Ano V, número 2, 2014 - Revista Redescrições

Transcrição

Ano V, número 2, 2014 - Revista Redescrições
Revista Redescrições
Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano V, número 2, 2014
ISSN: 1984-7157
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia
Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao
pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de
investigação pragmatista a questões contemporâneas
ISSN: 1984-7157
Corpo editorial:
Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega)
Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia
James Campbell – Universidade de Toledo (EUA)
Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina)
Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica)
Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)†
Inês Lacerda Araújo - PUC-PR
Heraldo Silva – UFPI
José Nicolao Julião- UFRRJ
Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University
Maria José Pereira - UCG
Aldir Carvalho Filho - UFMA
Vera Vidal - Fiocruz
Ronie Silveira – UFRB
Reuber Scofano – UFRJ
Baptiste Grasset - UNIRIO
Expediente
REDESCRIÇÕES
Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF
ISSN: 1984-7157
Editores: Aldir Carvalho Filho e Susana de Castro
Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes
Editor adjunto: Frederico Graniço
Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr.
Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato
Ilustração da capa: "The Transfiguration of Christ”. Gerard David (1c. 1460 – 13 August 1523).
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
Revista Redescrições
Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano V, número 1, 2013
Sumário
Editorial
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Notas & Comentários
ENTREVISTA COM ARTHUR C. DANTO – Susana de Castro
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Artigos
O FIM DA ARTE COMO UM COMEÇO - Rachel Costa
11
O FILÓSOFO ARTHUR DANTO COMO ANDY WARHOL - Marcia Tiburi
34
O FIM DA ESTÉTICA – DADAÍSMO E ARTE POP - Susana de Castro
53
UMA FÁBULA PARA ARTHUR DANTO - Fernando Gerheim e Fabio Mourilhe
51
Tradução
PRAZERES ESTÉTICOS - Carolyn Korsmeyer
68
Resenha
DANTO, Arthur. Andy Warhol. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Editora Cosac Naify,
2012, 208 páginas. por Juliana Araújo
95
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Editorial
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
EDITORIAL
Frederico Graniço
Neste número a Revista Redescrições homenageia o filósofo e crítico de arte
norte americano Arthur Coleman Danto, por sua importância no debate contemporâneo
sobre a arte. Danto foi professor emérito da Universidade de Columbia (Nova York) e
crítico de arte da revista The Nation; até seu falecimento com 89 anos, em outubro de
2013.
Abrindo esta edição, republicamos uma Entrevista com Arthur C. Danto,
publicada na Revista Redescrições do final de 2012 (número 4, ano 3). As questões aí se
referem à concepção de arte do filósofo, à relação existente entre o trabalho do artista e
o caráter da obra já enquanto objeto concluído; trata-se também das pinturas de Jasper
Johns, e sobre a caracterização artística da performance, enquanto uma nova
modalidade que se apresenta no cenário da arte.
Já abrindo a seção de artigos temos O fim da arte como um começo, onde
Rachel Costa apresenta a teoria filosófica de Arthur Danto sobre a arte, sua questão
sobre o "fim da arte", e o "fim da história". A autora apresenta a posição de Danto sobre
a arte
em
seu período "clássico",
o renascimento,
a modernidade e
a
contemporaneidade, ou a "arte pós-histórica" – um momento em que a arte perde a
perspectiva ontológica de um objetivo físico, e recai num pluralismo auto-reflexivo, que
a aproxima da própria filosofia. Nesse enredo, a autora caracteriza e também apresenta
críticas às concepções de Arthur Danto.
O filósofo Arthur Danto como Andy Warhol, de Marcia Tiburi, aprofunda
sobre o mesmo tema. Se Danto considera a Pop Art como um momento de um novo
paradigma na história da arte, com a especificidade de ser um ponto de autoesclarecimento completo que justifica o termo "pós-história", no sentido hegeliano de
que a arte reconhece a si mesma e a todos os movimentos antecessores como
contemporâneos e igualmente possíveis – migrando assim para uma arte auto-reflexiva
que possui valor intelectual filosófico; por outro lado a autora do artigo traz o próprio
filósofo para o centro da baila, ao tentar compreender seu movimento como um
descobrimento de si mesmo. Marcia Tiburi questiona a interpretação de Danto
relacionando o filósofo com o artista, a percepção com o ser percebido, entre Danto e
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Warhol. Nesse sentido, pode-se falar num Andy Warhol filósofo, que teria influenciado
Danto, e num Arthur Danto artista, que teria reconhecido teoricamente o trabalho de
Warhol.
O terceiro artigo, de Susana de Castro, O fim da estética – dadaísmo e arte
pop, contextualiza o tema com um pequeno histórico de alguns movimentos artísticos
do século XX, salientando as diferenças entre o dadaísmo e a arte-pop – uma espécie de
neo-dadaísmo por desenvolver os conceitos contidos no primeiro. Aqui Susana
relaciona os movimentos artísticos a seus contextos históricos, e também às questões
que essas correntes tinham esperança de dar conta.
Fechando essa sessão, Fabio Mourilhe e Fernando Gerheim apresentam Uma
fábula para Arthur Danto, onde os autores mostram as características de uma
instalação fictícia em uma estação de metrô desativada; ali é narrada uma experiência
estética que tem a reflexão de Danto sobre a arte como pano de fundo. O teor do
trabalho acaba por confundir os conceitos padronizados sobre o que conta como obra de
arte, trazendo para a perspectiva do observador a definição do que seria arte. O artista
Kwame através destes questionamentos e intervenções amplia o universo artístico e
abala ‘o curso unificado e os valores de mercado da arte ocidental’.
Na sessão de traduções temos o 2º Capítulo (Prazeres Estéticos) do livro de
Carolyn Korsmeyer: Gender and aesthetics - an introduction. Ali a autora, buscando
a posição da mulher na arte contemporânea, faz um levantamento dos conceitos
modernos que cunharam a discussão estética sobre o belo, e o gosto. Nessa esteira, a
questão polêmica entre o significado da beleza estética é abordada, entre outros, no que
se refere ao caráter da experiência estética – se deve ser apartada ou não da
historicidade, dos interesses e dos desejos.
Fechando este número, na seção de resenhas, Juliana Araújo apresenta uma obra
de Arthur Danto sobre a arte: Andy Warhol. Ali, segundo Araújo, o interesse de Danto
não se reduz a um interesse biográfico sobre o pintor, empresário e cineasta norteamericano; mas também sobre as questões filosóficas envolvidas na arte, e a polêmica
questão sobre “o que torna algo uma obra de arte”. Segundo Araújo, Danto pondera que
uma obra de arte não pode ser caracterizada somente a olho nu.
Frederico Graniço, editor adjunto.
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Notas & Comentários
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
ENTREVISTA COM ARTHUR C. DANTO
Tradução Susana de Castro
O filósofo octogenário Arthur C. Danto é um dos maiores filósofos vivos da
atualidade. No Brasil duas de suas obras forma traduzidas, Transfiguração do Lugar
comum e Após o fim da arte. Abaixo a entrevista que fizemos por email com ele.
Redescrições: de Platão a Heidegger os filósofos tentaram justificar a realidade
especial das obras de arte. Na Origem da obra de arte, Heidegger diz, como você, que a
obra de arte possui um lado bem ordinário enquanto um artefato comum, mas também
possui algo além da sua materialidade, a questão, então, é determinar o que seria esse
outro. A obra de arte diferente dos artefatos são alegorias e símbolos (no sentido grego
dos termos), diz Heidegger. No seu livro Transfiguração do Lugar Comum, você afirma
que as obras de arte são representações. A fim de entender corretamente o que são obras
de arte precisamos definir o que representam. Quais são as diferenças entre o seu
conceito de representação e o conceito de símbolo utilizado por Heidegger para
caracterizar a tradição segundo a qual se move a caracterização da obra de arte? Você
concordaria que ele está apontando para uma realidade fora do artista enquanto você
não?
Danto: através da representação, uma obra de arte é limitada pelo artista e o
seu entendimento. Um templo em nenhum sentido é capaz de se tornar uma edificação
cristã, apesar de que quando o rei se converte ele pode decretar que o templo romano é
agora uma edificação cristã. Isso pode ter ocorrido ao se colocar uma cruz na porta da
frente. Em sentido algum é algo que o rei “descobre”. O arquiteto não se torna um
cristão depois de sua morte. Se Heidegger está se movimentando em direção a uma
realidade fora do sujeito, não há um limite para aquilo que pode ser, e nenhuma verdade
de interpretação. Considere a Torre Eiffel, imagine quando conquistaram Paris os
alemães tivessem declarado que ela seria a Sublimidade do Espírito Alemão. Na minha
perspectiva, apenas o que está nas intenções do artista pertence ao que a obra é.
Redescrições: a arte POP algumas vezes é erroneamente descrita como um
movimento artificial ou superficial, especialmente no que diz respeito às obras de Andy
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Warhol. Você concordaria que os seus escritos sobre Andy Warhol tiveram o efeito de
mostrar o quanto de trabalho árduo se escondia por trás de suas obras?
Danto: Alguma vezes é sugerido que Warhol poderia ter usado como
“readymades” simplesmente caixas de cartolina. De fato, no museu de arte moderna de
Stockholm inúmeras centenas de caixas foram colocadas no edifico para provocarem
efeito. Warhol queria que as caixas tivessem lados e cantos nítidos. Assim, ele tinha que
as ter mandado ser fabricadas de madeira, o próprio oposto do produto pronto
(readymade).
Redescrições: atualmente há uma grande exposição das gravuras de Jasper
Johns em São Paulo1. Como você avalia a sua contribuição para o movimento pop?
Danto: Jasper Johns foi Pop no sentido em que suas imagens são realidades –
números, letras, cores, alvos, bandeiras. Elas são realidades e representações ao mesmo
tempo. São pintadas belamente.
Redescrições: Você conhece o trabalho de Ron Athey? Ele acaba de se
apresentar sua performance “St. Sebastian/50” no Rio de Janeiro no projeto “Entre
Lugares, Rio – Londres”2. Como você vê o efeito das performances para a história da
arte, já que uma performance é um evento único e efêmero enquanto um quadro possui
a vantagem da durabilidade?
Danto: Não conheço o trabalho de Ron Athey. Mas uma performance implica
um corpo, propriedade de uma única pessoa. Marina Abramovic treina seus estudantes
para realizarem suas performances. Dessa forma as performances de Marina podem
fazer parte dos conteúdos do museu. Não sei como solucionar esse problema.
Redescrições: muito obrigada por essa entrevista.
1
2
A exposição “Jaspes Johns – Pares trios álbuns” está no Instituto Tomie Ohtake.
Ron Athey apresentou-se no dia 23 de Junho no teatro Sergio Porto.
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Artigos
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O FIM DA ARTE COMO UM COMEÇO
Rachel Costa1
RESUMO
O artigo interpreta a teoria acerca do fim da arte de Arthur Danto, apontando, ao final,
críticas à proposta do filósofo, sem esquecer de mostrar em que medida a teoria se
mostra frutífera para pensar a arte contemporânea.
Palavras-Chave: Pluralismo, Narrativa, História.
ABSTRACT
The paper interprets the theory about the end of art Arthur Danto, pointing at the end,
criticism of the proposal of the philosopher, not forgetting to show to what extent the
theory proves fruitful for thinking about contemporary art.
Key-words: Pluralism, Narrative, History.
Introdução
A afirmação acerca do fim da arte, pelo seu próprio teor, necessita ser
pormenorizada. Durante as últimas décadas surgiram teorias, tanto elogiosas quanto
drásticas, tendo o fim da arte ou como objetivo, ou como justificativa.Arthur Danto é
um dos que afirmou o fim da arte como justificativa de um processo histórico,
utilizando a filosofia hegeliana como inspiração para realização de sua própria. Este
artigo pretende analisar a tese do fim da arte na perspectiva de Arthur Danto, mostrando
como ele a constrói e quais são os principais problemas derivados da forma como ele o
faz. As questões que surgem dessa escolha são: em quais termos essa afirmação foi
feita? O que ela representa? Quais os benefícios de propor algo tão drástico? Essas
questões colocam o eixo temático de desenvolvimento deste artigo.
1
Sobre a autora: Graduou-se pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais no curso de
Publicidade e Propaganda, e é mestre e doutora pelo Departamento de Filosofia da Universidade Federal
de Minas Gerais na linha de Estética e Filosofia da Arte. Sob orientação do Prof. Dr. Rodrigo Duarte,
desenvolveu a dissertação intitulada Imagem e Linguagem na Pós-história de Vilém Flusser e a tese de
doutoramento denominada Três questões sobre a arte contemporânea. Morou seis meses na França
para um doutorado sanduíche na Université Paris I - Pantheon-Sorbonne, sob orientação do Prof. Dr.
Marc Jimenez. É professora de Estética e Filosofia da Arte da Escola Guignard da Universidade do
Estado de Minas Gerais.Para mais informações: https:/uemg.academia.edu/RachelCosta e
http:/lattes.cnpq.br/4437860296445521. Contato: [email protected].
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A história em narrativas e suas particularidades
Para começar a desenvolver os problemas que emergem dessas questões, é
preciso partir da afirmação dantiana de que ele é um essencialista histórico, o que
significa que a história, sua estrutura e o que ela representa na forma de pensar a arte,
são a chave para a compreensão de sua estética. Tendo a história como a base de sua
investigação, a declaração acerca de seu fim é feita no momento da aceitação de objetos
exatamente iguais a objetos cotidianos como obras de arte, o que Danto chama de
indiscerníveis. O fato que uma obra de arte poder ser exatamente igual a um objeto
qualquer, aponta uma ruptura com o processo da história toda. O que leva ao fato de que
o fim da arte não é o fim da arte propriamente dita, até porque essa seria uma declaração
despropositada, já que obras de arte continuam a serem feitas e o próprio Hegel,
influenciador desse tipo de posição, afirmou a morte da arte como ele conhecia e não o
fim da mesma. Danto diz que Hegel nunca se preocupou com a arte do futuro, somente
afirmou que a vocação da arte estava terminada em seu momento histórico. É
importante compreender que a não preocupação de Hegel com a arte do futuro, não
significa que ela acabou. Hegel diz que a “Idade da Arte” estava terminada, e Arthur
Danto interpreta essa afirmação como: a idade da arte como ele a conheceu estava
terminada (DANTO, 2004, p.84). O que acaba para Danto é a história da arte, a
organização teleológica de modos de fazê-la e pensá-la. E esse fim é extremamente
profícuo,
pois
se
constitui
como
uma
espécie
de
liberdade
por
autocompreensão.Autocompreensão porque a distinção física entre mimesis e realidade
funciona como a base mesma da história da arte, e os indiscerníveis apontam para a
impossibilidade de considerar esse critério como parte da definição de arte, porque são
eles que modificam a forma como a história da arte pensava sobre a arte. O que permite
declarar o fim da arte é a ideia de que só é possível responder à questão acerca da
identidade da arte após o surgimento dos indiscerníveis (DANTO, 2006a, p. xix).
O problema que se sobrepõe a esse é o da compreensão do que seria história
nessa conjuntura.Uma característica ele explicita já em seus primeiros textos sobre o
assunto, é impossível pensar a arte do futuro, pois qualquer tentativa de imaginar o que
será o futuro está arraigada no próprio presente. Para exemplificar essa afirmação,
Danto utiliza a série de imagens do artista francês Albert Robida, denominada “Le
VingtièmeSiecle”, que tem o intuito de retratar, em 1883, como seria o mundo em 1952.
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Albert Robida, “Teatro em casa via Telefonoscópio”, 1883; “Casa suspensa e giratória”, 1883
As imagens, além de demonstrarem que toda a tentativa de imaginação se
ancora, em seus pressupostos mais simples, na situação presente, mostram também que
seria impossível ao artista vislumbrar que em 1915,Duchamp faria “After a brokenarm”
(DANTO, 2004, p.83-4). Elas chegam a serem cômicas, pois pressupõem um mundo
quase como o da série de televisão “Os Jetsons”, mas totalmente impregnado das
características do século XIX. O que permiteDanto concluir que, qualquer compreensão
histórica deve se dar do presente em direção ao passado e não o contrário. É exatamente
isso que LydiaGoehr afirma no prefácio da nova edição de NarrationandKnowledge.
Ela diz que Danto faz filosofia da história de posfácio, ou seja, que ele parte do que
aconteceu para compreender o que está acontecendo agora, e não o contrário (DANTO,
2007, p. XIX). A análise dantiana da arte está fundada na análise do passado, para que
este sirva como base de uma teoria que funciona para o presente e que possa almejar
funcionar também para o futuro.
Essa ideia se explica devido à suaclara inspiração hegeliana para a estruturação
de uma história dialética. A tese do projeto dantiano pode ser resumida pela seguinte
citação: “Há uma espécie de essência transhistórica da arte, sempre a mesma em todo
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lugar, mas ela só se revela por meio da história”2 (DANTO, 1997, p.28). A essência da
arte só se torna clara com o fim da história, pois ela se mostra de acordo com as
características de cada momentoatravés da história. É a consciência dessa essência que
acaba com a história, pois ela se configura como a essência por traz dos téloi
particulares de cada narrativa. Aquilo que une as narrativas dentro da mesma ideia de
arte é justamente a tentativa de conhecer a essência, e essa tentativa é a própria história.
Segundo o filósofo, toda a história da arte, da forma como ela aconteceu, não permitiu
que a filosofia da arte se desenvolvesse dentro da própria arte, pois cada período ou
movimento artístico possui todo um pensamento errado sobre a totalidade da arte. Ele é
errado, pois serve somente para pensar aquele movimento ou período (DANTO, 2006a,
p. xiii). Assim, a história precisou terminar para que a característica filosófica da arte se
tornasse clara.
É nessa perspectiva que se encontra a ideia de um movimento histórico
sistemático da arte rumo a sua autocompreensão. Danto entende que sua proposição
corrobora o resultado alcançado por Hegel de que a arte deve ser consumida pela sua
própria filosofia. Assim, a importância da arte está no fato de ela gerar uma filosofia da
arte. Essa característicanão é relativa apenas à arte contemporânea, mas a toda arte
produzida pelo mundo Ocidental, visto que toda ela depende de uma teoria para existir.
É importante ressaltar que essa teoria não é algo externo, mas parte da própria
manifestação artística (DANTO, 2004a, p.17). A diferença da arte contemporânea para
os períodos da história é que esse é o momento da consciência dessa natureza filosófica,
a qual sempre existiu, mas que era mascarada por características relativas a cada um dos
movimentos. Danto atribui esse pensamento ao próprio Hegel, que afirma, no segundo
tomo dos “Cursos de Estética”, que a arte convida ao pensamento, e isso não se
relaciona com a criação de novas obras de arte, mas com a compreensão filosófica do
que ela seria. Para Danto, a história da arte é uma confirmação das análises hegelianas
(DANTO, 1997, p.32).
Consequentemente, ele apresenta dois momentos da história da arte para,
através da dialética histórica,demonstrar o terceiro, o qual responde positivamente à
afirmação acerca do fim da arte (DANTO, 2004a, p.3). Os dois momentos da história
são chamados de narrativas, i.e., a história da arte possui duas narrativas mestras, uma
2
“(…) there is a kind of transhistorical essence in art, everywhere and always the same, but it only
discloses itself through history”.
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subsequente à outra. O fim da arte acontece porque, ao chegarem ao fim, cada uma
delas permite a tomada de consciência sobre um aspecto essencial da arte. Otélos maior
da história é atingido com os indiscerníveis, visto que eles são a consciência da
característica filosófica da arte, mas eles só foram possíveis, devido a todo o
desenvolvimento histórico pregresso. Nesse sentido, a ideia de contextualização
histórica da obra de arte transforma-se em chave para a interpretação de obras de arte,
poissua localização, como em um gráfico de coordenadas, é condição sinequa non de
sua compreensão como arte.
Obviamente, pensar a história teleologicamente é uma opção restritiva, pois
significa que ela possui um télos a ser alcançado, e se desenvolve com o objetivo de
atingi-lo. Para minimizar a situação, Dantousa a afirmação de Hegel de que algumas
partes do mundo não faziam parte do mundo histórico, para dizer que algumas formas
de arte não fazem parte da arte historicamente, pois estão fora dos limites da arte
(DANTO, 1997, p.26). Essa expressão, os limites da arte (thepaleofhistory), que aparece
no subtítulo de seu livro sobre o assunto, também vem da filosofia hegeliana. O filósofo
tem consciência das limitações de sua proposta, mas, mesmo assim, considera-a
utilizável. Logo, dentro da estrutura da história da arte apenas uma forma de arte é
correta, aquela que se adéqua ao télos da história.E o que caracteriza o fim da arte é,
justamente, a ausência de télos, permitindo afirmar que todas as formas de arte são
corretas e coexistentes (DANTO, 1997, p.27). Por isso, qualquer narrativa após o fim da
arte será falsa, visto que não há uma forma histórica que se imponha (DANTO, 1997,
p.28). O fim da arte não funciona como algo negativo, ou descredenciador, muito pelo
contrário, funciona como o início de um período em que arte se desvincula de suas
amarras históricas.
Em contrapartida à estrutura hegeliana dos momentos da arte, Danto constrói
narrativas que possuem algumas particularidades. A diferença principal é que o télos de
Hegel, não somente está pressuposto desde o início, mas também guia o
desenvolvimento da arte, ou seja, os momentos da história da arte são movimentos rumo
ao télos, enquanto em Danto, as narrativas parecem uma série de acasos que deram
certo, pois seus objetivos estão associados ao progresso de técnicas específicas que no
fim do processo levam à compreensão da essência da arte (DANTO, 1997, p.62). Então,
a história se constitui como um movimento único rumo à compreensão do que seria
essencial na arte pela própria arte.
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Para atingir tal objetivo ele aponta a existênciadas narrativas, as quais são télos
que, naquele determinado momento da história, eram considerados como a essência
mesma da arte. A necessidade de progresso aparece pelo fato de que esses objetivos não
demonstravam o que era, realmente, essencial na arte. Seria necessário, então, que eles
fossem alcançados para que a compreensão de sua não adequação também fosse
atingida. Dessa forma, os limites da história fazem sentido dentro desse contexto, pois
tudo que está fora dos limites da história, está fora da busca da arte de conhecer sua
essência (DANTO, 1997, p.64).
A ideia de progresso só existe quando um parâmetro é fixado como critério,
senão seria somente uma espécie de evolução natural (DANTO, 1997, p.62). Então,
cada narrativa funciona como uma espécie de história da arte inteira. Dessa forma, as
narrativas são estruturas históricas objetivas, as quais são definidas em sua fundação
(DANTO, 1997, p.43) e terminam por gerar uma leitura a-histórica da arte como um
todo, por conferir essencialidade a suas características e desconsiderar todas as outras
(DANTO, 1997, p.29).
A organização exterior das narrativas funciona como a teoria dos paradigmas
de Thomas Kuhn (DANTO, 1997, p.29). Cada narrativa é um paradigma que, ao ser
superado por outro, passa por um processo de transição. Já, para pensar o interior de
cada narrativa Danto utiliza a teoria do falibilismopopperiana. O crescimento do terreno
da arte pode ser representado de forma narrativa porque ele se dá, progressivamente,
rumo à tentativa de produzir algo que se adéque, cada vez mais, ao objetivo que a
sustenta (DANTO, 1997, p.50). E, como a estrutura é progressiva, obviamente a ideia
do falibilismo se encaixa, tendo em vista que cada novo movimento dentro da narrativa
pode mostrar a fraqueza do movimento anterior. Então, o objetivo não está relacionado
com a capacidade de dizer o que é correto ou não, mas em dizer o que já se mostra não
tão adequado assim.
E é exatamente por esse motivo que Danto diz que há teorias, como a de
Panofsky, que não funcionam para pensar o interior das narrativas, apenas a estrutura
como um todo. Panofsky constrói uma história da arte como consequência de formas
simbólicas que substituem uma as outras sem caracterizar desenvolvimento (DANTO,
1997, p.65), ou seja, na perspectiva do filósofo, a teoria de Panofsky funciona para a
arte do mesmo modo que a teoria dos paradigmas de Kuhn para a ciência.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Para construir as narrativas Danto adota Gombrich como base teórica. Este já
havia aplicado a estrutura dafilosofia hegeliana à arte atual, em seu livro “Arte e
Ilusão”. Com Gombrich, o filósofo associa a história da arte à história da arte de fazer
alguma coisa melhor que seus antepassados, e esse fazer é basicamente técnico
(DANTO, 1997, p.50).A história da arte é uma tentativa de fazer cada vez melhor o que
está sendo feito em cada narrativa, e a avaliação de que algo é melhor do que o algo
anterior é pensada a partir do falibilismo.
Utilizando essa série de referências cruzadas juntamente com a ideia de
filosofia de posfácio, Danto desenvolve as narrativas a partir de seu fim, ou seja, se a
história da arte é progressiva, pelo menos a história da pintura terminou (DANTO,
2004a, p.3). Isso deixa antever que ele constrói uma história especificamente da pintura
e está consciente disso, porque acredita que ela funciona como uma espécie de estrutura
central, na qual as outras artes atuam em posição secundária (DANTO, 1997, p.62).
É importante compreender as narrativas enquanto estruturas, pois o seu
conteúdo não é rígido no curso do pensamento do filósofo. Em seu primeiro texto “O
fim da arte”, ele elege Vasari e Croce, respectivamente para embasarem as narrativas.
Em “Após o fim da arte”, a discussão se dá com Vasari e Greenberg. Em “Whatartis”,
ele troca ambas as narrativas, tanto a da modernidade, quanto a da arte tradicional.
Substitui Vasari por Alberti e a teoria da pintura como janela para o mundo (DANTO,
2013, p.1), e afirma que a modernidade tem dois conceitos de abstração, os quais ele
constrói sem recorrer ao Greenberg (DANTO, 2013, p.11). A segunda narrativa passa
por várias opções na obra do filósofo. No próprio “Após o fim da arte”, ele afirma como
narrativas modernistas, a de Greenberg e as de Malevich, Mondrian, Reinhardt entre
outras (DANTO, 1997, p.28). O que significa que ele oscilou entre a afirmação de uma
narrativa única para a modernidade até mesmo no livro que propõe a greenbergiana
como sendo a leitura mais efetiva do período.
O interessante nessa situação é que ela permite duas conclusões: a primeira,
que as escolhas teóricas que constroem o objetivo de uma narrativa não são
cristalizadas; e a segunda, que a ideia hegeliana de uma estrutura progressiva é o
esqueleto de seu projeto filosófico, i.e., as narrativas podem ser repensadas, mas não
descartadas. Além disso, as narrativas são imprescindíveis, pois ele pressupõe a
necessidade de uma teoria credenciadora para cada forma de arte (DANTO, 1997, p.54).
A primeira narrativa é contextualizada historicamente por Arthur Danto através
da afirmação, com base na análise da obra de Hans Belting denominada “O Fim da
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Arte”, de que a arte antes de, aproximadamente, o século XV não era compreendida
enquanto uma realização humana, mas como algo miraculoso. Só no Renascimento a
arte passa a ser realização humana e ganha contornos próximos do que seria a arte
atualmente. O mesmo filósofo, em seu livro “A imagem antes da Era da arte”, fala do
que seria arte no pensamento contemporâneo desde os romanos até 1400 d.C. Como
mostra o título de seu livro, até esse momento a relação cultural com as imagens era
outra. Elas eram compreendidas como possuindo origem divina. Além disso, o conceito
de artista só se torna central com Giorgio Vasari e seu livro “A vida dos mais excelentes
pintores, escultores e arquitetos”3 (DANTO, 1997, p. 3).
Dessa forma, os conceitos de artista e de arte, como são conhecidos hoje,
somente se formam a partir da Renascença, mais propriamente com Vasari(DANTO,
2006, p. 4). Arthur Danto argumenta que o que aconteceu foi uma descontinuidade entre
a arte de antes da era da arte e a arte da era da arte. Assim como há uma
descontinuidade entre a arte da era da arte e a arte após o término dessa era (DANTO,
2006, p. 5). Essa análise inicia o livro “Após o fim da arte” e atesta a ideia de haver um
modelo histórico da arte que começa no Renascimento, visto que a própria concepção
de arte teria surgido nesse momento. O que significa que toda e qualquer manifestação
artística anterior ao Renascimento foi nomeada como tal a partir de critérios elaborados
posteriormente. A partir disso, Danto argumenta que não há qualquer impossibilidade
de se pensar o fim da arte, pois ela possui um começo, e um começo bastante delimitado
temporalmente.
O caminho para o fim
A narrativa de Vasari se inicia com o objetivo Renascentista, a partir da
invenção4 da perspectiva, de produzir obras o mais equivalentes à realidade que lhes dão
origem. O que torna o Renascimento parte de uma narrativa é que a arte grega é
utilizada como influência, mas as imagens produzidas são melhores no que se refere à
adequação ao referente (DANTO, 1997, p.48), ou seja, Danto encontra no
Renascimento um objetivo e o atribui à arte imitativa como um todo. Assim, a
finalidade da primeira narrativa é realizar a aproximação entre representação e realidade
3
Le Vite de Piu Eccellenti Pittori, Scultori e Architettori.
Eu uso a palavra invenção, mas o Danto no texto “O fim da arte” coloca a possibilidade de a
perspectiva ser algo natural que deve apenas ser descoberto (2004a, p.4-6).
18
4
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
e, por isso, é denominada “equivalência ótica” (DANTO, 2004, p.86). O que significa
que existe na história da arte um progresso técnico em prol da ilusão do movimento e
esse progresso a organiza (DANTO, 2004a, p.4).
O fato de o filósofo ter escolhido Vasari como teoria embasadora da primeira
narrativa não é aleatório, mas também não é definitivo. O que deve ser observado é que
o que interessa para configurar a narrativa é a ilusão do movimento. Com Alberti a
proposta continua a mesma, pois utiliza a ideia contida em seu livro “Da Pintura”, e que
foi apropriada por Gombrich, da pintura como janela para o mundo, não devendo haver
diferença entre olhar para uma pintura e olhar para o mundo.
A primeira narrativa chega ao fim com a invenção da fotografia, pois o télos
perde o sentido com a existência de um instrumento que o efetiva (DANTO, 2004,
p.87). A fotografia alcança a retratação da realidade o mais fidedignamente possível e o
cinema alcança a ilusão do movimento (DANTO, 2013, p.3), apenas subentendida na
fotografia. Eles expressam o alcance do objetivo de Alberti, pois no início da
reprodução de imagens em movimento as pessoas não conseguiam diferenciar a
imagem, da realidade, correndo e se abaixando para projeções de trens ou aviões. Logo,
a arte convencional perdeu sua função de representação da realidade, assim como seu
objetivo, e, por isso, o mundo da arte é redefinido (DANTO, 2004a, p.11).
Com o objetivo de contextualizar historicamente o surgimento do modernismo
e, consequentemente, justificar a escolha de uma narrativa, Danto cita Roger Fry e sua
teoria do modernismo como o fim da imitação e o início da criação em arte. Uma nova
narrativa surge, porque a anterior se mostrou equivocada em sua compreensão do que
seria a essência da arte. É através de Fry que Danto explicita a contribuição da primeira
narrativa, por ele associar a arte a algo pensável e não imitado (DANTO, 1997, p.53),
ou seja, o alcance do objetivo da primeira narrativa leva à compreensão de que não está
no aspecto técnico a essência da arte. Com isso, a ilusão do movimento passa a ser
apenas uma característica e não parte de sua essência.
Acontece que a dificuldade de eleger uma narrativa para a modernidade é
bastante grande, pois o período tem mais de mil manifestos vanguardistas diferentes, e o
que os une é justamente a busca pela definição do que seria arte. Através da eleição de
critérios e modos de fazer específicos, cada um deles leva à afirmação de que aquela e
nenhuma outra mais seria a verdadeira arte, a essência da arte (DANTO, 1997, p.28).
Para tanto, Danto trabalha com uma noção de estilo específica. Ao entender estilo como
um conjunto de propriedades de um determinado movimento, que são, posteriormente,
19
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
utilizadas para definir filosoficamente arte, ele vai chamar os modos de fazer arte de
cada vanguarda de estilos. Até porque a mimesis não é um estilo durante o período da
arte tradicional, mas sim, a resposta para a pergunta o que é arte. Ela só passa a ser um
estilo durante o modernismo (DANTO, 1997, p.46).
E, dentre os vários estilos que fazem parte do período, Danto, a partir de
Greenberg, afirma que todos possuem uma mesma tendência, a tendência à abstração. O
porquê de escolher Greenberg como base teórica da narrativa modernista só tem uma
resposta possível: a estrutura de sua filosofia possui as características necessárias para
isso, ela funciona como antítese e pressupõe uma história progressiva. A teoria de Croce
possui a dificuldade de não ser progressiva, o que o levou a Greenberg. Acredito que
devido à série de críticas recebidas pela escolha do último, ele propôs uma nova leitura,
mas sua leitura também considera a abstração como télos da modernidade artística5, ou
seja, a ideia de que todos os estilos vanguardistas apontam para uma mesma tendência
permanece.
Greenberg caracteriza o modernismo como o momento de a arte se
autoquestionar (DANTO, 1997, p.67). Ele compreendeu que o objetivo dos movimentos
é criar uma nova forma de arte, e, com isso, tentou criar a sua própria definição
(DANTO, 1997, p.68). Seu argumento sustenta que há uma característica
fundacionalista na modernidade que leva cada medium da arte a eliminar as
características emprestadas de outros media (DANTO, 1997, p.69). A característica do
medium pintura é denominada planaridade, ou seja, a essência da pintura está na
exploração
da
qualidade
bidimensional
da
tela
e,
com
isso,
eliminar
a
tridimensionalidade tomada emprestada da escultura. Logo, a planaridade não exclui a
representação, exclui apenas a ilusão espacial (DANTO, 1997, p.68). E é justamente a
busca pela pureza de cada meio, que Danto afirma ser o télos da narrativa moderna.
O fim da arte acontece no momento em que os indiscerníveis surgem, ou seja,
no momento do desenvolvimento da história da arte em que um objeto exatamente igual
a outro objeto do cotidiano ganha status de obra de arte. Danto afirma que isso ocorre
em 1964 com a exposição da Pop Art em Nova York, em que Andy Wharol expõe a
5
A teoria greenbergiana traz muitas dificuldades, mas a principal delas é o fato de desconsiderar vários
dos movimentos artísticos modernistas. Sua discussão com o surrealismo e o fato de ter ignorado
Duchamp são exemplos disso.
20
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Brillo Box6. A questão é: porque os indiscerníveis surgem? Segundo Danto, porque a
planaridade alcançou a tautologia. Seu principal exemplo para afirmar a característica
tautológica da planaridade na década de 1960 é o artista Daniel Buren:
Daniel Buren, “Murs de peinture”, 1966-7
Buren é um artista conceitual que leva a ideia da bidimensionalidade ao
extremo. Ele pinta listras coloridas de exatamente 8,7 centímetros de largura
intercaladas por 8,7 centímetros de branco. Danto afirma que com a repetição contínua
de listras exatamente iguais, Buren atesta o fim da pintura (DANTO, 1997, p.138). E,
como a pintura é o veículo da história, não é uma surpresa que ela fosse atacada
(DANTO, 1997, p.114). Logo, o fim da narrativa modernista acontece quando a
distinção entre pinturas e meras paredes não é mais possível.
Danto explica que a consciência da essência da arte é fruto de um caminho de
erros que vão sendo abandonados a partir do momento em que se toma consciência dos
mesmos e essa estrutura progressiva só termina quando são conhecidos seus limites
(DANTO, 1997, p.107). E, o que vem à tona com o fim da narrativa modernista são
esses limites. O fim da narrativa leva à compreensão de que aceitar a arte como arte
significa também aceitar a filosofia que a credencia (DANTO, 1997, p.30). Essa é a
contribuição da narrativa para o conhecimento da essência da arte. A arte tradicional
permitiu, ao chegar a seu fim, a dissociação das técnicas ilusionistas, abrindo para a
necessidade de compreender qual seria então a característica da arte enquanto tal. A
modernidade, ao tentar encontrar essa essência mostrou a característica teórica e
6
Em diferentes textos, Danto aponta datas distintas para demarcar o início da arte pós-histórica. Em
alguns momentos ela se dá na década de 1960, outros na década de 1970 e até 1980. Independentemente
dessa marcação oscilante, a Brillo Box se constitui como um indicador do novo processo, pois ela é o
primeiro exemplo da pluralidade criativa. A partir de então, a sensação de não pertencimento a uma
narrativa se consolida (DANTO, 1997, p. 5).
21
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histórica de qualquer obra de arte, em qualquer tempo. O fim da história se dá com o
esgotamento do objetivo histórico e a consciência das duas coisas que as narrativas
trouxeram à tona, e ambas podem ser visualizadas na Brillo Box. A Brillo é tanto um
posicionamento a respeito da relação entre ilusão e realidade, quanto requer uma base
teórica que a possibilite, pois sem a última ela é apenas uma caixa qualquer. Além
disso, Warhol não somente se apropriou da caixa de Brillo, mas também se apropriou
do trabalho de outro artista. James Harvey, artista abstrato,é o designer responsável pela
caixa de Brillo. A questão que se coloca a partir disso é: o que caracteriza uma obra de
arte? A resposta certamente não é a capacidade de fazê-la ou a característica técnica
daquilo que foi feito. Essa é a chave para a compreensão da filosofia dantiana.
Portanto, Danto mostra que o fim da arte é a autoconsciência da verdade
filosófica da arte (DANTO, 1997, p.122) e a pós-história é o fim do progresso e da
inevitabilidade histórica (DANTO, 1997, p.73). Assim, o fim da arte é uma
reivindicação sobre o futuro da arte, pois reclama que a história progressiva chegou ao
fim (DANTO, 1997, p.43).
A arte após o fim da história da arte
Ficou claro que o fim da arte não implica sua extinção, mas sim o fim de um
processo histórico. Dessa forma, é necessário investigar o que é a arte após o fim da
história da arte. Danto vai denominar o novo período de pós-histórico, ou seja, ele dá
continuidade à sua influência hegeliana, adotando a terminologia cunhada por Kojève,
em sua Introduction à lalecture de Hegel, de 19477. Ao contrário de Hegel, que não
falou sobre o que seria a arte após a sua morte, essa é a principal tarefa de Arthur Danto.
Dando sequência à proposta hegeliana, o tempo pós-histórico é a confirmação da tese
hegeliana de que a arte morreria por se transformar em filosofia, com a diferença que
mesmo ela tendo se transformado em filosofia, ela continua sendo arte. Parece
contraditória a afirmação, mas duas coisas auxiliam o filósofo a sair de uma possível
dificuldade: o conceito de mundo da arte e a compreensão de que a característica
filosófica da arte está no fato de a arte ter se tornado sua própria filosofia. O conceito de
mundo da arte permite pensar a arte stricto sensu, ou seja, mesmo que a arte tenha se
transformado em filosofia, as manifestações artísticas são diferentes das filosóficas, o
7
Emuma entrevista Danto afirma ter participado dos cursos de Kojève na década de 1950 em Paris.
22
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que justifica não somente sua continuidade, como também sua diferença. O fato de a
arte ter se tornado sua própria filosofia implica que a arte realiza um movimento de
autoanálise, ou seja, ela é filosófica porque assumiu essa responsabilidade ao se dar
conta de que essa é sua essência.
Por conseguinte, a arte pós-histórica possui características diferentes das duas
narrativas anteriores, primeiro por não implicar progresso e segundo por propor
pensamento, ou seja, o tempo pós-histórico coloca fim às modalidades deônticas
(DANTO, 1997, p.141) e à divisão entre sujeito e objeto, não importando “(…) muito se
a arte é filosofia em ação ou se a filosofia é arte em pensamento” (DANTO, 2004a,
p.19). A questão que se coloca é porque adotar um adjetivo diferente para tratar da arte
atual se, no caso das narrativas, ele adotou os adjetivos tradicionais, clássico e
moderno?
Danto explicita a necessidade de marcar essa diferença no primeiro capítulo de
“Após o fim da arte”. Para tanto, ele considera outros adjetivos utilizados, como
moderno, contemporâneo e pós-moderno. Afirma que o termo moderno não é utilizado
referindo-se apenas à questão temporal, assim como contemporâneo também não o é
(DANTO, 1997, p. 9). A fraqueza do termo contemporâneo fez com que o termo pósmoderno fosse criado. Sua fraqueza está justamente no fato de que ele não demarca um
estilo e é justamente isso que torna o termo interessante para as artes visuais do
momento (DANTO, 1997, p. 11-12).Para exemplificar essa questão Danto ilustra a capa
do “Após o fim da arte” com o trabalho do artista David Reed:
David Reed, “Fotografia de Vertigo de Alfred Hitchcock, (1958), com inserção da pintura de David Reed
#328”, 1990-93
23
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Reed troca a imagem de fundo de uma pintura qualquer em um quarto de hotel
de uma cena de Hitchcock, por umapintura sua e projeta a cena em uma instalação
montada igual ao quarto do filme (DANTO, 1997, p. xi). Segundo Danto, a “pintura” de
Reed mostra a diferença entre o moderno e o contemporâneo, pois no primeiro existia a
necessidade de manter a pureza do meio, o que não acontece com o segundo.
Isso pode ser percebido na afirmação de Arthur Danto de que não há critério
estilístico na arte contemporânea que permita a confecção de uma narrativa acerca do
período. A caracterização da arte como pós-histórica se dá justamente por isso
(DANTO, 2006, p.15). A modernidade possui uma relação com a história da arte de
continuidade, o que leva à proclamação da morte da arte clássica. Isso não faz sentido
na contemporaneidade, pois tudo que já foi feito está à disposição para ser refeito
(DANTO, 1997, p. 5).
A ideia de adequação à contemporaneidade, ou de a arte merecer o adjetivo
pós-histórico está diretamente relacionada com a ausência de narrativa, ou seja, com a
pluralidade. Esse seria o espírito do tempo atual. O contemporâneo é uma espécie de
narrativa mestra, uma forma de usar estilos disponíveis (DANTO, 1997, p. 10), isto é, a
era pós-narrativa é caracterizada pela existência de inumeráveis possibilidades artísticas,
sendo que o artista não precisa escolher apenas uma (DANTO, 1997, p.148). “Então o
contemporâneo é, na perspectiva de alguns, um período de desordem informacional,
uma condição de perfeita entropia estética. Mas é, também, um período de quase
perfeita liberdade. Hoje não há mais os limites da história”8 (DANTO, 1997, p. 12).
Portanto, o fim da história é a liberação para que os artistas possam fazer o que
quiserem (DANTO, 1997, p.125). Tudo se tornou possível, até a visão de Danto do
futuro da arte é uma probabilidade (DANTO, 1997, p.123). A estrutura pluralista do fim
da arte é uma “torre de babel de conversações artísticas não convergentes” (DANTO,
1997, p.148). Assim, não existe critério a priori para a arte pós-histórica (DANTO,
2006, p.7), e, por isso, Arthur Danto diz que nem pós-moderno, nem contemporâneo são
adjetivos suficientes para designar a arte que está sendo produzida agora (DANTO,
2006, p.14-15).
Toda organização, em prol de uma definição acerca dos critérios que
determinam um período artístico, está diretamente associada com a necessidade de
8
“So the contemporary is, from one perspective, a period of information disorder, a condition of perfect
aesthetic entropy. But it is equally a period of quite perfect freedom. Todaythereis no
longerpaleofhistory”
24
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
pressupor um critério ontológico, que permita realizar a atitude valorativa de afirmar
que um objeto é obra de arte e outro não é. E isso é exatamente o que Arthur Danto
pretende com a pressuposição de uma arte pós-histórica, ele diz que “[p]arte do que
significa o “fim da arte” é a libertação do que se encontrava para além do limite, em que
a própria ideia de um limite – uma barreira – é excludente (...)” (DANTO, 2006, p.11).
Desse modo, a verdade filosófica atual é que “(...) não existe arte mais
verdadeira que nenhuma outra, e nem um único modo de estar”9 (DANTO, 1997, p.34).
O que leva ao questionamento que constitui o cerne da investigação dantiana: qual a
diferença entre uma obra de arte e algo que não o é quando não há nenhuma diferença
perceptiva entre ambos? (DANTO, 1997, p.35). O problema filosófico migrou da
pergunta o que é uma obra de arte, para o porquê de um objeto como outro qualquer
pode ser considerado como obra de arte, pois só com a resposta da segunda a primeira
questão pode ser alcançada. Logo, são duas as consequências da consciência de sua
própria essência: a arte não tem mais como responsabilidade a sua própria definição e
não há aparência necessária para uma obra de arte (DANTO, 1997, p.36).
É preciso mais que a capacidade de ver, ler ou escutar para apreciar a arte
(DANTO, 1997, p.158), pois não há possibilidade de identificar condições necessárias e
suficientes para os predicados estéticos (DANTO, 1997, p.159).Portanto, o estilo não
serve como condição para a definição de arte, visto que fisicamente (estilisticamente)
duas obras de arte podem ser muito próximas, mas terem estilos (significados
incorporados) completamente diferentes.O que faz de sua proximidade física algo
apenas casual (DANTO, 1997, p.167).
Obviamente, essa pluralidade indefinida possui um limite. A afirmação de que
tudo é uma obra de arte não é condizente com a perspectiva essencialista de Danto. Ao
mesmo tempo, a pluralidade é característica constituinte da arte pós-histórica. Essa
dificuldade é resolvida através da afirmação de que tudo pode ser arte, mas nem tudo é.
Logo, a pluralidade de estilos de toda a história da arte está disponível, mas eles não
podem ser reproduzidos (DANTO, 1997, p.197), devem ser contextualizados, porque
imaginar uma forma de arte é também imaginar uma forma de vida 10 (DANTO, 1997,
p.202).
9
Como Danto é um essencialista, considero necessária a tradução do verbo ser para o português levando
em consideração as outras possibilidades verbais menos permanentes, como o caso de estar, parecer,
ficar, haver e existir.
10
Ramme argumenta que, em “O mundo da arte”, Danto combina historicismo com o conceito de formas
de vida de Wittgenstein. “Forma de vida pode significar, entre outras coisas, o conjunto de ações que
25
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
(...) Uma forma de vida é algo vivido e não apenas conhecido. Para que a arte desempenhe
um papel em uma forma de vida, deve haver um sistema bastante complexo de significados
no qual ela faz isso, e pertencendo a uma outra forma de vida significa que se pode
compreender o significado das obras de arte de uma forma de vida anterior somente
reconstituindo o mais relevante sistema de significado que consigamos 11(DANTO,
1997,p.203).
Assim, utilizar o modo de fazer arte de Da Vinci é uma coisa, fazer uma cópia
de Da Vinci é outra completamente diferente (DANTO, 1997, p.198). Porque ao fazer a
mesma coisa que ele fez, na verdade, o que se faz é apenas uma reprodução sem
significado, visto que é possível copiar a técnica, mas não a forma de vida de um
determinado período. Inclusive, a relação com a história se dá de forma exterior, é
preciso que se aprenda minimamente sobre aquela determinada forma de vida para
apreciar outros períodos artísticos (DANTO, 1997, p.203). Apesar de a história ter
chegado ao fim, a necessidade de contextualização histórica continua a vigorar
(DANTO, 1997, p.44). Nesse momento, o caráter filosófico da arte é verificável
enquanto pressuposto ontológico da mesma, e ele só se apresenta devido às conjunções
do processo histórico no qual ela se encontra. É como mostrou o filósofo em relação ao
artista Albert Robida, ou seja, cada manifestação artística é fruto do processo histórico
no qual se encontra, mesmo que esse tenha chegado a seu fim. Deste modo, “[é] parte
do que define a arte contemporânea, que a arte do passado esteja disponível para uso tal
qual desejado pelos artistas. O que não lhes está disponível é o espírito no qual a arte foi
feita”12 (DANTO, 1997, p. 5). Essa é a única restrição do período pós-histórico
(DANTO, 1997, p.199).
É justamente pela junção da contextualização histórica com a impossibilidade
de eleição de critérios físicos que Danto afirma que a história da arte precisa ser
progressiva. Isso porque a escolha de diferentes obras de arte, de diferentes períodos e
que se assemelham na superfície, apenas diz que elas se assemelham fisicamente, nada
acompanha um jogo de linguagem ou que constitui uma linguagem, mas pode significar mais amplamente
o conjunto de condições sociais ou culturais que produz e sustenta uma linguagem” (RAMME, 2009,
p.201). Ela defende que, a ideia de contextualização histórica que fundamenta o conceito de Mundo da
Arte é uma derivação da teoria Wittgensteiniana através do seguinte argumento: “Como a história da arte
acabou em 1964, com a Brillo Boxde Andy Warhol, Danto reformula a sua tese dizendo que a arte se
relaciona agora não com um momento histórico, mas com uma forma de vida” (RAMME, 2009, p.203).
11
“(…) a form of life is something lived and not merely known about. For art to play a role in a form of
life, there must be fairly complex system of meanings in which it does so, and belonging to another form
of life means that one can grasp the meaning of works of art from an earlier form only by reconstituting
as much of relevant system of meanings as we are able”.
12
“It is part of what defines contemporary art that the art of the past is available for such use as artists
care to give it. What is not available to them is the spirit in which the art was made”
26
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
mais (DANTO, 1997, p.163). Os conceitos de mundo da arte e de matriz estilística são
incompatíveis (DANTO, 1997, p.165), pois a informação histórica é necessária para a
apreciação da obra (DANTO, 1997, p.168).
Portanto, o conceito de paradigma de Kuhn, adotado por Danto para
compreender a relação entre as narrativas, mostra-se bastante propício nesse caso. Para
o filósofo, obras de arte clássicas e modernistas continuam a fazer parte do mundo da
arte pós-histórico. Isso porque eles são remanescentes dos paradigmas passados, apesar
de serem contemporâneos. Nesse sentido, não haveria qualquer propósito em obras de
arte como essas, além de diversão imediata (DANTO, 1997, p.34). E, em relação às
teorias, Danto é um tanto mais ousado. Apesar de não afirmar, peremptoriamente, ele
acredita que sua teoria é a embasadora do paradigma pós-histórico. Tanto que afirma:
“Minha única reivindicação sobre o futuro é que este é o estado final, a conclusão de um
processo histórico, cuja estrutura torna-se visível de uma só vez"13 (DANTO, 1997,
p.46). Logo, após o fim da arte nada vai acontecer, pois com o fim do progresso, não
existem mais estágios a serem alcançados (DANTO, 1997, p.140), ou seja, se nada vai
acontecer seu paradigma perdurará indefinidamente.
Análise crítica
Em primeiro lugar é preciso confessar que devido às enormes dificuldades
trazidas pelo modo como Danto propôs sua filosofia da história da arteescolhi um
caminho de análise que considerei profícuo, eliminando todos os argumentos que não se
mostrassem estritamente necessários para o desenvolvimento do mesmo. O caminho
escolhido, o foi, tendo como objetivo final alcançar um dos principais argumentos da
filosofia dantiana em relação à arte contemporânea: a pluralidade. O que precisa ser
respondido é porque chegar à pluralidade pelo caminho da história se Danto a
subentende em todos os seus textos? Defendo que, dentro da proposta dantiana, a
pluralidade só é possível de ser sustentada por meio de sua análise da história. Isso
porque antes da tese do fim da história seu essencialismo o fez propor características
estilísticas para a arte, como também, a retomada da ideia de gênio. Em “Após o fim da
arte” o filósofo deixa claro, como foi exposto acima, que a ideia mesma de estilo é
incongruente com a pluralidade. Isso, em detrimento de ter utilizado o estilo como
13
“My only claim on the future is that this is the end state, the conclusion of an historical process whose
structure it all at once renders visible”
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critério tanto em seu texto “O mundo da arte”, quanto em “A transfiguração do lugar
comum”, sua principal obra filosófica. É com a história queDanto consegue colocar a
pluralidade como pressuposto da ausência de narrativa sem que essa se choque com seu
essencialismo. O problema está em como ele o faz.
O filósofo, ao propor narrativas, as escolhe de “outras pessoas”. Ele parece
querer mostrar o realismo dessas narrativas ao afirmar, implicitamente, que não é
somente ele quem pensou a arte nesses moldes, mas que a história da arte “é” dessa
forma. O problema é que as narrativas, mesmo que sejam citadas como pertencentes a
outras pessoas, foram construídas por ele. Não existe a possibilidade de afirmar que
Vasari construiu uma narrativa. O que Vasari fez foi uma teoria que se adéqua à forma
como Danto compreende a história e ele o elegeu para justificar e esclarecer o seu ponto
de vista.
Ao montar a narrativa de Vasari, Danto deixa entrever uma característica
realista, ao afirmar que a perspectiva é algo natural ao homem. Mesmo que os artistas
tenham tido que dominar a técnica, ele considera que sua percepção é instantânea, ou
seja, com a hipótese da perspectiva como algo natural.Danto pressupõe que a
capacidade de ver esse tipo de ilusão é universal e inata. Ele tenta defender a fidelidade
ótica através de sua universalidade, dando exemplos de culturas que também a
buscavam. E, como é algo natural, o progresso rumo a seu desenvolvimento também
parece natural. Os problemas que derivam da adoção desse ponto de vista são que, ele
confunde o desenvolvimento técnico com o “desenvolvimento” da arte, pressupõe o
progresso como condição inerente a essa forma de arte, coloca a perspectiva como a
única forma de arte coerente e explicita sua relação naturalista da percepção estética.
A segunda narrativa mostra-se ainda mais restritiva que a primeira, ao
desconsiderar grande parte da arte mundial, inclusive a europeia, como parte do que
Greenberg entendia como a tendência da produção artística. Dessa forma, a eleição de
tal paradigma parece ainda mais arbitrária que a anterior, mostrando que ele é, no
mínimo, insatisfatório para se pensar a arte, pois a planaridade não tem sequer a
desculpa de ser natural à percepção humana. O principal livro de Greenberg utilizado
para a construção da narrativa é “Arte e Cultura”, de 1965, onde ele desenvolve o
caminho da arte rumo à abstração. A arte moderna é tomada como consciência coletiva
do que a arte pode ser, sendo Pollock aquele que atinge esse objetivo. Várias críticas
podem ser feitas a essa proposta. A primeira é que é impossível reduzir a arte moderna à
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planaridade, a segunda que Greenberg trabalha com uma noção essencialista de arte que
ele não explica, a terceira que ele tenta transformar a análise de um movimento em
análise da arte como um todo, a quarta que sua teoria não serve nem como ontologia
nem como história da arte, pois ele não explica seu essencialismo e propõe uma história
que não corresponde à história da arte, a quinta que a planaridade é, no máximo, a
essência do medium pintura; e por último, a sexta, o crítico Harold Rosenberg falou da
abstração em termos quase contrários aos do Greenberg e propôs a expressão
“actionpainting”, o que mostra a fragilidade da utilização da teoria greenbergiana, a
qual Danto respeita e elogia com frequência, como explicação de um período
controverso e multíplice como foi a modernidade.
Na história da arte, tradicionalmente14, foram elencadas especificidades e
características para cada período bastante claras. E elas foram tomadas, erroneamente,
como definições para a mesma. Erroneamente porque, se considerarmos as
características de um período como uma definição da arte, várias das obras de arte
realizadas naquele mesmo período não serão consideradas enquanto tal. Como exemplo,
o italiano Giuseppe Arcimboldo.
Giuseppe Arcimboldo, “Primavera”, 1563
14
Existem outros modos de pensar a história da arte, como por exemplo, a história da arte anacrônica de
George Didi-Huberman (ver: O que vemos, o que nos olha, São Paulo, Editora 34, 1998) e Panofsky
com sua história da arte como sucessão de formas simbólicas, sendo a análise de cada uma individual e
determinada por um processo de três etapas (ver: Estudos em Iconologia: temas humanistas na arte do
Renascimento. Lisboa: Estampa, 1986.). Apesar de que, no Brasil e em outros países do mundo, os
estudos de história da arte são realizados, principalmente, utilizando como referência as obras de Giulio
Argan e Ernest Gombrich, ambos adeptos da periodização e determinação clara e distinta de movimentos
específicos.
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A obra de Arcimboldo não se adéqua às características do Renascimento e foi
produzida nesse momento. Como Arcimboldo, é possível apontar vários outros artistas
que, apesar de não se adequarem ao período, fizeram obras de arte. Então, o problema
não está, necessariamente, na forma como a história da arte é feita, mas na forma como
ela é interpretada. É dentro dessa perspectiva que, a crítica à estrutura de narrativas da
história criada por Danto pode ser compreendida. A ideia de limite da história é por si
só elucidativa. Arcimboldo, por exemplo, estaria fora dos limites da história, pois não se
adéqua ao télos da mesma. O problema é que as narrativas têm propósitos criados
posteriormente, como que “descobertos” pela contemporaneidade. O progresso
pressuposto em ambas é dificilmente justificável. Afirmar a existência de um progresso
técnico que gera modificações devido a sua utilização é uma coisa, aquestão é que
Arthur Danto estende a ideia de progresso da técnica para a história, dentro do espírito
hegeliano. A dificuldade dessa afirmação está no fato de que a própria história da arte a
nega. Dentro da minha perspectiva, é impensável afirmar o Barroco como uma tentativa
mais bem sucedida de representar a realidade do que o Renascimento, e é exatamente
isso que está implícito na progressividade histórica das narrativas.A conjectura de que a
arte progride rumo a uma representação cada vez mais fiel da realidade, mostra-se no
mínimo inócua se forem recordados, minimamente, os períodos da história da arte e
suas características. O mesmo acontece ao considerar a abstração. Como afirmar que
Pollock representa um progresso em relação aGorky? Logo, a questão que coloco é a
seguinte: é realmente necessário propor uma estrutura tão questionável para justificar a
afirmação acerca do fim da arte?
Sim e Não, depende da perspectiva. A primeira resposta seria a correta se
pensarmos na ideia de fim como diretamente vinculada à história, o que considero ser a
perspectiva dantiana, mesmo acreditando na segunda resposta como a mais coerente.
Isso porque ele propõe formas diferentes para cada uma das narrativas. Sua perspectiva
é de que a história acabou, e se a história acabou deve existir um motivo inerente à
própria essência da história que justifique isso. Não se pode esquecer que o filósofo é
essencialista, ou seja, que não acredita em modificações que não se adéquem à essência
própria das coisas. Dessa forma, seria possível se abster das narrativas específicas, mas
não das narrativas em si.
Se a resposta for não, pode-se considerar que o caráter progressivo da história
em Arthur Danto serve apenas como suporte para correspondência do advento do fim da
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
arte. A ideia da autoconsciência da arte pressuposta na filosofia hegeliana como
justificação da aproximação da mesma da verdade do espírito absoluto é expressa, na
filosofia dantiana,por meio da aproximação entre arte e filosofia. Logo, essa
aproximação culminaria no fim da história, ou, no fim da arte. Retirando do todo apenas
esse núcleo duro, existem duas possíveis leituras, uma que se caracteriza como uma
releitura da própria estrutura teleológica dantiana, e outra que funciona como uma
espécie de tentativa de salvação da sua teoria do problema que o progresso implica.
A primeira leitura se refere ao problema da representação que acompanha toda
a história da arte e que vem à tona com os indiscerníveis. Se se compreende a
representação como o verdadeiro télos da história, então a estrutura hegeliana pode ser
utilizada ipsis literise as narrativas passam a ser dispensáveis, pois pode-se pensar em
termos de períodos como no caso do sistema hegeliano. O problema dessa opção é que
o início seria a arte grega, e a teoria da mimesis como imitação, a antítese aconteceria no
período da arte tradicional com a teoria da mimesis como representação e o fim seria
alcançado com Duchamp ao unir o imitado e seu referencial na mesma obra de arte, ou
seja, as demarcações dantianas deixam de ser válidas.
A segunda leitura tem objetivo salvacionista. A arte pós-histórica poderia ser
justificada enquanto resultado de um processo histórico não teleológico ou progressivo,
pois mesmo sem isso os indiscerníveis podem vir a fazer parte da história da arte, e é
nesse momento que seu caráter propriamente filosófico se apresenta. O que não pode ser
pensado é a justificação de tal teoria sem historicidade. Ela pode ser pensada dentro de
outro viés, porque a importância real das narrativas para a configuração de um momento
pós-histórico está no fato de que todo período/estilo/narrativa da história da arte
pressupõe uma definição de arte de acordo com os pressupostos de aparência do objeto
artístico, isso se forem consideradas as artes visuais, como costuma fazê-lo o próprio
Arthur Danto. E qualquer tentativa de fazer tal tipo de definição recai no problema de
não abarcar a pluralidade do mundo da arte atual, principalmente, após os
indiscerníveis. O que configuraria, da mesma forma, a emergência dos mesmos, como o
fim da história da arte, pois, a partir do momento em que qualquer coisa pode ser uma
obra de arte, a história da arte enquanto fisicalidade deixa de fazer sentido, e uma nova
forma de pensar a arte surge.
Por último, é necessário falar sobre a ideia dantiana de que a sua filosofia é a
última teoria da arte. Essa proposição vai contra ele próprio, pois em “O fim da arte”,
como foi mostrado, afirma não ser possível falar sobre a arte do futuro. Além disso, ele
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
comete o erro de aplicar à arte pós-histórica a estrutura objetiva que atribui à história.
Isso porque as narrativas da forma como ele as criou são facilmente enquadráveis nessa
ideia, mas a arte pós-histórica é a arte sem história, então não há como pressupor uma
estrutura objetiva para ela e ele o faz. E essa estrutura objetiva é a afirmação de que
tudo é possível (DANTO, 1997, p.44). Seria plausível argumentar que isso dá amplitude
suficiente para qualquer coisa e penso que isso foi o que Danto imaginou, o que ele não
imaginou é que a estrutura histórica da forma como ele montou, não existe mais e, na
verdade, nunca existiu. O que significa que a ausência de progresso não leva
necessariamente à estagnação e, ao contrário do que ele pensou, a sua não é e nem será
a última filosofia da arte. A ausência de progresso apenas retira o télos, o que não se
relaciona, em nada, com o fato de que coisas acontecem no tempo e se modificam nesse
mesmo tempo. Ao propor uma condição para a arte pós-histórica, ele tenta aliar o
pluralismo ao essencialismo, o que se mostrou inoperante. Danto caiu em sua própria
armadilha.
Conclusão
Portanto, em detrimento das dificuldades geradas pela proposta dantiana, sua
tese acerca do fim da arte aponta vários caminhos propícios para pensar a arte
contemporânea. A tese do pluralismo, aliada à ausência de periodização e de
características estilísticas, permitevislumbrar a necessidade de reestruturação da forma
como a história da arte é construída. Acredito, inclusive, que a precariedade das
narrativas que constituem a história auxilia nessa questão. Além disso, a necessidade de
pensar a arte para além de suas características físicas abre espaço para construções
filosóficas cada vez mais intricadas à própria produção artística, haja vista a dificuldade
do próprio Danto de separar arte e filosofia.
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O FILÓSOFO ARTHUR DANTO COMO ANDY WARHOL
Marcia Tiburi
RESUMO
O presente artigo pretende mostrar como a análise de Andy Warhol feita por Arthur
Danto expõe uma espécie de meta-teoria da própria filosofia de Arthur Danto. Minha
hipótese é que Danto usa Warhol para explicar a si mesmo. Arelação entre arte e
filosofia - questão fundamental da obra de Danto- corresponde à relação entre o próprio
Danto e Andy Warhol. Em última instância, é possível que, por meio da análise dessas
relações, possamos entender o nexo entre o fazer artístico e filosófico em nosso tempo,
apontando para novas compreensões tanto da arte quanto da filosofia.
Palavras-Chave: Arthur Danto, Pop Art, Andy Warhol, filosofia contemporânea,
estética
ABSTRACT
This article aims to show how the analysis that Danto does of Andy Warhol outlines a
kind of meta-theory of the former’s own philosophy.My hypothesis is that Danto uses
Warhol to explain himself. The relation between art and philosophy – fundamental
question of Danto’s work – corresponds to the relation between Danto himself and Andy
Warhol. Ultimately, it is possible that, through the analyses of these relations we
understand the link between the artistic and philosophical work in our timing pointing to
new comprehensions both art and philosophy.
Key-words: Arthur Danto, Pop Art, Andy Warhol, contemporary philosophy, aesthetics
O filósofo Arthur Danto como Andy Warhol
Neste artigo pretendo comentar aspectos do que Arthur Dantodiz sobre Andy
Warhol na intenção de mostrar como Arthur Danto, ao falar da arte de Warhol, constrói
uma espécie de meta-teoria de sua própria filosofia. Em termos bem simples, quero
dizer que,de certo modo, Danto usa Warhol para falar de si mesmo. Warhol seria, de
certo modo, em termos talvez não tão simples, mas muito correntes, o “alterego” de
Danto. Isso pode significar que, filosoficamente falando, Danto seja, de certo modo, o
duplo de Warhol. Nosso problema aí seria entender o que pode querer dizer “de certo
modo” quando comparamos esses dois personagens, considerando que são duas pessoas
muito diferentes e compará-los enquanto pessoas seria um projeto inútil e sem sentido.
Por isso, quero pensar evidentemente não em suas pessoas físicas, mas em suas posições
como personagens culturais: Warhol como artista, Danto como filósofo. A expressão “de
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certo modo” nos ajuda nesse ponto, pois por meio dela se indica no uso corrente, algum
aspecto específico da relação entre uma coisa e outra. Ora, “de certo modo” indica o que
é e não é, o que é sob um certo aspecto e não é , sob outro. Levando isso em conta, creio
ser possível justificar a tese da meta-teoria, ou, em termos mais adequados, do metaposicionamento, da obra de Danto e partir da obra de Warhol.
Danto vê na arte de Warhol uma posição filosófica das mais avançadas. Se sua
filosofia nasce a partir de Warhol, como veremos, creio que, falando no artista, ele
posicione sua própria filosofiacomo algo que ele não espera que seja menos avançada
filosoficamente do que a arte filosófica de Warhol. O que Danto alcança em termos
filosóficos desde que empreende uma investigação e uma atenção sobre Warhol é o que
precisamos tem em vista.
Danto desenha um Andy Warhol totalmente seu, mas podemos dizer que é o
melhor retrato que se poderia fazer de um artista como Andy Warhol cuja complexidade
não poderia ser deixada de lado, justamente porque essa complexidade relaciona-se ao
mais simples, ao que há de mais “banal”. Warhol fez arte a partir do mais banal, o que,
por muitos motivos, jamais seria chamado de “arte” se este procedimento de
denominação e de definição não fosse ele mesmo, de certo modo, artístico e filosófico.
Verdade que uma definição dessas nunca é produzida apenas por uma pessoa ou grupo
institucionalizado tais como filósofos e artistas. Esse tipo de definição vem de uma
época, por um desejo coletivo que se expressou no que foi chamado desde então de Pop
Art.
O que Danto diz sobre Warhol é um retrato que faz de Warholenquanto artista
um personagem filosófico ímpar. Esse personagem é único, mas ao mesmo tempo,
ambíguo: filósofo e artista, o que ele produz em termos de obra, na visão de Danto, não
tem precedentes. No entanto, creio que é possível afirmar que a filosofia de Danto,
como Dantomesmo sabe, também não tenha precedentes. E não o tem porque a filosofia
de Danto se deve a muito do que Warhol provocou em sua visão e posicionamento em
relação ao mundo. Danto deriva de Warhol, mas não apenas em um sentido histórico
como se uma teoria da arte necessariamente surgisse para dar conta da interpretação de
uma obra. O que Danto diz de Warhol, o modo como desenha o retrato de Warhol, serve
para que desenhe o seu próprio. Quero dizer com isso que se o procedimento de Warhol
é filosófico enquanto ele é artista, o procedimento de Danto é artístico enquanto ele é
filósofo.
Ora, por meio desse retratofeito por Danto sobre Warhol se pode definir o que é
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
um artista e um filósofo. Semelhante a Sócrates, Warhol é alguém que muda um
paradigma. Pelo menos mudou o paradigma de Danto, como veremos. Essa mudança
implica que o retrato feito sobre o artista é ao mesmo tempo um autorretrato do filósofo.
Tendo isso em vista, creio ser possível ver em Danto um filósofo pop, do mesmo modo
como Andy Warhol foi, enquanto artista, e para Danto, um filósofo pop.
Na construção desse argumento que envolve pensar a autorreferencialidade de
Danto em relação a Warhol (sendo este último o eixo, o dispositivo e o objeto que
permite a Danto ver-se a si mesmo, e a nós “outros” vermos Danto), é preciso levar em
conta um aspecto elementar que não perde de vista o “certo modo” com o qual podemos
pensar esta relação: que Arthur Dantonão foi um artista como Andy Warholé um artista,
do mesmo modo como Andy Warhol não foi um filósofo como Arthur Danto foi um
filósofo. Esse fato que poderia estragar o meu argumento é o fato mais importante que o
justifica, justamente, por certo mecanismo sustentado na “ambiguidade” entre obra e
vida, entre obra de arte e coisas ordinárias e entre artista e filósofo, sobre o qual
falaremos.
Quando digo que Danto não era artista, penso em seu posicionamento
profissional e institucional. Mas Dantoque fora em certo momento de sua vida um
artista em sentido institucional, poderia ter continuado sendo artista, pois começou uma
carreira como artista, embora tenha desistido dela. Ou seja, podemos partir do
pressuposto de que Danto diz que Warhol era um filósofo, enquanto não se pode dizer
que Danto fosse um artista, embora pudesse ter sido se tivesse construído outro futuro
para si nesta direção. No entanto, levando a sério o argumento de Danto, vemos que ele
diz que Warhol é um filósofo não em um sentido profissional ou institucional. Mas em
um sentido inusual e inusitado. E até mesmo em um sentido irreverente. A irreverência
da designação do artista como filósofo é, ela mesma, um ato que podemos chamar de
“pop-filosófico”, um ato de Pop Art aplicado, ou incorporado, à filosofia de Danto. O
que nos leva a pensar que talvez ele estivesse produzindo os seus textos não apenas com
intenções analíticas em relação a Warhol, mas tentando mostrar o avanço concreto no
tempo presente e o futuro da própria filosofia em relação ao advento da arte, bem como,
em outro sentido, buscando entender Warhol em um sentido dialógico, tentando,
digamos assim, espelhar-se nele para expor as motivações e potencialidades da filosofia
enquanto tal e da sua própria.
Neste sentido é que tentarei mostrar que Danto, mesmo não sendo artista no
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sentido institucional, era um artista no sentido de ser um “filósofo pop” como Andy
Warhol era um “artista pop” que, enquanto artista,era filósofo. A pergunta que norteia
este texto e que, a meu ver, pode ajudar a pensar o destino da filosofia contemporânea –
ou o que já vem acontecendo com ela há certo tempo - é justamente aquela que se
constrói levando em conta que tipo de filósofo é um artista pop para entender que tipo
de artista é um “filósofo” como Danto,desde que o advento da Pop Arte de Andy Warhol
como artista tem que ser levado em conta para pensar o que é a própria filosofia de
Danto e, não creio seja exagero dizer, a filosofia como um todo. Em termos muito
simples, podemos nos colocar a pergunta: o que é a filosofia depois da PopArt?Que foi
a meu ver a pergunta essencial que a filosofia de Danto se colocou. Mas podemos
pensá-la em um sentido universal. Quem são os filósofos depois de Andy Warhol?
Esse é um problema de definição. E o problema de definição é um dos mais
importantes problemas tanto para Arthur Danto quanto para o Warhol de Danto que
estamos começando a analisar.
O artista enquanto personagem define a filosofia
Na intenção de demonstrar minha hipótese seguirei de perto o que Arthur
Dantodiz acerca da Pop Art a partir de seu texto “Pop Art e Futuros Passados”
(DANTO, 2006B). Neste texto analisando o “vergangeneZukunft”, “o futuro como
apareceu naquele momento passado àqueles para quem ela era presente”(2006B, p. 128)
ele pensa na relação tensa entre a escola de Nova York, os abstracionistas tais como
Pollock, De Kooning, Rothko e outros, e os realistas. A questão de Danto é tentar
entender como os realistas – que se viam sem futuro - teriam algum futuro possível
diante do futuro prometido totalmente aos abstracionistas.Hoje, talvez nós não
consigamos imaginar como uma figura como Hopper pudesse em sua época ser alguém
meio marginal. E ele era enquanto o abstracionismo da escola de Nova York se colocava
como a tendência dominante. A divisão entre abstração e realismo tinha, segundo Danto,
uma “intensidade quase teológica” (2006B, p. 133). A abstração era a lei e o realismo
uma prática quase herética. Bom, já neste ponto chegamos a uma questão que é preciso
elaborar: Danto afirma que havia uma “correção estética” que “cumpria o papel que
veio a ser desempenhado pela correção política de nossos dias”. E ele segue: “as ações
de Hopper e seus companheiros transmitem a indignação e o choque que todos os livros
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conservadores sobre o politicamente correto hoje provocam” (2006B, p.134). O
abstracionismo era a norma estética contra a qual o realismo nada podia. E o que
acontecia é que os realistas, inevitavelmente, sentiam-se ameaçados em sua existência
diante da ideologização do abstracionismo. Isso não iria durar muito, porque tanto um
como outro dos modos de fazer arte seriam logo superados. O que é curioso, e a meu
ver não podemos deixar passar, é que Danto compare esse sentimento de ameaça dos
realistas ao “modo como os professores foram ameaçados com a perda do cargo efetivo,
ou ao menos sentiram-se temerosos dessa perda, a menos que seus programas e seu
vocabulário de sala de aula fossem adequados” (2006B, p.134). Essa questão proposta
por Danto enquanto pensa em abstracionistas e realistas, em Hopper e Greenberg, nos
ajuda a entender uma questão filosófica que não é pouco importante: a questão
institucional da filosofia. E neste sentido, no lugar da filosofia acadêmica em relação a
outras formas de fazer filosofia. Na verdade, do ponto de vista acadêmico não há outra
forma de fazer filosofia. E isso é o que a configura não apenas como instituição escolar,
mas como “instituição” legal no sentido “falogocêntrico” do termo. Do mesmo modo
que, para pintores acadêmicos, a arte ou seria acadêmica - e seria pintura -, ou não seria
nada, a filosofia ainda hoje ou é acadêmica ou não é nada. Se pensarmos a filosofia
acadêmica em sua metodologia dominante que se propõe como “história da
filosofia”,qualquer outra forma de fazer filosofia parece absurda. Pois bem. Aqui é que
o argumento de Danto se torna mais interessante, porque é neste lugar da disputa entre
os defensores dos expressionistas abstratos, como Clement Greenberg, e seus
oponentes, aqueles que defendiam ainda o realismo, que as coisas se tornam
surpreendentes. As tendências estavam preocupadas com seu próprio futuro e não
percebiam o que estava acontecendo em seu tempo presente. E foi aí, justamente, que as
coisas aconteceram de um modo inesperado para todos. A Pop Art surgiu aí neste exato
ponto, como que de surpresa. Danto comenta que a Pop Artnasce meio ligada ao
expressionismo (“impulsos dissimulados sob respingos e escorrimento de tintas”), mas
logo afirmando-se como algo particular. Ao mesmo tempo, os artistas do movimento
Pop se interessam por Hopper, não faltando quem visse nele um precursor do
movimento. Neste ponto, devemos voltar à comparação que fiz com a filosofia
acadêmica ou institucional: não podemos dizer que haja um equivalente no mundo da
filosofia acadêmica entre realismo ou abstracionismo, como filosofia crítica ou
analítica, hermenêutica ou fenomenológica. Não se trata, no caso dos movimentos
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filosóficos da tradição que conhecemos, de uma disputa por pontos de vista ou por
tendências que, dentro dos cursos, se estabelecem por afinidade. Mas talvez a Pop
Artesteja acontecendo na filosofia e, perdidos entre “abstracionismos” e “realismos”,
estejamos perdendo o que mais importa ter em vista, não mais na arte, que costuma
estar adiante da filosofia, mas na filosofia que, desde que foi inventada, sempre chega
tarde em relação à arte. Quero dizer com isso que o que Danto– para quem as mudanças
culturais se manifestam primeiro na arte (DANTO, 2008, p. 27) nos mostra é que
alguma coisa que ficou velha na arte também pode ter ficado velha na filosofia.
Danto vai até a história da pintura nos anos 50 e começo dos 60 para mostrar
que a questão da Pop Art é muito mais delicada. Ela é mais do que histórica, no sentido
da narrativa da história como grande narrativa. Ela é filosófica. É justamente neste
sentido filosófico que a Pop Art seria, para Danto, o “movimento de arte mais crucial do
século” (2006B, p. 134). É neste sentido que ele também dirá que a PopArt desempenha
“o papel filosoficamente principal” na narrativa da história da arte moderna (2006B, p.
135) que ele também ajuda a construir sobretudo ao levantar a questão do fim da arte.
Do mesmo modo é que ele afirmará que “a pop marcou o fim da grande narrativa da
arte ocidental ao trazer à autoconsciência a verdade filosófica da arte. Que ela foi uma
mensageira improvável da profundidade filosófica é algo que prontamente reconheço”
(2006B, p. 135) afirma Danto, com todas as letras para que se entenda de uma vez e
sempre seu posicionamento.
Danto diz tudo isso acerca da Pop Art para poder contar sua própria relação
com a história na qual nasceu a Pop Art, mas insere-se neste ponto, de um jeito muito
peculiar, no qual creio ser possível reconhecer a banda de Moebius que se cria entre o
artista e o filósofo definindo, ao mesmo tempo, o lugar mutuamente criado do artista e
do filósofo. Creio que é neste ponto, com o nascimento da Pop Art que Danto consegue
inscrever seu lugar como pensador que é artista, embora seja pensador. Danto, neste
texto, pede licença para inserir-se na narrativa como alguém que viveu aquele momento,
alguém cujo testemunho nós temos que valorizar enquanto leitores respeitosos. Ele
conta essa história em outros textos, sempre no mesmo tom, mas aqui ele é bem
definitivo. Ele justifica o modo como vai se apresentar, afirmando que “artistas, quando
mostram seus slides e conversam sobre seus trabalhos, de um modo característico
relatam momentos decisivos em seu desenvolvimento” (2006B, p. 136).Ele fará o
mesmo. Danto justifica que sua vida como filósofo começou no momento em que foi
convidado a falar sobre a Pop Art. Ele mesmo conta como deveria ter sido artista (e aí
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avalia o seu vergangeneZukunft) e como acabou sendo filósofo. Relatando sua vida
naquele momento, ele comenta como seu trabalho como artista não cabia nem no
abstracionismo, nem no realismo. O surgimento da Pop Art, que Danto descobriu por
meio de uma revista de arte, o que era comum naquela época, o deixou, como ele
mesmo afirma, “aturdido”. A ponto de que ele deveria se tornar filósofo, o que já vinha
fazendo, deixando de ser artista no sentido institucional. Penso que se pode dizer que
ele não poderia ser um artista como Andy Warhol era, mas havia nele algo de artista que
permitia que ele fosse um filósofo como Andy Warhol.
A meditação de Danto, neste ponto, é bem importante para os fins
dessareflexão. Em suas palavras ele diz “eu sabia que se tratava de um momento
surpreendente e inevitável, e compreendi imediatamente, em minha própria mente, que,
se era possível pintar algo como aquilo (...) então qualquer coisa era possível” (2006B,
p. 136). Para Danto, a questão do futuro das artes, das correntes, havia se dissipado. E
ele segue dizendo “para mim, isso significava que não havia nenhum problema, como
um artista, fazer o que quisesse fazer” (grifo meu, p. 136). O texto neste ponto, fica um
pouco truncado. Mas podemos considerar que Danto fala de si como “um artista” que
ele de fato era, para em seguida dizer que “a partir daquele momento eu era
obstinadamente um filósofo”. Um filósofo era o efeito de um artista que poderia fazer o
que quisesse. O que ele quis fazer, como artista, a meu ver, foi tornar-se filósofo.
Depois, ele conta que em 1984 passou a ser crítico de arte. O que fez Danto querer ser
filósofo – e depois crítico de arte - e deixar de lado a carreira de artista no sentido
institucional,pode ser, e certamente é, uma pura escolha pessoal. Mas é também mais do
que isso. Danto está, na construção de sua avaliação crítica sobre a parte importante não
apenas na narrativa do artista, mas na autonarrativa do filósofo que deixou de ser artista
e passou a ser um filósofo, ao mesmo tempo agindo como artista na produção de uma
filosofia.O crítico de arte que ele foi era um modo de ser filósofo diante da arte, não
sendo mais artista, mas isso só foi possível quando ele agiu “como artista” fazendo o
que quisesse fazer. Danto percorre toda a banda de Moebius que ele constrói com
Warhol para ser uma coisa sendo outra, do mesmíssimo modo que Warhol é filósofo
enquanto artista e que a obra de arte é uma coisa que não se parece nada com uma obra
de arte desde que Warhol decidiu fazer coisas como obras de arte.
Ora, Andy Warhol é, na visão de Danto, um artista como filósofo. Danto, neste
momento, se espelha no modo como se expressa o artista quando faz a sua narrativa, e
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no advento da Pop Art como um momento impressionante,para pensar a si mesmo como
filósofo enquanto há ainda nele algo de artista. Algo considerável filosoficamente
porque metodologicamente interessante. Ora, Danto conta ao leitor que muda o sentido
de sua escolha profissional, ou seja, deixa de ser artista, justamente no momento em que
descobre a Pop Art. Deixa de ser artista para tornar-se filósofo em um sentido muito
próximo do ato e da performance geral de Andy Warhol que era o artista enquanto
filósofo. Danto passa de um lado a outro, do mesmo modo que percebe que,
conscientemente ou não, Warhol o faz. Isso fica claro no texto sobre “O filósofo como
Andy Warhol” (2001, p. 107) quando ele fala que o elemento filosófico da Pop Art que
encantou Danto elaborou-se como um “via negativa”. Danto afirma que Warhol não
disse o que era arte, mas “abriu caminho para aqueles cujo trabalho fosse providenciar
teorias filosóficas”, ou seja, abriu pela via negativa, sem imaginar, caminho para ele,
Arthur Danto que é uma espécie de continuador de Warhol: se o artista é filósofo, o
filósofo também é artista.
De um lado, parece claro que Danto não poderia ter se tornado filósofo se a
Pop Art não o tivesse impressionado tanto a ponto de que ele tenha deixado de ser
artista em sentido institucional e estrito quando ela surgiu. Que surja um filósofo na via
negativa do artista é algo que parece estar claro. De outro lado, por Andy Warhol ser um
personagem tão fundamental nesse processo, de um lado ele parece o alter ego de
Danto, de outro ele é o personagem emblemático, como um dia foi Sócrates, e
paradigmático do gesto que, de algum modo ou por diversos caminhos,de certa maneira
“forma” ou “faz” de alguém um “filósofo”. Sem dúvida que está em jogo aí a
compreensão do que é filosofia, de quem é o agente da filosofia, de quem a põe em
cena, de quem a aciona. Ora, quem define o que é filosofia e quem pode ser o filósofo
depois que aprendemos que o discurso filosófico é altamente sofístico e ligado ao poder
de dizer a verdade? Até Warhol as coisas pareciam decisivas, mas a história não tinha
acabado. Nem a da arte, nem a da filosofia. Poderíamos a partir de Andy Warhol pensar
não apenas um fim da história da arte como fez Danto, mas também um fim da história
da filosofia como grande narrativa? Penso que não é nada absurdo pensar que Danto nos
leva a este desafio.
Andy Warhol é o personagem de Danto. Ele o tem em tão alta conta que sabe
perfeitamente que mesmo que Andy Warhol não tenha definido a arte, conseguiu com
suas brincadeiras mostrar “como a forma da questão filosófica deve ser” (2001, p. 106).
A forma da questão filosófica já havia sido discutida por Wittgenstein com a proposta
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
das “piadas” das quais Danto tanto gosta. Mas também no retorno ao ordinário e aos
“conteúdos desprezados e rejeitados” (2001, p. 110). Aqueles conteúdos banais ligados
à simples vida. Andy Warhol como artista foi muito importante para a arte, mas
igualmente importante para a filosofia que, até hoje, não percebeu a importância das
questões postas em cena por Warhol. Wittgenstein seria quem mais teria se aproximado
disso. E, diz Danto acerca de Warhol: “fazendo isso, ele invalidou alguns milênios de
investigações indevidamente conduzidas”. Danto não explica muito bem como, mas
segundo ele “foram as imagens do pop que o habilitaram a fazer isso”. Creio que isso
pode ser explicado se compararmos Warhol com Sócrates não porque ele tenha feito
nada de semelhante a Sócrates em termos de temas ou métodos, mas porque como
Sócrates ele foi um personagem que criou a maioria das questões filosóficas que
conhecemos. Quero dizer com isso que Warhol está para Sócrates assim como Danto
está para Platão. Danto poderia ter dito isso sobre Wittgenstein, mas Wittgenstein não
foi tão longe quando Warhol. Warhol fez a Brillo Box e isso muda tudo o que se
pensava sobre arte, mas também sobre filosofia e algumas de suas questões mais
cruciais.
Danto comenta o momento em que encontrou a Brillo Box quase num tom
testemunhal.A Brillo Box é um verdadeiro talismã filosófico para Danto. Em seu livro
chamado Andy Warhol (2012) ele simplesmente afirma ter “amado” a Brillo Box (p. 14)
num tempo em que muitos diziam que aquilo não era arte. Ele a comenta muitas vezes.
A Brillo Box talvez seja, em temos de imagem, tão emblemática da filosofia comouma
dia foi a famosa Navalha de Ockam. Danto dedica a esta Brillo Box páginas e páginas
de seus livros. É como se ela fosse não uma caixa, mas a verdadeira pedra filosofal da
contemporaneidade, de um tempo pós-histórico para a arte e para a vida como um todo.
Se Warhol foi, segundo Danto, um adorador do ordinário, Danto também o é e é um
adorador do modo como Warhol sem querer colocava questões nada ordinárias a partir
de coisas ordinárias. A Brillo Box é esta coisa que reúne ordinário e extraordinário no
mesmo tempo e espaço impedindo-nos de decidir o que pesa mais. Warhol colocou em
alta o mundo banal com esta caixa de sabão que é uma obra de arte e é esse mundo
banal que ele “celebrou do jeito que ele era” (2001, p. 109). E assim confundiu tudo. E
nessa confusão conseguiu não apenas transformar a arte em reflexão filosófica, mas a
vida em arte, digamos assim. A vida é o que se pensa em última instância quando se vê
uma caixa de sabão Brillo que não é uma caixa de sabão Brillo. Danto percebeu bem
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cedo que essa era a questão de Warhol, a relação entre as coisas bobas da vida e as
coisas não bobas da vida que queremos representar por meio das chamadas “obras de
arte”. Ele viu que alguma coisa nova - realmente nova, seja lá em que sentido se possa
dizer isso - tinha aparecido, deixando outras coisas realmente velhas.
Uma dessas coisas velhas, era o debate de seu tempo. Danto viu que “a inteira
estrutura do debate que havia definido o cenário artístico de Nova York até aquele ponto
deixara de vigorar” (2006B, p. 137). Neste ponto do texto que citamos acima, ele
comenta que todas as teorias discutidas até então, não davam conta do novo fenômeno.
Vemos que o velho problema da “obra de arte” e da “arte” continua em cena. Danto
pretendia dar conta dessa coisa nova que os outros não estavam dando conta. Mas o
modo como o fez define, a meu ver, não apenas uma tarefa hermenêutica da filosofia –
em particular da estética - em relação à arte, mas uma modificação no próprio lugar
ocupado pelo filósofo enquanto alguém que se desloca do seu lugar para poder ocupar
um outro lugar. É este deslocamento que se trata de levar a sério.
Neste sentido, é que me parece claro que se Danto fala de “O filósofo enquanto
Andy Warhol”, para compreender o que ele quer dizer e o efeito do que ele diz,
podemos também falar de “O filósofo enquanto Arthur Danto”, mas desde que levemos
em conta que antes - e atravessando esse posicionamento filosófico - há “O artista
enquanto Arthur Danto”. “O artista enquanto deixou de ser artista”. Um jeito de
entender isso é dizer que o filósofo – seja lá o que isso queira significar - não será mais
o mesmo depois do advento da Pop Art.Outro jeito de pensar é o seguinte: assim como o
filósofo não existia antes de Sócrates, ou existia de um modo diferente, ele não é mais o
mesmo depois da existência de Andy Warhol. Ou pelo menos do Andy Warhol de Arthur
Danto. E quem encena essa nova performance é justamente Arthur Danto. Lendo Danto
conseguimos entender quem é esse filósofo depois da Pop Art, depois, sobretudo, de
Andy Warhol. Isso nos leva a pensar junto com Danto, mas sobretudo “depois” de
Danto. Essa ambiguidade entre Warhol e Danto pode ser proveitosa como poderemos
ver.
Depois de Arthur Danto o filósofo pode se colocar questões tais como a do
lugar do artista quando, deixando de ser artista, deslocando-se de seu lugar, ele se torna
filósofo. Em 1964,Danto escreve seu artigo inaugural como filósofo da arte, “O mundo
da Arte” (2006A) que, segundo ele, nunca foi citado para a discussão sobre o Pop, mas
que se tornou, segundo suas palavras “a base para a estética filosófica da segunda
metade do século 20” (2006B, p. 137). Danto diz isso avaliando a distância entre os
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
mundos da arte e da filosofia, por mais que esses mundos sejam filosoficamente
próximos. A grande relevância da Pop Art será, para Danto, que por meio dela é que “a
arte mostrou qual era a questão propriamente filosófica sobre si mesma” (2006B, p.
138), aquilo de que a forma de Warhol fazer arte é a forma própria das questões
filosóficas. Danto traduz essa questão levando em conta a velha teoria platônica sobre a
arte: “o que faz a diferença entre uma obra de arte e algo que não o é, se, na verdade,
ambos se parecem exatamente?”. Danto afirma que essa diferença não pode ser
colocada se “alguém pudesse ensinar o sentido de “arte” por meio de exemplos, ou
enquanto a distinção entre arte e realidade parecesse perceptual, como a diferença entre
a pintura de uma cama em um vaso e uma cama real” (2006B, p. 138).A questão que é
superada é a mimesis com a qual Platão e toda uma tradição até Vasari (arte
representacional) e depois até Greenberg (condições para a identificação da arte). O que
a Pop Art coloca em cena é um outro mundo da arte que a própria arte não conseguia
ver até a Pop Art, na qual a necessidade de uma identidade filosófica para a arte não
estava mais em jogo (daí o fim da arte e da história da arte enquanto grande narrativa
sobre a arte). Diante dessa nova fase, como sabemos, o que importava para Danto é que
“os artistas estavam livres para fazer tudo o que desejassem fazer”. Os filósofos
também.
Se a história da arte estruturada como narrativa tinha se acabado, valeria a pena
colocar a mesma questão para pensar a filosofia: que a história da filosofia enquanto
grande narrativa explicativa também tenha se acabado desde Warhol e desde Danto
enquanto continuador de Warhol. A filosofia que surge a partir de Danto – o artista
enquanto filósofo, e, mais ainda, o filósofo enquanto artista – implica a possibilidade do
filósofo estar livre para fazer “tudo o que desejasse fazer”. E o que Danto deseja fazer?
Ele fez o que ele desejou, como sabemos, ele virou filósofo. O modo como conseguiu
isso foi uma teoria da arte que o coloca em espalhamento com o artista. Mas isso nos
lega uma questão: se o artista de certo modo equivale ao filósofo – e vice versa – a Pop
Art pode corresponder a um novo “movimento” na filosofia? Ela poderia dizer respeito
à algo como Pop Filosofia?
Ora, assim como Danto entende que Warhol era pós-histórico no sentido de
Marx e Engels – aquele tempo em que se poderá fazer coisas como pescar e escrever
sem ter que ser pescador ou escritor. Do mesmo modo, se tentamos entender o
empreendimento filosófico de Danto, talvez seja possível perceber que ele está
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interessado naqueles que “não são o que são e são o que não são”. Ele está interessado
nesse tempo que está para além da “identidade”. Um tempo em que ele mesmo será
filósofo ou artista sem precisar ser filósofo ou artista. Ou seja, ele está interessado em
um poderoso deslocamento que altera o sentido de uma identidade. O surgimento da
Pop Art tem a ver com o tempo pós-histórico em que o fim da história põe as coisas
todas – inclusas identidades em geral - em outro lugar. Esse tempo que podemos
resumir como sendo um tempo de crise de identidades, um tempo em que a cultura
também foi vivida como contracultura, implica outra arte e, até mesmo uma outra
filosofia que não se distinga mais da arte ou das outras atividades da vida. Um tempo
em que a irreverência entra em cena, forjando o próprio termo “Pop” e que põe a
irreverência como uma prática comum é um tempo a ser pensado. Talvez este seja um
tempo cínico em que não há mais lugar para falsificações. A Pop Art será, para Danto,
parte de “um momento cataclísmico” (2006, p. 146) que põe em cena outros valores e
desejos e não necessita mais de grandes ídolos e de grandes sistemas de pensamento
explicativos do mundo.
Transfiguração
Um conceito fundamental na obra de Danto pode dar conta do sentido de Pop
pelo qual ele mais se interessa e que, creio, explica a sua posição como filósofo
enquanto artista. Trata-se do conceito de transfiguração.
Neste ponto, gostaria de pensar o conceito de transfiguração em 2 sentidos. Em
primeiro lugar no sentido próprio de Danto, tendo em vista o que ele diz dealgum
emblema da cultura popular que se transforma em arte. Não se trata, portanto, do Pop
enquanto elemento que é colocado na arte elevada, como uma citação de um cartaz ou
jargão publicitário como nas pinturas de Hopper, por exemplo. Mas de seu potencial
transfigurativo como quando a imagem de Marylin Monroe é colocada numa moldura
dourada e transformada em ícone. Danto fala da transfiguração como um conceito
religioso. E neste ponto ele oferta o seu sentido mais essencial: a “adoração do comum”
(2006B, p. 142). A adoração do comum é a própria transfiguração. Coisas do campo do
“comum”, coisas “comuns”, “coisas que significavam muito para as pessoas” (2006, p.
143) foram alçadas a temas da arte e, assim, elevadas a um lugar respeitável
simbolicamente. Neste ponto, o conceito de transfiguração que quero usar pode ser
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
aplicado não apenas a coisas comuns, mas também a pessoas comuns, ou a designações
e classificações comuns. O lugar que o próprio Andy Warhol ocupa no panteão de Danto
tem a ver com o fato de que Danto transfigurou um artista em filósofo. Andy Warhol era
um artista muito ordinário. O artista mais banal que poderia haver. Andy Warhol estava
longe de ser um virtuose, um gênio no sentido corrente. Ele parecia, neste sentido, o
mais comum dos sujeitos. O mais comum dos sujeitos que gostava dos mais comuns dos
objetos. Foi o artista ligado ao mais comum – ele mesmo comum, mas também alguém
que era já um “adorador” do comum - que guardava um potencial inusitado e altamente
filosófico. Danto percebeu esse potencial transfigurador em Warhol. Warhol não era
bem isso nem bem aquilo. Warhol era, neste sentido, sua própria obra: “aquele persona
era ela mesma um de seus trabalhos” (2001, p.114). Por meio desse procedimento, de
mostrar o potencial de transfiguração de Warhol, ele transfigura seu objeto comum e
ordinário que é Andy Warhol na prática.É deste modo que podemos dizer que depois de
Danto, Warhol nunca mais será o mesmo, assim como depois de Warhol,Danto como
filósofo pode passar a existir em um novo sentido, não sendo nunca mais o mesmo.
Danto não apenas se coloca diante de seu “duplo”, sendo ele mesmo sujeito e objeto de
Warhol. A ambiguidade os une num jogo de espelhamento em que definir um e outro se
torna mais complexo do que parece porque um já não existe sem o outro. E consegue,
neste lance de dados involuntário, sinalizar para a filosofia que se faz – ou que se pode
fazer - em nossos dias.
O que digo aqui faz sentido se perceberemos que, na sequência desta
argumentação de Danto, sobre o futuro passado da Pop Art, Danto segue explicando
qual seria a “contrapartida filosófica” da Pop Art. Para justificar isso ele usa um
argumento de Panofsky ao comentar a unidade de certas manifestações da cultura.
Danto falará de uma tonalidade comum entre artes visuais e filosofia em meados do
século 20. A filosofia analítica de Wittgenstein e Austin seria aquela que sinalizaria para
certo “fim” da filosofia enquanto metafísica. Danto cita Austin para falar do arsenal de
“palavras comuns” que interessam a um filósofo como ele, preocupado com coisas
fundamentais e, ao mesmo tempo, as mais simples da vida, como o ato de falar e tentar
entender o que se diz. Danto comenta que a filosofia depois do fim, assim como a arte
depois do fim, poderiam se colocar a serviço da humanidade de um modo direto. E ele
dá como exemplo a mosca a sair da garrafa de Wittgenstein, que é o equivalente
contemporâneo da alegoria da caverna de Platão. De comum entre Pop Art e a filosofia
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analítica está o fato da revolta contra a tradição em nome da vida real. Ambas são
criações culturais libertadoras. Contra a metafísica, contra a religião, contras as utopias
distantes, o sentimento geral das pessoas dentro da cultura quando surgiu a Pop Artera o
de algo urgente. A Pop Art foi o nascimento de uma nova consciência quanto aos
“benefícios da vida comum”. E, em Danto, isso será altamente político, porque sem essa
consciência, que a própria televisão trouxe para a Alemanha oriental, por exemplo, não
haveria queda do Muro de Berlim.É, portanto, a “mudança na trama da sociedade” o
que está em jogo. Quando surge a Pop Art ela aparece como a irrupção de um modo de
ver o mundo totalmente outro enquanto ao mesmo tempo ficamos atentos, ligados e
irônicos em relação ao próprio mundo. Se a arte antes olhava para um mundo que não
estava presente, o outro mundo da arte, o mundo da Pop Art é um mundo totalmente
presente, exposto na superfície que é suficientemente profunda para um filósofo artista e
pra um artista filósofo.
A transfiguração - Andy Warhol ou Arthur Danto
Em seu texto “O filósofo como Andy Wahrol” (2001) Danto faz uma
brincadeira falando da inteligência filosófica de Warhol que para ele tinha uma
“grandeza extasiante”. Segundo Danto, “ele não tocava alguma coisa sem com isso
também tocar as fronteiras do pensamento, pelo menos do pensamento sobre arte”
(2001, p. 100). Ainda, segundo Danto, Warhol contribuiu para a história da arte
colocando “a prática artística no nível de uma autoconsciência filosófica jamais
atingida”. Danto citará a famosa ideia de Hegel acerca do “Espírito Absoluto” quando
arte e filosofia são dois momentos que coincidem. Warhol, o mais debochado e
aparentemente superficial dos artistas teria conseguido uma coisa tão pomposa como
essa, mas sem pompa alguma. Danto tentará falar da estrutura filosófica da arte de
Warhol, mas fará não procurando a narrativa grandiosa da história da arte da qual ela
faria parte, e sim, buscando entender o que ele afirma como “pensamento que ela nos
trouxe à consciência” (2001, p. 100). Levando a sério Warhol como filósofo,Danto diz
que ele “violou todas as condições tidas como necessárias a uma obra de arte mas, ao
fazer isso, revelou a essência da arte” (p. 100). É neste sentido que a Pop Art traz uma
consciência à tona, uma consciência da arte como filosofia.
No texto citado encontramos a exposição da lógica do procedimento artístico
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
de Warhol que explica porque esse procedimento é filosófico. A ambiguidade é a
questão de Warhol enquanto é explorada por Danto. Trata-se da ambiguidade entre arte
e realidade. Os exemplos de Danto são o filme Empire ea inevitável Brillo Box. O filme
é por demais conhecido: o edifício Empire State é filmado por horas sem que nada
aconteça. Para explicar a ambiguidade como “método” de Warhol,Danto usa um
exemplo imaginário de um filme feito a partir do livro “Ou/ou” de Kierkegaard no qual
aparece apenas a página de rosto do livro. A ambiguidade que interessa a Danto é aquela
que se verifica no livro enquanto “objeto físico” e enquanto “objeto significante”.
Warhol explica que “essa ambiguidade transfere-se imediatamente para o conceito de
alguma coisa ser baseada em algo” (2001, p. 101). Lembremos da questão posta um
pouco antes, o fato de Danto ser baseado em Warhol. Então, Danto aproveita para
explicar isso com um aforismo de Warhol:
“o que os filósofos tem a dizer sobre a realidade é normalmente tão desapontador quanto
uma vitrine em que se lê um letreiro dizendo ‘Passa-se roupas aqui’. Se você entrasse com
as suas roupas para ser passadas ali se sentiria um idiota, porque era apenas um letreiro que
estava sendo comercializado”.
A coisa e a mensagem que ela manda demonstram uma ambiguidade que é ao
mesmo tempo uma brincadeira sobre a qual as obras de Warhol se erigem. O exemplo
do filme feito a partir do livro “Ou, ou” nos faz saber que Danto explora o método de
Warhol inserindo-o no seu jogo com a filosofia. Também ele quer brincar. Também ele é
capaz de inventar. Afinal ele é um filósofo que só pode sê-lo enquanto é um efeito dos
procedimentos filosóficos de Warhol. Ele é um filósofo que leva a sério o trabalho
filosófico “como artista”. Na sequência Danto assume a brincadeira dando o exemplo de
um homem que fosse a um mercado buscar uma caixa de sabão Brillo e tivesse entrado
numa galeria onde a obra estivesse exposta valendo uma fortuna, e de outro homem que
fosse a uma galeria procurando as caixas de Brillo sendo que, na verdade, teria entrado
no mercado onde elas não valiam muito. A ausência de diferença perceptual poderia
desapontar os visitantes da Galeria Stableonde a obra foi exposta em 1964 em seus
propósitos de verem uma obra de arte e encontrarem uma mera coisa, embora a obra de
arte não fosse uma mera coisa no sentido da mera coisa. Danto comenta esse problema
para levantar a questão de que se a arte enviava ao sublime e extraordinário, Warhol faz
a arte remeter ao “banal” e ao ordinário encontrando nesse novo modo de ser algo
totalmente outro. O mais interessante desse tipo de exemplo é que arte e realidade
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entram em um jogo que confunde tudo. As Brillo Box “se apropriam de uma indagação
filosófica entre arte e realidade, questionando, com efeito, por que, se elas são arte, as
caixas de Brillo no supermercado, que não tem nenhuma diferença perceptível delas,
não o são” (2001, p. 103). É, para Danto, o critério perceptivo que animou a arte por
séculos e séculos o que cai por terra. A brincadeira baseada na ambiguidade põe em
cena um outro jeito de pensar a arte e a vida.
A meu ver, essa brincadeira por ambiguidade acontece já no primeiro livro de
Danto que leva justamente o título de “A Transfiguração do Lugar-Comum” e que foi
publicado em 1981. No prefácio desse livro Danto conta sobre o título do livro. Ele teria
copiado o título de um livro escrito por uma “freira de passado duvidoso” que era
personagem de um romance de Muriel Spark. O livro escrito por essa freira se chamava
justamente “A Transfiguração do Lugar-Comum”. Ele comenta que esse livro que ele
queria que se tornasse famoso também fosse uma transfiguração do lugar comum
enquanto o próprio livro era um objeto comum que transfigurava o comum. O livro era
a Transfiguração que ele almejava. Aquilo que Warhol teria feito com sua obra, Danto
queria fazer com seu livro. O próprio livro “A Transfiguração do Lugar-Comum” é ao
mesmo tempo que uma brincadeira, um modo de colocar a questão filosófica depois de
Warhol. Ele é uma citação do livro de Spark e do livro da freira no livro de Spark. É
uma brincadeira com camadas de significação. Mas é também a própria coisa que não é
mais a mesma coisa. “A Transfiguração do Lugar-Comum” é como a Brillo Box e como
o filme Empire. Ele é, não custa repetir, a forma própria da questão filosófica tal como
Danto descobriu em Andy Warhol. Por isso, não apenas o conteúdo complexo, que não
há espaço para resumir aqui, mas a própria capa, a superfície, importa tanto para Danto.
Contando sobre as capas de seus seríssimos livros anteriores Danto nota como
escolheu a capa de “A Transfiguração do Lugar-Comum”, o que a meu ver, deflagra seu
procedimento artístico – baseado na brincadeira da ambiguidade - no gesto de
transfigurar o lugar comum que é o livro da transfiguração do lugar comum:
“pensei em usar a imagem de uma das pinturas de Jim Dine, onde se vê uma gravata
listrada pintada acima das palavras ‘Universal Tie’. O título ‘Universal Tie’ nos pareceu
deliciosamente ambíguo, aludindo simultaneamente às gravatas que os homens usam no
mundo inteiro quando querem estar bem vestidos e a um conceito filosófico – o de
causação universal, que liga tudo o que há no mundo em um único sistema. E uma gravata
na sobrecapa se prestava a um trocadilho visual. O livro deveria ter muitos exemplos
tirados da arte contemporânea e um estilo ágil e recheado de piadas. (2005, p. 14)
Ele segue dizendo que queria fazer um livro só com piadas, como teria sido a
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sugestão de Wittgenstein. Oportuno e eterno, como, segundo Danto, deveria ser a
filosofia. Mas ele declara que o livro deveria ter um “duplo enfoque”: “mais filosófico
do que a maioria dos livros escritos para leitores não versados em filosofia”e “mais
voltado para as preocupações correntes do mundo da arte do que a maioria dos livros
escritos para um público de filósofos” (p. 14). Danto conta nesse livro a mesma história
sobre o momento de nascimento da Pop Art explicando seu lugar naquele momento
histórico. Mas aqui ele explica que não tinha interesse de fazer Pop Art – como artista
ele era por demais ligado à visão da pintura dos artistas dos anos 50 – enquanto ao
mesmo tempo se interessava demais pela Pop Art. Assim, experimentando também uma
certa ambiguidade em relação à arte é que ele escolhe seguir fazendo filosofia. A arte se
torna uma espécie de pano de fundo da experiência filosófica de Danto.
De fato, ele repete a história toda contada no texto sobre Pop Art e futuros
passados (2006B). Mas neste livro seu lugar como artista fica ainda mais claro, não
mais como artista visual, ou pintor, mas como escritor, alguém interessado em “uma
prosa de qualidade estética”: “se alguém decide tornar-se escritor, é melhor que tenha
gosto pelas palavras” (2005, p. 13). E arremata: “não me parece haver nenhuma
incompatibilidade entre a verdade filosófica e a habilidade literária”.
É por conta desse exercício de liberdade literária enquanto liberdade filosófica
que Danto escreverá o seu Transfiguração como um diálogo com personagens que toma
como modelo o romance “Jacques, o fatalista” de Diderot.Isso é inusitado em Danto,
mas é o seu gesto inaugural como filósofo, o momento em que ele publica seu grande
livro. Assim, buscando uma teoria da arte como teoria da representação e percebendo
que a arte não era uma representação como qualquer outra Danto chega à conclusão de
que a obra de arte é um veículo de representação que “corporifica” seu significado. Eis
o que é o livro da Transfiguração. Danto mesmo afirma jamais ter desenvolvido esse
conceito de corporificação e aponta para a chave para compreender a corporificação que
seria a interpretação como uma tarefa do crítico. No mesmo livro ele falará que a
“interpretar uma obra é propor uma teoria sobre o assunto de que ela trata, sobre seu
objeto”(2005, p. 183) levando em conta elementos que podem ser identificados no
quadro sem ao mesmo tempo projetar na obra de arte alguma coisa que lhe é exterior.
Isso nos faz pensar que, aplicando sua própria teoria a ela mesma, a transfiguração é a
própria “coisa” da transfiguração. Interpretá-la é dar-se conta do que ela é. É prestar
atenção no que ela nos apresenta.
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Para concluir, gostaria apenas de levantar ainda um aspecto. Ora, a obra,
qualquer obra, nos apresenta alguma coisa. Danto nos apresenta Warhol enquanto o
representa. O Andy Warhol de Arthur Danto poderia ser também o Arthur Danto de
Andy Warhol. Warhol nos faz pensar na própria teoria de Warhol em seu famoso livro
de filosofia chamado “A filosofia de Andy Warhol, de A a B e de volta a A”(2008),
começa com um texto de introdução que traz um subtítulo sugestivo: “Como Andy
assume seu Warhol”. Creio que podemos usar este subtítulo para pensar “Como Arthur
assume seu Danto”. Penso neste caso na relação entre A e B exposta por Warhol, na sua
maneira debochada, mas também irônica, e neste sentido ambígua, de dizer uma coisa
dizendo outra. De dizer desdizendo. A e B são, neste caso, personagens que explicam
bem a ambiguidade e, neste sentido, também a transfiguração enquanto ato por meio do
qual uma coisa torna-se outra coisa: o comum não é mais comum, o incomum fica
comum, o banal que é deplorável pelos artistas e que seria tarefa da arte revelar torna-se
adorável. E adorável teologicamente falando. Isso pode ser visto no texto de Warhol
quando o personagem A se explica a B: “eu sou tudo o que meu álbum de recortes diz
que eu sou” (p. 23).B é alguém, sabemos pela narrativa de A com que começa o texto.
A, segundo ele mesmo, não é ninguém. B ajuda A, segundo A, a matar o tempo. Mas
isso tudo o que A diz de si mesmo e de B é só um jeito de Warhol debochar de tudo, de
todos os que se levam a sério, debochando de si mesmo.
Danto não foi o A nem o B de Warhol, pode parecer que ele se levou mais a
sério do que Warhol, mas por isso mesmo é que não se levou tão a sério. O modo como
Danto levou a sério Warhol na contramão de tantos, sobretudo se levamos a sério o que
a filosofia institucional e acadêmica pensa de si mesma e o lugar subalterno em que põe
a estética, então Danto foi o mais debochado dos filósofos. Ele foi o próprio filósofo
enquanto Andy Warhol que ele procurou entender. Que possamos a partir dele
entendermo-nos a nós mesmos, é uma questão a pensar se quisermos, também
nós,construir uma filosofia para o nosso tempo.
REFERÊNCIAS
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Cosacnaify, 2005.
DANTO, Arthur. Andy Warhol. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosacnaify, 2012.
DANTO, Arthur. O filósofo como Andy Warhol. Originalmente publicado em
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61-83. http://www.cap.eca.usp.br/ars4/danto.pdf pesquisado em 29/04/2014.
DANTO, Arthur. O Mundo da Arte. In Artefilosofia. Ouro Preto. N1. P. 13-25. Julho
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http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_01/artefilosofia
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Contemporânea e os Limites da História. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: EDUSP,
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Lins. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2001. P. 95-104.
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WARHOL, Andy. A filosofia de Andy Warhol. De A a B e de volta a A.Trad. José
Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008.
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O FIM DA ESTÉTICA – DADAÍSMO E ARTE POP
Susana de Castro
RESUMO
Qual a relação entre arte e gosto popular? A obra de Danto nos mostra como a arte pop
revolucionou a arte ao aproximar o objeto de arte dos objetos comuns. Neste trabalho
são feitas as relações entre o dadaísmo e a arte pop mostrando-se as principais
características dos dois movimentos.
Palavras chaves: arte pop. Andy Warhol, readymades
ABSTRACT
What is the relationship between art and popular taste? Danto's work shows us how pop
art revolutionized the art when approached the art objects to the common objects. This
work make relations between Dadaism and pop art, making clear the main features of
the two movements.
Key-words: pop art, Andy Warhol, readymades
Segundo Arthur Danto (2006, p. 45), os readymades do dadaísta Marcel
Duchamp representaram uma profunda desconexão entre arte e estética. Marcam o
início do fim da era estética. Fim este que só se completaria cinquenta anos depois, com
as caixas de Brillo Box do artista pop Andy Warhol.
Para os dadaístas, de maneira geral, a ideia de uma arte pura, voltada para a
apresentação e contemplação do belo, não fazia mais sentido, face os horrores da
Primeira Grande Guerra (1914-1918). Como continuar a dedicar-se a retratar o belo,
captar o efêmero, expressar os sentimentos, quando as potências europeias levavam para
o front de batalha 65 milhões de soldados, dos quais 20 milhões não sairiam vivos da
guerra? A Guerra pôs em questão o compromisso ético do artista de continuar a agradar
uma sociedade com suas obras, quando a elite que apreciava e comprava suas obras era
a mesma responsável pela morte de milhares de pessoas. Não poderia haver desconexão
entre arte e sociedade. Neste momento de caos moral, não haveria mais espaço para
arte. O máximo que se poderia fazer, seria criar peças fortuitas, produzidas ao acaso, e
feitas para terem vida curta e não para mofarem nos museus. É com este espírito rebelde
e irreverente que Marcel Duchamp cria, entre 1913 e 1915, seus readymades. Peças
criadas a partir de objetos comuns do cotidiano às quais Duchamp atribuía um novo
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sentindo ou sentido algum. Duchamp põe em xeque a imagem do artista romântico
inspirado que cria a partir da sua própria imaginação, em meio à solidão e ao
sofrimento. A arte podia ser feita com qualquer coisa desde que expressasse o olhar
crítico do artista. As obras de Duchamp eram feitas a partir de produtos manufaturados.
O que os transformava em obra de arte, era apenas uma ideia, o conceito introduzido
pelo artista na obra. A partir do momento em que ele escolhe o produto entre tantos
outros, dá-lhe um nome, ele deixou de ser um exemplar, entre vários do mesmo tipo,
para tornar-se outra coisa.
Ao deslocar os produtos manufaturados de seu espaço original e inverter sua
disposição, como nas obras Fonte e Roda, Duchamp impregna de ironia os símbolos do
avanço da civilização ocidental.
Roda (1913)
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Fonte (1917)
Da mesma forma como Duchamp com seus readymades dialogava criticamente
com a sociedade belicista de sua época, os artistas pop da segunda metade do século XX
insistiam que a arte deveria dialogar com a cultura de massa contemporânea. Os artistas
pop, chamados, por alguns, de neodadas ou neorrealistas, dialogavam em suas obras de
maneira irônica com a sociedade de consumo que surgia após a Segunda Guerra
Mundial. O contraste entre o racionamento e a escassez do período entre as duas
grandes guerras, e durante as guerras, e a abundância do pós-guerra, a intensificação da
presença dos meios de comunicação de massa, como o cinema, a televisão e as revistas
de grande circulação, na vida do cidadão comum, a invasão maciça da propaganda
como mecanismo de criação de desejo de consumo, entre outras coisas, modificaram
profundamente a sociedade americana e inglesa, locais de origem da arte pop1. A obra
de Eduardo Paolozzi, É um fato psicológico que o prazer melhora a sua disposição, de
1948, marca o começo dessa nossa sensibilidade estética.
1
David McCarthy (2004) situa o trabalho dos ingleses ligados ao coletivo The independent group, como
Richard Hamilton, Eduardo Paolozzi, Peter Black, entre outros, como os precurssores do movimento na
Inglaterra na década de 50.
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Eduardo Paolozzi, É um fato psicológico que o prazer melhora a sua disposição (1948)
Antenados com as suas sociedades e impregnados pelas imagens de seus
produtos, como eletrodomésticos, comida enlatada, revistas em quadrinhos, filmes,
fotografias, os artistas não podiam deixar de retratar em suas obras esse ‘novo’ espírito,
hedonista, urbano. Mas com esta aproximação entre propaganda, consumo, vida urbana
e arte, os artistas pop amplificaram a concepção dadaísta de que a arte não poderia estar
separada da vida. De um lado, compartilhavam como o dadaísmo da desmistificação do
artista. Este não era mais considerado como alguém especial que estaria em contato com
as fontes únicas do ser. Ao contrário, porque se apropriavam de imagens veiculadas nos
meios de comunicação de massa, os artistas pop questionavam a ideia da manipulação
única dos materiais na obra. A obra de Roy Lichtenstein, Pincelada (1965) é uma
paródia dessa concepção romântica da obra de arte como resultado exclusivo da ação do
artista.
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Roy Lichtenstein,Pincelada (1965)
O movimento artístico que antecedeu o nascimento do pop da década de
sessenta nos EUA, foi o expressionismo abstrato, representado, entre outros, por
Jackson Pollock. As obras destes artistas, além de abstratas, eram marcadas por um
estilo chamado de gestual, pois nelas se podia perceber a marca da ação da pincelada do
artista. Nelas a presença do artista ficava em primeiro plano, sua marca era
inconfundível.
Jackson Pollock, Convergence, 1952
Um outro aspecto que distinguia a arte pop do expressionismo abstrato era o
uso de técnicas de reprodução da imagem, como a serigrafia, o que tornavam a obra
ainda menos ‘original’. Essa técnica foi utilizada por Andy Warhol e Roy Lichtenstein,
entre outros. Os artistas pop utilizavam-se de fotos de revistas, imagens de histórias em
quadrinhos, fotografias de artistas famosos, e com essa reprodução de algo já existente,
criavam ao mesmo tempo um reconhecimento e um estranhamento, pois as imagens
estavam deslocadas de seu local original. A imagem original, saturada pela sua
exposição em massa, era facilmente reconhecida pelo apreciador da obra. Esse
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
reconhecimento imediato servia como um veículo de aproximação direta do espectador
com a obra. Por outro lado, a repetição da imagem da mídia na obra de arte e o seu
reconhecimento provocavam o efeito de‘espelho’. Aqueles eram produtos e imagens do
tempo presente.
Ainda que, em larga medida, a arte pop possa não ter tido o mesmo espírito não
conformista e anti-burguês do dadaísmo, pois não questionava diretamente a
transformação da sociedade em uma sociedade do lazer, e dos cidadãos em
consumidores, por outro lado, ao aproximar suas obras da sensibilidade da época,
sensibilidade esta marcada pela ‘estética do descartável’, os artistas pop seguiam a
‘filosofia’ de arte dadaísta, na medida em que quebravam a separação entre gosto
popular e gosto refinado, entra arte popular e arte refinada. Diferente do expressionismo
abstrato, gestual, não realista, que convidava seus apreciadores a uma experiência quase
religiosa com a arte, os artistas pop trouxeram a arte da rua, de massa para dentro da
esfera exclusiva das belas artes.
Em várias de suas obras, Arthur C. Danto reitera a importância dos quadros e
esculturas de Andy Warhol para a filosofia da arte. Desde Platão, perguntava-se “o que é
arte?”, desde Warhol, a pergunta da filosofia da arte é “o que faz com que dois objetos
indiscerníveis do ponto de vista material e ótico possam, no entanto, ser diferentes? Um
ser arte e o outro não?”. Somente com essa segunda formulação, continua Danto,
podemos fazer verdadeiramente filosofia da arte. O marco referencial para essa
mudança é a exposição em 1964 na Galeria Stable em Nova Iorque das caixas de Brillo
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Box de Warhol. As caixas empilhadas com a logomarca da esponja Brillo como se
estivessem no armazém do supermercado à espera de serem abertas e seus produtos
colocados nas prateleiras, não se diferenciavam em nada das caixas originais de
empacotamento, a não ser pelo material, de madeira e não de cartão.
Enquanto o objeto comum serve a finalidades práticas, o objeto de arte está
carregado de significado. Interpretá-lo implica recorrer a uma série de ocorrências
culturais e biográficas. É nesse sentido que a arte no sentido figurativo e belo morre
definitivamente, e o que resta é apenas a arte que se pensa a si mesma e aos símbolos
culturais que cercam a época do artista.
Essa transformação da arte pela arte pop, sua ruptura com as barreiras entre a
arte popular e a as belas artes, refletia uma transformação profunda na sociedade. A pop
art representou o rompimento com o espírito do modernismo (Danto, 2009, p. 31; Wyss,
2004, p. 21), que não admitia a mistura de estilos, tendências, motivos e orientações. É
evidente que outras correntes e estilos artísticos, como, por exemplo, o cubismo, já
operavam com as coisas redundantes do cotidiano, como bule de café, garrafas,
instrumentos musicais. Também o dadaísmo questionava propositadamente o bom-gosto
com peças provocativas e efêmeras. Porém, tanto o cubismo, quanto o dadaísmo
representam movimentos de vanguardas. Seus representantes consideravam-se os eleitos
da arte, aqueles que traçariam o caminho mais verdadeiro das artes do futuro. Ainda que
possamos dizer que a pintura pop foi precursora de um novo caminho nas artes, não
seria correto identificar artistas como Andy Warhol com propostas vanguardistas, pois
sua obra é o avesso da ideia do artista como o interlocutor especial com os sentidos
mais puros da arte. Sua obra quer propositadamente seguir o gosto popular e suas ideias
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não objetivam projetar na obra uma subjetividade profunda do artista. No caso de
Warhol a técnica da serigrafia utilizada em muitas de suas obras lhe permitiu imprimir
justamente o sentimento de alheamento e indiferença que as aproximam de uma obra
industrial, produzida e reproduzida mecanicamente, quase sem a intervenção direta da
mão direta do artista. Como Warhol disse algumas vezes, sua vontade era a de
aproximar cada vez mais a sua produção artística da industrial e comercial, e
transformar-se ele mesmo em uma máquina. Mas ainda que tenha se distanciado do
ideal do artista engajado com uma busca muito especial de sentido, podemos dizer que
sua obra e sua persona revolucionaram o mundo das artes e da sociedade de tal maneira
que ainda que a pintura pop tenha acabado nos anos 60 e cedido lugar para outras
correntes, a nossa era ainda é a era de Andy Warhol, pois sua persona perdurou como
um ícone que marcou o comportamento da sociedade americana de uma maneira geral
(Danto, 2009, p.x, p.4). Ele ampliou bastante o universo dos cultivadores da arte. Ele se
tornou conhecido entre pessoas que sabiam pouca coisa sobre arte. De certa maneira
ampliou bastante o alcance da arte, retirando-a do domínio exclusivo dos museus.
Quando em 1965, o Instituto de Arte Contemporânea da Universidade da Pensilvânia
inaugurou uma retrospectiva de sua obra, uma multidão de pelo menos duas mil pessoas
apareceu, não para ver a exposição, mas para encontrá-lo pessoalmente. Como os
artistas de uma banca de rock famosa, ele e seus amigos tiveram que se refugiar no teto
do prédio.
REFERÊNCIAS
DANTO, Arthur C. The abuse of beauty. Aesthetics and the Concept of Art.
Chicago: Open Court, 2006 (4 reimpressão)
-----------------. Andy Warhol. New Haven &Londres: Yale University Press, 2009.
------------------. The Transfiguration of the Commonplace, a philosophy of art.
Cambridge, Londres: Harvard University Press, 1981.
McCarthy, David. Arte Pop. São Paulo: Cosac Naify, 2004 (2a reimpressão).
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UMA FÁBULA PARA ARTHUR DANTO
Fernando Gerheim1 e Fabio Mourilhe2
"Quanto tempo ainda terei de esperar para que meus
olhos possam novamente contemplar as maravilhas do
cosmos em mudança constante?” (Surfista Prateado)
RESUMO
Este artigo explora vetores do pensamento de Arthur Danto com os meios da ficção,
tendo por princípio um pensamento por imagens. Questões como a definição da arte são
articuladas ao atual contexto da arte contemporânea, investigando narrativas não
hegemônicas a partir do desmonte das ideias de moderno/primitivo, puro/híbrido,
central/periférico.
Palavras-chave: arte contemporânea, Arthur Danto, híbrido/puro
ABSTRACT:
This article explores vectors of Arthur Danto’s thought through fiction, with means of
thinking through images. Issues such as the definition of art are articulated with current
context of contemporary art, investigating non-hegemonic narratives from the
dismantling of ideas of modern / primitive, pure / hybrid, center / periphery.
Key words: Arthur Danto, contemporary art, hybrid/pure
Como se sabe, a teoria da arte moderna narra a passagem da forma para o signo
e da mimeses para a arte abstrata, no início do século XX.3 Um dos fenômenos mais
interessantes decorrentes dessa ruptura, ocorrido pouco depois, foi a expansão dadaísta
da experiência estética para a não-arte. A consequência da antiarte foi que o mundo hoje
está cheio de pós-dadaístas flanando pelas ruas como estetas do acaso. Apesar do
comportamento antissocial, eles não causam escândalo. Parecem não querer nada além
de contemplar o espontâneo lirismo de manchas de mofo nas paredes, frutas fantasmas
1
Fernando Gerheim é professor e pesquisador da Escola de Comunicação da UFRJ, professor permanente
no Programa de Pós-Graduação de Artes da Cena e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais da UFRJ. Doutor em Literatura Comparada (UERJ) e autor de Signofobia (2012) e
Linguagens Inventadas – palavra imagem objeto: formas de contágio (2008).
2
Fabio Mourilhe é doutor em filosofia (UFRJ), pesquisador, autor de diversos livros e organizador dos
Colóquios Filosofia e Quadrinhos. Foi professor temporário no IFCS/UFRJ em 2012 e realizou estágio de
doutoramento sanduíche no Dorothy F. Schmidt College of Arts and Letters na FAU em Boca Raton,
EUA, em 2013 com Richard Shusterman.
3
Ver “A crise da representação”, in: Arte e crítica de arte. Giulio Carlo Argan. Editorial Estapa, Lisboa,
1988.
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em sombras de árvores, rastros de freadas de pneus como citações no texto da realidade,
a casual linha branca de algum líquido derramado por acidente sobre o piche preto do
asfalto como uma grafia cursiva primitiva.
Esses dândis anacrônicos, por isso contemporâneos, vagam imersos na fruição
de não-obras, tirando valor de eternidade do efêmero, sujo e aleatório. A percepção
sensível para eles é uma abertura ao cômputo total em formação de sentidos livres. A
capacidade de submeter contextos fortuitos a uma redução fenomenológica leva os seus
felizes praticantes a uma époche da qual retornam transformados. Pela dispersão,
formam um antimovimento. Nessa operação, todo praticante é desautorizado.
A origem não ocidental de Kwame4 fez com que fossem sobressaltados, além
do caráter fenomenológico, os de crítica social-institucional da arte e operação
discursiva. Contemplativo diante da não-obra, Kwame obstrui a passagem. Ele não quer
asilo na multidão. É apenas mais um que celebra em silêncio, na floresta urbana de
símbolos, nostálgico e inconveniente, o que nada além do seu olhar afirma. Mas seu
gesto foi compreendido erroneamente como a deriva urbana de um artista não-ocidental.
Foi-lhe imputado o feito de traduzir a crise psicogeográfica situacionista em termos de
um modernismo híbrido. O fato é que o alto nível de profissionalismo lhe deu direito
autoral sobre sua flânerie em essência intangível. O mesmo rótulo de “arte híbrida” em
nome do qual o trabalho de Kwame foi consagrado o mantinha na periferia do curso
unificado da arte. Apesar de ser o elogio volátil da incerteza, o artista assinou uma
modalidade de percepção, uma maneira de olhar. Pessoas citavam seu nome ao apontar
incidentes estéticos similares nas ruas. Era um tipo de experiência artística coletiva.
Como previra Duchamp, a arte passara para o lado do receptor, que a tudo, com seu
olhar, com sua atitude, poderia tornar estético. Cada artista expandia a arte abocanhando
um pedaço a mais do mundo.
Os críticos observaram que Kwame não deslocava um objeto industrial
produzido em série para o mundo da arte, e sim um evento, único, situado no espaço
público, e tal deslocamento era feito para esse mesmo espaço, público e anônimo,
consistindo a não-obra apenas no gesto de apontar para esse lugar e essa situação
específicos e evanescentes. Essa redução última através de um olhar de tipo especial
4
[Nota do editor] Kwame é um personagem fictício que criamos para falar das ideias de Danto
articuladas ao contexto contemporâneo da arte. Decidimos adotar uma forma de reflexão que não
excluísse o pensamento por imagens e metáforas, mais próxima do ensaio, no sentido de Benjamin, que
por isso é citado na bibliografia, embora não o seja no texto. [Texto informado pelos autores.]
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
tinha uma técnica extremamente rigorosa, a ponto de identificar Kwame para além dos
eventos que ele elegera como não-arte merecedora de fruição estética. O valor estético
dependia do olhar, não da obra, mas o olhar só podia revelá-lo em cada obra específica,
dependendo dessa materialidade efêmera para existir. Kwame reintegrava arte e vida
como, segundo especialistas, nas culturas primitivas.
Mas o próprio Kwame não concordava inteiramente com isso. À maneira de
um colega que assinava antebraços, barrigas e outras partes do corpo das pessoas que
transformava em obras de arte, complementando seu gesto com a firma reconhecida
num documento imperecível, Kwame passou a emitir como única prova de seus
trabalhos um “certificado de incerteza” constando de uma descrição sucinta, por escrito,
da não-obra. Essa estratégia, segundo ele, o protegia do alargamento da arte ao âmbito
da cultura e de sua perigosa combinação de excessos de vagueza e norma, nos quais seu
próprio trabalho se apoiava. A cena internacional aplaudiu mais uma vez, para assim
mantê-lo dentro dos limites do pluralismo controlado.
Não sabemos se a resposta ao trabalho seguinte de Kwame é daquele tipo que
provoca um comportamento ao mesmo tempo reflexivo e sensível, em que
transcendência e imanência dão as mãos e giram numa ciranda, uma servindo de
contrapeso para a outra rodopiar veloz, passando o que estava num lado para o outro e
vice-versa. Estamos suficientemente familiarizados com o tipo de pensamento da
crítica, mas, como diz Danto, “vivemos numa atmosfera em que o paradigma da
resposta artística é repentino e sub-racional, como um clarão ofuscante" (Danto, 2001,
p. x). Talvez o ritmo que melhor descrevesse a reação à obra de Kwame fosse o espiral e
intermitente.
O artista preparou um trabalho nos subterrâneos de uma estação de metrô
desativada. Espalhou gadgets de última geração pelo chão, nas paredes, pendurados no
teto, entre os trilhos. A disposição alternava caos e ordem, mas ambos convergiam para
um andaime num recuo da estação. As tecnologias de comunicação haviam sido
reprogramadas e emitiam vozes e imagens que pareciam transmissões ao vivo. Um
tablet pendurado no teto por um fio bailando na altura dos olhos dizia pelas fendas
luminosas de sua tela sensível ao toque:
Definir arte como “qualquer coisa” seria para Danto (2003, p. 18) uma resposta pouco
abrangente que aponta para uma desilusão. O motivo pelo qual isso ocorre é que, por muito
tempo, se assumiu que as obras de arte seriam constituídas por um conjunto restrito e
exaltado de objetos, que qualquer um poderia identificar como tal.
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Uma mesma mensagem de texto, como se fosse um SMS, se repetia nas telas
de todos os smartphones que, juntos, formavam poliformas de linhas descontínuas para
serem vistas-lidas.
“Porque, referindo a si mesma, deveria esta ser uma obra de arte, quando outra
coisa exatamente igual a essa ... é uma peça do encanamento industrial?” (Danto, 2005,
p. 195).
Outro texto soava do outro lado da linha daquele outro smartphone jogado
aleatoriamente no chão:
Apesar da beleza ser a base dos conflitos entre arte tradicional e de vanguarda, e a beleza,
na visão de Danto (2005b, p. 191), continuar sendo a qualidade estética que é um valor
fundamental, existe também uma ampla gama de qualidades estéticas, ou predicados
estéticos, do belo e do sublime ao feio e nojento.
Além disso, havia calculadoras por toda parte com letras no lugar de cifras.
De dentro dos bueiros, saíam sons de palavras que pareciam um único texto
espalhado no espaço:
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A ideia de que um poema “não deve significar, mas ser” está muito presente nas últimas
décadas, mas falta sutileza filosófica à dicotomia que ela impõe. O que ela falha em
reconhecer é que o ser da obra de arte é o seu próprio significado. Arte é um tipo de
pensamento, e experimentar arte consiste em pensamentos que se envolvem com
pensamento. (Danto, 2001, p. x)
As grandes obras de arte são aquelas que expressam os pensamentos mais profundos. Tratálas apenas como meros objetos estéticos distancia inteiramente do que faz a arte tão central
para as necessidades do espírito humano. (Danto, 2001, p. x)
Outros trabalhos com meios telemáticos pronunciavam vozes que soavam em
tons variados, alteradas por efeitos. As frases também apareciam em diversos formatos
nas telas de Ipads jogados pelos cantos:
“O coeficiente da arte não é um dado informacional.” “Itinerário
de um texto sonoro-espacial.” “Cuidado com o
ao longo
vão entre o trem e a
“Narrativa nômade por espaços fragmentários.” “O que seria um
texto site specific? Escrita espacial.” “Espaços experimentados transitivamente, uma
coisa depois da outra.” “A fisicalidade do local é ao mesmo tempo um vetor
discursivo, desenraizado, fluido, virtual.” “Padrão de movimento cibernético.”
plataforma.”
Na hora do pico de público, Kwame subiu no alto do andaime no recuo da
estação. Ele estava nu. Um murmúrio correu pelas galerias subterrâneas. Diante dos
convidados emocionados com sua presença literalmente física, Kwame revelou:
Meu trabalho é lido como uma convergência de crítica institucional com política de
identidade multicultural. Minha origem determinou esta visão. Agora vou completar o
trabalho tirando minha própria máscara de último grito primitivo para outra vez o ocidente
recuperar a pureza e expiar a culpa. Eu gostaria que o meu trabalho não fosse julgado
segundo nenhum critério da história da arte ocidental ou da periferia, da religião ou da
secularização, do gueto ou do universal, da magia ou do belo, da pré ou da pós-história.
Meu trabalho tampouco é para ser exposto ou performado. Ele não está integrado na minha
realidade como expressão genuína da cultura local. Seu contexto é o pós-colonial da
globalização. Eu não tenho raiz, apenas rotas. Minha modernidade não é híbrida porque não
há modernidade pura. Eu não preciso pedir desculpas a ninguém. Eu me aproveitei do
pseudopluralismo para manipular, a meu modo, a exuberância irracional e a dissonância
cognitiva da cena e do mercado internacional de arte. Autodenuncio-me sem culpa: meu
trabalho está orientado para burlar o controle surdo sobre o processo de globalização. Se
não há conceito unificado de arte, eu posso alterar a significação histórica da história da
arte. Isso fará ruir o mercado de arte.
O mundo da arte tentou rebaixar Kwame por seu “conteúdo e valor qualitativo
incertos”, mas era tarde. Estava realizada a última das utopias. Assim Kwame terminou
seu discurso:
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A hipótese de que eu faço arte pode ser considerada verdadeira se e somente se
considerarmos que a arte é uma caixa fechada que os envolvidos no processo de
comunicação têm na mão. Não se sabe se há algo dentro da caixa. O significado é um
núcleo impenetrável, um salto no abismo de ser o seu próprio pressuposto. Tudo o que
temos são formas de significar e de fazer arte
Aqui termina a história de como Kwame abalou o curso unificado e os valores
de mercado da arte ocidental.
REFERÊNCIAS
ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica da Arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988.
BELTING, Hans. Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas Globais, Arte & Ensaios,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA, UFRJ, ano IX, no. 9,
2002, p. 166.
DANTO, Arthur Coleman. Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-historical
Perspective. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1992.
______________________. The abuse of beauty: aesthetics and the concept of art.
Chicago: Open Court, 2003.
___________________. Unnatural Wonders: essays from the gap between art and
life. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2005a.
___________________. Symposium: Arthur Danto, The Abuse of Beauty. Embodiment,
Art History, Theodicy, and the Abuse of Beauty: A Response to My Critics. In: Inquiry:
An Interdisciplinary Journal of Philosophy. Vol. 48, No. 2, 189–200, April 2005b.
___________________. Wake of Art: Criticism, Philosophy, and the Ends of Taste.
London: Routledge, 2013.
___________________. The Madonna of the future: essays in a pluralistic art
world. Berkeley: University of California Press, 2001.
___________________. A idéia de obra-prima na arte contemporânea, Arte & Ensaios,
Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA, UFRJ, ano X, no. 10,
2003, p. 84.
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Tradução
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PRAZERES ESTÉTICOS 1
Carolyn Korsmeyer
Tradução Osvaldo Carvalho
Revisão Inês Lacerda Araújo
Filosofias que desenvolveram ideias sobre as belas artes e um domínio distinto
de valor estético no início do período moderno tornaram-se textos fundamentais para a
teoria estética contemporânea, e este capítulo analisa algumas das mais influentes.
Veremos que na medida em que importou distinções de gênero para os conceitos de
beleza, sublimidade, prazer, e a própria estética, estas teorias contribuíram para
intensificar a ideia de que ambos, artistas e os melhores juízes críticos de arte, são
idealmente masculinos. Mais adiante, no Capítulo 3, também veremos que todos esses
fatores tiveram uma importância considerável para a prática de mulheres artistas, porque
dentro dos discursos relativamente abstratos de estética filosófica existem redes de
conceitos que descrevem e prescrevem os limites de como as mulheres devem agir,
como devem pensar e sentir, e as qualidades que elas devem cultivar na arte e na vida.
Em outras palavras, existe uma oscilação entre a dimensão abstrata do discurso e suas
implicações e, às vezes, imediatamente em ramificações práticas. Vamos começar com
algumas informações gerais sobre o ambiente filosófico em que os modernos conceitos
centrais em estética foram articulados.
A Estética
"Estética" é um termo cunhado pelos filósofos para designar um tipo de
experiência para a qual não havia termo vernacular adequado2. Quando o termo
"estética" foi utilizado pela primeira vez na filosofia alemã, no século XVIII, ele
se
referia ao que era considerado como um nível de cognição que se recebe da experiência
sensorial imediata antes da abstração intelectual que organiza o conhecimento geral.
Mas logo foi revisto para referir de forma mais ampla à visão particular que uma forte
1
Capítulo 2 de Gender and Aesthetics - an Introduction (Nova Iorque e Londres: Routledge, 2004.);
traduzido por Osvaldo Carvalho, com revisão Inês Lacerda Araújo.
2
Alexander Baumgarten introduziu o termo em suas Reflexões Sobre a Poesia [1735], trad. Karl
Aschenbrenner e William B. Holther (impresso em Berkeley e Los Angeles: Universidade da Califórnia,
1954). "Estética" vem de uma raiz grega referindo-se a percepção sensorial. O termo entrou para a língua
inglesa no início do século XIX.
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experiência de beleza transmite. O imediatismo, singularidade e intimidade de ambos,
experiência sensorial e beleza, indicam mais uma intuição particular do conhecimento
geral. Como as teorias foram formuladas para explicar a ideia de um domínio especial
de prazer estético, o termo eventualmente tornou-se (no século XIX), o rótulo de uma
área específica do estudo filosófico: a estética. Esta coincidência de denominação e
desenvolvimento da teoria levou alguns estudiosos a declarar que a estética é originária
do século XVIII, o que seria um exagero. No entanto, este período testemunhou
profundas discussões do prazer e dos objetos de prazer que fundamentaram muitas das
abordagens modernas para a apreciação crítica e para a arte.
O papel central do prazer na teoria estética é facilmente compreensível se se
examina o termo clássico da aprovação estética: beleza. O que é a beleza? Quando
alguém chama um objeto de bonito, ao que se refere? Isto sempre coloca uma espécie de
quebra-cabeça, porque os objetos de beleza são tão diversos que é difícil de localizar
uma única qualidade que eles compartilhem. Um poema é bonito, um cisne é bonito,
assim como uma música, um gesto, uma pessoa. Alguns filósofos, com destaque para
Platão, têm defendido que "beleza" nomeia a qualidade possuída por todos esses objetos
e em virtude da qual eles são belos3. De acordo com tal análise esta qualidade, embora
misteriosa e difícil de identificar com precisão, é objetiva, o que significa que ele reside
no próprio objeto e não é dependente da resposta de um observador para a sua
existência. Outros filósofos têm sido mais céticos sobre a presença de uma qualidade
objetiva em coisas bonitas, presumindo que o que compartilham não é uma propriedade
específica, mas a capacidade de evocar uma resposta em um sujeito — a pessoa que os
achar bonitos.
Por uma série de razões, esta última abordagem, mais "subjetiva" da beleza
ganhou impulso no final do século XVII e persistiu como um tema de debate intenso
durante todo o século XVIII. O catalisador geral disso foi a ascensão do empirismo,
uma filosofia que defende que todas as nossas ideias são, em última análise, originadas
na experiência sensorial. Como não há nenhuma qualidade sensível simples de beleza,
reivindicações empiristas, este valor é mais bem entendido como uma ideia composta a
partir da percepção de várias qualidades sensíveis dos objetos mais a sensação de
prazer4. Por exemplo, encontrar um belo pôr-do-sol envolve perceber sua vermelhidão
3
(2) Discussão mais prolongada de Platão de beleza ocorre no Simpósio, especialmente o discurso de
Diotima discutido no Capítulo 1. (N.T. vide página 20.)
4
John Locke, por exemplo, Ensaio sobre o Entendimento Humano [1690] (impresso em Freeport, NY:
69
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
intensa, os feixes que irradiam do sol em um horizonte escuro, e assim por diante,
juntamente com a sensação de prazer que eles despertam. Não há nenhuma razão
empírica ou científica para pensar que "belo" é o nome de uma qualidade de tais objetos
eles mesmos; é um efeito subjetivo que envolve o despertar do sentimento.
A ênfase no prazer levanta alguns problemas, porque o prazer parece ser
fundamental para respostas individuais, mesmo idiossincráticas, mas a beleza parece ser
(38) mais que uma questão de capricho puramente subjetivo. Além disso, era bastante
aceito no início do período moderno que o prazer acontece quando algum desejo é
satisfeito, e que os desejos tendem a ser egoístas e autointeressados. Genericamente
falando, eles sustentam e promovem a própria situação pessoal, seja física ou social. O
exemplo mais simples de prazer por este modelo seria o prazer corporal de comer;
comer é agradável quando se está com fome e o desejo de comer é agudo. Ainda mais
pertinente para apreciação de gênero é a aptidão do desejo sexual para este modelo: o
prazer vem quando o desejo é despertado, e então satisfeito. Não só a beleza é
pressuposta na ligação de prazer e desejo, mas também qualidades de valor tais como
bondade e virtude morais, pois elas também envolvem algum tipo de resposta de prazer
ao invés de referência a qualidades objetivas tais como bondade. Enquanto alguns
filósofos (notadamente Thomas Hobbes) endossaram a ideia de que a atividade humana
é alimentada por impulsos egocêntricos, e que os valores qualitativos indicam a
satisfação direta ou indireta de desejos egoístas, muitos consideram isso como uma
descrição perigosa e imprecisa da atividade e do caráter humanos. Eles se esforçaram
para fornecer critérios comuns para respostas ao prazer que delimitam o egoísmo
idiossincrático do desejo pessoal. Na estética, esta tarefa consiste em estabelecer um
"padrão de gosto"5. Embora houvesse muitas teorias diferentes dirigidas a essa questão,
a maioria compartilhou uma tendência a separar prazer de um tipo estético de outros
tipos de avaliações, tanto as sensuais, as práticas e até mesmo as morais 6. (Como vimos
no último capítulo, a associação de beleza com virtude manteve-se forte, e qualidades
morais foram as últimas entre outros valores a se separarem da estética.)
O termo "gosto" é central nos debates sobre a resposta estética à arte e para a
Livros para Bibliotecas, 1969) Livro 2, Capítulo 12, Seção 5: 281.
5
Peter Kivy, "Estudos Recentes e a Tradição Britânica: Uma Lógica do Gosto – Os Primeiros Cinquenta
Anos" in George Dickie e R.J. Sclafani (eds), Estética: Uma Antologia Critica (impresso em Nova
York: St. Martin, 1977): 626-42.
6
Alguns realizaram uma busca conjunta de fundamentos estéticos e morais, tais como Francis Hutcheson,
Uma Investigação Sobre a Origem de Nossas Ideias de Beleza e Virtude (1725).
70
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
natureza. O sentido literal, gustativo de gosto nunca foi considerado um "senso
estético", isto é, um sentimento que proporcione prazeres estéticos ou que tome como
seu objeto uma obra de arte. (As razões para essa exclusão, as quais estão cheias de
significado de gênero, são exploradas no Capítulo 4.) No entanto, a linguagem do gosto
fornece sim metáfora chave para o entendimento da apreensão e apreciação estéticas.
Várias características do sentido gustativo são deixadas de lado. A ideia de uma região
distinta de experiência estética tem origem no reconhecimento de que há encontros
imediatos, singulares, que produzem visão de si e prazer. O sentido do paladar também
requer experiência íntima, imediata; e mais, gosto raramente ocorre sem um
componente de prazer-desprazer para a sensação. Além disso, como na apreciação da
poesia, música ou outras artes, pode-se desenvolver o (gosto do) paladar para que as
preferências alimentares tornem-se mais refinadas e sofisticadas (39) e se tenha prazer
na sutileza e complexidade do sabor. Estas estão entre as características do sentido
gustativo que combinam com seu uso em contextos estéticos.
Gosto também é inegavelmente "subjetivo", tanto que é isso que se quer dizer
com a expressão, “gosto não se discute." Esta máxima indica a tendência a confundir
uma experiência subjetiva com aquela que também é relativa a indivíduos diferentes,
isto é, aquele que não compartilha padrões de adequação ou precisão. O chamado
problema de gosto que ocupou escritores no século XVIII foi a forma de reconhecer a
subjetividade do gosto e ainda manter uma base para padrões de gosto quando se fala de
arte. Porque não importa quão central o prazer seja questão na apreciação e julgamento
estéticos, uma arte é melhor que a outra, e, portanto, algum gosto é melhor do que o
outro gosto. Como isso funciona?
Gosto e beleza
A beleza não é a única qualidade discutida nestas teorias, porque a linguagem
crítica geralmente se refere mais precisamente à harmonia, ao equilíbrio, à inteligência,
e ainda mais exatamente aos descritores de obras de arte individuais. Mas a beleza é o
alvo mais geral de aprovação estética, bem como aquela que se manifesta marcada pela
complexidade de gênero, e por isso vai ser o centro desta discussão. A análise de beleza
vai de mãos dadas com conjecturas sobre a possibilidade de discernir ou sentir
a beleza,
71
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
isto é, com bom gosto. Às vezes, os pensadores especulam sobre as qualidades
comuns nos objetos de beleza, mas sem recorrer a uma qualidade objetiva,
indiscutivelmente identificável como beleza, muitos filósofos tendem a apelar para a
natureza humana comum para posicionar um padrão de gosto.
Um dos escritores mais famosos que analisaram a natureza humana a fim de
compreender preferências de gosto e seus fundamentos foi o empirista David Hume. Em
seu ensaio "Do Padrão do Gosto" (1757) Hume foi cauteloso em sua abordagem para a
localização de um padrão, pois ao contrário de muitos de seus contemporâneos ele
relutou em nomear as propriedades em objetos que causam o prazer do gosto. Que
existem tais propriedades parece óbvio, mas absteve-se Hume de identificá-los como
fez, por exemplo, Edmund Burke, Francis Hutcheson, ou William Hogarth. Hutcheson
argumentou que a beleza é causada pela percepção de uma qualidade de composição
que chamou de "uniformidade entre variedade"; Hogarth, um pintor e gravador, bem
como um teórico, partiu da "linha da graça", uma curva suave em forma de S de certas
proporções matemáticas7. Todos os casos de beleza, seja na natureza, pessoas, ou
artefatos, exibem linhas curvas em algum grau, reivindicava Hogarth. (40)
Figura 4 William Hogarth, "A Linha da Graça". Detalhe d´après Placa I, A Análise da
Beleza, 1753.)
Como Hume sem dúvida reconheceu, tal objetivo se correlaciona com o
sentimento daquilo que hoje chamamos prazer estético (o termo "estética" não foi usado
em Inglês até o início do século XIX ) apenas descreve um determinado arco de formas
agradáveis e, portanto, tem uso limitado na resolução do problema de gosto. Eles são
insuficientes para dar conta de todas as belezas visuais, e muito menos para os prazeres
7
(6) Francis Hutcheson, Um Inquérito Sobre Beleza, Ordem, Harmonia, Design [1725], ed. Peter
Kivy (The Hague: Martinus Nijhoff, 1973): 40; William Hogarth, A Análise da Beleza [1753], ed.
Ronald Paulson ((impresso em New Haven, CT: Yale University, 1997).
72
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
da música ou poesia. Portanto, Hume concentrou-se nas tendências comuns que ele
acreditava que foram embutidas na natureza humana para explicar tendências entre
pessoas com educação e formação para concordar sobre questões de gosto ao longo do
tempo. Ele descreveu em detalhes as qualidades da constituição humana que
possibilitam a educação e desenvolvimento de juízos para discernir sobre os objetos de
avaliação, incluindo o que ele chamou gosto “delicado" (ou sensível). A teoria de Hume
é uma das teorias deste período onde a presença de gênero é bastante sutil e pouco
destacada8. Detectamos isso principalmente em observações incidentais que sugerem
que ele retrata o modelo de juiz como homem, uma indicação de que ele tenha
importado para sua noção de gosto algumas das distorções de gênero já presentes em
conceitos da natureza humana. Veremos em breve, com mais detalhes, como o gosto de
gênero opera, mas primeiro vamos adicionar às nossas considerações alguma evidência
mais explícita da valência do gênero de valores estéticos.
Existem teorias em que nós encontramos não só gênero, mas sexo abertamente
em cena na análise de beleza, incluindo uma que foi publicada no mesmo ano que a de
Hume, de Burke Investigação Filosófica sobre aa Origem de Nossas Ideias de Sublime
e Beleza (1757). Burke não era o escritor mais influente no florescente campo da
estética, um laurel que deve ir (como outros tantos) para Kant. Mas há algo a ser dito
em favor de nem sempre discutir a filosofia moderna em termos de Kant, e Burke tem
outra vantagem: a base do gênero para a beleza não está nem um pouco escondida em
sua teoria. Na verdade, ele localiza o gatilho causal para a beleza numa origem erótica.
(41)
Burke sobre a beleza
Em contraste com Hume, que se concentra quase que exclusivamente sobre a
natureza humana, Burke passa muito tempo examinando os objetos de gosto, analisando
a raiz que desencadeia o prazer da beleza. Grande parte de sua Investigação é dedicada
8
(7) Hume é um pouco incomum nisso, ele não se baseia principalmente na razão, uma posição que
algumas feministas entenderam apropriada. Veja Anne Jaap Jacobson (ed.), As Interpretações
Feministas de David Hume ((impresso em University Park, PA: Pennsylvania State University, 2000).
Para gênero em "Do Padrão do Gosto", veja Carolyn Korsmeyer, "Conceitos de Gênero e Padrão de
Gosto de Hume" in Peggy Zeglin Brand e Carolyn Korsmeyer (eds), Feminismo e Tradição em Estética
((impresso em University Park, PA: Universidade do Estado da Pensilvânia, 1995): 49-65; Marcia Lind,
"Índios, Selvagens, Camponeses e Mulheres: A Estética de Hume" in Bat-Ami Bar On (ed.),
Engendrando o Moderno: Leituras Críticas Feministas na Filosofia Ocidental Moderna ((impresso
em Albany: State University of New York, 1994): 51-67.
73
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
a descobrir quais as características do mundo que afetam o corpo e a mente de maneiras
regulares e previsíveis, excitando as paixões e os seus prazeres e dores decorrentes. Ele
compartilha com outros escritores de sua época a presunção de que respostas afetivas
são semelhantes entre as pessoas e as diferenças são relativamente desvios menores de
uma norma. "Existe em todos os homens uma lembrança suficiente das causas naturais
originais de prazer, para capacitá-los para trazer todas as coisas oferecidas para os seus
sentidos para esse padrão, e para regular seus sentimentos e opiniões por ele"9. De
acordo com Burke, respostas afetivas básicas são praticamente reações automáticas a
estímulos externos.
Como muitos de seus contemporâneos, Burke divide a maior parte das
respostas estéticas em dois tipos: o belo e o sublime. (Vamos aprofundar sobre o
sublime no Capítulo 6; aqui ele é apresentado como um ponto de comparação com a
beleza). Beleza é uma espécie de prazer; a resposta mais difícil do sublime é realmente
fundada na dor, especialmente a profunda dor emocional de terror que, sob certas
condições, pode ser convertida em "prazer". Estas respostas podem ser classificadas
ainda de acordo com sua preocupação com a sociedade ou com a autopreservação.
Sociedade é o reino da beleza e das preocupações com a vida e a saúde; a
autopreservação (ou ameaças à autopreservação) fornece o reino do sublime. A
taxonomia continua com a subdivisão da "sociedade" em sociedade entre os sexos e
sociedade em geral. As conotações heteroeróticas implícitas desde o início emergem
explicitamente na discussão das relações entre os sexos, onde Burke encontra a fonte
fundamental de beleza.
Animais, Burke afirma, experimentam unicamente a paixão da luxúria. Mas o
homem mistura isso com qualidades sociais, "que direcionam e aumentam o apetite que
ele tem em comum com todos os outros animais." Qualidades sensíveis determinam o
que ele acha bonito10. Esta resposta estética primitiva está abaixo da razão e do controle
racional. Algumas coisas, e beleza pessoal é apenas uma em várias (incluindo mímesis),
simplesmente agradam por causa da maneira que nós somos feitos
sem qualquer intervenção da faculdade de raciocínio, mas apenas a partir de
nossa constituição natural, a qual a providência enquadrou de tal (42) modo a encontrar
o prazer ou deleite de acordo com a natureza do objeto, em tudo o que diz respeito aos
9
Edmund Burke, Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e do Belo
[1757], ed. James T. Boulton (impresso em Notre Dame, IN: University of Notre Dame, 1968): 15.
10
Ibid.: 42.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
propósitos de nosso ser11.
E, como os teóricos desde Platão, Burke acredita que a beleza não desperta
apenas prazer, mas amor.
Os tipos de objetos que achamos belo, diz Burke, são pequenos, limitados,
curvos, suaves, gentis no contorno, e delicadamente coloridos. Isto é verdade para uma
flor ou uma forma abstrata ou um corpo humano. Por outro lado, os objetos sublimes
são ásperos, irregulares, sem limites, poderosos, temíveis e escuros; eles ameaçam a
vida mais que sugerem a sua perpetuação. As características gerais, abstratas de
qualquer objeto belo são extrapoladas a partir da beleza do corpo feminino. Burke é
eloquente quanto a essa beleza, quando manifestada no pescoço de uma mulher e seios:
"A suavidade; a leveza; o volume fácil e insensível, a variedade de superfície, que nunca
é para o menor espaço a mesma; o labirinto enganoso, através do qual o olho instável
desliza vertiginosamente..."12 Como se para esfriar seu ardor, bem como sua prosa, ele
invoca a linha formal de graça de Hogarth como uma confirmação, mas isso pode ser
lido igualmente bem como implicando gênero na própria linha serpentina matemática.
A conexão de prazer estético com o desejo erótico e a óbvia base do gênero da
apresentação de Burke de beleza (para não mencionar o seu presumível viés racial e
cultural, pois ele exclui pele escura como belo) é suficientemente óbvia que a crítica
feminista está, talvez, quase fora de questão. Mas a sua teoria é tão central, um
exemplar da estética moderna, que também podemos vê-lo como um paradigma de
formas de pensar que aparecem por todo o campo em formas mais sutis, em que atitudes
masculinistas e eurocêntricas estão mais encobertas. Tal tem sido o argumento daqueles
que afirmam que mesmo a beleza pura, desinteressada de Kant deve ser entendida como
um véu para a fonte heteroerótica operando no subsolo. A análise de Burke também
indica por que a teoria feminista tem frequentemente uma relação conflituosa com o
conceito de beleza, ou seja, por causa da tendência a concentrar-se na objetivação da
aparência das mulheres13.
11
Ibid.: 49. Veja também 92–107.
Ibid.: 115.
13
Veja Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo [1949], trad. H. M. Parshley (New York: Vintage Books,
1989): 729–30. Para a crítica da rejeição do belo em ambos, feminismo e modernismo, veja Wendy
Steiner, Venus no Exílio: A Rejeição do Belo na Arte do século XX (impresso em New York: The Free
Press, 2001). Para beleza das pessoas e os valores do feminismo, veja Peg Zeglin Brand (ed.), Beleza
Importa (impresso em Bloomington: Indiana University, 2000); Diana Tietjens Meyers, O Gênero no
Espelho: Imaginário Cultural e Agencia de Mulheres (impresso em New York: Oxford University,
2002).
12
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Se todas as teorias estéticas se assemelhavam à de Burke, então haveria pouca
controvérsia sobre a valência do gênero do valor estético básico de beleza. Mas teorias
diferem consideravelmente umas das outras, mesmo quando elas são produto da mesma
época cultural e, em muitas das possibilidades eróticas para o prazer, foram
efetivamente excluídas da categoria de genuínas respostas estéticas. São estes os
progenitores mais influentes dos ideais de contemplação estética que foram amplamente
defendidas no final do século XIX e (43) início do século XX. Indiscutivelmente, o
teórico mais influente do Iluminismo do século XVIII foi Emmanuel Kant.
Kant sobre o juízo de gosto
Na realidade, Kant também especulou que a origem do prazer estético estava
na atração erótica, mas que esta fonte original é descartada logo no início da história
humana à medida que a civilização desenvolve uma estética mais sofisticada e
distanciada dos prazeres. Como se antecipando a Freud, Kant observa que a folha de
figueira era uma manifestação da razão em que começou o controle dos sentidos que
tornou o puro prazer estético possível14. Esta observação caprichosa ocorre em um
ensaio não considerado entre os mais significativos de Kant, e a análise de beleza em
seu (ensaio) mais importante Crítica da Razão (1790) é consideravelmente mais neutra.
Kant teve especial influência sobre a adoção de um qualificador que veio para
descrever o prazer estético, desinteressado. Ao contrário de Hume, que era
principalmente preocupado com padrões de gosto na literatura e na arte, Kant entrou na
discussão de prazer estético com objetos da natureza e formas abstratas como seus
objetos paradigmáticos de beleza, especificamente do que chamou de beleza "absoluta",
que é o objeto do julgamento "puro" de gosto. Sua abordagem para a localização de um
padrão para o gosto era de desqualificar a partir da experiência puramente estética
qualquer prazer que se referisse à satisfação do desejo ou a realização de um objetivo.
Como consequência, a antiga ligação entre os valores da beleza e da bondade foi
afrouxada consideravelmente, porque sua análise distingue prazeres estéticos de
aprovação moral em termos mais fortes do que tinha até então sido pensado. Embora
Kant de um modo um tanto opaco chame a beleza de o "símbolo da moralidade", em a
14
Kant, “Princípio Conjectural da História Humana” [1786], trad. Emil L. Fackenheim, in Kant na
Hisória, ed. Lewis White Beck (Indianapolis: Hackett, 1963): 57.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Crítica do Juízo o prazer que constitui beleza é distinto e sui generis15 (Para o reino dos
juízos morais Kant formulou uma lei moral universal rigorosa que anula qualquer
impulso para o relativismo subjetivo na ética)16.
Além disso, ele explicitamente separou prazer estético dos prazeres dos
sentidos, ampliando assim a clivagem (presente desde a antiguidade) entre os prazeres
dos sentidos corporais e prazeres estéticos17. Prazeres estéticos de sentido incluem
prazeres eróticos, que são claramente o produto da satisfação - real ou imaginária - de
desejo sexual. Eles também incluem prazeres gustativos. Gosto propriamente dito por
comida e bebida, observou ele, é meramente sensual; esses prazeres são o resultado da
satisfação de alguma necessidade física. Mas prazeres estéticos têm nada a ver com o
corpo, nem mesmo absolutamente com a (44) satisfação de qualquer interesse pessoal.
Juízos estéticos são livres de interesse, ou, para usar o termo atual mais comum, eles são
"desinteressados"18. "Desinteressado" não significa que nós não nos importamos nada
com eles, mas significa que o nosso prazer não está enraizado na promoção pessoal ou
gratificação - na satisfação de um dos nossos desejos. No relato de Kant do puro juízo
de gosto, este termo também significa que nenhum conceito do objeto está em uso
quando julgamos o belo, ou seja, não o estamos avaliando como um excelente exemplo
de seu tipo, mas apreciando sua forma singular, uma vez que estimula a harmonia entre
a imaginação e o entendimento19. (Uma razão pela qual a maioria das obras de arte tem
beleza "dependente" ou "aderente" mais que beleza "livre" ou "absoluta", de acordo
com Kant, é que se deve empregar determinados conceitos na avaliação da arte. Ou seja,
devem-se empregar ideias sobre como um objeto, evento ou pessoa deve ser
15
Kant, Crítica do Juízo [1790], trad. Werner Pluhar (Indianapolis: Hackett, 1987) §59. Veja Ted Cohen,
“Por que a Beleza é um Símbolo de Moralidade” in Ted Cohen e Paul Guyer (eds), Ensaios sobre a
Estética de Kant (impresso em Chicago: University of Chicago, 1982): 221–36; para análise feminista
desta reivindicação, veja Jane Kneller, “A Dimensão Estética da Autonomia Kantiana;” Marcia Moen,
“Temas Feministas em Lugares Improváveis: Relendo a Crítica do Juízo de Kant;” Kim Hall, “Sensus
Communis e Violência: Uma Leitura Feminista da Crítica do Juízo de Kant” todos em Robin May Schott
(ed.), Interpretações Feministas de Emmanuel Kant (impresso em University Park, PA: Pennsylvania
State University, 1997): 173–89, 213–55, 257–72.
16
Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes [1785] trad. James W.Ellington (Indianapolis:
Hackett, 1993).
17
Este ponto está desenvolvido no Capítulo 4. Veja também o Capítulo 2 de Fazendo Sentido do Gosto:
Comida e Filosofia, de Carolyn Korsmeyer, (impresso em Ithaca, NY: Cornell University, 1999).
Também de Carolyn Korsmeyer, “Percepções, Prazeres, Artes: Consideriando a Estética” in Janet
Kourany (ed.), Filosofia na Voz Feminista (impresso em Princeton, NJ: Princeton University, 1998):
145–72. Algumas das ideias presentes nesse capítulo foram primeiramente desenvolvidas nesse ensaio.
18
Kant, Crítica do Juízo: 53. Para a história nestes termos, veja Jerome Stolnitz, “Sobre a Origem do
Desinteresse Estético,” Jornal de Estética e Crítica de Arte, Winter, 1961: 131–43.
19
Na terminologia idiossincrática de Kant, o juízo de gosto está baseado na forma sem propósito de um
objeto sem conceito algum de propósito. Crítica do Juízo, §11.
77
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
representado).
Kant não está meramente estipulando uma diferença entre prazeres
"superiores" e "inferiores" quando ele distingue entre os prazeres estéticos e sensuais,
embora seja um resultado adicional de sua análise. Em vez disso, seu raciocínio é
impulsionado por seu esforço para resolver o problema de gosto. Kant procurou
descobrir para a beleza e a sensação de prazer estético razões para uma espécie de
universalidade e necessidade paralelas aos fundamentos que ele tinha anteriormente
estabelecido para o conhecimento empírico e as diretrizes morais. São suas as mais
fortes e mais rigorosas normas de gosto, muito mais fortes do que as de Hume, pois a
este último bastava encontrar os princípios gerais que indicam em geral uma tendência a
concordar em questões de gosto. Kant queria descobrir os fundamentos para uma
verdadeira universalidade da resposta estética. Esta é uma razão pela qual ele exclui
prazeres corporais, ele acredita que eles são muito idiossincráticos e pessoais para se
chegar a um acordo.
Pelo menos até certo ponto a descrição de prazer de Kant como um meio para
identificar a qualidade estética parece conformar-se com a experiência familiar. Pode-se
reconhecer que o desempenho de alguém em uma peça para piano é mais bonito do que
o seu, por exemplo, mesmo se a outra pessoa ganhou um cobiçado prêmio de recital. Se
aquela beleza é reconhecida através do prazer, então esta instância de prazer claramente
não tem nada a ver com a satisfação de seus desejos. Deixando de lado seu interesse em
ganhar o prêmio possibilita o prazer estético da performance do outro concorrente. Eu
estou revendo apenas uma pequena parte da teoria de Kant aqui, mas nós podemos ver,
mesmo com o que até aqui expusemos que, descartando todos os desejos e interesses
pessoais, o que permanece para dar conta dos prazeres estéticos são os elementos da
mente que todos nós possuímos. Um prazer subjetivo é tornado universalmente
disponível. (45)
Se seguirmos com Kant na purificação do prazer estético e dos juízos de gosto,
estipulando que eles estão livres de desejo, então pode parecer que o gênero
desapareceu deste debate, porque todos os traços das raízes eróticas para a beleza
parecem ter sido expurgados. Podemos, portanto nos sentir confiantes que as alegações
sobre universalidade da capacidade de juízos de gosto são verdadeiramente neutros
quanto ao gênero pelo menos nos termos desta marca de filosofia. Mas, como se pode
provavelmente antecipar, o gênero não é tão facilmente deixado para trás. Para resolver
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
esse problema vamos considerar o conceito de gosto em contexto mais amplo.
Gosto de quem?
Padrões ideais para o gosto são personificados numa figura de linguagem
comum no século XVIII: o homem de gosto ou homme de goût, termo corrente na
França. Pode-se perguntar o quão literal “homem” ou “homme" deveria ser; foi o gosto
considerado uma conquista apenas dos homens? Realmente não, pois o gosto foi
exaltado e exercido por toda a respeitável sociedade, inclusive nos salões de França que
eram recepcionados e supervisionados por mulheres, e se espalhou como um ideal
popular com o crescimento e a ascendência social da classe média. Além disso, gosto
implica refinamento e desenvolvimento de sensibilidades do homem de bom gosto e
supunha-se que poderia suavizar suas arestas e fazer o seu temperamento mais adequado
às qualidades "femininas”. O conceito de gosto ou discernimento estético foi, talvez,
ainda mais abertamente ajustado de acordo com as diferenças de posição social, de
classe e educação do que com o gênero. E, embora os escritores normalmente
confiassem as suas observações aos colegas europeus, há também uma presunção
implícita e profunda quanto à raça no escopo do termo20. Encontra-se a destituição
ocasional do "negro" ou "índio" ou "oriental", como improváveis de participar dos
refinamentos dos julgamentos estéticos, embora houvesse também alguma rivalidade
mútua entre eles; um antigo escritor britânico criticou o “Gótico" (alemão) pelo seu
gosto equivocado em arquitetura21.
Por outro lado, embora as mulheres fossem consideradas capazes de
desenvolver bom gosto, sem dúvida o modelo do juízo estético ideal, o árbitro de gosto,
era implicitamente masculino, porque as mentes e os sentimentos dos homens eram
considerados como mais amplamente capazes que os das mulheres. Aqui encontramos
mais uma vez a combinação de pressupostos teóricos e as normas sociais que produzem
a opinião que os poderes mentais superiores são assimetricamente exercidos em machos
e fêmeas. A maior facilidade mental dos homens, supostamente, os torna mais capazes
de juízos de gosto em assuntos complicados, de acordo com (46) a tradição filosófica; e
20
David Bindman, Dos Primatas a Apolo: Estética e a Ideia de Raça no século XVIII (Ithaca, NY:
Cornell University Press, 2002); Lind, “Índios, Selvagens, Camponeses e Mulheres,”; Adrian M. S. Piper,
“Xenofobia e Racionalismo Kantiano” in Schott, Interpretações Feministas, 21–73; Hall, “Sensus
Communis e Violência.”
21
Hutcheson, Um Inquérito: 77.
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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
a suposição com raízes sócias de que a experiência das mulheres é apropriadamente
mais estreita do que a dos homens, significa que elas não têm a capacidade suficiente
para tornar o seu gosto em temas mais difíceis com a mesma perspicácia que os homens
provavelmente têm. A distinção entre o gosto "feminino" por coisas que são bonitas e
encantadoras, e um gosto "masculino" pela arte que é mais profundo e difícil, muitas
vezes foi observado na literatura deste período. A distinção de Burke entre o pequeno,
cheio de curvas, encantos da beleza feminina e as complicadas tendências masculinas
para temas exigentes e coisas sublimes reflete o pensamento popular. Como Kant
colocou em uma de suas primeiras obras, Observações sobre o Sentimento do Belo e
Sublime (1763), o estreito âmbito da beleza caracteriza a sensibilidade de uma mulher,
enquanto que um homem deve esforçar-se para a compreensão mais profunda do
sublime22. Ambas são capacidades positivas, mas é o último que alcança o âmbito mais
profundo e ordenado - esteticamente, artisticamente, epistemologicamente e
moralmente.
Há outra particularidade na ideia de gosto masculino e feminino que melhor
revela a posição inferior deste último. Entre os termos de crítica que eram comumente
usados na avaliação de obras de arte, uma das mais infamantes era “afeminado”.
Artistas do sexo masculino foram os únicos a quem estes termos negativos foram
aplicados, para um trabalho de qualidade similar por uma mulher seria simplesmente ser
feminina e, assim, encantadora e inferior. Não há equivalente variação negativa no
“masculino” para servir como a contrapartida de ”afeminado" que é um termo
pejorativo empregado com suficiente ônus que se percebe o quão ao contrário das
mulheres criadores masculinos aparentemente deveriam ser. (Alan Sinfield vai mais
longe a ponto de chamar afeminado de uma “construção misógina" que é projetada para
patrulhar as fronteiras da masculinidade.)23. Rótulos como "viril" eram termos de
22
Kant, Observações sobre o Sentimento de Belo e Sublime [1763], trad. John. Goldthwaite (impresso
em Berkeley and Los Angeles: University of California, 1960): 78–9. Veja Mary Bittner Wiseman,
“Beleza Exilada” e Jane Kneller, “Disciplina e Silêncio: Mulheres e Imaginação na Teoria de Gosto de
Kant” ambos em Hilde Hein e Carolyn Korsmeyer (eds), Estética na Perspectiva Feminista (impresso
em Bloomington: Indiana University, 1993): 169–78 e 179–92; Paul Mattick, Jr., “Belo e Sublime:
‘Totemismo Sexual’ na Constitutição da Arte” in Brand e Korsmeyer, Feminismo e Tradição na
Estética: 27–48; Cornelia Klinger, “Os Conceitos de Sublime e de Beleza em Kant e Lyotard” in Schott,
Interpretações Feministas: 191–211. Alguns estudiosos rejeitam a exclusão das mulheres da
sublimidade e argumentam pelo “feminino sublime.” Veja Capítulos 3 e 6.
23
“Efeminação... é uma construção misógina em que a sexualidade dos homens é policiada pela acusação
de deslizarem na razoabilidade própria que supostamente constitui virilidade, na frouxidão e fraqueza
convencionalmente atribuídas às mulheres”. Alan Sinfield, Políticas Culturais — Leitura Gay
(impresso em Philadelphia: University of Pennsylvania, 1994): 32. Para um estudo mais histórico desses
80
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
louvor e não conotavam masculinidade exagerada. Iremos ver no próximo capítulo
como as polaridades entre gosto feminino e masculino deveriam para servir não só para
rebaixar as mulheres como delineadoras do gosto, mas também para criticar e truncar as
oportunidades das mulheres de participarem nas artes.
O conjunto de conceitos que envolvem gosto, padrões e prazer desinteressado
tem sido objeto de muita análise crítica nos últimos anos. Partilhados, mesmo
universalmente, padrões de gosto foram concebidos no momento da sua formulação
para serem fundados na natureza humana comum. Estreitar o foco do prazer estético
para uma zona livre de desejo pessoal serviu como uma maneira de se livrar das
diferenças entre as pessoas, de modo que os seus prazeres comuns pudessem ser
exercidos. A este respeito, a estética do Iluminismo pode ser considerada uma filosofia
bastante democrática, pois por definição da natureza humana deve ser a mesma em
todos nós. E ainda claramente nem todos foram considerados (47) candidatos a ser
árbitro de gosto ou um participante dos mais altos prazeres estéticos. As capacidades
comuns existentes na natureza humana precisam ser desenvolvidas e aperfeiçoadas, para
poder apreciar os melhores produtos da cultura, e isso requer um grau de boa fortuna,
educação e privilégio. Esses atributos felizes nunca foram distribuídos igualmente nas
sociedades, e na Europa do século XVIII, apesar da popularidade dos ideais políticos da
democracia, havia marcadas discrepâncias de disponibilidade do tipo de educação e
mobilidade econômica que foram reconhecidas como fundamentais para o
desenvolvimento de gosto refinado. Como alguns críticos apontaram buscar estabelecer
normas para a fruição artística pode ser visto como uma tentativa de regular e
homogeneizar os prazeres de acordo com um indicador que reflete preconceitos de
diferenças de classe, para não mencionar preferências nacionais e raciais 24. Ao
promulgar a existência de normas para prazeres subjetivos, as preferências das pessoas
que já estavam culturalmente credenciadas, por assim dizer, tornou-se o padrão a ser
emulado. Ideias sobre gosto e beleza, não importa o quão assídua a tentativa de
universalizar padrões e "purificá-los" de parcialidade e preconceito, parecem
inelutavelmente absorver valores sociais dominantes.
termos, veja de Sinfield O Século Selvagem: Efeminação, Oscar Wilde, e o Momento Gay (impresso
em New York: Columbia University, 1994): Capítulo 2.
24
Paul Mattick, Jr. (ed.), Século XVII Estética e Reconstrução da Aret (impresso em Cambridge:
Cambridge University, 1993); Terry Eagleton, A Ideologia da Estética (Cambridge, MA: Blackwell,
1990); Luc Ferry, Homo Estética: A Invenção do Gosto na Era da Democracia, trad. Robert de Loaiza
(impresso em Chicago: University of Chicago, 1993); Pierre Bourdieu, Distinção: Uma Crítica Social
do Juízo de Gosto, trad. Richard Nice (London: Routledge, 1994 [1979]).
81
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
Teorias da atitude estética
Enquanto o estabelecimento de um fundamento para o gosto universal deve
enfrentar as críticas que tais missões impõem ao invés de descobrir padrões, outros
aspectos dessas tentativas expandiram a gama de objetos que podem ser considerados de
mérito estético. Abordagens pós-kantianas, também chamadas de teorias da “atitude
estética”, estenderam a prescrição de Kant pelo prazer desinteressado além das regiões
puras para as quais ele divisou, e prescreveram uma atitude a partir da qual somente
qualidades estéticas, seja de arte ou natureza, possam ser apreendidas. Teorias da atitude
estética recomendam que a melhor maneira para alcançar prazer estético é assumir uma
desinteressada e contemplativa instância que serve para limpar a mente de preconceitos
e preocupações pessoais, abrindo nossas sensibilidades às qualidades estéticas – formal,
expressiva, imaginativa – disponíveis para o espectador, leitor ou ouvinte atentos.
Enquanto uma familiaridade educada com as artes fornece um fundo de conhecimento
que faz a apreciação sofisticada possível, o imediato pré-requisito para apreciação é a de
repouso, a postura distanciada, reflexiva.
O filósofo do século XIX, Arthur Schopenhauer, cuja teoria foi precursora das
abordagens da atitude estética, foi mais longe a ponto de considerar a contemplação
estética como uma fonte rara de alívio das pressões da (48) vontade individual;
considerou experiências de beleza capazes de clarear a consciência de existência com
todos os seus problemas. Contemplação estética pura remove seu objeto da história e de
todas as relações que tem com qualquer coisa fora dela. A experiência estética ideal, de
acordo com Schopenhauer, é aquela na qual a consciência mesmo de sua identidade
pessoal recua no ato de absorção estética. (Sua afinidade com filosofias indianas e
budistas clássicas é evidente nesta idéia.) O desaparecimento da consciência do
indivíduo representa uma versão extrema do observador mais genérico e desinteressado
que se pode imaginar. Schopenhauer descreve este estado:
Assim, se, por exemplo, eu contemplo uma árvore esteticamente, ou seja, com olhos
artísticos, e, então, não a reconheço, mas sim sua Ideia, é imediatamente sem importância
se é esta árvore ou seu antepassado que floresceu mil anos atrás, e se o contemplador é um
individual, ou qualquer outro em qualquer lugar e em qualquer tempo. 25
25
Arthur Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação [3ª edição 1859], vol. I, trad. E. F. J.
Payne (New York: Dover, 1969): 209.
82
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Schopenhauer é explícito quanto ao interesse sexual ser uma das atitudes que
interrompem a contemplação e invadem a vontade inquieta em uma experiência, por
isso para ele, pelo menos, há uma clara diferença entre o prazer estético e os prazeres
onde o desejo opera. (A misoginia de Schopenhauer também está em jogo em alguns
dos seus comentários. Ele se refere às mulheres como o sexo "antiestético")26.
Em termos menos radicais (e menos onerados metafisicamente), esta
abordagem do valor estético foi propagada por mais de um século. Para alguns
filósofos, a "atitude estética" foi o fator crucial para capacitar a discernir as
propriedades únicas e intrínsecas da arte e para separá-las da confusa influência de
outros interesses e valores. Em um texto influente de meados do século XX, Jerome
Stolnitz afirma que só nos livrando de interesses práticos, sociológicos ou históricos
podemos apreciar as coisas - incluindo a arte - por seu valor intrínseco. Ele define a
atitude estética como "atenção desinteressada e simpática na contemplação de qualquer
objeto de consciência que seja, em seu benefício próprio"27.
A atitude recomendada permite a percepção da dificuldade da arte, induzindo a
ignorar o desconforto ou a desaprovação moral, a fim de apreciar o que o artista
realizou. Deste modo, também reconhece a expectativa de que um artista poderia ter
expressado algo único que exige mente e coração abertos para descobrir e apreciar. Esta
abordagem pode defender uma zona de experiência, elevando o valor estético a um grau
igual ou mesmo mais alto do que os costumes sociais. Em meados do século XIX, por
exemplo, (49) Charles Baudelaire começou a escrever poesia (Les Fleurs du Mal), que
era bonita mas violava expectativas morais familiares, pressionando a distinção entre
normas morais e estéticas. E, como veremos no Capítulo 5, a noção de puro valor
estético independente do conteúdo da arte também contribuiu para defesas formalistas
de estilos não representacionais quando eles estavam entre as principais inovações
polêmicas em pintura e escultura. Em tempos mais recentes vimos transgressões
extremas de códigos morais em obras de arte defendidas por causa de sua beleza, beleza
que só pode ser apreciada se adotarmos uma atitude estética desinteressada. (Esta foi
uma defesa corrente – e bem sucedida –das fotografias homoeróticas polêmicas de
26
Schopenhauer, “A Fraqueza da Mulher” in Rosemary Agonito (ed.), História das Ideias nas Mulheres
(New York: G. P. Putnam’s Sons, 1977): 199.
27
Jerome Stolnitz, de Estética e Filosofia da Crítica de Arte (1960). Esta citação retirada de trechos em
Philip Alperson (ed.), A Filosofia das Artes Visuais (impresso em New York: Oxford University, 1992):
10.
83
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Robert Mapplethorpe durante as controvérsias jurídicas em torno de exposições de seu
trabalho em 1990.)28. Em outras palavras, a destreza formal e beleza da arte podem
fornecer um valor estético que substitui o demérito moral de seu conteúdo, e apelar para
essa distinção às vezes tem sido fundamental para o desenvolvimento social e até
mesmo justificação legal de obras de arte fora da lei. Mas essa virtude estratégica
também tem um lado problemático, aquele que é pertinente para as críticas feministas
da ideia de contemplação desinteressada.
Quando Stolnitz define uma atitude estética, ele determina que "a percepção é
direcionada para o objeto em si mesmo e que o espectador não está preocupado em
analisá-lo ou fazer perguntas sobre o assunto."29 No entanto, é precisamente a proibição
de fazer perguntas que fez com que muitas críticas feministas rejeitassem esta tradição
na estética. Não se limita a tornar o observador peculiarmente aquiescente, ele situa
como uma categoria de propriedades não estéticas muitos dos aspectos da arte que
fornecem o seu significado. Quando a obra de arte em questão tem uma carga sexual,
como é o caso com a representação de nus, a divisão entre as propriedades estéticas e
anestéticas sufoca perguntas sobre papéis sociais, poder e controle sexual, como
veremos em breve. Além disso, abordagens críticas que enfatizam o valor da forma
(linha, composição, combinação de elementos) sobre o conteúdo (o objeto da arte) têm
permeado várias disciplinas artísticas, especialmente no século XX. Como musicóloga
Susan McClary observa em sua disciplina que "a musicologia declara fastidiosamente
questões de significação musical como fora dos limites para os envolvidos em legitimar
bolsas de estudos. Ela assumiu o controle disciplinar sobre o estudo da música e proibiu
até mesmo perguntar acerca das questões mais fundamentais relativas ao significado."30
Construindo a estética nesses termos isoladores leva a ignorar seu significado social e
seu poder, incluindo o seu poder para manter a representação da mulher no encalço do
que Cornelia Klinger chama de ”ideologia estética" em consonância com a
subordinação social e a exploração de (50) mulheres.31 Ambas, obras de arte e as
28
Rebecca Schneider, O Corpo Explícito na Performance (London: Routledge, 1997): 14.
Stolnitz, Estética: 12.
30
Susan McClary, Finais Femininos: Música, Gênero, e Sexualidade (impresso em Minneapolis:
University of Minnesota, 1991): 4.
31
"O objeto de interesse da arte e o conceito de uma estética filosófica estão intimamente ligados aos
mesmos pressupostos metafísicos, universalistas, e essencialistas da tradição filosófica Ocidental que
aparecem altamente suspeitos a partir de uma perspectiva feminista em relação a outros domínios da
formação da teoria de dominação masculina." Cornelia Klinger, “Estética” in Alison M. Jaggar e Iris
Marion Young (eds), Um Compannheiro para a Filosofia Feminista (Malden, MA: Blackwell, 1998):
344.
84
29
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pessoas que as apreciam, devem ser consideradas em todas as suas relações
especificamente históricas, a fim de melhor entender como obras de arte alcançam
significado. Enquanto restabelecer essa base mais ampla para compreender os riscos da
arte diminui tanto o desinteresse como a universalidade da apreciação estética, isso
também restabelece um aspecto da arte que, por vezes, torna-se silenciado na tradição
estética, mas que certos teóricos desde Platão têm abordado: o seu poder.
Críticas feministas da percepção estética
Talvez em nenhum lugar a ideologia da contemplação desinteressada extrema é
mais questionável do que quando aplicada às pinturas de nus femininos, que uma
estudiosa feminista argumenta virtualmente definirem a pintura nas belas artes
moderna.32 Ideologias estéticas que removeriam a arte de suas relações com o mundo
disfarçam a sua capacidade de inscrever e reforçar as relações de poder. Com as artes
visuais, essas relações se manifestam na visão em si: a forma como é retratado em um
trabalho e a forma como ela é induzida e dirigida ao observador fora do trabalho.
Considere por exemplo a pintura de Jean-Léon Gérôme intitulado Mercado de
Escravos Romano (c.1884). Este assunto, que apresenta tanto carne feminina vulnerável
e um cenário exótico, era um tema popular para pintores daquele tempo; Gérôme, ele
mesmo, pintou seis versões deste tema.33 A pintura retrata uma jovem escrava em leilão
diante de um grupo de potenciais compradores masculinos a examiná-la. Espectadores
dessa pintura podem ter reações diferentes; eles poderiam estar escandalizados,
ultrajados, envergonhados ou excitados pelo tema, e ao mesmo tempo eles podem achar
que é muito bem proporcionada e finamente pintada. Pelo menos algumas daquelas
respostas resultam do que Stolnitz consideraria uma inadequada atitude moral que
interfere com a percepção estética. A atitude estética apropriada permite que se
transcenda o desconforto moral e apreciem-se tais qualidades formais como as curvas
32
Lynda Nead, A Fêmea Nua: Arte, Obscenidade e Sexualidade (London: Routledge, 1992), Part I.
Nead critica a influente análise de Kenneth Clark do nu em O Nu: Um Estudo da Arte Ideal (London:
John Murray, 1956). Para uma análise da mostra da influência do nu na arte do século XX, veja Carol
Duncan, “As Tetas Quentes do MoMA” in Carolyn Korsmeyer (ed.), Estética: A Grande Questão
(Malden, MA: Blackwell, 1998): 115–27.
33
Linda Nochlin examina o Mercado de escravos de Gérôme e outras pinturas nas quais o poder do sexo
é o tema, em “Arte das Mulheres e Poder” em Mulheres, Arte, Poder e Outros Ensaios (New York:
Harper and Row, 1988): 1–36. Veja também a discussão de “olhares” múltiplos na pintura e literatura in
Rosemary Geisdorfer Feal e Carlos Feal, Pintura na Página: Abordagens Interartísticas nos Textos
Hispânicos Modernos (impresso em Albany: State University of New York, 1995): 202–5.
85
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sensuais do corpo da mulher contra o fundo escuro do mercado. Mas, mesmo se
admitirmos que tal apreciação distanciada pode suprimir o desconforto da consciência
dos compradores de carne feminina, seria necessário um ato de total cegueira e
entorpecimento da mente extinguir a consideração crítica de gênero e erotismo nesta
pintura. Ou seja, o desinteresse pode descartar o preconceito e interferências
moralizantes, mas isso não faz e nem deve levar a ignorar o que está, obviamente,
acontecendo na pintura, nem o pintor (ou o próprio filósofo, neste caso) provavelmente
aprovaria tal ignorância deliberada do que ele teve, provavelmente, o cuidado de
descrever. Considere apenas (51)
86
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Figura 5 Jean-Léon Gérôme, Mercado de Escravos Romano, c. 1884. Museu de
Arte Walters, Baltimore 37.885 .
quão complexo é o fenômeno de "olhar", como ele opera em uma imagem
como esta – não só como nós os espectadores a consideramos, mas também como
perspectivas de visualização são representados dentro da pintura.
A direção dos olhos das figuras retratadas para a menina em leilão são
exemplos particularmente nada sutis do escrutínio voraz. Os acúmulos de olhares dos
homens veem a menina em seu estado mais exposto, pois só vemos suas costas. Parte da
experiência desta pintura envolve perceber que nós não podemos ver o que eles fazem, e
que a menina está dolorosamente colocada não apenas como propriedade vendável, (52)
mas também para o prazer excitante de todos os que a observam. Percebe-se que ela
sente ser vista. Ela protege o rosto, incapaz de retornar seus olhares. Sua pele pálida
vulnerável se destaca contra a multidão sombreada, o que, em contraste, parece escuro e
predatório. Para alguns espectadores esta pintura pode ser muito desconfortável para ser
agradável de todo; em termos de atitude estética, eles são incapazes de alcançar o
desapego moral necessário para apreciar as suas qualidades artísticas. Ou,
possivelmente o prazer que um espectador encontra na beleza desprotegida da garota, e
seu estado angustiante pode ser furtivo, relutante, mesmo um pouco vergonhoso, seu
interesse erótico difícil de reprimir. Em qualquer caso, uma consideração completa da
operação da visão deve considerar a sua ligação com o desejo, e parte dessa conexão é
notada por sua própria resposta ao erotismo e sadismo mordaz da imagem. Enquanto
uma total atitude política ou moral em relação a esta pintura de fato pode enfraquecer a
própria valorização da sua arte, a ideia de uma atenção completamente "desinteressada"
para este tipo de obra soa ou muito difícil de manter ou um pouco de mistificação, uma
vez que o interesse está presente em uma espécie de apreciação deslocada e abstrata mas ainda erótica – da beleza. As figuras pintadas e o espectador estão todos em
relações dinâmicas, e são estes que ilustram a dimensão da autoridade da visão em si.
Neste caso, o poder evidente é a predominância bastante convencional de espectadores
do sexo masculino sobre uma mulher vulnerável. A experiência da beleza é,
supostamente, desinteressada, ainda que representações de nus femininos, muitas vezes
acentuem seu desejo sexual e desejo sexual é um "interesse" óbvio. Alguém poderia,
portanto, suspeitar que a atitude desinteressada recomendada sirva como uma
salvaguarda contra o desejo, especificamente o desejo heterossexual masculino, a fim de
87
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
manter as mulheres objetos próprios do juízo estético, juntamente com a pintura,
esculturas e cenários.
A análise da visão e do que se tornou conhecido como "o olhar masculino"
presume que a habilidade de olhar para os outros é uma indicação de poder sexual e
social.34 Teorias do olhar enfatizam a atividade da visão, o seu domínio e controle do
objeto estético. Estas teorias rejeitam a separação do desejo do prazer, restabelecendo o
erótico e cobiçoso olhar para o núcleo da beleza. A posição de visualização imaginativa
prescrita para o espectador de uma pintura como a de Gérôme é, sem dúvida, tanto
masculina como heterossexual. Como Laura Mulvey coloca, às mulheres é atribuído o
status passivo de ser vista, ao passo que os homens são os sujeitos ativos que olham.35
Na medida em que secretamente convence espectadores a assumir o requisito de
atitudes do olhar, a arte exerce autoridade e tem domínio sobre a maneira como
pensamos sobre nós mesmos e o mundo pela apresentação do assunto. Como Naomi
Scheman afirma: (53)
A visão é o sentido mais adaptado para expressar. . .desumanização: ela funciona à distância
e não precisa ser recíproca, ela fornece uma grande quantidade de informações facilmente
categorizadas, ela permite que o observador localize com precisão (apontar) o objeto, e
fornece ao olhar, uma maneira de fazer o objeto visual estar consciente de que é um objeto
visual. A visão é política, como é a arte visual, seja lá o que (mais) isso for. 36
Em nenhum lugar é o poder da visão de forma mais acentuada do que o
ilustrado em uma pintura com um tema que pode ficar como um emblema crítico do
olhar masculino, como o retrato de Artemisia Gentileschi de Susana e os Velhos (1610).
A história de Susanna é retirada do Antigo Testamento Apócrifo e conta a história de
uma bela mulher que, durante o banho, era observada por dois dos poderosos Anciãos
da comunidade. Eles exigiam favores sexuais e ameaçaram contar ao marido, o rei, que
ela era adúltera, se ela não obedecesse. Ela não o fez e foi salva por Daniel. No entanto,
34
Teorias do olhar desenvolvidas mais amplamente na teoria do cinema feminista. O ensaio de
galvanização para essa perspectiva é de Laura Mulvey, “Prazer Visual e Narrativa de Cinema,” Screen
16: 3 (Outono, 1975): 6–18. Para isto, bem como refinementos de sua visão original, veja de Mulvey
Visual e Outros Prazeres (London: Macmillan, 1989). Para uma seleção de teorias de filmes feministas,
veja Mary Ann Doane, O Desejo pelo Desejo (impresso em Bloomington: Indiana University, 1987) e
Femmes Fatales: Feminismo, Teoria do Filme, Psicanálise (New York: Routledge, 1991); E. Ann
Kaplan (ed.), Psicanálise e Cinema (New York: Routledge, 1990); Constance Penley (ed.), Feminismo e
Teoria do Filme (New York: Routledge, 1988). Para pintura, veja Griselda Pollock, Visão e Diferença:
Feminilidade, Feminismo e as Hisórias da Arte (London: Routledge, 1988).
35
Mulvey, “Prazer Visual e Narrativa de Cinema.”.
36
Naomi Scheman, “Pensando acerca da Qualidade da Arte Visual das Mulheres” in Engendramentos:
Construções de Conhecimento, Autoridade, e Privilégio (New York: Routledge, 1993): 159.
88
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
não foi a sua salvação, mas o momento em que foi espiada em seu banho, que se tornou
um dos temas favoritos da pintura Renascentista e Barroca. Este ponto da história não
só é dramático na narrativa, mas também está pronto para permitir que o espectador da
pintura possa olhar junto com os anciãos para Susanna se banhando inocentemente. Ao
contrário de muitas outras versões deste tema em que Susanna é retratada antes que ela
descubra que sua privacidade foi violada, a representação de Gentileschi deste tema
retrata dramaticamente o desamparo e o horror virtuais de Susanna a se ver exposta. Sua
nudez é estranha e dolorosa, em vez de estimulante. (Deixo ao leitor especular sobre a
relevância do gênero do artista para a forma que o poder do olhar é retratado e solicitado
por esta pintura.)
As teorias do olhar também desafiam o pressuposto de que o público modelo
para a arte é um espectador genérico universal, observando a perturbação potencial de
apreciação naqueles tempos quando o ponto de vista prescrito pelo objeto não está de
acordo com a posição de sujeito do espectador. Dizer que uma "posição imaginativa" é
prescrita significa que a obra de arte dirige o espectador a considerar o trabalho de uma
forma particular, isto é, especificamente de uma maneira que privilegia um espectador
masculino como o espectador autorizado de arte e juiz de sua qualidade.37 Prestar
atenção às complexidades da representação é mais do que uma crítica social; ela ressalta
nossa apreciação das obras de arte, pois só tomando conhecimento do poder da visão a
pessoa se capacita a descobrir as possibilidades para diferentes vantagens de "olhar." De
fato, a consciência de que um ponto de vista masculino é mais ou menos padrão para o
gênero do nu nos alerta (54)
37
Veja também John Berger, Maneiras de Ver (New York: Penguin, 1972); James Elkins, O Objeto
Contra-ataca: Na Natureza de Ver (San Diego, CA: Harcourt Brace, 1996); Nead, A Fêmea Nua;
Norman Bryson, Michael Ann Holly, e Keith Moxey (eds), Teoria Visual: Pintura e Interpretação
(impresso em Cambridge: Polity, 1991).
89
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Figura 6 Artemisia Gentileschi, Susanna e os Anciãos, 1610. Coleção Schonborn, Schloss
Weissenstein, Pommersfelden, Alemanha (Foto Marburg / Arte Resource, NY)
90
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
(55) para a diferença na maneira que Gentileschi representou o momento da
descoberta de Susanna, porque este quadro é menos evidentemente dirigido ao voyeur
masculino do que acontece com a pintura de Gérôme. É também um alerta para a
presença de outros modos de olhar, como a possibilidade do desejo homoerótico nas
obras de Michelangelo, Caravaggio e outros que colocam o corpo masculino para o
prazer visual.
Reconhecer tudo isso não implica necessariamente a rejeição completa da
tradição estética mais antiga. Mesmo uma postura desinteressada de sucesso, se isso
significa que não se deve prematuramente condenar a arte por causa de seu conteúdo,
não necessariamente cancela as discrepâncias de perspectiva que cada diferente
apreciador tem da obra de arte. Ou seja, pode haver uma grande variedade de
perspectivas sobre uma obra, as quais qualificam como desinteresse aquelas em que se
suspende o envolvimento prático e a avaliação moral, a fim de apreciar as qualidades
intrínsecas de apresentação de uma obra. O espectador alerta está ciente de como um
trabalho sugere pontos de vista de apreciação, mas aquele ponto de vista não é
necessariamente adotado.38 Esta é uma qualificação importante para qualquer presunção
prematura que diga haver um único "olhar masculino" que é prescrito pela arte. Mas
tornar-se consciente de como o "olhar" opera em arte visual dramatiza o fato de que os
espectadores ativos são variados e interpretam a arte e seus valores a partir de uma
multiplicidade de perspectivas.
A reintegração do desejo nas teorias do prazer estético agora, provavelmente,
domina o discurso crítico. Entre as acusações dirigidas contra os legados do
Iluminismo, a conclusão antiuniversalista também é forte. Muitos concordam que para
entender como a arte é considerada deve-se atender a posições sociais mais específicas e
não apenas postular um "espectador ideal". Este pressuposto descreve muitos trabalhos
recentes de crítica nas ciências humanas e sociais entre os estudiosos que concluíram
que não só um ponto de vista neutro e universal é impossível, mas que qualquer
tentativa de formulá-lo será distorcida pela classe, gênero, perspectiva nacional e
histórica do formulador. Ideais universalistas foram substituídos pelo valor da
perspectiva particular consciente da sua situação na sociedade e na história, sem
38
Kaja Silverman complica as teorias do olhar em Subjetividade Masculina às Margens (New York:
Routledge, 1992). Veja também Bell Hooks, “A Oposição do Olhar” in Olhares Negros (Boston: South
End Press, 1992): 115–31. Cynthia Freeland, “Teoria do Filme” in Um Companheiro para a Filosofia
Feminista (Malden, MA: Blackwell, 1998): Capítulo 35. Mary Devereaux, “Textos Opressivos, Leituras
Resistentes, e o Espectador de Gênero” in Brand and Korsmeyer, Feminismo e Tradição na Estética:
121–41.
91
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014
pretensão de universalidade.39
O que tem sido articulado sobre a visão e o olhar é sugestivo da estrutura de
apreciação estética em si, ou certamente sobre a estrutura dessas teorias de apreciação.
Aos objetos estéticos é atribuído o papel passivo de serem olhados mais que do olhar
ativo; eles são objetos apresentados para o escrutínio do bom gosto do observador. Em
um nível mais abstrato, pode-se postular que o gênero está estruturalmente no trabalho
na diferença entre o objeto passivo (56) da percepção e o observador ativo. Combinado
com o pensamento de gênero que permeia a narrativa de beleza do século XVIII, esta
relação estrutural pode assumir o que poderíamos chamar a forma do gênero no
relacionamento entre sujeito e objeto, uma estrutura que possui traços paralelos àqueles
obtidos entre posições masculinas e femininas mais literalmente descritas.40
É certo que a estrutura da apreciação estética entendida nestes termos é muito
mais adequada para certos tipos de arte do que para outras. Ela postula uma disjunção
do espectador de arte que não vai servir, por exemplo, para artes participativas em que
grupos de dança ou canto atuam juntos. A tradição das belas artes e das teorias estéticas
que a subscrevem não ignora totalmente esses tipos de arte, mas as teorias do gosto são
teorias de especialistas mais que de participantes, e assim vemos aqui uma perpetuação
de suposições sobre que tipos de artes são modelos centrais para a teoria estética.
Resumo
O legado do Iluminismo do século XVIII foi poderoso e tenaz, formulando
uma série de desenvolvimentos em estética que ainda estão em uso hoje, incluindo a
ideia controversa que o valor estético é independente e às vezes supera a avaliação
moral. Ao mesmo tempo, podemos encontrar gênero e preconceitos culturais operando
39
Contextualização ou posicionalidade são um componente de grande parte da filosofia pós-moderna.
Uma declaração feminista influente é de Donna Haraway, “Conhecimentos Situados: A Questão da
Ciência no Feminismo e o Privilégio da Perspectiva Parcial,” Estudos Feministas 14:3 (Outono, 1988)
575–96.
40
Algumas feministas argumentam que a distância da visão perpetua um ideal de supremacia. Para
diversas perspectivas da visão, veja Barb Bolt, “Lançando Luz Sobre a Matéria,” Hypatia 15:2 (Spring,
2000): 202–16; Luce Irigaray, Uma Ética da Diferença Sexual, trad. Carolyn Burke and Gillian C. Gill
(impresso em London: Athlone, 1993); Martin Jay, Olhos baixos: a difamação da Visão no pensamento
francês do século XX (impresso em Berkeley and Los Angeles: University of California, 1993); Evelyn
Fox Keller e Christine R. Grontkowski, “O Olho da Mente” in Sandra Harding e Merrill B. Hintikka
(eds), Descobrindo a Realidade: Perspectivas Feministas em Epistemologia, Metafísica,
Metodologia,e Pilosofia da Ciência (Boston: D. Reidel, 1983): 207–24; Cathryn Vasseleu, Texturas da
Luz: Visão e Toque em Irigaray, Levinas, e Merleau-Ponty (London: Routledge, 1998).
92
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na busca por normas estéticas universais, e com esses preconceitos há boas razões para
suspeitar que gosto "universal" requer a imposição de alguns conjuntos de normas
culturais e supressão de outros. Esta é uma maneira óbvia de interpretar a distinção
entre cultura "alta" e "popular".
Pensadores iluministas tiveram algumas boas razões para rejeitar o desejo
como o alicerce para todos os prazeres e para salvaguardar uma zona de valores
estéticos distintos. O isolamento das qualidades estéticas de suas dimensões sociais, no
entanto, e que se tornou uma tendência entre os teóricos posteriores, embota o poder da
arte. Como as críticas feministas observaram, as idéias sobre percepção desinteressada
tendem a elevar as qualidades formais acima das de conteúdo e significado social. As
críticas da percepção puramente estética e especulações sobre o “olhar” restabelecem
não só desejo e satisfação na função da percepção, mas também reconhecem a
autoridade cultural da arte para perpetuar relações de poder.
Enquanto os usos de visões feministas na teoria e arte contemporâneas serão
retomados nos Capítulos 5 e 6, no próximo capítulo, precisamos relembrar a (57)
atmosfera bastante permeada de gênero na estética nos séculos XVIII e XIX, uma
situação em que o belo e passivo objeto permanece como uma contraparte feminina para
a atividade do artista do sexo masculino. Como veremos esta descrição não permanece
com segurança dentro da zona da teoria, mas exerce influência prática sobre o que as
mulheres realmente podem fazer. Combinado com o aumento das ideias sobre arte que
foram discutidas no Capítulo 1, os ideais estéticos do período moderno contribuíram
para um clima em que a participação das mulheres nas artes era preocupante e difícil.
Vamos agora nos voltar para a consideração de como a teoria estética subscreve a
prática artística. (58)
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Resenha
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RESENHA
DANTO, Arthur. Andy Warhol. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Editora Cosac
Naify, 2012, 208 páginas.
Juliana Araújo
Para reconhecer a emblemática figura de Andy Warhol não é necessário deter
algum conhecimento sobre o mundo da arte. Warhol, tratou de temas muito familiares a
qualquer pessoa, sua matéria-prima era basicamente o cotidiano, e em particular, o estilo
de vida americano, fator que lhe garantiu o posto de ícone.
Diferente do que o título pode vir a inculcar, uma possível pretensão
biográfica, o que Arthur Danto se dispõe a realizar ao longo da obra é uma análise
essencialmente filosófica do que torna Andy Warhol um artista tão insigne.
Danto teve seu interesse pela filosofia da arte desperto, após visitar a segunda
exposição de Warhol na Stable Gallery, em 1962, foi nesse momento que conheceu a
Brillo Box, obra que fez com que o filósofo investigasse os motivos que possibilitam
qualquer coisa ser considerada arte e por que isso constituiria um problema filosófico.
Segundo Danto, o livro é o reconhecimento de uma dívida que teria com Warhol, pois,
foi por influência de sua obra que teria escrito A transfiguração do lugar comum.
No livro, vemos o nascimento de um artista que sempre esteve consciente da
própria aparência, que desde muito cedo delimitou seus objetivos de forma
extremamente concisa e que abraçava os valores vigentes de sua época. No início dos
anos 60, Warhol se submeteu a uma mudança na própria aparência visando ser aceito no
mundo do arte e no mundo gay, ele estava disposto a fazer o que fosse necessário para
alcançar a fama que almejava em Nova York, para isso, o apoio da mídia era
fundamental.
É possível apontar com precisão o momento de transformação na vida de
Warhol que contribuiu para despontá-lo rumo a condição de ícone, entre os anos de
1959 e 1960, ele deixou de ser apenas um artista comercial bem sucedido para se juntar
a vanguarda nova iorquina ocupando um lugar de destaque, essa transição é ilustrada
pela obra Antes e depois. Com essa obra, o artista alterou radicalmente a forma de
compreendermos a arte, não apenas por reproduzir uma imagem comercial, mas, por
tornar imperceptível a diferenciação entre uma criação de arte banal e uma criação de
arte culta. Com o rompimento da fronteira entre a arte banal e culta, vimos a arte, antes
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distanciada da vida, estabeler um vínculo com o cotidiano. Para o autor, Warhol criou
uma imagem icônica da própria vida.
Danto enfatiza que, quando Warhol passou a ser reconhecido como ícone
cultural, não foi algo que limitou-se apenas a uma transição biográfica, mas também,
representou uma transição social, visto que, seu trabalho passou pelo crivo e foi
considerado relevante por aqueles que ocupam a importante função de monitorar as
fronteiras da arte, ou seja, curadores, marchands, críticos, colecionadores e outros
artistas. A partir dessa questão, o autor aborda a necessidade de reconhecimento e
aceitação, quando uma nova corrente artística surge, pelo mundo da arte vigente no
período.
Afinal, o que fez com que propagandas passassem a ser consideradas obras de
arte? O ponto fundamental, a partir da interpretação proposta por Danto, deve se basear
na análise dos recortes da cultura comercial feitos a partir da intervenção do artista,
todos eles tocam em questões que dizem respeito aos “pequenos contratempos
humanos”. Para qualquer problema, por mais superficial que seja, os anúncios fornecem
uma solução, o que os tornariam arte, seria sua projeção simultânea onde poderíamos
obter uma imagem da condição humana. O motivo da facilidade de compreensão e a
identificação popular das imagens utilizadas pela pop art se tornam claros quando
pensamos nesse ponto, as obras de arte do movimento projetavam o próprio mundo que
por nós é habitado. Portanto, a grande questão já não era mais “O que é arte?”, mas,
sim, “Qual a diferença entre duas coisas, exatamente iguais, uma das quais é arte e a
outra não?”.
Danto diz que não há uma explicação óbvia para o fato de tantos artistas na
década de 60 terem pensado e executado suas obras a partir de imagens do domínio
popular, o que não chegou a constituir um movimento, mas representou uma intensa
agitação cultural que viria a transformar a vida artística de Nova York.
Com o crescente número de artistas criando a partir de influências similares,
Warhol precisava fazer algo que ninguém ainda tivesse feito utilizando recursos da
cultura comum. Diversas histórias remetem ao processos de criação artística de Warhol,
uma delas, diz respeito a apropriação das ideias de outros pelo artista. Danto faz questão
de deixar claro que colaborar com uma ideia e pensar no processo de execução de uma
obra são coisas bem distintas, mesmo que o artista se apropriasse em algum momento
da ideia de outro, isso não tiraria seu crédito na obra.
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Warhol passou a trabalhar em suas obras buscando dar a impressão de que elas
foram produzidas por meios mecânicos, as pinceladas expressionistas tinham
definitivamente ficado no passado, uma vez que seu objetivo era representar uma lata de
bebida ou alimento, por exemplo, não havia necessidade de intervir na imagem
realizando qualquer acréscimo. A uniformidade e a previsibilidade da cultura comercial,
fascinavam Warhol, uma lata de sopa Campbell é igual para todos, não importa sua
origem ou posição social.
A fama de Warhol permaneceu mesmo com o término do movimento pop, ele
atingiu um elevado patamar que nenhum outro artista do seu tempo conseguiu. Sua obra
se tornou inseparável de sua imagem, ele foi capaz de promover uma profunda alteração
no conceito de arte, e ainda, criou um estilo de vida totalmente novo.
Em 1964 ocorreu mais uma significativa mudança nos rumos da carreira de
Warhol, também foi a época em que alugou uma antiga fábrica para ser seu centro de
operaçõess, surgindo assim, “The Factory”, que acabou se tornando mais do que um
espaço de criação. Pessoas que se identificavam com o espiríto dos anos 60 podiam
vivenciar de forma intensa a experiência desse estilo de vida. A Factory era o ambiente
perfeito para atrair jovens desajustados, Warhol gostava de observá-los e usá-los como
fonte de inspiração. Foi pensando no processo de produção mecânico que tanto o
interessava, que o nome do seu espaço de trabalho foi escolhido.
Danto nos apresenta Gerard Malanga, assistente de Warhol, como fonte
principal para conhecermos a confecção da Brillo Box e a organização industrial da
Factory. Quando a ideia de reproduzir as caixas surgiu, o artista percebeu que trabalhar
com a superfície de papelão seria inviável, logo, pensou em utilizar madeira, recorrendo
com isso, aos serviços de marceneiros. Danto nos mostra a importância do trabalho na
concepção de arte que o artista possuia, comprar as caixas direto com os fabricantes não
era uma ideia plausível para ele, seu desejo nunca foi o de executar ready-mades.
Embora o resultado da obra parecesse mecânico, Warhol valorizava os acidentes que
poderiam ocorrer durante o uso da tinta e jamais os corrigia.
As caixas nos guiam à grande questão filosófica, as Brillo Box de Warhol
pareciam idênticas com as que eram encontradas nas prateleiras dos supermercados,
alguém que não estivesse consciente do que vinha sendo produzido pela arte de
vanguarda não seria capaz de ver arte nas caixas. Vemos então a necessidade de
conhecer algo da história da arte recente para compreender o porquê de uma caixa ser
arte e a outra não. O autor prefere não se aprofundar na questão filosófica da ontologia
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das obras de arte, contudo, deixa claro que, pela aparência similar das caixas, o que
confere o reconhecimento como obra de arte de um objeto deve ser imperceptível a olho
nu.
Quando o autor aborda as produções cinematográficas de Warhol, o compara a
Sócrates. Segundo ele, o artista se interessou pela essência das coisas, e assim como o
filósofo e seus companheiros, propôs diversas questões e as testou. O cotidiano
continuava a fasciná-lo e com o intuito de eliminar interferências do seu próprio olhar,
não manipulava a filmadora durante as gravações, ele a focalizava sobre o tripé e se
afastava de imediato, seu objetivo era captar as coisas como realmente eram. Para
Danto, o filme Empire, de 1964, é assim como a Brillo Box, uma obra prima filosófica.
Warhol passou a vida cercado de pessoas intensas, inconsequentes, criativas e
desequilibradas. Nos momentos finais do livro, Danto reproduz um relato de Warhol,
onde o artista admite que foi por sorte que nada desastroso tivesse ocorrido devido as
companhias que mantinha. Sorte que mudou em 1968, o autor trata a tentativa de
assassinato que ele sofreu como sua primeira morte.
Com o término do anos 60 muita coisa mudou, de certo modo, o artista sentia
que a nova década chegava acompanhada por um vazio, ninguém sabia ao certo o que
deveria fazer, nem mesmo tinham a menor suspeita do que viria a seguir. Por um
momento, a pintura passou a ser excluída do meio acadêmico e das exposições, o que
mudou esse posicionamento, no mínimo equivocado, foram as criações de Duchamp,
Warhol e Beuys. Não faria o menor sentido condenar a pintura, uma vez que, esses
artistas provaram que qualquer coisa poderia ser arte.
Já com a carreira efetivamente consolidada e mesmo com toda instabilidade do
mercado dos anos 70 e 80, Warhol se dedicou intensamente a business art. Gravuras e
pinturas eram o que basicamente movimentavam a maior parte dos lucros da Andy
Warhol Enterprises.
Danto encerra o livro, enfatizando, mais uma vez, a importância da obra de
Andy Warhol para a filosofia. Para ele o artista possuía uma mentalidade que era
naturalmente filosófica, e com a Brillo Box, fez uma importante contribuição para os
novos rumos da filosofia da arte, as caixas sugeriam a possibilidade de estarmos diante
de uma obra de arte sem termos essa consciência. No dia 22 de fevereiro de 1987, Andy
encontrou sua segunda e última morte.
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REFERÊNCIAS
DANTO, A. A Transfiguração do lugar comum. Tradução: Vera Pereira. São Paulo:
Editora Cosac Naify, 2010.
__________. The art world. Journal of Philosophy, v.61, p. 571-584.
WARHOL, A. A Filosofia de Andy Warhol: (De A a B e de volta a A). Tradução de
José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008.
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Revista Redescrições
Revista on line do GT de
Pragmatismo e Filosofia Norteamericana
Ano V, número 2, 2014
ISSN: 1984-7157
Editores: Aldir Carvalho Filho e Susana de
Castro
Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes
Editor adjunto: Frederico Graniço
www.ppgf.org
www.gtdepragmatismo.com
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