veracruzana (México) | Bianca Salazar Guizzo • Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) | Carla Soares • Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ) | Daniela Marzola Fialho • Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS ) | Décio Rigatti • Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/ UNIRITTER | Durval Muniz Albuquerque Junior • Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) | Eliana de Barros Monteiro • Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) | Elio Trusian • Università Degli Studi Di Roma La Sapienza (Itália) | Fábio Luis Lopes da Silva • Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) | Felipe S. Karasek • Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC) | Fernanda Rebelo • Universidade Federal da Bahia (UFBA) | Gizele Zanotto • Universidade de Passo Fundo (UPF) | José Alves de Freitas Neto • Universidade de Campinas (UNICAMP) | Kanavillil Rajagopalan • Universidade de Campinas (UNICAMP) | Margareth Rago • Universidade de Campinas (UNICAMP) | Maria Antonia de Souza • Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) / Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) | Maria Bernadete Ramos Flores • Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) | Natália Pietra Méndez • Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) | Nelson G. 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Albornoz • Universidade Federal do Rio Grande (FURG) | Viviane Castro Camozzato • Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) PROJETO GRÁFICO/ DISEÑO / GRAPHIC DESIGN Pedro Paulo Venzon Filho / pedrovenzon.com IMAGENS / IMÁGENES / IMAGES Vittorio Ciccarelli / vittoriociccarelli.com REVISÃO/ REVISIÓN/ REVISION Atilio Butturi Junior | Fabíola Stolf Brzozowski | Noemi Luciane dos Santos | Rosângela Pedralli | Fábio Francisco | Feltrin de Souza | Jerzy André Brzozowski 5 SUMÁRIO / TABLA DE CONTENIDOS / TABLE OF CONTENTS APRESENTAÇÃO / Presentación / Presentation 007 Atilio Butturi Junior MODERNIDADE E ANTI-MODERNIDADE NO RIO DA PRATA / Modernidad e antimodernidad en Rio de 009 la Plata / Modernity and anti-modernity in the River Plate Fábio Feltrin de Souza NOTAS DE ICONOLOGIA: IMAGEM E TEOLOGIA NAS LETRAS LUSO-BRASILEIRAS / Notas de 021 iconología: imagen y teología en la literatura luso-brasileña / Iconology notes: image and theology in luso-brazilian letters Felipe Lima da Silva PRODUÇÃO DE IDENTIDADE: O CASO DO INFORMATIVO SEMANAL DA UFFS, CAMPUS 034 ERECHIM / Producción de identidad: el caso del boletín semanal de la UFFS, campus Erechim / Production of identity: the case of the weekly bulletin of UFFS, campus Erechim Marcio Santin VOZES DA DESRAZÃO – A SUBJETIVAÇÃO NO DISCURSO BIPOLAR / Voces sinrazón – la subjetividad en el discurso bipolar / Voices of unreason: subjectivation in bipolar discourse Camila de Almeida Lara 050 6 O CINEMA E AS PRISÕES DA REALIDADE: REFLEXÕES SOBRE A MEMÓRIA A PARTIR DOS FILMES O SHOW 062 DE TRUMAN, MATRIX E AMNÉSIA / El cine y las cárceles de la realidad: reflexiones sobre la memoria y la verdad de las películas El Show de Truman, La Matrix e Memento / The cinema and prisons of reality: reflections on memory and truth from the movies The Truman Show, The Matrix and Memento Fábio Lúcio Zampieri e Gerson Wasen Fraga ESCOLA PARA MENINOS: O DISCURSO ANDROCÊNTRICO NO LIVRO DIDÁTICO / Escuela para 075 niños: el discurso androcéntrico en libros de texto / School for boys: the androcentric discourse in textbooks Susie Silvana Barboza Moreira e Atilio Butturi Junior DANTE ALIGHIERI E O DESLUMBRAMENTO DO OLTRETOMBA / Dante Alighieri y el deslumbramiento de oltretomba / Dante Alighieri and the dazzle of oltretomba Silvana de Gaspari 091 8 APRESENTAÇÃO PRESENTACIÓN / PRESENTATION v.2,. n.1. jan./jun. 2015 Este número de Gavagai – Revista Interdisciplinar de Humanidades, que inaugura o segundo ano de existência do periódico do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal da Fronteira Sul, traz sete artigos, de pesquisadores de vários campos do saber e de diversas universidades. O número se inicia com o texto de Fábio Feltrin de Souza, intitulado Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata. O autor parte de vasta pesquisa teórica e procura refletir acerca da heterogeneidade dos discursos da modernidade ocidental e que caracteriza a produção dos intelectuais da Argentina do século XIX que ficaram conhecidos como a “geração de 1837”. O segundo artigo, Notas de iconologia, é de autoria de Felipe Lima da Silva. No escrito, o pesquisador volta-se para a sermonistica luso-brasileira do século XVII, avaliando a retóritca barroca cuja estratégia se marca pelo apelo às sensações visuais na produção e na disseminação da doutrina moral e religiosa. Produção de identidade: o caso do Informativo Semanal da UFFS, campus Erechim, é o terceiro artigo desta Gavagai, escrito por Márcio Santin. A proposta do trabalho é analisar, segundo os pressupostos da Análise do Discurso de Linha Francesa, a produção da identidade da UFFS, notadamente construída segundo enunciados sobre o “popular” O quarto texto, Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar, escrito por Camila de Almeida Lara, recorre à arqueogenealogia foucaultiana para analisar a produção do sujeito bipolar em dois depoimentos extraídos do site Mental Help, a fim de observar as relações de poder e de resistência que constituem a subjetividade dos “bipolares”. Fábio Lúcio Zampieri e Gerson Wasen Fraga são autores do quinto artigo deste número, O cinema e as prisões da realidade: reflexões sobre a memória a partir dos filmes o Show de Truman, Matrix e Amnésia . O texto percorre o problema da memória e sua relação com os conceitos de “real” e de “verdade”, estabelecendo relações possíveis entre três películas e a discussão das vicissitudes e das potências da memória. O sexto artigo que compõe o volume é de autoria de Susie Silvana Barboza Moreira e Atilio Butturi Junior. Intitulado Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático, traça uma análise de livros pertencentes ao PNLD 2014 de Língua Portuguesa e deixa entrever relações de gênero e poder heteronormativamente marcadas nos discursos que atravessam o material de ensino e aprendizagem que constitui o corpus de pesquisa. O último artigo deste número de Gavagai é de autoria de Silvana de Gaspari e volta-se para a poesia italiana. Trata-se de Dante Alighieri e o deslumbramento do oltretomba , texto em que pesquisadora retoma a Divina Comédia não apenas de uma perspectiva autotélica, mas como marca político-social do Trecento, exigindo um papel crítico para o fenômeno literário em geral. Depois de apresentar os artigos, cabe fazer o agradecimento já costumeiro a todos aqueles que colaboram para o “acontecimento” desta Gavagai: autores, revisores, colaboradores, leitores, críticos e entusiastas. Finalmente, também marcar de forma entusiasmada a possibilidade de trazer à lume mais uma edição do periódico e colocá-lo efetivamente em seu segundo ano de circulação. Atilio Butturi Junior Editor-chefe Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 007-008, jan./jun. 2015. 10 MODERNIDADE E ANTI-MODERNIDADE NO RIO DA PRATA MODERNIDAD E ANTIMODERNIDAD EN RIO DE LA PLATA MODERNITY AND ANTI-MODERNITY IN THE RIVER PLATE Fábio Feltrin de Souza ∗ ∗ P ro f es s o r ad j unt o I I I d o c urs o d e L ic enc iat ur a em H is tó r ia e d o P ro g ra ma d e P ó s -G rad uaç ão I nte rd is c i p li na r em C i ênc ias H uma nas d a U FFS . E -m ail : f ab io .f eltri n8 1 @g ma il.c o m. Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata 11 RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT RESUMO: Este artigo tem por objetivo problematizar a noção de modernidade contida nos textos dos intelectuais argentinos da chamada geração de 1837. A partir das reflexões do Antoine Compagnon, Raul Antelo e Michael Löwy, é possível identificar na obra desses intelectuais indícios de saberes anti-modernos. Diferentemente do que a tradição autonomista apontou, os letrados argentinos estariam sintonizados com uma determinada esteira de pensamento defendida em periódicos franceses, citados a todo instante nos textos literários, em cartas e textos políticos publicados nos periódicos de Santiago do Chile, Montevidéu e Rio de Janeiro. Dessa forma, seguindo esse percurso de investigação, pode-se afirmar o caráter dual e heterogêneo da modernidade. PALAVRAS-CHAVE: Modernidade. Anti-modernidade. Rio da Prata. Geração de 1837. RESUMEN: Este artículo pretende problematizar la noción de modernidad contenida en los textos de intelectuales argentinos de la llamada generación de 1837. A partir de las reflexiones de Antoine Compagnon, Raúl Antelo y Michael Lowy, se puede identificar en la obra de estos intelectuales evidencia de un conocimiento antimoderno. A diferencia de la tradición autonomista señaló, los argentinos estavam sintonizado con una cadena de pensamiento defendido en los periódicos franceses, citada en todo momento en los textos literarios, cartas y textos políticos publicados en revistas de Santiago de Chile, Montevideo y Río de Janeiro. Así, siguiendo este camino de investigación, se puede afirmar el carácter dual y heterogénea de la modernidad. PALABRAS-CLAVE: Modernidad. Antimodernidad. Generación de 1837. Rio de la Plata. ABSTRACT: This article aims to problematize the notion of modernity contained in the texts of Argentine intellectuals of the generation of 1837. From the reflections of Antoine Compagnon, Raul Antelo and Michael Löwy, it is possible to identify indications of anti-modern knowledge in the works of these intellectuals. Unlike the autonomist tradition pointed out, the Argentinian literates were tuned in to a lineage of thought defended in French periodicals, cited at any moment in literary texts, letters and political texts published in journals of Santiago de Chile, Montevideo and Rio de Janeiro. Thus, following this path of research, the dual and heterogeneous character of modernity can be affirmed. KEYWORDS: Modernity. Anti-modernity. River Plate. Generation of 1837. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 009-020, jan./jun. 2015. 12 1 INTRODUÇÃO El romanticismo, pues, es la poesía moderna que fiel a las leyes esenciales del arte no imita, ni copia, sino que busca sus tipos y colores, sus pensamientos y formas en si mismo, en su religión, en el mundo que lo rodea y produce con ellos obras bellas, originales. En este sentido, todos los poetas verdaderamente românticos son originales y se confunden con los clásicos antiguos, pues recibieron este nombre por cuanto se consideraron modelos de perfección, o tipos originales dignos de ser imitados. [...] Nuestra cultura empieza: hemos sentido solo de rechazo el influjo del clasicismo; quizá algunos lo profesan, pero sin séquito, porque no puede exisitir opinión pública racional sobre materia de gusto en donde la literatura está en embrión y no es ella uma potencia social...el romanticismo no es más que el liberalismo en literatura. (ECHEVERRIA, 1991, p.53) O poeta argentino Esteban Echeverría traduz nesse trecho o modelo de distanciamento da arte antiga, observado partir do século XVIII na Europa. Os ditos modernos haviam se voltado contra o classicismo francês quando introduziram o conceito aristotélico de perfeição e progresso e passaram a questionar a imitação da arte antiga a partir da construção de uma densa relação consigo mesmo. Isso ficaria mais evidente com a elaboração de Hegel (1995) sobre a subjetividade, esse princípio dos novos tempos. Essa subjetividade é a produção de uma autoconsciência marcada pela busca de liberdade e reflexão, típica do sujeito-burguês, atomizado e individualizado (KOSELLECK, 1999). A modernidade se quis como uma libertação de todas as referências do passado; no caso da literatura, o romantismo (o espírito burguês por excelência) se pôs em frontal oposição ao classicismo. Nessa modernidade, o passado não esclareceria o futuro, não lhe forneceria substrato referencial. A História, compreendida como uma universalidade, como um singular coletivo, realizaria o trabalho de autoprodução. Poetas como Echeverría ou pensadores como Considerant, Marx, Kant ou Sarmiento acreditavam que a diferença do novo mundo em relação ao antigo residia no fato de que o moderno abre-se para o futuro, criando dessa forma um distanciamento entre o espaço de experiência e o horizonte de expetativas. Esse distanciamento é para Koselleck (2011) umas das marcas da modernidade, sobretudo se o encaramos, assim como o historiador alemão, como uma máquina de produzir o novo e de maneira acentuadamente acelerada. A palavra moderno, entretanto, já estava em uso desde o século V da era cristã. O papa Gelásio I utilizava esse termo para distinguir os contemporâneos dos antigos padres da Igreja e não conferia qualquer distinção qualitativa ou hierárquica. Presente e passado estariam, portanto, imbricados numa constrangedora continuidade entre aqueles que haviam seguido os passos do Cristo e os padres que, àquela época, disseminavam sua doutrina. Desde então, a palavra latina modernus significa simplesmente “agora” ou “tempo de agora” (JAMESON, 2005, p. 27). Ela vai ganhar um sentido opositivo quando os Godos tomam Roma e ali instalam seu povo. Dessa forma, o adjetivo antiquas vai designar a antiga organização política do Império Romano em comparação ao reino Godo. Entretanto, ela não se refere à continuidade teológica do cristianismo observada entre as duas civilizações. Afirmar a existência de uma “tradição moderna” talvez seja o primeiro e mais evidente dos paradoxos da modernidade. O moderno, portanto, funcionaria mais como um termo político de distinção entre o novo e o clássico, produzindo sequestros e apagamentos no ordenamento discursivo desde então, do que uma terminologia pura, ingênua e otimista. Que histórias indisciplinadas precisam ser contadas, portanto? Pretendemos neste artigo problematizar a noção de modernidade atribuída às práticas e aos textos dos intelectuais da chamada geração de 1837. Para isso, pretendemos analisar fluxos e conteúdos contidos em suas produções, cotejando com textos de europeus, lidos por Antoine Compagnos e Raul Antelo, como sintomas de saberes anti-modernos. A modernidade pode será lida, portanto, como um tortuoso e labiríntico percurso cuja avaliação seria realizada por suas margens (BUCK-MOSS, 2000). Desse modo, o próprio documento, entendido como arquivo, precisa de outras elaborações, outras genealogias, outras aproximações, que permitam infiltrar nas lacunas que a tradição iluminista provocou com seus sequestros. Essas outras genealogias dos objetos da modernidade revelam que todo documento avaliado como uma produção cultural é ao mesmo tempo um documento de barbárie, de violência. Esta noção é essencial, pois há aí expansão nos critérios de seleção, como também a afirmação radical de um modo de interpretar esses documentos: o passado é descortinado como ruína, sobre a qual construímos o presente, como um único e gigantesco arquivo povoado de fantasmas. Quando se fala de arquivo, não se pode esquecer que toda inscrição deve-se associar um modo de leitura e de interpretação, de outro modo teríamos um arquivo Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata 13 literalmente morto. O elemento político domina todos os momentos do trabalho no arquivo, da seleção, passando pela conservação e pelo acesso, chegando à leitura dos documentos. Documentos que são doravante lidos como arquivos, recheados de tempo que trazem a potência da vida e da morte. Em outras palavras, desvendar os sintomas e saberes antimodernos ou de crítica às concepções clássicas de modernidade contidas nos documentos produzidos é restabelecer seu caráter dual e heterogêneo (ANTELO, 2007). 2 UMA GERAÇÃO NO EXÍLIO Expulsos da Confederação Argentina, os letrados da chamada geração romântica de 1837 construíram refúgio fora das fronteiras geográficas de seu país. Buscando alternativas para o ‘progresso’ argentino, esbarraram numa ferrenha oposição a suas ideias e posturas. Seguiram o caminho do exílio, da peregrinação, do incerto desterro em terras estranhas. Entre cartas, artigos e romances em jornais, poemas e escritos políticos suas produções trazem as marcas da dor, o tom nostálgico da distância, a impossibilidade do regresso e a necessidade de construir uma nação moderna. A dispersão pelos países da América do Sul como Chile, Brasil e Uruguai os fez entrar em contato com outros letrados, como os italianos e franceses exilados em Montevidéu, ou ainda, com pintores viajantes como Johann Moritz Rugendas e Raymond Monvoisin. A constante peregrinação colaborou para que ideias circulassem e para que o continente, em sua parte mais meridional, estivesse, de alguma forma, integrado, ainda que por vias subterrâneas, seguindo as pegadas dos peregrinos. O ponto de partida é Buenos Aires na primeira metade do século XIX; mais especificamente, junto aos jovens da elite letrada identificada com o romantismo (VIÑAS, 1964). Dos países latino-americanos, a Argentina foi um dos primeiros em que o romantismo penetrou de maneira mais substantiva (MATIN, 2001). Isso está intimamente ligado à formação, em 1837, do Salón Literarío, nome pelo qual ficou conhecido o agrupamento daqueles “intelectuais”. Os encontros, os debates e as discussões aconteciam na livraria de Marcos Sastre (MARTIN, 2001). 1 O Salón tinha o propósito de ser um fórum de debate, como um centro socializador de “intelectuais”, que, de algum modo, 1 Uruguaio radicado na cidade de Buenos Aires. Sua livraria era um espaço de grande circulação de idéias. 2 Criada por iniciativa de Maria Encarnación Ezcurra, esposa de Rosas, a Mazorca (Sociedade Popular Restauradora) era uma organização comungavam de um horizonte semelhante de idéias e pensamentos. Um lugar onde questões relativas ao campo das artes e da cultura eram discutidas; percepções políticas e artísticas eram afirmadas, trocadas, redefinidas. Os debates no Salão Literário eram inspirados pelos românticos europeus como Goethe, Lamartine, Guizot, Rousseau, Walter Scott, Willian Blake, Madame de Staël, Chateaubriand, Lord Byron, Fourier, Saint-Simon, Mazzini e outros. As leituras desses autores eram mescladas com as intervenções dos próprios argentinos que naquele momento preocupavam-se com a fundação cultural da nação, com a concretização da Revolução de Mayo. O grupo tem a clara inspiração do fervor que alguns países da América do Sul experimentaram após as independências. Esses jovens da elite letrada justificavam sua posição de vanguarda e condutores da nação em direção ao futuro a partir da argumentação de Cousin sobre o princípio da soberania da razão (DONGHI, 2004, p.15). Isso porque o grupo em torno do Salón acreditava ser o único capaz de concretizar o plano inicial de Mayo. Contudo, ainda que num primeiro momento o grupo tenha se aproximado de Rosas, a “geração” de 1837 não seria a base intelectual para o governo do caudilho. Além ordenar o fechamento do Salón, em 1838, Juan Manoel Rosas controlava toda a imprensa, perseguia seus opositores e não admitia qualquer manifestação contra seu governo. Rosas não era presidente da Argentina, era governador de Buenos Aires. No entanto, com uma série de acordos com outros caudilhos governava todo território com amplo apoio popular. Durante o auge do governo rosista, em que a repressão e controle foram usados de maneira mais acentuada, há apenas a circulação de 32 jornais, dos quais apenas oito eram argentinos. Número bem inferior aos trinta jornais argentinos que circulavam na década de 1830 e ínfimo perto dos noventa da década de 1850. Mediante a repressão e o medo da Mazorca, 2 a vida em Buenos Aires tornou-se insustentável. O exílio era o caminho. A “geração” do Salón Literário buscou um seguro desterro para suas idéias e proposições. Chile, Bolívia, França, Inglaterra, Brasil e Uruguai foram os países escolhidos por estes “intelectuais”. Vou me deter aos exílios no Brasil, Uruguai e em certa medida na experiência chilena, tendo, contudo, como base o extra-oficial, mas patrocinada pelo Estado. Uma espécie de política secreta. Seus agiam em bandos e tinham total liberdade para torturar e matar qualquer inimigo e qualquer dissidente do grupo de Rosas. Cf. DI MEGLIO, Gabriel. Mueran los salvajes unitários: la Mazorca y la política en tiempos de Rosas. Buenos Aires: Ed. Sudamericana, 2007. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 009-020, jan./jun. 2015. 14 trânsito de conteúdos e os manejos conceituais necessários para construção de um discurso nacional. 3 ESTEBAN ECHAVERRIA: ANTI-MODERNO? Dentro disso, o trecho do poeta argentino Esteban Echeverría, selecionado no início deste artigo, aponta para uma das principais modalidades românticas de reencantamento do mundo: um retorno às tradições religiosas, de tal forma que se poderia considerar a religião como uma das principais características do espírito romântico (LÖWY, 1995). Tanto é que a religião foi parte integrante do projeto contrarevolucionário e anti-moderno observado na França no século XIX (CAMPAGNON, 2007, p. 140), e, assim como no Prata, significava um retorno à vontade divina, contra a vontade bruta e inóspita do povo. No entanto, isso não significa afirmar que os românticos, em suas variadas vertentes, tendessem a uma reaproximação com a Igreja enquanto instituição. Os letrados argentinos, por exemplo, por mais que afirmassem, como Hegel (1978), que o cristianismo é o mais bem acabado dos credos, pois era a religião absoluta, colocavam-se frontalmente contra os poderes da Igreja Católica, principalmente no que se referia à educação. Essa tradição presente na base das práticas literárias e filosóficas do romantismo se aproximaria, como disse Weber, de uma mística. O alemão escreveu em Ética protestante e o espírito do capitalismo que a razão seria iluminada a partir do fortalecimento do elo com o divino, pois, assim, a ordem das coisas estaria garantida. A contemplação mística e a vocação racional não são excludentes, ao contrário, são continuidades (WEBER, 2008, p. 215). Isso fica à mostra quando observamos que as filosofias do progresso do século XIX são marcadas pela carga escatológica do judaico-cristianismo, como no caso do marxismo e do liberalismo. Seu telos tornou-se intramundando, como se pode ler no texto do periódico uruguaio escrito por argentinos exilados El Iniciador, participe desse enredo internacional: La religión y la Filosofia promueven todos os elementos del progeso, gritan la completa emancipacion de la Humanidad. La religión razona, la filosofia cree. El pensamiento ya no lucha, ordena. Los pueblos obran. La lucha es material. Los pueblos adornan sus cienes con los laureles de sus brillantes victorias. [...] las 3 GUTIERREZ, José Maria (Org.). América Poética. Valpariso: Imprenta de Mercúrio, 1846, p. 172. Em outro texto, Echeverría lia a noite a gesto da boa reflexão: “La noche estaba oscura, fria y ventosa: yo me encerre, como de costumbre, temprano en mi cuarto, y me puse apoltronado en mi marquesa a cavillar. Las cavilanciones son el origen fecundo de todos los prodígios que desde Adan y Eva han escandalizado la tierra, pues grima al cielo, y regocijando al infierno. Ellas han engendrado todos eses monstros gigantescos que vagando lágrimas del Cristiano son lágrimas de vida, de alegría, de liberdade y progreso. La melancolia es el matrimonio del infortúnio y liberdad. (El Iniciador, n. 8, Monteviéu, 01/08/1838). Os românticos exilados em Montevidéu proclamavam a união entre religião e filosofia, pois assim a luta do povo, o agente da salvação, conduziria a sociedade ao desejado telos, à liberdade. No limiar aberto entre esse dois pólos, que aparentemente estão opostos, o pensamento moderno é lavado ao confim, à soleira, lá onde o pensamento opera uma dobra sobre si. O lado de fora não é um limite fixo do pensamento, tampouco uma oposição (DELEUZE, 1988, p. 104). Pensar a modernidade como dobra é identificar no lado de fora um componente de uma interioridade; ou, ainda, pensar essa modernidade romântica como uma exterioridade sem interioridade a produzir lados de dentro do lado de fora. Afirmar que exista um lado de dentro do pensamento, o impensado ou o adormecido, é evocar o que os clássicos já diziam sobre as diversas ordens do infinito. A partir do século XIX as dimensões da finitude do pensamento vão dobrar do lado de fora, constituir uma profundeza, uma espessura recolhida em si, como Echeverría, a cantar a noite, o outro do dia, o outro, a luminosidade da razão. O noche! Oscuridad! Del alma mia Alimento precioso; Tu majestad sombria Place a mi pensamiento barrascoso De anhelar con la turba fatigado Los bienes mentirosos Del mundo deslumbrado Me acojo en tus asilos misteriosos [...] Tempestades, naced, fragosos vientos Dejad vuestras cavernas Y que los elementos Quebrantem sus murallas sepiternas. [...] Alli olvido deleites y pesares, Y todo lo mundano, Y sin temor de azares Vuelo altivo, cual jenio sobrehumano Y mirando se faz el universo, Exento de conflito, Com sus jenios converso; Mi pensamiento vaga en el infinito. 3 por ele mundo dan, ora al traste con los impérios y republicas, ora le suben a los cuernos de la luna para de allí dejarlos caer a plomo y desmenucen contra las rocas de su própria nulidad. Y cuando el meollo lo concibe sataruado de la cierta dosis de fiebre ambiciosa, fanática, guerera, satírica, maquiavélica, de entonces! Pobre mundo, pobre humanidad! La tierra toda forma una batalla de gemidos y lamentos que atruenan aún a la matéria e insensible y asordan al cielo. Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata 15 Assim como Novalis, o grande representante do romantismo alemão, o poeta argentino canta a noite e seus fascínios. Ela é o espaço dos sortilégios, dos mistérios e das magias; o momento em que o poeta encontra com suas dores, seus fantasmas, seu eu amortecido pelas vicissitudes da vida; a noite nubla as certezas, torna os objetos mais profundos, rugosos; nela, o poeta vaga pelo infinito, pela busca por algo fora, no exterior do ser: o romantismo celebrou a noite e a opôs ao racionalismo ordenado (LÖWY, 1993, p. 53) e fez da noite uma estética de si, contrapondo-a aos modos de assujeitamento das instituições nos século XIX (FOUCAULT, 1997). Vagar entre seus encantos e surpresas era promover outras escritas no corpo, escritas que escapassem às docilizações da maquinaria racional. Echeverría, em seus versos, celebra o caráter dual da noite, sendo possível destacar uma tendência de perda ou caída, na mesma medida em se que observa o florescimento de um valor demasiado caro à modernidade: a subjetividade individual. Apenas o eu pode vagar e refletir sobre sua condição. O desenvolvimento da riqueza do eu, em toda sua profundidade e complexidade, dá conta de compreender a construção dos afetos e o desejo de liberdade. O desenvolvimento do sujeito individual está diretamente relacionado com o aparecimento do valor burguês no capitalismo (LÖWY, 1993, p. 26). Nessa fase da modernidade, os indivíduos são suscitados a viver de maneira independente e preencher funções determinadas na vida social. Esses indivíduos, entretanto, transformam-se em individualidades subjetivas que começam a promover investidas no mundo interior de seus sentimentos mais particulares. Dessa forma, eles entrariam em contradição com o sistema baseado na maquinaria racional e no cálculo. O romantismo representaria uma espécie de revolta afetiva reprimida, em prol do sentimento e da imaginação. Esse valor moderno e ao mesmo tempo anti-moderno, pois é dobra sobre si, foi também pensado pelo poeta Estevan Echeverría: En efecto, si el racionalismo, considerándolo como una potencia virtual y solidária, debía concluir que el hombre es sensación, sentimineto y conocimiento invisiblemente unidos, porque de estos tres modos se manifesta la trindad de su alma, era preciso que estudiando al hombre en su estado natural de vida de relación con sus semejantes y el universo, la filosofia preparase outra solución, que unida a la solución psicologica nos diese una definición completa del hombre y sus relaciones. Esta tentativa la hizo la Francia al fin del siglo XVIII, proclamando por la boca de Turgot y Condorcet la doctrina de la perfectibilidad, presentida anteriomente por Pascal, Perrault, Fontenelle y otros (ECHEVERRIA, 1991, p. 414). Nesse trecho, Echeverría se aproxima de Schiller. O alemão chamou de ingênuo o estado anterior à civilização e de sentimental o estado posterior à perda da ingenuidade. Para ele, os homens corrompidos não poderiam pensar ingênua ou sentimentalmente. O homem sentimental, contudo, seria como um adulto em relação à criança, pois sofre na vã tentativa de retornar a ingenuidade (SCHILLER, 1991, p. 49). Schiller rejeitava o mundo das formas concretas e lembrava que o romantismo percorreu por zonas inexploradas do ser, trazendo o problema, já apresentado, da subjetividade. Da desconfiança em relação à realidade e um artificial ordenamento das coisas, Schiller e Echeverrería ergueram sua obra e a colocaram ali entre o infinito absoluto e o finito relativo, situando-se entre o visionário e o contemplativo, o desajustado e o alheio. Estão na fenda obscura da modernidade. Dentro da operação de buscar o fora do dentro e o dentro do fora, o pensamento moderno parece estar no meio de dois grandes espelhos a produzir um reflexo que tende ao infinito. Nisso, a modernidade se abre e perde o controle de sua própria imagem e quanto mais o reflexo de afasta do primeiro reflexo, mais deformado o pensamento se encontra. No entanto, ele é ainda o mesmo. O lado de fora é uma interioridade de espera. Mas, esse duplo não é uma projeção do interior, é, como desvio, uma interiorização do lado de fora, pois não é o desdobramento do um, é uma reduplicação do outro. Por isso, é possível dizer que todo anti-moderno é antes um moderno, ou que modernidade é o outro de si mesma. O rasgo, doravante, não será mais um acidente do tecido, mas a regra sobre o qual o tecido se torce, se reduplica. Não há nesse gesto qualquer busca ou preocupação com a intencionalidade que se está investigando, pois esta intencionalidade do ente se superaria em direção à dobra do ser (DELEUZE, 1988, p. 177). No duplo do mesmo, cada autor aqui trabalhado é também um arquivo temporal, uma heterogeneidade furada e entrelaçada com um exterior que não se finda. Levar a modernidade até sua margem e fazê-la tocar seu duplo no exterior é também levar autores e textos [...]”. In: ECHEVERRÍA, Esteban. Obras Escogidas. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1991. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 009-020, jan./jun. 2015. 16 no limiar de sua coerência, pois é no confim, nessa zona de nublamento que os perigos tornam-se iminentes. Nossos olhos se acostumaram a desviar dos desvios, das fendas, das rachaduras, das curvas. Acostumaramse a procurar o caminho reto. No entanto, ser moderno é jogar-se no labirinto e o imperativo do presente é armar outras genealogias, passar por outros lugares, jogar a modernidade contra ela mesma e perceber na extremidade e no centro seu duplo a pulsar a potência do não. A dança moderna se perde no ruído surdo e se confunde com sua sombra. O próprio romantismo como expressão máxima da modernidade nos séculos XVIII e XIX apresenta-se como um enigma de duplos. Sua diversidade abundante resiste às tentativas de redução, mas também e, sobretudo por seu caráter contraditório, oposto e assimétrico. Ele é revolucionário e contra-revolucionário, cosmopolita e nacionalista, monarquista e republicano, racionalista e irracionalista, comunitário e individualista, místico e sensual, revoltado e melancólico, combativo e passivo, democrático e aristocrático. Tais contradições não são observáveis apenas no espectro conhecido como romantismo, podem ser percebidas também na obra de um único autor e, às vezes, no mesmo texto; seja ele político, poético, literário ou plástico. Os escritos dos letrados do Prata se revelam perfeitos habitantes do reino dos duplos, das contradições e dos paradoxos constituintes da modernidade anti-moderna. Dessa forma, me valho das ponderações dos críticos Raul Antelo e Antoine Compagnon no que se referem a diagnosticar sintomas dessa anti-modernidade ou contra-modernidade, como o repúdio ao sufrágio universal, uma aproximação de uma dimensão religiosa e sagrada e um reencantamento do mundo pela natureza. 4 A SOMBRA DO SUFRÁGIO No Rio da Prata, o sufrágio universal e um governo numericamente representativo pareciam estar fora de questão, visto que Juan Manoel de Rosas, o grande inimigo dos letrados de 1837, contava com uma expressiva popularidade, tanto em Buenos Aires, como nas outras províncias. Echeverría (1948, p. 104) escreve que “el sufragio universal dio de si cuanto pudo dar: el suicidio de pueblo por sí mismo, la legitimación del despotismo”. Não era possível, portanto, permitir a todo conjunto da população o acesso imediato ao governo e recomenda uma gradativa concessão, iniciar por “un punto de arranque que nos llevase por una serie de progresos graduales a la perfección de la instituición democrática” (ECHAVERRIA, 1948, p.106). Para isso, tanto a autoridade, quanto a centralidade do exercício do poder, deve permanecer nas mãos de uma elite ilustrada, dita como natural por Echeverría, detentora de uma hierarquia igualmente natural, “la unica que debe realmente existir, aquela que trae su origen en la naturaleza misma y consiste en la inteligência, viturd, la capacidad de mérito probado” (ECHEVERRIA, 1948, p. 108), pois La soberania del pueblo solo puede residir en la razón del pueblo, y que solo es llamada a ejercer la parte sensata y racional de la comunidad social. La parte ignorante queda bajo y salvaguardia de la ley dictada por el consentimiento uniforme de pueblo racional. La democracia, pues, no es el despotismo absoluto de las masas, ni de las mayorías; es el régimen de la razón (ECHEVERRIA, 1948, p. 201). Os ignorantes, portanto, não saberiam distinguir entre o bem e o mal, por isso apenas os ilustrados deveriam participar da cena política. As massas estariam privadas do exercício da soberania, das liberdades políticas e do pleno gozo das liberdades. O excerto acima pertence ao texto Dogma Socialista, de Esteban Echeverría. Publicado no último número do periódico El Iniciador, em 1838, o texto antecipava em quase dez anos o horror que Baudelaire tinha das massas, do sufrágio e da democracia (COMPAGNON, 2007). Antes das agitações de 1848, em 1846, o poeta e critico francês, sempre lido como uma das alegorias da modernidade, já tratava a liberdade e o direito das massas com ironia e sarcasmo. É, no entanto, em Mon coer mis à nu, que vai disparar contra toda forma de atuação das massas nas ruas da convulsionada Pátria: Mon ivresse en 1848. De quelle nature était cette ivresse? Goût de la vengeance. Plaisir naturel de la démolition. Ivresse littéraire; souvenir des lectures. Le 15 mai. Toujours le goût de la destruction. Goût légitime, si tout ce qui est naturel est légitime. Les horreurs de Juin. Folie du peuple et folie de la bourgeoisie. Amour naturel du crime. Ma fureur au coup d'État. Combien j'ai essuyé de coups de fusil! Encore un Bonaparte! Quelle honte! Et cependant tout s'est pacifié. Le Président n'at-il pas un droit à invoquer? Ce qu'est l'Empereur Napoléon III. Ce qu'il vaut. Trouver l'explication de sa nature, et sa providentialité (BAUDELAIRE, 1876, p. 678). Se o liberalismo entendido em sua pureza impossível representava a arquitetura de uma nova ordem, Baudelaire sentia aí uma desmesurada inclinação à Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata 17 destruição; um prazer irredutível pela destruição. O poeta desconfiava das capacidades humanas, da democracia, da massa, inclusive da soberania popular que logo levaria a Napoleão III e que já havia levado Rosas. Ambos chegam ao poder com o consentimento do povo, por sua vontade voluntária. Os horrores sentidos tanto pelo poeta francês, como por seu colega argentino, foram, aos seus olhos, possíveis de serem efetivados com o consentimos do povo. Chateaubriand partilhava desse mesmo pensamento quando se reportou a Napoleão: “os franceses querem de forma instintiva o poder; não amam em absoluto a liberdade, só a igualdade é seu ídolo”. Agora bem, a igualdade e o despotismo mantêm laços secretos. Por esses dois aspectos, “Napoleão teria sua origem no coração dos franceses” (CHATEAUBRIAND, 1957). Nessa esteira argumentativa, é possível constatar que as ditaduras plebicitárias de Napoleão III e Rosas representariam, por várias gerações, o pecado original do sufrágio universal tanto na França, como na Argentina. Baudelaire dizia que não há governo mais razoável e seguro que o aristocrático e que a monarquia ou a república, baseadas na democracia, são débeis. Essa doutrina teocrática e providencialista nasce do ódio contrarrevolucionário à soberania popular e ao sufrágio universal. Os anti-modernos compartilhavam desse ódio pela igualdade política. Tanto para a geração que fez a Revolução de Maio em 1810, na Argentina, como para os letrados de 1837, a democracia deveria ser o governo para o povo, mas não o governo do povo. Deveria haver uma gestão calculada daqueles que poderiam participar do jogo da cidadania, daqueles que poderiam efetivamente comungar da aurora dos novos tempos, desse tempo moderno trazido pelos ventos da razão, pela tempestade do progresso. Essa gestão emanaria do Estado e de sua estrutura regida pelo império da lei. Essa lei e essa ordem deveriam manter-se pela violência justificada de seus comandantes. Dessa forma, se aplicaria a regra pela sua exclusão; o que acaba por incluir toda uma maquinaria administrativa sobre a vida, um cálculo sobre os desígnios dessa vida. Assim, abre-se sobre a modernidade uma nova forma de governamentalidade, uma nova maneira de gestar a vida, baseada numa matemática a construir corpos dóceis, perfeitos e disciplinados, capazes de cumprir as expectativas dos ilustrados dirigentes da pátria. Os propósitos de Echeverría e Baudelaire reafirmam a tese de que o estado de exceção é uma norma. Esse paradigma parece estar na base de toda construção jurídico-estatal, na medida em que os regimes democráticos se orientariam, como exercício de sua prática política, por um paradigma que encontra seu fundamento em formas totalitárias de governo, tanto que, à época da Assembleia Constituinte Francesa, ocorrida entre os anos de 1789 e 1791, o estado de sítio foi proclamado. Esse estado de sítio militar deveria cumprir o papel de protetor do estado democrático de qualquer ameaça externa, ou possíveis desordens internas; ele significa a suspensão da lei com o objetivo de defender essa mesma lei. Esse mecanismo regido por um insolúvel paradoxo era uma alternativa extrajurídica de proteção da ordem jurídica, uma suspensão da democracia, para mantê-la em sua essência (AGAMBEN, 2007). Longe da democracia radical idealizada por Hidalgo e Artigas, seu enunciado aprece se assemelhar com o paternalismo autocrático de Rosas. Além disso, parece trazer uma fagulha, um sintoma do humanismo, que desembocou nos regimes militares na América Latina ou ainda no nazismo, um fenômeno biopolítico por excelência. Nesses regimes, ditos de exceção, a prática melhoramento da raça e do “deixar morrer, fazer viver”, denuncia as táticas absolutamente sombrias de gestão da vida que poderia viver. Com isso, a modernidade e a nação moderna criaram, discursivamente, o outro, o inimigo a ser exterminado. O “judeu” dos pampas seria o índio, o negro e o gaucho. Nessa operação política, em que a ausência da lei é uma regra aplicada àqueles em que a exclusão é uma ação de Estado, esse “outro” é privado de sua voz, é privado do testemunho, pois o lugar que esse novo sujeito, o “outro” desprezível, ocupa na linguagem é o do semhistória. O testemunho joga-se no plano da linguagem, não como o que resulta da impossibilidade de dizer, mas como um sistema de relação entre o dizível e o indizível; entre o que se pode dizer e aquilo que é dito. É aquilo que fica entre as potencialidades da linguagem e a sua possibilidade efetiva. Falar é colocar-se nesta cisão entre o que é possível dizer e aquilo que é dito. O testemunho é, assim, uma efetivação possível, uma possibilidade de dizer que carrega a potência do nãodizível. É neste limite, no limite da sua própria possibilidade, que os testemunhos dos indígenas, gauchos e negros se afirmariam como o único relato possível de uma barbárie inimaginável, que, no entanto, foi imaginada e calculada na formação das nações no século XIX. Com esse trato do discurso, invertendo os nexos produtores de verdades históricas, há uma clara afronta ao que Hegel havia instaurado no princípio do século XIX, ao teorizar sobre os povos sem história. Assim como o filósofo alemão foi o sustentáculo teórico para as atrocidades cometidas em África, Sarmiento foi o responsável pela caça sistemática aos indígenas dos pampas argentinos. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 009-020, jan./jun. 2015. 18 Afirmações mais radicais e explícitas como aquela de Sarmiento, escondem-se num discurso mais cadenciado e otimista, como neste contido no jornal El Iniciador. Neles, liberdade e progresso eram tomados como universais sem rosto e sua concretização era uma certeza do desenvolvimento das sociedades. No entanto, quando abertos ou lidos à contra-pêlo, desvendam e anunciam o sintoma da catástrofe da modernidade. A interrogação desses conceitos pode conduzi-lo ao seu limite: El grado de progreso de estes ramos distintos señala el grado de civilizacion de un pueblo, cuanto mas la inteligência se desarrolla tanto mas se acerca á la perfeccion, á la verdadeira liberdad, porque pues no nos ponemos en camino? Pero esta voz no se oye y por todas partes reina el silencio, la inércia, y si nostros sentimos la necesidad de alzarla los primeros y los décimos francamente, como querriais negarnos la iniciativa de la época nueva que presentamos? Y como pode veniros el pensamiento de que insultamos a nuestros padres? – la edad no da el privilegio de la sabiduria, la sabiduria de los padres es la herancia de los hijos; es una conquista ya hecha á laquê los hijos deben agregar otras nuebas, logo es falso que el pasado sea el maestro de provenir; es un error admitirlo sin examen, y para convernirnos basta observarcuantos câmbios de ideas y combinaciones en los hechos se han sucedido desde la historia de los tiempos mas remotos hasta los nuestros (El Iniciador, Monteviéu, 01/09/1838). Era consenso entre os letrados de 1837 a necessidade de superar o estado do caudilhismo para construir uma nação civilizada aos moldes do que idealizavam ser a Europa. O caudilho, esse líder local, militar e geralmente carismático, era ao mesmo tempo um símbolo e uma materialidade para seus opositores. Sarmiento acreditava que o caudilho era o espelho em que se refletiam as crenças, as necessidades, as preocupações e os hábitos de uma nação em uma determinada época do desenvolvimento histórico. Ele seria o inimigo premeditado do progresso, “el hombre natural surgido de las profundidades del selvaje suelo americano, heredero de la tradición medieval espanhola” (SARMIENTO, 1977, p. 18). Não seria o Espírito do Mundo, aquela força a mover os moinhos da história e do progresso; era, entretanto, o espírito popular, a representação mais bem acabada da barbárie. Para Sarmiento e seus colegas, era preciso interromper esse ciclo impedindo que as massas participassem do jogo político e retirando o caudilho do poder, utilizando, se preciso fosse, a força para que a lei e a razão sejam postas em seu lugar. A instauração de um regime regido pela racionalidade ocidentalilumunista do liberalismo estava atrelada, portanto, ao emprego da violência. Nesse ponto, os discursos demonstram sua irmandade; são gêmeos siameses: os letrados de 1837 carregavam, ao mesmo tempo, o espírito irracionalista do romantismo e o desejo de colocar a Argentina na esteira do racionalismo e do positivismo. O repúdio às massas, à democracia, essa vergonha do espírito humano, compartilhado pelos letrados da região do Prata e da Europa e representado pela citação de Sarmiento, parece abrir um arquivo “ilustocrata”, cuja primeira aparição remonta aos escritos de Platão sobre o rei-filósofo. Crítico de todas as formas de governo, em especial da democracia, por considerá-la a mais degenerada de todas, Platão criou uma alternativa a essas formas impuras. Nela, o supremo governante seria um filósofo cuja educação seria para tirá-lo do reino das sombras, lapidando sua alma (anima) para o encontro com o supremo bem. Para Platão, o verdadeiro espírito filosófico é aquele que não se deixa levar perturbar pela imperfeição e a variedade das opiniões (doxa); ele buscaria a unidade na diversidade, atingiria, portanto, a imagem fundamental, universal e imutável das coisas, ou seja, a ideia ela-mesma. A educação do filósofo se basearia numa espécie de acese espiritual: a alma que atingisse o topo do conhecimento, que tocasse a suprema justiça, o supremo bem, a suprema igualdade, estaria pronta para governar. Platão, com isso, buscava assegurar que nenhum sofista, seus grandes inimigos, e que nenhum demagogo, o exemplo de degeneração da democracia, manipulassem as massas, pois elas ainda estariam presas às vontades, à superficialidade, às manipulações, pois não seriam detentoras das verdadeiras formas do conhecimento. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Da natureza, disse Reclus, emanaria o sol a aquecer todos os exilados que vagavam pelo mundo; fossem eles os expulsos da pátria, das cidades babilônicas que se multiplicavam no século XIX, os viajantes ou os auto-exilados (RECLUES, 1866, p. 381). As florestas, as ervas, as nuvens, as cachoeiras, as árvores, as rochas, as tempestades, o mar, o deserto, enfim, todos os fenômenos da natureza forneciam uma consistente constelação infinita de símbolos, pronta (assim como mundo) para ser descoberta, apresentada, criada. Ela se tornou, para os românticos, a fonte de todas as belezas, a certeza do toque divino sobre a terra. Rousseau via no estado de natureza o perfeito equilíbrio, possibilitando que o homem fosse tal como Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata 19 é: bom por natureza. O homem natural vive em harmonia consigo e com o meio, não deseja o que não pode ter, vive a paz e não a guerra. A sociedade e o império da razão transformaram o homem num ser belicoso, mesquinho, degenerado, num ser que precisaria de regras e leis, em mau, portanto. Entre uma palavra e outra, entre um sonho e o desejo de progresso, entre a crítica ao despotismo de Rosas e a utopia do futuro, saltam, pulsam, brilham sintomas anti-modernos no periódico El iniciador; são fragmentos de uma modernidade composta também pelo seu avesso, pelos seus paradoxos: REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Humanitas, 2007. ANTELO, R. Flores do Mal: Sintoma e saber antimodernos. Alea, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.152164, jan./jun. 2007. BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1876. BUCK-MORSS, S. Hegel and Haiti. Critical Inquiry, v.26, n.4, summer 2000. La musa de Lord Byron es una de esas emanaciones sagradas de la naturaleza; es un soplo celestial. Enérgica, terrible, suave, vulgar, apasionada, melancólica, sublime como Dios, mágica como la sonrisa de una viagen bella, pura, esperitual, es la naturaleza que se canta a si misma, es el hombre que se estasia en los mistérios de la creacion, que eleva sobre la tierra que pisa......!! es una luz eterna que va hasta el corazon, y baña las profundidades de nuestro ser y no conmueve, y nos eleva, y no encanta (El Iniciador, n. 1, Montevidéu,15/04/1838). Do poeta do romantismo, Lord Byron, que tanto inspirou escritores malditos, inclusive o próprio Esteban Echeverría, emanaria esse “sopro celestial” do encantamento do mundo pela natureza. Suas produções eram, para os editores do periódico, o que existia de mais puro e ideal; eram sublimes manifestações divinas. Fragmentos dela cintilavam e comoviam os corações a pulsar o anseio por uma nova quimera. O trecho selecionado revela o sintoma de uma cultura que tornou possível a aparição desses estilhaços que só podem ser lidos em rede. Saberes políticos, poéticos e teológicos se imbricam numa inusitada aproximação: são ao mesmo tempo interrupção dentro de um saber cristalizado e interrupção no caos que se arma partir de outras genealogias da modernidade. Detectar um dos signos daquele tempo é unir Baudelaire, Echeverría e Walt Whitman (WHITMAN, 1998, p. 138), é desvendar como nas duas margens do Rio da Prata, se pode construir uma terceira margem e ler aquela experiência fora das explicações consagradas pela historiografia tradicional. CHATEAUBRIAND, François-Rene. Obras completas. São Paulo: Ed. das Américas, 1957. COMPAGNON, A. Los Antimodernos. Barcelona: Acantilado, 2007. DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. DONGHI, Tulio Halperin. Una nación para el desierto argentino. 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Petrópolis: Vozes, 1995. LÖWY, M. ; SAYRE, R.. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. MATIN, Gerald. A literatura, a música e a arte na América Latina: da Independência até 1870. In: BETHEL, Leslie (Org.). História da América Latina: da Independência até 1870. Vol. III, São Paulo: EDUSP, 2001. MAZADE, Charles de. De l´Americanisme et des Republiques du Sud. Revue des Deux Mondes, v. 16, Paris, 1846. RECLUS, Élissé. Sentiment de la nature dans les sociétés modernes. Revue des Deux Mondes. Tomo 63, Paris, 1866. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Brasília: Ed. UNB, 1985. ______. Facundo: civilizacion y barbarie. Venezuela: Ayacucho, 1977. SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. São Paulo: Iluminuras, 1991. VIÑAS, David. Literatura argentina y realidade política. Buenos Aires: Jorge Alvarez Editor, 1964. WEBER, M.. Ética protestante e espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. WHITMAN, Walt. Folhas das folhas de relva. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1998. Souza | Modernidade e anti-modernidade no Rio da Prata 22 NOTAS DE ICONOLOGIA: IMAGEM E TEOLOGIA NAS LETRAS LUSO-BRASILEIRAS NOTAS DE ICONOLOGÍA: IMAGEN Y TEOLOGÍA EN LA LITERATURA LUSO-BRASILEÑA ICONOLOGY NOTES: IMAGE AND THEOLOGY IN LUSO-BRAZILIAN LETTERS Felipe Lima da Silva ∗ ∗ Me str an do e m Li te r atu r a B r asile ir a – P r ogr a ma de P ós- gr adu aç ã o e m Le t r as da U n iv e r sid ade d o E st ado do R i o de J an e ir o – U E R J . E - mail: fe lipe . lim a2f@ g mail. c om. Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT RESUMO: Este artigo propõe examinar a recorrência do paralelo entre imagem e discurso nas letras luso-brasileiras do século XVII, as quais foram amplamente tributárias da eloquência pictórica, especialmente, nos sermões sacros. A partir do mecanismo da Ekphrasis, o pregador expõe as descrições como se pintasse um quadro diante do público. Esse emprego das palavras, enquanto ‘cores’ do quadro do discurso, serviu para que a sociedade do espetáculo apresentasse suas práticas artísticas, fundamentando-as nas teorias dos mais renomados preceptistas da tradição clássica. No curso da análise, foram discutidas noções de visualismo, alegoria e linguagem que se entrelaçam no campo das teorias pictóricas que ancoram o pensamento seiscentista. PALAVRAS-CHAVE: Imagem. Retórica. Sermão. RESUMEN: Este artículo tiene la intención de analizar la repetición del paralelo entre la imagen y el discurso en la literatura luso-brasileña del siglo XVII, que habían sido extensamente influenciados por la elocuencia ilustrado, en espacial, por los sermones sagrados. A partir del mecanismo de Ekphrasis, el predicador expone las descripciones como si estuviese pintando un cuadro ante el público. Este empleo de las palabras como “colores” del cuadro del discurso fue importante para que la sociedad del espectáculo presentase sus prácticas artísticas, basándolo en las teorías de los preceptistas más famosos de la tradición clásica. En el curso del análisis, es necesario discutir las nociones de visualismo alegórica, así como la noción de lengua comprendida por la sociedad del siglo XVII. PALABRAS CLAVE: Imagen.Retórica. Sermón ABSTRACT: This article intends to examine the recurrence of the paralel between image and discourse in Luso-Brazilian letters in the seventeenth century which, as it is known, were widely tributary to the so-called pictoric eloquence, specially, in sacred sermons. From the Ekphrasis' mechanism, the preacher exposes the descriptions as if the painted a picture in front of the audience. The use of the words, as the 'colors' of the discourse picture, has served in order to the show society presented theirs artistic practicals, basing them in the theories of the most known preceptists of the Classical tradition. During the analysis, the concepts of visualism, allegory and language will be discussed and how they intertwine in the field of pictoric theories which ground the sixteenth century thought. KEYWORDS: Image. Rhetoric. Sermon. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015. 24 “O que se dizia mais vivamente não era exprimido por palavras, mas por sinais; não se dizia, mostrava-se”. (Jean Jacques Rousseau) 1 ESTADO DA QUESTÃO As imagens feitas para significar algo diferente daquilo que os olhos vêem têm como regra certa e universal a imitação dos monumentos assentados nos livros e entalhados nas medalhas ou em mármore pela indústria de latinos, gregos e dos mais antigos inventores dessa arte (RIPA, 2005, p. 23). Tomando como ponto de partida as linhas de força da Introdução do renomado tratado, do início do século XVII, de Cesare Ripa, o Iconologia, esta investigação propõe examinar uma das práticas recorrentes das manifestações artísticas e culturais do século XVII: o primado do paralelo entre imagem e retórica na construção dos discursos de ordem sacra, que constituíram a base do uso e da invenção de imagens cujas flutuações podiam ser controladas nas regras de um discurso legitimado pela autoridade de uma hermenêutica instucionalizada. Especificamente: pretende-se propor uma discussão da potência persuasiva realizada pelo viés das sensações visuais, que desencadeiam o prazer do auditório e, prioritariamente, funcionam como meio de disseminação do ensinamento das doutrinas em uma sociedade na qual se desenvolve uma cultura massiva – como é o caso da cultura barroca –, cujo caráter dirigido apela, frequentemente, para uma eficácia da imagem visual no âmbito da ars bene dicendi. Sem pretender, nestas linhas, mapear integralmente o solo teórico da história do paralelo entre retórica e pintura, acentuemos que no pensamento platônico é notável a condenação da retórica e da pintura em detrimento de emulações de um conhecimento e de aparências tomados por falsos, cuja produção, como se pode ver nos eminentes diálogos do Górgias e do Fedro, constitui um corpo de práticas “feias” que visam ao agradável sem preocupação com o melhor, designando-se, portanto, por “vaidades” ou “adulações”. Nessa esteira, a retórica será sempre pensada em paralelo com a pintura e a pintura em termos de retórica, como se a definição de cada uma enunciasse a metáfora da outra; isto, pois, na morfologia de tal pensamento, a condenação dos exercícios de ambas as práticas se justifica no fortalecimento da musculatura da lógica que constitui a razão metafísica do pensamento platônico. Evidentemente, não se pode afirmar que Platão condenou todas as práticas que visassem ao “agradável”, mas apenas aquelas que, segundo sua visão, se preocupavam unicamente com o prazer em detrimento de uma finalidade primeva referente ao bom e ao justo. Acerca desse ponto, Jaqueline Lichtenstein (1999, p. 48) observa que “toda a tradição tenaz, iconoclasta, multiforme em sua monotonia, fará dessa definição o objeto paradigmático de um puritanismo moral e estético”. Como se sabe, na via do pensamento platônico, o caráter da retórica é de instrumento que não está vinculado ao bom e ao justo, pois é uma ferramenta que corrompe as virtudes, por estar associada às sensações mundanas que nos afastam do campo das ideias – em síntese: é uma arma sofista. Mais, o tema da retórica em Platão, frequentemente, esbarra-se nas considerações tecidas em torno do phármakon, atribuindo à retórica uma conotação de droga que corrompe por meio do discurso oral, ou principalmente pelo discurso escrito, já que faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais ou habituais. Segundo nos indica Jacques Derrida em sua valiosa proposta de leitura sobre o tema: Esse phármakon, essa "medicina", esse filtro, às vezes remédio e veneno, introduz-se já no corpo do discurso com toda sua ambivalência. Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa potência de envolvimento podem ser — alternada ou simultaneamente — benéficas e maléficas. O phármakon seria uma substância, com tudo o que esta palavra possa conotar, no que diz respeito a sua matéria, de virtudes ocultas, de profundidade críptica recusando sua ambivalência à análise, preparando, desde então, o espaço da alquimia, caso não devamos seguir mais longe reconhecendo-a como a própria antisubstância: o que resiste a todo filosofema, excedendo-o indefinidamente como nãoidentidade, não-essência, não-substância, e fornecendo-lhe, por isso mesmo, a inesgotável adversidade de seu fundo e de sua ausência de fundo (DERRIDA, 2004, p. 265). No extremo oposto, Aristóteles garantirá à retórica o espaço de “uma técnica rigorosa do argumentar” (PLEBE, 1968, p. 38), centralizando-a no campo das artes neutras, que “como a faculdade de observar, em cada caso, o que este encerra de próprio para criar a Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras 25 persuasão” (ARISTÓTELES, I, 1355b1, 2013). Além disso, o estagirita esvazia a retórica de todos os valores pejorativos atribuídos a ela no momento em que centraliza a figura de eminência do éthos do orador, declarando que “a persuasão é obtida graças ao caráter pessoal do orador, quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz pensar que o orador é digno de crédito” (ARISTÓTELES, I, 1356a1, 2013). Se efetivamente tudo inicia com Platão em termos da querela entre retórica e pintura, é só com Aristóteles que se oficializa aquilo que podemos nos referir pelo signo de um conflito, ao qual a oposição Platão/Aristóteles serve, ao mesmo tempo, de ponto de partida e de paradigma para a questão em foco. Mas, o recuo a Aristóteles nos obrigar a acentuar que foi este que, reivindicando um espaço ao lado do terreno da doxa do platonismo, reposicionou a conduta moralizante da téchne rhetoriké, transportando-a para a figura do orador que agora é o responsável pelas consequências boas ou ruins que podem ser geradas através da técnica dos discursos. Antes de passarmos ao terreno das letras ibéricas do Seiscentos, é relevante destacar que ambos os filósofos aqui mencionados contribuíram para a formação do pensamento da ortodoxia católica. Aristóteles será reciclado para assumir o lugar de um dos pilares da arte retórica nos discursos sacros, junto aos eminentes tratadistas Cícero e Quintiliano, formando uma trindade da eloquência, só para não destacar a extensiva corrente de preceptistas que serviram também de lastros para a sapiência erudita do século XVII, entre alguns deles A Retórica para Herênio, do Anônimo romano, por volta de 80 a. C, o tratado de Tácito sobre os oradores, no séc. I d.C e por muitos textos de autores conhecidos como rhetores latini minores etc.(cf. HANSEN, 2013). Paralelamente, a importância de Platão é marcante quando analisamos o substrato da metafísica ocidental forjada no âmago do Cristianismo, cuja primazia, durante séculos, foi coroar com devoção e ilustríssimo labor a matéria do essencialismo que proporciona lógica ao Mistério que equilibra a dialética de ordem teológico-política da Igreja Católica do século XVII. No que tange ao campo da imagem, Platão nos legou o olhar atento para seu aspecto sedutor, fazendo-nos imprimir sobre as práticas ligadas ao ornamento e ao prazer um critério fundamental para que estas possam existir enquanto práticas de representação: desde então “o Belo será obrigado a exibir seus atestados de boa conduta moral 1 Cabe destacar que não será o propósito deste trabalho salientar a querela promovida nos textos de Quintiliano sobre a oratória ciceroniana em torno da eloquência que lança mão de um discurso e metafísica que passa a ser, assim, o único fundamento e garantia de beleza” (LICHTENSTEIN, 1999, p. 48). 2 RETÓRICA E TEOLOGIA: O/PELO SIGNO SEISCENTISTA (RE)MAPEANDO Fazendo um corte transversal no vastíssimo corpus da história e das polêmicas que gravitaram na órbita do paradigma entre retórica e pintura, para abreviar nosso percurso, importa agora tecer algumas considerações acerca dos efeitos de tal discussão e suas implicações nas letras ibéricas luso-brasileiras. Sabe-se que as práticas de representação dessa época têm identificadas em suas produções uma demarcada tributação à primazia das formas visíveis que colocaram, com o tempo, a retórica em uma posição difícil e pelo menos paradoxal 1. Nessa época em questão, o sermão eclesiástico ocupa o lugar de eminência enquanto exemplo de gênero demonstrativo que, conduzido por um pregador, articula efeitos sensoriais sintomaticamente, produzindo uma “eloquência silenciosa” (LICHTENSTEIN, 1999, p. 95), cuja referência à imagem do orador torna-se uma peça-chave no alcance ao ponto culminante da oratória. Em síntese, a veemência dos gestos, o franzir do cenho, lágrimas nos olhos, expressões do rosto são elementos importantes no momento da pregação, pois auxiliam no convencimento à medida que facilitam na captação dos afetos do público. Não se pode abordar a forma mentis pós-tridentina, que privilegiou o uso das imagens em seus atos interlocutórios de ordem religiosa, sem antes chamar a atenção para a configuração do conceito de linguagem do cenário ibérico. Conforme se sabe, a linguagem opera como o agente fundamentalmente mediador da produção de relações entre os significados e os significantes. Analisando a operação da linguagem e as relações de similitude produzidas no século XVI, Michel Foucault nos auxilia a lançar luzes para entender a concepção de linguagem do século XVII, negando sobre esta a natureza de um conjunto de signos independentes e uniformes que se refletem em um espelho para anunciar sua verdade autônoma e singular. Por outro lado, afirma ser a linguagem “uma massa fragmentada e totalmente enigmática, que se mistura aqui e ali às figuras do mundo, e com elas se confunde” (FOUCAULT, 2005, p. 90). Isto posto, sublinha-se ainda que tal questão, que já se encontrava imagético. A esse respeito, destacam-se os importantes trabalhos de Lichtenstein (1994) e Quintiliano (1944). Ver igualmente o interessante capítulo de Alexandre Leupin, “Le parêtre” (1993, p. 19-39). Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015. 26 encorpada nas discussões mais remotas da Igreja, apresenta-se concentrada e representada pela dialética do signo ambivalente: “todo signo é signo de uma dualidade constitutiva, instaurada pelo sistema da dupla Escritura” (DELÈGUE, 1990, p. 24). Ainda na esteira de As Palavras e as Coisas, acentuemos com M. Foucault, para pensar os modos de representação do século XVII, que a linguagem age como a distribuidora das similitudes (as articulações de semelhanças que ocorrem entre os signos e as coisas, seja por: convenientia, aemulatio, analogia e simpatia) e as marcas – abertura que permite perceber as figuras visíveis que se ajustam no jogo das semelhanças entre as coisas. Assim, podemos compreender que as formas de representar o mundo para as sociedades do Quinhentos e do Seiscentos ainda estão amparadas em uma lógica de associação na qual o mundo é reconhecido por meio de uma trama de semelhanças de formas e de significados. No âmbito de atuação do pregador e de produção da liturgia sermonística, esses elementos de associação serão importantes para criar formulações de alto grau de dificuldade em relação às mensagens codificadas presentes nas Escrituras Sagradas. Por meio de uma linguagem que opera por associações, o pregador católico elabora uma performance no púlpito que lhe favorece, duplamente, assegurar sua autoridade de única pessoa capaz de interpretar o texto Sagrado, assim como atesta a funcionalidade e importância das instituições retóricas legitimadas pelas autoridades ao longo do tempo. As observações precedentes nos permitem relacionar o aspecto associativo da linguagem da época com o pensamento deleuziano da dobra que, no percurso que aqui traçamos, seriam as aberturas que facultariam as pregas para o entrelaçamento de novas dobras, isto é, as dobras seriam o resultado dessas relações entre as semelhanças, criando uma cadeia de correspondências entre seres, coisas, imagens etc.. Faz bem lembrar, neste ponto, da relevante obra de H. Wölfflin, Renascimento e Barroco, quando o filósofo propõe o estilo seiscentista em termos de sua função operatória primordial: fazer dobras. Evidentemente que estas não são invenções do referido período: há toda uma cadeia de pregas advindas do Oriente, gregas, romanas, góticas, clássicas (cf. WÖLFFLIN, 1985, p. 43), inclusive dobras egípcias que já se encontram traçadas, na medida do possível, na obra ilustrativa do pensamento de Mario Perniola (2009). Não obstante não represente um aspecto singular e restrito ao século XVII, a noção de dobra é uma peça fundamental para as representações dessa época, uma vez que se pensarmos nos sermões de Antônio Vieira, por exemplo, entenderemos que o mecanismo sobre o qual estes funcionavam era o recurso de desdobramentos de argumentos, imagens, citações bíblicas que eram encaminhados, ao longo do percurso da pregação, para encerrar, na peroração do discurso, uma mensagem revestida pelos dogmas da Igreja. Dessa maneira, quando estuda o Barroco, Deleuze chama a atenção, a todo instante, para a ordenação que há entre esses elementos que se desdobram, demarcando que essa harmonia está resvalada pelas semelhanças, como vimos pelas lentes de Michel Foucault, que formam uma dobra “que não se separa em partes de partes, mas divide-se até o infinito em dobras cada vez menores que guardam sempre uma certa coesão” (DELEUZE, 1988, p. 9). À luz de tais ideias que enformam a morfologia do pensamento deleuziano, se é que podemos propor uma forma para a filosofia de Deleuze, podemos perceber as relações que se fazem presentes nos planos do discurso e da representação seiscentista. Segundo afirma Mario Perniola, a metáfora da dobra significaria exatamente a plenitude do período, visto que “tal é o mundo barroco, em que todas as coisas são dobradas para ocupar menos espaço possível” (2009, p. 28). Nesse ponto da investigação, importar declarar que não podemos perder de vista o fato de que a noção de linguagem para as épocas subordinadas aos preceitos católicos é, extremamente, alegórica, pois ela já não possibilitava a ligação direta com a essência da própria coisa, o que promove é uma “sombra” do sentido que remeta à coisa “original”, impossível de ser atingida após a Queda do Paraíso. A respeito da referida elucidação, destacamos a síntese esclarecedora de Ana Lúcia de Oliveira (2003, p. 23), em seu estudo acerca dos signos que se dobram pela agudeza dos intérpretes eleitos: “o signo não garante mais o sentido de que é portador: eis seu aspecto “arbitrário”; substituto da coisa, ele pode apenas lembrá-la à distância”. Para concluir tal raciocínio, postula-se que “o saber das similitudes funda-se no levantamento destas marcas e na sua decifração” (FOUCAULT, 2005, p. 82). A linguagem, por conseguinte, singulariza-se pelo seu elementar valor para a natureza, como ferramenta que se propõe aos homens a decifrar as coisas do mundo, garantindo-se residir entre as plantas, as pedras e os animais (FOUCAULT, 2005, p. 90). A partir de tal enquadramento e sua proeminência inerente à esfera oratória da Península ibérica, o sermão, que é produto de um conjunto de Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras 27 intertextualidades e mediações textuais, servir-se-á da linguagem com fins de “solidificação de uma ideologia e de uma opinião massificadas” (MENDES, 1989, p. 212), privilegiando os preceitos teológicos. 3 ENTRE O VISÍVEL E O DIZÍVEL Por ora, deixando de lado esse atraente desvio pelo (re)mapeamento do solo teórico da concepção de linguagem para o século em foco, retomemos o fio de nossa questão central. Para tanto, recorramos à análise de Marc Fumaroli (1996) na qual aponta que desde o fim da Antiguidade, a Igreja prolongou os debates acerca da questão da legitimidade e do estatuto das formas imagéticas pintadas ou esculpidas, dividindose, por sua vez, acerca desta outra forma da mímesis que é o teatro, e o seu mediador, o ator. Nas palavras do referido crítico: [...] se as imagens plásticas, mesmo sendo imóveis, puderam ser consideradas por Platão e por toda uma tradição teológica como um dos mais graves perigos da alma, os “ídolos” teatrais, dotados de movimento e voz, animados pelo corpo vivo dos atores, têm um efeito bem mais imediato e poderoso sobre os sentidos (FUMAROLI, 1996, p. 449). Tal efeito sensorial 2 apresenta dialeticamente duas consequências para a Igreja contrarreformista: por um lado, o poder persuasivo que interessou ao teatro nos colégios da Companhia de Jesus; enquanto, por outro, a forte ligação com os sentidos mundanos que faziam do homem um ser, cada vez mais, preso à sensibilidade, quando “o ideal ascético exigia que o cristão se desprendesse” (HATHERLY, 1997, p. 176) deste mundo sensível. A esses dados, acrescente-se ainda que a “eloquência muda” é constituída pelos mais variados artifícios para garantir o sucesso do discurso e o triunfo do orador. No cruzamento das linhas da ação com a paixão o corpo encarna os princípios da filosofia e da linguagem, simbolizando por meio de gestos e fundando por meio de práticas uma “retórica dos corpos” (LICHTENSTEIN, 1999, p. 85) que possibilita transformar o dizível em visível. Através do corpo, o orador insinua as mais variadas emoções, produzindo sobre o público uma simbiose entre os domínios do que é dizível e o do que é visível; ação essa considerada uma 2 Este efeito sensorial pode, sob alguns prismas, ser identificado como algumas das concepções amplamente refutadas por Tertuliano que foram tematizadas no De spectaculis e no De idolatria. Segundo nos lembra Alexandre Leupin (1993 p. 41-58), foram amplamente debatidas por Tertuliano, nos referidos tratados, as manifestações de prazer e divertimento que se davam pelo teatro, bem como por qualquer das prerrogativas máximas da produção textual do século XVII, para convencer sua massa de fiéis por meio dos sentidos. Segundo nos indica o importante historiador da cultura da sociedade do espetáculo: Os olhos são os mais diretos e eficazes meios de nos podemos valer em matéria de afetos. Eles estão ligados, e inversamente, ao sentimento. Para pôr em movimento a vontade, como já vimos que pretende o Barroco, nada comparável em eficácia à possibilidade de entrar pelos olhos (MARAVALL, 2009, p. 392). Ao lado da eloquência corpórea, alinham-se as diversas figuras da representação pictórica que podem esboçar-se gradativamente de acordo com o interesse do orador. Por meio de uma iminente visibilidade, as formas “derivadas” do corpo retórico assumem espaço na prédica, constituindo, por sua vez, as significações do corpo alegórico, a figura das representações emblemáticas, a poesia silenciosa das pinturas que, no ato exegético do orador, expõem-se ao público enquanto modelos sensíveis que atendem à pedagogia da época, na qual o pragmatismo didático do sermão devia se submeter ao discurso figurado para colocar diante dos olhos do auditório um discurso que se convertesse em imagem, pautando-se, para isso, no proceder da Ekphrasis, cujo primado é a descrição de elementos como eixo do exercício retórico, ou seja, por meio de palavras que reflitam imagens. Nesse ponto não se pode deixar de destacar o eixo da problemática que a filosofia platônica tanto se dedicou, posto que, para o referido filósofo, a analogia entre pintura e retórica se justificava, exatamente, nessa cumplicidade profunda que havia entre os dois modos de representação que buscavam os mesmos efeitos. Dedicando-se a um ponto que tende a nos levar a enxergar a questão dessas práticas como ornamentos que não são apenas suplementos, mas excessos, que deveriam ter seu uso controlado, Platão plasmou um paradigma, conforme nos convida lembrar Jacqueline Lichtenstein, que perdurou ao longo da tradição das artes plástica e retórica: “pintores e oradores terão sempre de se defender da acusação de serem sofistas” (1999, p. 59). Por outro lado, analisando os diálogos platônicos e a comunicação entre os temas, conceitos e retomadas argumentativas que ocorre no cerne destes, Ana Lúcia de Oliveira propõe uma questão na qual a própria definição de aparente idolatria. Esta última, em especial, era tomada como crime capital do gênero humano, passível de condenações. De acordo com Leupin, a paixão pelas imagens, assim como a idolatria que se estendia à ornamentação (retórica inclusive) era largamente combatida, dado que “a idolatria é o lugar onde o homem reencontra o Diabo” (LEUPIN, 1993, p. 54). Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015. 28 sofista cunhada por Platão é ambígua a ponto de capturar até a figura do protagonista filosófico de seus diálogos: Sócrates (cf. OLIVEIRA, 2002, p. 22). Mas retomemos nosso foco central de atenção, aludindo ao âmbito da sermonística, por sua vez, por meio do juízo crítico de José Antônio Maravall que destaca, acerca do ponto em questão, um valioso dado na estrutura histórico-massiva da época que se convencionou chamar de Barroco: [...] Nos sermões chega a ser comum servir-se de hieróglifos impressos ou estampados, de pinturas dadas à decifração, que reforçam o apelo dirigido ao espectador ou ao público que escuta, abrindo uma brecha em sua atenção para penetrá-la de uma doutrina ou de um sentimento admirativo, de suspensão, de estupor etc., que facilitarão a captação desse público (MARAVALL, 2009, p. 390). Faz-se figurativo, ainda sobre a questão da imagem no âmbito da ortodoxia católica, o pensamento de Georges Didi-Huberman, que nos esclarece acerca da demanda de uma exigência do visual, promovida pelo desejo de exercitar os sentidos por meio de uma “existência de poderosas teologias da imagem” (2013, p. 37), na qual a pragmática eclesiástica buscava, antes de qualquer coisa, fundar, no espaço do rito e da crença, sua própria “eficácia visual” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 38). Assim, o Cristianismo conjugou como termo essencial a toda economia da conversão, a prática de encontrar no próprio visível, o Outro do visível, a saber, o índice visual sintomaticamente divino (cf. DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 38). Sem pretender fechar a questão, importa destacar, brevemente, que a demanda pelo índice visual que remetesse à figura de Deus – que já havia recebido, pela ala extremista da Reforma, na primeira metade do século XVI, uma expressão enérgica do ponto de vista da iconoclastia religiosa, acentuou-se, ainda mais, no início do século XVII. A diligência dos significados codificados na figura de Deus vestiu-se com os tecidos do dogma tomista do Verbo Encarnado, tornando-se um tema, no mínimo, que merecia atenção dos grandes Padres da Igreja, uma vez que pressupunha precisamente o acesso do divino ao visualismo de um corpo e constituía, por assim dizer, o mistério central de toda a civilização cristã. Esse tema do mistério que é o substrato não só da metafísica de toda crença do Cristianismo, mas ainda a matéria que torna possível o próprio estatuto da linguagem motivada, bem como explica os acontecimentos históricos, deu forma e originalidade ao mundo das imagens no Cristianismo, da época patrística até o Concílio de Trento. Isso significa dizer que, desde os primeiros eclesiásticos gregos e Tertuliano no Ocidente, o sintagma do “mistério eucarístico” definiu o lugar ambíguo e fascinante no qual o pensamento cristão posicionou, ou reposicionou, o problema da imagem, em seu sentido concreto bem como em seu sentido teológico, face ao judaísmo bíblico e ao paganismo antigo. Acentuemos as palavras de Marc Fumaroli que sintetizam a fusão entre retórica e teologia, em vista de uma aliança que potencializasse as armas usadas na cristianização talvez a principal delas: o discurso de persuasão que move as massas de fiéis para imprimir sobre os mesmos o selo da instituição que comandava as formas de pensamento da época. Leiamos as palavras do crítico: A rhetorica sacra, filha do Verbo divino e herdeira de sua eficácia, pôde se prevalecer, não apenas de uma memória Greco-latina, mas de uma majestosa tradição oratória cristã, de que a Igreja Católica se prevalece com orgulho face a uma Reforma que quer se ater apenas à Sagrada Escritura (FUMAROLI, 1995, p. 205). Entre os principais elementos dessa peregrinação pela essência da Providência que se guarda de modo codificado nas mais variadas formas presentes no mundo, destacam-se a leitura da História e os grandes homens que nela existiram como ponto fulcral da recorrência da imagem, visto que agora esses elementos serão tomados como paradigmas prefigurativos que servirão de modelo da tradição para o próprio sermonista ilustrar um pensamento ou uma doutrina. Além disso, “tudo está no texto” (DELÈGUE, 1990, p. 24), mas de maneira não esclarecida, exigindo, portanto, uma interpretação que teça sentidos por meio de analogias, fazendo das palavras das Escrituras fios que sirvam para tecer imagens que saltem aos olhos daqueles que ouvem o hermeneuta em seu apogeu no púlpito. Assim sendo, ajustado às técnicas retóricas e ao contexto da época, o sermão funciona como uma imperial máquina de guerra que prende a atenção do auditório com os arquétipos do direito natural, tritura com os conceitos predicáveis e refina com as agudezas dos conceitos, plasmando-se como um “jogo ou drama” que mobiliza a sensibilidade dos ouvintes, além de se constituir como uma arquitetônica e decorosa estrutura retórico-conceitual pautado, muitas vezes, pela organização de uma série de imagens figurativas que ilustram o pensamento de um orador a fim de, por espelhamento, ilustrar uma dada doutrina. Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras 29 A partir das observações anteriores, pode-se considerar que, em linhas gerais, a pregação seiscentista ao se configurar na ordem do discurso imagético obedece a uma lógica regida, a priori, pelo próprio pregador. Podemos dizer que o pensamento religioso da época, que fundamenta a produção dos sermões, ao lançar mão de imagens, obedece à coesão de dobras, redobras e desdobramentos que se originam do cerne da prédica, isto é, todo aparelho retórico é utilizado como dispositivo para construir imagens que, por sua vez, se duplicam em outras imagens que representam eminentes referências bíblicas, exemplos, metáforas, alegorias que se conjugariam sob uma perfeita harmonia, como se pode ver pelas lentes de Gilles Deleuze. 4 DA ARQUITETURA DO PENSAMENTO ARQUITEXTURA ALEGÓRICA À Em relação à alegoria, maiores desdobramentos fazem-se necessários neste ponto da presente investigação. Considerada menos uma figura de elocução do que um tropo, a alegoria - nas representações litúrgicas do século XVII - funcionou como meio sensível produzido pelo orador para a “palpabilidade” do auditório em relação à doutrina pregada. Iniciemos nossa abordagem utilizando as lentes de um dos eminentes teóricos da época, père Bernard Lamy 3, para falar do conceito em foco: “a alegoria é criada quando, ao falar, parecemos dizer algo diferente daquilo que dizemos de fato, como a etimologia dessa palavra assinala. É uma continuação de várias metáforas.” (apud DELÈGUE, 1990, p. 70). Nessa mesma esteira, Paul Zumthor propõe uma definição esclarecedora para o conceito em questão, caracterizando-o como um modo de leitura 4, fundado no cerne de práticas e ideias emaranhadas, contudo, que se destaca por uma concepção centralizada: [...] se o sentido está nas coisas, a verdade não reside nelas. A verdade permanece paradigmática; o sentido se desenrola sintagmaticamente. A linguagem comunica o segundo, mas vela a primeira. Exige portanto uma dupla intelecção, a fim de manifestar o liame que os une. A inteligência das palavras que dizem as coisas permite empreender seu “sentido literal”; pela via da analogia, a inteligência do sentido literal faz aceder ao sentido “alegórico” [...], relativo a uma verdade concebida como transcendente ou essencial (ZUMTHOR, 1978, p. 79). Articulemos, ao nosso breve mapeamento, a definição plasmada por Heinrich Lausberg demarcando a insistência das definições em reiterar, sobre o conceito em foco, certa noção de continuidade ou cadeia de metáforas. Leiamos: “a alegoria é a metáfora continuada como tropo de pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro pensamento, a que está ligado, numa relação de semelhança” (LAUSBERG 1982, p. 249). Ao lado da ideia de sentido polivalente, acrescentemos o seu valor de uso que é amplamente marcado pelos teólogos medievais, para quem a alegoria serviu de instrumento de defesa para formar um campo de forças que limitasse as interpretações da Bíblia ao controle de intérpretes eleitos, a fim de superarem todas as dúvidas heréticas (cf. CEIA, 1998, p. 22). Ancorada na preceptiva antiga do aticismo, a figura em questão consistia em uma modalidade da elocução, uma espécie de “procedimento construtivo” (HANSEN, 2006, p. 7) que a Antiguidade greco-latina e cristã, continuada pela Idade Média, denominou “alegoria dos poetas”. Segundo Adolfo Hansen o conceito é fundado na expressão alegórica, em uma “técnica metafórica de representar e personificar abstrações” (2006, p. 8). Nas práticas discursivas da Antiguidade, a oposição retórica entre o sentido próprio e o sentido figurado é a chave operatória para a esquematização alegórica. O segundo termo, nesse sentido, que é considerado o ‘desvio’, é posto em lugar do primeiro termo, considerado ‘próprio’ ou ‘literal’, transladando-se a significação de um objeto a outro, para – em uma dinâmica de transporte semântico, como assinalou Aristóteles no proêmio do livro terceiro da Retórica, séculos antes, e Emanuele Tesauro, em seu tempo, em seu Il cannocchiale aristotélico (2014) – produzir novas significações a partir de eixos semânticos distantes. Recolhendo, sob um breve esquema, as informações anteriores, apreende-se, portanto, que a metáfora é constituída de um tropo de léxico, valendo pelo processo de substituição de um termo isolado, na medida em que a alegoria vale pelo seu aspecto enunciativo que, nas prismáticas lentes de Erich 3 Ainda sob a clave da preceptiva sacra da época em questão, cabe mencionar a análise do eminente jesuíta aragonês, Baltasar Gracián, que considera a função retórica da alegoria como uma categoria de “agudeza composta”, em que as coisas espirituais pintam-se sob a figura de coisas materiais e visíveis por meio de uma inventio orientada pelo desempenho do orador que busca encenar de forma material e visível conceitos abstratos e morais. Para maiores detalhes, consultar GRACIÁN, 2011. 4 Ao lado da alegoria, Paul Zumthor (1978) elenca a alegorese, afirmando que esta se configura como um modo de escrita marcante do fim da Antiguidade que complementa o processo de leitura da alegoria. Diametralmente oposta, a alegorese percorre inversamente o plano operatório da alegoria: parte de uma verdade, engendrando dos elementos destas uma littera que assume as categorias de tempo e espaço, bem como implica uma narrativa. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015. 30 Auerbach, carrega o sentido de “algo real e histórico que anuncia alguma outra coisa que também é real e histórica” (1994, p. 27). À guisa de síntese acerca do que estava em questão na passagem anterior, examinemos, agora com as lentes de Jean Pépin, a conceitualização da alegoria, que, então, se determina sob um novo enquadramento teórico a partir da virada da Antiguidade para a Idade Média, considerada, nesse momento, não mais como simples figura retórica, mas como modo de expressão religiosa (1976, p. 492). A rigor, não se trata simplesmente de uma mera conversão conceitual que ocorre no xadrez dos ornatos retórico-poéticos, mas de uma alteração significativa no processo alegórico. Em primeira instância, tem-se uma alegoria construtiva ou retórica – “alegoria dos poetas”; de outro modo, uma alegoria interpretativa ou hermenêutica – “alegoria dos teólogos”, podendo-se afirmar serem ambas simetricamente opostas, mas complementares, pois, “como expressão, a alegoria dos poetas é uma maneira de falar e escrever; como interpretação, a alegoria dos teólogos é um modo de entender e decifrar.” (HANSEN, 2006, p. 8). Em termos gerais, pode-se compreendê-las pela sua matriz semântica, que, neste caso, se sustenta por meio de um substrato básico: a alegoria dos poetas é fundamentada na semântica de palavras, enquanto a alegoria dos teólogos é uma “semântica” de realidades reveladas, supostamente, por coisas dispostas no mundo; funciona, portanto, como o meio o qual o exegeta cristão lança mão para exprimir, sensivelmente, os significados ocultos da própria história (cf. PÉPIN, 1976, p. 492). Mas não passemos em silêncio sobre as motivações que regem a produção das alegorias, que colocam como ponto importante o conceito da mímesis, cujo título remete não só aos contornos do pensamento platônico 5, que configura a exemplaridade passada dos procedimentos técnicos e os efeitos de imitação, mas também “[à] ficção comparativa do presente das suas operações sobre eles, sendo termo auto-referencial e evidenciador da sua alegorização” (HANSEN, 1994, p. 48). No deslocamento temporal em que se acumulam as mais variadas mutações ideológicas das sociedades, o procedimento figural é interceptado e ressemantizado por outros para fim de se subordinar a novos critérios 6 5 A esse respeito destacam-se o paradigma dicotômico da representação acerca das noções de cópia e simulacro que se originam no eixo da conceitualização platônica, bem como o deslocamento desqualificativo sofrido pela mímesis ao longo da tradição das artes plásticas e literárias que remontam a teoria platônica. Para maiores esclarecimentos, ver DELEUZE, 1969, p. 292-307 e FERRAZ, 1999. 6 Amplamente debatido por Walter Benjamin (2013), o conceito de alegoria sofreu um corte decisivo na passagem do século XVII para o – analógicos, retóricos, gramaticais, estéticos, sociológicos, hermenêuticos, e rever os seus “processos formadores nos discursos particulares, que exemplificam o processo como composição metaforicamente histórica de ‘realidades miméticas’” (HANSEN, 1994 p. 49). Em amplos traços, é uma reconstrução de uma realidade que se reveste de resíduos históricos de um referencial discursivo, ordenada pela verossimilhança que se dirige ao destinatário, equivalendo a uma: Realidade técnica de convenção discursiva que classifica os textos estilisticamente, incluindo-os no padrão geral de “mais” e “menos” da grande matriz de sensível/inteligível aplicada como especificadora dos modos fundamentais de formar (HANSEN, 1994, p. 49). Ainda observando a questão através das lapidadas lentes de Adolfo Hansen (1994; 2006), no “clássico”, como assim essas épocas históricas são denominadas pelas gerações a posteriori, a forma inteligível dos conceitos tem perfeita correspondência na forma sensível da representação (cf. 1994, p. 50). Toda e qualquer disparidade para mais ou para menos no duplo sensível/inteligível provoca a decadência na representação e um avanço na perda da beleza. Desse modo, não esqueçamos que o discurso antigo busca a beleza como eficácia no desempenho técnico dos efeitos, preocupando-se com o delectare, sem, por outro lado, deixar de priorizar a prescrição da máxima ciceroniana na qual a beleza baseia-se na verdade que esta se encarrega de fazer evidente (cf. FUMAROLI, 2009, p. 689). E mais: segundo Mario Perniola, a concepção de beleza para os jesuítas, que não é de matriz platônica, apresenta-se sob a ordem de uma aplicação dos sentidos inseparável da indiferença: “el significado de su vínculo paradójico reside em la disponibilidad para aceptar, elegir y querer cualquer forma histórica, sin atribuirle um valor absoluto o definitivo” (PERNIOLA, 2011, p. 158). Focalizando-se, sobretudo, na clave da discussão dos ornatos retórico-poéticos, reciclados pelas mais diversas matrizes de pensamentos dogmáticos de cada época específica, assinala-se, em linhas gerais, que o uso das figuras de elocução promove uma beleza que se sintoniza com a militância das letras sacras XVIII, solidificando-se tal ruptura no XIX, que o destituiu do seu valor histórico consagrado pela dogmática católica, passando a exercer, na tradição romântica, o papel de uma relação convencional entre uma imagem significante e seu significado sem qualquer interseção nos limites de um antagonismo temporal. Portanto, a significação alegórica recebe proporções, na clave romântica, que a distingue e afasta dos efeitos simbólicos que continha nos períodos antigo e medieval. Silva | Notas de iconologia: imagem e teologia nas letras luso-brasileiras 31 seiscentistas, subordinadas a um critério de verdade preexistente no âmbito da moral cristã. Não cabe, nestas linhas, problematizar a discussão promovida por Gerárd Gennete (1972) em torno da noção de figura no âmbito da retórica e da língua corrente que se ampara em concepções cunhadas, em sua maioria, a posteriori, ao período que aqui nos debruçamos. Em contrapartida, acentua-se, porém, que é ainda Marc Fumaroli, em sua obra magna L’Age de l’eloquence, quem nos esclarece sobre a recorrência do discurso pictórico: essa prática de produzir imagens sensíveis aos afetos do público condensa-se, segundo o referido crítico, na rubrica de “retórica das pinturas”, em que prevalece a prática metafórica da translação: “roubada do mundo, a evidência sensível é transferida para a Presença real” (FUMAROLI, 2009, p. 680). Mais, segundo o acadêmico francês, a “retórica das pinturas” jesuítica demanda do mundo sensível as cores da verossimilhança as quais ela crê dever ornar o mistério da Redenção (cf. FUMAROLI, 2009, p. 690). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para que não se perca de vista o objetivo traçado aqui, torna-se oportuno retomar um tema já enunciado e que diz respeito aos sentidos humanos, que servem ao pregador enquanto meios que recepcionam o resultado da articulação entre os objetos, as pessoas e as imagens cognoscíveis; assim, ativa-se a sensibilidade do público para que busquem compreender, estritamente, as operações analógicas engendradas pelo exegeta. Esse mecanismo de estimular no leitor ou no ouvinte o prazer de resolver uma dificuldade vai ao encontro do preceito estético-religioso recomendado pelo jesuíta Baltasar Gracián: “no se contenta el ingenio com sola la verdad, como el juicio, sino que aspira a la hermosura” (2011, p. 442). A referida beleza do discurso produzido no âmago da actio engenhosa do pregador é o que possibilita aflorar o prazer do ouvinte que irá saborear as analogias codificadas em chaves dialético-retóricas nos sermões. A parenética, por conseguinte, torna-se um theatrum sacrum no qual se representam as engenhosas agudezas de um pregador que joga com os sentidos do público, descobrindo os sentidos místicos em pinturas, emblemas, hieróglifos, exemplos e retratos, através de uma gigantesca transferência metafórica que enriquece o espírito (cf. FUMAROLI, 2009, p. 680) e faz com que o sensível, o palpável, o admirável aos olhos e aos sentidos interiores se despertem. Registra-se, ainda, que a constância pelas metáforas em cadeias – que, segundo Chaïm Perelman, servem frequentemente à argumentação de forma positiva (cf. 2009, p. 150) – é amplamente presentes nos sermões seiscentistas. Rigidamente regrado segundo a clave do decoro específico à parenética, o sermão deve operar sob um delicado equilíbrio entre a aguda ornamentação que se põe em cena por meio da elucidação e o exercício dos sentidos humanos que constroem o arcabouço alegórico de que a pregação se reveste, bem como o imperativo moral pressuposto em todas as produções textuais jesuíticas. Para melhor compreensão do que aqui está em questão, é importante lembrar que a racionalidade do sermão eclesiástico, muitas vezes, é plenamente figural, permitindo aproximar objetos e conceitos os mais distantes, assim como tudo através de um princípio substancialista que fundamenta não só as similitudes retóricas, como também os procedimentos alegóricos plasmados nas obras do período em questão. É válido considerar que o domínio do engenho ordenado pelo desempenho e pela dramaticidade concretiza-se diante do público, expondo aos fiéis à imanência do Mistério com o mundo terreno, preservando o pensamento da época que se ancora no finito intrinsecamente ligado à infinitude. O que está em jogo na passagem anterior é a matéria bruta porém, paradoxalmente, refinada - que sustenta a lógica do pensamento neoescolástico do século XVII e todas as práticas letradas que nele são produzidas: trata-se da elocução engenhosa, aguda, difícil que se acomoda perfeitamente à hermenêutica, cuja tarefa é descobrir nos objetos sinais de Deus. Em síntese, a agudeza busca relações ocultas entre objetos extremos, repondo no discurso o mesmo processo alegórico-misterioso que está posto nas coisas criadas e que necessariamente assinalam o seu Criador. Até então, observamos brevemente a extrema contaminação entre o visível e o dizível – uma constante da produção letrada do Seiscentos, considerando-a nessas formas híbridas, tais como os emblemas, que se propõe a unir a imagem e a linguagem. Impõe-se sublinhar, por sua vez, que os jogos alegóricos que se instituem no texto figuram-se por meio do que Alexandre Leupin chamou de “uma mímesis (orthographia)” (1993, p. 141), que consiste em “constituir para o homem cristão um lugar da bemfeitura, ao mesmo tempo distanciada, mas análoga à Feitura divina, e radicalmente diferenciada da ficção idólatra da falsigrafia” (LEUPIN, 1993, p. 141, grifos nossos). Para que se complete o quadro sobre o qual refletimos, pode-se afirmar uma forte evidência de um Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015. 32 racionalizado uso da alegorização, de perspectivas e referências projetadas sobre o público à vista de promover uma transferência de ensinamentos nos sermões sacros, a partir do paralelo entre pintura e retórica que se articula para ilustrar o pensamento do pregador. Isto ocorre, pois, no século XVII: “pensar é pintar” (LICHTENSTEIN, 1999, p. 143). Assim, na condução dos significados das figuras de elocução que acionam a sensibilidade do público, o pregador ajusta o ornamento à conveniência, obedecendo aos limites de um uso regulamentado pelo discurso e sempre submetido aos imperativos da causa a ser defendida. Recorrendo, pela última vez, à análise de Jacqueline Lichtenstein (cf. 1994, p.112), trata-se de manter um balanço entre a cor e a maquiagem na oratória, que não deve se submeter à primazia do prazer em detrimento da iluminação da razão. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Retórica. Tradução Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2013. AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997. BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Edição e tradução de João Barrento. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. CEIA, Carlos. “Sobre o conceito de alegoria”. In: Matraga, n. 10. Rio de Janeiro: UERJ/ Instituto de Letras, out. 1998. p. 20-26. DELÈGUE, Yves. La perte des mots. Essai sur la naissance de la “littérature” aux XVIe et XVIIe siècles. Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 1990. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Edições70, 2005. FUMAROLI, Marc. L’école Du silence. Le sentiment dês images au XVIIe siècle. Paris: Flammarion, 1995. ______. Héros et orateurs. 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Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 021-033, jan./jun. 2015. 35 PRODUÇÃO DE IDENTIDADE: O CASO DO INFORMATIVO SEMANAL DA UFFS, CAMPUS ERECHIM PRODUCCIÓN DE IDENTIDAD: EL CASO DEL BOLETÍN SEMANAL DE LA UFFS, CAMPUS ERECHIM PRODUCTION OF IDENTITY: THE CASE OF THE WEEKLY BULLETIN OF UFFS, CAMPUS ERECHIM Marcio Santin ∗ ∗ M es tr and o e m E s tud o s L i ng u í s tic o s (P P G E L ) p e la U FFS , C a m p us C hap ec ó . E -mai l: m arc io _s a nti n@y a ho o .c o m.b r. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015 36 RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT RESUMO: Este estudo tem por objetivo compreender o processo de produção de identidade institucional da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Erechim, no Informativo Semanal, gênero institucional que tem como finalidade produzir e veicular discursos acerca de suas atividades, atuação e funcionamento para a comunidade acadêmica. Tem-se, como filiação teórica, embasando o estudo, os trabalhos da corrente francesa de Análise de Discurso (AD), fundada por Michel Pêcheux. Trata-se de uma pesquisa de cunho teórico-analítico, na qual, por meio dos recortes discursivos (RDs) se procederá ao gesto analítico, de acordo com as regularidades destacadas, a saber: ações de ensino, atividades de extensão e programas institucionais/sociais. Para tal, se apresentará, em um primeiro momento, a discussão de alguns conceitos caros à linha teórica, mobilizados no decorrer do aporte analítico, como língua, discurso, sujeito, identidade, interdiscurso, formação discursiva (FD). Em seguida, inicia-se o gesto de interpretação, no intuito de compreender o funcionamento discursivo do corpus e os sentidos que nele se inscrevem e emergem. Percebese que o caráter popular é recorrente nos processos institucionais, caracterizando um momento de identificação que constitui a imagem da instituição. Ademais, a inserção da comunidade acadêmica e externa representa outra marca nos discursos da UFFS, consolidando a filiação à uma FD “popular”. PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso. UFFS-Campus Erechim. Identidade. RESUMEN: Este estudio tiene como objetivo comprender la identidad institucional del proceso de producción de la Universidad Federal de Frontera Sur (UFFS), Campus Erechim en el Boletín de Información, género institucional que tiene como objetivo producir y transmitir discursos acerca de su actividad, el rendimiento y el funcionamiento de la comunidad académica. Ha sido, como la afiliación teórica, apoyando el estudio, el trabajo de la corriente francesa de Análisis del Discurso (AD), fundada por Pêcheux. Es un carácter teórico y analítico de la investigación, en la que, a través de los fragmentos discursivos (FDs) se procederá al gesto analítico, de acuerdo con las regularidades destacadas, como las acciones educativas, actividades de difusión y programas institucionales / sociales. Con este fin, lo hará, al principio, una discusión de algunos conceptos caros a la línea teórica, movilizado durante la contribución analítica, como el lenguaje, el habla, el asunto, la identidad, interdiscurso, formación discursiva (FD). Entonces comienza el acto de interpretación con el fin de comprender el funcionamiento discursivo del corpus y la forma en que cae y emerge. Con efecto, es perceptible que el personaje popular recurrente en los procesos institucionales, con un momento de identificación que es la imagen de la institución. Por otra parte, la inclusión de la comunidad académica y externa es otra marca en los discursos de UFFS, la consolidación de la membresía a un FD “popular”. PALABRAS CLAVE: Análisis del Discurso. UFFS-Erechim Campus. Identidad. ABSTRACT: This study aims to understand the process of identity production in the case of the Weekly Bulletin published by the Erechim campus of Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). The periodical fits into an institutional genre that aims to produce and spread discourse about the institution's activities, and is targeted at the local academic community. This study is based upon the French line of Discourse Analysis (DA), founded by Michel Pêcheux, and is a theoretical-analytical resarch that uses the concept of Discursive Frames. The analysis will focus on some of the recurring themes from the published news: teaching actions, outreach activities and institutional/social programs. In order to carry that out, we first discuss some theoretical concepts, such as language, discourse, subject, identity, interdiscourse, and discursive formation. Then, we move on to an attempt at interpretation, in order to understand the discursive workings of the corpus and the senses that are inscribed into it and emerge from it. We notice that the main feature that characterizes the image of this institution is that of being “popular”. Moreover, the presence of both the academic and the external communities is another feature of the discourse found therein, consolidating the concept of a “popular” discursive formation. KEYWORDS: Discourse Analysis. UFFS - Campus Erechim. Identity. Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim 37 1 INTRODUÇÃO 1 2 O APORTE TEÓRICO Concebendo a língua como uma forma de significar e simbolizar que possibilita a interação entre os sujeitos, pretende-se, neste estudo, compreender o funcionamento discursivo do Informativo Semanal (IS) da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Erechim, por meio do qual se produzem e se veiculam informações acerca de suas atividades, atuação e funcionamento, para a comunidade acadêmica, tendo em vista a identidade que a Instituição cria neste documento, a partir da inserção em determinadas formações discursivas (FDs). Esta seção tem por objetivo trazer à tona a discussão de alguns conceitos teóricos importantes para o desenvolvimento deste estudo e caros à linha francesa de Análise do Discurso. Parte-se da conceituação de língua para compreender como se dá sua articulação com o sujeito e com o discurso. Tem-se como corpus desta pesquisa o recorte feito nos Informativos Semanais da UFFS, campus Erechim, produzidos durante o ano de 2013, totalizando 46 publicações distintas. Esta materialidade linguística, veiculada por meio de listagem de e-mails cadastrados junto à Assessoria de Comunicação do campus, quando do ingresso dos discentes na instituição, tem por finalidade intermediar a comunicação entre o campus e a comunidade acadêmica, compreendendo docentes, discentes e técnico-administrativos. Desta forma, por meio de notícias, notas e reportagens publicadas sobre o cotidiano dos sujeitos e da Universidade, procura-se atender a toda a comunidade, constituindo-se em um mecanismo de utilidade pública, dando visibilidade às atividades ocorridas na esfera acadêmica e construindo a identidade da Instituição. Assim, para dar conta do que se propõe neste estudo, se tecerão considerações acerca dos conceitos de língua, sujeito e discurso, buscando compreender sua inter-relação e funcionamento, partindo do pressuposto de que a língua é elemento constituinte dos sujeitos e dos discursos, embasando o percurso teórico. Após o constructo teórico, dá-se seguimento com a formação da Instituição e como esta se marca em seus documentos normativos e norteadores para, em seguida, apresentar como se organizou o corpus do estudo. Passa-se, então, ao gesto de interpretação que se propõe, finalizando com as principais considerações e contribuições deste artigo. A língua, para a corrente francesa de AD, não representa um sistema perfeito, uma unidade fechada, transparente, mas sujeita ao equívoco, a falhas, e é afetada pela incompletude. Conforme defende Orlandi, “[...] o lugar da falha e incompletude não são defeitos, são antes a qualidade da língua em sua materialidade: falha e incompletude são o lugar do possível” (2009, p. 12). A língua constitui a materialidade do discurso, é “[...] aquela da ordem material, da opacidade, da possibilidade do equívoco como fato estruturante, da marca da historicidade inscrita na língua. É a língua da indefinição do direito e avesso, do dentro e fora, da presença e ausência.” (FERREIRA, 2005, p. 17). Isso permite afirmar que a língua é passível de falhas, enganos, permitindo que nela sentidos diversos irrompam, consoante com o que propõe Pêcheux (2012, p. 53) “Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, de deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”. A língua, então, é compreendida como um sistema sujeito a perturbações, mal-entendidos, justamente por sua opacidade, não transparência. Os sentidos produzidos pelos jogos que se faz com a língua não residem nas palavras, mas são frutos das formações discursivas (FDs) que os sujeitos se inscrevem, atrelados às condições de produção em que o enunciado foi produzido. Assim, a língua é a “[...] base comum de processos discursivos diferenciados [...]” (PÊCHEUX, 2009, p. 81), o que implica entendê-la como a materialidade discursiva destes processos, materialidade discursiva dos dizeres. Em outras palavras, se constitui enquanto condição de realização dos discursos, situação que engloba as esferas histórica e social. O discurso constitui o objeto teórico da Análise de Discurso, objeto histórico-ideológico que se produz 1 Artigo apresentado como requisito final para obtenção do título de especialista em Teorias Linguísticas Contemporâneas, pela UFFS, Campus Erechim, orientado pelo Prof. Dr. Atilio Butturi Junior. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015 38 socialmente por meio de sua materialidade, a língua. Pêcheux (1969) define o discurso como “efeito de sentidos entre interlocutores”, como o lugar de contato entre a língua e a ideologia. Partindo da ideia de que o discurso é uma construção sócio-histórica, realizado sob certas condições de produção, isto implica compreender que este reflete determinadas concepções de mundo de seus sujeitos-autores, concepções estas que retratam as formações ideológicas que os constituem e com as quais aqueles se identificam. Assim, discurso para a AD, é onde se encontram as questões acerca da língua, da história e do sujeito, é o campo em que se entrecruzam tais concepções, tornando o objeto da teoria discursiva um terreno heterogêneo e multifacetado. O sujeito, para esta perspectiva, é sempre cindido, clivado e descentrado. Segundo Orlandi (2012), há um deslocamento da noção de homem para sujeito, que se constitui na relação com o simbólico, na história. Para a estudiosa, “[…] o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia” (ORLANDI, 2012, p. 20).Neste sentido, para a teoria do discurso de linha francesa, que se constitui numa teoria não-subjetiva, concebe-se o sujeito interpelado pela ideologia, constituindo-se na relação entre língua e história. A AD toma emprestado alguns dos conceitos elaborados pelo francês Louis Althusser, sobretudo aqueles produzidos no texto Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado, editado na França em 1969. Próximo de Pêcheux e de seu grupo, Althusser coloca a noção de sujeito como termo essencial na construção da ideologia. Segundo ele, só existe prática através e sob uma ideologia, a qual só existe através do sujeito e para sujeitos. Assim, para o autor “[...] toda a ideologia interpela os indivíduos concretos como sujeitos concretos, pelo funcionamento da categoria de sujeito” (ALTHUSSER, 1970, p. 98-99, grifos no original). A partir de Althusser, Pêcheux cria o termo formasujeito para designar o sujeito afetado pela ideologia. Para Althusser “[...] os indivíduos são sempre-já sujeitos.” (ALTHUSSER, 1970, p. 102, grifos no original). A ideologia, nesta perspectiva teórica, integra processo fundante do indivíduo, que é sempre por ela interpelado, constituindo-se em sujeito. Transposta para a AD, a discussão de Althusser ganha outros contornos. Segundo Pêcheux (2009), o sujeito é acometido por dois tipos de esquecimentos fundantes, a saber: a) Esquecimento número 1: é da instância do inconsciente, de natureza ideológica, dá ao sujeito a ilusão de ser fonte do sentido de seu discurso. Conforme Orlandi (2012), este remete à ilusão de controle do dizer, ao sonho adâmico de ser a origem do sentido. b) Esquecimento número 2: de natureza préconsciente/consciente, dá ao sujeito a ilusão referencial, fazendo acreditar que existe uma relação direta entre pensamento, linguagem e o mundo. Este esquecimento é da ordem do dizer. Consoante Orlandi (2012), produz a impressão de realidade do pensamento, indicando relação direta, sendo que o discurso reflete o conhecimento objetivo que se tem da realidade. Assim, o sujeito, pela teoria discursiva, é incompleto, constituindo-se pela ilusão de ser a origem do dizer (esquecimento número 1) e pela ilusão de transparência de seu discurso (esquecimento número 2). Todavia, a ideia de sujeito uno, dono de seu dizer e origem dos sentidos, embora imaginária, é inerente a ele. Relendo Lacan e a psicanálise, a AD parte do princípio de que a noção de sujeito é formada por meio da relação dinâmica entre alteridade e identidade. Então, a constituição da identidade do sujeito só se dá por meio da relação com o outro, remetendo a duas ideias que orientam esta teoria: a) a noção de que sujeito e sentido são constituídos no e pelo discurso, e não são dados a priori; b) a noção de descentramento do sujeito que perde seu destaque ao integrar-se no funcionamento discursivo. No presente trabalho, é importante destacar como a AD pode pensar o conceito de identidade, a partir das relações entre o sujeito e o discurso. Coracini (2000), acerca da identidade, afirma que esta [...] se forma ao longo do tempo, através de processos inconscientes, ela não poderia ser vista como algo inato, existente na consciência no momento do nascimento como querem algumas correntes lingüísticas. Apesar da ilusão que se instaura no sujeito, a identidade permanece sempre incompleta, sempre em processo, sempre em formação. Assim, em vez de falar de identidade como algo acabado, deveríamos vê-la como um processo em andamento e preferir o termo identificação, pois só é possível capturar momentos de identificação do sujeito com outros sujeitos, fatos e objetos. (CORACINI, 2000, p. 150) O processo de identificação remete à questão da contínua incompletude, uma vez que o sujeito é atravessado por diversas vozes, constituído pelo outro, pela alteridade. Tais dizeres, longe de fixarem o sujeito, consolidando suas características, o situam em Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim 39 permanente movimento e transformação (CORACINI, 2000). Assim, neste artigo, considera-se adequado trabalhar com a noção de processo de identificação em detrimento à identidade, uma vez que esta última passa a noção de algo pronto, acabado, estável, concepções diversas do que se compactua. EckertHoff (2004, p. 72) aponta que “[...] a noção de identidade (logocêntrica) carrega a ideia de um sujeito totalizante e homogêneo, que não leva em conta a multiplicidade de discursos e de dizeres que o constituem [...]”. mesmo discurso. Para a AD, este conceito é ressignificado, passando a ser entendido como um campo que determina o dizer, em situação específica. Pêcheux (2009, p. 147) coloca que “[...] chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito”. Pêcheux (2009) defende que toda FD dissimula, pelo efeito de transparência que nela se instaura, sua vinculação com respeito ao “todo complexo com dominante” das formações discursivas, definido pelo autor como interdiscurso, instância que compreende o conjunto das formações discursivas, inscrevendo-se no nível da produção dos discursos. Compreende-se, assim, a linguagem enquanto elemento constitutivo do sujeito. Este, descentrado, deixa de ser a origem do seu discurso, conforme os esquecimentos apontados por Pêcheux (2009), para ser entendido como uma construção heterogênea, em que ressoam discursos diversos, lugar de significação historicamente constituído, marcando-se no discurso e deixando traços de identificação, de acordo com suas filiações a determinadas FDs. Segundo Orlandi (2012), o interdiscurso representa assim o já-dito, a memória discursiva, os sentidos já estabilizados pelo discurso e aqueles silenciados, porém resistentes. Se configura pelo atravessamento de dizeres, em constante movimento, fundindo-se e enleando-se. O sujeito se constitui na relação com a alteridade, por meio da relação com o outro, nunca sendo fonte única do sentido, tampouco elemento de origem do discurso. Ferreira (2000) destaca que o sujeito estabelece uma relação ativa no interior de uma determinada formação discursiva, afetando e sendo afetado em sua prática discursiva. Sujeito, língua e discurso se relacionam por sua inscrição na história, de acordo com as posições discursivas a que se filiam, produzindo e mobilizando sentidos consolidados no interdiscurso. Assim, o interdiscurso refere-se à possibilidade de dizer, remetendo a todos os discursos já produzidos e que repercutem nas palavras do sujeito. A FD funciona como o lugar de articulação entre língua e discurso, regulando o dizer, o que o sujeito pode e deve dizer, dada sua posição de acordo com a Formação Ideológica (FI) a que se filia. As fronteiras das FDs não são estanques, fixas, mas permeáveis, possibilitando aproximações, de modo que o sujeito possa se identificar com mais de uma formação discursiva em determinado discurso. Neste sentido, entende-se que a FD é definida a partir de seu interdiscurso, por meio da relação com a FI e em contraste com as demais formações discursivas com as quais estabelece relações de aliança ou de afastamento. A noção de FD deriva do conceito proposto por Foucault (1997) que a entendia como uma regularidade nos enunciados, sendo possível agrupá-los num 2 Assume-se para este estudo, Discurso Oficial como sendo o discurso do Estado, expresso por suas leis, portarias, decretos, Instituições/Entidades Oficiais (Universidades, Secretarias, Ministérios, etc.), programas, projetos e/ou sujeitos autorizados, devidamente investidos de poder para tal, e que representa a vontade da coletividade, representando o discurso de direito. 3 O DISCURSO OFICIAL DO INFORMATIVO SEMANAL 3.1 O Informativo Semanal De acordo com o discurso oficial 2 da UFFS, aqui representado pela Instrução Normativa (IN) n° 005 3, de 27 de maio de 2014, que dispõe sobre as Diretrizes da Diretoria de Comunicação, o principal objetivo desta área é tornar a missão da instituição visível e que seja apropriada pelos públicos de interesse, ou seja, divulgar a Instituição como um bem público que todos têm o direito de acessar. 3 Os documentos que compõem o corpus do estudo foram extraídos do ano letivo 2013, porém a portaria que subsidiou a análise fora emitida somente em 05 de maio de 2014. Anterior a IN n°. 005/2014, não existia documento oficial, publicizado, que normatizava a Comunicação Institucional. Em virtude do exposto, para a análise dos IS de 2013, fez-se uso da referida IN. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015 40 Embora a construção de uma imagem institucional decorra do trabalho da comunicação, esta sofre influência (positiva ou negativa) pela ação de sua comunidade. Considerando o exposto, o trabalho da Diretoria de Comunicação, segundo a referida IN, é consolidar uma imagem positiva da Universidade, divulgando seus pontos fortes e as ações específicas desenvolvidas, beneficiando a toda a comunidade acadêmica. Surge o Informativo Semanal, doravante denominado IS, como mediador deste processo, no qual se materializam os objetivos da comunicação, construindo a imagem positiva da UFFS, por meio da divulgação das ações desenvolvidas na instituição e de interesse à comunidade. O IS produz efeitos de transparência, deixando a comunidade acadêmica informada sobre as ações, projetos e programas desenvolvidos no âmbito do campus. Através de e-mail, servidores, docentes e técnico-administrativos, bem como discentes, recebem estas informações semanalmente. Assim, importa destacar o que pode e deve ser apresentado nestes informativos, de acordo com o definido pela Diretoria de Comunicação na IN (2014, p. 7-8): Divulgação de editais, serviços, acordos interinstitucionais e de interesse do público interno; Divulgação de oportunidades para pós-graduação em instituições públicas e/ou parceiras da UFFS, desde que a vaga disponibilizada seja relacionada a algum curso ou serviço oferecido pela Universidade; Divulgação de cursos e oportunidades relacionados à UFFS ou instituições parceiras; Divulgação de eventos que estejam relacionados à UFFS e que tenham seu conteúdo relacionado com ensino, pesquisa e extensão; Divulgação de prêmios, concursos e editais que estejam vinculados às áreas de conhecimento da Universidade ou que se configurem como oportunidade para a comunidade universitária; Divulgação de resultados de premiações, concursos e editais que estejam vinculados às áreas de conhecimento da UFFS e que não se configurem como promoção pessoal do premiado; Divulgação de eventos culturais que tenham parceria, realização ou apoio da UFFS ou nos quais a comunidade universitária tenha condições especiais (descontos integrais ou parciais); Divulgação de cursos, eventos e demais atividades que não sejam restritas a um público específico de um departamento ou curso e que sejam abertos aos demais interessados; Pedidos de divulgação de portarias do Gabinete do Reitor e das direções dos campi; Informes da Reitoria, pró-reitorias, diretorias e unidades administrativas de caráter estratégico. (UFFS, 2014, p. 7-8) O que pode e deve ser dito, conforme esta IN, determina que se contemplem discursos positivos, que enalteçam a imagem institucional, situação que interdita todo e qualquer sentido contrário a esta construção. Por se tratar de um discurso oficial da instituição, não há relação direta com o discurso do Governo Federal, embora haja um diálogo possível, já que o terreno é o da mesma formação ideológica. Trata-se, nessa perspectiva, de determinações internas, construções implementadas pela comunidade interna (servidores da UFFS), na constituição da instituição. Neste caso, compreendendo a consolidação de uma imagem positiva, apenas o que se enquadrar nos parâmetros definidos pela UFFS será veiculado no IS. Do contrário, o assunto será silenciado, interditado, não sendo incorporado ao discurso, ou seja, não constituindo o intradiscurso e, consecutivamente, a memória discursiva, consolidando a identidade da instituição de acordo com o que esta determinou. 3.2 A Constituição da UFFS no Discurso Oficial O discurso de criação da UFFS está marcado pela mobilização dos movimentos sociais, força que se faz presente na construção da sua identidade, definição de sua missão, objetivos, diretrizes e políticas de ensino, pesquisa e extensão. Ao enunciar-se como Universidade, a UFFS constrói um discurso que exige alguns princípios que seriam “norteadores”: como ser uma universidade de qualidade e comprometida com a formação de cidadãos, ser democrática, autônoma e com respeito à pluralidade de pensamento e à diversidade cultural, com a garantia de espaços para participação dos diferentes sujeitos sociais. Tais princípios “norteadores” são constituídos no e pelo discurso, criando uma polissemia de sentidos, filiando a Instituição a uma Formação Discursiva “popular” 4. Porém, a FD “popular” permanece com contornos indistintos, marcada por enunciadospadrão: comprometida com o social, com a mudança na 4 O texto descreverá a Formação Discursiva “popular”, aqui referida, mais adiante. Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim 41 sociedade, com a pluralidade de ideias e princípios, com a inclusão de sujeitos e a inserção de quem quiser fazer parte deste novo espaço. No entanto, não há um cerceamento dos sentidos. Em nenhum momento se define o que se entende, especificamente, por estes princípios “norteadores”, deixando em aberto os sentidos e criando uma imagem de inclusão, de que tudo é permitido. Trevisol, Cordeiro e Hass (2011, p. 32) corroboram com a institucionalização desta imagem, destacando que “[...] trata-se, portanto, de uma universidade que nasce da sociedade, para ser um bem público a seu serviço. Significa concebê-la e realizá-la tendo como ideiaforça o princípio da democratização [...]” que ocorre a partir de dois movimentos. O primeiro deles é o da democratização de dentro para fora, ou seja, implica em uma aproximação e envolvimento com a sociedade através de uma relação próxima, interativa e solidária, tornando a sociedade o sujeito das atividades de ensino, pesquisa e extensão. O segundo é o movimento da democratização de fora para dentro, que propõe romper com os modelos tradicionais de conceber a universidade. Para elucidar o processo de construção da UFFS, Trevisol (2011) o compara ao trabalho de um jardineiro, pois, [...] eles sabem que o pensar e o fazer, a ideia e a ação, a concepção e a execução devem andar juntos. Não há jardim sem jardineiros. Os jardins são obras das pessoas que sonham, que concebem e se dedicam apaixonadamente até o fim de vê-los realizados. Assim como qualquer invenção humana, a UFFS precisa pensar-se cotidianamente; e o seu projeto de universidade não está dado, nem concluído. A reflexão e o debate abertos e permanentes, de cuja intensidade dependerá, em boa medida, a qualidade acadêmica e a organicidade de sua inserção social. (TREVISOL, 2011, p. 27) Aqui, ressoa a imagem de sujeito pautado na razão, que detém as rédeas em suas mãos e que dele depende o caminhar, o construir, o futuro, pois é sua ação que determinará o vir-a-ser. Neste sentido, a formação discursiva racional, de sujeito cartesiano, pautado na lógica, demarca a construção da instituição, ao passo que se compara à ação de um jardineiro, que “condiciona” a formatação de seu jardim, ou seja, a consolidação da instituição, fruto de sua ação, de sua vontade. A ilusão de controle do dizer, de controle dos sentidos, se faz presente. A marca do popular também aparece pelo discurso de ampla participação do que se chama de “movimentos sociais” e seus sinônimos. Como já afirmado, desde sua concepção e em toda a trajetória da construção da UFFS, o discurso oficial encontra-se marcado pela presença de diversas entidades públicas, movimentos sociais como Fetraf-Sul, Via Campesina, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e outras Organizações não Governamentais (ONGs). Estas forças sociais, que constituem a comunidade na qual a UFFS encontra-se inserida, representaram a vontade da população de ter uma Universidade Federal e contribuíram para com sua implantação. Sendo assim, a instalação da UFFS foi um ato que contou com diversos segmentos, com a participação de muitos atores sociais, fato que marcou a posição popular em sua formação inicial. Outra característica que assinala o compromisso da instituição com suas origens e com o debate popular amplificado é a política de cotas, que determina o ingresso pelo ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), no qual cerca de 90% das vagas na graduação são destinadas para estudantes que cursaram ensino médio apenas em escola pública, segundo informações constantes no sitio eletrônico da UFFS 5. No capítulo II – Dos Princípios, Finalidades e Objetivos do Estatuto da UFFS, reitera-se o compromisso assumido junto aos movimentos sociais e às organizações da sociedade civil, de manter o diálogo permanente. Além deste, outros princípios fundamentais aludem à inclusão social, o respeito às diferenças de qualquer natureza, ao pluralismo de ideias, à gestão democrática e à responsabilidade social e ambiental, princípios que reafirmam, em sua essência, o respeito aos atores sociais que lutaram para que a UFFS fosse uma realidade. O artigo 5º do Estatuto da UFFS (2010), que trata dos objetivos institucionais, retoma o compromisso com a esfera social, através de ações que envolvam o diálogo entre a universidade e a população através da pesquisa, da extensão, do conhecimento da realidade do seu âmbito de atuação e da abertura à participação 5 Disponível em: <http://www.uffs.edu.br/index.php?option=com_content&view=artic le&id=90&Itemid=822>.Acesso em: 03 set 2014. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015 42 da população nos assuntos que envolvam a universidade, conforme evidenciado nos parágrafos VI, VII, VIII e XVI: VI. Estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; VII. Promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição. VIII. Fazer da extensão universitária um diálogo permanente entre universidade e sociedade, visando à produção conjunta de avanços, conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e artística, e da pesquisa científica e tecnológica; XVI. Manter-se aberta à participação da população, promovendo amplo e diversificado intercâmbio com instituições, organizações e movimentos da sociedade. Volta-se, novamente, à FD “popular”, recorrente no discurso oficial, no discurso de criação da Universidade que, em vários momentos, marca-se pela inserção dos movimentos sociais, pela abertura de espaços para inclusão, pelas ações de considerar os anseios sociais, enfim, por permitir e desejar ser modelada, enquanto instituição, pela sociedade que a cerca, que faz uso de seus serviços e atividades. O termo “popular” faz referência direta ao povo, que pertence ao povo, que tem sua origem no povo, que o representa, bem como sentidos ligados à democracia, ao poder que emana das escolhas e vontades dos sujeitos, que constituem a sociedade, o povo. Todos os sentidos referenciados vinculam-se à FD “popular”, na qual repercutem e agregam valor. Estes e outros sentidos se concretizam materialmente nos discursos do IS, constituindo a imagem pretendida institucionalmente, na qual é retomado o slogan da instituição: “instituição de ensino superior pública, popular e de qualidade” 6. O qualificador “de qualidade”, presente no slogan, tem por finalidade romper com o sentido negativo que repercute dos termos “público, popular”, pois associados ao senso comum, quando se trata de um bem público, como o transporte, os banheiros públicos, por exemplo, geralmente se atrela uma visão negativa, carregada de problemas sociais e dificuldades. O mesmo ocorre com o adjetivo “popular”, que agrega uma conotação pejorativa, depreciativa à ação, como é o caso de mercados e feiras populares, nas quais o “popular” se refere à parcela da população menos favorecida economicamente. Neste sentido, quebrando este paradigma criado pelos adjetivos “público” e “popular” presentes na sequência, filiando a toda uma rede de sentidos, instaura-se o qualificador “de qualidade”, que delimita certos sentidos, censurando outros e resultando em uma identidade institucional positiva. 4 A CONSTRUÇÃO DO CORPUS Segundo Pêcheux (1994, p. 57), um “[...] campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão [...]” constitui um arquivo (em sentido amplo). Para Orlandi: O arquivo em análise de discurso é o discurso documental, memória institucionalizada. Essa memória tem relações complexas com o saber discursivo, ou seja, com o interdiscurso, que é a memória irrepresentável, que se constitui ao longo de toda uma história de experiência de linguagem. (ORLANDI, 2002, p. 11) Ao compreender o funcionamento discursivo dos documentos que compõem o arquivo evita-se reproduzir a história dos fatos e se mostra seu processo de constituição. A formação do arquivo já representa um gesto de interpretação, pois ao se selecionar determinados documentos, deixa-se de selecionar outros, o que representa uma escolha do analista, de acordo com as formações discursivas e ideológicas a que este se filia. Compreende o arquivo deste estudo os Informativos Semanais produzidos durante o ano de 2013, produzidos e veiculados no/pelo Campus Erechim da UFFS. Sobre a metodologia de constituição do corpus, foram extraídos recortes discursivos (RDs). Conforme defende Orlandi (1984, p. 16), “[...] o recorte é naco, pedaço, fragmento. Não é segmento mensurável em sua linearidade [...]” e continua, “[...] o princípio segundo o qual se efetua o recorte varia segundo os tipos de 6 Conforme definido na página eletrônica da UFFS, disponível em <http://www.uffs.edu.br/index.php?option=com_content&view=artic le&id=90>, acesso em: 21 set. 2014. Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim 43 discurso, segundo a configuração das condições de produção, e mesmo o objetivo e o alcance da análise”. Os recortes feitos nos documentos do arquivo têm por objetivo compreender o funcionamento discursivo e os efeitos de sentidos produzidos pelos discursos. Buscando tecer o gesto de interpretação, se destacou as seguintes regularidades: RD1 – Ações de Ensino RD2 – Atividades de Extensão RD3 – Programas Institucionais/Sociais Após este processo, foram retiradas Sequências Discursivas (SDs) 7 dos documentos, compondo o corpus de análise, e agrupadas nos RDs de acordo com suas regularidades. Assim, esta seleção, conforme defende Orlandi (2012), já é um primeiro exercício de análise, uma vez que se delimita o objeto de estudo de acordo com o que se pretende estudar, compreender os sentidos que nele se instauram, emergem. 5 O GESTO ANALÍTICO Neste momento, se passa ao gesto analítico, de acordo com as regularidades agrupadas dos documentos que compõem o arquivo do trabalho. Retomam-se, então, os recortes discursivos previamente elencados. RD1 – Ações de Ensino SD1 – A especialização é gratuita 8. As aulas vão acontecer no Campus Erechim, nas sextas à noite e sábados durante o dia. SD2 – Cerca de 25 estudantes [...] participaram no último sábado (4) de uma saída de campo na aldeia Kondá, do povo Kaingang, em Chapecó. [...] objetivo da saída de campo foi proporcionar aos estudantes presenciar um evento específico da comunidade, que tem ligação com os conteúdos que eles estudam em sala de aula, especialmente dentro da disciplina de Antropologia da Performance. SD3 – Educação Popular e Metodologias Formativas foi o tema selecionado para abrir o curso “Formação de Jovens em Agricultura Sustentável, Gestão e Inovação Tecnológica” na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Erechim. A atividade é fruto de uma parceria entre a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar 7 As SDs serão, no entanto, apresentadas apenas quando de sua análise, em momento posterior, evitando que se duplique a informação. (Fetraf-Sul/CUT), UFFS e Ministério do Desenvolvimento Agrário. SD4 – Conforme a coordenadora do PIBID Geografia, Ana Maria de Oliveira Pereira, o projeto, denominado “Geografia é Show” teve como objetivo proporcionar aos estudantes do Ensino Médio a construção do conhecimento geográfico de maneira mais significativa. “Para isso realizamos atividades como trabalho de campo, entrevistas com pessoas da comunidade, construção de maquetes, de globos terrestres, de revista e também painéis”, explica. Este primeiro RD traz à análise questões concernentes ao Ensino. Trata-se de expor como esta área concebe as ações populares, a questão da formação de uma imagem popular, preocupada com a inserção social. A SD1 apresenta duas marcas que inserem a universidade no discurso público, na questão popular, a saber: o uso do termo gratuita e o período de execução desta atividade, sextas à noite e sábados durante o dia. A ação de Ensino em foco retoma a questão popular ao associar-se ao termo gratuita, que implica em uma atividade sem custos, sem gastos ou despesas para o participante, o que possibilita a participação de qualquer um. Ademais, o período de execução da pós-graduação (sextas à noite e sábados durante o dia) possibilita uma maior aderência social, permitem que uma maior camada social participe, incluindo trabalhadores, que, nesse período, possivelmente estejam de folga. A SD2 procura proporcionar aos discentes uma experiência de inserção na comunidade, possibilitando a vivência da experiência acadêmica, uma saída de campo, a prática social, presenciar um evento específico da comunidade. Destaca-se, também, que se trata de uma atividade em um grupo social que representa um povo indígena, uma minoria social atualmente, aldeia Kondá, do povo Kaingang. Atitude que representa um movimento de inclusão social, ao passo que procura inserir estes sujeitos no seio, na comunidade acadêmica, bem como a Universidade neste meio social, nesta minoria, ampliando suas fronteiras. importância para o processo de constituição de sentidos, no gesto analítico proposto. 8 As expressões grifadas em negrito das Sequências Discursivas são as marcas linguísticas analisadas com destaque, que detém maior Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015 44 A SD4, no mesmo âmbito que a SD2, também prevê um trabalho de campo, levando os discentes a interagir na sociedade em que vivem, para realizarem entrevistas com pessoas da comunidade, integrando-os e possibilitando o conhecimento do espaço físico-social em que se inserem, trabalho que culminará, posteriormente, no desenvolvimento de maquetes, revistas e painéis. A SD3, por meio de uma ação conjunta, parceria entre a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf-Sul/CUT), UFFS e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ou seja, Universidade aliada aos movimentos sociais que participaram de sua instalação, promovem atividade que tem como tema principal a Educação Popular. O RD2, por sua vez, apresenta como regularidade as atividades de Extensão. Se passará a elas na sequência. RD2 – Atividades de Extensão SD5 – A UFFS surge nesse contexto das lutas ambientais e sociais do Brasil, onde a Via Campesina e a Fetraf-Sul, junto com muitos outros movimentos, pautavam a construção de uma universidade que pudesse, ao mesmo tempo, oferecer educação superior de qualidade e fosse muito preocupada com essas grandes questões – que são questões que movem o mundo, como a sustentabilidade, como a energia renovável, a agroecologia. Enfim, os temas perpassam os nossos cursos, as nossas linhas de formação, os nossos documentos institucionais. SD6 – [...] o objetivo do Fórum é manter vivo o legado freireano de uma educação comprometida com a emancipação dos seres humanos, articulando saberes e experiências acadêmicas e populares. “Com o lema 'Paulo Freire e a Educação nas Cidades', a 15ª edição do evento busca fortalecer os vínculos entre pessoas e instituições que tenham na educação um compromisso com uma sociedade mais justa e democrática”, [...]. SD7 – Acredita‐se que a inclusão é um dos caminhos para a democratização da educação, bem como para ampliar os direitos, tendo em vista que a educação inclusiva fundamenta‐se na concepção de direitos humanos, que reconhece as diferenças como parte da diversidade humana. SD8 – O PET/Conexões de Saberes do Campus Erechim é um grupo que desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, voltado a estudantes oriundos de comunidades populares. Segundo o edital, entre seus objetivos está possibilitar aos jovens de baixa renda e origem popular que estudam na Universidade o desenvolvimento de suas capacidades de produção do conhecimento, em consonância com seus saberes próprios, formando-os para intervir como atores das políticas públicas na UFFS – Campus Erechim [...]. SD9 – Promover um espaço de intercâmbio de experiências e conhecimento em torno da temática “Agroecologia, Juventude Rural e Universidade Popular: gerando educação e renda para a permanência no campo com qualidade de vida”, esse é o objetivo do III Encontro Regional de Agroecologia (Era Sul). [...] é um evento de caráter regional, que abrange os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. [...] o público-alvo são agricultores, populações tradicionais, estudantes, profissionais e pesquisadores das ciências agrárias, extensionistas, militantes de movimentos sociais, representantes de cooperativas, Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR´s), Organizações Não Governamentais (ONG's) e cooperativas e governamentais ligadas ao campo e a questões ambientais. SD10 – [...] o projeto cultural “In Loco, Música, Cinema e Espaço Público em Erechim”, [...] promove mais um “Microfone Aberto”. Desta vez a atividade, que tem como proposta promover mensalmente a apresentação de grupos musicais locais e regionais através de intervenções em espaços públicos e comunitários, acontece no Ginásio do Bairro Atlântico, a partir das 15 horas. [...]. Segundo o coordenador do projeto, professor da UFFS – Campus Erechim, Cássio Cunha Soares, a intenção é tirar um pouco a centralidade da universidade enquanto espaço, “de as pessoas terem que se deslocar até o Campus da UFFS para terem acesso aos projetos culturais”. A SD5 rememora o processo de implantação da Universidade, destacando o engajamento dos movimentos sociais como Via Campesina, FetrafSul, além de outros, no processo de construção, onde, por meio de lutas ambientais e sociais no Brasil, se batalha para oferecer educação superior de qualidade e que fosse muito preocupada com essas grandes questões, situações destacadas e marcada nos documentos institucionais. A SD9 faz funcionar o mesmo processo. Destaca todos os movimentos sociais e pessoas a quem se destina determinado evento, como em um esforço para aglomerar pessoas, um movimento inclusivo, concedendo força ao caráter popular. Assim, coloca que o evento “Agroecologia, Juventude Rural e Universidade Popular: gerando educação e renda para a permanência no campo com qualidade de vida”, que se caracteriza por ser um evento regional com abrangência dos três estados do Sul, tem como público-alvo: agricultores, populações tradicionais, estudantes, profissionais e pesquisadores das ciências agrárias, extensionistas, militantes de movimentos sociais, representantes de cooperativas, Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR´s), Organizações Não Governamentais (ONG's) e cooperativas e governamentais ligadas ao campo e a questões ambientais. Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim 45 Merece destaque também o termo Universidade Popular. Esta caracterização já determina o tom e a filiação de sentidos que se pretende com o evento. A imagem de instituição popular encontra-se reforçada no título do encontro, sendo destacada ainda mais quando da discriminação detalhada do público-alvo, movimento que abrange e inclui muitos sujeitos e instituições filiadas aos movimentos sociais. Na SD6 e SD7 a questão da educação é destaque. A partir do momento em que se promove uma educação comprometida com a emancipação dos seres humanos, articulando saberes e experiências acadêmicas e populares denota-se uma preocupação com uma educação pautada num compromisso com uma sociedade mais justa e democrática. E, com o reconhecimento das diferenças, o qual é percebido em uma educação inclusiva, que as abrange como parte da diversidade humana, entende-se que a inclusão é um dos caminhos para a democratização da educação, bem como para ampliar os direitos. Neste sentido, a educação é destaque para a promoção de mudança social, processo que envolve a emancipação dos seres humanos para uma sociedade que reconheça na inclusão uma forma de promover justiça e democracia. Ressoam sentidos de que a educação é um caminho para a transformação social, para a promoção da igualdade, da equidade, para a melhoria da sociedade. De acordo com a SD8 – O PET/Conexões de Saberes do Campus Erechim é um grupo que desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, voltado a estudantes oriundos de comunidades populares. A partir do momento que promove a inclusão social, por um lado, o programa exclui por outro. A demarcação dos sujeitos que podem participar, definido em edital, determina o ingresso de estudantes de comunidades populares, ação de inclusão social, mas ao institucionalizar isto, exclui a participação de outros sujeitos. Desta forma, repercute, no entanto, um movimento de homogeneização dos sujeitos, pois a partir do momento que podem participar apenas jovens de baixa renda e origem popular, tendo por finalidade formá-los para intervir como atores das políticas públicas na UFFS – campus Erechim e nos seus territórios de origem, implica em um movimento de transformação social, como se a consequência desta ação fosse a padronização dos sujeitos, de acordo com o que é considerado melhor, mais adequado, ingressando em outra faixa social, que não mais a popular, de baixa renda. A SD10 apresenta um movimento diverso do que a Universidade vinha apresentando nas sequências. Em vez de abrir as portas para receber a comunidade externa, neste a Instituição vai ao encontro da sociedade, estendendo suas atividades à comunidade, expandindo suas fronteiras e áreas de atuação. Assim, tem-se a SD10 – apresentação de grupos musicais locais e regionais através de intervenções em espaços públicos e comunitários. Neste movimento de expansão de suas fronteiras de atuação, a Universidade busca sua inserção na comunidade, interagindo e integrando com os sujeitos. Conforme indicado nesta sequência, a intenção é tirar um pouco a centralidade da universidade enquanto espaço, “de as pessoas terem que se deslocar até o Campus da UFFS para terem acesso aos projetos culturais”, fazendo um movimento contrário e indo ao encontro dos espaços públicos urbanos, saindo dos espaços acadêmicos fechados. Esta ação realizada pela instituição demarca outra forma de incluir a sociedade em sua atuação, por meio da interação social, fruto de projetos culturais focados a determinadas parcelas sociais. A consolidação desta identidade popular é constante e recorrente nos processos institucionais, buscando sempre a certificação e reconhecimento da comunidade acadêmica e exterior. Passa-se, agora, a analisar a RD3, que busca dar conta dos Programas Institucionais/Sociais da UFFS. RD3 – Programas Institucionais/Sociais SD11 – A avaliação institucional também será realizada pelo público externo. Visando a participação da comunidade neste processo, será realizado no dia 21 de fevereiro, a partir das 19h, no auditório da UFFS, o Seminário de Autoavaliação Institucional com a Comunidade Externa. No evento, que reunirá lideranças e representantes das entidades da região de abrangência da UFFS – Campus Erechim [...]. SD12 – [...] Conforme o presidente do Conselho de Campus da UFFS em Erechim e diretor do Campus, Ilton Benoni da Silva, a posse dos integrantes do segundo mandato do Conselho têm um “significado gigantesco” para a instituição, pois marca a continuidade de um processo de construção de uma vida universitária baseada nas discussões coletivas. “É de conhecimento de todos, e penso que não é exagero, dizer que nós nascemos como Campus já em processos coletivos de diálogo, decisão e organização”, afirma. SD13 – O primeiro diz respeito à seleção de estudantes com possibilidade de requerer auxílios socioeconômicos, que englobam os auxílios permanência, moradia, transporte e Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015 46 alimentação. [...] Depois dos dados analisados, pode solicitar os auxílios conforme o Índice de Vulnerabilidade Socioeconômica (IVS). SD14 – O objetivo foi apresentar os setores da universidade, os cursos oferecidos, a forma de ingresso, as políticas de apoio estudantil e o funcionamento geral da instituição. [...] Para a estagiária Vânia, a aproximação da universidade com os estudantes das escolas públicas, sobretudo da classe popular, é um dos grandes desafios da UFFS. “Muitos estudantes dos bairros populares ainda não veem a universidade como uma possibilidade e um direito ao seu alcance. Por isso, cabe à universidade apresentar a sua proposta e motivar os estudantes a ingressar no ensino superior”, diz. SD15 – [...] pelas histórias que circulavam entre os meios militantes e ativistas de que esta seria uma universidade intrinsecamente envolvida com os movimentos sociais. Quando fui convocado, portanto, considerei dois fatores: de um lado a possibilidade de participar de um processo de construção de uma universidade efetivamente engajada com as lutas e movimentos sociais do país e, de outro, questões familiares. A SD11 apresenta o programa de avaliação institucional que tem por finalidade traçar um quadro avaliativo para a própria instituição. No entanto, verifica-se um processo participativo amplo, que pretende ver o que o público externo tem a dizer. participação da Destaca-se novamente a comunidade, a congregação de lideranças e representantes das entidades da região de abrangência da UFFS em um contínuo movimento de inserção social, consolidando esta identificação com o popular, desde seu processo de constituição enquanto instituição. De acordo com a SD12 e SD15, marca-se o discurso a formação da UFFS – campus Erechim enquanto instituição que fora desenvolvida por meio de um processo de construção de uma vida universitária baseada nas discussões coletivas, que reflete em uma universidade intrinsecamente envolvida com os movimentos sociais. Segundo se destaca, nascemos como Campus já em processos coletivos de diálogo, decisão e organização, o que remete à possibilidade de participar de um processo de construção de uma universidade efetivamente engajada com as lutas e movimentos sociais do país. Nestas sequências, destaca-se novamente a questão do desenvolvimento enquanto instituição, pautada na discussão coletiva, considerando os anseios sociais, a inserção dos movimentos sociais, os quais se referem a parcelas sociais até então excluídas do processo social- democrático mas que encontraram lugar e vez nesta instituição. Destaca-se novamente a filiação à Formação Discursiva “popular” e à Formação Ideológica da inclusão, da abertura de espaços sociais. A SD13 apresenta o programa que concede auxílios socioeconômicos, que englobam os auxílios permanência, moradia, transporte e alimentação, aos estudantes, de acordo com o Índice de Vulnerabilidade Socioeconômica (IVS). O objetivo é constituir-se em uma política de manutenção das parcelas de estudantes provenientes de camadas populares, ou seja, de parcelas sociais menos favorecidas economicamente. Através deste índice (IVS) delimitam-se os sujeitos (de X a Y correspondem aos menos favorecidos economicamente) que podem vir a receber auxílio. Os demais que não se enquadram nesta parcela estão fora do processo. Tal situação, ao passo que visa a inclusão, contém em si o movimento contrário, interditando a participação de “todos”. Já na SD14, retrata-se um movimento de “captação” de futuros estudantes, por meio da abertura da Universidade aos estudantes de escolas públicas, para que estes tenham conhecimento das possibilidades de ingresso e acesso. Segundo relato da estudante Vânia, a aproximação da universidade com os estudantes das escolas públicas, sobretudo da classe popular, é um dos grandes desafios da UFFS. “Muitos estudantes dos bairros populares ainda não veem a universidade como uma possibilidade e um direito ao seu alcance. Por isso, cabe à universidade apresentar a sua proposta e motivar os estudantes a ingressar no ensino superior”. A Universidade atende ao exposto pela estudante, ao abrir suas portas e se fazer conhecer, identificando-se com a formação discursiva “popular” que perpassa todo seu processo de constituição, em seus documentos oficiais e, de forma específica, o IS. Na FD destacada acima, o sentido de inclusão social, que prevê a inserção dos vulneráveis, é representado pelos termos escolas públicas, classe popular, bairros populares, pelo acréscimo constante de movimentos sociais (Fetraf-Sul, MDA, CUT, MAB, MST, entre outros), assim como por meio das minorias sociais, representadas pelas comunidades indígenas, juventude rural, agricultura familiar, etc. Também compreende-se o movimento de abertura institucional como um gesto de inserção social, pois a partir do momento em que a Universidade abre suas portas para a participação da sociedade como um todo, inserido neste processo comunidade acadêmica e comunidade externa, a inclusão social acaba se tornando consequência. Santin | Produção de identidade: o caso do informative seminal da UFFS, campus Erechim 47 O SD16 não foi enquadrado em nenhum recorte, pois trata da questão do silêncio, da interdição do dizer, categoria não destacada enquanto regularidade, tendo em vista sua ocorrência. Assim, tem-se: SD16 – O Informativo Interno Semanal é produzido pela Assessoria de Comunicação do Campus Erechim. As informações aqui divulgadas têm como único objetivo informar a comunidade acadêmica sobre ações cotidianas do Campus e de interesse de docentes, estudantes e técnico‐administrativos. Esses dados não devem ser utilizados para divulgação ao público externo. Em caso de solicitações neste sentido a Assessoria de Comunicação deverá ser informada. Embora haja uma ligação à FD “popular”, a qual perpassa toda a filiação de sentidos, é possível constatar que certos sentidos neste discurso são silenciados. De acordo com o IS, Esses dados não devem ser utilizados para divulgação ao público externo. Apesar de se tratar de um gênero de circulação institucional, de veiculação das informações ocorridas semanalmente na rotina acadêmica, estas estão circunscritas à comunidade interna, sendo vetada a divulgação externa, movimento contraditório, uma vez que, conforme presente na materialidade discursiva, há um constante movimento de inclusão da comunidade no seio acadêmico. Neste momento, ocorre o oposto, um fechamento, uma exclusão da sociedade externa. Orlandi assevera que “[...] falar é esquecer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas também esquecer apagando os novos sentidos que já foram possíveis mas foram estancados em um processo histórico-político silenciador. São sentidos que são evitados, designificados” (ORLANDI, 1999, p. 61-62). No entanto, estes sentidos silenciados, censurados, não desaparecem completamente, restam resquícios, marcas de discurso em suspenso, impregnados na memória. Ainda segundo a autora, concordando com esta perspectiva, “[...] não há como não considerar o fato de que a memória é feita de esquecimentos, de significação. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de silenciamentos” (ORLANDI, 1999, p. 59). A memória está sujeita a “furos”, “buracos”, que correspondem a lugares em que, devido à interdição, ao silenciamento, o sentido “falta” desaparece, uma vez que este processo faz com que as FDs sejam silenciadas, interditadas; Situação que inviabiliza que certos sentidos possam fazer (outros) sentidos. Pensada a noção de censura pela noção de silêncio, esta compreende qualquer processo de silenciamento que limite o sujeito no percurso de sentidos. Durante o período que compreende o recorte feito no corpus de análise deste estudo, aconteceram movimentos estudantis, movimentos grevistas, paralisações de servidores em virtude de greve, entre outros. No entanto, no IS, não houve ocorrência destes fatos, não sendo discursivisado, incorporado à rede de sentidos. Assim, este silenciamento, conforme defende Orlandi, constitui uma tentativa de interdição dos sentidos, fazendo com que estes não se fixem na memória discursiva, no interdiscurso. Embora se tratassem de movimentos da comunidade acadêmica, que perpassam valores e sentidos da FD “popular”, estes foram silenciados no discurso oficial, pois segundo as orientações institucionais sobre a Comunicação, de acordo com a Instrução Normativa nº 005/2014, os informativos devem enfocar aspectos positivos da imagem institucional, construindo-a a partir da divulgação de ações e atividades que remetam este valor à comunidade. Ainda sobre o silêncio, Orlandi (2007, p. 53) coloca que “[...] ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis [...]. Assim, o silêncio é constitutivo do dizer: ao enunciar x apaga-se a possibilidade de enunciar y e z... [...].”. Silenciar sentidos é preciso, uma vez que a língua não permite que se diga tudo, sempre algo escapa, falta, desliza. Quanto mais se fala, mais silêncio se instala, maior gama de sentidos se fazem presentes e a completude se torna apenas uma ilusão (necessária), um fecha aspas, um ponto final, sem, no entanto, cercear os sentidos possíveis. Algo sempre fica no silêncio. Com isto, ao se tratar da Formação Discursiva “popular” quando da institucionalização de uma imagem positiva da Universidade, que corrobora com os princípios “norteadores” presentes no discurso oficial, chama-se a atenção para determinados sentidos, circunscritos a esta rede de sentidos, porém, interdita-se outros. Sentidos estes filiados a Formações Ideológicas distintas, mas na qual a FD “popular” encontra base para fixar seu discurso, fazer circular determinados sentidos e não outros, criando o movimento de identificação na materialidade discursiva dos Informativos Semanais. As FIs presentes no material analisado podem sem compreendidas nas seguintes temáticas: discurso da inclusão social; discurso sindicalista, representado pelos movimentos sociais; discurso público; entre Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015 48 outras. Todavia, embora exista esta diversidade de FIs, o gesto de análise focou-se na FD “popular”, que perpassa os discursos trabalhados e orienta para o processo de criação e consolidação da identidade institucional, movimentos de identificação com o discurso oficial, que se iniciam no processo de constituição da Universidade e se concretizam ao longo de sua caminhada. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A constituição da UFFS enquanto universidade popular é um fato recorrente e muito marcado na materialidade dos discursos veiculados no IS. Identifica-se, desde sua criação, o envolvimento da sociedade, quer seja pelos movimentos sociais que influenciaram o processo, quer seja pela abertura institucional e constante demanda de participação da comunidade acadêmica e externa. Os espaços abertos pela UFFS para a inserção social vão ao encontro com a formação discursiva “popular” que atravessa os seus discursos. Neste aspecto, cria-se um movimento de filiação com a FD, na qual a Universidade atende e alimenta a identificação criada. A construção da UFFS, em seu discurso oficial, está impregnada por diversas vozes, composta pelos movimentos sociais, que intervieram no processo desde a consolidação inicial da universidade, situação que deixa marcas em seu movimento identitário e acaba direcionando ações. Desta forma, a formação de uma imagem positiva no IS implica em transparecer os compromissos institucionais assumidos nos documentos constitutivos, que a marcam, institucionalmente, deste seu surgimento. O processo de identificação é constante. Nunca se tem uma identidade definida, formada, completa, pois esta encontra-se em contínua construção. O mesmo ocorre com a imagem institucional da UFFS, em que se depreendem processos de identificação, de acordo com a formação discursiva e ideológica a que se filia, integrando discursos que se fixam na memória discursiva, no interdiscurso, criando uma imagem com certa estabilidade, porém não fixa, concluída, acabada. REFERÊNCIAS ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Tradução Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Porto Editorial Presença, 1970. CORACINI, M. J. R. F. Subjetividade e Identidade do professor de Português (LM). Trabalhos em Lingüística Aplicada, Campinas, n. 36, p. 147-158, 2000. ECKERT-HOFF, B. M. O falar de si como (des)construção de identidades e subjetividades no processo de formação do sujeito-professor. 2004. 199f. 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Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 034-049, jan./jun. 2015 51 VOZES DA DESRAZÃO – A SUBJETIVAÇÃO NO DISCURSO BIPOLAR VOCES SINRAZÓN – LA SUBJETIVIDAD EN EL DISCURSO BIPOLAR VOICES OF UNREASON: SUBJECTIVATION IN BIPOLAR DISCOURSE Camila De Almeida Lara ∗ ∗ M es t ra nd a d o P r o g ra ma d e P ó s -G rad uaç ão em L ing uís tic a d a U n iv ers id a d e F ed er al d e S ant a C a tar in a. E s p ec ia lis t a e m T eo rias L ing uís tic as C o nt e mp o râ ne as p ela U n iv ers id ad e Fed er al d a F ro n tei ra S ul, c a mp us E rec him . E -mai l : c ami laa lar a0 4 @g mai l.c o m. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015. 52 RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT RESUMO : Nesse trabalho, a partir do pensamento de Michel Foucault sobre o sujeito, o discurso e o poder, propõe-se uma análise de discursos produzidos por dois sujeitos ditos portadores do transtorno bipolar publicados no site Mental Help, na forma de depoimentos. Nesses discursos procura-se saber se é possível perceber que o processo discursivo é o lugar onde os sujeitos inscrevem-se e ao mesmo tempo resistem a uma dada ordem do discurso na qual estão inseridos, nesse caso o site. Para analisar tal processo discutem-se as ideias de sujeito e subjetividade bem como a caracterização de normal e patológico e a construção da bipolaridade enquanto produção discursiva. As conclusões apontam que embora marcas de subjetivação como forma de resistência possam ser encontradas nas enunciações bipolares, os sujeitos ainda inscrevem-se na ordem discursiva médico-psiquiátrica. PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Subjetividade. Transtorno bipolar. RESUMEN: En este trabajo, a partir del pensamiento de Michel Foucault sobre el sujeto, el discurso y el poder, se propone un análisis de discursos producidos por dos sujetos dichos portadores del transtorno bipolar publicados en el sitio Mental Help en forma de testimonios. En estos discursos se busca saber si es posible percibir que el proceso discursivo es el lugar en donde los sujetos se inscriben y, al mismo tiempo, se oponen a una dada orden del discurso en la cual están sometidos, en este caso, el sitio. Para analizar tal proceso se discute las ideas de sujeto y subjetividad así como la caracterización de lo normal y patológico y la construcción de la bipolaridad como producción discursiva. Las conclusiones señalan que, aunque los rasgos de subjetivación como forma de resistencia pueden encontrarse en las enunciaciones bipolares, los sujetos todavía se inscriben en la orden discursiva médico psiquiátrica. PALABRAS CLAVE: Discurso. Subjetividad. Transtorno bipolar. ABSTRACT: The aim of this article is, from the thought of Michel Foucault on the relation between subject, discourse and power, to propose an analysis of discourses produced by two subjects said to be patients of bipolar disorder. The speeches were published on the Mental Help site in the form of testimonials. In these testimonials we seek to know if it is possible to notice that the discursive process is where the subjects are part of and at the same time resist to the discursive order in which they are inserted, in this text, the site. To analyze this process, we discuss the ideas of subject and subjectivity as well as the characterization of normal and pathological and the construction of bipolarity as a discursive production. The findings indicate that although subjectivity marks as a form of resistance can be found in bipolar utterances, the subjects are still inserted on the medical-psychiatric discursive order. KEYWORDS: Discourse. Subjectivity. Bipolar disorder. Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar 53 1 INTRODUÇÃO A figura do louco se produz por meio dos discursos proferidos e a doença mental só tem realidade e valor de doença no interior de um dispositivo que a produz e a reconhece (FOUCAULT, 1975). Se o dispositivo 1 produz a doença mental como fato mórbido haveria uma diferença entre o normal e o louco, entre o normal e o patológico. Assim, a ideia que temos da loucura se reporta a uma “coisa em si”, a uma realidade que ela pretende apresentar. Se a loucura existe e não é uma mera criação discursiva, tudo que se pensa e pensou sobre ela marca sua existência. Isso implica em que apenas atingimos a verdade sobre a loucura através da ideia que formamos dela em cada época (VEYNE, 2011). A partir dessa relação de produção discursiva sobre a loucura, a anormalidade e seus regimes de dizer, este trabalho, desenvolvido em duas etapas, uma teórica e uma analítica, tem como objetivo refletir sobre a possibilidade de processos de subjetivação como formas de resistência, a partir de discursos produzidos em mídias eletrônicas pelo sujeito dito bipolar. 2 SUJEITO E FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO A problematização do sujeito é um dos pontos primordiais nos trabalhos de Michel Foucault que, segundo Bruni (1989, p. 01), iniciou um duplo escândalo ao anunciar, na obra As palavras e as coisas, a morte do homem; primeiro, pois esse homem não é uma realidade plena, mas uma figura do saber contemporâneo, “um efeito produzido pelas novas estruturas da epistemé surgida no fim do século XVIII”; segundo, pois é o homem “[...] que impede o pensamento de pensar ou que leva a saberes confusos, heteróclitos e incertos como são os saberes das modernas Ciências Humanas”. Weinmann (2006) acredita que essa postura decorre da presunção de um conceito de sujeito universal e constituinte da experiência humana. Esse sujeito seria o elemento que dispõe de toda produção discursiva com pretensão de cientificidade. O autor (2006, p.16) argumenta que, para analisar um sujeito em sua constituição histórica, é fundamental adotar uma atitude cética em relação aos universais antropológicos – verdades universais quanto à natureza humana ou às categorias que se aplicam ao sujeito - encontrados nas práticas discursivas, uma vez que suspeitar desses universais traz como questionamento quais as condições que permitem reconhecer um sujeito como doente mental. Assim, a “constituição de um sujeito se dá na imanência de um corpo de saberes, que o toma como objeto, na forma de um conhecimento legítimo”. O trabalho de Foucault, segundo Butturi Junior (2012, p.83), aponta em sua problematização do sujeito duas possibilidades: a partir de práticas coercitivas e segundo o imperativo das práticas de si. Nessa segunda etapa – o imperativo das práticas de si – Foucault procura investigar o modo de relação que os sujeitos têm consigo mesmo, como o indivíduo constitui-se como sujeito de suas próprias ações. Essa experiência de si, porém, não significa ir em busca de um eu genuíno e livre de qualquer contaminação, ao invés disso “[...] implica a constituição de si como sujeito moral, tomado como efeito de subjetivação, sustentado em exercícios e práticas de si histórica e socialmente localizáveis”. (SOUZA, 2003, p. 39). Para Souza (2003), o projeto do filósofo francês se concentra em estudos acerca das condições em que surgem práticas de liberdade nas quais o sujeito se transforma em um processo onde a subjetividade está associada a diferentes domínios que “[...] no limite do código moral, descrevem um movimento incessante de subjetivação” (SOUZA, 2003, p. 38). Segundo Bampi (2002, p.130), a produção de Michel Foucault possibilita a análise sobre o modo como os indivíduos são conduzidos e conhecidos por outros indivíduos e, a esse ponto de contato “[...] entre o modo como se dá essa condução e esse conhecimento e modo pelo qual os indivíduos se conduzem e conhecem a si próprios”, Foucault chama de governo: Foucault destaca a importância de levar em conta não apenas as técnicas de dominação, mas também as técnicas do eu. Isso implica atentar para a interação entre esses dois tipos de técnicas, ou seja: para os pontos em que as tecnologias de dominação dos indivíduos uns sobre os outros recorrem a processos pelos quais o indivíduo age sobre si mesmo e, em contrapartida, os pontos em que as técnicas do eu são integradas em estruturas de coerção. (BAMPI, 2002, p. 130) 1 Entende-se por dispositivo o proposto por Deleuze (1990): o conjunto multilinear de enunciações formuláveis, os objetos visíveis, os sujeitos em dadas posições, as três grandes instâncias que Michel Foucault distingue – Saber, Poder e Subjetividade. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015. 54 De acordo com Weinmann (2006), inquirir acerca da constituição de um discurso requer que se coloque o problema da liberdade dos sujeitos e sua relação com a verdade. Isso significa pensar as formas de resistência ao poder que se realizam através das práticas coercitivas e do imperativo das práticas de si. Essas práticas nos interessam à medida que tornam o discurso do sujeito bipolar um discurso de resistência. A partir dos conceitos de sujeito e formas de subjetivação torna-se necessária a discussão sobre a normalidade e a patologia e sobre o processo de construção discursiva do sujeito bipolar, para então se analisar as marcas de subjetivação como formas de resistência que aparecem no discurso bipolar. Weinmann (2006) também afirma que a genealogia foucauldiana torna densa a constitutividade entre liberdade e poder, pois Foucault assume uma incitação recíproca de poder ou resistência, legando à subjetividade um papel tático de modificações microfísicas no interior dos dispositivos e dos diagramas. Weinmann (2006) ressalta que essa tensão de nunca acabar provoca uma luta na produção da subjetivação: 3 ESTIGMA E IDENTIDADE - A NORMALIDADE, A PATOLOGIA E A CONSTRUÇÃO DA BIPOLARIDADE É porque há forças no sentido do seu assujeitamento que a subjetividade resiste e toma a si própria como objeto de elaboração. Entretanto, nesse movimento não se funda a si mesma, nem descreve a verdade inalienável do seu ser, contrapondo-se às identidades impostas pelos dispositivos em que se insere. Nessas práticas de liberdade, é ainda em relação a critérios de verdade historicamente estabelecidos que o sujeito constitui-se [...] (WEINMANN, 2006, p.18) No caso do poder e das práticas de assujeitamento, a hipótese formulada por Foucault é de que haveria três tipos de tecnologia política: a do suplício, ligada ao poder do soberano, a da punição, cujo objetivo era reformista, e a disciplinar, fundamentada num poder sobre o corpo produtor de interioridade. De acordo com Butturi Junior (2012, p.84) “[...] essa última configuração do poder é justamente capaz de produzir a alma no corpo como um efeito de poder". A hipótese da sujeição total é, segundo Butturi Junior (2012), contestada no texto de Foucault, de 1979, Sobre a prisão, pois o autor considera que existe resistência mesmo quando se exerce o poder do soberano, justamente porque seus atos seriam capazes de transformar os afetos da multidão. Em O uso dos prazeres, Foucault passa a investigar aquilo que engendra as resistências, ou seja, as relações que os sujeitos travam com a verdade e o poder. Para Souza (2003, p.42), o conceito de Foucault sobre resistência mostra-se diretamente ligado ao de formas de subjetivação, uma vez que “[...] resistir e subjetivarse remetem a um modo de produção do sujeito cujas relações de força agem tencionando-se, mas nunca obstruindo-se”. O que hoje se produz discursivamente como normal está ligado à norma, à regra. Canguilhem (2000) afirma que a norma designa o enquadramento, o que não está à direita ou à esquerda, o que está no meio. Deste modo, é normal aquilo que "está em conformidade". Mas, há também um sentido usual, comum, que se refere à maioria dos casos em uma determinada espécie. “A norma é aquilo que fixa norma a partir de uma decisão normativa”(CANGUILHEM, 2000, p. 95). Para Foucault (2001, p. 62), a ideia de Ganguilhem sobre a normalidade é importante uma vez que a norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção. Ou seja, a norma não tem por função excluir ou rejeitar, “[...] ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder normativo”. Foucault (1975) questiona sob quais condições seria possível falar de doença mental no campo da psicologia e quais relações poderiam se definir entre os fatores da patologia mental e os da patologia orgânica. Segundo o filósofo, todas as psicopatologias ordenaram-se segundo dois problemas [...] as psicologias da heterogeneidade que se recusam [...] a ler as estruturas da consciência mórbida em termos de psicologia normal; e, ao contrário, as psicologias analíticas ou fenomenológicas que procuram aprender a inteligibilidade de toda a conduta, mesmo demente, nas significações anteriores à distinção do normal e do patológico. (FOUCAULT, 1975, p.5) Para Foucault (1975), a confusão sobre a distinção entre o normal e o patológico na medicina mental provém do fato de se dar – na medicina mental – o mesmo sentido, de se aplicar maciçamente às noções de doença, de sintomas e de etiologia que se aplicam na medicina orgânica, conceitos esses que deveriam ser utilizados apenas na medicina somática. O cerne da Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar 55 patologia mental não deveria ser procurado em uma “meta-patologia”, mas na relação histórica entre “o homem e o homem louco e o homem verdadeiro” (FOUCAULT, 1975, p.5). Assim, o filósofo francês (2001) analisa, em Os anormais, curso ministrado no Collège de France, entre 1974 e 1975, o domínio da anomalia constituído a partir de três elementos que começam a se isolar e a se definir a partir do século XVIII. Ao primeiro desses elementos Foucault (2001) nomeia de monstro humano: A noção de monstro é essencialmente uma noção jurídica - jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. Ele é, num registro duplo, infração às leis em sua existência mesma. (FOUCAULT, 2001, p.69) O segundo elemento que compõe o domínio da anomalia é o que Foucault (2001) chama de indivíduo a ser corrigido. Enquanto o contexto de referência do monstro humano era a natureza e a sociedade, o contexto de referência do indivíduo a ser corrigido é limitado à família, à escola, à polícia. Outra diferença entre o monstro e o indivíduo a ser corrigido é a taxa de frequência com que essas anormalidades apareceriam. Enquanto o monstro humano é uma exceção, o indivíduo a ser corrigido é um fenômeno recorrente, e “[...] é esse seu primeiro paradoxo – a característica de ser, de certo modo, regular na sua irregularidade” (FOUCAULT, 2001, p.72). O terceiro pilar da construção da anomalia seria o da criança masturbadora, cujo campo de aparecimento seria um espaço restrito, a cama, o corpo e não mais a natureza e a sociedade ou a família como nos casos do monstro humano e do indivíduo a ser corrigido. Segundo Foucault (1975), a medicina mental tentou inicialmente decifrar a essência da doença mental, agrupando sinais que a indicariam. Constituíram-se então uma sintomatologia na qual são realçadas as correlações constantes, ou somente frequentes entre um tipo de doença e sua manifestação débil. E, também, uma nosografia na qual as formas da doença são analisadas segundo suas fases de evolução, a 2 Nesta seção, em nenhum momento se adotou uma postura teleológica ou naturalizante em relação aos discursos de produção da bipolaridade. O que se mostra é, pelo contrário, como os discursos alternância de sintomas e a sua evolução no decorrer da doença. Nesse contexto teórico de produção discursiva das patologias, é preciso que se volte à constituição do conceito de "bipolaridade", a partir das séries discursivas que o constituem 2. Sabe-se que o que se produz discursivamente como “bipolaridade” remonta há vários séculos e evidencia a ideia de Foucault sobre a sintomatologia e a nosografia das doenças mentais. De acordo com Del Porto (2004), os termos "mania" e "melancolia" que apareciam entre os antigos ainda hoje correspondem a seus conceitos originais. Foi Araeteus da Capadócia (que viveu em Alexandria no século I d.C.) quem escreveu os principais textos que chegaram aos dias atuais, referentes à disfunção de humor. Foi ele também o primeiro a estabelecer um vínculo entre a mania e a melancolia, concebendo-as como aspectos diferentes do mesmo problema que, embora mais abrangentes e imprecisos, em seus aspectos principais, remetem às séries de discurso que descrevem o que hoje se produz como doença bipolar. Del Porto (2004) ressalta, ainda, que na França, no século XIX, Falret e Baillarger descreveram, independentemente, formas alternantes de mania e depressão, nomeadas por Falret de folie circulaire e por Baillarger de folie à double forme e que representariam formas alternantes de uma única doença. Essa descrição corresponderia às primeiras concepções explícitas de uma doença maníaco-depressiva como entidade nosológica única (ALCANTARA et al., 2003). No entanto, foi Kraepelin que, ao separar as psicoses em dois grandes grupos, da demência precoce e da insanidade maníaco-depressiva, consolidou os conceitos em que as modernas classificações baseiamse (DEL PORTO, 2004). De acordo com Del Porto (2004), até o fim da década de 1890, Kraepelin dividia a enfermidade maníacodepressiva em numerosos e complexos subtipos, mas na sexta edição de seu Tratado de Psiquiatria ele adotou um ponto de vista unitário, considerando que a enfermidade maníaco-depressiva abrangia os estados depressivos, a mania simples e os quadros circulares. Na oitava edição de seu tratado, Kraepelin incluiu a maioria das formas de melancolia e da mania em seu conceito de insanidade maníaco-depressiva. Pouco tempo suas ideias – que se baseavam em um modelo médico fortemente enraizado em observações clínicas assimilaram diversos conceitos e objetos para forjar o aparecimento de 'algo'. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015. 56 mas que não excluíam os fatores psíquicos e sociais –, alcançaram grande aceitação na psiquiatria europeia. Discursivamente, é possível observar como os mecanismos postulados por Foucault, em A ordem do discurso (1996), para controlar a proliferação discursiva são coordenados para a produção do discurso da medicina acerca da então chamada psicose maníaco-depressiva. De uma perspectiva de ordenação dos discursos, quando Kraepelin retoma os conceitos de Falret e Baillarger, nota-se o que Foucault (1996) caracterizou como o primeiro procedimento interno de controle dos discursos: o princípio do comentário, ou seja, o desnível entre os textos do século XIX sobre a caracterização da doença maníaco-depressiva e os tratados de Kraepelin, que desempenham papéis solidários. Esse princípio é o que permite construir indefinidamente novos discursos e diz pela primeira vez aquilo que já havia sido dito e repete o que não havia sido dito. O comentário seria uma forma de dizer algo além do texto, mas sob a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. Como postulava Foucault (1996, p.26), “[...] o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta” Assim, são os comentários que perfazem as novidades sobre a suposta doença, retomando discursos anteriores e construindo um verdadeiro (devidamente discursivo) para a "patologia". O segundo princípio de rarefação do discurso, o autor, também é visualizado na construção discursiva da bipolaridade. É no nome de Kraepelin que está a garantia da coerência da noção de bipolaridade, uma vez que foi ele quem agrupou os discursos sobre a bipolaridade, tornando seu trabalho, para a medicina mental, a origem das significações da doença bipolar. No entanto, segundo Foucault (1996), desde o século XVII, a função do autor se enfraquece no discurso científico e apenas nomeia uma síndrome, um teorema. Essa ausência é fundamental para a constituição da patologia, visto que o discurso da ciência se pauta pelo apagamento subjetivo, pela crença na verdade factual. Os discursos produzidos sobre a bipolaridade também seguem um terceiro princípio de controle do discurso, a disciplina, que se opõem tanto ao princípio do comentário quanto ao do autor. Diante desses, a disciplina constitui “[...] um sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que sentido ou validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor” (FOUCAULT, 1996, p.30). Nas disciplinas, “ [...] o que é suposto no ponto de partida não é um sentido que precisa ser redescoberto [...] mas aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados” (FOUCAULT, 1996, p.30). Segundo Foucault (1996), o princípio da disciplina constrói-se a partir de proposições que podem conter erros, que têm funções positivas e uma eficácia histórica, e também de “verdades”. Assim, os primeiros discursos sobre a doença bipolar fazem parte dos erros mencionados pelo autor com função positiva, pois a partir dos conceitos formulados anteriormente é que Kraeplein esquematiza os sintomas da doença e descreve-a como uma única enfermidade, operando positivamente para a produção de um campo autônomo para a disciplina - psiquiátrica ou psicológica. Essa construção discursiva de insanidade maníacodepressiva, no interior da disciplina psiquiátrica, é exposta de maneira clara em Foucault. Na obra Doença mental e Psicologia, o filósofo (1975) esquematiza descrições clássicas das doenças mentais para fixar o sentido originário desses termos, ressaltando que algumas descrições cujo arcaísmo foram resultado e ponto de partida. A descrição da mania e da depressão são relevantes sobremaneira para esta pesquisa: Magnan denominou "loucura intermitente" esta forma patológica, na qual vêem-se alternar, a intervalos mais ou menos longos, duas síndromes entretanto opostas: a síndrome maníaca, e a depressiva. A primeira compreende a agitação motora, um humor eufórico ou colérico, uma exaltação psíquica caracterizada pela verborragia, a rapidez das associações e a fuga das idéias. A depressão, ao contrário, apresenta-se como uma inércia motora tendo com o fundo humor triste, acompanhada de hipo-atividade psíquica. Às vezes isoladas, a mania e a depressão estão ligadas mais frequentemente por um sistema de alternância regular ou irregular [...] (FOUCAULT, 1975, p.7) Para Foucault (1975), essas análises têm a mesma estrutura conceitual que as da patologia orgânica, pois utilizam os mesmos métodos para organizar os sintomas em grupos patológicos. Ou seja, supõe-se que a doença é uma essência apontada pelos sintomas que a manifestam. Anterior a eles, se descreve um fundo esquizofrênico disfarçado sob sintomas obsessivos [...] mas anterior a eles, e de certo modo independente deles; descrever-se-á um fundo esquizofrênico oculto sob sintomas obsessivos; falar-se-á de delírios camuflados; supor-se-á a entidade de uma loucura maníaco-depressiva por detrás de uma crise Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar 57 maníaca ou de um episódio depressivo. (FOUCAULT, 1975, p.8) Assim, ao lado do estigma sobre a essência da doença mental existe um postulado naturalista que considera a doença como uma espécie botânica, como essência natural manifestada por sintomas específicos. Entre a patologia orgânica e a patologia mental não haveria “[...] uma unidade real, mas uma semente, e por intermédio destes dois postulados, um paralelismo abstrato” (FOUCAULT, 1975, p.08). Ou seja, o problema da unidade humana e da totalidade psicossomática permaneceriam abertos. Segundo Foucault (1975, p.9), o peso desses problemas fez derivar a patologia para novos métodos e conceitos. A noção da doença mental como totalidade psicológica faz crer que a doença seria uma “alteração intrínseca da personalidade, desvio progressivo de seu desenvolvimento”. A doença mental só teria realidade e sentido no interior de uma personalidade estruturada, elemento no qual se desenvolve e critério que permite julgá-la, “é ao mesmo tempo a realidade e a medida da doença” (FOUCAULT, 1975, p.10) Foucault (1975) ressalta que é somente pelo artifício da linguagem que se pode atribuir o mesmo sentido às doenças do corpo e às doenças do espírito. Assim, a noção de personalidade na psiquiatria tornou difícil a distinção entre normal e patológico. Citando Beuler, Foucault (1975) demonstra essa dificuldade quando se opõem dois pólos da patologia mental, o das esquizofrenias com ruptura do contato com a realidade, e o grupo das loucuras maníacodepressivas, psicoses cíclicas, com o exagero das reações afetivas. Essa análise parece definir tanto as personalidades normais quanto as mórbidas, uma vez que não depende de uma visão precisa dos processos; ela permite somente uma apreciação qualitativa que ocasiona todas as confusões. Como se pode notar, desde o século XIX até a contemporaneidade, ao longo dos estudos médico/psiquiátricos sobre a bipolaridade, a produção do conceito de bipolaridade, os objetos afetados por ele e os sujeitos então constituídos têm sido deslocados. Nesse processo, várias nomenclaturas foram atribuídas a fim de circunscrever a suposta doença. Assim é que a psicose maníaco-depressiva de outrora foi renomeada para Transtorno Bipolar e hoje também é chamada de Espectro Bipolar. Para Fukue (2011), a mudança da nomenclatura “psicose maníacodepressivo” para “transtorno bipolar” procurou atenuar o carma que o termo “maníaco” conferia àqueles que sofrem do transtorno. Na psiquiatria, o termo “maníaco” refere-se aos quadros de euforia (mania) apresentados pela pessoa afetada pelo transtorno afetivo bipolar e, em seu sentido pejorativo, evidencia a ideia de louco. A mudança do nome da doença busca, em parte, redefinir/determinar a pessoa que sofre com a oscilação entre quadros de euforia (mania) e momentos de depressão, afetando diretamente na produção dos sujeitos bipolares e sua relação com a patologia e/ou a loucura. A mudança do nome da doença deixa evidente a ideia de um conceito flutuante sobre ela. A denominação Espectro Bipolar é utilizada pela psiquiatria e amplia a prevalência do transtorno bipolar na população em geral. No entanto, essa definição é ainda polêmica, uma vez que o próprio conceito de "espectro bipolar" ainda não foi adequadamente avaliado em estudos populacionais (FUKUE, 2011). Mesmo com as dificuldades para elaborar uma definição conceitual e um objeto específico que constituam a "personalidade maníaco-depressiva", estima-se, segundo a ABTB (Associação Brasileira de Transtorno Bipolar), que cerca de 1,8 a 15 milhões de brasileiros sejam “portadores do transtorno”, nas suas diferentes formas de apresentação. De acordo com a ABTB, atualmente o chamado Transtorno Bipolar (TB) é caracterizado, pela psiquiatria, por alterações de humor que se manifestam como episódios depressivos alternando-se com episódios de euforia (também denominados de mania), em diversos graus de intensidade. O Transtorno Bipolar seria, de acordo com os discursos médico/psiquiátricos recentes, condição médica frequente. O TB tipo I, se caracterizaria pela presença de episódios de depressão e de mania e, em tese, ocorreria em cerca de 1% da população geral. Considera-se os chamados “quadros mais brandos” do que hoje se denomina “espectro bipolar”, como o Transtorno Bipolar tipo II (caracterizado pela alternância de depressão e episódios mais leves de euforia - hipomania); a prevalência pode chegar a até 8% da população. Os inúmeros sujeitos considerados como "portadores de transtornos bipolar", na atualidade 3, procuram 3 Ressalta-se que, na presente pesquisa, adota-se uma postura de suspensão acerca da verdade dos conceitos da doença bipolar que se aplicam aos sujeitos portadores do transtorno, uma vez que somente com essa postura pode-se chegar a uma forma de um conhecimento legítimo como proposto por Weinmann (2006). Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015. 58 ajuda em diferentes espaços midiáticos e através de depoimentos concedidos a sites como o Mental Help, expressam seus conflitos internos e externos, produzindo assim discursos variados. Na próxima seção, serão analisados dois depoimentos de sujeitos bipolares publicados no site Mental Help (2014). É nesse espaço de subjetivação que o presente texto aponta que é possível evidenciar marcas de subjetividade como formas de resistência, no discurso bipolar. 4 AS VOZES DA DESRAZÃO A construção de um "verdadeiro discursivo" sobre a loucura só é atingida a partir da ideia que formamos dela por meio de discursos produzidos sobre a doença mental nos dispositivos em que ela se manifesta. Os discursos médico/psiquiatras apontam uma nosologia clara sobre a sintomatologia bipolar e seguem os mecanismos de controle da proliferação discursiva; são coordenados para a produção do discurso da medicina acerca da então chamada psicose maníacodepressiva. me da a impressão de que estou muito mal. Desde o dia que descobri me senti feliz e até mesmo agradecida, pois só assim entendi a vida louca que tive até o hoje. Meus amigos ficaram tão felizes quanto eu pois ´so assim eles entenderam que não fazia nada por mal. Tenho 40 anos sou casada tenho três filhos 20, 13 e 09 anos, meu marido foi a única pessoa que já me conheceu em crise e mesmo sem saber em alta ou em baixa ele sempre foi meu porto seguro. Me trato hoje pois fui investigar um problema do meu filho mais velho e lendo o livro tendência a distração me vi e o que foi mais triste vi meu filho do meio também, luto hoje para ajuda-lo a superar e seguir a vida. Fiz um grupo de estudo com 5 pessoas, la descobri o quanto é doloroso não se aceitar. Eles vivem mal são tristes, escondem das pessoas como parentes e amigos, por vergonha ou até mesmo raiva e deixam passar o que a vida tem de melhor o amor de quem nós ama. Gostaria muito que todos vocês que se sentem tristes por serem assim parecem por alguns minutos todos os dias se olhassem no espelho e dissesse oi amigo me ajuda a passar mais este dia pois eu te amo. Vou encerrar pois seria capaz de passar o dia contando fatos ótimos que me aconteceram desde a descoberta. Beijos Depoimento 02 É, pois, no entendimento dos sujeitos bipolares não como realidade plena, mas como figuras produzidas pelo saber contemporâneo que se propõe um esboço para uma análise de processos de subjetivação como formas de resistência nos discursos produzidos por esses sujeitos. A fim de observar os processos de constituição dessa forma de sujeito, bem como de suas possibilidades de resistência, este artigo tomou como corpus de análise dois depoimentos publicados no Mental Help. Partiu-se do princípio de que eles não esgotam uma teoria geral das formas de subjetividade em relação à suposta patologia, mas apontam traços importantes para se entender o funcionamento discursivo da produção de si via discurso. O site Mental Help, criado por Rubens Pitliuk, psiquiatra chefe do hospital Albert Einstein e sua equipe, aborda doenças e tratamentos psiquiátricos e disponibiliza uma seção em que é possível postar depoimentos acerca do transtorno bipolar. Nessa seção, foram escolhidos dois depoimentos publicados no site e que estão transcritos, a seguir, na íntegra. Depoimento 01 4 oi tenho bipolariade e sou dda, descobri que tenho essa particularidade a dois anos, chamo de particularidade pois a trato com todo carinho, pois dizer que sou doente sofro de bipolaridade de humor, um nome novo para substituir um outro, que rotula a pessoa de forma cruel. Depois de nove meses vivendo feliz, e sem remédio (o médico suspendeu o lítio) caí outra vez na depressão. É confortante saber que não estou sozinha, pq a impressão que dá é essa. Gostaria de escrever mais mas não me sinto em condições agora. Escrevo principalmente para me solidarizar com a pessoa que escreveu o primeiro depoimento da lista, que falou tudo que eu sinto. Tenho 43 anos, sou casada e tenho filhos. Tenho vergonha de ser deprimida num mundo em que a alegria é requisito básico, mesmo que falsa. Tenho o privilégio de estar sendo tratada por um grande médico, em quem tenho total confiança. Estou tomando efexor, demora a fazer efeito. Sei que um dia vou ficar boa mas ter paciência de esperar é que são elas. É muito duro. Um beijo em todos. A. Nos depoimentos transcritos, observa-se que os sujeitos se submetem à ordem do discurso na qual se posicionam para falar, embora pequenos traços de resistência apareçam nas enunciações transcritas. Retomando os conceitos de Foucault sobre os princípios externos de controle e delimitação dos discursos que põem em jogo o poder e o desejo, percebe-se, inicialmente, que os enunciados 4 Os depoimentos foram transcritos tal qual aparecem no site, sem alteração textual ou gramatical. Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar 59 produzidos pelos sujeitos bipolares retomam pelo menos um deles: a interdição, e evidenciam a ideia que os sujeitos se submetem à ordem discursiva em que estão inseridos – neste estudo, o site Mental Help, em relação direta com o saber médico-psiquiátrico. Para postar o depoimento sobre a doença bipolar, antes é necessário que se leia uma série de orientações disponíveis no site e que restringem o direito da palavra do portador do transtorno. O que se percebe é que o próprio site Mental Help interdita toda a produção discursiva que não estiver seguindo tais orientações e faz com que os sujeitos que queiram postar seus depoimentos se submetam a elas. Abaixo, destacam-se algumas dessas regras: 1. Lembre-se que a maioria das perguntas alguém já perguntou antes. 2. Não é ético comentar diagnóstico ou tratamento de outro médico sem conhecer o paciente. Mas todo paciente tem o direito a uma segunda opinião, o que não quer dizer consulta por e-mail. 6. Como convencer uma pessoa a se tratar: imprima as páginas correspondentes ao assunto e dê para ela ler. (MENTAL HELP, 2014) A sexta regra ditada pelo site demonstra qual é sua função social, o tratamento dos portadores do transtorno bipolar. Na HomePage do site, o objetivo de seus criadores é demonstrado na formulação “Deixe os preconceitos de lado e procure tratamento psiquiátrico antes que seu problema complique ou cronifique.” Percebe-se que os discursos produzidos pelo site jamais questionam o conceito da patologia; na seção “Sua Saúde”, que apresenta artigos sobre algumas doenças mentais, o conceito de Foucault de interdição é mais uma vez aparente nos discursos médico/psiquiátricos. Em um dos artigos sobre a bipolaridade, lê-se: “Para os leigos 'Mania' quer dizer repetição de hábitos ou atitudes. Para os médicos Mania é o seguinte: [...]" (MENTAL HELP, 2014), o que demonstra que apenas o discurso produzido por quem está no interior da disciplina, é o autor legítimo e o sujeito privilegiado da enunciação do verdadeiro – nesse caso, os psiquiatras responsáveis pelo site, que validam o espectro do verdadeiro ou correto. Na análise dos dois depoimentos dos sujeitos portadores do transtorno percebe-se que, ao mesmo tempo em que eles se submetem à ordem discursiva, também a rejeitam. Ambos aceitam a doença tal como descrita pela sua nosografia, o que pode ser visualizado no início dos enunciados, “tenho bipolaridade” e “sofro de bipolaridade de humor”. Contudo, cada paciente compreende a doença de modo diferente, o que é demonstrado pelos verbos utilizados “tenho” e “sofro”. O sujeito do primeiro depoimento também reforça a ideia da aceitação da doença quando enuncia que em seu grupo de estudos percebe o sofrimento daqueles que não aceitam a bipolaridade, o que é materializado no enunciado “la descobri o quanto é doloroso não se aceitar”. No primeiro depoimento, evidencia-se a ideia de que a doença mental remete a um estigma: o doente mental é aquele cujo discurso não pode circular com o discurso do outro, da razão. O depoente inscreve-se na ordem do discurso sobre a desrazão quando enuncia que sua vida era caracterizada por atitudes “loucas”: “Desde o dia que descobri me senti feliz e até mesmo agradecida, pois só assim entendi a vida louca que tive até o hoje” (grifo meu). As enunciações “tenho bipolaridade” e “sofro de bipolaridade de humor” remetem também ao conceito formulado por Foucault em A história da sexualidade I A vontade de saber, a confissão: a fronteira entre a singularidade, a afirmação de si, e o assujeitamento, a submissão ao outro. Segundo Cunha (2002), a confissão é uma das técnicas de si, um dos modos pelo qual o indivíduo estabelece uma relação consigo mesmo e produz uma série de operações sobre seus pensamentos e sua conduta. No entanto, essa é não apenas uma entre as outras técnicas. Elemento fundamental na tradição cristã deslocado e transformado em estratégia de constituição das Ciências Humanas a partir do século XVIII (junto, pois, à Psiquiatria e às posteriores Psicologia e Psicanálise), o dispositivo da confissão pode ser lido como “[...] a matriz do modo, como, na civilização ocidental, o sujeito pode produzir um discurso de verdade sobre simesmo.” (CUNHA, 2002, p.2). Nesse processo de dizer-se, de narrar a si mesmo como "doentes", os sujeitos bipolares afirmam-se como portadores do transtorno subjetivam-se e ao mesmo tempo inscrevem-se na ordem do discurso sobre a bipolaridade, pois tornam-se o que acabaram de enunciar, sujeitos portadores do transtorno bipolar. Dessa perspectiva, na formulação de seu depoimento, percebe-se que o sujeito 01 também diz ser diagnosticado como DDA (Distúrbio de Déficit de Atenção) e utilizou o verbo “ser” para expressar esse diagnóstico, enquanto para expressar a bipolaridade utiliza o verbo “ter” – como se a bipolaridade surgisse como uma condição passageira, transitória, ao contrário do que acontece com o Distúrbio de Déficit Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015. 60 de Atenção (DDA), por esse não remeter à ideia da loucura. doente mental “Fiz um grupo de estudo com 5 pessoas, la descobri o quanto é doloroso não se aceitar”. No segundo depoimento, observa-se que a formulação “sofro de bipolaridade de humor, um nome novo para substituir um outro, que rotula a pessoa de forma cruel” demonstra que a depoente acredita que a modificação da nomenclatura sobre a bipolaridade é positiva, uma vez que parece tirá-la do regime da loucura. Nos dois casos, há uma assunção da marca discursiva que aponta o fora-da-norma e o desnível existente entre universos mais próximos da desrazão (a bipolaridade) e aqueles mais "normais" (o DDA). Retomando o texto de Bampi (2002) sobre a resistência, percebe-se que a interação entre as técnicas de dominação – interdição – e as técnicas do eu – confissão – estão integradas em uma estrutura de coerção, o que faz com que o discurso do sujeito bipolar, embora apresente traços de resistência, ainda seja um discurso inscrito na ordem discursiva do discurso médico/psiquiátrico. A temporalidade também é uma marca que, no depoimento 02, evidencia o processo subjetivo, instaurado pela cisão entre "tempos de normalidade" e "tempos de patologização". Assim é que a formulação “Gostaria de escrever mais mas não me sinto em condições agora” demonstra a possibilidade do sujeito estar vivenciando uma crise da doença (marcada pelo imperativo adverbial do "agora", o tempo do enunciado). Por isso, a experiência de si marca a hesitação quanto a dar seu depoimento. No depoimento 01, as marcações temporais demonstram que o tempo age no sujeito e dá forma a ele. Na formulação “descobri que tenho essa particularidade a dois anos [grifo meu]" a ideia da doença como algo transitório é clara. Até então o depoente era “são”, agora ele está no espectro da loucura. Nas formulações posteriores como “Desde o dia que descobri me senti feliz e até mesmo agradecida, pois só assim entendi a vida louca que tive até o hoje [grifo meu]", o discurso se inverte e o sujeito passa da insanidade à normalidade. O artigo definido "o", anterior a marcação do tempo (hoje), também evidencia o processo subjetivo no depoimento 1. O hoje é o tempo do depoente; a partir dessa marcação, ele não é mais "louco". Ainda que apresentem constantes marcas de assimilação da ordem discursiva médico-patológica, também a subjetivação como forma de resistência aparece, nos discursos bipolares transcritos, como uma tênue linha entre o assujeitamento e a resistência. O depoente 01 nomeia a doença bipolar de particularidade, atenuando assim seu “problema”, o que é materializado na seguinte enunciação “[...] tenho essa particularidade a dois anos, chamo de particularidade pois a trato com todo carinho, pois dizer que sou doente me da a impressão de que estou muito mal [...]". Logo depois disso, porém, inscreve-se na ordem do discurso médico sobre a doença e aceita-se como Embora a dimensão do si-mesmo apareça nos discursos produzidos pelos supostos portadores do transtorno, ela não aparece como uma linha de fuga, como a ruptura de um dispositivo para a instauração de um outro. Logo, ressalta-se que o processo subjetivo como forma de resistência a determinado dispositivo – nesse estudo os discursos da medicina acerca da bipolaridade -, não apresentam relevância no funcionamento discursivo geral dos depoimentos, que tendem mais à manutenção da "regra moral", da ordem discursiva psiquiátrica. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse trabalho, procurou-se traçar uma análise dos processos de sujeição e de resistência em discursos produzidos por sujeitos ditos bipolares. Para isso, fezse necessário explorar os conceitos de discurso, sujeito e subjetivação tal como descritos por Michel Foucault, filósofo cujos textos foram alicerces para toda pesquisa. Além dos conceitos explorados, também foi necessário discutir e caracterizar os sujeitos portadores do transtorno bipolar, mas com a adoção de uma postura de suspensão acerca da verdade sobre a doença bipolar e da caracterização nosólogica que se aplica aos sujeitos portadores do transtorno. No que concerne às conclusões deste texto, verifica-se que, ao serem intimados a falar sobre si, os sujeitos bipolares inscrevem-se na ordem do discurso da razão, o discurso médico-psiquiátrico. Embora algumas marcas de subjetivação como forma de resistência possam ser encontradas nos depoimentos transcritos, percebe-se que existência dos discursos médicos/psiquiátricos sobre a bipolaridade, discursos esses repletos de poder coercitivo e vistos como discursos da razão, fazem com que a subjetivação opere com pouca liberdade e com menos resistência Lara | Vozes da desrazão – a subjetivação no discurso bipolar 61 nos discursos dos sujeitos inscritos e auto-inscritos como bipolares. FOUCAULT, M. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5.ed. São Paulo: Loyola, 1996. REFERÊNCIAS ALCANTARA et al. Avanços no diagnóstico do transtorno do humor bipolar. 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Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 050-061, jan./jun. 2015. 62 Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade... 63 O CINEMA E AS PRISÕES DA REALIDADE: REFLEXÕES SOBRE A MEMÓRIA A PARTIR DOS FILMES O SHOW DE TRUMAN, MATRIX E AMNÉSIA EL CINE Y LAS CÁRCELES DE LA REALIDAD: REFLEXIONES SOBRE LA MEMORIA Y LA VERDAD DE LAS PELÍCULAS EL SHOW DE TRUMAN, LA MATRIX E MEMENTO THE CINEMA AND PRISONS OF REALITY: REFLECTIONS ON MEMORY AND TRUTH FROM THE MOVIES THE TRUMAN SHOW, MATRIX AND MEMENTO Fábio Lúcio Zampieri * Gerson Wasen Fraga ** *Professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]. **Professor de História da Universidade Federal da Fronteira Sul. E-mail: [email protected]. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 062-074, jan./jun. 2015. 64 RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT RESUMO: Este artigo tem o objetivo de refletir sobre a construção da memória enquanto prisão do real como resultado acabado, mesmo sendo processo de uma análise subjetiva e fragmentada. Para a construção deste real, ou da verdade, as memórias e representações são tomadas como guias por seu efeito de realidade, mesmo relativizadas pelo seu tempo e espaço e sofrendo transformações e colaborações enquanto processo inacabado. Então, a memória e as representações operam de maneira mimética à presentificação de uma versão que já não está lá, nesta duplicidade que pode ser contada através do cinema. Neste trabalho são analisados três filmes que exploram o limite entre o real e o imaginário, onde as verdades dos protagonistas são substituídas por dúvidas e questionamentos. São eles: O Show de Truman, Matrix e Amnésia. A representação feita pelo cinema enquanto obra de arte opera em determinado grau de realidade, confirmando, negando, transformando, sobrepujando ou transfigurando o real. A busca de uma realidade que faça sentido ao personagem é o laço que, de certo modo, une este tipo de filme. A complexidade da nossa época e o grande número de versões para o mesmo fato acaba por dissimular a noção de verdade absoluta, condição tão reconfortante para o ser humano. O que é o bem e o mal, o certo e o errado quando os fatos apresentados podem ser manipulados? A resposta, talvez, seja identificar a fragilidade da realidade e adotar os valores universais para criar a construção da memória ao invés de (re)afirmar valores absolutos. PALAVRAS-CHAVE: Memória. Simulacros. Realidade. RESUMEN: Este trabajo tiene el objetivo de reflexionar sobre la construcción de la memoria mientras la cárcel de lo real como resultado acabado, a pesar de ser proceso de un análisis subjetivo y fragmentado. Para la construcción de este real, o da verdad, las memoria y representaciones se hacen como guías para su efecto de realidad, incluso en el contexto de su tiempo y espacio y sufriendo transformaciones y colaboraciones como proceso inacabado. Así, la memoria y las representaciones operan de manera mimética a la presentificación de una versión que ya no está allí, en esta duplicidad que puede ser contada a través de cine. En este trabajo se analizan tres películas que exploran los límites entre lo real y lo imaginario, donde las verdades de los protagonistas son reemplazadas por las dudas y preguntas. Ellos son: "El Show de Truman", "La Matrix" e "Memento". La representación hecha por lo cine como una obra de arte opera en un determinado grado de realidad, confirmando, negando, torneado, sobrepujando o transfigurando lo real. La búsqueda de una realidad que tiene sentido para el personaje es el vínculo que, en cierto modo, une a este tipo de película. La complejidad de nuestro tiempo y la gran cantidad de versiones del mismo hecho resulta de disimular la noción de verdad absoluta, condición tan reconfortante para los seres humanos. ¿Qué es el bien y el mal, lo correcto y lo incorrecto, cuando los hechos que se presentan pueden ser manipulados? La respuesta, tal vez, es la identificación de la fragilidad de la realidad y adoptar los valores universales para crear la construcción de la memoria en lugar de (re)afirmar los valores absolutos. PALABRAS CLAVE: Memoria. Simulacros. Realidad. ABSTRACT: This paper has the objective of reflecting upon the construction of memory as a prison of the real as finished result, despite being a subjective analysis and fragmented process. For the construction of this real, or the true, memories and representations are taken as guides for their reality effect, even relativized for their time and space, and suffering transformations and collaborations as unfinished processes. Thus, memory and representations operate in a manner that is mimetic to the presentification of a version that is no longer there, this duplicity that can be told through cinema. This work analyzes three films that explore the boundary between the real and the imaginary, where the truths of the protagonists are replaced by doubts and questions. They are: "The Truman Show", "Matrix" and "Memento". The representation made by the movies as a work of art operates at a certain degree of reality, confirming, denying, overturning, surpassing or transforming the real. The quest for a reality that makes sense to the character is the tie that, somehow, unites this type of film. The complexity of our time and the large number of versions of the same fact turns out to conceal the absolute notion of truth, so reassuring condition for human beings. What is good and evil, right and wrong when the facts presented can be manipulated? The answer, perhaps, is to identify the fragility of reality and adopt the universal values to create the construction of memory instead of (re)state absolute values. KEYWORDS: Memory. Simulacra. Reality. Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade... 65 1 INTRODUÇÃO A História, ciência do passado analisado a partir das questões do presente, estudo das ações humanas ao longo do tempo, instrumento que amálgama identidades coletivas, não é, com efeito, uma arte do intelecto que ofereça como resultado final construções mentais completas e acabadas, em que vislumbramos a totalidade de nosso objeto. Sujeita à subjetividade do historiador e aos contextos que o cercam, a narrativa histórica, qualquer que seja, se apresenta como fragmentária, obra condenada ao inacabado e passível de contraditório. Ainda que suas bases não sejam feitas de areia, não são igualmente imunes às alterações que ocorrem nas estruturas de poder constituídas pelos homens. Com estas frases iniciais não queremos defender aqui um relativismo absoluto. Não há como (ou não deveria haver como) negar, por exemplo, toda a carga de maldade intrínseca ao nazi-fascismo, a face assassina das ditaduras de cunho civil-militar na América Latina ou mesmo os efeitos do colonialismo europeu sobre o continente africano. Procurar elementos positivos em tais estruturas só pode ser entendido como ação destinada a lhes conferir legitimidade aos olhos de qualquer pessoa desprovida de senso de humanidade. Pretendemos antes iniciar alertando para o fato de que os elementos a partir dos quais reconstruímos o passado são maleáveis, sujeitos à alterações não apenas pela nossa vontade pessoal, mas também pelo desejo daqueles que, em uma fórmula orwelliana, controlam o presente para controlar o passado e, controlando o passado, controlam também o futuro. À História, assim, não cabe o papel de “mestra de vida”, pois, pela sua característica de produto humano, está constantemente a minitrar lições comprometidas com projetos e visões de mundo determinadas. Ainda assim, entre suas matérias-primas estão as memórias e as representações, elementos que operam como guias em sua constituição, uma vez que têm efeito de real, isto é, efeitos de verdade. Tais colocações iniciais nos apresentam o problema de como definir o termo “verdade” e o que é, em essência, a própria “verdade”, uma vez que os fatos, quando ocorrem, estão ligados exclusivamente ao seu tempo e seu espaço. À medida que as informações relativas a determinado "fato" são repassadas, são transformadas, ganhando a colaboração das vivências e noções éticas de quem as emite. Poderíamos aqui lembrar de Sabrina Loriga, que, ao analisar a reflexão histórica de Siegfried Kracauer, comenta: Em outros termos, o conteúdo do mundo histórico remete à vida em sua plenitude, como nós a vivemos comumente, dia após dia. Para afirmar seus direitos, a história precisa aceitar ser suspensa em um nível muito mais baixo que aqueles das ciências da natureza, da filosofia da história ou da arte. A história não visa as coisas últimas, mas as coisas penúltimas, aquelas que surgem antes das definitivas. Ela ocupa um espaço médio, híbrido, que toca a vida cotidiana, marcada por aquilo que é precário, indeterminado e mutável (LORIGA, 2006, p 134). Como possuem um aspecto mimético, a memória e as representações encontram uma ligação relativa com o passado, operando a presentificação de uma versão que já não está lá, fato acontecido, contado, representado. É nestas presentificações que reside a duplicidade de, ao mesmo tempo, ser e não ser da verdade contada através do cinema. Walter Benjamin, citando Paul Valéry, caracterizou assim a reprodutividade técnica: Tal como a água, o gás e a energia elétrica, vindos de longe através de um gesto quase imperceptível, chegam a nossas casas para nos servir, assim também teremos ao nosso dispor imagens ou sucessões de sons que surgem por um pequeno gesto, quase um sinal, para depois, do mesmo modo, nos abandonarem (BENJAMIN, 1992 [1955], p 76). Neste texto serão analisados três filmes que se apoiam em alguns pilares da filosofia moderna, explorando os limites entre o real e o imaginário, onde os personagens não têm certeza da realidade de suas vidas e suas verdades são substituídas por dúvidas e questionamentos. Estes filmes foram escolhidos pelo modo como a realidade mostrada é alterada para e pelo personagem. Iniciamos com uma representação física de realidade no filme O Show de Truman. Passaremos depois para as representações mentais artificiais de Matrix para, enfim, chegarmos às representações da realidade do próprio personagem em Amnésia. Antes, porém, teceremos algumas breves considerações a respeito de nosso objeto maior neste estudo: o cinema enquanto obra de arte e reflexão. 2 O CINEMA COMO OBJETO DE REFLEXÃO O cinema enquanto obra de arte e objeto de reflexão apresenta características específicas em sua relação com o observador que o diferenciam de outras formas de representação da realidade. Ainda quando tratamos de obras de cunho documental, alheias a maiores pretensões ficcionais, temos na totalidade do filme o resultado de escolhas e recortes operados pelos diretores, em uma seleção deliberada do que é Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade... 66 apresentado ao final. De semelhante modo, as narrativas que buscam abertamente a reprodução de fatos históricos ou que meramente situam sua narrativa no passado demandam um posicionamento dos condutores do filme em relação ao tempo e ao espaço reproduzido. Há aqui uma nítida aproximação com o fazer da História, na medida em que o resultado final do trabalho é perpassado pelos interesses e visões de mundo daquele que guia a narrativa. Narrativa esta que estabelece com o público uma relação entre o real – ou algo que possua traços do real 1 – e o senso comum a respeito de determinado tempo e/ou espaço 2. Sobre isso, alerta-nos Rafael Quinsani: Os sentidos do observador são suspensos, como se estivessem fora do tempo e do espaço, atribuindo-lhes um grau de imaterialidade que preenche todos os espaços de quem se dispõe a aceitar este jogo, esta experiência. A projeção de um filme não tem uma localização física e permanente, ela não desenvolve uma cristalização afetiva do objeto, pois no seu ato de exibição ela se apresenta impalpável, fugaz, desmaterializada. São justamente estas duas categorias, tempo e espaço, que estabelecem um ponto chave na reflexão sobre a imagem cinematográfica e suas relações sobre as implicações destes elementos para a história. Tal imagem internaliza o duplo dentro de si mesma e expressa a soma dos campos mentais e materiais, as quais revalorizam ou pioram a realidade que é exposta. Realidade que se tenta capturar ao máximo possível com a arte realista, onde a imagem objetiva tenta ressuscitar nela as qualidades da imagem mental (QUINSANI, 2009, p 38). Assim, este simulacro de realidade proposto pelo cinema não abarca a ideia de “reprodução” do real, uma vez que esta ideia, em termos artísticos, demanda por 1 Pensemos aqui, a título de exemplo, nas despretensiosas e normalmente enfadonhas “comédias pastelão” estadunidenses (como os filmes da série Todo Mundo em Pânico), ou ainda nos filmes que se passam em um universo paralelo, como Senhor dos Anéis, Star Wars ou Harry Potter. Ainda que seus personagens vivam situações absolutamente absurdas, transitem por universos paralelos ou possuam eles próprios uma forma física ou materialidade diversa de tudo o que conhecemos ou concebemos, estas devem fazer algum tipo de sentido para quem assiste o filme, sob pena de não serem efetivamente compreendidas e/ou dotadas de significado. vezes atingir um grau de perfeição tão grande que somente se distingue de suas cópias (falsificações) através de exames para determinar a data em que foi produzida (época e local). Walter Benjamin (1992 [1955]) determina que mesmo na representação mais perfeita falta uma coisa, o aqui e agora da obra, sua alma. A existência da obra – e portanto, do real – é única em relação ao lugar em que foi feita e o motivo porque foi concebida. 3 O cinema enquanto obra de arte opera, antes, uma representação em determinado grau da realidade. As representações podem confirmar, negar, transformar, sobrepujar ou transfigurar o real. Com isso modificam a definição de realidade criando ou reconstituindo seu sentido, causando uma ilusão de espírito. De certo modo, é isso que Baldrillard infere: Quando o real já não é o que era, a nostalgia assume todo o seu sentido. Sobrevalorização dos mitos de origem e dos signos de realidade. Sobrevalorização de verdade, de objectividade e de autenticidade de segundo plano. Escalada do verdadeiro, do vivido, ressurreição do figurativo onde o objecto e a substância desaparecem. Produção desenfreada de real e de referencial, paralela e superior ao desenfreamento da produção material: assim surge a simulação na fase que nos interessa – uma estratégia de real, de neoreal e de hiper-real, que faz por todo o lado a dobragem de uma estratégia de dissuasão (BAUDRILLARD, 1981, p 14). A reprodutividade técnica, condição típica da sociedade industrial, nos mostra assim o seu efeito de real, colocando-se no lugar deste para transmitir um conceito, uma ideia. Trabalha assim sobre uma base que o público receptor da mensagem traz consigo, formada por elementos tais como seu campo de experiências, suas visões de mundo, sua bagagem cultural e mesmo sua memória. Esta começa no insurgentes “nativos”) é muitas vezes visto rosnando para o herói e a loira ocidentais cativos (mas imbuídos de integridade): 'Os meus homens vão matá-lo, mas... eles gostam de se divertir antes'. Enquanto fala, ele olha sugestivamente de soslaio, como o sheik de Valentino. Nos documentários e nos noticiários, o árabe é sempre mostrado em grandes números. Nada de individualidade, nem de características ou experiências pessoais. A maioria das imagens representa fúria e desgraça de massas, ou gestos irracionais (por isso, irremediavelmente excêntricos). Espreitando por trás de todas essas imagens está a ameaça da jihad. Consequência: o medo de que os muçulmanos (ou árabes) tomem conta do mundo”. (SAID, 2010, p. 383). 2 Vale lembrarmos aqui das palavras de Edward Said, a respeito das representações sobre os árabes no cinema estadunidense e nos programas de TV do ocidente: “Nos filmes e na televisão, o árabe é associado com a libidinagem ou com a desonestidade sanguinária. Ele aparece como um degenerado excessivamente sexuado, capaz de intrigas inteligentemente tortuosas, é verdade, mas essencialmente sádicas, traiçoeiras, baixas. Traficante de escravos, cameleiro, cambista, um patife pitoresco: esses são alguns dos papeis tradicionais do árabe no cinema. O líder árabe (de saqueadores, piratas, 3 Voltando novamente aos filmes de caráter documental, podemos lembrar que sua materialidade não se encontra na imagem reproduzida, mas sim no momento de sua captura. Outro elemento que afasta os documentários do plano real está na disposição das imagens, uma vez que o trabalho de edição cola temporalidades diversas, operando por vezes um jogo de idas e vindas temporais que constroem sua narrativa, mas que evidentemente não corresponde à temporalidade da vida real. Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade... 67 individual, depois incorpora como sua a memória social, como a história dos seus semelhantes. Quem lembra determinado fato é o indivíduo, mas a memória deste indivíduo se relaciona com outras memórias presentes no seu meio. Comumente, as pessoas lembram fatos ocorridos na infância que foram passados pelos seus pais, lembram "verdades" que contaram para elas e as incorporam a suas próprias lembranças, criando assim novas memórias. 4 Observamos, desta forma, que a nossa percepção acerca do real pode ser transformada por fatores externos, posto que a memória é criada, contada e repassada de diversas maneiras, alterandose na medida em que é transmitida. O cinema, dentro de tais operações, nasce com a intenção de simular o extraordinário, além de mostrar cenas “reais” e cotidianas, constituindo-se assim em mais um elemento nesta constante recriação, abordando de forma lúdica vários temas comuns ao ser humano, como seus medos e aspirações. Mas se o simulacro, enquanto processo de simulação, torna-se cada vez mais verdadeiro ao ponto de apresentar-se como o real, não seria também o revés parte do dispositivo de real? Segundo Baldrillard (1981), a ameaça da simulação está em volatizar os signos do real, criando uma histeria de produção e da reprodução do real como forma de mercadoria. O filme a seguir faz, de certo modo, uma inversão do sistema panóptico da TV que não é apenas vista, mas também vigia, exercendo o controle social do indivíduo/protagonista. 2.1 No mundo falso a verdade vira show: estrelando Tuman Burbank como ele mesmo O Show de Truman (The Truman Show, Estados Unidos, 1998) foi dirigido por Peter Weir, tendo Jim Carrey no papel principal: o personagem Truman Burbank. Nascido de uma gravidez indesejada, Truman foi escolhido e adotado por uma rede de TV a cabo para estrelar um reality show extremo, tendo sua existência transmitida desde seu nascimento 24 horas por dia. No início sua vida é transmitida de modo tradicional, mas na medida em que o personagem cresce, também cresce a estrutura que o cerca, aprisionando-o em um gigantesco cenário cheio de câmeras, onde a sociedade 4 Jacques Le Goff nos aponta para os fatores que envolvem a construção da memória individual (e também do esquecimento), bem como para o fato de que a memória coletiva se faz objeto das disputas políticas. Segundo ele, “os psicanalistas e psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento [...], nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo, a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes era inteiramente composta por atores contratados – sua mulher, seu melhor amigo, todos –, com a missão de tornar a vida de Truman semelhante ao “real”, embora em um mundo idealizado. A ideia é transmitida ainda no início do filme, através do personagem Christof (Ed Harris) 5 , diretor do Show de Truman: Já estão cansados de atores com emoções falsas? Cansados de pirotecnia e efeitos especiais? Embora o mundo em que habita seja, de certa forma, hipócrita, Truman não tem nada de falso. Não tem roteiros nem deixas. Não é sempre um Shakespeare, mas é genuíno, é uma vida. (Fala do filme O Show de Truman) Figura 1 -"Trumania" a cidade de Truman. Fonte: Divulgação. Figura 2 - Retrato de Truman feito com o mosaico de suas imagens passadas. Fonte: Divulgação. No mundo de Truman tudo que o cerca é artificial: os cenários, as condições meteorológicas, até os carros são sempre os mesmos – com a missão de passear na cidade para dar a impressão que a vida segue seu rumo normalmente. As ruas, os vizinhos, as bancas de jornal, são todos simulacros especialmente criados para conferir verossimilhança ao seu mundo. Até seus traumas de infância são planejados para que nunca deixe sua cidade. Nas companhias de viagens existem cartazes explicando como o mundo lá fora é perigoso, como as cidades são violentas e quantos acidentes acontecem aos viajantes. Truman está assim preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva”. (LE GOFF, 2010, p 422). 5 Note-se a aproximação do nome do personagem Truman com a expressão True Man (Homem de verdade, homem verdadeiro). A aproximação de Christof com Christ (Cristo) não apenas é evidente, como ainda “resplandece” na cena final. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 062-074, jan./jun. 2015. 68 condenado a viver, sem que o saiba, em um simulacro de realidade. Mas, o mundo falso de Truman começa a desmoronar quando um incidente acontece: uma luminária despenca do “céu”. O personagem olha e não vê nada, nem avião, nem helicóptero, nem pássaros, nada. A partir deste pequeno ocorrido, Truman passa a prestar atenção a sua volta, buscando pistas que comprovem ou desmintam sua percepção de realidade. Inicia então o questionamento de sua vida perfeita e do quão real são os fatos que estão acontecendo. Embora o personagem esteja perto da verdade, o criador do show, Christof, parece não se preocupar, e comenta em uma entrevista para a TV: Repórter: Christof, quero perguntar porquê acha que Truman nunca chegou perto de descobrir a natureza real do seu mundo até agora? Christof: Aceitamos a realidade do mundo no qual estamos presentes. É muito simples. (Diálogo do filme O Show de Truman) relações entre o fetichismo da mercadoria e o “mundo real”. Quando Truman começa a procurar insistentemente pelas verdades atrás das coincidências, o mundo que antes parecia ser tão real e antisséptico começa a mudar, ficando hostil. Sua mulher acaba indo embora dizendo que não aguenta mais trabalhar sob condições tão estressantes; os caminhos que levariam para fora da cidade passam a ser misteriosamente fechados, e mesmo em seu trabalho, uma misteriosa nova colega surge, com o objetivo de seduzi-lo e fazer assim com que desista de seu intento de investigar a natureza do mundo que o cerca. Truman acaba por concluir que está cativo e faz o possível para fugir, conseguindo por fim enganar a vigilância das câmeras. Após ser procurando por todos os atores e figurantes de Trumania, o criador do programa de TV, Christof, acaba por encontrá-lo em um pequeno barco no mar artificial do grande cenário em que se passa o programa. Inicia-se então uma luta desigual entre Christof e Truman, em que o primeiro comanda as “forças da natureza” contra o barco, até este naufragar. Neste ponto, Truman fala diretamente com Christof, que, em uma cena de profunda influência religiosa, responde através de uma voz que emana das nuvens: Truman: Quem é você? . Figura 3 -Truman controlado. Fonte: Divulgação Christof: Sou o criador do show de televisão que dá esperança, alegria e inspiração a milhões de pessoas. Truman: Então, quem sou eu? Christof: Você é o astro. Truman: Então nada foi real? Christof: Você era real. Por isso gostam de assisti-lo. Ouça Truman, lá fora a verdade é igual a do mundo que criei para você. As mesmas mentiras. As mesmas decepções. Mas no meu mundo você não tem nada a temer. Nem você se conhece tão bem quanto eu. Truman: - Nunca teve uma câmera na minha cabeça. Christof: - Está com medo de partir. Figura 4 - No ar. Fonte: Divulgação. Truman nasceu e cresceu em um mundo "controlado", feito para ele. A realidade do personagem é aquela na qual ele vive, então suas expectativas, mesmo que de consumo, são condicionadas como respostas ao seu meio. Sua esposa, ao retornar das compras no mercado de “Trumania”, vira-se para as câmeras escondidas, destacando em sua fala as virtudes dos produtos consumidos no programa (uma das tantas “esquisitices” notadas pelo protagonista), em uma ação de merchandising que nos faz refletir sobre as possíveis (Diálogo do filme O Show de Truman) Então, Truman despede-se de sua audiência e vai embora. Os telespectadores vibram, felizes, e depois de algum tempo mudam de canal, continuando a ver TV. Truman vai viver sua vida anônima, fazer escolhas, ter a ilusão que sua vida não é controlada por nada e que pode fazer o que desejar, pois, como o personagem mesmo afirmou, não havia uma câmera em sua cabeça. Mas, e se a noção de realidade que o personagem tem fosse manipulada diretamente em seu cérebro? Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade... 69 seres humanos anestesiados enquanto fornecem energia para o sistema. O mundo é uma simulação eletrônica, uma realidade programada que nos transforma em prisioneiros desta ficção. Figura 5 - Truman acha o fim de seu mundo. Fonte: Divulgação. Figura 7 - Código Fonte da Matrix. Fonte: Divulgação. . Figura 6 - Truman despede-se de seu público. Fonte: Divulgação 2.2 Matrix: a tecnologia como meio pelo qual se manipulam as percepções Figura 8 - Neo enxergando a "realidade" da Matrix. Fonte: Divulgação. Matrix (Matrix, Estados Unidos/Austrália, 1999), foi dirigido pelos irmãos Lana e Andrew Wachowski, tendo Keanu Reeves no papel do protagonista Neo, um hacker que também trabalha como programador de computadores. Além destas atividades, Neo dedica parte de seu tempo a encontrar um misterioso hacker do qual pouco se sabe além de seu codinome: Morpheus. Para surpresa de Neo, é Morpheus quem o encontra, fazendo-lhe uma revelação desconcertante: tudo o que conhecemos como real é, na verdade, uma ilusão, um mundo de sonhos comandados por uma gigantesca máquina chamada “Matrix” que tira sua energia dos seres humanos enquanto os cultiva adormecidos. A obra se constitui em uma trilogia (1999, 2002 e 2003) com fortes elementos filosóficos e religiosos, mas também da cultura pop (há jogos de computador, animações e histórias em quadrinhos que se inserem na narrativa da trilogia). Se a manutenção da verdade é consequência de um imaginário coletivo, sua filtragem pode ser extremamente manipulada. Este é o mote pelo qual vivem os personagens de Matrix. A descoberta pelo protagonista Neo de sua condição representa o seu nascimento para a vida real, tal qual Alice no País das Maravilhas, quando é tragado pelo espelho que o leva à realidade. Não é fácil para o personagem ter que lidar com a descoberta de uma realidade fora dos padrões a que estava acostumado. Outros personagens, porém, estão tão ligados ao seu “eu virtual” que fazem de tudo para permanecer ou voltar para dentro da Matrix. Assim, quando o protagonista é levado a bordo da nave de Morpheus, é tratado de forma a se habituar com a nova realidade: No filme Matrix as verdades são modificadas diretamente no cérebro dos personagens, criando simulações oníricas, ao contrário do filme O Show de Truman, em que o simulacro era produzido em um lugar construído especificamente para este fim. A prisão aqui está no cérebro de cada um, sendo a realidade alterada pela maneira com que captam os sinais do ambiente virtual. Assim, Matrix propõe uma realidade construída artificialmente, mantendo os Neo: - Por que meus olhos doem tanto? Morpheus: - Você nunca os abriu antes! (Diálogo do filme Matrix) Este pequeno diálogo entre os personagens coloca-nos frente às interpretações pré-definidas às quais estamos expostos em nossas vidas cotidianas, que nos fazem olhar uma cena diversas vezes e não ver o sentido para o qual ela foi criada. Da mesma forma, podemos também assistir a um noticiário sem entender o motivo pelo qual sua vinculação foi Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 062-074, jan./jun. 2015. 70 necessária ou quais interesses estão atrelados a sua exibição. Em um mundo onde o consumo desenfreado, a ostentação e o culto à beleza ditam as normas sociais, diversas são as “Matrix” às quais nos ligamos insensivelmente, procurando fugir da realidade enquanto vivemos em um mundo de sonhos. Depois de passar por uma recuperação corporal, dado o tempo em que permaneceu servindo como fonte de energia para os computadores, Neo é levado para um mundo virtual que a resistência utiliza para treinamentos. Nele, Neo fala com Morpheus: Neo: - Estamos em um programa de computador? Morpheus: - Acha mesmo difícil de acreditar? [...] Neo: - Isto não é real? (apontando para um sofá). Morpheus: - O que é real? Como você define o real? Se está falando do que consegue sentir, cheirar, provar e ver, então "real" são simplesmente sinais elétricos interpretados pelo cérebro. (Diálogo do filme Matrix) Os nossos sentidos nos determinam o que é realidade e o que não é, mas é nosso cérebro que interpreta estes sinais captados. Contudo, esta interpretação depende de fatores subjetivos a cada um. É corriqueiro duas pessoas que tiveram uma experiência em comum contarem diferentemente o ocorrido, sendo que nenhuma delas está faltando com a verdade; as pessoas simplesmente interpretam diferentemente os fatos de suas vidas. Igualmente comum é as pessoas utilizarem as memórias de seus semelhantes para se recordarem de eventos ocorridos, assimilando-as ao fim como se suas fossem. Neste caso, elas reproduzem discursos/interpretações vividos por terceiros até que estes fatos comecem a fazer parte de sua história pessoal. No momento em que todos os fatos acontecem em sua mente a realidade pode ser torcida e estendida até outros níveis. Então, em nossa vida, é nossa percepção de realidade que torna as coisas do modo que são para nós. Como no diálogo seguinte, envolvendo outras personagens do filme: O filme estabelece uma crítica ao mundo de representações em que vivemos, onde estas por vezes colocam-se no lugar de uma ideia ou objeto com uma força muito maior que os objetos ou ideias reais em si. A manutenção do controle realizada pela Matrix é conduzida pelos agentes que podem estar em qualquer lugar e se incorporar em qualquer pessoa, uma vez que todas as pessoas estão inseridas na Matrix, servindolhe como fonte de energia e vivendo as ilusões por ela geradas, em uma simulação mais real do que a própria realidade. Mas mesmo sendo prisioneiros de um sonho, os personagens de Matrix possuem a capacidade de reter a linha de tempo referente a cada um de seus atos. Suas ações são contextualizadas e inseridas na realidade que estão sonhando. Mas, e se assim não fosse? 2.3 Amnésia: a construção permanente da verdade O filme Amnésia (Memento, Estados Unidos, 2000) do diretor Christopher Nolan foi baseado no conto Memento Mori de seu irmão, Jonathan Nolan. Neste filme, o personagem Leonard Shelby (Guy Pearce), após ser atacado por um assaltante, perde sua esposa, assim como a capacidade de lembrar acontecimentos recentes. Nesta trama, o personagem está fadado a viver com as lembranças que ocorreram antes de sua tragédia pessoal, buscando a vingança a qualquer preço. Até aí o filme é comum, semelhante a todos os outros do mesmo gênero. Mas como o personagem não consegue guardar as coisas por mais de alguns minutos, está sempre preso ao imediato. Suas lembranças do passado são o agora, seu presente. Para registrar suas memórias e conseguir vingar a morte de sua esposa, impõe a si mesmo uma árdua disciplina de registrar os fatos que julga importantes para resolver o caso, tatuando-se, fotografando com uma máquina Polaroid e escrevendo em pedaços de papel. Através deste sistema pensa manter o continuum do tempo e fixar a ordem dos fatos. Mouse: Sabe o que isso me lembra? Trigo gostoso. Você já comeu trigo gostoso? Switch: Não, mas tecnicamente nem você. Mouse: Mas é isso que falo. Exatamente. Porque você se pergunta: como as máquinas sabiam qual era o sabor do trigo gostoso? Elas podem ter errado. Talvez o trigo gostoso tivesse gosto de aveia ou de atum. Você fica se perguntando, frango, por exemplo, talvez elas não soubessem o gosto de frango. Por isso talvez o frango tenha qualquer gosto. E talvez elas... Apoc: Cale-se! (Diálogo do filme Matrix) Figura 9 - Foto destruída, realidade alterada. Fonte: Divulgação. Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade... 71 sentindo-se obrigado a guardar suas memórias em anotações. Teddy: Não pode confiar a vida de um homem a fotos e notas. Leonard: Por que não? Teddy: Elas podem não ser confiáveis. Leonard: A memória não é confiável. Teddy: Ora vamos... Figura 10 - Nota para si, condicionando-se a lembrar. Fonte: Divulgação. O enredo de Amnésia estrutura-se em duas linhas cronológicas distintas, uma respeitando e outra rompendo com a linearidade do tempo, aproximandose assim da percepção do protagonista e desconstruindo o sentido do tempo diretamente ou em flashbacks. Este modo de mostrar a história reconstrói a narrativa, buscando nas próximas cenas o sentido das anteriores e fazendo a história ser contada do fim para o início. Nas primeiras cenas, vemos uma foto Polaroid de um cadáver que vai ficando cada vez menos nítida, até tornar-se totalmente borrada. Percebe-se então que o protagonista assassinou uma pessoa e o filme está voltando no tempo e mostrando o que o personagem já esqueceu. Figura 11 - Registro em um pedaço de papel, pista? Fonte: Divulgação. Leonard: Sério, a memória não é perfeita. Nem é boa. Pergunte à polícia. Depoimento de testemunha ocular não é confiável. Tiras não apontam assassinos lembrando coisas. Coletam fatos. Fazem anotações e tiram conclusões. Fatos, não lembranças. É como eu investigava. A memória muda o formato de um quarto, a cor de um carro. Lembranças podem ser distorcidas. São só uma interpretação, não um registro. E são irrelevantes se você tem os fatos. (Diálogo do Filme Amnésia) A verdade presente nas ações do protagonista referese a sua percepção do que seja correto. Seus erros podem ser apagados simplesmente queimando a fotografia Polaroid ou escrevendo outra versão para um fato. Ou simplesmente omitindo o caso por completo ao não tomar uma nota. Neste sentido, a verdade torna-se tangível ao esquecimento, podendo ser eternizada – por uma tatuagem –, passageira, como um texto escrito, ou somente sendo lembrada como uma imagem em uma foto. Em outras palavras, a verdade é resumida ao ocorrido sem o fator tempo; não existindo tempo não existem restrições, não existem referências de realidade. Como Leonard está incapacitado de lembrar seus atos, sua conduta, boa ou ruim, é incapaz de dar sentido àquilo que fizera por não ter memória, sendo impelido a lembrar dos fatos que acredita explicarem, ou estar o mais próximo possível da verdade. Mas o que é verdade? Durante o filme um diálogo entre o protagonista e o personagem Teddy estabelece: Leonard: - Você me fez matar o cara errado. Teddy: - Não! Leonard: - Ele sabia do Sammy! Porque eu contaria pra ele? Figura 12 - Anotação em seu corpo, memória guardada para sempre. Fonte: Divulgação. Amnésia trata de um homem que busca encontrar sentido em suas ações. Leonard não está ensandecido, somente perdeu a noção de tempo, preso ao imediato. Seu atos não têm consequências, seu passado não justifica o seu presente nem seu presente o futuro, Teddy: - Você conta a todos sobre Sammy. Todos os que ouvem. "Lembra-se do Sammy? Lembra-se do Sammy Jankis?". E a história fica melhor a cada vez que conta. Mente para você mesmo pra ser feliz. Tudo bem. Todos fazemos isso. E daí que há detalhes que prefere não lembrar? Leonard: - Que diabos está dizendo? Teddy: - Não sei. Sua esposa sobrevivendo ao ataque. Não acreditando no seu distúrbio. O tormento... Dor e angústia consumindo-a por dentro. A insulina. Leonard: - Esse é o Sammy, não eu. Contei sobre o Sammy. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 062-074, jan./jun. 2015. 72 Teddy: - Sim, como conta a você mesmo repetidas vezes. "Condicionando-se a lembrar" "Aprendendo por repetição". Leonard: - Sammy deixou sua esposa se matar e foi internado. Teddy: - Sammy era um trapaceiro, um impostor. Leonard: - Nunca falei que estava fingindo. Teddy: - Você mostrou que ele era uma fraude. Leonard: - Eu me enganei, esta é toda a questão. A esposa de Sammy me procurou. Teddy: - Sammy não tinha esposa. Era a sua esposa que tinha diabetes. Leonard: - Minha esposa não era diabética! Teddy: - Tem certeza? Leonard: - Minha esposa não era diabética. Acha que não conheço minha própria esposa? Teddy: - Só posso fazê-lo se lembrar do que quer que seja verdade. Como o velho Jimmy. Leonard: - Ele não era o cara certo! Teddy: - Pra você ele era. Teve sua vingança. Aproveite enquanto lembra. Que diferença faz se é ou não ele? Leonard: - Faz toda a diferença. Teddy: - Porquê? Nunca vai saber. Leonard: - Vou sim. Vou sim. De algum modo vou saber. Teddy: - Não vai se lembrar! Leonard: - Quando acabar vai ser diferente. Teddy: - Achei que sim, mas não se lembrou! Isso mesmo. Ajudei-o a encontrar o verdadeiro John G. um ano atrás. Ele já está morto. Leonard: - Não minta pra mim! Teddy: - Ouça Lenny. Fui o tira incumbido do caso da sua esposa. Acreditei em você. Achei que merecia uma chance de se vingar. Ajudei-o a achar o outro cara no seu banheiro aquela noite. O que queimou sua cabeça e estuprou sua mulher. Nós o encontramos. Você não se lembrou. Então ajudei você a recomeçar a procurar o cara que você já tinha matado. [...] Teddy: - Você não quer a verdade. Cria sua própria verdade. Como seu arquivo policial. Estava completo quando te dei. Quem arrancou 12 páginas? Leonard: - Você? Teddy: - Não. Veja, foi você! Leonard: - Porque eu faria isso? Teddy: - Para criar um enigma insolúvel. (Diálogo do filme Amnésia) A verdade, para este personagem, é idealizada sob as circunstâncias que o levam a realizar os atos. Assim, fica latente a sua tentativa de criar uma memória e, através dela, justificar suas ações. Da mesma forma que o personagem, estamos eternamente construindo nossas memórias, fazendo interpretações dos fatos históricos para que com isso possamos criar nossa expectativa de futuro, sempre sob a ótica do tempo presente. Segundo Côrtes (2005) “o passado é reinterpretado constantemente pelo presente que, por sua vez, se reordena a cada atualização do ontem e reelabora novas projeções de futuro que, mais uma vez, reforçam (ou não) a necessidade de outras visões da História". Figura 13 - Fotos Polaroid, para lembrar-se das pessoas. Fonte: Divulgação. Figura 14 - Trocadilho entre o nome do filme em Inglês e a frase "some memories are best forgotten". Fonte: Divulgação. A relação entre a verdade do personagem e o passado é limitada ao que ele consegue carregar consigo e em seu próprio corpo como memória. Como sua memória é baseada em seus próprios registros, sua "verdade" fica anexada a eles, como o personagem narra no início do filme: É preciso ser organizado para a coisa funcionar. Você aprende a confiar no que escreve. Torna-se importante na sua vida. Escreve notas para você mesmo. Onde as põe também é importante. Precisa de jaquetas com seis bolsos. Bolsos especiais para cada coisa. Você aprende onde as coisas vão e como o sistema funciona. E cuidado, não deixe os outros escreverem por você. Coisas sem sentido ou que o deixem perdido. Não sei o que leva alguém a tirar proveito de alguém neste estado. Se você tem uma informação que é vital, a resposta pode ser escrever no corpo ao invés de no papel. Um modo permanente de tomar nota. (Fala do filme Amnésia) Com isso, Leonard fica obrigado a sempre interpretar seus registros à luz dos últimos acontecimentos, perdendo a linha temporal que leva ao desenrolar de cada fato, terminando por questionar não as suas verdades, mas a existência do mundo fora de sua mente. O personagem nesta hora tem a noção de que o mundo percebido por ele é único, o que fica expresso em seu último pensamento no filme. Preciso acreditar em um mundo fora de minha mente. Em que minhas ações ainda têm significado. Mesmo que eu não me lembre delas. Preciso acreditar que ao fechar os olhos, o mundo continua aqui. Acredito que o mundo continua aqui? Continua a existir? Sim! Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade... 73 Todos precisam de espelhos para se lembrar de quem são. Não sou diferente... Onde eu estava mesmo? (Fala do filme Amnésia) 3 CONCLUSÃO Se a percepção do real oscila de acordo definições pessoais de cada um, de acordo filtros utilizados para perceber a realidade e, impelida pela memória, depende-se dela encaminhamento das ações futuras. com as com os ainda, é para o A noção de verdade está ligada intimamente à de realidade que é própria de cada ser humano. A verdade do personagem Truman era a de seu mundo, que fora planejado para ele, até o momento que percebera que se tratava de uma prisão. Do mesmo modo os personagens de Matrix estavam condicionados a uma realidade onírica, definida por filtros que eram programados por máquinas. Já o personagem de Leonard, em Amnésia, estava vinculado unicamente a sua noção de realidade, sua interpretação do real. Como não conseguia se lembrar do que havia feito, utilizava outras maneiras de passar adiante sua memória, sua versão da história. Todos os personagens que foram apresentados neste texto buscam a verdade, queriam entender sua realidade, em uma indagação comum de todos os seres humanos pela memória, por sua própria história e por sua identidade. A realidade de Truman, até sua libertação, era uma prisão montada para o personagem não saber o que acontecia, criada, como disse o personagem Christof, "para a diversão de milhares de pessoas". A prisão de Matrix era sua realidade virtual criada para manter os seres humanos dormindo, enquanto produziam energia para as máquinas. Em Amnésia, Leonard era aprisionado por sua perda de memória recente, não sentindo o tempo passar, o que o levava a ser manipulado por outras pessoas. No filme O Show de Truman, o personagem que até então acreditava que sua vida representava a realidade descobriu que ela não passava de uma criação de um diretor de TV. Será que por ser criada a realidade é menos verdadeira? Não serão todas as realidades criadas a partir de determinadas ideias? Então como saber qual a “verdade real”. Pesavento (1999, p.11) diz: "[...] o historiador que trabalha com um tempo que 'corre' por fora da experiência do vivido, vai representar o já representado, re-imaginar o já imaginado. Nesta medida, imagens e textos são - para ele - fontes sobre as quais vai colocar suas questões". Podemos utilizar então as representações que encontramos como guias de um imaginário coletivo, que talvez não corresponda a uma verdade absoluta, mas nos dê uma direção a seguir. O laço que une estes filmes é o fundo temático da necessidade existente em cada personagem de buscar uma realidade que lhe faça sentido. O número crescente de filmes produzidos a partir desta matriz nos faz pensar como nossa sociedade atual está fragilizada. Nossa época é muito complexa e a noção de realidade pode ser facilmente perdida. Vivemos em um mundo em que a reprodutibilidade atingiu um alto grau e em que os objetos, as ideias, os conceitos podem ser tirados do seu contexto, torcidos, esticados, manipulados para determinados fins. Diante disto, podemos pensar que só nos resta fazer como os protagonistas dos filmes aqui analisados, ou seja, construir uma verdade que possamos aceitar, seja ela qual for, o que nos aproximaria também da definição saramaguiana de cegueira (“somos cegos que vendo, não veem”). Ou, em contrapartida, tomar a crítica da fragilização da realidade como um motivo para fincarmos pé em valores universais (ou que deveriam ostentar tal status), tais como o respeito aos Direitos Humanos, à diversidade, à democracia verdadeiramente participativa ou ainda à manutenção da vida sobre os interesses do capital. (Re)afirmar tais valores como absolutos exigiria, assim, um exercício permanente de não relativização da realidade, mas também de construção, em nossa história e em nossa memória, de parâmetros e signos capazes de nos guiar por tal caminho. REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Lisboa: Relógio D'água, 1981. simulações. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica - sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’Água, 1992. CÔRTES, Norma. (acessado em 10/03/05). Amnésia, O Tempo como Construção http://www.espacoacademico.com.br/022/22ccortes.h tm, 2005). LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 2010. 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Estados Unidos/Austrália, 1999, 136 min. O SHOW DE TRUMAN (THE TRUMAN SHOW). Dir: Peter Weir. Distribuição: Paramount Pictures. Estados Unidos, 1998, 113 min. Zampieri e Fraga | O cinema e as prisões da realidade... 76 ESCOLA PARA MENINOS: O DISCURSO ANDROCÊNTRICO NO LIVRO DIDÁTICO ESCUELA PARA NIÑOS: EL DISCURSO ANDROCÉNTRICO EN LIBROS DE TEXTO SCHOOL FOR BOYS: THE ANDROCENTRIC DISCOURSE IN TEXTBOOKS Susie Silvana Barboza Moreira ∗ Atilio Butturi Junior ∗∗ ∗ E s p e c i a l i s t a s e m T e o r i a s L i n gu í s t i c a s C o n t e m p o r â n e a s ( U F F S ) . P r o f e s s o r a d o E n s i n o M é d i o d a R e d e E s t a d u a l d e E n s i n o d o R i o G r a n d e d o S u l . E - m a i l : su s i e m o r e i r a@ h o t m a i l . c o m . ∗∗ D o c e n t e d o P r o g r a m a d e P ó s - G r ad u a ç ã o e m L i n g u í s t i c a d a U F S C e do P r o g r a m a d e P ó s - G r a d u a ç ã o I n t e r d i s c i p l i n a r e m C i ê n c i a s H u m a n a s d a U F F S. E - m a i l : a t i l i o . b u t tu r i@ u f s c . b r Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático 77 RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT RESUMO: Este artigo busca discutir e problematizar algumas questões relacionadas ao gênero e à sexualidade presentes em livros didáticos de Língua Portuguesa. A metodologia será dividida em duas etapas; a teórica, que tem como pilar a construção discursiva da sexualidade e do sujeito na visão de Foucault; e a analítica, que observa as regularidades discursivas sobre gênero presentes no corpus composto por três livros didáticos de Língua Portuguesa, 6º anos, disponibilizados pelo PNLD, 2014, às escolas públicas do Ensino Fundamental. Após os estudos, constatou-se que a discriminação de gênero está fortemente presente em duas das obras analisadas e somente um dos livros descritos apresenta alguma reflexão sobre a discriminação de gênero e o machismo demonstrado algum cuidado em não haver predomínio do masculino sobre o feminino nas imagens e texto utilizados. Em todas as obras examinadas há um total silenciamento sobre a homossexualidade e constituições familiares diferentes da heteronormatividade. Conclui-se que os livros didáticos apresentam uma regularidade discursiva acerca do androcentrismo, da heteronormatividade e uso de linguagem sexista. PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Gênero. Livro didático. RESUMEN: Este artículo tiene como objetivo discutir algunas cuestiones relacionadas con el género y la sexualidad presentes en los libros de enseñanza de la lengua portuguesa. La metodología se divide en dos etapas; el teórico, segundo la construcción de la sexualidad y el tema en vista de Foucault, y el análisis, la observación de las regularidades de género discursivo presente en tres libros enseñanza de la lengua portuguesa, disponibles por PNLD en el año de 2014. Después de los estudios, se encontró que la discriminación de género es muy presente en dos de las obras analizadas y sólo uno de los libros descritos presenta una reflexión sobre la discriminación de género y el sexismo mostrado algún cuidado de no construir una dominación masculina sobre lo femenino en imágenes y texto utilizados. En las obras examinadas hay un silenciamiento total de la homosexualidad y diferentes constituciones de la familia heteronormatividad. Llegamos a la conclusión de que los libros de enseñanza tienen una regularidad discursiva sobre el androcentrismo, la heteronormatividad y el uso de lenguaje sexista. PALABRAS CLAVE: Discurso. Género. Libro de texto. ABSTRACT: This paper discusses and analyzes some issues regarding gender and sexuality present in Portuguese textbooks. The methodology is divided in two stages; the theoretical part, which is based on the discursive construction of sexuality and the subject in Foucault's view, and the analytical, which observes the discursive regularities regarding gender present in three Portuguese textbooks for the sixth grade, provided by PNLD, 2014, to the public elementary schools. After the studies, it was found that gender discrimination is strongly present in two of the analyzed books and only one of the texbooks described reflects on gender discrimination and sexism showing some caution in using images and text in which there is no predominance of male over female. In all the books examined nothing was said about homosexuality and family constitutions different from heteronormativity. It is concluded that textbooks show a discursive regularity about androcentrism, heteronomativity and the use of sexist language. KEYWORDS: Discourse. Gender. Textbook. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015. 78 1 INTRODUÇÃO 1 No Brasil, o livro didático (LD) possui papel relevante na educação e faz parte da memória de muitas gerações, pois atua como mediador na construção do conhecimento. Esse material didático, em muitos casos, é o único apoio pedagógico utilizado na educação formal das escolas públicas do país. Em tese, estes livros devem materializar as transformações sociais mais significativas, além de seguir critérios mínimos de qualidade para se encaixarem no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Entre estas mudanças podemos considerar a nova constituição familiar, as lutas feministas pela igualdade de gênero e a luta pelos direitos dos homossexuais. O objetivo deste artigo é verificar se houve alterações na representação do feminino e da família nos livros didáticos de português direcionados ao Ensino Fundamental. O corpus analisado é composto por três livros didáticos de Língua Portuguesa (do professor), do sexto ano 2 , de três coleções distintas que foram distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático oferecidos no triênio 2014/2016. O aporte teórico fundamental se baseará nos estudos arqueogenealógicos de Michel Foucault, no sentido de se entender os discursos como materialização de ordens do saber-poder específicas. Para analisar a abordagem de gênero e sexualidade nas obras didáticas este artigo pretende, na etapa teórica, explorar as ideias de sujeito pontuadas, nos estudos de Foucault, a construção discursiva da sexualidade, bem como observar o papel da linguagem na construção do sujeito, do discurso e da formação discursiva. A etapa analítica busca observar quais as regularidades discursivas sobre gênero presentes nos livros didáticos. 2 O SUJEITO E A SUJEIÇÃO O homem, figura central da filosofia e do saber moderno, ser ativo com destino de conquistar a natureza e evoluir e que tem como projeto central a realização do ser, a construção do sujeito, é abandonado por Foucault em As Palavras e as Coisas. Para ele, o homem é uma figura do saber contemporâneo produzido pelas estruturas das ciências constituídas no fim do século XVIII, não é o fundamento ou a essência de qualquer questão. [...] pode-se estar seguro de que o homem é aí uma invenção recente. Não foi em torno dele e de seus segredos que, por muito tempo, obscuramente, o saber rondou. De fato, dentre todas as mutações que afetaram o saber das coisas e de sua ordem, o saber das identidades, das diferenças, dos caracteres, das equivalências, das palavras – em suma, em meio a todos os episódios dessa profunda história do Mesmo – somente um, aquele que começou há um século e meio e que talvez esteja em via de se encerrar, deixou aparecer a figura do homem [...] o homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia do nosso pensamento mostra facilmente. (FOUCAULT, 1999, p. 413) Foucault propõe, assim, uma análise não sobre o sujeito, ou sobre as razões que impedem o desenvolvimento das potencialidades do homem da filosofia tradicional. Pelo contrário, inicia sua análise pelos processos de sujeição, pelo conjunto de obstáculos que antecedem à constituição dos sujeitos e que incidem sobre os corpos antes mesmo de produzir consciências. Os homens são objetos de poderes, instituições, saberes, ciências. Em sua aula inaugural no Collège de France, Foucault retoma seu projeto de atenção sobre o sujeito e o poder definindo o papel central do que chama de discurso: Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes, dominar seu conhecimento aleatório [...]. (FOUCAULT, 1999, p. 8-9) Desse ponto de partida, seus estudos observarão como os discursos são controlados, perpassados por formas de poder que produzem sujeitos. Nesta aula, o francês esclarece sobre os diversos procedimentos de controle, tal como a interdição, que são os tabus que limitam a enunciação de determinados temas, dentre eles a política e a sexualidade. Traz à tona a oposição da loucura e da razão para explicar como o discurso do 1 Este artigo é resultado da pesquisa realizada no Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Teorias Linguísticas Contemporâneas da UFFS, campus Erechim, defendida no segundo semestre de 2014. 2 As escolas optam pela coleção (6º ao 9º ano) composta por livros do mesmo autor e que possuem uma mesma linha didático-pedagógica em cada coleção. Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático 79 louco é considerado nulo porque não atende às exigências discursivas, não sendo visto como uma palavra de verdade, tornando-se assim, sem validade, exemplificando a exclusão pela rejeição e pela separação. Foucault, em A ordem do discurso, nos alerta que a separação ainda continua vagando entre as pessoas: “a separação, antes de estar apagada, se exerce de outro modo” (p.12). Pensemos sobre as redes de instituições que penetram e legitimam as relações entre os que retêm as palavras, “a verdade” e os outros. Essa divisão entre o discurso verdadeiro e o discurso falso que forma a nossa vontade de saber. A partir daí, à Nietzsche, tudo se passa como se “a vontade de verdade tivesse sua própria história” (FOUCAULT, 1999, p.16). Continuando os estudos sobre o discurso a que se propõe, Foucault publica, entre 1976 e 1984, três obras que vão abordar o tema “sexualidade” e que servirão de base para estudos sobre gêneros e sexualidade posteriores – notadamente aqueles que partem do pósestruturalismo: A História da sexualidade1: a vontade de saber, no qual aborda a forma que a sexualidade foi tratada a partir da época vitoriana até o século XIX, evidenciando as relações entre poder produtivo e dispositivo sexual; A História da sexualidade 2: o uso dos prazeres, no qual faz uma análise das práticas existentes em torno do sexo na Grécia Antiga e, posteriormente, a mudança trazida pelo cristianismo que associa sexo ao pecado da carne, distanciando-o da noção de desejo; e A História da sexualidade 3: o cuidado de si, em que Foucault expõe a relação do indivíduo consigo mesmo, a preocupação como o uso dos prazeres numa reflexão moral, médica e filosófica possibilitando uma leitura crítica em torno da condição humana contemporânea que permitiu uma abertura para reflexões atuais em torno desse tema. Os escritos de Foucault tiveram grande repercussão em teorias contemporâneas do feminismo, do gênero e da sexualidade. Dentre esses estudos, destaca-se o da filósofa pós-estruturalista Judith Butler (2013), que desenvolveu seus trabalhos direcionando os conceitos de Foucault para as teorias feministas de gênero, com a finalidade de expor os modelos naturalizados e normativos de gênero e de heterossexualidade. Assim, aprofundando o conceito de construção discursiva da 3 Essa construção discursiva da sexualidade elaborada por Foucault, bem como o contexto cultural e a política de diferença sexual nos anos 1970 a 1989, serviram como catalisadores para as novas discussões de gênero e sexualidade e para os estudos da chamada teoria queer. Conforme Louro (2008, p.34-5): “[...] na cultura popular, queer significava mais sensual, mais transgressor, uma demonstração de liberdade, de diferença que não queria ser assimilada ou tolerada”. sexualidade 3 de Foucault, Butler pontua que uma identidade de gênero como “mulher” foi produzida através de práticas discursivas contínuas estruturadas em torno do conceito de heterossexualidade como a norma. Esclarece Spargo (2006, p.52) que: Para Butler, é através da repetição estilizada de atos corporais, gestos e movimentos particulares que o efeito de gênero é criado como “temporalidade social”. Não nos comportamos de determinados modos em razão da nossa identidade de gênero; adquirimos essa identidade e através desses padrões comportamentais, os quais sustentam normas de gênero. Assim, se a sexualidade é produzida discursivamente, pode-se inferir que o gênero nada mais é do que um efeito “performativo” aceito pelo indivíduo como uma identidade natural (SPARGO, 2006, p.49). Consequentemente, a visão androcêntrica da sociedade tida como natural torna-se apenas um discurso ratificado pela ordem social que se constitui em uma poderosa máquina simbólica que legitima a dominação masculina. A tese de dominação é, porém, relida segundo outras inscrições teóricas. Assim é que, segundo Bourdieu (2010, p.18), a divisão social de trabalho e a estrutura do espaço designado, a homens e mulheres, são alicerces dessa dominação. Nessa problemática, a representação do próprio corpo não se constitui somente da imagem do corpo, mas desde a origem toda uma estrutura social está presente e interage, inscrevendo nos corpos dos agentes esquemas de percepção e de apreciação. Portanto, o corpo é duplamente determinado socialmente. De um lado, por uma identidade social naturalizada como, por exemplo, nas mulheres: a delicadeza, a postura, a atitude dócil entre outras. Por outro lado, os atos de avaliação no espaço social reforçam os esquemas através dos quais a representação social do próprio corpo e suas propriedades corporais é aprendida e hierarquizada, entre propriedades masculinas ou femininas; entre dominados e dominantes e assim por diante (BOURDIEU, 2010, p.79-80). Inicialmente, o termo era utilizado pelas pessoas que achavam “gay” e “lésbica” expressões inadequadas ou restritivas e preferiram “queer” como identificador. Atualmente, a teoria queer é vista como uma teoria sobre o gênero que afirma que tanto a orientação sexual, quanto a identidade sexual ou de gênero são constructos sociais. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015. 80 De posição distinta de Bourdieu, Butler (2013) também sugere que o que constitui o limite do corpo nunca é meramente material, mas que a superfície, a pele, é sistematicamente significada por tabus e transgressões antecipadas. Em sua análise, as fronteiras do corpo se tornam os limites do socialmente hegemônico. Segundo ela, os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas sim produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre a identidade primária estável. Percebe-se que as identidades sexuais 4 e de gênero estão intimamente inter-relacionadas, mas nossa linguagem e nossas práticas frequentemente as confundem, tornando difícil pensá-las distintivamente. O que se deve ter em mente é o fato de que as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento. O que torna possível a referência ao mundo descrita como atitude natural não leva em consideração “as condições sociais de sua possibilidade”. Para Bourdieu (2010, p. 17), tal fato atribui às “arbitrárias divisões do mundo”, dentre elas a divisão social entre os sexos, como algo natural, legitimando-as. Alguns estudiosos sugerem que, usualmente, pensamos e trabalhamos sobre gênero numa matriz heterossexual. Essa visão androcêntrica, heterossexual, impõe-se como natural e neutra, dispensando justificação. É isso que nos leva a considerar mais atentamente a necessidade de um aparato teórico que leve em consideração o modo como a sexualidade é regulada, e divulgada pelas instituições do poder, pelo policiamento e censura do gênero. 3 O PODER NA/DA LINGUAGEM A relação entre o sujeito e a linguagem é central não só para se compreender este último como um constructo da modernidade, mas também para problematizar o estatuto das ciências humanas que foram instaurados por meio da linguagem e da relação desta com esse sujeito. Foucault conclui que foi da “sombra da linguagem” que se originou a noção de sujeito da modernidade. Essa relação intrínseca entre a linguagem e o sujeito é inquestionável, pois é a linguagem que possibilita ao homem conhecer o mundo e a si, representar seu pensamento, ter ciência 4 Este trabalho não trata de identidades de gênero conceitualmente; entende identidade de gênero como produção discursiva, ou seja, não como um conceito da ordem da natureza, mas como uma prática que exige os corpos e os sujeitos para produzir identificações sempre de sua condição e de sua finitude. Assim, é impossível falar do homem sem falar antes da linguagem, já que não é o homem que pensa a linguagem, é a linguagem que diz o sujeito. A relação do discurso com o poder, mencionada em A ordem do discurso, evidenciou o discurso como prática social permeada pela ação reguladora e produtora do poder e das instituições. Portanto, é no plano do discurso que se pode verificar tanto o controle quanto a exclusão. No que se refere ao gênero e à sexualidade de forma mais direta, o papel da linguagem entendida como discurso também é central e polêmico. Assim, em Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, no capítulo intitulado Linguagem, poder e estratégia de deslocamento , Butler compara a visão da escritora e feminista Monique Wittig ao da filósofa e feminista belga Luce Irigaray. A autora ressalta que, enquanto Wittig considera a linguagem um instrumento de possível misoginia em sua aplicação, mas não em sua estrutura, apoiando a crítica de Simone Beauvoir de que não há uma “escrita feminina”, Irigaray considera que a única maneira de se fugir da “marca do gênero” seria a possibilidade de outra linguagem e expõe a relação visivelmente “binária entre os sexos como um ardil masculinista que exclui por completo o feminino”. Butler considera que Wittig “subestima o significado e a função da linguagem em que ocorre a marca de gênero”. (BUTLER, 1990, p. 50). É na perspectiva de que não devemos subestimar a linguagem, conforme pontuam Irigaray e Butler, que seguiremos este estudo. Os movimentos feministas nos anos 1970 a 1980 tentaram transformar o sistema social, entendido como a causa da opressão. Mas esse enfrentamento, com o passar do tempo, transformou-se em uma luta pela incorporação do feminino ao sistema social vigente, aproximando-se do modelo étnico, visto como grupo minoritário, passando a lutar pela obtenção de direitos iguais e proteção do sistema (SPARGO, 1999, p.27). Contudo, na atualidade ocidental, são raras as sociedades onde mulheres e homens têm um tratamento equitativo e o uso sexista da língua oral ou escrita transmite e reforça as relações hierarquizadas entre homens e mulheres. Foucault já salientava que a manutenção do poder se dá pela ordem do discurso. O móveis sobre o masculino, o feminino e suas diversas interpossibilidades. Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático 81 que se vê na sociedade atual pode ser lido sob a égide de um discurso androcêntrico. Em A arqueologia do Saber (2008. p.157), Foucault acentua o caráter de luta política que imprimirá aos enunciados na produção da História e conceitua as práticas discursivas. Nesse sentido, procura “retirar do campo das ciências humanas as certezas já estabelecidas” a fim de que fiquem visíveis os próprios discursos enquanto “práticas que obedecem a regras”, apresentando os principais conceitos ligados à teoria do discurso: o enunciado, a formação discursiva e o arquivo. Inicia sua proposta tentando entender “os acontecimentos discursivos que possibilitaram o estabelecimento e a cristalização de certos objetos em nossa cultura”; evidencia a emergência do enunciado em sua “irrupção histórica” e em sua “singularidade de acontecimento”. Se, de um lado, seu surgimento “pressupõe articulações com outros enunciados”, de outro, ele “é único, mas está aberto a repetições e se liga ao passado e ao futuro”, está ligado a uma memória e tem uma materialidade (GREGOLIN, 2004, p.88). O enunciado, segundo Foucault (2008, p.31), “é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”. Está ligado a diferentes formas de expressão porque, embora ligado a “um gesto de escrita” ou “à articulação de uma palavra”, gera para si mesmo [...] uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação; finalmente porque está ligado não apenas à situação que o provoca, e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem. (FOUCAULT, 2008, p. 31-32) Assim, segundo Gregolin, o autor passa a enxergar o enunciado no interior de uma historicidade, que produz uma “relação que envolve sujeitos, que passa pela história, que envolve a própria materialidade do enunciado” (GREGOLIN, 2004, p.90). Ao descrever o enunciado, Foucault se questiona onde estaria a unidade, a regularidade, uma “ordem em seu aparecimento”, “correlações em sua simultaneidade”, “transformações ligadas e hierarquizadas” que possibilitariam a análise e a propagação dos enunciados. Propõe-se, então, a descrever os sistemas de dispersão, esclarecendo o conceito de formação discursiva. Nesse sentido, afirma Gregolin, o filósofo institui como campo das formações discursivas todo o espaço histórico, visto estarem inseridos nele o discurso, o sujeito e o sentido (GREGOLIN, 2004, p. 90). Quando um acontecimento discursivo tem uma regularidade na dispersão de enunciados, ocorre o que Foucault chama de “positividade de seus discursos”. Um acontecimento discursivo que apresente uma regularidade na dispersão de enunciados possui um a priori histórico que seria a positividade dos discursos pertencentes a uma mesma formação discursiva. A positividade nos revela “a massa de textos que pertence a uma mesma formação discursiva” (GREGOLIN, 2004, p.91). Foucault propõe que se pense no conceito de “arquivo”: [...] o arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. [...] é o que define o sistema da enunciabilidade do enunciado-acontecimento. [...] é o sistema de seu funcionamento. [...] entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. (FOUCAULT, 1986 apud GREGOLIN, 2004, p. 92) De acordo com Gregolin, Foucault ainda observa que todo “o enunciado sempre tem margens povoadas de outros enunciados”. Essas margens são como “redes verbais”; uma série de outras formulações que formam “uma trama complexa” de repetições e referências implícitas ou explícitas através das quais a História é construída, tanto pelos “jogos de enunciativos” quanto pelas “batalhas discursivas” (GREGOLIN, 2004, p.9293). Todo enunciado se constitui dessas redes verbais compostas por outras formulações, às quais ele se refere; mas, para que a História seja também constituída por esses jogos enunciativos, é necessária uma materialidade que pode ser uma “voz que o enuncie” ou “uma superfície que registre seus signos”. O enunciado tem necessidade de “uma substância, um suporte, um lugar e uma data” e que, à medida que se alteram, modificam também a própria identidade do enunciado. O enunciado é, portanto, sensível às diferenças “de matéria, substância, tempo e lugar” (GREGOLIN, 2004, p.92-93). Dessa perspectiva, o livro didático constitui-se em uma materialidade de enunciados que possui certo status de objeto com poder de alterar a identidade do enunciado já que, em nossa sociedade, essa materialidade confere aos enunciados o valor de “verdade”. Sua linguagem pode sim estar propagando a naturalização de identidades de gênero, de superioridade masculina, fazendo uso de linguagem sexista que reforça a hierarquização das Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015. 82 relações entre homens e mulheres ou simplesmente silenciando as minorias a fim de manter o status quo da sociedade androcêntrica. Neste sentido, a escola é uma instituição privilegiada na manutenção do poder e, mais precisamente, a formação discursiva presente no livro didático de Língua Portuguesa, com relação à regulação do gênero “mulher” e da sexualidade, é o recorte que se pretende observar. Para tanto, é importante conhecermos um rápido histórico sobre os programas que possibilitaram o uso, em grande escala, do livro didático no Brasil. desatualização, preconceito ou discriminação de qualquer tipo são excluídos do Guia do Livro Didático. Porém, alguns segmentos da sociedade atual, tais como as mulheres, os negros, os homossexuais entre outros, sustentam que não é o que ocorre. Um dos critérios de avaliação para o livro didático participar do Programa Nacional do Livro Didático é que sejam seguidas as orientações dos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais – que são referenciais elaborados pelo governo federal, com a finalidade de servir como base comum na formulação ou reformulação dos currículos escolares. 4 HISTÓRIA DO LIVRO DIDÁTICO Hoje em dia, o livro didático coexiste no universo escolar com outros materiais: audiovisuais, CDs, internet etc. Porém, ainda continua tendo papel principal no Ensino Fundamental da maioria das escolas. O Instituto Nacional do Livro (INL) foi criado em 1929 e tinha por objetivo legitimar o livro didático no Brasil e auxiliar no aumento de sua produção. Em 1938, através do decreto Lei nº 1.006 de 30 de dezembro, foi criada a Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD), que instituía a primeira política de legislação para tratar da produção, controle e circulação dessas obras (FNDE, [2014?]). Entretanto, Freitag, no decorrer de seus estudos sobre o livro didático, deixa claro que essa comissão tinha e ainda tem mais função de controle político-ideológico do que pedagógico (FREITAG, 1989). Ao longo do tempo, o programa de distribuição e produção de livros didáticos foi se aperfeiçoando 5 . Somente em 1985 houve uma significativa alteração no programa de produção e distribuição do Livro Didático (LD), quando o atual PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) veio substituir o PLINDEF. No entanto, o discurso pedagógico ainda estava sendo deixado em segundo plano. O processo de avaliação pedagógica dos livros inscritos para o PNLD só foi iniciado em 1996 e passou por vários processos de aperfeiçoamento até a publicação do primeiro Guia do Livro Didático, no qual eram elencados os critérios de avaliação para o livro participar do programa. Na visão do FNDE e do PNLD, a partir daí, os livros que apresentam erros conceituais, indução a erros, 5 Em 1945, a legislação de produção, importação e utilização do livro didático fica consolidada. A partir daí foi restringido ao professor a escolha do livro a ser utilizada por seus alunos, normativa nem sempre cumprida pelos estados. Um acordo, em 1966, entre MEC e a Agencia Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional assegurou recursos para a distribuição gratuita de 51 milhões de livros no período de três anos e o programa adquiriu continuidade. Entre os anos 1970 a 1983, as alterações foram relativas à extinção e criação de programas que visavam à produção e distribuição do livro didático e de organizar recursos para a continuidade da distribuição Os PCNs são desenvolvidos por áreas de conhecimento e servem como um referencial para o fazer pedagógico, sendo flexíveis e abertos. Definem também os objetivos gerais e da área, bem como as capacidades que os educandos devem desenvolver no nível de educação em que se encontram. Compostos por dez livros, os PCNs são direcionados aos níveis de ensino específicos: Fundamental I, Fundamental II e Ensino Médio. Os parâmetros do Ensino Fundamental II, do 6º ao 9º ano, são compostos por dez volumes, sendo que os temas transversais são desenvolvidos a partir do décimo volume, assim distribuídos: Apresentação, Pluralidade Cultural, Meio ambiente, Saúde e Orientação Sexual. No livro introdutório dos temas transversais a Secretaria de Educação deixa claro ao professor que [...] não se trata de que os professores das diferentes áreas devam “parar” sua programação para trabalhar os temas, mas sim de que explicitem as relações entre ambos e as incluam como conteúdo de sua área [...] não se trata, portanto de trabalhá-los paralelamente, mas de trazer para os conteúdos e para a metodologia da área a perspectiva dos temas. (PCN, 1998 p.27, grifos nossos) Isso significa dizer que a Orientação sexual, tanto em seus objetivos quanto em seus conteúdos propostos, deveria ser encontrada nos conteúdos das diferentes áreas do conhecimento, sendo queque cada área, “[...] assim como acontece com todos os Temas gratuita de livros. Extinto o INL, criou-se a Fename (Fundação Nacional do Material Escolar). Extinto esse programa, surgiu a FAE (Fundação de Assistência ao Estudante), que incorporou vários outros programas de assistência do governo, incluindo o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental (PLIDEF). (FNDE, 2014, grifos nossos). Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático 83 Transversais, estará impregnando toda a prática educativa” (PCN – Orientação sexual, p.307). Cada uma das áreas tratará da temática da sexualidade por meio de sua própria proposta de trabalho. Assim, de acordo com o livro do PCN – Orientação sexual: Com a inclusão da Orientação Sexual nas escolas, a discussão de questões polêmicas e delicadas, como masturbação, iniciação sexual, o “ficar” e o namoro, homossexualidade, aborto, disfunções sexuais, prostituição e pornografia, dentro de uma perspectiva democrática e pluralista, em muito contribui para o bem-estar das crianças, dos adolescentes e dos jovens na vivência de sua sexualidade atual e futura. (PCN, 1998, p. 293) O Livro 1 dos Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental apresenta os objetivos gerais entre os quais “[...] conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro [...] posicionandose contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, [...], de sexo, de etnias e outras características individuais e sociais [...];” e “desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física, [...] estética, inter-relação pessoal e de inserção social [...] (PCN, 1998, p.5). Já os Parâmetros Curriculares voltados à orientação sexual apresentam objetivos mais direcionados à sexualidade, colocando que, através do desenvolvimento dos temas transversais, os alunos devem ao final do Ensino Fundamental ser capazes de “respeitar a diversidades de valores [...] reconhecendo e respeitando as diferentes formas de atração sexual e o seu direito à expressão” [...]; “identificar e repensar tabus e preconceitos referentes à sexualidade, evitando comportamentos discriminatórios e intolerantes e analisando criticamente estereótipos”; “reconhecer como construções culturais as características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino posicionando-se contra a discriminação”[...] (PCN, 1998, p. 341). Também está presente o reconhecimento do corpo, cuidados e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e consciência crítica nas decisões voltadas à sexualidade. Ao justificar a “orientação sexual” como tema transversal a Secretaria de Educação argumenta que: É nas relações sociais que se definem, por exemplo, os padrões de relação de gênero, o que homens e mulheres podem e devem fazer por serem homens e mulheres, e, principalmente, quais são e quais deverão ser os direitos de cidadania ligados à sexualidade e à reprodução. O alto índice de gravidez indesejada na adolescência, abuso sexual e prostituição infantil, o crescimento da epidemia da Aids, a discriminação das mulheres no mercado de trabalho, são algumas das questões sociais que demandam posicionamento em favor de transformações que garantam a todos a dignidade e a qualidade de vida, que desejamos e que estão previstas pela Constituição brasileira. (PCN, 1998, p. 307) Retomemos Foucault para analisar o conceito de "orientação sexual". Em O nascimento da medicina social, palestra proferida no Rio de Janeiro, ele analisa a história da medicina antiga até a medicina social moderna e observa que a espécie humana “entra em jogo nas estratégias políticas de um Estado”, o corpo passa a se transformar em “uma realidade biopolítica e a medicina uma estratégia biopolítica” (FOUCAULT, 1979, p. 80). Consequentemente, surgiram “diversas formas de controle do indivíduo e das populações” (DANNER, 2010, p.143-157). A biopolítica cria, então, instrumentos de formatação e normalização não só das populações, mas dos indivíduos. Torna-se necessário observar que os PCNs – Orientações sexuais direcionam o tema sexualidade como um problema de saúde social, quando o associa à contenção de epidemias e gravidez indesejada. A sexualidade passa a ser alvo de mecanismos de controle dos corpos e da saúde da população, evidenciando o biopoder. A discussão de gênero, como se vê, está disciplinarizada dentro de uma perspectiva de saúde nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Discursivamente, é importante ressaltar que as relações de desejo exigem "orientação", como demanda a biopolítica. Dessa perspectiva, os PCNs, a “orientação sexual" como tema transversal deve estar presente nos livros didáticos das áreas de estudos, tanto em seus conteúdos, quanto em suas metodologias. Em todos os livros dos PCN Ensino Fundamental ou Temas Transversais é recorrente a visão de que a educação é um meio importante para “o processo de construção da cidadania”. Se os PCNs são um norte a ser seguido, que embora abertos e flexíveis, devem pontuar os conteúdos mínimos do Ensino Fundamental no país, certamente, tanto os conteúdos mínimos por áreas de estudo, quanto os temas transversais devem estar presentes nos critérios de avaliações do Programa Nacional do Livro Didático. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015. 84 Vários trabalhos acadêmicos têm abordado o livro didático como tema de estudos, já que se trata do mais extenso suporte didático nas escolas públicas brasileiras; além disso, como se destina à formação de crianças e jovens, torna-se um instrumento privilegiado na construção de identidades, assumindo também um importante papel político. Estes estudos têm surgido nos ambientes acadêmicos e de suas produções, mas também no ativismo feminista e de outras minorias que vêm denunciando a educação diferenciada de meninos e meninas, o uso de linguagem sexista, ou discriminação de gênero ou étnicas na educação e tentam construir estratégias de combate a todo tipo de discriminação. torna invisível a mulher, reproduzindo o processo constante de sujeição e exclusão. Tem-se em mente, aqui, observar os enunciados em sua "raridade", como gostaria Foucault. Para isso, “é preciso desfazer as familiaridades e as falsas unidades, verificando as condições de raridade que permitiram a emergência de um enunciado e não de outros [...], averiguar com desconfiança os empreendimentos que [...] não atentam para aquilo que os tornou possível como saber” (BUTTURI JUNIOR, 2009, p.207). Procedeu-se, a partir dessa visão, às observações mais detalhadas dos livros didáticos: 5.1 Análise do Livro A 5 OS LIVROS DIDÁTICOS - ANÁLISES Ao se proceder as análises dos livros didáticos de língua portuguesa, 6º ano, optou-se por livros oferecidos pelo PNLD 2014, de três editoras distintas: livro A - Vontade de saber português, das autoras Rosemeire Alves e Tatiane Brugnerotto, editora FTD; livro B – Português linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães da editora Saraiva; e livro C –Universos – Língua Portuguesa 6 ano, obra coletiva cujo editor responsável é Rogério de Araújo Ramos, de Edições SM. Todos os livros possuem o Manual do Professor com orientações extras, mas as sugestões de respostas e orientações aos professores e professoras estão juntas às questões. Na apresentação das obras constatou-se que, nos livros A e B, foi usada a linguagem no masculino (A leitor, escritor; B – caro estudante; bem humorado, irrequieto, dinâmico, criativo); somente o livro C iniciou com “Prezado aluno e prezada aluna” e assinam o texto com “A equipe”. O livro A, escrito por mulheres, usou o masculino na apresentação, mas assinou “As autoras”. Já na apresentação do Manual do Professor, A e C dirigiram-se ao educador e educadora, professor e professora, mas todos utilizam o masculino como se fosse uma forma neutra e universalizante. Entretanto, o Censo Escolar da Educação Básica, de 2009 (INEP), já confirmava a percepção geral de que o percentual entre os educadores de Ensino Fundamental no país é predominantemente feminino. São 82% de mulheres na Educação Básica, 97% na Educação Infantil, 83% no Ensino Fundamental e 65% no Ensino Médio. No entanto, em um rápido estudo em qualquer gramática da Língua Portuguesa, pode-se comprovar que não existem substantivos neutros; portanto, usar o masculino como neutro é no mínimo uma tradição androcêntrica e um uso sexista da linguagem, que Neste livro, verifica-se o uso predominante do masculino como universalização na linguagem (os motoristas, os pedestres, oriente/organize os alunos, autor, professor, etc.) em detrimento do feminino que aparece algumas vezes entre parênteses (tio (a), filho (a)). As histórias são todas heteronormativas, casais heterossexuais (p. 91) com reconstituição de discursos de “malandragem”, “esperteza” masculina (então ela passava cola pra ele na prova, p. 16) e da mulher “como salvadora, cuidadora do homem”, bem como a reafirmação de profissões de homens (medicina, coveiro, bombeiro, p. 16, 103, 143, respectivamente) e de mulher (comunicação, secretária, professora, p. 16, 196, 237). Na profissão considerada “de mulher” usa-se o substantivo no gênero feminino. Aqui, toma-se um enunciado exemplar. No estudo do texto Engano, de Alexandre Azevedo (p.16), poderiam ter sido problematizadas algumas questões com relação ao gênero, mas as perguntas são voltadas somente à compreensão e interpretação do texto. Nesta unidade, a principal questão social apresentada é o bullying, mas não se toca na questão de gênero ou sexualidade, dando-se preferência para a religião e padrões de beleza – este último sendo um tópico em potencial para a discussão de gênero, visto serem as mulheres as principais vítimas da imposição de padrões de beleza. Seria importante e possível se abordar tanto a homossexualidade (um dos alvos do bullying), quanto a estrutura da família contemporânea. No entanto, nem nas sugestões presentes no Manual do Professor ou nas sugestões de respostas há desenvolvimento desses temas. Por sua vez, as ilustrações reconstituem discursos de feminilidade com meninas ao telefone, sempre associadas ao falar bastante, fazer compras (p.17, 22, 31, 117), ou à delicadeza, beleza, cuidados com o outro e à família (p. 33, 57, 91, 191, 237). Quando ligadas ao negativo, são relacionadas à estética, (“baranga”, Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático 85 “fofoqueira”, “bruxa”p. 30, 102, 113). Não há em nenhum texto verbal ou não verbal menção de uma constituição familiar diferente da heteronormatividade, de acordo com a qual a mulher cuida da casa e filhos enquanto o homem trabalha fora (p.21, 91,175, 207). Figura 2 - Ilustração Livro A, p.91 Reforçam-se também os espaços fechados para as mulheres, junto à família, à espera do amor ou com profissões que replicam essa ideia de cuidado do outro. Convém observar o menosprezo às aspirações da mulher e às suas habilidades, presente na ilustração 2 e 3, respectivamente, as quais naturalizam as mulheres como sujeitos de segunda categoria, com capacidade inferior, dependentes dos homens e em situação humilhante. O uso de expressões aparentemente inofensivas em exercícios de estudos de gramática, como ocorre nas situações ilustradas, são facilmente detectadas e poderiam ser excluídas ou modificadas para que meninas e meninos, ao fazerem tais atividades, não fiquem à mercê da transmissão de uma discriminação por gênero consolidada em nossa sociedade. Para os homens, surge uma pluralidade de lugares, sempre os associando à força, esperteza, esportes radicais, coragem e ao comando. Importante ressaltar que a maioria das ilustrações presentes foram produzidas para o livro, portanto, seriam de fácil correção. O uso do diminutivo para demonstrar desprezo poderia ter sido utilizado em outro contexto que não o direcionado à mulher como “menininha preguiçosa” (p.91). As tirinhas presentes na obra são de diferentes autores, mas reforçam discriminações presentes na sociedade e deveriam passar por um crivo mais apurado, tanto por parte dos autores, quanto das equipes do PNLD que avaliam esses livros, a fim de não validar preconceitos através do livro didático. Convém lembrar Foucault, que observou a importância da materialidade, já que o livro didático confere aos enunciados ali presentes um aspecto de “verdade”. Observam-se algumas fotografias, principalmente de anúncios publicitários, com ênfase em paisagens e figuras masculinas (em situação de êxito). O tema Heróis 6 foi abordado no capítulo 1, unidade 6, na qual o heroísmo é associado, essencialmente, a figuras masculinas. A parte dois dessa unidade é composta por dois textos. O primeiro conta a história de um menino que saiu de um centro de atendimento socioeducativo para adolescente e se transformou em um educador e, por isso, foi considerado um herói. A pedagoga, porém, que o adotou e o levou a superar as dificuldades, não recebe crédito algum. O segundo texto conta a história de Helen Keller, menina com deficiência múltipla que se tornou escritora e conferencista, fato que faz com que ela passasse a ser vista como um “milagre” e sua professora vista como “persistente”. Contudo, na sequência do estudo do texto, desenvolve-se o tema Heróis da realidade (p.241243) e todas as fotografias que servem de exemplificação são de homens. Em nenhum momento a palavra heroína foi usada (mas, “um milagre” e “persistente”, p.235 e 240), como se o heroísmo fosse uma característica estritamente masculina. No encarte Orientações para o professor, nas Orientações Gerais (Estrutura da Obra, Mapa de Conteúdos e Orientações Metodológicas), as autoras mencionam os Objetivos do ensino de Língua Portuguesa previsto nos Parâmetros Curriculares, mas não abordam nada relativo aos Temas Transversais. A “masculinidade como nobreza” (BOURDIEU, p. 71) parece ser o discurso (nem tão implícito) que a obra analisada reflete. Um apelo explícito à ordem, à naturalização inquestionável, à hierarquização das relações entre homens e mulheres, entre profissões femininas e masculinas. 5.2 Análise do Livro B O Livro B se inicia apresentando, no sumário, 20 pequenas ilustrações com predominância de imagens de meninos, dentre as quais a única que apresenta uma figura feminina reforça o discurso de preocupação com beleza, no caso o peso, como característica 6 Convém lembrar que alguns temas são recorrentes nos livros didáticos do 6º ano, entre eles: Heroísmo, Contos de Fadas, Lendas; e o estudo das classes de palavras. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015. 86 feminina, conforme podemos verificar no conjunto da obra. O capítulo 1 aborda o tema Contos de fadas, Heróis, vilões e outras personagens, com texto inicial cujas protagonistas são mulheres; no entanto, quando se encaminha a produção de texto todas as orientações para reflexão sobre “o herói” e “o antagonista” são no masculino, mesmo quando usa como exemplo as falas das personagens femininas. Ao sugerir temas e personagens para a produção de um conto, papéis estereotipados de homem e mulher são reforçados, como podemos verificar neste trecho: [...] Uma história ocorrida nos dias atuais. Nesse caso, trabalhem com outros tipos de personagens, como, por exemplo, um garoto corajoso e destemido, uma mocinha distraída que adora ler, um cantor de rap, um esqueitista, uma avó moderna, ou um herói às avessas [...] para ser o vilão, escolham uma feiticeira muito má, uma bruxa moderna [...]. (CEREJA; MAGALHÃES, 2012, p. 20) Toda a unidade 1 gira em torno dos contos de fadas que seriam úteis para se introduzir o tema dos estereótipos femininos e masculinos através das questões ou das orientações ao professor. Mas isso não ocorre, muito pelo contrário, se reafirma constantemente, através de textos verbais e não verbais, o papel de que cabe a mulher cuidar dos filhos, da casa (p. 39, 76, 101, 105, 139). O uso de pronomes possessivos relacionados à mulher como posse também são comuns nas questões, como por exemplo, “o que Moira, a mulher de Peter [...]” (p.57). Apesar dos enunciados do Livro B, é salutar lembrar de que as mulheres não são objetos – uso da expressão “mulher de” em vez de esposa – como implicitamente, o uso da linguagem sexista perpetua. Como já se disse anteriormente neste artigo, a língua tem um forte valor simbólico, já que o que não se nomeia não existe, como Cervera e Franco salientam. Portanto, excluir o feminino das palavras que indicam profissões é reforçar os espaços abertos e profissionais para homens e os fechados para mulheres. Em um dos exercícios sobre adjetivos (p.87) são listadas profissões para serem adjetivadas, mas nenhuma delas está no feminino (cozinheiro, jogador de futebol, modelo, médico, bombeiro, engenheiro, pintor); por outro lado, as que se referem a mulheres quando aparecem são sempre de professora, doceira, balconista (p.147, 119, 144, respectivamente). A configuração familiar heterossexual é reforçada em toda a obra, bem como a ênfase na preocupação (da 7 Convém salientar que Semântica e discurso é o título do livro de Pêcheux, para quem "o sujeito do discurso continua sendo concebido como puro efeito de assujeitamento à maquinaria da Formação Discursiva com a qual se identifica” (PÊCHEUX, 1975 apud BUTTURI JUNIOR 2009, p.98). Ocorre, portanto, uma confusão por parte dos mulher) com a aparência. Através desses textos se poderiam abordar os estereótipos femininos e masculinos presentes na sociedade, no entanto, não são desenvolvidos nas questões de compreensão e interpretação dos textos e/ou dos quadrinhos que envolvem esse tema, nem tampouco, sugeridos nas respostas ou orientações no Manual do professor. Observe-se o enunciado abaixo: Figura 1 - Ilustração Livro B, p.124 A “sugestão de resposta” da questão três, referente à ilustração 6 (que é o questionamento de o porquê “ele empregou a palavra macho junto à palavra baleia”), tem a seguinte orientação: “Resposta pessoal. Sugestão: por ser machista Bibelô não admite ser comparado a algo feminino, no caso, uma baleia. Daí ter empregado uma expressão que ele supõe ser a forma masculina desse substantivo”. Enfatiza o machismo como algo natural e a feminilidade como algo inferior e indesejado. Na introdução do Manual do Professor encartado no final do livro B, o autor e a autora salientam que essa nova edição “chega aos professores da rede pública de ensino completamente revista, ampliada e atualizada” [...], “tendo como horizonte a perspectiva do texto e do discurso” (p.4 – grifos dos autores). Esclarecem, também, sobre as cinco seções que compõem os capítulos, entre elas: Trocando ideias, que leva “o aluno a transferir essas ideias para a sua realidade concreta e se posicionar diante delas” (p.9), mas que são direcionadas para comportamentos e valores específicos, tais como: “extrapolar, generalizar e particularizar, respeitar opiniões alheias, técnicas de conta-argumentação e persuasão” (p.9 – grifos dos autores); e Semântica e discurso 7, que teria o objetivo de explorar o texto a partir de uma “perspectiva da semântica ou da análise do discurso e de observar a ‘ambiguidade ou a intencionalidade linguística’” [...] (p.14 - grifos dos autores). autores, já que a pragmática é quem trabalha com a intencionalidade e não a AD. Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático 87 Entretanto, não se verificou encaminhamento nas questões para reflexões acerca do discurso e suas intencionalidades e, nenhuma abordagem de temas transversais direcionados à orientação sexual, como a análise crítica de estereótipos homem/mulher (abundantes na obra), que não são abordados nas sugestões de respostas, tampouco nas orientações no Livro do Professor. Observa-se um trabalho incessante de reprodução de padrões sociais através da linguagem verbal e não verbal que tendem a perpetuar o padrão sexista de nossa sociedade. O suporte institucional (escola) e o discurso androcêntrico que circula nos textos presentes nesse livro didático, bem como a linguagem sexista utilizada, legitimam a exclusão feminina, naturalizando-a. um adendo, algo que não pertence ao corpo da obra de fato, pode vir a desvalorizá-lo. Volta-se aqui ao apontamento feito por Foucault sobre a materialidade como um constituinte do enunciado, podendo atribuir a ele maior ou menor valoração. Neste caso, atribuiria às orientações uma desvalorização, pois nem sequer pertence ao corpo da obra (orientações adicionais no final do livro). Verificase que a questão b, solicita que se escreva qual a visão sobre a mulher presente nos textos e tem a sugestão de resposta seguinte: “Na lenda indígena, a mulher é vista como responsável pelos afazeres domésticos da tribo. [...] No mito, a mulher é vista como um ser acometido pela curiosidade, que acabaria por causar desgraça à humanidade” (p.29, grifos nossos). 5.3 Análise do Livro C No Livro C, já no Manual do Professor, a apresentação inicial é diferente dos anteriores, dirigida ao “professor” e “professora”. Porém, há no restante do encarte a universalização da linguagem no masculino. Os PCNs são mencionados no tópico que aborda a diversidade regional para justificar “[...] uma abordagem de pluralidade cultural e o empenho em oferecer a maior variedade possível de pontos de vista, seja na seleção de autores [...], seja na seleção de situações exploradas pedagogicamente ou na seleção de imagens que contemplem a diversidade de costumes, dinâmicas sociais e etnias deste país” (p.6). “A equipe” aborda também a interdisciplinaridade e a inclusão preconizada nos PCNs; no entanto, os temas transversais não são mencionados. Ao descrever a obra, “a equipe” reforça que nas sugestões de respostas será usado o ícone MP para sinalizar que, no manual do professor, haverá respostas e comentários adicionais das atividades como, por exemplo, no estudo do texto Prometeu e os primeiros homens, na atividade de Reconstrução dos sentidos do texto, na qual há duas questões que envolvem a mulher, preconceito social e estereótipo. Há um encaminhamento através das questões e das sugestões de respostas, além do uso do ícone (MP) sinalizando mais orientações. No entanto, não há um aprofundamento da questão, podendo haver, segundo a visão da professora ou do professor, um reforço da visão estereotipada da mulher, pois se deve procurar no Manual do Professor, no final do livro, a orientação que complemente as respostas pessoais do aluno. Tal prática pode ser deixada de lado, já que não parece ser fundamental para as respostas e só deve ser usada “caso” alguma aluna ou aluno mencione ou questione a visão preconceituosa. Nesse sentido pode-se observar que a materialidade do enunciado, que aparece como Já na questão seguinte, questiona-se se essa visão sofreu alterações e nessa sugestão de resposta há a expressão “resposta pessoal” que pode ser entendida por alguns como qualquer opinião mesmo sem embasamento teórico, evitando-se assim um debate e reflexão mais consistentes. O efeito produzido é o de validação do estereótipo feminino e não de questionamento e reflexão sobre sua propagação na sociedade. Um desses questionamentos, bastante positivadores de um suposto “novo” feminino, pergunta: “Que visão sobre a mulher é transmitida pela lenda? E pelo mito?” (p.29). Por fim, nas Orientações, no final do livro (p.91), encontra-se o seguinte comentário adicional: Depois da leitura (A reconstrução dos sentidos do texto) Comentário sobre a atividade 10; Professor, você pode explorar os cinhceimentos prévios dos alunos sobre a visão da mulher na sociedade contemporânea. Lembre-os das mulheres que conhecem o quais os espaços sociais que ocupam. Faça-os perceber que, principalmente nas sociedades urbanas industrializadas, após as conquistas dos movimentos feministas, as mulheres, cada vez mais, dividem suas tarefas (domésticas, de trabalho, de lazer, etc.) com os homens. Do mesmo modo, os alunos podem argumentar que a curiosidade é uma característica inerente ao ser humano, tanto de homens como de mulheres. Verifica-se, portanto, alguma abordagem sugerida nos temas transversais, tanto através das questões, quanto nas orientações à professora ou professor, relativas a opiniões discriminatórias baseadas no sexo e análise de estereótipos masculino e feminino. No entanto, teriam maior peso e significação se estivessem na sugestão de resposta, no corpo da obra, e se houvesse um questionamento sobre se essas características Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 075-090, jan./jun. 2015. 88 dadas às mulheres, na questão 10b, não são também características presentes nas pessoas do sexo masculino. Outra tentativa de inserção de tema referente ao machismo pode ser verificada na obra. Observe-se o enunciado a seguir: aparecem circunscritas aos dramas da paixão (“Arrasa, lindo”) ou visualmente marcadas pela exacerbação de características tidas como femininas (cabelos, indumentária etc): Figura 3 - Ilustração, Livro C, p.207 Figura 4 - Ilustração, Livro C, p.213 Cabe notar que é uma mulher está dizendo que “lugar de mulher é na cozinha” colocando-se assim, a própria mulher como propagadora do machismo, culpabilizando-a pela discriminação que ela mesma sofre. Outras abordagens estão presentes nos capítulos 10, 11 e 12, que giram em torno do tema futebol, narradores de futebol e medalhistas em esportes variados. Observa-se um cuidado nos textos verbais em encaminhar reflexões que desmistifiquem a ideia de esportes masculinos e femininos, bem como, na seleção de imagens que procuram não privilegiar culturas, etnias, gênero ou profissões. Não obstante tais preocupações, nas 10 fotografias de esportistas, aparecem sete homens e três mulheres. Mais adiante, na apresentação do projeto anual de leitura de romance, usa na sensibilização, a obra e o filme O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, mas orienta o professor quanto ao epíteto “safada”, supostamente um resquício de uma cultura popular machista acerca da sexualidade feminina (p.224). Pode-se verificar que, em comparação às outras obras analisadas, a equipe que produz o Livro C procura em algumas situações conduzir reflexões sobre o machismo, o preconceito de gênero, apresenta uma seleção mais apurada de figuras, a fim de não sobressair nenhum dos gêneros, embora se possa observar que, em muitos momentos, ainda ocorre o uso do masculino como universalizante na linguagem, como em: juiz, jurados, advogados de defesa, promotores, vistos na condução do júri simulado da página 117; ou ,ainda, na tirinha na qual os estereótipos de feminino e de masculino permanecem rutilantes: enquanto os meninos jogam, no centro da cena, as meninas ainda 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse curto estudo não visa desmerecer a importância do livro didático que, em muitas escolas brasileiras, ainda é o único suporte didático da professora e do professor do Ensino Fundamental e, talvez, o principal acesso a informações de milhares de alunas e alunos de escolas públicas. Muito pelo contrário, sabe-se de sua importância e, por isso, objetivou analisar, nessa pequena amostra, os discursos dos preceitos divulgados pelos PCNs – no que diz respeito aos Temas Transversais – mais especificamente, os parâmetros presentes no livro Educação Sexual. Constatou-se que estes, em sua grande maioria, não são abordados nos livros didáticos de Língua Portuguesa. A prática discursiva está permeada e regulada pelo poder e pelas instituições através da linguagem, linguagem esta que possibilitou a visão do sujeito de Foucault, como um constructo da modernidade. Não se deve, portanto, subestimar o significado nem o poder da linguagem. É através dela, dos discursos produzidos e perpetuados, que o poder se sustenta. Entretanto, como alterar a visão do “poder” se este não está centralizado em um lugar específico? Desse modo, é fundamental repensar o livro didático na desnaturalização de relações entre homens e mulheres, na desmistificação de estereótipos e papéis considerados adequados para um ou outro gênero. Na esteira dos estudos de Foucault sobre o discurso e sua ordem, estudiosas e estudiosos feministas têm denunciado não só a hierarquização, mas o ocultamento da mulher, seu silenciamento e invisibilidade promovidos pela sociedade. Moreira e Butturi Junior | Escola para meninos: o discurso androcêntrico no livro didático 89 Sabe-se que a escola não apenas cria estereótipos, mas ela os dissemina e fortalece. Observou-se, tanto no plano de análises textual quanto na escolha de textos, assim como na criação e divulgação de imagens, a presença de estereótipos tradicionais na caracterização de traços e de atividades masculinas e femininas. Esperava-se que, em livros didáticos contemporâneos, autores e autoras evitassem vieses de gênero, mas não foi o que se encontrou. Dos três livros analisados apenas um demonstrou ter algum cuidado com a questão, o que é promissor, não se pode deixar de ressaltar. Mesmo assim, na apresentação das obras, poderia ter-se usado uma redação mais inclusiva, entretanto, quando esta ocorreu, apenas se reforçou, através da materialidade (uso de /a ou (a) após o substantivo masculino) a subordinação da mulher. Percebeu-se em todas as obras analisadas uma regularidade discursiva acerca da superioridade masculina através de múltiplos discursos que regulam e instauram a sociedade androcêntrica como “verdade” absoluta e naturalizam a inferioridade feminina, que sabemos, não passa de uma invenção social, como o homem de Foucault. Contudo, talvez na educação se encontre o único sistema onde os sujeitos possam ter acesso a todos os tipos discursos e, onde surge também a possibilidade de se manter ou modificar esses discursos. Por isso, a preocupação de Louro relativa a “uma prática educativa não sexista” (LOURO, 1997, p.119), que poderia ter início na inclusão deste tema, discriminação de gênero, nos cursos superiores de educação e nos Curso de Magistério para o Ensino Médio. Assim, a despeito do que foi colocado até agora, o livro didático poderá vir a ser um forte aliado contra a discriminação de gênero e, apesar da lentidão aparente, alguns avanços têm sido construídos, basta observamos que dos três livros analisados, pelo menos um já iniciou alguma abordagem e reflexão sobre o assunto. Além disso, as produções acadêmicas vêm salientando não só o uso da linguagem sexista como a discriminação de gênero, bem como mencionando as novas constituições familiares e outros temas que sofrem interdição e controle através dos discursos. Estudos que, aos poucos, penetram nas estruturas discursivas e vão conquistando reconhecimento e valorização. REFERÊNCIAS ALVES, R.; BRUGNEROTTO, T. 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Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba 93 RESUMO / RESUMEN / ABSTRACT RESUMO: Muito se fala sobre o Inferno dantesco, dando a entender, algumas vezes, que as outras duas partes, o Purgatório e o Paraíso, não são tão interessantes quanto o primeiro canto. Porém, este artigo busca desmiticar esta questão e apresentar todos os cantos da Divina Comédia como uma fonte quase que inesgotável de elementos de estudo e análise, que nos fazem entender não somente o momento literário e histórico de Dante Alighieri, mas também o nosso momento literário e o papel político-social que a literatura exerce no nosso meio sócio-cultural. Dessa forma, conceitos e ideias como língua nacional, visões, imagens, caráter inovador, e, muitas vezes profético da poesia serão abordados aqui, procurando abrir espaço para pesquisas que se situem, dentro da contemporaneidade, como reveladoras e inovadoras, mesmo partindo de uma obra escrita durante o Trecento italiano. P A L A V R A S - C H A V E : Divina Comédi a.Dante Ali ghieri. P araíso dantesco. RESUMEN: Mucho se ha hablado sobre el Infierno dantesco, dando a entender, algunas veces, que las otras dos partes, el Purgatorio y el Paraíso, no son tan interesantes como el primer canto. Sin embargo, este artículo busca desmitificar ese argumento y presentar todos los cantos de la Divina Comedia como una fuente casi inagotable de elementos de estudio y análisis, que nos hacen entender no solamente el momento literario e histórico de Dante Alighieri, sino también nuestro momento literario y el papel político-social que la literatura ejerce en nuestro medio sociocultural. De esta forma, se abordarán conceptos e ideas como lengua nacional, visiones, imágenes, carácter innovador y, muchas veces, profético, de la poesía, procurando abrir espacio para investigaciones que se sitúen, dentro de la contemporaneidad, como reveladoras e innovadores, incluso partiendo de una obra escrita durante el Trecento italiano. PALABRAS CLAVE: Divina Comedia. Dante Alighieri. Paraíso dantesco. ABSTRACT: Much has been said about Dante’s Inferno, implying sometimes that the other two canticas, Purgatory and Paradise, are not as interesting as the first one. This paper seeks to demystify such issue and present all canticas composing the Divine Comedy as an almost inexhaustible source of elements to be studied and analyzed, which make us not only understand Dante Alighieri’s literary and historical periods, but also our own literary period and the political and social roles that literature plays in our socio-cultural environment. In this sense, concepts and ideas such as national language, visions, images, and the innovative and often prophetic character of poetry will be discussed. This is done with a view to opening up new avenues of investigation situated within Contemporaneity, which are revealing and innovative, even coming from a literary piece of work written during the Italian Trecento. KEYWORDS: Divine Comedy. Dante Alighieri. Dantesque Paradise. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015. 94 Dou início às minhas reflexões sobre Dante Alighieri e o deslumbramento causado pela visão do Paraíso, dialogando e dividindo minha surpresa com o historiador Jean Delumeau (2003, p. 21), quando esse nos relata que Alumbramento foi o meu ao me ver pela primeira vez diante do retábulo de Gand, que talvez seja a mais rica das sínteses paradisíacas da pintura ocidental. Alumbramento, sobretudo, dos visionários e dos viajantes do além, cujos escritos e relatos definiram as estruturas e revelaram as belezas do paraíso cristão. Eles viram “abertas as portas do céu”. Contemplaram “as realidades do céu superior”: “uma morada cujo piso era brilhante como ouro e prata”, “eleitos tão belos diante do trono de Deus quanto a luz do fogo”, o empíreo como “uma rosa de pétalas extremas”. [...] Esse espetáculo tinha seu lugar exato na parte mais alta dos céus, de acordo com a cosmografia vinda de Aristóteles e de Ptolomeu e tida por intangível. Além disso, ele tornava-se crível por uma teoria das evasões da alma, certificada pelas melhores autoridades da Antigüidade pagã e cristã. Da mesma maneira, deslumbramento foi também o meu, certamente não tão famoso e consagrado quanto o de Delumeau, ao constatar quantos são os relatos de viagens e visões do além registrados ao longo da história, e ainda quantas são as concepções e as imagens de paraíso relatadas pela literatura, ao longo de muitos séculos. Talvez o filósofo Umberto Galimberti (2003, p. 186) possa justificar essa abundância de imagens ao afirmar que O homem não tem nenhum valor se não consegue exprimir algo que transcenda a sua vida biológica, e a arte é uma forma deste transcender. Mas também a arte não tem nenhum valor se não reflete o ultrapassar do homem, a sua superação da condição animal. Lamentar mais pelo homem do que pela arte, ou vice-versa, significa desconhecer a essência do homem e o significado da arte. E então os mortos serão sepultados sem ser reconhecidos na sua qualidade humana, e a arte se tornará pó sem ser reconhecida como a marca do homem. Então, não querendo fazer com que a arte se transformasse em pó, foi que dei início a essa pesquisa. Antes de iniciá-la, eu estava acostumada somente a lidar com a visão do além de Dante Alighieri que, de tão divulgada e detalhada, inspirou inclusive diversos religiosos cristãos, extrapolando o campo literário, com suas imagens do reino dell’oltretomba. Foi nesse momento, então, que o semiólogo Umberto Eco veio em meu socorro, assim como Beatriz fez com Dante, e me esclareceu que: Há trinta anos, refletindo sobre sua prática como professor de literatura moderna, Lionel Trilling observou que como meus interesses pessoais me levaram a ver situações literárias como situações culturais, e situações culturais como grandes batalhas complicadas sobre questões morais, e as questões morais como questões relacionadas de certo modo com imagens do ser pessoal escolhidas gratuitamente, e as imagens do ser pessoal relacionadas de certo modo com o estilo literário, tomei a liberdade de começar com o que para mim era interesse primordial [...] (ECO, 993, p. 19). Convencida de que o nosso ponto de partida deva ser o que mais nos interessa, também tomei a liberdade de começar pelo que me é mais próximo e primordial e, assim, falando em imagens do além, acredito impossível não falar da atualidade e da popularidade desta temática. Dessa forma, mesmo que seja somente a título de ilustração, cito o filme Um olhar do paraíso, lançado em 2009, e que, apesar de ser uma ficção policial, situa sua protagonista em um suposto “paraíso”. Além disso, menciono ainda duas escolas de samba cariocas, Imperatriz Leopoldinense e Mocidade Independente de Padre Miguel, que tomaram como temática, para seus desfiles, no ano de 2010: Do paraíso de Deus ao paraíso da loucura, cada um sabe o que procura (a Mocidade) e Brasil de todos os deuses (Imperatriz). Essas são manifestações que extrapolam o literário e, exatamente por isso, manifestam a abrangência e a atualidade do tema aqui em questão. Porém, apesar da atualidade do tema, se posso cometer tal pecado sem ser punida em nenhuma esfera do Inferno dantesco, é inegável que se veja a Divina Comédia como uma espécie de resumo, talvez uma síntese, uma formatação literária, de outras tantas imagens extraterrenas, surgidas antes do poema, o que faz dela tão mais atual quanto tantas outras formas de desenvolvimento do tema no mundo contemporâneo. É, então, pensando nessa contemporaneidade do poema dantesco, que sinto a necessidade de me justificar perante aqueles que esperam posturas teológicas em relação aos textos com os quais trabalho e que constituem o corpus de minha pesquisa. Assim, deixo claro que não sou teóloga e nem almejo sê-lo, por isso acredito ser importante, para a leitura deste Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba 95 trabalho, que não se faça confusão entre teologia, filosofia e mitologia. Resumidamente, e da forma mais simples possível, poderíamos entender que a teologia deva se interpretada como a ciência que pensa Deus, acreditando nele; a filosofia seria a arte de pensar as idéias, inclusive de Deus; e a mitologia seria a arte de investigar as revelações do divino nos contos da natureza. Dessa maneira, fugindo da visão das três ciências apresentadas acima, meu posicionamento é o de uma estudiosa de literatura que se interessa pelas descrições e imagens literárias do além. O crítico literário Harold Bloom faz, em seu livro Anjos Caídos, uma observação que considerei muito pertinente e que me embasou nesta perspectiva de escolha: Seria melhor explicar precisamente o que quero dizer nessa introdução, já que muitas pessoas confundem problemas de representação literária com as questões bem diferentes de crença e descrença. Pode-se provocar um grande sentimento de injúria com a observação verdadeira de que o culto ocidental a seres divinos é baseado em vários exemplos distintos, porém relacionados entre si, de representação literária. (BLOOM, 2008, p. 15) Meu campo de pesquisa, assim como afirma Bloom, é o da representação literária. Por isso, foi através do estudo e da leitura da Divina Comédia que cada vez mais cresceu meu interesse a respeito das descrições do aldilà encontradas na literatura. Fiquei fascinada também ao verificar que o texto de Dante serviu inclusive para que a própria igreja cristã, em algum momento de sua história, se apoderasse de suas imagens do pós-túmulo como reais e incontestáveis. Essa foi uma descoberta que me aproximou mais ainda do tema, pois, que o divino e mesmo a própria Bíblia influenciem a vida de muitos ocidentais e, inclusive, a própria literatura, é uma afirmativa muito comum, mas que a literatura seja tão “convincente” a ponto de influenciar a própria concepção religiosa, é já uma questão razoavelmente nova e que mereceria ser discutida. 1 “Langdon era bem versado na obra dantesca e sua fama como historiador da arte especializado em iconografia fazia com que fosse frequentemente chamado para interpretar a enorme variedade de símbolos que compunha a paisagem concebida pelo autor. Por coincidência, ou talvez nem tanto, ele dera uma palestra sobre o Inferno de Dante uns dois anos antes. ‘Divino Dante: Símbolos do Inferno.’ Dante Alighieri havia se transformado em um dos verdadeiros objetos de culto da história, o que fizera surgir no mundo todo sociedades dedicadas à sua memória. Seu mais antigo ramo americano fora fundado em 1881, em Cambridge, Massachusetts, por Henry Wadsworth Longfellow. O famoso poeta da Nova Inglaterra, integrante do grupo conhecido como Fireside Poets – formado por poetas que, de tão populares, eram lidos pelas famílias em frente à lareira -, fora também o primeiro americano a traduzir a Divina Além disso, mais do que ser usado como exemplo para as penas divinas, o poema de Dante Alighieri tem sido lido, ao longo dos séculos, e tem sido considerado uma das maiores obras da literatura universal, pois, possivelmente, tenha sido o primeiro poema a apresentar tanto o divino como o terreno, fazendo-os se encontrar em aspectos ligados à moral, à política, às crenças e à sabedoria do período medieval. Uma obra clássica na mais pura concepção do termo. Para o escritor Italo Calvino (1991, p.10-12): Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. [...] Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes). [...] Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos. Não seria o poema dantesco um dos mais clássicos exemplos do que seria um clássico? Afinal, entre suas definições, é muito comum ouvir as palavras: influência, inesquecível, marcas, traços, revelador, inesperado, inédito! Além disso, de todas as temáticas possíveis de estarem presentes nesta obra, que pode ser considerada uma verdadeira summa medieval, a da viagem ao além, com sua tríplice repartição em Inferno, Purgatório e Paraíso, é certamente o fio condutor que, posteriormente, ao longo dos séculos foi retomado, parcial ou totalmente, por outros escritores, em diversas épocas e em diversos lugares do mundo. Aqui se faz interessante recordar alguns autores contemporâneos, brasileiros ou já traduzidos para o português, que têm por inspiração as obras de Dante Alighieri. É o caso, por exemplo, de Giulio Leoni, Matthew Pearl, Arnaud Delalande, Dan Brown (Inferno) 1, Eugenio Montale, Comédia. Sua consagrada tradução para o inglês continua sendo uma das mais lidas até hoje. [...] - Dante Alighieri, escritor e filósofo florentino, viveu entre os anos 1265 e 1321. Neste retrato, como em quase todos os demais, está usando na cabeça um cappuccio vermelho, um gorro justo, trançado, com abas nas orelhas, junto com a túnica vermelha Lucca. Essa é a imagem mais amplamente divulgada de Dante. Langdon avançou os slides até o retrato pintado por Botticelli e exposto na Galleria degli Uffizi que frisava os traços mais salientes do poeta: seu queixo destacado e o nariz adunco. - Aqui, o rosto inconfundível de Dante encontra-se mais uma vez emoldurado pelo cappuccio vermelho, mas, nessa representação, Botticelli acrescentou uma coroa de louros por sua expertise em artes poéticas. Um símbolo tradicional emprestado da Grécia Antiga e até hoje usado em Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015. 96 Carlos Drummond de Andrade, Mario Prata e outros tantos mais. Neste ponto, gostaria de voltar a Dante Alighieri autor, que declarou ter tido a Bíblia como uma das fontes principais para seu trabalho, dando à sua Divina Comédia uma grande presença no pensamento cristão, principalmente com suas imagens do além. O professor Jack Miles (1997, p. 15) afirma que “A religião – a religião ocidental em particular – pode ser considerada como uma obra literária mais bemsucedida do que qualquer autor ousaria sonhar.” Dessa forma, tendo Dante como exemplo, será então realmente verdade que a fé e a arte não podem coexistir literariamente? Diante dessa situação, o que se me apresenta é a beleza e o poder dessas imagens, que incendiaram o imaginário popular durante séculos, culminando em sua expressão poética de maior destaque com Dante e sua Divina Comédia. Para o poeta, a fé se transforma em um potente material construtivo para a arte, que se coloca diante dele. Seria a possibilidade de erguer um monumento artístico, talvez mais duradouro que o bronze, que se proporia em ser uma das maiores obras de seu tempo. Dante nos faz observar que a idéia de que a obra sirva à fé deva ser vista de outra forma, ou melhor, devemos entender que a fé sirva à obra para que esta encontre sua plenitude, e não o contrário. A Divina Comédia pode ser entendida, de tal forma, como a descrição da conquista da fé partindo-se dela mesma. Cada canto do poema é uma progressão fiel aos preceitos de fé, que parece crescer em concordância com a obra. Sem as manifestações de fé das quais Dante tinha conhecimento, não se poderia chegar à narrativa final de seu poema. E, sem alcançar a beleza, a tentativa de escrever a Divina Comédia seria vã. A beleza da obra em Dante dá sentido à existência e até mesmo às suas próprias convicções morais e filosóficas, vinculadas às questões de fé conhecidas no seu tempo. E é por isso que Virgílio é escolhido pelo autor para ser um de seus guias. Porque, como poeta, já havia descrito o reino dos mortos e também porque, na Eneida, acreditava-se ter ele preanunciado a vinda de Cristo. Virgílio foi um grande poeta da antiguidade e autor de várias obras, entre as quais está a Eneida, obra que, segundo Dante Alighieri, o teria inspirado na escrita da Divina Comédia. Eneida conta a história da fundação de Roma por Enéas. Dante conhecia as obras de Virgílio e se dizia influenciado por seu estilo poético. Ao longo de muitos séculos, a égloga IV de Virgílio foi interpretada como uma intuição pré-cristã da vinda de Jesus Cristo, e o poeta visto como um profeta que teria anunciado o início da era cristã. O poeta, guia de Dante até o Paraíso Terrestre, é um professor de vida moral e depois poeta da universalidade do Império Romano. Virgílio mostra a Dante, já nos primeiros versos da Divina Comédia que, antes dele, só Enéias e São Paulo visitaram o reino dos mortos. Enéias porque foi escolhido por Deus como pai de Roma e do Império Romano. Ele teria visitado, como nos é narrado por Virgílio, no Canto VI da Eneida, o reino dos mortos, para obter de seu pai informações que lhe seriam necessárias para levar a termo sua missão na terra. São Paulo fez a suposta viagem porque deveria tornar mais forte sua fé, sem a qual não existiria salvação. Enéias teria recebido de Deus a missão de fundar Roma (a representação do mundo pagão), sob cujo Império haveria de nascer Jesus. E São Paulo teria a missão de pregar e difundir a palavra de Deus aos homens (representação do mundo cristão). Já Dante, por sua vez, passaria a ter por missão guiar toda a humanidade pela estrada do bem, desaparecida em função da corrupção da Igreja (a representação do surgir de uma nova era). Seguindo com a imagem que o próprio Dante se constrói de profeta, faz-se interessante conhecer a situação de exílio vivida pelo autor, durante a concepção da Comédia. Apesar de todo sofrimento gerado perante esta situação de afastamento, este exílio, elemento de desunião e destruição, pode dar forças ao exilado, principalmente na questão da criatividade, como uma forma de sublimação da sua dor. Pode-se dizer que com Dante e Maquiavel este seja um elemento determinante para a escrita da Divina Comédia e do Príncipe. “Dante foi forçado, por seu exílio de Florença, a reexperimentar seus mitos em solidão, de onde surgiu seu magnífico poema A Divina Comédia. E sem o exílio de Maquiavel, talvez O Príncipe nunca tivesse sido escrito.” (MAY, 1993, p. 37). O exílio, que trazia com ele a angústia da separação, a pobreza, a companhia maldosa e vulgar, as humilhações, e também os escárnios, delineou, em grandes traços, nas almas sensíveis, que sofriam de todas as fraquezas, grandes criações literárias, incitadas muitas vezes pela representação simbólica que acompanhava o autor, mesmo em sua solidão e afastamento. Foi também nessa situação de exílio que muitos apocalipses apócrifos foram escritos. A intenção das narrativas apócrifas era atingir o homem comum. Por isso são textos construídos com imagens simples, descritas com vivacidade, com estilo repetitivo e cerimônias de premiação de poetas laureados e ganhadores do Prêmio Nobel.” (BROWN, 2013, p. 82-83) Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba 97 linguagem teológica geralmente tida como pobre. Mas, mesmo que se chegue à conclusão de que os apócrifos sejam textos pobres do ponto de vista teológico e linguístico, eles não deixam de ser um documento, em nível popular, que apresenta as respostas que eram dadas, na época, sobre a espiritualidade humana. Respostas estas que nos oferecem elementos importantes para entender os medos, os sentimentos e as convicções morais da época em que surgiram, e que permaneceram até a época de Dante, quando ele escreveu sua Divina Comédia. As descrições do Inferno e do Paraíso, as representações de anjos e demônios, as correspondências entre culpa e punição nos trazem à memória diretamente a obra dantesca, cujo autor, mesmo sem podermos afirmar que tenha lido as obras em questão, viveu em um ambiente saturado pelas idéias ali descritas. havido um ressurgir cultural da Itália e é quando estudos não só literários, mas também teológicos, filosóficos, jurídicos e científicos passam a se ampliar e se desenvolver na península. Geralmente, um problema comum, discutido por essas ciências, era o da relação homem-Deus, o referente à missão moral e aos deveres do homem, de disciplinamento de todas as formas de saber herdadas da Antigüidade, e a resolução de problemas da vida civil e política, todos temas presentes na Divina Comédia 2. E é pensando nas coisas divinas, muitas vezes apresentadas somente nestes textos apócrifos, que Dante chega a Tomás de Aquino, que definiu com grande clareza os três momentos e os três níveis do possível conhecimento das coisas divinas: duas se referem a este mundo (razão e revelação), e a terceira (visão) se realiza no outro mundo. A vida do além ilustrada por ele, e relativa ao período que precede o Juízo Final, é como será vista em Dante, na Divina Comédia, que repropõe com grande força poética a versão ortodoxa, proposta pelo filósofo, desta primeira experiência das almas após a morte. Para Dante, a razão norteia seu percurso pelo Inferno, a revelação pelo Purgatório e a visão pelo Paraíso. Mas por que Dante imagina fazer uma viagem no além-túmulo para ver e descrever a situação em que se encontram as almas dos mortos e por que escolhe o poeta latino Virgílio como guia no Inferno e no Purgatório e Beatriz antes e S. Bernardo no final do Paraíso? A razão da viagem está no fato de ele, com a Comédia, propor uma redenção moral da humanidade que via submetida ao apego dos bens terrenos e às paixões mundanas e, portanto, destinada à perdição eterna [...] E esse fim escatológico e salvador propõe alcançar uma descrição figurativa do além túmulo. Desse modo, podemos, e devemos, dizer que a Comédia é em essência um grande livro escrito para a salvação moral da humanidade, vale dizer para libertá-la, com a ajuda e a assistência da graça de Deus, do pecado a que o poeta, cristão e crente absoluto, a via submetida. Nesse sentido fazse porta-voz moral e cultural, no sentido mais alto e com força doutrinal e poética excepcional, como veremos, do espírito da Idade Média, ansiando não ao gozo dos bens terrenos ou temporais, mas àqueles celestiais, segundo a mensagem cristã, da qual Dante se faz um convicto defensor. (DISTANTE, 1999, p. 13). Mas Dante não parece ter sido influenciado somente pela visão tomista. Historicamente falando, e aproximando-nos mais do período de Dante, tentando seguir a orientação da formação intelectual da época, já na segunda metade do século XII, é possível dizer que a Europa ocidental foi inundada por várias traduções do grego e do árabe. Os dois maiores centros dessas traduções foram Palermo (Itália) e Toledo (Espanha). Toledo foi um grande centro de cultura multilinguística e teve um papel fundamental como centro de estudo entre os séculos X, XI e XII. Entre os principais tradutores de Toledo está Avendauth, que traduziu a Enciclopédia de Avicena. Em muitos casos, era o clero o responsável por essas traduções. Convém lembrar ainda que, entre os séculos XI a XIV, parece ter O espírito de Dante denota um sentimento de mundo fundado sobre uma fé muito grande, um juízo seguro e uma grande força de vontade. É possível observar que se para nós, homens contemporâneos, é imprescindível saber quem somos, o que viemos fazer aqui e para onde vamos, para o Dante da Divina Comédia, o problema central é conhecer o lugar limitado que ocupa o homem no universo, criado e dominado por Deus. Ou seja, para Dante o homem não é nada sem Deus. De tal maneira, toda a estrutura simbólica de seu poema, tanto em seu desenho figurativo como na sua organização de conceitos morais, é baseada em uma total aceitação da vida cristã assim como ela era concebida durante sua época, mesmo que sua visão política seja completamente 2 direitos humanos, para depois indagar por que não seriam o direito à arte e à literatura também importantes para a integridade física e espiritual do homem. Dessa maneira, é possível arriscar dizer que muito da arte produzida até a Idade Média era impregnada pelas ideias representadas nos apocalipses apócrifos. Para Antonio Candido (1989), em seu texto Direitos humanos e literatura, a literatura deveria atuar como agente formador do sujeito social. O crítico literário, em um primeiro momento, destaca o que são Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015. 98 adiante de seu tempo e pense no homem como dono de seu próprio destino. Assim, um elemento muito forte para a representação desta simbologia é a língua. Dante é considerado o pai do idioma italiano porque reconhece a supremacia do vulgar sobre o latim, em uma realidade cultural de plurilinguismo que se apresenta durante a Idade Média. O vulgar que ele propõe é uma língua literária substancialmente toscana, de derivação siciliana, mas toscanizada, a língua da sua poesia. O conflito linguístico vulgar/latim, demonstrado em suas reflexões, reflete diretamente o conflito político entre uma concepção laica do Estado e uma concepção eclesiástica, e propõe que a Itália só poderia ter uma identidade político-cultural se seus intelectuais adotassem o vulgar italiano e os valores que este exprimia não só poética, mas também politicamente. Com Dante, torna-se evidente, pela primeira vez, a função pedagógica e civil dos intelectuais na formação de uma língua italiana. Através da leitura da Divina Comédia, o leitor culto italiano teria, pela primeira vez, a clara sensação de pertencer a uma civilização que, mesmo resguardadas suas características individuais, possuía bases comuns. Graças à linguagem de Dante, a sua integração se estende para além – nos reinos do cômico, do pavoroso, do coloquial. Ninguém antes dele tinha introduzido tais aspectos no domínio da comparação entre os mitos clássicos e os bíblicos. Talvez seja por isso que se torne possível dizer que todo o saber da Idade Média se encontra condensado na Divina Comédia. De poesia e crítica, o autor conhece as poesias dos sicilianos e dos poetas toscanos e vê com clareza o percurso da poesia que passa de um ideal cortês a um mais espiritual dos stilnovisti. É ele também um grande experimentador de diversos gêneros poéticos e é este exercício que lhe prepara o caminho para a Divina Comédia, onde se utiliza do trágico, do cômico e também de uma pluralidade de linguagens. É por isso que não se deve considerar que a Divina Comédia represente um novo gênero, tão original e extraordinário que Dante tenha criado do nada. Na realidade, o grande mérito do autor está no fato de ele ter reunido vários conceitos, vários pensamentos que estavam adormecidos por trás de formas literárias já existentes como: lendas, visões, tratados, sonetos, canções e outros tantos gêneros literários já divulgados na época, mas que, na maioria das vezes, não tinham seu valor reconhecido. A substância de seu “gênero inovador” está na tradição popular criada em torno dos segredos da alma, e é esta imagem que o 3 “A representação e a lenda saem da sua grosseira vulgaridade e se elevam aos mais altos conceitos da ciência; a ciência sai do santuário e se faz povo, se faz mistério e lenda.” Tradução nossa. autor quer representar. “La rappresentazione e la leggenda esce dalla sua rozza volgarità e si alza a piú alti concepimenti della scienza; la scienza esce dal santuario e si fa popolo, si fa mistero e leggenda.” (DE SANCTIS, 1978, p. 146) 3 Indo ainda mais fundo nas questões que envolvem a concepção e a interpretação da Divina Comédia, Dante está falando das visões que se apresentam a ele (ao personagem Dante) quase como projeções cinematográficas ou recepções televisivas num visor separado daquela que para ele é a realidade objetiva de sua viagem ultraterrena. Mas para o poeta Dante, toda a viagem da personagem Dante é como essas visões; o poeta deve imaginar visualmente tanto o que seu personagem vê quanto aquilo que acredita ver, ou que está sonhando, ou que recorda, ou que vê representado, ou que lhe é contado, assim como deve imaginar o conteúdo visual das metáforas de que se serve precisamente para facilitar essa evocação visiva. O que Dante está procurando definir será, portanto, o papel da imaginação na Divina Comédia, e mais precisamente a parte visual de sua fantasia, que precede ou acompanha a imaginação verbal. (CALVINO, 1988, p. 99). Pela constatação de Calvino, podemos perceber que a obra nasce de um encontro entre uma experiência de angústia e uma forte convicção de princípios, de uma forte reconquista da fé, que se reconhece no encontro cotidiano com a realidade que tenta renegá-la. Esta fé é fonte de expressão não só da angústia do poeta, mas também de sua revolta em relação aos princípios morais que estão sendo feridos pela Igreja naquele momento histórico vivido por ele. Por isso faz-se importante também entender os modos pelos quais se articula a memória de Dante na Divina Comédia. O primeiro é o já indicado no primeiro verso do poema: a memória cronológica. Nel mezzo del cammin di nostra vita mi troverai per una selva oscura, che la diritta via era smarrita. (Inf. I, 1-3). 4 Essa marca de tempo, que é fictícia na sua gênese, mas que se nutre de elementos fortemente reais, fornece a base para todo o poema e é seguida até o fim pelo autor. O segundo modo de articulação da memória se liga a acontecimentos que são verificados somente depois de 1300, ou seja, quando Dante se utiliza da profecia 4 “A meio do caminho desta vida/ achei-me a errar por uma selva escura,/ quando a via veraz deixei, perdida.” (Inf. I, vv. 1-3) Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba 99 inclusive para narrar os acontecimentos que fazem referência à sua própria vida. A união entre os dois troncos de memória acontece espontaneamente e sem criar problemas que não sejam de verossimilhança geral. O autor se vale deste recurso para demonstrar que, através da Divina Comédia, ele atravessa um apocalipse pessoal, uma suspensão de toda lei moral e racional: um drama do qual poderá salvá-lo somente uma intervenção milagrosa, através dos clamores de Beatriz. O poema de Dante é, inclusive para seu próprio autor, uma profecia. Ele não parece reconhecer que sua poesia seja uma ficção. Muito pelo contrário, o poeta diz ser sua narrativa a verdade, a verdade universal. “O que o peregrino Dante vê e diz na narrativa do poeta Dante pretende convencer-nos perpetuamente da inescapabilidade poética e religiosa de Dante.” (BLOOM, 1995, p. 81). E com Curtius (1957, p.394) descobrimos que Ainda que pudéssemos interpretar a sua profecia, ela para nós não teria mais significação. Os dantólogos não precisam mais decifrar o que Dante ocultou, mas é mister levar a sério o fato de que ele julgava ter uma missão apocalítica. Ao explicá-lo, isso deve ser tomado em consideração. Ainda em consideração deve-se levar o fato de que a natureza de Dante é tripartida: Para dar início a qualquer discurso interpretativo sobre a Divina Comédia, faz-se indispensável, antes de mais nada, esclarecer algumas questões. A primeira é esta: Dante é, geralmente, distinto em três papéis: o de autor, o de narrador e o de personagem. Como autor é aquele que escreve a obra; como narrador é aquele que conta aos autores os acontecimentos que compõem a trama da obra; como personagem é o protagonista dos próprios eventos narrados. Naturalmente, a sequência autor-narrador-personagem, válida para o leitor que se aproxima da Divina Comédia e descobre no autor o narrador e no narrador o personagem, se inverte totalmente para Dante, o qual, de protagonista de uma visão, se faz narrador da mesma e, então, autor de uma obra que conta aquela visão.[...] Algumas vezes, o autor, quase que como querendo sublinhar a diferença entre os papéis, (isto é, do narrador e do personagem) e querer afirmar o seu direito em exprimir juízos sobre o significado moral e anagógico do acontecimento narrado, diz ‘da nossa vida’ com o claro objetivo de envolver, desde o primeiro verso, toda a humanidade na experiência do personagem. (DE BELLIS, [2000?], paginação irregular]. Dante autor, ao idealizar sua obra, tomou por base muito de seu conhecimento do mundo pós-morte, adquirido talvez através da leitura de vários textos como, por exemplo: a Visio sancti Pauli, Il libro della Scala ou mesmo o Apocalisse di San Pietro. Esta não é uma afirmação que se possa fazer sem restrições, pois não há fontes históricas ou literárias que comprovem tal fato. Mas o que se pode dizer é que, estudando o percurso trilhado por Dante e as escolhas feitas por ele, seu texto se distancia dos textos canônicos e se aproxima dos textos apócrifos, pouco divulgados na época, principalmente em função de seu caráter “popular” e “inovador”. É ainda relevante o fato de que a personagem Dante não representa somente ele mesmo, mas se coloca como exemplo de cristão em busca da salvação. Essa foi a forma escolhida pelo autor para que o leitor se envolvesse em suas peripécias e participasse ativamente de sua narrativa já que, assim como Dante, o leitor também não conhecia seu próprio destino eterno. Muitas vezes, no decorrer do poema, o poeta fala da missão que lhe foi atribuída por Deus, que lhe permitiu viver esta experiência do além, conhecer as consequências do pecado, purificar seu espírito, como exemplo para aqueles que buscam a salvação de suas almas e a salvação de toda a sociedade civil e religiosa. Esta matéria teológica da salvação, afrontada por Dante autor, o expunha a riscos de suscitar, principalmente no ambiente eclesiástico, muitas reservas e objeções à sua obra. Os dominicanos foram os principais questionadores do poeta. Já em relação aos políticos, sua indignação poderia dificultar, ao menos em um primeiro momento, a circulação da obra. A adoção do vulgar era o obstáculo colocado pelos intelectuais para reconhecer o poema como verdadeira obra-prima; porém, mesmo diante de todas essas dificuldades, a Divina Comédia teve uma grande difusão, comprovada principalmente pelo elevado número de manuscritos através dos quais foi transmitida. Parece evidente, mas é importante ressaltar que, mesmo o poema tendo nascido em um momento de grande efervescência não só política, mas também religiosa e cultural, quase que à beira de uma crise, é de uma sobriedade e de um equilíbrio que fascinam. O autor vive em meio a tantas exaltações dos bens da salvação, proclamada por tantas religiões, mas se mantém fiel a seu objetivo maior, eximindo seu poema de toda banalidade que aquele momento pudesse denotar. Isso torna-se quase que evidente para todos aqueles que acompanharam o peregrino Dante pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso, esperando o Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015. 100 fim triunfal, o momento em que as cortinas se abririam e todos os mistérios seriam revelados. “Depois de Dante, ficou difícil para os autores épicos lidarem com a relação entre descida ao Inferno e busca do conhecimento ou descoberta do futuro.” (ZILBERMAN, 2003, p. 125). Apesar de todas essas possibilidades, presenças culturais e religiosas, e diferentes posições críticas, torna-se possível afirmar que Dante integra todas essas idéias e mundos em uma síntese que expressa artisticamente a totalidade da concepção cristã medieval das coisas terrestres e celestes. Mesmo que a Divina Comédia fosse isentada de seu valor poético, ela permaneceria como uma das mais originais criações vistas até hoje, e que antecipou as linhas fundamentais da filosofia humanista. Otto Maria Carpeaux (1965, p. 26) afirma que: Foram esses letreiros que me ensinaram o realismo histórico de Dante: a identidade do Inferno com a vida turbulenta, odiosa, vingativa do Trecento em Florença, a identidade da vida de Dante com o Purgatório e, em sua fé católica e filosofia escolástica, a realidade do Paraíso. Assim, é possível pensar que o escritor acreditasse, ou pelo menos quisesse fazer crer, ter sido realmente “raptado” e, dessa forma, ter recebido a missão de ser um espírito profético, coisa já muito difundida pelos religiosos anteriores e contemporâneos a ele. A Divina Comédia é um poema que, mesmo sendo supostamente embasado em uma literatura chamada de religiosa, não pode ser lido baseado na autoridade da doutrina cristã, mesmo que a Bíblia tenha sido amplamente utilizada pelo poeta como fonte temática, estilística e narrativa. Talvez seja por essa perspectiva não religiosa que possamos pensar a idéia do título. Comédia nasceu no momento em que o poeta se voltou para os clássicos antigos para obter seu guia e iluminação poética. O epíteto “divina” foi acrescentado na edição veneziana de 1555, impressa por Gabriele Giolito e revisada por Ludovico Dolce, além de ter sido usado, anteriormente, por Giovanni Boccaccio. Muitas outras razões teve Dante para definir como comédia seu próprio texto, visto que comédia, neste caso, em contraste com tragédia, é a obra cuja linguagem é totalmente inadequada para exprimir a realidade que ele quer representar. La tragedia divina è stata tracciata in un misterioso alfabeto non scritto e recitato 5 A tragédia divina foi traçada em um misterioso alfabeto não escrito e recitado pelos anjos ao redor de Deus; para falar do mundo sobrenatural, a Dante não resta mais que a linguagem humana que, aos olhos e ouvidos de Deus, não pode parecer outro que Commedia, dagli angeli intorno a Dio; per parlare del mondo sovrannaturale a Dante non resta che il linguaggio umano, che agli occhi e orecchi di Dio non può apparire che Commedia, eroica e patetica parodia della sua Tragedia altissima e non scritta. Proprio nell’episodio di Gerione Dante propone al lettore una definizione della propria opera che è impastata di umiltà e di superbia. (FERRUCCI, 2007, p. 140). 5 Assim, em oposição a tragédia, o autor usa o termo comédia ainda no sentido que ele tem para a cultura medieval. Dizendo comédia ele não quer se referir ao teatro ou a um tipo de espetáculo, mas às distinções de língua e estilo elaboradas pela retórica. Ele define a comédia como: um gênero de narração poética. Para Dante autor, o termo comédia se refere ainda a uma obra que começa infeliz e termina em felicidade. Por isso a narrativa começa no Inferno, onde se encontram as almas atormentadas, e se encerra no Paraíso, lugar das almas abençoadas, abrindo a possibilidade de salvação para o homem enquanto indivíduo e para os homens em geral. Pensando-se, então, no caminho da salvação, o fascínio do reino do oltretomba dantesco não está no que se pode revelar, na visão que se lhe terá revelado, mas na vivência do sentir. O certo é que, no momento da leitura, o que vemos não é uma miscelânea de textos antigos ou modernos, mas a junção de conceitos e imagens que habitaram, e ainda habitam, o coração da humanidade. O Inferno desenhado por Dante, por exemplo, não contradiz substancialmente a figuração herdada da Antigüidade, a quem deseja voluntariamente filiar-se, escolhendo como seu guia Virgílio. Assim como Enéias, o herói de Eneida, o poeta que narra A Divina Comédia desce ao inferno para conhecê-lo: é lá que encontra as principais personagens da história da Itália, passada e presente, cujo juízo é filtrado pelos valores da igreja, a saber: os pecados capitais, a venalidade, a concupiscência. Dante poeta confere forma ao inferno, em cujo centro inferior, como uma pirâmide invertida, coloca Lúcifer ou Belzebu, imperador do mundo subterrâneo e senhor de todo o mal. Por todos os elementos expostos acima é que faz-se importante ler o poema como uma obra “aberta” e não como um bloco unitário pré-estabelecido em relação a conceitos e formas. A interpretação se faz mais rica quando feita a partir dos instrumentos artísticos utilizados pelo próprio autor e que foram amadurecendo com o tempo, através da reflexão sobre heróica e patética paródia da sua Tragedia altíssima e não escrita. Justamente no episódio de Gerião, Dante propõe ao leitor uma definição da própria obra, que é cheia de humildade e soberba. Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba 101 suas premissas teóricas, com o esclarecimento e o distanciar-se das questões de cunho polêmico, já que a Divina Comédia tem um narrador que também é personagem da ação: é o herói que conta sua própria história. Mesmo assim, não é possível perder de vista que a obra é fortemente unitária, pois há nela uma organicidade narrativa e uma coerência temática muito grande. É uma obra total no sentido em que apresenta uma matéria que implica, necessariamente, dentro da perspectiva cristã, o envolvimento de todas as habilidades das quais a mente humana é capaz. La conoscenza della Commedia non è un evento che si limiti ad interessare il mondo dei retori, dei grammatici, dei filosofi, ma condiziona in modo determinante lo svolgimento della successiva letteratura allegorico-didattica: un fatto, dunque, d’eccezionale portata culturale, idoneo ad investire ogni campo del sapere, ogni atteggiamento morale, tutte le forme dell’espressione letteraria. (PETROCCHI, 1998, p. 60).6 Este interesse geral, instigado pela obra, foi um dos combustíveis para sua fácil e rápida divulgação. De Dante não sobrou nem um autógrafo, nem mesmo uma assinatura. Todavia, a Comédia difundiu-se rapidamente graças à atividade dos copistas. Já na metade do Trecento existiam, em Florença, oficinas para a produção artesanal de cópias da Comédia. (LUPERINI, 1989, p. VIII). Diversos documentos e testemunhos nos indicam que a Comédia penetrou amplamente também em ambientes de cultura não especializada, inclusive entre os mercantes e artesãos. A riqueza de seu conteúdo, o fato de ter sido escrita em vulgar e a eficácia das máximas dantescas fizeram da obra como que um depósito de sabedoria e sentenças morais conhecidas pelo povo. E mais: além da transmissão do texto escrito, em 1373, Giovanni Boccaccio foi encarregado, pela República Florentina, de fazer uma leitura em público da Comédia de Dante Alighieri. Mas sua morte interrompeu a leitura no canto XVII do Inferno. Atualmente, foi Roberto Benigni quem executou esta tarefa e, pela leitura e interpretação do texto dantesco, o ator recebeu o prêmio Oscar TV 2008, como o evento televisivo do ano. O pensamento de Dante não cria uma filosofia nova, pois tem a formação típica de seu tempo, fundada 6 “O conhecimento da Comédia não é um evento que se limite a interessar o mundo dos retóricos, dos gramáticos, dos filósofos, mas condiciona de modo determinante o desenvolvimento da literatura alegórico-didática sucessiva: um fato, pois, de excepcional alcance cultural, idôneo a penetrar em todos os campos do saber, todo sobre uma base de cultura religiosa e clássica, adquirida, sobretudo esta última, através das obras e compilações da tarda antigüidade. E a Divina Comédia não pode ser considerada uma obra filosófica e sim uma obra de narração. O autor, Dante Alighieri, constrói um personagem autobiográfico que conta, envolvendo o leitor explicitamente, a experiência extraordinária por ele vivida em uma época precisa de sua vida, aos 35 anos. O narrador molda seu comportamento sobre o dos profetas bíblicos: ele se coloca como aquele que se refere a uma experiência verdadeira de contato com o sobrenatural. O comportamento profético é confirmado e justificado no Paraíso, onde Dante recebe de autoridades supremas o encorajamento para manifestar a sua visão e transmiti-la aos homens com a mensagem que esta contém. A viagem é um modelo espiritual, a conversão, que concorre para criar a estrutura conceitual e temática com que Dante organiza o poema: o problema da salvação individual de uma alma perdida na selva do pecado, e, o mais geral, da salvação de toda a humanidade, que perdeu o caminho do bem, principalmente por suas opções político-sociais. E é, talvez, pensando no caráter teológico de sua reflexão, que muitos intérpretes de Dante tendem a encontrar as fontes de inspiração do seu poema na tradição teológica, sem considerar que a idéia própria da Comédia represente uma negação substancial de tais fontes, mesmo se não declarada pelo autor. Mas, em contrapartida a esta afirmação, o próprio poeta “[...] in vista del viaggio ultraterreno prospettatogli da Virgilio, esprime i suoi timori e i suoi dubbi e si giudica indegno ad intraprendere una così ardua impresa, affrontata solo da personaggi eccezionali designati da Dio, come Enea e S. Paolo [...].” (BORZI, 1993, p. 21). 7 À inabalável fé na vida do oltretomba, como único e verdadeiro caminho, unia-se, na obra de Dante, o forte sentimento das coisas do mundo. Por isso, o acontecimento terreno de cada indivíduo não podia ser visto como uma realidade definitiva e única, mas como uma ligação imediata entre céu e terra, determinada pelo divino que, futuramente, seria a realidade verdadeira, [...] assim, o acontecimento terreno é uma profecia ou figura de uma parte da realidade divina total que será revelada no futuro. Mas esta realidade não é apenas futura; já está presente na visão de Deus e no outro mundo, comportamento moral, todas as formas de expressão literária.”. Tradução nossa. 7 “[...] em vista da viagem ultra-terrena, inspirada por Virgílio, exprime seus medos e suas dúvidas e se julga indigno de levar avante tal tarefa, enfrentada somente por personagens excepcionais designados por Deus, como Enéas e São Paulo.”. Tradução nossa. Gavagai, Erechim, v.2, n.1, p. 091-104, jan./jun. 2015. 102 o que quer dizer que, na transcendência, a realidade revelada e verdadeira está sempre ou atemporalmente presente. (AUERBACH, 1997b, p. 61). A figura, como está localizada em dois momentos distintos na linha do tempo, ficaria entre a ficção e a verdade, o presente e o futuro. A figura pode surgir como um ídolo, um sonho, uma visão, ou até mesmo uma fórmula matemática, mas, em geral, terá sempre o sentido de prefiguração. De tal maneira, mesmo a Divina Comédia sendo a descrição do estado em que as almas se encontram após a morte, seu tema continua sendo o da vida sobre a terra e todos os acontecimentos que a circundam. Isso é pertinente se se pensa que Dante acreditava realmente na convivência harmoniosa entre a história da salvação e o poder secular, exercido pelos imperadores e papas. Mas ele deixa claro, principalmente na Monarquia que, para que isso ocorra, o poder temporal não deveria ser exercido pelo papa, assim como o poder espiritual não era pressuposto do imperador. O poeta não acreditava somente na convivência pacífica entre poder secular e religioso, mas também na convivência de falas, histórias que se fazem por si, que se utilizam das vozes de seus próprios protagonistas para serem contadas. É dessa forma que Dante torna sua obra polifônica e, utilizando-se deste recurso, mais rica e verossímil. A polifonia prevê a união de várias vozes, pois só assim, para Bakhtin (2005, p. 26), há a possibilidade de se construir um todo. Não ocorre, em cada romance, uma oposição dialeticamente superada entre muitas consciências que não se fundem em unidade do espírito em processo de formação, assim como não se fundem espíritos e almas no mundo formalmente polifônico de Dante. No melhor dos casos, como ocorre no universo de Dante, elas, sem perder a individualidade, nem fundir-se, mas combinando-se poderiam formar uma figura estática, uma espécie de acontecimento estático, à semelhança da imagem dantesca da cruz (as almas dos cruzados), da águia (as almas dos imperadores) ou de uma rosa mística (as almas dos beatificados). Nos limites do próprio romance não se desenvolve, não se forma tampouco o espírito do autor; este, como no mundo de Dante, contempla ou se torna um dos participantes. Foi dessa maneira, juntando as vozes históricas e relevantes para ele, que Dante, tão poeticamente e com tanta criatividade, formatou praticamente todas as imagens do aldilà que povoavam a mente dos homens até a Idade Média. Foi ele quem, com sua genialidade, ousou escolher o gênero apocalíptico e a língua vulgar como forma de expressão de sua maior angústia em relação ao ser humano. Além disso, provou seu amor por sua terra que, naquele momento, podia ser tomada, por ele, como o exemplo maior da corrupção do homem. O que talvez os homens daquela época não entendessem é que a força da arte e, em conseqüência, sua persistência, romperiam barreiras e fariam chegar até nós um dos textos de maior relevância não só literária, mas também histórica do medioevo. Dante, em sua genialidade, utilizou-se da força da cultura, manifestada através de seu povo, para produzir seu poema maior, assumindo o gênero apocalíptico e o italiano vulgar como seus instrumentos, na batalha contra a ignorância e a prepotência intelectual vigentes na época. Por isso, escolher a Divina Comédia como objeto de estudo é mais que um desafio, é a possibilidade de se perceber qual o verdadeiro papel que a literatura e as artes, de forma geral, podem ter no mundo em que vivemos. E aqui, mais uma vez, retomo a idéia de Dante como escritor desvinculado do poder clerical da época, e, por isso também grande chefe político, que se utilizou das armas que lhes eram oferecidas para reverter a ordem tida como “natural” das coisas. Escrever para a elite da época era o previsível, mas voltar-se para aqueles menos letrados, além de ser difícil, era condenar-se ao esquecimento. Com essa escolha dantesca, ouso afirmar que uma cultura jamais poderá ser considerada erudita se não for permeada por uma grande herança popular, que se vê recuperada nas maiores obras do cânone que cultuamos hoje. É também interessante observar que, a partir do instante em que a literatura já não sabe onde começam e onde terminam seus limites, as ciências humanas, também em crise com suas fronteiras, se sentem fascinadas pelo grande potencial dos textos literários, que têm por virtude ouvir as vozes muitas vezes ocultas e trazê-las para um diálogo onde o inconsciente e o transcendente passam a ser a grande estrela. Dessa forma é que vejo Dante como um “resgatador”, como um poeta que soube ler, dentro da sociedade em que viveu, a necessidade de mudanças, principalmente conceituais a respeito da cultura e de seu uso. Mário Praz (1982, p. 70) faz a seguinte observação sobre Dante, que talvez exemplifique o que eu gostaria de dizer: Já em 1892, Janitscheck escrevera que “Giotto descobriu em pintura a natureza da alma, tal como Dante a tinha descoberto em poesia”, e em 1923 Hausenstein concluíra que “São Tomás de Aquino, Dante e Giotto são a expressão teológica, poética e figurativa, respectivamente, do mesmo pensamento”. Gaspari | Dante Alighieri e o deslumbrameneto da Oltretomba 103 Para Rosenthal, a arte de Giotto, como a poesia de Dante, “representa o momento mais alto de um processo de individualização”, o qual consiste “de um lado, no surgimento e progresso da chamada naturalidade, e de outro na progressiva corporificação do sobrenatural numa única vida humana”, processo que se supõe ter começado na França por volta de meados do século XII e ter-se concluído na Itália nos primórdios do século XIV. Praz (1982, p. 81) é ainda mais contundente quando afirma ter “Dante oferecido um espelho ao mundo da eternidade [...]” A eternidade que oferece, ao homem, um novo sentido de esperança, que transcende o mundo terreno, invadindo o desconhecido e fascinante reino do oltretomba. No volume organizado por Bizzarri, Carpeaux (1965, p. 24), incumbido de falar sobre Dante, faz a seguinte afirmação: Certa vez, respondi a um repórter literário que quis saber das minhas leituras habituais: “Todos os anos costumo reler a Divina Commedia inteira.” É verdade. Mas depois assaltaram-me as dúvidas. Não me lembro exatamente quem disse – talvez fosse Tommaseo: “Legger Dante è un dovere, rileggerlo è un bisogno.” Ler Dante é um dever, sim, fosse mesmo só porque – o próprio poeta diz – “mostrò ciò che potea la lingua nostra.” Desta forma, acreditando ter mostrado o que me possibilitou nossa língua, é que finalizo estas considerações e afirmo acreditar que o mais importante não é saber se a Divina Comédia é realmente divina ou se seus fatos são reais ou inventados pelo autor, ou se o texto é reflexo de alguma doutrina da época. Para mim, o que se faz presente, a partir deste momento, é que a literatura é algo que não cabe nos confins determinados pela humanidade e que, por esse motivo, traz ao indivíduo a possibilidade de refletir sobre seu próprio ser e tornar a realidade deste mundo, ou do que está por vir, para aqueles que acreditam nisso, melhor e passível de mudanças. Aí é que acredito residir a magnitude de Dante/poeta/profeta: [...] Dante non poté produrre né imitatori né continuatori: in parte perché la sua opera, la Commedia, aveva caratteristiche eccezionali di grandiosità e complessità che la rendevano inimitabile, in parte perché, pur essendo um 8 “Dante não pôde produzir nem imitadores nem continuadores: em parte porque a sua obra, a Comédia, tinha características excepcionais de grandiosidade e complexidade que a tornavam inimitável, em parte porque, mesmo sendo um verdadeiro laboratório de geniais inovações vero laboratorio di geniali innovazioni e soluzioni espressive, essa non inaugurava un genere, ma anzi nel suo impianto raccoglieva, perfezionava ed esauriva tendenze che venivano già dall’epoca precedente. (LUPERINI, 1989, p. 152). 8 REFERÊNCIAS A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1989. AUERBACH, Erich. Figura. Tradução de Duda Machado. São Paulo: Ática, 1997. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 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