Morrer de Amor, Luto pode causar adoecimento físico?

Transcrição

Morrer de Amor, Luto pode causar adoecimento físico?
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM PSICOLOGIA MÉDICA
ALUNA: KALI VÊNUS GRACIE ALVES
MORRER DE AMOR:
LUTO PODE CAUSAR ADOECIMENTO FÍSICO?
RIO DE JANEIRO
Março/ 2008
ARTIGO
2
MORRER DE AMOR:
LUTO PODE CAUSAR ADOECIMENTO FÍSICO?
Kali Vênus Gracie Alves
Trabalho apresentado ao Serviço de
Psicologia
Universitário
Médica
Pedro
do
Hospital
Ernesto
da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do
título
de
Pós–Graduação
Psicologia Médica.
Orientador:
Prof. Luiz Fernando Chazan
RIO DE JANEIRO
Março/ 2008
em
3
FOLHA DE APROVAÇÃO
MORRER DE AMOR:
LUTO PODE CAUSAR ADOECIMENTO FÍSICO?
Kali Vênus Gracie Alves
Orientador: Prof. Luiz Fernando Chazan
Examinadores:
RIO DE JANEIRO
Março/ 2008
4
Agradecimentos
Agradeço às pessoas que conviveram comigo nesta estrada e que
contribuíram imensamente para a produção deste trabalho, de forma direta ou
indireta. Por serem muitas e igualmente importantes não me sinto capaz de
nomeá-las, mas gostaria que soubessem que sem sua presença não seria
possível completar esta etapa do meu caminho profissional e pessoal.
“Yo tengo tantos hermanos
Que no los puedo contar
En el vale en la montaña
En la pampa y en el mar
Cada cual con sus trabajos
Con sus sueños cada cual
Con la esperanza adelante
Con los recuerdos de trás
Yo tengo tantos hermanos
Que no los puedo contar
Gente de mano caliente
Por eso de la amistad
Con um lloro para llorarlo
Con un rezo para rezar
Con un horizonte abierto
Que siempre esta más allá
Y esa fuerza pa buscarlo
Con tezón y voluntad
Cuando parece más cerca
Es cuando se aleja más
Yo tengo tantos hermanos
Que no los puedo contar
Y asi seguimos andando
Curtidos de soledad
Nos perdemos por el mundo
Nos volvemos a encontrar
Y asi nos reconocemos
Por el lejano mirar
Por las coplas que mordemos
Semillas de imensidad
E asi seguimos andando
Curtidos de soledad
Y en nosotros nuestros muertos
Pa que nadie quede atrás
Yo tengo tantos hermanos
Que no los puedo contar
Y una hermana muy hermosa
Que se llama libertad”
(“Los Hermanos”, música de Atahualpa Yupanqui)
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MORRER DE AMOR: LUTO PODE CAUSAR ADOECIMENTO
FÍSICO?
RESUMO
O presente artigo pretende, através de pesquisa bibliográfica, responder
ao questionamento acerca da probabilidade de adoecimento físico em
conseqüência de questões psicossociais relacionadas ao processo de luto pela
morte de um ente querido. A pesquisa foi realizada entre abril de 2006 e abril
de 2007 em bibliotecas e acessos à internet em sites de busca de artigos
científicos. Os resultados desta pesquisa apontam para diversas formas de
apresentação do sofrimento que incluem, muitas vezes, queixas físicas sem
causa fisiológica diretamente associada e aumento do risco de adoecimento
em períodos subseqüentes à perda. A conclusão possível é a de que o luto por
si só não coloca indivíduos em risco de prognósticos adversos. É a seqüela
psiquiátrica do luto, especialmente do luto traumático, que faz o indivíduo estar
vulnerável ao adoecimento.
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INTRODUÇÃO
O luto é uma reação normal e esperada diante do rompimento de uma
relação significativa – que pode ser por morte, divórcio, aposentadoria,
mudanças forçadas (incluindo o adoecimento) – e que tem impacto sobre o
indivíduo e a família, muitas vezes em longo prazo e até mesmo
transgeracional. Esta reação deve ser entendida como um processo, e não
como um estado, pois envolve mudanças e exige da pessoa uma
reorganização do mundo interno, dos papéis sociais e da vida prática. O
conhecimento já existente sobre este processo permite saber que alguns
fatores específicos (inter-relacionados ou não) podem trazer dificuldades na
elaboração do luto. Isto possibilita maior atenção a situações em que esses
fatores aparecem associados às perdas criando estratégias de intervenção que
possam dar suporte na tentativa de minimizar os agravos potenciais.
O interesse pelo cuidado de pessoas que haviam perdido pessoas (a
linha mestra deste estudo) surgiu em trabalho desenvolvido no CTI do Hospital
Universitário Pedro Ernesto – UERJ, nas discussões sobre cuidados paliativos
e o fim da vida. Entretanto, o questionamento acerca das repercussões
orgânicas no luto deu-se na prática clínica ambulatorial, ao notar que muitas
pessoas, em sua maioria mulheres, apresentavam sinais e sintomas pouco
patognomônicos de agravos classicamente diagnosticáveis e relacionavam seu
início à época de uma perda importante.
Desta forma, pretende-se discutir neste texto, através de revisão
bibliográfica, as possíveis conseqüências na saúde das pessoas que se
encontram em um momento complicado do processo de elaboração do luto.
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MORTE E LUTO NO OCIDENTE
Norbert Elias, em seu livro “A solidão dos moribundos” (2001), traz
alguns aspectos históricos relacionados à morte que podem ajudar a iniciar a
discussão sobre a relação das pessoas com as perdas de entes queridos. O
autor aponta algumas mudanças na forma de morrer, tais como o medo da
morte a sua relação com a culpa e o medo da punição após a morte que a
doutrina da igreja impingia. Segundo ele, a expressão em torno da morte era
mais explícita, fosse de amor ao moribundo ou de desejo pela morte do mesmo
em busca de herança. Elias esclarece que não considera isto melhor ou pior do
que temos no presente, apenas diferente. Ao longo do texto, refere o processo
civilizador como o mais importante fator de transformação na maneira como
lidamos com a morte. Mudanças de comportamento, como o afastamento das
crianças do cenário e do próprio tema da morte (recalcamento da idéia de
morte) e o processo constante de individualização, influenciam as fantasias
acerca da imortalidade. Elias aborda também a maneira informal de tratarmos
o assunto, mais relaciona da a não exposição de sentimentos (individualização)
do que por aproximação com a morte. Os rituais antigos parecem ser
esvaziados de significado e a sociedade moderna parece ainda não ter
encontrado novas formas de expressão. Para Elias, a questão acerca da
construção de sentido é peça chave no entendimento deste movimento, pois
não é possível desconectar a construção histórica e social da categoria
“sentido”; desta forma, seria praticamente impossível alguém ter um sentido
exclusivamente seu sobre algo. Isto poderia despertar sentimentos de solidão
e isolamento social, tanto para quem morre quanto para quem fica. A morte é
retirada das casas e transportada para os hospitais, em uma tentativa de
“esterilização” do sofrimento, tornando um evento sem significado: “uma área
vazia no mapa social”.
Parkes (1998), a partir da teoria do apego de Bolwby (1951), oferece
uma perspectiva acerca da compreensão do processo de luto ao identificar
alguns componentes básicos envolvidos na reação à perda. Cita exemplos tais
como a necessidade de “chorar e buscar” como manifestação da ansiedade de
separação, na tentativa de atrair a pessoa desejada para si; necessidade de
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inibir ou controlar as manifestações de sofrimento, expressando o conflito entre
a necessidade de buscar e simultaneamente conter a expressão de pesar pela
falta de resultado na busca; necessidade de reaprender as concepções básicas
sobre o mundo.
Considerando o caráter irreversível da morte e a capacidade do adulto
enlutado de reconhecer esse fato, o luto propõe quase um conflito permanente
entre a busca de uma condição anterior - a presença do falecido - e a
necessidade de aprender a viver com sua ausência, mesmo contra os desejos
mais íntimos. Esse conflito não é de fácil solução e demanda grandes esforços
e energias para ser enfrentado.
O processo de resolução do luto passa por momentos (ou fases)
divididos apenas como forma de proporcionar melhor entendimento acerca do
processo, pois, na realidade, os limites entre uma fase e outra são borrados e
muitas vezes as pessoas voltam a momentos já passados. Isso não significa
um retrocesso, mas parte do movimento. Essas fases seriam:
A) Entorpecimento ou aturdimento - geralmente a resposta inicial à
perda, que oferece certa proteção à pessoa enlutada, evitando o
reconhecimento mais completo da extensão do sofrimento e de suas
conseqüências. Parece ser mais comum e/ou mais intensa frente a
perdas inesperadas e prematuras.
B) Busca ou protesto - o intenso desejo de recuperação da pessoa
amada e perdida, que leva a comportamentos de busca inócua,
produz forte reação de protesto pela impossibilidade de se alcançar o
objetivo desejado.
C) Desespero e desorganização - o conflito permanente entre o desejo e
sua frustração leva ao desespero, pois não se abdica do vínculo
estabelecido com facilidade e sem sofrimento. O pensamento,
constantemente concentrado nessa tarefa, deixa pouca possibilidade
para dedicar-se a outras atividades, revelando o quanto é importante
o trabalho de busca de uma resolução para o conflito; o mundo
parece estar fora de contexto para o enlutado, tanto quanto este
parece estar fora de contexto para o mundo.
D) Recuperação e restituição - o conflito pode ser solucionado a partir
de uma nova construção do vínculo com o falecido, o que preserva a
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relação em um “outro patamar”; o sofrimento diminui gradualmente,
permitindo um retorno da atenção para o mundo e trazendo a
possibilidade do estabelecimento de novas relações.
A divisão do luto em fases gerais oferece a oportunidade de observar as
reações, quando elas aparecem, mas não considera aspectos subjetivos e
específicos do processo de adoecimento. Pode-se encontrar variações e devese estar atento para respostas diferentes das preconizadas, por isso trabalhase com a idéia de padrões de comportamento. As fases constituem um ponto
de partida para entender o movimento emocional de confronto com a perda,
mas não se deve esperar que se manifestem nessa ordem ou mesmo que
todas elas sejam expressas pelos enlutados.
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LUTO NORMAL E LUTO COMPLICADO
O processo de luto traz consigo diversas formas de manifestações que
podem ser de natureza psicológica, social, comportamental, afetiva e fisiológica
com intensidade e duração bastante variáveis. Podem aparecer interligadas ou
isoladamente, simultânea ou consecutivamente, apontando invariavelmente
para a dificuldade em atravessar esse período. A lista de sintomas e sinais
relacionados ao luto pode ser grande e diversificada, o que não significa que
todas essas respostas estejam presentes ao longo do processo de luto de uma
única pessoa. O que se pode notar é que entre as pessoas enlutadas
aparecem algumas dessas reações, com intensidade variada, de acordo com
diversas circunstâncias, entre elas as características de personalidade e outros
fatores de risco.
A seguir é apresentado um levantamento feito por Stroebe, Stroebe e
Hansson (1993) de respostas emocionais esperadas no processo considerado
normal de enlutamento:

Choque, entorpecimento e dificuldade de acreditar na realidade;

Pesar e tristeza, acompanhados por dor mental e sofrimento, com
choro e lamentação;

Senso de perda devido ao reconhecimento da ausência e da
impossibilidade de recuperação;

Raiva, que comumente pode se voltar contra a pessoa falecida,
familiares, médicos, amigos e mesmo contra o próprio ego 1;

Culpa e arrependimento, que aparecem sob as formas: culpa por
sobreviver, pela responsabilidade da morte ou pelo sofrimento
que ela trouxe e, ainda, pela deslealdade do falecido;

Ansiedade e receios, que aparecem sob a forma de insegurança,
medos ou crises de angústia;
1
Conceito de Sigmund Freud (1895), que designa a instância do aparelho psíquico entre o mundo externo
(superego) e o mundo interno (id). Tem a tarefa de auto-preservação e desempenha essa função dando
conta dos estímulos externos, armazenando experiências sobre ele na memória, evitando o excesso de
estímulos, lidando com estímulos moderados e aprendendo, através da atividade, a produzir modificações
no mundo externo em seu próprio benefício.
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
Imagens repetitivas da pessoa falecida próxima da morte, da
doença, com caráter intrusivo e fora de controle;

Desorganização
mental
apresentando
graus
variados
de
distração, confusão, esquecimento ou falta de coerência;

Sobrecarga de tarefas e dificuldades para sua realização, que
trazem a sensação de estar perdendo o controle, de desamparo e
de sentir-se incapaz de enfrentar a realidade;

Alívio, especialmente após doença longa e sofrida, pelo término
do sofrimento;

Solidão, que se expressa como sentir-se só mesmo quando em
grupo e com picos de sentimentos intensos de isolamento;

Sentimentos positivos também aparecem, a intervalos, em meio
ao pesar.
Os autores acrescentam ainda que em casos de luto complicado, esses
aspectos podem apresentar-se com intensidade ou duração alteradas,
apontando para a impossibilidade de caminhar dentro do processo esperado e
constituindo-se um indicativo da não resolução do luto.
Parkes (1998) aponta alguns aspectos que fazem parte do processo de
luto e que participam como obstáculos na elaboração da perda. Devemos
considerar que cada situação é única e que há uma grande variação da
participação de cada aspecto, entretanto, sempre haverá a interação de
diferentes forças ao longo do processo. Segundo seus achados em pesquisas,
o autor relata alguns fatores que se apresentam como importantes preditores
para o luto complicado. Sendo assim, o acompanhamento e suporte tornam-se
necessários no caminho ao longo do processo de resolução do luto. Tais
aspectos foram organizados por ele de acordo com o período: anterior à morte,
de adoecimento e morte, e posterior à morte. São eles:
1 – Fatores Antecedentes:
1.1 – Relação com o morto (tipo de parentesco, força do apego, grau de
confiança/ segurança no apego, intensidade de ambivalência).
12
1.2
-
Experiências
precocemente
e/ou
na
Infância
maternagem2
(perdas
insegura:
significativas
pais
ocorridas
instáveis,
pouco
responsivos ou superprotetores que poderiam propiciar modelos inseguros
de vínculos para seus filhos).
1.3 - Doença mental prévia (fator importante uma vez que a
vulnerabilidade estaria presente anteriormente à perda).
1.4 - Crises vitais prévias (dificuldades em outras áreas da vida do
enlutado podem complicar a capacidade de enfrentamento do indivíduo).
1.5 - Tipo de morte (prematura, mortes múltiplas, violentas, preparação
para o luto...).
1.6 – Experiências anteriores de perdas significativas (a história
individual de perdas e a maneira como lida com elas pode fortalecer a
capacidade de resiliência ou fragilizar o indivíduo para novas experiências
desse tipo).
2 – Simultâneos:
2.1 - Gênero (mulheres aparentemente são mais vulneráveis).
2.2 - Idade (os recursos para lidar com as perdas parecem ter forte
influência da fase do desenvolvimento em que o indivíduo se encontra;
adultos jovens se mostram mais vulneráveis que idosos).
2.3 - Status Sócio-Econômico.
2.4 - Personalidade (tendência ao pesar, inibição de sentimentos).
2.5 - Nacionalidade (além de questões referentes aos diferentes
modelos culturais e étnicos, podemos destacar o reflexo que esse aspecto
pode ter nos serviços disponíveis, no tipo de amparo que é oferecido aos
enlutados).
2.6 - Religião (crenças e rituais).
2.7 - Fatores culturais e familiares.
3 – Posteriores
3.1 - Apoio social ou isolamento.
2
Conceito de D.W. Winnicott, que fala sobre o conjunto de processos psicoafetivos que se desenvolvem e
se integram na mulher por ocasião da maternidade.
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3.2 - Estresses secundários (perdas financeiras ou sobrecargas de
tarefas relacionadas à perda. Ou ainda novas perdas, imprevistos, que se
associam à dificuldade da perda anterior potencializando os obstáculos à
resolução do processo).
3.3 - Oportunidades emergentes (abertura de opções e situações que
trazem
uma
perspectiva
positiva
em
qualquer
esfera
da
vida.
Acontecimentos positivos podem dificultar o processo por gerar culpa).
Esta exposição de critérios “determinantes do luto” (Parkes,1998)
oferece a possibilidade de observar a enorme constelação de fatores que
influenciam na resolução do luto, além de imaginar as inúmeras combinações
possíveis desses fatores. Permite compreender também a complexidade do
processo e imaginar os recursos necessários para sua resolução.
A dificuldade desse processo de recuperação e restituição é facilmente
subestimada. De fato, o esforço em reconstruir identidade e propósito na vida,
adotar novas regras e qualidades, é uma tensão constante em si mesmo e leva
à sensação de solidão intensa. Apesar de não ser fácil traçar a linha entre luto
normal e patológico, é útil manter em mente a discussão entre luto patológico e
depressão clínica. De forma geral, podemos dizer que o luto patológico
acontece quando a reação de luto não funcionou por alguma razão. Depressão
clínica pode ser considerada em algumas instâncias uma forma de reação de
luto patológico, a partir do momento em que um episódio depressivo
característico pode se instalar como resultado do enlutamento. Certamente,
níveis de depressão ocorrem com freqüência em enlutados sem que cheguem
a atingir os critérios para o diagnóstico de depressão clínica. Como não existe
um diagnóstico clínico oficial chamado “luto patológico”, os que sofrem de
reações mórbidas ao enlutamento e necessitam de cuidado psiquiátrico e/ou
medicamentoso são, com freqüência, tratados por “depressão reativa” ou
alguma condição parecida. O tipo de culpa manifestado pelo sujeito pode dar
uma pista para a diferenciação entre depressão clínica e luto. Worden (1982)
sugere que culpa no enlutamento é comumente ligada a algum aspecto
específico da perda, enquanto a culpa na depressão clínica é associada a um
senso de culpabilidade generalizado.
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Comumente o luto crônico é associado aos estados de humor deprimido,
mas não é necessário que ele impeça o funcionamento cotidiano do indivíduo.
Não raro, pessoas realizam suas tarefas cotidianas respondendo às demandas
domésticas e de trabalho apesar de estarem em luto cronificado. O luto se
torna
clinicamente
relevante
quando
as
reações
depressivas
são
excessivamente intensas e quando o processo de enlutamento é prolongado
demais. O critério de depressão pode ser baseado tanto nos critérios de
intensidade quanto prolongamento. É necessário enfatizar que a ausência de
uma divisão clara entre luto normal e depressão clínica não deve ser
erroneamente entendida como luto e depressão sendo parte da mesma
síndrome.
Prigerson et al (1995) se dedicaram a diferenciar entre sintomas
depressivos do luto normal e luto complicado. Os autores usaram várias
medidas psicológicas para chegar à determinação dos principais elementos do
luto complicado estudando uma população de viúvas idosas. Eles encontraram
que o luto normal apresenta elementos de estresse de separação, estresse
pós-traumático e elementos generalizados de coping (aceitação). Sujeitos que
apresentaram elementos de luto complicado basicamente tiveram funções
globais empobrecidas, mais sintomas depressivos, baixa auto-estima e pobre
qualidade de sono, dezoito meses após a perda do cônjuge. O grupo concluiu
ainda que o luto complicado engloba uma lista específica de sintomas
independentes dos sintomas da depressão relacionada ao luto. Os resultados
de estudos posteriores também apontam para resultados físicos e mentais
diferentes para aqueles com sintomas de luto complicado. O grupo de
pesquisadores continuou a acompanhar os sujeitos com a intenção de validar
suas previsões sobre as conseqüências físicas e mentais do luto patológico.
Apesar de advertir que seus resultados devem ser vistos com cautela dado o
tamanho relativamente pequeno da amostra (N=150), os autores chegam a
algumas conclusões: os sintomas do luto traumático raramente diminuem após
a segunda metade do primeiro ano da perda; os sintomas podem até aumentar
conforme o tempo passe; sujeitos em luto complicado têm risco aumentado de
desenvolver câncer, pressão alta e doenças cardíacas; sujeitos com luto
traumático também apresentam risco aumentado de ideações suicidas na
medida em que apresentam mais sintomas de depressão (36%) que sintomas
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de luto traumático (6%) treze meses após a perda. Os autores concluem que o
luto por si só não coloca indivíduos em risco de prognósticos adversos. É a
seqüela psiquiátrica do luto, especialmente do luto traumático, que faz o
indivíduo estar vulnerável ao adoecimento.
LUTO E FISIOLOGIA
O luto é um evento singular. Ainda que a mesma pessoa tenha
sofrido diversas perdas, cada situação é vivenciada de maneira
específica e diferentes pessoas a vivenciam de formas diferentes.
Além de ser um evento único, traz diversas conseqüências
associadas tal como o estresse que a perda causa. Isto promove um
desgaste intenso, acompanhado por estressores secundários, aos
quais o indivíduo pode ser capaz de adaptar-se após exposição
repetida ou prolongada. Muitas pesquisas apontam para queixas
físicas e sintomas psicossomáticos; discutem o peso do luto sobre a
saúde
física;
outras
analisam
aspectos
psiconeuroendócrinos
associados ou não ao luto.
Parkes
(1998)
relaciona
uma
série
de
sintomas
comumente
apresentados por pessoas enlutadas. Tal lista inclui tanto queixas físicas
quanto psicológicas: nervosismo, depressão, medo de crise nervosa, sensação
de pânico, temores persistentes, “pensamentos estranhos”, pesadelos, insônia,
tremores, alteração do apetite, alteração do peso corporal, redução da
capacidade de trabalho, fadiga. Relata também sintomas menos característicos
do processo de luto, mas também apresentados com certa freqüência: dor de
cabeça, tonturas, desmaios, transpiração excessiva, indigestão, disfagia,
vômitos, períodos menstruais intensos, palpitações, dores no peito, respiração
curta, infecções freqüentes, dores generalizadas, erupções cutâneas, visão
turva. Certamente podemos associar grande parte de tais queixas à presença
de forte estresse e conseqüente relação de somatização do sofrimento. É
importante chamar atenção para essa existência de queixas físicas intensas na
apresentação do luto. Na análise do impacto de uma perda significativa na
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saúde de quem sofre, depende-se de um quantitativo de medidas diferentes
cujas variações e medições possam refletir as condições físicas. Tais medidas
devem ser interpretadas com grande cuidado, uma vez que tanto o diagnóstico
médico quanto a identificação de sensação de adoecimento são produtos de
um
processo
de
tomada
de
decisão
fortemente
influenciados
pela
personalidade do paciente e pelas variáveis dos contextos sociais. Desta
forma, para ser diagnosticado como doente pelo médico, o indivíduo deve
passar por um processo que geralmente começa com certa dose de “autodiagnóstico”; em um primeiro momento, o indivíduo percebe alguns sintomas e
os classifica como sérios o suficiente para apontar para uma condição clínica
que exija tratamento; depois, o sujeito deve buscar ajuda médica baseado
nestes sintomas e, finalmente, o médico precisa concordar com a avaliação do
paciente e diagnosticar a presença de alguma condição medicamente tratável
(Hellman, 2006). Sabe-se, entretanto, que o comportamento de buscar ajuda é
apenas em parte determinado pelos sinais de adoecimento. Muitas vezes os
médicos são procurados para que ofereçam uma terapêutica que em nada
depende da prescrição de medicamentos. Em busca de um “status objetivo de
saúde”, Tessler, Mechanic e Diamond (1976) descobriram que indivíduos
angustiados estavam mais propensos a visitar seus médicos que indivíduos
não estressados. Isso pode sugerir que, comparando status de saúde,
indivíduos enlutados estariam mais propensos a ir ao médico do que indivíduos
que não sofreram perdas recentes. As reações dos clínicos são inúmeras e é
provável que a informação de que um paciente sofreu uma perda importante
recentemente afete o diagnóstico. Médicos tenderiam a diminuir certos
sintomas relacionados ao luto e prescrever um tipo de tranqüilizante suave, por
exemplo. Por outro lado, ao diagnosticar queixas sérias, a tendência seria a de
decidir por hospitalização em caso de viuvez mais frequentemente do que com
pacientes casados, a não ser que seja sabido que o indivíduo viúvo tenha
parentes ou amigos que posam fornecer cuidado.
Como tristeza e desespero são sintomas centrais do luto, a maior
proporção de pesquisas referentes às conseqüências à saúde de quem passa
pelo processo de luto está focada na freqüência e na intensidade da depressão
do enlutado. Tais estudos fornecem evidências convincentes para a proposição
de que luto recente está associado à depressão. Tais pesquisas oferecem
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dados relevantes. Weissman e Klerman (1977) apontam que, normalmente,
mulheres são mais deprimidas do que homens, entretanto, uma comparação
entre casadas e viúvas sugere que a viuvez está associada à depressão
aumentada apenas em homens e não em mulheres. Talvez mulheres fiquem
tão deprimidas quanto homens no início, mas precisem de menos tempo para
se adaptar à perda. Infelizmente muitos estudos disponíveis não separam os
dados por enlutados recentes por sexo e não é possível checar essas
hipóteses. Parkes e Brown (1972) analisaram os escores de depressão de
viúvas e viúvos de Boston após 14 meses de enlutamento: mulheres obtiveram
escores de depressão maiores que homens e indivíduos enlutados são mais
deprimidos que não-enlutados. Não há indicação de interação de status marital.
A diferença dos escores de viúvos para casados é praticamente idêntico para
ambos os sexos. É apenas no acompanhamento em longo prazo, entre dois a
quatro anos, que o gênero faz diferença nas reações de enlutamento.
Entretanto os escores de depressão em viúvos apresentaram um declínio
consistente para ambos os sexos ao longo do período. Uma análise
combinando os dados do segundo, terceiro e quarto anos ainda guarda uma
diferença significativa entre casados e viúvos para homens, mas não para
mulheres. Thompson, Breckenridge, Gallagher e Peterson (1984), em seu
estudo com viúvos idosos descreveram no capítulo sobre depressão, terem
descoberto que o luto recente afeta adversamente a saúde dos cônjuges
sobreviventes. Quando entrevistados dois meses depois da perda, viúvas e
viúvos relataram mais exemplos do desenvolvimento de novas doenças ou a
deterioração das já existentes do que o grupo controle.
Um estudo de Parkes (1998), apresenta algumas evidências de que
consulta por problemas físicos aumentam após a perda. Parkes analisou os
registros médicos de 44 viúvas moradoras de Londres no período de tempo
antes e depois da perda. A comparação da taxa de consulta de seis meses
antes e seis meses depois da perda mostrou um aumento de 2.2 consultas
antes para 3.6 consultas depois da morte do cônjuge. Apesar de ter observado
que grande parte da proporção desse aumento nas consultas se devia a
queixas psiquiátricas, a diferença se mantinha quando apenas consultas para
sintomas não psiquiátricos foram considerados.
18
O “Estudo de Harvard” (Parkes e Brown,1972), apontou que os
indivíduos enlutados passaram quatro vezes mais tempo no hospital durante o
ano após a perda do que pessoas não enlutadas. Clayton (1979) não encontra
diferença em sua amostra total, mas relata que as viúvas jovens passam maior
quantidade de tempo no médico durante seu primeiro ano de enlutamento do
que o grupo controle casado, da mesma idade, no período equivalente. Uma
explicação plausível para a alta taxa de visitas médicas entre os enlutados
desse estudo poderia ser que eles tivessem negligenciado tais visitas durante o
período antes da perda, quando estariam intensamente envolvidas no cuidado
e no bem estar do paciente terminal. Deve-se notar também que “problemas de
saúde prévios” era um dos preditores mais fortes da utilização do serviço de
saúde.
Talvez a evidência mais convincente da possível relação entre
enlutamento e saúde venha da área da mortalidade. Entretanto, até mesmo
essa área não deixa de haver problemas. Na discussão detalhada a seguir dos
achados, é possível identificar algumas questões metodológicas. Farr (1975),
notou as baixas taxas de mortalidade de pessoas casadas em comparação às
não casadas (solteiras), e ainda mais marcada a diferença entre casados e
viúvos. E Kraus e Lilienfeld (1959) descrevem padrões:
- tanto para homens quanto para mulheres, taxas de morte são menores em
casados que em solteiros, viúvos e divorciados.
- O risco para o enlutado é maior nos grupos mais jovens.
- O risco para enlutados quando comparado a homens casados é maior que os
de viúvos comparado a mulheres casadas.
Apesar de os achados indicarem diferenças entre os grupos, é possível
atribuir essas diferenças na mortalidade de indivíduos casados e viúvos à
experiência de perda? Há pelo menos dois aspectos envolvidos nesta questão.
Em primeiro lugar, pode-se duvidar que haja um aumento na probabilidade
condicional de um cônjuge morrer em conseqüência à morte do outro.
Segundo, é possível aceitar o aumento, mas ainda restam dúvidas de que
tenha sido causado pelo impacto psicológico da perda. Não há dúvidas que
fatores psicológicos têm influência em muitos adoecimentos físicos, mas só em
casos raros de “inibição do vago” (termo pseudocientífico, algumas vezes
19
usado por médicos para explicar as causas de morte após um choque
emocional repentino) e nas assim chamadas “mortes causadas por Vodu”
(Parkes, 1998), que parecem ser a única causa.
Reconhecidamente
viúvos
e
viúvas
apresentam
uma
taxa
de
mortalidade mais elevada do que homens e mulheres casados, da mesma
idade. No entanto, o mesmo acontece com indivíduos solteiros. Parkes (1998)
aponta para a possibilidade de que “alguns dos viúvos e viúvas em melhores
condições físicas, casam-se novamente, assegurando, assim, que aqueles que
não se casam caiam nos índices elevados de mortalidade”. Por outro lado,
essa hipótese não justifica o pico na taxa de mortalidade entre viúvos durante o
primeiro ano de luto, identificado por Young, Benjamin e Wallis (1963). Eles
relatam um aumento de 40% na taxa de mortalidade em uma amostra de 4486
viúvos com idade superior a 54 anos. Quase metade dessas mortes ocorreu
nos primeiros seis meses do período de luto. Após esse período inicial, essa
taxa caía rapidamente e atingia os mesmos escores encontrados na população
masculina de mesma idade.
Mellstrom et al (1982) confirmam o risco em sua pesquisa. O grupo
verificou um aumento significativo na taxa de mortalidade de viúvas e viúvos.
Nas mulheres o risco seria maior nos três primeiros meses após a perda e nos
homens durante todo o primeiro ano.
Stroebe et al (1993) descrevem que “as pessoas enlutadas têm
verdadeiramente maior risco de morrer do que as não enlutadas. Isso parece
ser encontrado não apenas em pessoas viúvas, mas também em outros
parentes enlutados. O risco maior está presente nas semanas e meses mais
próximos da morte, e os homens parecem ser mais vulneráveis do que as
mulheres”.
Os problemas cardíacos parecem estar entre as causas mais freqüentes
de doenças que contribuem para o aumento da mortalidade neste grupo de
pessoas. Parkes, Benjamin e Fitzgerald (1969) realizaram uma pesquisa sobre
as causas de mortes de viúvos através dos atestados de óbito, baseada em
pesquisa anterior, feita por Young et al, em 1963. Este segundo estudo
evidencia que 75% das mortes de viúvos nos seis primeiros meses após a
perda de seus cônjuges decorriam de problemas cardíacos, destacando-se
trombose da coronária e doenças coronária arteroesclerótica. Esses resultados
20
foram confirmados e ampliados em uma pesquisa feita sobre mortes repentinas
por problemas cardíacos em mulheres com idades que variavam entre 25 e 64
anos (Cottington et al, 1980). Tal pesquisa evidencia que a morte de uma
pessoa significativa nos seis meses precedentes era presente em uma
freqüência muito maior que a do grupo controle.
“O fato de o luto poder levar à morte em razão de doenças cardíacas
não prova que ele seja, isoladamente, uma causa de morte. Nem sequer
sabemos se o luto provoca a doença ou agrava uma condição que, mais cedo
ou mais tarde, se manifestaria. Talvez os viúvos tenham a tendência a fumar
mais ou mudar seus hábitos alimentares, de modo que aumentam sua
suscetibilidade à trombose de coronária. Se os fatores emocionais estão
diretamente implicados, teremos que explicar como afetam o coração. É
sabido que o estresse provoca alterações na pressão arterial e nos batimentos
cardíacos, no fluxo do sangue pelas artérias coronárias e nos constituintes
químicos do coração. Qualquer dessas alterações podem ter importância na
instalação de um coágulo em uma artéria coronária já doente e, a partir daí,
provocar uma trombose coronariana. No entanto, sem mais pesquisas
podemos apenas fazer especulações a esse respeito”. (Parkes, 1998)
Para Vasconcelos (1992), “os processos psicológicos desencadeiam no
sistema límbico os mesmo fenômenos biológicos que os estressores de caráter
puramente físicos”. Desta forma, o significado atribuído às situações e os
pensamentos desencadeados teriam um efeito sobre o organismo da mesma
maneira que um acontecimento reconhecidamente fisiológico. O autor explica
que
o
sistema
neuroendócrino
é
um
conjunto
de
vários
sistemas
interdependentes, que inclui sistema nervoso central, hipotálamo, hipófise,
tireóide, sistema da supra-renal e gônadas; atua por meio de hormônios e
catecolaminas, que interagem para cumprir diversas funções. Um estudo
conduzido por Kin e Jacobs (1993) indica que há mudanças neuroendócrinas
como respostas adaptativas ao luto, este visto como um evento estressante
com diversas manifestações fisiológicas. A resposta de estresse depende, não
só do estressor em si, mas da relevância psicológica do mesmo, consideradas
as diferenças individuais. A resposta endócrina depende do tipo de experiência
subjetiva do indivíduo.
21
Guerra et al (2003) promoveram um estudo utilizando uma abordagem
integrada na qual parâmetros psicológicos, endócrinos e imunológicos foram
considerados para investigar os efeitos posteriores de um stress psicológico
agudo em sujeitos saudáveis. Seu achado mais acentuado é que mudanças
nos parâmetros endócrinos e imunológicos
são significativamente mais
marcados na fase mais recente após o luto, mas ainda presentes em parte dos
sujeitos após seis meses do episódio agudo associado às medidas do humor.
Em uma meta análise da relação de depressão e outros estressores às
respostas imunológicas, foi revelado que depressão maior e estressores
naturais podem exercer um efeito negativo sinérgico sobre a função
imunológica (Zorrilla et al, 2001), embasando a hipótese de fatores individuais
de vulnerabilidade a eventos estressores relacionados às características
pessoais dos sujeitos. Os autores concluem que os dados, apesar de
preliminares e obtidos em uma amostra limitada de sujeitos, servem de ponto
de observação que pode ter relevantes implicações práticas. Parâmetros
imunológicos e endócrinos (orgânicos) parecem ser mais duradouros que
indicadores psicológicos de stress agudo. Sob um ponto de vista biomédico e
social, isso implica em que um sujeito que é submetido a um estresse
emocional profundo pode não ser considerado completamente recuperado
após seis meses do episódio agudo e ainda deve ser considerado em risco de
possíveis conseqüências de alterações do sistema endócrino e imunológico.
Diferenças imunológicas e neuroendócrinas individuais na reação ao stress
podem ser a chave para um melhor entendimento da conexão entre exposição
crônica ao stress e a patogênese de problemas psicológicos e adoecimento
relacionado ao stress.
Biondi e Picardi (1996), após revisar a literatura sobre aspectos
biológicos de perda e stress em humanos e animais, notaram que numerosas
alterações acontecem nos sistemas neuroendócrino e imunológico por vários
meses seguidos à perda e ao stress. Tais alterações tornam o indivíduo
vulnerável ao adoecimento. Tal vulnerabilidade colocaria o enlutado em risco
de adoecimento físico e mental por aproximadamente dois anos após a perda,
estando homens em maior risco que mulheres. Entretanto, nos casos de luto
não resolvido ou complicado, a vulnerabilidade física e mental permanece
indefinidamente. De acordo com os autores, se o luto permanecer não
22
resolvido, tal vulnerabilidade se torna parte do sistema nervoso do indivíduo,
incrustado, por assim dizer, em seu substrato neurológico. Está preparado o
terreno para o desenvolvimento de depressão maior recorrente.
Danzinger e Willer (2005) relatam um o caso de uma mulher de 32 anos,
portadora de insensibilidade congênita à dor 3. A paciente experimentou dor
física pela primeira e única vez em sua vida pouco tempo depois da morte
súbita de seu irmão. Esta mulher sofreu inúmeras lesões indolores durante sua
infância, incluindo fraturas ósseas e queimaduras severas e a única dor que ela
já sentiu consiste em uma intensa dor de cabeça, que surgiu em um contexto
de forte sobrecarga emocional e ansiedade, três semanas depois de seu irmão
mais novo morrer subitamente em um acidente de carro. A descrição deste
episódio inaugural de dor de cabeça preencheu os critérios para diagnóstico de
cefaléia tensional. Este caso sugere fortemente que a transcrição da dor do luto
em dor física pode ocorrer às vezes independentemente dos mecanismos
periféricos de nocipercepção e apesar da falta de experiência prévia de dor. À
luz de dados experimentais recentes que mostram que o mesmo mecanismo
neurológico que regula dor física pode também controlar a expressão do stress
de separação e o sentimento de exclusão social, este caso único ajuda a
entender melhor porque alguns pacientes podem sentir-se machucados
fisicamente após a perda de alguém que amam.
3
Síndrome clinicamente rara caracterizada por uma incapacidade dramática de perceber a dor, desde o
nascimento. Geralmente causada por neuropatia autonômica e sensória hereditária com perda das fibras
nervosas nociperceptivas de pequeno calibre (Danzinger e Miller, 2005).
23
CONCLUSÃO
A vida nos diz que o luto é inevitável, sofremos com as perdas até nos
tornamos objeto ou fonte desse sentimento. Então, porque considerar o luto
como merecedor de atenção ou tratamento?
A modernidade parece ter trazido consigo certo descompasso entre um
grande desenvolvimento de tecnologias e um empobrecimento das relações
humanas. As grandes famílias foram reduzidas a pequenos núcleos, os ritos de
passagem foram silenciados e a morte, antes encarada como parte do
desenvolvimento humano, retirada das casas e transportada para os hospitais,
em uma tentativa de "esterilização" do sofrimento. Isto coloca os profissionais
de saúde em um lugar de sofrimento e impotência; não há preparação para
lidar com as limitações dos tratamentos e a morte é vista, exclusivamente,
como um inimigo a ser vencido. Por esta razão as questões relativas ao luto
trazem um desconforto importante para os profissionais de saúde. Todavia esta
é uma área de grande potencial terapêutico ao diminuir o sofrimento
desnecessário, ao integrar ações de saúde entre a equipe multidisciplinar e a
rede social do paciente e ao prevenir conseqüências desastrosas de um luto
complicado.
Inúmeros estudos em psicossomática apontam para a impossibilidade
de separação de eventos psicológicos e reações fisiológicas e os dados
relatados reforçam tal afirmação. Estas afirmações atualmente são embasadas
pelo avanço das pesquisas neuroendócrinas, de onde se pode ter uma noção
mais clara acerca da relação do estresse emocional com os sintomas físicos.
Segundo achados em pesquisas realizadas em diferentes décadas, é possível
concluir que apenas o luto patológico não é causa direta de morte ou
adoecimento, entretanto responde como fator importante de risco para o
adoecimento.
Tal conclusão é endossada pelos autores das grandes pesquisas na
área, que afirmam que o luto por si só não coloca indivíduos em risco de
24
prognósticos adversos. É a seqüela psiquiátrica do luto, especialmente do luto
traumático, que faz o indivíduo estar vulnerável ao adoecimento.
25
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