O ESPIRITO DE MIRAMAR NO "LIVRO DE BLANQUERNA" Foi

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O ESPIRITO DE MIRAMAR NO "LIVRO DE BLANQUERNA" Foi
O ESPIRITO D E MIRAMAR NO "LIVRO D E
BLANQUERNA"
Foi precisamente u m p a p a portugues, Joao XXI, ou Pedro Hispano,
natural d e Lisboa, q u e no ano de 1276, a 16 de Novembro, confirmou o colegio de Miramar, em Deya, fundado por Jaime de Aragao, na ilha de MaIhorca. C o m o nota W a d d i n g u s , nos Annales Minorum,
destinava-se este
colegio a treze frades menores, a fim d e ali a p r e n d e r e m arabe p a r a depois
missionarem os povos muculmanos. E p a r a provar q u e tal iniciativa pertencia a R a i m u n d o Lulo e q u e dela falava no Blanquerna, acrescenta o famoso cronista: " U t ita rex faceret persuasit R a y m u n d u s Lullus, qui Sarracenicae gentis convertendae maximo t e n e b a t u r desiderio, i d q u e testatum
ipse reliquit in libro inscripto Blancherno, seu ejus marginator ibidem. E t
in q u i b u s d a m carminibus, seu rythmis idiomate patrio a se conscriptis, praesertim in illo, quo breviter suae vitae recitat c o m p e n d i u m et cui initium
Son creat per esser, etc. U b i ita h a b e t : Lo Monaster de Miramar, fiu a
Fraris Menores donar, per Serranis a preicar enfre la vimja e el fenollar".
E a margen, esta nota: "Lullus in Blanch., lib. 2, par. 2, c. 72". Copiamos k letra e deixamos ao cronista a responsabilidade do catalao.
O p o r t u g u e s Joao XXI conhecia d e sobra a importancia da lingua
arabe, pois muitas vezes trabalhou a base d e versoes latinas deste idioma
e os seus opusculos medicos referem-se, com frequencia, a autores do Islao,
conhecidos n a historia d a medicina, e a medicos gregos traduzidos em
arabe e depois vertidos em latim. Como dissemos atras, a intervengao de
Joao XXI, no colegio d e Miramar, verificou-se a 16 de N o v e m b r o de 1276,
quer dizer, so quase dois meses depois d a consagragao papal.
R a i m u n d o Lulo, esse conhecia directamente a literatura mugulmana,
manejava b e m o idioma arabico e n a d a tao natural como sentir o desafio
d a conversao ao catolicismo desses povos tao perto e tao longe d a Crist a n d a d e . Perto, geograficamente. Longe, pelo idioma e sobretudo pela
religiao.
O Libre de Blanquerna,
"escrit a Montpeller devers lany M.CC.
Lxxxiiij", e u m a das obras mais famosas da I d a d e Media. Consiste n u m a
especie de Guia Espiritual, ou melhor, Novela Exemplar dos Vdrios Esta-
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dos e Oficios da Igreja de Deus: matrimonio, vida religiosa, episcopado,
sumo pontificado, vida ermitica, administracao publica, vida jogralesca,
etc. Muitos destes estados percorreu Blanquerna, neles deixou a marca da
sua pcrsonalidade e dos seus ideais de reforma. Se ele coloca a vocagao
anacoretica no cimo da p i r a m i d e espiritual, e p o r q u e ela possibilitava, para
R a i m u n d o Lulo e para muita gente d a I d a d e Media, a atmosfera mais
propicia, em geral, p a r a a ascensao espiritual, neste m u n d o .
Trata-se d u m livro imaginoso, com estrutura flexivel e tendencias
ecumenicas, nao so pela preocupagao de ensinar todos os idiomas aos pregadores do evangelho (inclusive o tartaro e o turco), mas t a m b e m pelo
cuidado d e aproveitar t u d o o q u e de belo e verdadeiro existia fora da
Cristandade, por exemplo certas obras da literatura religiosa muculmana,
o n d e ecoa o lirismo do Cdntico dos Cdnticos. Verificamos isto n u m a das
partes mais perfeitas do Livro de Bhnquerna,
a saber, o Lihre de Amic e
Amat.
Com efeito, conta Raimundo Lido q u e o visitador dos ermitaes pedira
a Blanquerna q u e escrevesse u m livro devoto p a r a consolacao dos anacoretas. Lembrou-se entao d e u m m u c u l m a n o Ihe ter dito q u e os sufis comp u n h a m parabolas d e amor e contavam exemplos p a r a afervorar os fieis
no caminho do amor de Ala. A imitagao do estilo dos sufis, escreveu Blanq u e r n a o Livro do Amigo e do Amado. E a seguir, juntou-lhe a Art del
Libre de Contemphcio.
Q u e m le o Cdntico dos Cdnticos e mergulha, depois, nas paginas liricas do Livro do Amigo e do Amado, fica pelo menos
a suspeitar q u e ambas as obras sao da mesma familia estilfstica, com raizes
no longinquo Oriente e no q u e poderiamos chamar a sua literatura erotica
do amor divino.
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Nesta obra metodica, a q u e nao falta certo enredo mais ou menos
movimentado de romance, tem papel importante o Jogral de Valor (ou
juglar de valor), sobretudo na cangao final, onde se fala da fundagao de
M i r a m a r . Q u e o Jogral de Valor cantasse essas cobles (coplas) na corte d e
Roma, tal era o desejo do Imperador. Este jogral, q u e foi, por assim dizer,
o cantor da epopeia de Miramar, encontrara-se ja com o ermita Blanquerna
no meio da floresta. O jogral e o Imperador. T a m b e m este era grande poeta, pois diz-nos Raimundo Lulo q u e o jogral cantava cangoes e coplas " q u e
l e m p e r a d o r havia fetes de nostra D o n a Santa Marfa e d e valor".
2
3
1
2
s
RAMON LULL, Libre de Blanquerna (Malhorca, 1914) pp. 377-431.
Ib., pp. 493-495.
Ib., p. 285.
O E S P I R I T O D E MIRAMAR N O "LIVRO D E B L A N Q U E R N A "
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Afonso X, autor das Cantigas de Santa Maria, devia ser esse imperador,
pois ainda vivia e m 1284 e nunca renunciou ao Sacro Imperio Romano.
Isto mesmo salta a vista no comego das Cantigas de Santa Maria: " E q u e
dos Romlios R e y / e per dereit'e Sennor".
A fundagao da escola d e M i r a m a r integra-se n u m a preocupagao universalista d e salvagao, q u e se revela e m passagens iniimeras do Livro de
Blanquerna.
Basta lembrar o Libre de Ave Maria
d e q u e nos copiamos
u n paragrafo da versao castelhana d e 1552: "Ave Maria. Saludos te traigo
d e p a r t e de los moros, judios, griegos, mogoles, tartaros, turcos, bulgaros,
hungaros de H u n g r i a la menor, comanes, beduinos, asasinos, surianos, jacobinos, nestorianos, marotinos, russios, armenios y georgianos. Todos estos
y otros muchos cismaticos e infieles t e saludan p o r mi, q u e sov su procurad o r " . Estes infieis por q u e m eu t e saudo, 6 Virgen Maria, nao te conhecem. C o n t u d o , assemelham-se, por fora, ao t e u Filho. No entanto, vao
direitos ao fogo eterno e p e r d e m a gloria celeste! T e m boca p a r a t e louvar,
coragao p a r a te amar, maos p a r a t e servir, p e s para andar pelos teus caminhos. O r a tu, Senhora, b e m mereces q u e te conhegam, amem, sirvam e
honrem todos os povos d e toda a Terra!
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A caracteristica essencial da acgao de Blanquerna, ao longo das varias
fases da sua vida, consiste n u m a preocupagao constante do desenvolvimento do ensino das ciencias e linguas, ao servigo da expansao d a Igreja, tanto
em d e n s i d a d e como em extensao geografica e h u m a n a .
E R a i m u n d o Lulo (ou B l a n q u e r n a por ele) conta-nos a seguinte parabola: A sombra d u m a arvore carregada de flores e frutos, junto d u m a
fonte clara, estava sentado u m anciao, n u m a cadeira de oiro, p r a t a e marfim. As suas nobres e amplas vestes vermelhas significavam a Paixao do
Filho d e D e u s . O anciao chamava-se E n t e n d i m e n t o e ensinava filosofia e
teologia a muitos alunos. A c o m p a n h a d o pela F e e pela Verdade, B l a n q u e r n a
aproximou-se do E n t e n d i m e n t o e dos respectivos escolares. C u m p r i m e n t a r a m e foram b e m acolhidos pelo mestre e pelos discipulos.
Depois d e breve dialogo, o E n t e n d i m e n t o voltou-se p a r a os alunos e
disse-lhes: Os infieis q u e r e m provas e demonstragoes q u e os levem a acreditar. Pois b e m , chegou a hora d e eles usarem da ciencia q u e t e m , p a r a
honrar A q u e l e q u e Iha deu. C o m cfeito, muitos sabios mugulmanos duvid a m d a sua crenga. C o m os judeus e m cativeiro, acontece o mesmo, pelo
menos a alguns deles. E bastos sao os pagaos sem fe d e especie n e n h u m a .
*
lb., pp. 210-239.
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RAIMUNDO LULIO, Blanqiicrna, t. 1 (Madrid, 1929) p. 219.
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MARIO MARTTNS
Bom e q u e a tenham. Ireis disputar com os descrentes por meio da Arte
Abreviada
de Encontrar a Verdade:
Art abreviada datrobar veritat.
£
este o p r o g r a m a d e boa parte da Corte Imperial, em portugues, tao influenciada por R a i m u n d o Lulo. Com razoes (e nao com a Sagrada Escritura ou
o Alcorao) e q u e se devem converter os gentios, alheios a Biblia e a doutrina
de Maome.
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P a r a a conversao dos homens a religiao crista, era preciso muita instrugao. Por isso, o a b a d e Blanquerna reuniu os monges em capitulo e tratou
d e organizar os estudos: sitio p a r a estudar, horario, mestres e p r o g r a m a a
seguir. Eis senao q u a n d o , entrou u m h o m e m no capitulo, com carta de dois
monges do mosteiro, q u e estudavam na Universidade d e Mompilher e pediam dinheiro p a r a as despesas e livros d e Direito. E r a justo ajuda-los, pois
os mosteiros precisavam de q u e m defendesse depois o direito aos bens
conventuais, em d e m a n d a no tribunal!
Complica-se esta n a r r a d v a com a morte d u m frade, sem assistencia
medica, contam-se fabulas cheias de manhosa sabedoria e, p o r fim, aparece
o p r o g r a m a escolar: Primeiro, B l a n q u e m a ensinaria gramatica, p a r a os
alunos melhor e n t e n d e r e m as ciencias. A seguir, daria ligoes d e logica, para
eles b e m c o m p r e e n d e r e m a filosofia natural e moral, antes d a teologia.
Depois d a teologia, Blanquerna daria aulas d e medicina e, finalmente, ligoes d e jurisprudencia.
U m monge protestou q u e era impossivel a p r e n d e r estas ciencias todas.
Blanquerna, p o r e m , respondeu q u e os escolares iriam estudando o q u e de
c a d a u m a fosse conveniente. E no fim, d u r a n t e u m ano, assimilariam "los
comengaments e la art d e les q u a t r e sciences generals qui son pus necessaries, go es a saber, teologia e natures e medicina e d r e t " .
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Ja se ve q u e o ensino d a "gramatica" implicava o latim. Afora esta
lingua, os monges n e n h u m outro idioma estavam obrigados a saber, afora
o materno, claro. Quer dizer, Blanquerna, q u a n d o a b a d e do mosteiro, nao
pensava em por os seus monges a pregar aos mugulmanos ou aos turcos.
Pelo menos, nao da essa impressao. Mas vamos ler, no Livro de
Blanquerna,
como ele ia fazer t u d o para mobilizar os franciscanos para a pregagao em
lingua arabica.
No Livro da Ave-Maria,
dentro do Livro de Blanquerna,
conta-se o
sucesso do cavaleiro q u e o sobredito a b a d e achara ao p e da fonte, a cantar
cantigas de amor. Convenceu-o Blanquerna a celebrar antes os louvores da
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RAMON LULL, Libre de Bianquerna, ed. cit., pp. 142-143.
Ib., pp. 189-191.
O ESPIRTTO D E MLRAMAB N O "LIVRO D E
BLANQUERNA"
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Virgem Maria, pois era a mais bela de todas as mulheres. E assim fez o
cavaleiro. Ora, em certa ocasiao, q u a n d o u m bispo pregava n u m sinodo
diocesano, entrou na igreja um eclesiastico natural da Ilha d e Malhorca. Na
presenca d e todos, narrou ele como el-rei D . Jaime, senhor daquela ilha,
pelos desejos q u e tinha d e q u e pregassem a Jesus Cristo entre os infieis,
ordenara q u e treze frades menores aprendessem arabe no mosteiro de Miramar. U m a vez b e m dominado aquele idioma, iriam os frades pregar aos
infieis mugulmanos.
E m terra fertil caiu o exemplo. Ali estava u m a boa ideia p a r a honrar
a Virgem Maria! Assim pensou o bispo e determinou fundar outro mosteiro
semelhante ao d e Miramar, na sua diocese, com aprovacao do p a p a e do
cabido. L a estariam igualmente treze pessoas (persones) q u e aprendessem
ciencias e linguas, p a r a bem da Santa Igreja. Chamou-se o mosteiro Benedictus fructus ventris tui e nele entrou o bispo, com alguns conegos e seculares, todos sob a regra de Miramar, da Ilha de M a l h o r c a .
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C o m o se ve, Miramar, na inteneao d e R a i m u n d o Lulo, era so u m comeco, a maneira d a primeira casa d u m a ordem religiosa, destinada as
missoes entre infieis.
B l a n q u e r n a foi sagrado bispo e, mais tarde, eleito p a p a . Ora, aconteceu
q u e , estando ele reunido em consistorio com os cardeais, entrou u m embaixador m u c u l m a n o , trazendo u m a carta do sultao d e Babilonia. Maravilha-se o sultao d e os cristaos q u e r e r e m tomar posse da Terra Santa, emp r e g a n d o a forga das armas, tal qual fizera Mafoma. O p a p a e os cristaos,
insistia ele, deviam mas e imitar a Cristo e os apostolos. Eles converteram
o m u n d o pela pregagao e pelo martirio!
Muito se pensou neste caso e resolveram, por fim, m a n d a r aprender
ciencias e linguas a alguns religiosos mais inteligentes. E resolveram tamb e m que, por todo o m u n d o , se fundassem casas d e estudos, b e m providas
do necessario, conforme o plano do mosteiro d e M i r a m a r da Uha de Malhorca. E os mesrres? Pois bem, ordenou o p a p a q u e se procurassem em terras
d e infieis. Eles a p r e n d e r i a m a nossa lingua e nos a deles! Para acabar,
iriam juntos p a r a essas terras os mestres e os discipulos, a fim d e ai se
pregar o reino d e Cristo. E os infieis q u e tivessem aprendido latim e
conhecessem a doutrina crista, q u e eles recebessem presentes em dinheiro,
bagagens e ricos vestidos, a fim d e abalarem satisfeitos e ajudarem os mission&rios nas terras d o n d e t i n h a m vindo.
8 ib„ pp. 229-231.
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MARIO MARTINS
N a o se tratava unicamente de pagaos. O p a p a enviou emissarios as
regioes da Georgia, d a Grecia, d e Alexandria e da India, a buscar alguns
religiosos cristaos q u e aprendessem a nossa lingua e tomassem conhecimento da verdadeira doutrina, pois eram cismaticos. Depois, voltariam para as
regioes o n d e viviam.
As ordens do p a p a Blanquerna sucediam-se umas as outras, sem esquecer os mouros e judeus q u e m o r a v a m nas terras cristas. Q u e ao menos alguns deles aprendessem latim (apendre lati) e vivessem entretanto a custa
d a Igreja. Depois, seriam declarados livres (francs) e honrados por todos,
servindo p a r a ajudar na convcrsao dos outros judeus e m u g u l m a n o s .
9
Longo nos p a r e c e este capitulo. Porem, ainda maior nos parece a imaginosa iniciativa d e R a i m u n d o Lulo, sobretudo na sua preocupagao dos
conhecimentos linguisticos, como base da evangelizagao em escala ecumcnica. Miramar destinava-se a a p r e n d i z a g e m do arabe. C o n t u d o , ja notamos
q u e Raimundo Lulo (ou Blanquerna, se assim quisermos) pensava t a m b e m
noutros idiomas.
O cardeal do oficio Glorificamus te lembrara ao p a p a Blanquerna que
muitos cristaos viviam a b a n d o n a d o s entre sarracenos e tartaros. Alguns
deles deixavam a fe e nao tinham pregadores do evangelho. Logo o p a p a
resolveu q u e as ordens religiosas mais instruidas fundassem mosteiros de
religiosos, nos confins da terra onde havia cristaos, a maneira dos fronteiros
das ordens militares. U m a v e z ali, q u e aprendessem a lingua do pais e
ensinassem a doutrina c r i s t a !
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Conforme diz o Livro de Blanquerna, alguma coisa se ia fazendo. Com
efeito, dois frades, conhecedores da lingua arabe, foram pregar o E v a n gelho a terra d e m o u r o s . Gragas a iniciativa do papa, passou a. T u r q u i a
u m mensageiro do cardeal Domine Fili e ali encontrou quatro religiosos
q u e sabiam falar turco. B l a n q u e m a enviou belos presentes ao chefe dos
tartaros, q u e era entao senhor d a T u r q u i a , e os quatro frades p u d e r a m pregar a fe crista. N u m a palavra, Miramar e a lingua arabe nao passavam
d u m a p e q u e n a p a r t e d u m programa eeumenico e ambicioso, que abrangia
todos os povos e linguas. Miramar era uma realidade q u e se ultrapassava
como significado universal, lcmbra u m a seta a indicar o caminho, embora
ficasse no comego e durasse poucos anos. R a i m u n d o Lulo, gragas k ideia d e
M i r a m a r n a sua expressao mais ampla, expressa no Livro de
Blanquerna,
11
12
o Ib., pp. 295-298.
10 lb., pp. 329-330.
1 1 Ib., pp. 360-361.
12 Ib., p. 345.
O ESPIRITO DE MIRAMAR NO "iJVRO DE BLANQUERNA
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pocle ficar na historia como um dos raros homens q u e soube pensar e programar e m g r a n d e estilo.
Voltando ao romance, Blanquerna renunciou a C a t e d r a de S. Pedro
e foi viver n u m a ermida, entregue a contemplacao. Certo dia, foi ate ele
u m jogral, a chorar muito pelos pecados q u e fizera no seu oficio. Blanq u e r n a lembrou-lhe q u e todos os oficios tem as suas razoes de ser e dirigem-se todos a fins determinados por D e u s . Cavaleiros, juristas, decretalistas, medicos, artesaos, mercadores, religiosos, ermitaes, enfim homens dc
q u a l q u e r estado, m u n d a n o ou religioso, todos devem orientar-se na devida
direccao. Ora bem, os jograis destinam-se a louvar a D e u s e a consolar os
que, p o r amor dele, a n d a m metidos em trabalhos e sofrimentos. A penitcncia imposta ao jogral, pelos desvios da sua vocagao jogralesca, foi andar
pelo m u n d o , a gritar, a cantar e a explicar, entre gentes d e todas as qualidades e estados, qual a razao d e ser d a jogralia e d e todos os oficios e
estados.
P a r a isso, o ermita B l a n q u e r n a entregou ao jogral o Libre de Blanquerna, ou Libre cle Evast e cle Aloma e cle Blanquerna,
o n d e vinham escritas as obrigacoes de cada estado. E conforme a natureza do auditorio,
leria o jogral esta ou aquela p a r t e da obra, r e p r e e n d e n d o e corrigindo.
Submeteu-se o jogral a penitencia do ermita B l a n q u e r n a e comegou
a andar pelo m u n d o , a ensinar o b o m caminho a homens de todas as castas
e cargos. E eles ficavam a saber o sentido e a missao da teologia, da vida
clerical, da cavalaria, do direito civil e canonico, d a medicina, do comercio,
etc. E pelas pragas, cortes e mosteiros, M ia o jogral lendo o Livro cle
Blanquerna a toda a gente de b o a v o n t a d e .
Vamos assistir a encontros inesperados. O I m p e r a d o r , q u e tantas cantigas fizera e m louvor de Santa Maria, renunciara ao Imperio, na pessoa do
seu filho, e metera-se a caminho da ermida o n d e morava Blanquerna, p a r a
viverem e rezarem juntamente. Por acaso, o I m p e r a d o r encontrou-se com
certo bispo, q u e se encaminhava p a r a Roma. Tencionava o bispo pedir
licenga p a r a se ensinar, em todos os Estudos Gerais, a Art abreviada
datrobar veritat. Pediu, entao, o I m p e r a d o r ao bispo q u e procurasse, em Roma, o Jogral d e Valor e Ihe entregasse certas coplas, a fim de ele as cantar
n a corte pontificia, diante do p a p a e dos cardeaes. F a l a v a m as coplas dos
feitos e santa vida dos apostolos, q u a n d o a vida santa e devota reinava n o
m u n d o : "Senyer ver Deus, rey glorios, / qui a b vos volgues hom unirl /
M e m b r c u s dels vostres servidors / qui per vos volen mort sufrir"...
13
13 lb., pp. 490-491.
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Estas coplas do Imperador, em c a t a l a o , t e m u m nao sei q u e d e pentecostalismo, d e vinda d u m a era nova do Espirito Santo. F a l a do novo
fervor q u e , n a q u e l a epoca, abrasava a Igreja, como se tivessem renascido
os tempos apostolicos, refere-se aos franciscanos, pregadores, a b a d e s e prelados, e acaba pelo desejo expresso d e servir a Virgem Maria e ser ermita
junto d e Blanquerna. Destes versos interessam-nos sobretudo os q u e se
referem a M i r a m a r :
R e m e m b r a t h a n frares menors
lo Salvador, qui volc vestir
a b si lo sant religios,
e h a n fayt M i r a m a r bastir
al rey de Mallorca moros:
iran serrains convertir
per far plaer
a D e u , qui a mort volc venir
per nos h a v e r
A versao castelhana destes versos afasta-se d a edicao critica d e Moss.
Salvador Galmes (Malhorca, 1914), ou autor o tradutor agiu muito a-vontade. Por isso, n e m sempre coincide com o texto catalao acima transcrito.
Ainda assim, nao se afasta demasiado d o essencial:
Ya los Frailes menores
Recuerdan, fervorosos,
D e u n Dios crucificado
Los debidos honores;
Ya en Miramar, dichosos,
Q u e el gran Rey de Mallorca h a destinado,
Y en Colegio fundado,
Se o c u p a n estudiando
E l idioma morisco;
Y en el Cristiano aprisco,
Recogeran al moro bautizado,
Con q u e de Africa el suelo
Volvera a fecundarse p a r a el C i e l o .
15
14
15
Ib., pp. 493-495.
RAIMUNDO LULIO, Blanquerna, t. 2 (Madrid, 1929) p. 274.
O E S P I I U T O D E M I R A M A B N O "j-XVRO D E B L A N Q U E R N A "
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No Livro de Blanquerna,
t o m a m o s a dizer, a fundacao de Miramar
era u m comeco, u m exemplo a seguir e a multiplicar em varias linguas e
povos. Por isso, as coplas do I m p e r a d o r dirigiam-se t a m b e m aos pregadores e homens da Igreja: Q u e fazeis, pregadores? Se tanto amais a D e u s ,
aproveitai a ocasiao e imitai os frades de Miramar.
Abades, bispos e priores, em q u e vos ocupais? Largai os bens da
fortuna e, sem t a r d a n c a n e n h u m a , servi a D e u s q u e e justo.
A cangao t e n d e p a r a u m a especie de mobilizacao d a Cristandade, uns
p a r a a vida apostolica entre os pagaos e outros p a r a a penitencia e oracao, como B l a n q u e m a na vida ermitica. A este se juntaria, em breve, o
I m p e r a d o r q u e escrevera as coplas e renunciara ao trono, como Blanquerna
renunciara a C a t e d r a de S. Pedro.
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