Caderno 04
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Caderno 04
98 99 100 Krishen Jit, no debate Evolução Cultural e a Dinâmica da Identidade e Tradição 101 “O reconhecimento da diversidade indígena tem incentivado uma profusão de discursos contraditórios a respeito do que é tradição cultural” Antropólogos e lingüistas dirão que saberes tradicionais só têm vitalidade quando continuam sendo transmitidos em acordo aos contextos, as formas de enunciação e a transmissão, próprios de cada uma dessas sociedades. (...) nas aldeias, o acesso ao saberes tradicionais se tornou cada vez mais restrito dadas às profundas transformações, nos modos, nos ritmos da vida cotidiana, ritual, nas condições adequadas ao filosofar e a possibilidade de transmitir oralmente riquíssimas experiências e conhecimento. Considero, no entanto, viáveis ações educativas que tenham como meta consolidar os interesses dos mais velhos em perpetuar e em transmitir suas experiências às gerações mais jovens. Difundir fora de casa é de fato essencial para que essas comunidades possam se reconhecer como efetivos detentores de patrimônio e materiais diversificados. O reconhecimento da diversidade indígena tem incentivado uma profusão de discursos contraditórios a respeito do que é tradição cultural e, como talvez poderão ver em qualquer consulta à mídia, jornais etc., permitirá a vocês concluírem rapidamente que a maior parte desses discursos retoma velhas idéias a respeito de autenticidade, de aculturação, uma série de noções que a antropologia já jogou fora. Antropologicamente, resgatar uma cultura é um equívoco profundo, isso absolutamente não faz sentido. Dominique Gallois no debate Procurando uma Identidade Cultural 102 “você que é sem nome,” A idéia de identidade — e mais ainda, sua vivência — está no centro de inúmeros desafios e paradoxos contemporâneos. Se por um lado há uma tendência mundializada de homogeneizar tudo, apagando diferenças e memórias definidoras do que somos e fomos, por outro, há um recrudescimento de atitudes fundamentalistas e acentuando conflitos. Como escapar desse falso dilema? Como valorizar a percepção de que os textos identitários — que atravessam nossos corpos e mentes — produzem significação ao longo de interações significantes com outras pessoas, grupos e sociedades, não podendo ser fixados em apenas um eixo? Como construir autonomia a partir dessas interações? Como interagem os processos de criação e de pertencimento? Identidade e Autonomia: Desenhando Novas Cartografias “está sem discurso” 103 “religiosidade é exteriorizada dentro de sistema formais próprios do espaço cultura” Nós estamos vivendo hoje em uma sociedade fragmentada e plural em que a religião não é mais fonte primeira de sentido, porque as grandes instituições, inclusive as eclesiásticas, estão ora mais, ora menos desacreditadas. E há um excesso de ofertas religiosas ou pseudo-religiosas de todo tipo. E hoje fazem sucesso as que apelam acima de tudo para a emotividade e propõe novos sagrados. (...) O que é religiosidade? Ela é a raiz do conjunto das dimensões da vida e da pessoa, mas na medida que integra. Portanto, a religiosidade leva, dá coerência a um projeto de vida. Por quê? Por que o ser humano é histórico, ele é social. Por isso que a religiosidade é exteriorizada dentro de sistemas formais próprios do espaço cultura. Esta maneira concreta de viver religiosidade constitui a religião. Então, a religião surge mediante questionamentos e respostas históricas do ser humano a respeito do sentido último da vida. A vida é o processo histórico. Então, à medida que eu estudo a vida, estudo o processo histórico, o processo cultural. Normalmente a exteriorização da religiosidade se dá numa comunidade religiosa marcada por mil contingências históricas, grupos sociais, símbolos, cultos, preces, ritos, formulações, normas. Daí a diversidade de religiões, de cultos ou de filosofias de vida. Então, a religião por certo é importante. Porém, é uma importância relativa. A fé é o importante absoluto. Nesse sentido a religião é um instrumento e a fé é o objetivo último. Em sentido amplo, a religiosidade pode ser chamada também de fé, embora a disponibilidade da pessoa ao sentido fundamental de sua existência não se identifica somente na sua entrega condicional a alguém reconhecido e amado como razão última de sua vida. Não. Para quem crê, a vida tem um rumo bem mais definido. Nesse caso a religiosidade não é substituída pela fé. A religiosidade é iluminada pela fé (...). (...) Outra questão que a gente pode abordar é o mundo das religiões. Dizer e pontuar que a atitude de uma pessoa diante do fenômeno religioso não é só resultado de conhecimento, de raciocínio e nem de fundo psicológico. Porque a psicologia da religião tem constatado a importância da dimensão social na formação de tal atitude. Ante mesmo de qualquer questionamento intelectual, a pessoa se embebendo inconscientemente das tradições religiosas de seu ambiente, costumes, ritos, normas e crenças. Surge assim um pano de fundo global, isto é, um modo de ver, de valorizar, o que vai exercer forte influência na avaliação do mundo e nas atitudes da pessoa. A religião é uma produção social em vista da vida, já foi dito aqui e acentuado. É um dado histórico. A religião não começou com Moisés, Abraão, Jesus. Já haviam outras religiões. Os grupos humanos para encontrar o sentido da vida, as sociedades para se manterem vivas produzem religiões como produções culturais. A religião é problema da pessoa, do grupo. Não é problema de Deus. Por isso, não se pode ser uma religião alienante e sim que estuda, questiona, responde. Porque é no meio desse questionamento, dessas respostas, é que surge o 104 “A religião é uma produção social em vista da vida” transcendente. Então será sempre uma resposta histórica reforçada pela fé, como uma resposta ao sentido último da vida. E também perceber essas relações de forma crítica, analisando, claro, todo o processo e posicionamento histórico transformador. Vejo que estas descobertas são através de várias religiões. Descobrindo as diversas religiões como uma produção humana, na tentativa de dar uma resposta aos diversos questionamentos, qualquer resposta em nível de religiões sempre será incompleta. E aqui a gente poderia abordar a questão da modernidade, o que houve também no Brasil. Mas passemos a questão das religiões e culturas. Eu queria pontuar também neste sentido de que o ser humano na profundidade do ser coloca questões básicas. O que estamos fazendo neste mundo? Qual é o nosso lugar no conjunto dos seres? Como agir para garantir um futuro esperançador? O que nós podemos esperar além da vida? Mas vejam que há pessoas que vivem a retidão de vida, o sentido de solidariedade e cultiva o espaço sagrado sem a religião. Sem que suas religiões e igrejas sejam no modo como pensam ou interpretam a vida. Vejam que não é uma tarefa fácil fazer distinção bem delineada entre religião e cultura. Muitas práticas religiosas estão ligadas a cultura de um povo, onde a religião surgiu. Portanto, muitas práticas religiosas foram a transposição de alguma prática cultural para o nível do sagrado. Por exemplo, o sábado já era prática na Mesopotâmia. O batismo cristão não pode ser desligado da grande conexão com a imersão judaica, uma derivação do banho de purificação. Portanto, não há povo sem cultura. E ela é diferente, portanto, temos que entender, de erudição, de inteligência, de habilidade profissional. Cultura é a expressão de ser de um grupo. Todo grupo tem cultura. E ela é a expressão do humano, do imanente, do horizontal na vida de um grupo. Também não há povo sem religião. Ela é a expressão do transcendente, da busca da superação do indivíduo. Portanto, é o vertical de um grupo. E a religião é um dos elementos básicos constitutivos da cultura e de toda a sociedade. Durkeim, por exemplo, vê na religião e nos valores, a base dos quadros sociais e os fundamentos da estrutura social. Portanto, podemos dizer que a própria religião cria uma cultura com o passar do tempo. É a sua forma de se expressar ou então seus praticantes a expressarem. Em muitos grupos a gente pode notar que a cultura religiosa, que em geral se chama tradição, acaba valendo muito mais que os princípios que originaram a religião. Nesse momento eu gostaria de colocar um último aspecto a partir do que eu estou dizendo, do que eu fui convidado para a partir da igreja católica... Eu quero falar de uma igreja católica aberta, ecumênica. Uma igreja do dialogo interreligioso, e também da minha militância na Pastoral Afro há 30 anos. (...) Então vejam que toda essa sensibilização da igreja diante da condição dos afro-brasileiros não é um fato isolado. É a partir do crescimento e da força dos movimentos populares, das ações afirmativas, da luta que marca a presença do negro e da negra na sociedade civil e nas igrejas. Por isso, a igreja diz que essa evangelização tem que ter novos contextos, novas expressões, novos métodos. E a partir daí que surge, há questão de cinco anos atrás, dentro da Conferência dos Bispos, a Pastoral Afro-brasileira. 105 “na prática da comunidade negra, entrar na religião do outro é entrar numa verdadeira comunhão dialogal” É uma instância de articulação e de animação na caminhada da comunidade afro-brasileira. Portanto, a Pastoral Afrobrasileira está em parceria com a sociedade civil em centenas de grupos no Brasil para quê? Na luta pela desconstrução do racismo, contra a discriminação. O que nós, no início do evangelho de libertação que é anunciada por Jesus Cristo, colocamos a serviço da vida e da esperança. Nos queremos suscitar e animar a descoberta e a vivência deste dom de Deus. Portanto, ser negro é lindo. É gostoso ser negro e ser negra. É prazeroso ser negro e ser negra. Isto é, assumir a negritude é ter a consciência que é a partir dessa negritude que nós damos resposta a Deus pela aceitação desse dom. A negritude é uma tomada de consciência. Eu vejo que é uma atitude, é uma responsabilidade, é uma filosofia, é um modo de amar, de viver, de rezar, de trabalhar, de sonhar, de fazer política, de coordenar, de decidir, de fazer escolhas, de tomas opções. É um jeito de ser e de assumir a vida. Então ser negro não é somente e exclusivamente pela pigmentação preta. Ser negro é uma opção política, é uma atitude política. E além do mais nós somos um povo eminentemente religioso. Vemos Deus em tudo. Então, viver para nós é um grande ato de louvor a Deus presente em nossa vida e em tudo o que existe. Então nos nós sentimos chamados a resgatar, a preservar, transmitir toda a história de fé das comunidades negras, famílias ou religiões, igrejas ou movimentos. Significa o quê? Perceber a experiência de Deus feita no interior, feita na dinâmica das culturas afro. Para a comunidade negra fazer a experiência de Deus é entrar em contato com tudo o que ele criou, como já foi dito aqui anteriormente. Essa criação é entendida coletivamente. Por isso, é a comunidade que é a maior expressão de Deus. É o valor maior de referência para o viver, para agir e morrer. E neste sentido, na prática da comunidade negra, entrar na religião do outro é entrar numa verdadeira comunhão dialogal. Então é abertura para o outro, é integração. E os africanos escravizados no Brasil, como tiveram a experiência de Deus? Foi a partir da experiência de discriminação racial institucionalizada. Para a gente fazer uma leitura teológica dessa experiência, nós não podemos utilizar um referencial epistemológico clássico. Mas a partir da experiência desse povo. E nós sabemos que a partir dessa experiência é que eles fizeram de Deus e da sua espiritualidade aquilo que se contrapõe com a espiritualidade tradicional. Então, eles perceberam Deus da resistência, ou seja, um Deus que sofre a dor, incompreensão, solidão. Que luta e nos compromete com projetos. Que caminha, ou envia. Um Deus que canta, que dança as conquistas com a gente. Um Deus que é povão. Um Deus que participa. Um Deus que cria e recria. Portanto, um Deus que nos incomoda, que nos dinamiza, lança-nos constantes apelos e desafios. Então manifestar esse Deus, justiça e alegria, vida que caminham com o seu povo. (...) Percebemos com alegria e esperança essa disposição, também da igreja católica no Brasil, em resgatar dividas sociais e dentre outras, por exemplo, a questão da terra dos remanescentes dos quilombos. Então, as celebrações e as tradições africanas permanecem na memória, na oralidade, nas benzeções, nos cultos, nas religiões de matrizes africanas. Concluindo eu diria que duas coisas são importantes, diante de tudo isso, nesse grande encontro mundial para discutir 106 “as celebrações e as tradições africanas permanecem na memória, na oralidade, nas benzeções, nos cultos, nas religiões de matrizes africanas” religiosidade e culturas, duas coisas. Primeiro: pode revelar um universo rico em símbolos e significados e que me leva a crer que nós estamos vivendo um momento singular. Então, um momento em que o olhar humano volta à sua atenção para o diferente, sem tratar o diferente como negativo ou equivocado, mas simplesmente como diferente. E o segundo aspecto, que teria que continuar essa proposta, é dar importância ao diálogo entre as religiões e as culturas. Diálogo que como um conjunto de relações inter-religiosas que ajuda a construir positivamente as pessoas e as comunidades. Padre Jurandyr Azevedo de Araújo no debate Religiosidade e Cultura 107 A diversidade cultural poderá sobreviver às tendências de padronização e hegemonia? Como evitar perdas culturais das sociedades tradicionais? 108 “Quero dizer, temos que banir a pobreza, ninguém deseja a pobreza, os povos pobres não querem ser pobres, (...)” Portanto penso seriamente que uma reflexão de uma coletividade sobre sua história, sobre seu passado, já induz orientações e escolhas artísticas. Então efetivamente são os homens políticos que vão estar na ofensiva. Teremos de fazer com equipes municipais que queiram assumir o risco, uma aposta artística engajar-se ao lado dos artistas? A gente começou a lembrar do passado, mas reconstruir, refazer as imagens, a cultura com o pensamento e com a cara de hoje, com a nossa cara de hoje. E nós estamos nesse processo de trabalho.” Darlene Taukane na mesa Minorias e suas culturas: direitos humanos e riquezas humanas Jean-Louis Bonnin na Atividade Associada Política Cultural (Delegaçãp Civil da França) Definições servem aos definidores e não aos definidos. E parece haver uma cultura que está relacionada à pobreza; não há uma cultura da pobreza. Quero dizer, temos que banir a pobreza, ninguém deseja a pobreza, os povos pobres não querem ser pobres, não há uma identidade na pobreza. Ines Sanguinetti no debate Novos Territórios da Arte Sally Price na mesa Procurando uma Identidade Cultural 109 “Nós, os povos indígenas, ainda acreditamos que temos mais 500 anos de luta, 500 anos lutando pra poder ter uma vida melhor” (...) Cada povo com sua cultura, a sua terra demarcada ou não-demarcada, mas mesmo assim tem que ser respeitada a sua identidade cultural e étnica. A gente fica muito revoltado, porque essas pessoas que falam isso, são justamente as pessoas que invadiram seus antepassados, foram que invadiram a nossa terra. (...) Muitas pessoas dizem que os índios são egoístas que quer a terra só pra si, nós não queremos a terra só pra nós, queremos a terra pra todos. Eu não acho que só os índios são filhos de Deus. Eu acho que todo povo do planeta, eu acho que todos têm um ser soberano, e o nosso deus é o deus Tupã. Eu não sei qual é o deus dos brancos, mas eu entendo que deus talvez, o Deus, seja um só, porque o nosso deus é aquele que realmente responde por todos. E a gente fica preocupado com essa discussão, porque enquanto nós queremos realmente viver em paz entre as outras nações, aí a gente escuta sempre essas baboseiras. Desculpa a expressão, mas é isso mesmo. E quando a gente resolveu criar a nossa organização indígena foi justamente para que nós pudéssemos ter mais força perante o nosso povo. Quando um índio do Nordeste desse um grito, alguém lá do Norte pudesse ouvir e vir ao nosso socorro e vice-versa. Assim, vai do Norte, do Nordeste, do Sul, do Sudeste, do Centrooeste e também os índios do mundo inteiro, da América Latina, da América do Norte. Nós sabemos que os índios também da América do Norte foram quase totalmente dizimados como nós, índios do Brasil. E sabemos que nós já fomos mais de 6 milhões e hoje somos reduzidos a apenas 340 mil, que são os dados da própria Funai. Mas só que no nosso entendimento, nós achamos que nós chegamos a mais de 1 milhão, porque, pela questão do preconceito, a questão da discriminação, muitos índios que tem realmente a sua identidade indígena, eles ficam a dizer que não são índios, por causa do preconceito. (...) Então nós sempre defendemos que temos que garantir, com a sociedade e com o governo brasileiro, projetos de auto-sustentação para que os nossos povos e nossos parentes fiquem na sua aldeia, pra que eles não possam sair por aí mendigando e negando sua própria identidade. Pra isso nós precisamos do apoio da sociedade como um todo, a sociedade não-índia, para que possamos ter realmente uma vida melhor em nossas aldeias. (...) Agora, é preciso que a sociedade busque conosco. O pessoal diz que nós somos minorias, mas nós não somos minorias, nós somos apenas uma parcela da população, somos o início desse Brasil e, pra que esse Brasil continue pluriétnico, com uma democracia mais ampla e mais igualitária, é preciso que todas as populações do planeta possam estar unidas, para que possamos conseguir vencer o ciclo da humanidade sem ter baixas.(...) Nós, os povos indígenas, ainda acreditamos que temos mais 500 anos de luta, 500 anos lutando pra poder ter uma vida melhor. Porque se nós não continuarmos nessa luta, cruzar os braços, ninguém vai conseguir lutar por nós. Dourado Tapeba na mesa Raízes da Tradição (Presença Indígena no Fórum) 110 “nós não podemos falar em uma cultura negra nem em uma cultura afro-brasileira, no singular, totalitária, não-unificada” (...) Conta a lenda que, certa feita, uma divindade maior, o Oriximilá... Orumilá chamou Ifá, que é o orixá do destino, futuro, e lançou o seguinte desafio. “Se um devoto tiver que fazer uma viagem para o outro lado do mar, para um lugar de onde ele não voltará, qual será o orixá que deverá acompanhá-lo?” E aí o Ifá colocou a pergunta para o conjunto de orixás presentes. E aí logo o Exu disse: “eu vou, deixa comigo, eu acompanho”. Aí ela disse: “mas se você no caminho passar pela sua cidade, encontrar sua comida preferida, a sua dança preferida, os seus amigos” e fez... “ah eu fico lá e o sujeito que vá sozinho”. Aí o Ogum disse: “eu vou”. “Está bom, mas aí se no caminho você passar pela sua cidade, encontrar com sua família, com sua comidinha preferida, enfim, o que você faz?” “Ah, eu fico lá e ele que se vire”. E assim foram todos os orixás. Então o Ifá, intrigado, perguntou: “afinal de contas, será que nenhum orixá acompanha um devoto para o outro lado do mar de onde não se volta?”. Que era a morte, mas também a escravidão. Assim como era visto pela tradição africana. A terra onde se vai e não se retorna. E ele disse: ‘tem sim, existe o Ori”. O Ori é o que se tem, é a cabeça de cada um de nós, é um pouco desse pequeno orixá que cada um de nós é. E esse acompanha o devoto para o outro lado do mundo, acompanha através e para além da morte. Inclusive essa é uma informação que o povo de santo mantinha em segredo e quando os senhores de escravo souberam disso, eles puderam reprimir uma forma de resistência que era o suicídio. Então quando alguém estava insatisfeito ao extremo, não conseguia mais viver na escravidão, se matava. Porque ele acreditava que iria atravessar para um outro mundo e se reencontrar com os seus na África de volta. E os senhores descobriram que quem guiava esse caminho era o Ori, era a cabeça e, portanto, cada um suicida tinha sua cabeça degolada e enterrada separada do corpo. O que impediu, enfim, a difusão da prática do suicídio. Ora, qual é a reflexão sobre isso? É de que, na verdade, quando nossos ancestrais vieram de lá pra cá, eles vieram com seu Ori na cabeça. Eles vieram somente com isso, não trouxeram nada em cima do corpo, não trouxeram livros, não trouxeram códigos, não trouxeram sistemas de dogmas. Cada um trouxe a sua memória, as suas obrigações, a sua identidade. A sua identidade individual, familiar, enfim, sua identidade étnica que veio com eles, com cada um de nós. E foi a partir daí, que se reconstruiu do outro lado da vida,... para além da kalunga como dizem os bantos, para além do mar que era a kalunga, que era... para além da morte... Reconstruíram não somente uma religiosidade, mas reconstruíram o sistema de parentesco, reconstruíram amizades, reconstruíram a vida dentro de uma sociedade hostil em uma terra estranha. Portanto, nós temos essa dinâmica de que, por um lado, o que veio conosco de África, veio como memória. Segundo: o que foi reconstruído, foi reconstruído em condições extremamente adversas e em formações sociais diferentes. (...) Nós não podemos falar em uma cultura negra, nem em uma cultura afro-brasileira, no singular, totalitária, nãounificada. Ela é, na verdade, uma rede muito complexa de manifestações culturais que tem o Ori como... O Ori veio com eles, mas em cada lugar houve um ponto de combinação diferente. Portanto, a marca dessas diversas combinações é a diversidade. A diversidade que nós temos nas próprias formas dessa prática religiosa. Não cheguei ainda em religiosidade, mas em práticas religiosas. Ou seja, a forma do candomblé que é vista com uma forma mais organizada e tradicional. As formas de culto de orixá,... de vodu, tambor de mina, jurema, xangôs, enfim, batuque no Rio Grande, falam no batuque, os batuques são o candomblé no Rio 111 “não é um sistema de crenças, quer dizer, é a nossa própria identidade. Eu sou o que é minha cabeça.” Grande. Portanto, são várias formas de adaptação com o princípio comum de que a relação com sua ancestralidade, a busca de uma identidade, que é algo muito maior do que um sistema de crenças, que coordenou e articulou essas criações culturais múltiplas em rede. Essa primeira questão, que eu coloco na mesa para que a gente afaste de vez qualquer tentativa ou tentação de fazer uma discussão teológica em termos de estrutura, de dogmas, de corpos religiosos, de estruturas de livros. Não existe nenhuma oposição, enfim, a uma religião, a uma religiosidade africana com o sistema de livro, Corão, Bíblia, teologia, escatologia, o que seja e nem tampouco é um objetivo do povo negro. Apesar de meus queridos colegas, eu sou historiador, meus queridos colegas antropólogos fazerem um grande esforço de construírem uma teologia iorubá, de construírem um sistema unificado. Inclusive há muito companheiros que pensam até em criar faculdades de teologia de candomblé e umbanda. Dizer que o primeiro ponto de partida é, pra nós que estamos nessa tradição, o que o nosso Ori nos diz, é que não é um sistema de crenças, quer dizer, é a nossa própria identidade. Eu sou o que é minha cabeça. E isso me dá uma liberdade de dialogar, de conversar, de... por mais que eu freqüente, tenha amigos, estou casado na igreja, sou até noviço da irmandade... Venerável Irmandade do Rosário dos Homens Pretos na porta do Carmo. Isso não é nada contraditório com meu Obaluayê porque eu sou um Obaluayê, essa é a minha identidade. Não dá para ser outra coisa. Não dá para eu me esconder, não dá para eu me travestir, não dá para eu escolher um orixá bonitinho de acordo com a moda. É o que é minha cabeça, é o que é a minha mãe, a minha tia, o meu irmão, a minha bisavó. Portanto, isso organizou a minha vida, organiza a minha afetividade, organiza a minha forma de tratar as pessoas. Então, isso é que alguns amigos africanos diziam. Isso é identidade étnica, etnia não é uma escolha política. A partir de agora eu vou ser alguém do candomblé, tudo bem, você pode escolher e entrar e sair de um templo, mas se você não tiver fundamento, se você não tiver origem, se você não tiver uma identidade profunda, então não adianta, é algo falh... é algo, digamos, passageiro. Então, nesse sentido, essa primeira parte de que a religiosidade do nosso povo é muito marcada pelo sentido de identidade. Segundo: porque que o espaço do religioso foi fundamental, é porque foi somente essa crença da própria cabeça de quem atravessou ao Atlântico foi a única referência cultural fundamental para que ele pudesse reconstruir a sua vida no cativeiro contra ele superando o cativeiro. Ou seja, nós não tivemos partidos políticos. Nós não tivemos organizações de movimentos, digamos, movimentos sociais como tem hoje. Nós não tivemos no passado acesso à escolas, o que nós tivemos foi recompor pelas identidades de cada um, colando um parente com outro parente, criando novas relações é que se foi possível criar comunidades resistentes, quilombos, casa de santos, cantos de trabalho, no caso da Bahia, cantos de trabalho, grupos de trabalho no porto, enfim, estas identidades é que organizaram uma sociabilidade negra, brasileira sobre a escravidão e impediram conosco que simplesmente nós fôssemos aquilo que queríamos que nós fôssemos. Ou seja, simples mercadoria, porque na saída do outro lado da África, todas as cerimônias eram cerimônias de destruição cultural, na medida que nós sabemos hoje que a escravidão é a forma mais requintada de morte social. Alguém que era escravizado e capturado, ele perdia sua existência social, ele deixava de ser um ente humano. E tanto é que ainda tá lá no porto de Uidá a árvore do esquecimento onde cada um que saía era obrigado a dar 7 112 “a religiosidade do nosso povo é muito marcada pelo sentido de identidade” voltas em torno da árvore para esquecer a sua identidade, a sua linhagem, a sua família, o seu lugar na sociedade e embarcar em um navio como uma peça, como um fardo, como uma mercadoria. Ou seja, uma unidade de uso. E foi graças à religiosidade que essas pessoas puderam dizer que eram pessoas, que não eram unidades de uso, que elas tinham um ancestral, que elas tinham uma espiritualidade forte que as protegiam e que as guiavam a construir sua vida. Portanto, nessa história do povo negro a religiosidade tem um papel especial. Eu não tento nem comparar com ninguém, porque eu não estudei nem vivi outras tradições. Mas penso, pro exemplo, que deve ser algo parecido, deve ser e não me culpem por isso com a identidade judaica. Ou seja, apesar de dispersos pelo mundo inteiro mantiveram costumes, tradições em cima de uma fé específica. Em cima da manutenção de uma fidelidade naquela aliança deles originária. Isso é que fez com que eles pudessem se reagrupar depois, mantendo língua, mantendo tradições, mantendo cultura. Portanto, é uma forma de religiosidade que é étnica, de prática de vida, de identidade de vida e nunca uma adesão am corpo de idéias nem muito menos uma negociação de vantagens. O que que eu dou pro céu e o que que o céu me dá. Muito embora nós também negociemos porque esses nossos ancestrais eles também comem, também dançam, eles também se divertem porque eles são ancestrais... nós somos à imagem e semelhança deles. (...) Mas esse é um lado de... uma religiosidade de vivência e não a religiosidade de adesão a um corpo de dogmas, a um corpo de idéias. Então, portanto, ninguém converte ninguém. É um tipo de religiosidade onde não há conversão. As pessoas... vai quem quer. No máximo, é o que se diz na Bahia, é o cá te espero. Cá te espero na visgueira, boto minha visgueira e quem quiser que venha e quem pegar, pegou. Quem não pegar, que vá embora. Se não é uma religião apostólica, portanto, não há porque conflitar com ninguém para saber quem disputa o cliente. Quem tiver que ser, será. Ora, esse é um primeiro dado de que isso permitiu para, na maioria do povo brasileiro de origem africana, uma forma de religiosidade muito convivial, de convívio, de vida, de vida comunitária que se interpenetra naquilo que eu acho que o Fernando Ortiz define pra mim como um conceito muito feliz de transculturação. Então há um processo de transculturação de matriz africana para a sociedade colonial como um todo de ter na religião um aspecto de convivialidade, de familiaridade e não é a toa que caiu tão bem o catolicismo barroco, cheio de devoções, cheio de padroeiros, de padrinhos, de anjo da guarda, de procissões, de festas. Não é um oportunismo de um escravo que teve que aderir nem aquele conceito para mim abstruso de sincretismo. Mas um convívio, uma interpenetração, uma transculturação em cima dessa vivência africana de uma possibilidade de uma oferta religiosa, socialmente colocada, em que era possível conviver. Isso é um conceito, segundo, fundamental para mim que é do convívio que hoje corre perigo. A intolerância religiosa que ocorre no Brasil ela é hoje o grande choque do século XXI. É exatamente um Brasil acostumado ao convívio, convívio desigual, convívio com o conflito, mas convívio. Há o choque do fundamentalismo. O choque do fundamentalismo é exatamente a incapacidade de conviver com o diferente. É exatamente a incapacidade de negociar. É, enfim, é... o corpo de idéias definindo sua vida e não a sua vida, e não o exercício do conviver diário e 113 “uma religiosidade de vivência e não a religiosidade de adesão a um corpo de dogmas, a um corpo de idéias” da convivialidade com seus semelhantes definindo as sociabilidades, as solidariedades e as amizades. (...) E, portanto, a nossa Constituição brasileira define que há uma liberdade de religião. Todas as pessoas são livres para pensar e para cultivar aquilo que quiserem e, portanto, não há uma religião que defina cultura brasileira. Não há uma religião que defina o Estado brasileiro. E a religião existe não para cobrar a nossa adesão, essa é a minha visão de vivência, mas a religião existe para ajudar-nos a sermos felizes, a construirmos laços de solidariedade com os nossos amigos, com os vizinhos, com os parentes, enfim, religião é religar. Então esta atitude cultural que eu entendo que é uma atitude que foi construída com muito esforço. Inclusive chegando, eu termino, há um assunto que outro dia eu provoquei o padre Jurandyr, provoquei não porque ele é meu amigo, e a gente de se entende muito bem. Mas que é um assunto que padres como ele com os quais eu já militei inclusive em trabalhos de base, entendem perfeitamente a questão da chamada dupla pertença. Mas já outros bafejados pelos ares fundamentalistas se recusam a ouvir falar na prática da dupla pertença. Claro que há pessoas como eu que vivem perfeitamente e entendem duas religiões, por que não? Mas isso vem de onde, da escravidão? (...) Porque o preconceito racial no Brasil é tal que ninguém se lembra dos grandes livros como o do Felipe Alencastro, meu amigo e colega, da... daqui da professora Marina, é, da USP, que mostram muito bem a importância do reino do Congo. Por que é que tem congada em Minas Gerais? Por que é que tem congada em São Paulo? Por que a congada é uma forma tão popular negra e católica? É a memória do reino cristão do Congo, convertido antes da descoberta do Brasil, que construiu um reino com Dom Garcia, com Dom Manuel, enfim, com Elitt Maniconga, que tem santos, que converteu o povo e que foi vencida para a escravidão, a batalha de Ambuila tá aí, é um fato histórico narrado por Felipe. E, portanto, se importou e se trouxe, à força, negros, africanos, católicos de África. E não é a toa que todas as irmandades de Rosário, de São Benedito, de Boa Morte do Brasil, elas começaram e se mantiveram durante quase três séculos somente com pessoas de origem Gorgangola. E Ioruba nem Nagô entrava em irmandade não. Porque o seu contato era com árabes, com o islã. Seu contato era com outro tipo de religiosidade. Então esses africanos que lutaram para serem católicos do Brasil contra a vontade da Igreja. E tiveram que construir igrejas fora do perímetro urbano, capelas negras. Tiveram que construir igrejas depois do seu expediente. A da Bahia, dessa que eu estou como noviço, me propondo a ser um noviço dessa igreja, eles trabalhavam dez horas por dia mais quatro pra construir sua igreja. Porque eles queriam ser enterrados como cristãos. Não queriam ter seu corpo jogado no lixo. Eles queriam ter uma terra sagrada pra se enterrar e só podiam se enterrar como cristãos se tivesse sua igreja. Portanto, esses fenômenos de dupla pertença, que, na verdade, são experiência africana de a vida, a família e o povo não pode se dividir por causa de religião. Então, portanto, se você tem acesso às duas não lhe é estranho ter um irmão católico ou ter um irmão do candomblé. A gente não vai brigar com irmão por causa disso. Isso enfraqueceu o reino do Congo pra que ele caísse em escravidão. E essa é uma cultura de convívio que a gente encontra com o islã. Se nós olharmos pra o que são os agudais? Os agudais são os brasileiros em África. Todos aqueles que retornaram pra costa d’África. Os bresilian, os bresilian, enfim, que são comunidades imensas na Nigéria, Benin etc. e etc.. O cônsul Urbano Kassi de Sousa, que é o cônsul do Brasil em Uidá. Ele é muçulmano, ele disse: 114 “a nossa grande tarefa cultural hoje é resistir e desmontar toda forma de unidade totalitária” Mus urmão me et clerri, quer dizer, que de vez em quando ele toma uma cervejinha, mas com muita moderação. Todas as famílias brasileiras na costa d’África, elas têm um nome católico, um nome árabe e o nome de família, ele é Urbano, Urbano é nome de papa; ele é Kassi, bom nome muçulmano; e é de Sousa que é sua família. Portanto, a própria família cria mecanismos de convívio e todos eles são bons muçulmanos de mesquita, mas, de vez em quando, eles também vão ao templo da serpente; de vez em quando, eles desfazem suas obrigações; de vez em quando, eles batem cabeça; porque isso faz parte de sua vida e não implica em nenhuma guerra, nenhuma repartição de família porque... porque o importante é esse princípio de que a religião, a religiosidade deve ser algo de vida, algo voltado para o convívio, algo voltado para felicidade e não algo que, diante do qual cada pessoa deve cair prostrado como escravo e se tornar um soldado em função, esse é o fundamento, essa é a base do que ressurge como fundamentalismo. E, finalmente, dizer que, do ponto de vista político, do ponto de vista como cidadão do mundo hoje, concordo com todos que dizem que a nossa grande tarefa cultural hoje é resistir e desmontar toda forma de unidade totalitária, toda forma de fundamentalismo e lutar pela diversidade cultural, lutar pelo, pelo convívio do diferente porque é possível sim e os negros do Brasil dão exemplo. É possível conviver Obaluayê, com São Lázaro e São Roque. É possível Nossa Senhora Aparecida conviver com Nana. É possível tudo desde que haja boa vontade, desde que haja esse sentido profundo de que religião é para ligar as pessoas, e não para dar testemunhos de idéias, e não para vencer o outro. Ubiratan de Castro no debate Religiosidade e Cultura 115 116 117 118 119 “hoje há uma civilização em via de mundialização, à mercê do dinamismo da cultura ocidental e da hegemonia que os seus protagonistas exercem sobre o mundo há vários séculos.” A cultura é o conjunto de modelos dos comportamentos de pensamentos de sensibilidade que estruturam as atividades do homem na sua relação com a natureza, a sociedade, o transcendente, o absoluto. Aplica-se tanto aos grupos humanos e à sociedade mas também ao indivíduo. É de distinguir com civilização - infelizmente, essa é uma influência que pessoalmente acho nefasta de, digamos, concepção anglo-americana, em especial. Para a escola francesa, a civilização é um conjunto de estruturas sociais e econômicas, bens materiais e tecnológicos, características do território e do meio ambiente produzidos por uma dada cultura em geral, claro, coletiva. Evidentemente há interações constantes entre ambas as realidades. Evidentemente existem culturas sem civilização próprias. Ou por não ter tido ainda a oportunidade de criarm ou recriarem às suas próprias civilizações porque é um processo de longo fôlego. Ou por se encontrarem em situação minoritária, demográfica ou politicamente. Num quadro geográfico ou nacional abrangente, de país, império, o problema das migrações e das diásporas. Evidentemente hoje há uma civilização em via de mundialização, à mercê do dinamismo da cultura ocidental e da hegemonia que os seus protagonistas exercem sobre o mundo há vários séculos. Esta civilização mundializada coexiste com culturas, no plural, diferentes, que é fonte de tensões e conflitos. Pelo menos até o domínio do novo processo civilizacional a sua integração mais ou menos harmoniosa das diferentes culturas, nas culturas alheias a ele, a assimilação dos novos paradigmas, há o reajustamento necessário em ambos os níveis, cultura e civilização. Religião, onde que fica a religião neste conjunto? É a vertente da cultura que se relaciona em particular com o transcendental e o absoluto, representação do ser supremo, visão global do mundo, quer dizer, respostas às questões da origem e do fim. Do amor e da geração da vida, da morte e do sofrimento. Ajuda também a fixar, a criar valores espirituais, individuais ou coletivos, e éticos, estáveis, estabilizadores. Símbolos e rituais significantes e imobilizador. Isto para mim é o que é a religião em contraste, não em oposição, com cultura ou civilização. Sendo parte de um sistema cultural, a religião transcende à mercê desses trunfos de transcendências. Há interações evidentes e constantes com as outras vertentes da cultura, a natureza, a sociedade, a família. Ao mesmo tempo que as realidades e as dinâmicas de correntes das relações homem-natureza, homem-homem ou homem-sociedade e família condicionam a relação do homem e da sociedade com o absoluto. Aqui um entre parênteses, uma afirmação: toda a religião surge, desenvolve-se e perpetua-se no quadro dum contexto histórico e civilizacional concreto e circunscrito. Ao mesmo tempo em que essas realidades influem sobre isto, quando esta última relação, aquela entre o homem e o absoluto se codifica, se sacraliza, ela tende a exercer um papel predominante, hegemônico sobre a sociedade, a cultura, influindo sobre os comportamentos e mentalidades. Ela sacraliza os mesmos, quer dizer, os comportamentos e mentalidades com os valores espirituais e éticos subjacentes. Resultados desse processo dá maior coesão à sociedade sobretudo no caso das sociedades complexas, dimensões territoriais ou demográficas, diversificação étnica, estruturação sociopolítica. Mas também ela cria um certo grau de fechamento de cristalização bloqueadora e a alienação, às vezes, quanto ao real de castração da liberdade individual e coletiva. 120 “Não há um povo árabe como tal, há países árabes com várias etnias, até várias línguas e até várias religiões” As sociedades evoluídas e complexas com contradições internas, os sintomas de desagregação e decadência, a religião pode autonomizar-se em relação às outras esferas culturais. Romper com a própria sociedade. Chega então a agregar adeptos próprios espalhando-se por vários países e sociedades diferenciadas, criando novos patamares culturais, novos valores, novas dinâmicas sociais, transversais às diferentes sociedades e culturas. É o caso, por exemplo, das grandes religiões universais, o budismo, nascido, mais ou menos, 5 séculos antes da era cristã; o cristianismo e o islamismo. O islã é a mesma coisa, século sétimo depois de Cristo. O que tudo isto tem a ver agora com a identidade cultural que é o segundo componente do nosso painel. As sociedades, mais ou menos, homogêneas, mais ou menos, isoladas. A unidade de cultura, religião, língua ou idioma. Eu preferia, depois da intervenção de Mãe Sylvia, a palavra idioma. Porque vem do grego idioma que é o próprio, genuíno, como idiossincrasia. É mais forte que a palavra, língua como tal. Identidade... a identidade é única e óbvia ao nível coletivo e individual. No nosso mundo de hoje, aberto e globalizado, onde vários desses elementos são transversais nas sociedades, há polivalência e mobilidade dessa identidade. Pertenças culturais múltiplas, como o que se disse aqui, nas intervenções do meu antecessor, geridas por povos ou indivíduos, com mais ou menos, sucesso e harmonia. E chego ao exemplo do mundo árabe e médiooriental(...). Não há um povo árabe como tal, há países árabes com várias etnias, até várias línguas e até várias religiões. É o árabe puro, etnicamente puro, é o da Península Arábica. Arábia Saudita, Kwait e esses Emirados agora são enriquecidos escandalosamente como dizia aqui Abdul Aziz, através do maná do petróleo. Mas não devemos nos esquecer, no Norte da África os povos da etnia bérber, misturados ou não com os árabes que chegaram um tempo a ocupar essas zonas e a levar estas zonas a um acúmulo civilizacional muito brilhante. No Médio Oriente, como tal, no Egito faraônico antigo ou no crescente fértil desta Palestina, Síria, Líbano, Jordânia até o Iraque, este é um mundo semita, parente ao mundo árabe e também misturado com árabes como tal. Um mundo semita onde, entre outras coisas, digamos, tem importância a língua ciríaca que não é nada senão a língua aramaica que Jesus Cristo falava e que se tornou língua literária exprimindo a fé cristã nesse âmbito. O caso do cocta egípcio, do Egito, é a única fase do idioma egípcio antigo de 5 mil anos e que permaneceu como língua não de cultura corrente mas religiosa para os cristãos autóctones do país. Já não vou falar do Sudão que corresponde também a um outro, digamos, ciclo mais, digamos, africano como tal, mas para vos mostrar isso. Por outro lado, se bem que o islamismo como religião minoritária, esse próprio islamismo tem várias vertentes que implicam condições culturais diferenciadas. O sunismo é generalizado. Mas há o xiísmo, o xiísmo no Líbano. O xiísmo em certos Emirados Árabes. O xiísmo no Iraque que hoje vem, digamos, (...) muito importante nos conflitos criados recentemente. Ora, esse xiísmo, do ponto de vista cultural, está mais ligado a seu território principal que é o Irã. Muitos deles vão estudar nas grandes escolas tradicionais e trazem um novo alento cultural. Vocês aqui, no Brasil e em São Paulo, em especial, conhecem também as comunidades de origem árabe. Será que todas são muçulmanas? Longe disto. Há também cristãos, árabes, cuja língua original é o ciríaco,... ou cocta mas que há séculos 121 “As pertenças religiosas, culturais e étnicas são, de fato, manipuláveis, em geral, por grupos minoritários ou para legitimar a imposição violenta daqueles interesses.” e séculos falam árabe, integram com a cultura árabe, cooperaram ou colaboraram na criação da civilização árabe que depois foi transposta ao Ocidente. E também, no momento de grande renovação, há dois séculos, o século da Narda, tiveram o seu contributo para tal. A predominância de um dos componentes sobre outros resulta da sua força ou consistência, da sua operacionalidade frente aos desafios pessoais ou societais, às vezes, meramente conjecturais (...). Assim como das debilidades ou da inoperância das outras. Numa sociedade e num mundo próspero e equilibrado, é a cultura integrada, conforme a definição estabelecida, geradora de civilização, que prevalece. Mas há sociedades pobres, desequilibradas, em crise, são as entidades, identidades étnicas, nacionalistas, no sentido ruim da palavra nacionalista, e religiosas. Forças profundas mas também escuras quando não viciadas que tomam a dianteira, que se prestam às ilusões e manipulações, que podem tornar-se destruidoras e mortíferas. (...) nosso mundo no início do novo milênio. É nossa profunda condição e referem à minha pessoa com todas essas multidimensões que apresentei aqui, como também estudioso do islamismo e do cristianismo oriental e que os conflitos e confronto, às vezes, sangrentos e em escala mundial a que assistimos hoje, não tem origem primeira nas religiões, na diversidade cultural ou nas pertenças étnicas, mas eles alimentam sempre em primeiro lugar, quer dizer, esses conflitos de interesses sociais, econômicos e políticos antagônicos e resultam daquela ordem mundial, regional ou local, injusta e profundamente desequilibrada. As pertenças religiosas, culturais e étnicas são, de fato, manipuláveis, em geral, por grupos minoritários ou para legitimar a imposição violenta daqueles interesses. Ou como reação, por vez, desesperada contra aquela ordem das coisas viciadas e intoleráveis. A mundialização a que assistimos hoje, em vez de pôr em contato povos e culturas num processo de enriquecimento mútuo que resultasse salutar para toda a humanidade está a espalhar um uniformismo conformado e empobrecido, de natureza tecnológica e materialista, que põe em causa a liberdade criativa e transcendental que distingue afinal a essência humana. Por outro lado, e esta é uma mensagem a todos os movimentos culturais e religiosos. O processo acelerado da mundialização e globalização, termos e conceitos, que não se devem confundir à maneira anglo-americana, não foi acompanhado por valores culturais e éticos correspondentes por um acréscimo de espírito (...). Esse processo de mundialização e globalização tem antes atropelado ou destruído alguns sistemas de valores profundamente ancorados nos corações das populações do globo. Alguns deles muito antigos, sem propor substitutos viáveis. Os protagonistas desse novo império mental não sabem falar de outra coisa senão de choque de culturas ou civilizações e de guerras de religiões ocultando, consciente ou inconscientemente, as verdadeiras causas dos desequilíbrios insustentáveis e intoleráveis de que sofrem o Em sentido contrário, as religiões que sempre informaram e sustentaram os valores éticos da humanidade parecem não ter conseguido, de um modo geral, acompanhar o ritmo dos novos paradigmas societais e a nova conjuntura planetária. Parecem ter parado no tempo, ficado presas às 122 “Esse processo de mundialização e globalização tem antes atropelado ou destruído alguns sistemas de valores profundamente ancorados nos corações das populações do globo.” suas tradições particulares, por vezes, milenares, sem capacidade de atualização, universalização e globalização das suas mensagens e seus valores. O último ponto. O nosso mundo de hoje precisa como nunca antes e com grande urgência, não dentro de uma nova religião ou cultura universal uniforme, mas que as diferentes tradições culturais, religiosas, espirituais descubram ou redescubram todas juntas, de modo solidário e igualitário, os valores antropológicos perenes que correspondam às necessidades e anseios dos homens e das mulheres de nossos tempos. Aqueles valores, e este é o grande desafio, que possam fundar e informar as relações entre o povo e a sociedade e, bem assim, as diferentes esferas da atividade social organizada e mundializada. Diplomacia e comércio e política, comércio e economia, relação com a natureza, serviços sociais etc. etc. Adel Youssef Sidarus no debate Religiosidade e Cultura (...) Acho que é papel da escola pública formar a nação. As escolas públicas de todas as democracias do mundo possuem essa virtude, elas não podem esquecer disso. E para formar uma nação é preciso considerar a criança desde a mais tenra idade. Sabemos muito bem que uma criança que não tem educação artística aos 3 anos, aos 10 anos ou aos 13/14 anos não irá nem a museus nem a bibliotecas quando ela tiver 25 ou 30 anos, salvo as exceções. O que nos interessa não é a exceção, mas a regra, e portanto o que importa é que a escola possa ser a criadora de uma nova nação, de uma nação que deve integrar os africanos, os norte-africanos que vieram à antiga metrópole colonial. Trata-se de um retorno das coisas, de uma certa maneira, porém considerável responsabilidade daquela que oprimiu durante décadas esses povos e essas culturas. E prova de modéstia igualmente para quem quer de alguma maneira, ao forjar essa nova nação, inventar novos valores e novas culturas. E isso numa concepção de laicidade. (...) Como fazer de tal modo que esses valores sejam culturais sem serem cultuais, que lugar reservar à religião, à prática religiosa? Sabemos muito bem que entre a cultura e a religião há relações e o próprio Malraux dizia que o século XX seria religioso ou não seria. Ao menos, é o que se atribui a ele. Podemos nos questionar sobre isso. Seria verdade? Vemos todos os dias catedrais serem construídas em frente a mesquitas, Devemos viver confrontos religiosos numa nação cujos valores devem ser laicos, ou seja, fundados sobre a tolerância, sobre o respeito ao próximo, sobre o reconhecimento de seus valores próprios. De alguma maneira, a escola é capaz de nos fazer passar do culto à cultura? A partir disso, políticas são implantadas, políticas de integração sobretudo políticas de discriminação positiva, muito delicadas de se conduzir, pois sendo discriminatórias, elas podem apontar o dedo para a diferença e de alguma forma opor, evidenciar uma certa categoria social, ou certa etnia, mas ao mesmo tempo sendo positiva, ela favoriza a integração. Não existe nação sem um mínimo de valores comuns. Claude Mollard na mesa Conhecimento, educação e solidariedade: dimensões de um novo tempo 123 “Muitos grupos emergentes compreendem que a revalorização das culturas locais não basta para encarar os novos desafios da globalização” Claro, poderíamos começar, seria o habitual num discurso países, circuitos de comércio travados porque o norte se sobre identidade e autonomia, exaltando as identidades, entrincheira em alfândegas agrícolas e culturais, enquanto o mostrando a necessidade de reafirmá-las e reivindicá-las num sul é despojado dos seus produtos e daqueles que lhes dão mundo onde há tantas identidades, tantas culturas alteradas, identidade. As conseqüências mais trágicas desses ameaçadas, marginadas, esta tarefa continua sendo de processos são as guerras preventivas entre países ou dentro grande importância. Creio que as identidades já não podem de cada nação e ainda internamente nas megacidades. As ser o que eram. Não nos definimos só pelo arraigo num fronteiras e os aeroportos, os meios de comunicação e os território, ou por pertencer a um só grupo. Como emigrantes, bairros são militarizados. ou como turistas, como consumidores de música e televisão de muitos países, como assistentes a foros ou congressos Neste momento da história parecem esgotados os modelos globalizados, usamos repertórios de objetos que nos situam de outra época em que acreditávamos que cada nação podia na intersecção de muitas culturas. As roupas que usamos combinar suas muitas culturas, mais as que iam chegando, falam de muitos lugares do mundo. num só caderno, ser um crisol de raças, como o declararam as constituições e discursos. Passamos de um mundo (…) Desta maneira já se põe em evidência a constituição multicultural, entendendo multicultural no sentido de global, planetária, das formas de consumo, das formas de justaposição de etnias ou grupos numa cidade ou dentro de identificação, que às vezes portamos inclusive com os nomes uma nação, para outro mundo intercultural, agora globalizado. nas nossas camisetas e ademais mostra as distâncias entre os lugares originários de onde pensávamos que estas marcas Como se configuram os novos mapas multiculturais? Gostaria vinham, uma francesa, outra norte-americana, com os de encarar estas perguntas e incertezas confrontando dois lugares que efetivamente se fabricam as roupas, aonde discursos: o das ciências sociais sobre as identidades e da trabalha a gente para que essas camisetas, ou esses carros, interculturalidade, e o da fotografia dos últimos anos na ou esses aparelhos eletrodomésticos existam. Em muitos América Latina. Vou circunscrever-me ao que ambos casos as fábricas estão, mostra ela, em Jacarta, no México, discursos dizem sobre este continente. Mas temos que nos em El Salvador, ou no Brasil, ainda que não sabemos quem perguntar em primeiro lugar: existe um continente que possa as estão fazendo, de que nacionalidade são. De maneira ser chamado de América Latina como unidade cultural ou que as identidades muitas vezes aparecem ocultas, multicultural? Quais seriam suas identidades definidoras? dissimuladas atrás dos logos. Uma forte primeira tendência na América Latina tem sido Os resultados destes processos de emigração dos objetos, definir o latino-americano a partir das raízes indígenas. Sem mas sobretudo das pessoas, é que vivemos em cidades dúvida continua sendo de grande importância, de grande aonde se falam mais de 50 línguas, há trânsito ilegal entre energia esta origem. Mas de todas as maneiras há que se 124 “Não é só uma questão de identidade ou de cultura, mas também de redistribuição da riqueza e redistribuição do poder.” perguntar se esta crescente presença dos índios pode indígenas, negros, crioulos, mestiços, as emigrações realmente ser o único modelo civilizador para passar dos européias e asiáticas, o que nos sucedeu em campos e campos ou das selvas ou das margens das cidades onde cidades constitui um relato descontinuo, com fendas, eles vivem, a pensar ou repensar nossas nações e inclusive impossível de ler sob um só regime ou uma só imagem. a América Latina como conjunto. Muitos grupos emergentes Daí a dificuldade de encontrar nomes que desenhem este compreendem que a revalorização das culturas locais não jogo de redistribuição da riqueza e redistribuição do poder. basta para encarar os novos desafios da globalização nem Uma primeira conclusão desta apertada descrição da para ocupar o vazio deixado pela demolição das utopias complexidade sociocultural da região é que me parece que modernistas ou utopias socializantes. (...) perdeu o sentido pôr-se a procurar um “ser” latino- Esta complexidade da definição do latino-americano, a partir das chamadas culturas originarias, fica ainda mais difícil quando reconhecemos outras vertentes multiculturais. Por exemplo, considerar que a América Latina tem, junto aos americano, ou inclusive uma “identidade” latino-americana. Estamos preferindo falar de um espaço sociocultural latinoamericano. É que coexistem muitas identidades e muitas culturas. (...) 40 milhões de indígenas, uma população afro-americana de (...) Eu diria que além de globalizarmos através do consumo, vários milhões, difícil de precisar como conseqüência da que geralmente é do que mais se fala ou das indústrias desatenção que sofrem os planos de desenvolvimento. culturais que reorganizam nossa cultura ou nossas culturas, Sabemos a importância que tem o candomblé cubano, o candomblé brasileiro, o vudu haitiano, e muitas músicas geradas por estes grupos que hoje são retomadas pelas indústrias culturais. O que seria, ou como compreender sem esta participação afro as danças como o rap e muitas fusões entre o jazz e o rock. Não é fácil organizar conceitualmente esta diversidade, que como sabemos não só inclui o indígena e o afro-americano, mas também as variadas emigrações de europeus, sobretudo espanhóis, italianos e portugueses, mais os judeus, árabes, japoneses, chineses e coreanos, que também passaram a formar parte do espaço cultural latino-americano. nos globalizamos também como produtores culturais que tratamos de expandir ao mundo em foros como este ou nas indústrias propriamente, os circuitos massivos, nossa música, nossa foto, nossa literatura, mas também como emigrantes e como devedores nos globalizamos. Para que servem estas reuniões latino-americanas, ibero-americanas, globalizadas, foros, colóquios? (...) Por que temos tantas dificuldades em nos agrupar para negociar como latinoamericanos um lugar menos submisso, menos subordinado no mundo? Como podemos conseguir que nossas músicas, telenovelas sejam algo mais que uma tentativa de nos projetar no mundo que nos coloca à beira da globalização? O que significa globalizar-nos como emigrantes? O que (…) Nossas variações culturais não sempre encaixam umas poderemos fazer através, por exemplo, dos 37 milhões de nas outras. Como um cadáver primoroso, ao somar-se latino-americanos hispano-falantes que habitam os Estados 125 “Precisamos uma linguagem artística, cultural, científica, capaz de falar ou de fazer falar às ruínas de nossa modernidade truncofágica (...)” Unidos? Como esta intensificação das emigrações está truncofágica, certamente nossas identidades, mas em meio modificando de muitas maneiras a localização dos latino- dessa descomposição dos estilos fundadores de nossa americanos no mundo? modernidade (...) parece-me que tanto para as ciências Creio que vivemos numa etapa nova na que devemos nos encarregar também dos derrubamentos de nosso desenvolvimento urbano, dessas emigrações que às vezes se localizam dificilmente na informalidade, nos lugares aonde não há para descansar. (...) Precisamos uma linguagem artística, cultural, cientifica, capaz de falar ou de fazer falar às ruínas de nossa modernidade sociais como para os discursos da arte da fotografia, do teatro, da música, é importante não só afirmar e defender nossas identidades mas também pensar a problemática dos novos circuitos globalizados. Os dilemas da identidade desembocam hoje nas políticas da interculturalidade, e uma interculturalidade menos assimétrica, menos desigual, mais justa. Néstor Garcia Canclini, no debate Identidade e Autonomia: desenhando novas cartografias 126 “O nosso esforço para revitalizar as nossas tradições culturais não pode ser medíocre Uma língua estrangeira, especialmente uma língua global com as implicações imperialistas, pode nunca substituir o papel fundamental da língua nativa. Isso, contudo, não deve reduzir a importância de se aprender sobre as culturas de línguas estrangeiras. Essas línguas e culturas freqüentemente funcionam como o outro elemento no ato criativo, mas para cultivar a criatividade, sempre se começa com a própria tradição cultural. A melhor forma de coexistir com a globalização, eu sugeriria, é voltá-la contra si mesma ou, como dizemos em chinês, usar a sua própria espada para penetrar no seu escudo. Ou seja, no idioma nativo, usando o potencial ou usando o seu potencial inerente de heterogeneidade contra a sua tendência à homogeneidade. O nosso esforço para revitalizar as nossas tradições culturais não pode ser medíocre e, de forma alguma, submetido aos discursos esfarrapados de uma hibridização passiva. Hsiew Hao Liao, no debate Criando uma Cultura Global de Política O primeiro dado importante em relação aos povos indígenas é o dado da diversidade. Trabalhar e pensar sobre índio supõe, início de tudo, que as pessoas se abram para o fato da diversidade. Não existe índio genérico, não existe cultura indígena genérica, não existe uma psicologia indígena única. Nós temos que nos habituar a pensar com o dado da diversidade, com o dado de 500 anos de história que marcaram esses povos, construíram outros caminhos e outras perspectivas e tornaram-se ainda mais diferentes do que eles já eram inicialmente. (...) a realidade brasileira, é importante saber, ela inclui não um povo indígena mas 220 povos bastante diferenciados, mais de 180 línguas, é uma população bastante numerosa dispersa pelo Brasil afora. Quer dizer, quase em todos os estados da federação temos índios. (...) Efetivamente, as situações são muito variadas, tem desde populações indígenas que mantém língua, costumes, uma presença de vida diferenciada da sociedade nacional muito grande, enquanto outros que tem uma cultura indígena que se expressa na língua portuguesa, numa série de demandas políticas de ações concretas e que precisa ser respeitada em igual medida. Porque o fato de ela não ser exótica ou manifestamente diferente não quer dizer que ela não viva aquilo segundo a perspectiva autêntica e bastante importante pra eles mesmo. João Pacheco na mesa Raízes da Tradição (Presença Indígena no Fórum) 127 “Cultura só se salva, se defende sendo vivida, sendo efetivada, sendo conectada com os desejos e aspirações dos grupos sociais no presente.” Será que foram as zabumbas que inventaram o nordeste? Como se fossem zabumbas-galo tecendo manhãs em cada noite de forró? Como se, no amálgama de tempo e contratempo estivéssemos representando essa tensão permanente entre a obsessão do enraizamento e a condição inequívoca de desterro que nos constitui como brasil brasileiro? Tensão essa, cada vez mais característica de uma época pós, da qual talvez sejamos laboratório ímpar? Paulo Costa Lima, em discussão retirada do Fórum Virtual do Fórum Cultural Mundial Sermos nordestinos não nos proíbe nada, pelo contrário: deve nos estimular a promover sínteses meio inesperadas, pouco ortodoxas. Nordeste e artes marciais. Nordeste e ficção científica. Nordeste e zen-budismo. Nordeste e histórias em quadrinhos. Nordeste e surrealismo francês. Nordeste e música árabe. Nordeste e hip-hop. É direitinho o “tum-tá” de uma zabumba. Bráulio Tavares em discussão retirada do Fórum Virtual do Fórum Cultural Mundial Gostaria ainda me desentender sobre mais um aspecto que parece ser consensual nas discussões a respeito da arte e da cultura. A idéia de que a defesa e o reforço da identidade cultural, seja na nação, seja na região, seria um antídoto contra a dominação e o imperialismo cultural, será uma blindagem contra os processos de hegemonia cultural, de descaracterização da essência que teria uma cultura e dos processos de aculturação. O princípio da identidade trata de propor alguns procedimentos para isso como a busca das raízes culturais, o retorno a um tempo original ou a recusa da passagem do tempo com as suas mudanças e transformações, o fechamento da cultura às influências externas, estrangeiras que, para mim agem no sentido justamente oposto ao que se pretende, ou seja, tornam essa cultura frágil, pouco criativa, obsoleta e por isso mesmo pode ser devorada por outras mais ativas e criativas. Se pensamos a cultura como identidade e não como fluxos sociais e históricos de semiotização, em grande medida retiramos dela o que lhe dá vigor: a sua capacidade de conexão incessante com matérias e formas de expressão vinda de qualquer época e quaisquer espaços. A cultura que apenas repõe o que seriam suas raízes, matérias e formas culturais de outros tempos, se fragiliza por perder conexão com o tempo para o qual é produzida, não fará sentido para os contemporâneos, vai morrendo por baixa recepção. Ela produzirá monumentos de pedra que já não tem mais sentido para a maioria. Seria como aquelas famosas estátuas de heróis nacionais que habitam o centro das nossas praças e que só servem aos pombos, pois a maioria dos transeuntes que passam por lá não sabem sequer quem são aquelas criatutras, e o que dirá o motivo de seu heroísmo. Se um dia mandassem demolir essas estátuas quantos as defenderiam? Quantos sairiam em sua defesa? Cultura só se salva, se defende sendo vivida, sendo efetivada, 128 “A singularidade não é uma forma de ser, mas um estado passageiro, transitório.” sendo conectada com os desejos e aspirações dos grupos sociais no presente. A busca por um tempo original, primitivo, autêntico mal esconde a busca de se preservar uma dada configuração social, uma dada dominação, uma dada hierarquia social as quais esse tempo faz referência. Defender-se do estranho, se fechar para o diferente, já não será uma confissão de debilidade? Os índios antropófagos não temiam o guerreiro mais valente do grupo inimigo, por isso o comiam, por admiração, para incorporar a sua força. Uma cultura se torna forte quando é capaz de tomar o tonificante do elemento estranho que desafia à criatividade. Que a desafia a fazer com ele uma coisa nova, singular. As identidades são processos de captura das singularidades, elas tentam cristalizar, petrificar uma diferença externa. Eu estou achando engraçadíssimo nesse fórum as discussões que afirmam ao mesmo tempo identidade e diversidade, como se fosse possível essas duas coisas. Quer dizer, a identidade é a própria negação da diversidade, a não ser que você pense identidade para nação e diversidade no mundo. Então, cada nação fechada sem diversidade, com a identidade, convivendo com as diversidades do outro, é muito engraçado. Vamos defender a diversidade para fora e a falta de diversidade para dentro. Como se as culturas nacionais também não passassem por processos de homogeneização, de dominação, de aculturação tanto quanto as relações internacionais das culturas. Então, as identidades são processos de captura das singularidades, elas tentam cristalizar, petrificar uma diferença externa criando fronteiras, limites, cânones para as culturas, paralisando o fluxos de criação, de invenção, de circulação de elementos culturais de todos os tempos e todos os espaços, processos que nunca deixaram de ocorrer. Não foi a globalização que trouxe a circulação dos elementos culturais no mundo. A cultura circula desde que o homem habita a terra, os elementos culturais não respeitam fronteiras. A singularidade não é uma forma de ser, mas um estado passageiro, transitório. Não é imanente nem transcendente como a identidade; ela é fabricada, é histórica, e por isso precisa, de novo, ser produzida. Por isso penso que o sintetizador é uma ótima alegoria da produção cultural, pois não tem raízes, não pretende ser original, não teme todas as influências, a tudo incorpora. É um vassadouro de sons e de contradições. É necessário, no entanto, torná-lo criativo, e para isso abandonar a repetição e buscar a diferença. Desaprender, desobedecer e se desentender. Durval Muniz de Albuquerque - na mesa Zabumba, sintetizador - cordel O dia que tivermos uma visão monolítica de cultura, será o fim. Quem já sabe o que é arte faz outra coisa, curte, vende, comunica, analisa, ensina, produz e a até atrapalha. Aqui temos um paradoxo fundante, só os que não sabem o que é arte e cultura podem fazê-la. Paulo Lima na mesa Zabumba, sintetizador - cordel Eu propus a imagem do cordel como gesto criativo, tipo um símbolo talvez possível, para a cultura nordestina e para a cultura brasileira, por extensão, e até para a cultura do Terceiro Mundo de um modo geral. Isso me parece adequado, pelo fato de que vivemos necessariamente, não por nossa vontade, mas pelas condições objetivas de nossa realidade numa situação de sermos uma cultura de resposta. Nós não tomamos a iniciativa do mundo, somos uma economia dependente, 129 “Toda identidade, como se sabe, implica em seleção, em cortes e em arranjos de sentido que não são nem gratuitos nem inocentes.” países absorvedores de tecnologias alheias, no sentido mais amplo, inclusive a tecnologia conceitual. Os conceitos filosóficos e científicos com que lidamos também são absorvidos da Europa e dos Estados Unidos e nós não temos a iniciativa. No jargão dos jogadores de xadrez eu diria que nós não jogamos com as brancas, nós jogamos com as pretas. Nós sempre aguardamos o lance inicial do nosso oponente para que a gente possa responder. Não devemos desprezar uma tecnologia só porque não está mais servindo para o nosso concorrente. Quando não precisamos mais daquela tecnologia, talvez seja o momento de nós, que nunca tivemos aquela tecnologia ao nosso alcance, lançarmos mão dela. É a mesma coisa porque nas economias que vão na frente, que são as locomotivas da história existe muito essa idéia da substituição do novo pelo mais novo. Não é porque uma determinada tecnologia está sendo interessante para o andar de cima, que nós devemos correr sequiosamente atrás dela. E não é porque uma tecnologia não serve mais para o andar de cima que nós devemos rejeitá-la. Nós temos direito a tudo e também de escolher. Sempre que disserem que não possuímos a tecnologia, que não possuímos as condições, existe uma condição de fazer isso, nós é que não estamos enxergando porque queremos fazer algo nos moldes, com a tecnologia e orçamentos propostos pelo andar de cima, e nós achamos que não temos condição de fazer isso. Bráulio Tavares na mesa Zabumba, sintetizador - cordel O fato é que o debate sobre identidade e, particularmente, identidade brasileira, como sabemos, é bastante antigo e de certo modo tornou-se enfadonho e esgotado. Ele tem sido preponderantemente uma discussão acadêmica e política no sentido da grande política do Estado, não é? E mesmo as variantes artísticas dessa questão da identidade, não raro de sabor vanguardista, se tornaram ou anacrônicas ou inúteis. A questão, então, é aquela de distinguirmos de qual identidade estamos a falar e de que uso extensionamos fazer desta noção. O aspecto mais vulnerável de um debate sobre o que vem a ser compreendido como identidade brasileira é a sua pretensão de constituir-se numa narrativa de totalidade. A identidade não passa de um dispositivo como tal, como totalidade, evidentemente. Como dispositivo a serviço de interesses precisos, localizados e bem distantes da realidade mais imediata dos símbolos sociais de que se vale para se constituir como discurso abrangente. Foi sobre essa orientação que se construíram tantos discursos de brasilidade, tantos essencialismos culturais sobre o país. Disso já estamos bastante fartos, porém, nem todas as construções sociais de identidade se prestam aos usos clássicos dessas sínteses nacionalistas, mesmo que as identificações locais obedeçam ao processo seletivo dos símbolos, e, portanto, ao problema do poder exercido por quem possui prerrogativas de efetuar esta seleção, tratase, em todo o caso, de algo com conseqüências menos comprometedoras do que os artifícios utilizados para a definição da grande identidade do povo ou de nação. No melhor dos casos, as identificações localizadas oferecem uma possibilidade real de participação social diferenciada. Toda identidade, como se sabe, implica em seleção, em cortes e em arranjos de sentido que não são nem gratuitos nem inocentes. Mas essas pequenas identidades locais trazem a vantagem parcial de serem resultantes de uma 130 “Como água mole em pedra dura, as representações identitárias acabam por adquirir existência real ao se tornarem modelos para a ação.” lógica menos perversa ou autoritária que aquelas motivações em torno das quais muitas vezes os Estados-nações montam os símbolos que se quer eleger como a síntese do vasto oceano do que somos, de fato, individual ou coletivamente. No final das contas, como se diz, se o inferno está cheio de boas intenções, é mais digno arder sob o fogo de nossos próprios erros que sob aquele das ideologias totalizadoras e reducionistas. Ora, as identidades culturais são sempre circunstanciais, mesmo que aos mais desavisados possa parecer natural ou essencial. E é justamente essa dinâmica cotidiana que escapa às reificações sobre o que somos e, muito mais ainda, sobre o que deveríamos ser. Antes, porém, vale lembrar os discursos produzidos acerca do que seria uma pretensa identidade brasileira. Esses discursos têm assistido ao envelhecimento de seus pressupostos por razões externas e de longo alcance. Basta que aceitemos, para isso, e de qualquer modo que seja, o argumento de que há, em nossos dias e diante de nossos olhos, mudanças importantes nos diálogos interculturais em escala global. Isto tem provocado a fragmentação de estruturas de sentido sob as quais refletíamos, seja a idéia de nação, e, particularmente, a idéia de uma cultura nacional. Em contrapartida, as novas estratégias culturais são mobilizadas pelos grupos sociais para se autodefinirem e auto-sustentarem. Deste modo, novas montagens identitárias se sobrepõem no cenário mundial e pela via do mercado ganham força e legitimidade. Não esqueçamos que as identidades de grupos e territórios específicos são produzidas para dar a ver aquilo que se quer como auto-imagem, não sendo, assim, apenas projeções superficiais e meramente discursivas. Como água mole em pedra dura, as representações identitárias acabam por adquirir existência real ao se tornarem modelos para a ação. Neste ponto, podemos então pensar nas formas pelas quais os grupos podem tirar proveito prático de modo a não apenas assistirem passivamente a expropriação de alguns de seus traços culturais pelas ideologias de largo alcance sobre a idéia do que seja um país, um povo, uma nação. Mas, sobre as maneiras efetivas pelas quais esses grupos sociais ou étnicos podem participar ativamente do modo como desejam, como querem e como podem tomar lugar no mundo. Precisamos do elogio dos particularismos e das singularidades culturais, mas sem que isso implique na sonegação do diálogo entre as culturas. Somente assim, os imperativos unilaterais dos centros de referência e emissão de modismos em escala planetária poderão obter, em cada lugar, uma recepção altiva, crítica, mas não ingenuamente xenófoba. Em resumo, precisamos de educação sobre os temas culturais como ferramentas para democracia do acesso aos bens e o reconhecimento mais eqüitativo dos produtores destes bens culturais. Bruno César Cavalcanti na mesa Zabumba, sintetizador - cordel 131 O mundo de hoje não é mais preto e branco; é um mundo muito bem diferente. Resistindo à crença nas coisas erradas, deve-se tentar reconstruir a sua estratégia como uma forma de resistência. Isso significa abraçar aquilo a que se deve resistir, alterar a sua natureza, ao invés de negar a sua existência e força. Não podemos fingir que isso não existe. A questão principal é como manter uma atitude empresarial para se obter sustentabilidade e autonomia, e para fazer isso, é necessário demonstrar capacidade. Alvin Tan, no debate Criando uma Cultura Global de Política A linguagem é realmente um instrumento de percepção da nossa realidade, e influencia a forma como percebemos as coisas em nosso ambiente, a forma como pensamos, a forma como agimos e falamos, assim como a forma com que nos comportamos em um determinado contexto social; a linguagem é o sangue da alma, e à qual a verdade corre, e da qual cresce. Em quaisquer circunstâncias, é importante desenvolver e manter a linguagem e impedir que seja devastada por influências externas, como acontece quando uma cultura domina uma outra. Enas Mekawi, no debate Criando uma Cultura Global de Política Então temos certas dificuldades e eu acho que há dois elementos importantes para essa revitalização: que a língua seja respeitada e seja vista, sobre tudo pelas gerações jovens, como elemento de poder. María Helena Taberna, no debate Minorias e Suas Culturas: Direitos Humanos e Riquezas Humanas 132 “Se o ser humano não sentisse o olhar dos outros sobre ele, existiria sua identidade?” (...) Talvez um dia chegar a unir todas as nossas energias, não para reconstruir nossos povos, porque a história já nos separou, mas ao menos para nos reunir em volta daquilo que temos de mais forte que é a cultura e que nunca se pode sufocar. Para os que ficaram no continente, como nós, ou para os que descendem de nós, de que estamos tão longe, a única coisa que pudemos impor ao mundo até então, e que ninguém jamais nos tirará, é a força da nossa cultura. (...) a globalização, a mundialização, é ainda do nosso ponto de vista, no continente, um meio de nos esmagar. Para que nossas identidades culturais não sejam sufocadas, porque não se pôde, no correr dos séculos, fazê-lo. (...) os povos da África estão conscientes de que os povos da África da diáspora não deixaram morrer a cultura africana, que eles ergueram alto a flâmula da cultura africana. (...) em Camarões há muita cultura, e em toda a região de onde eu vim, isto é, a África Central, onde chove todos os meses do ano, há muita cultura, há muito canto, há muita dança, mas ninguém, no mundo inteiro, sabe que essa parte da África existe, como um grande buraco no meio da África, e quando se ouve falar dessa região do mundo de onde eu venho, fala-se de guerra, fala-se de paludismo e fala-se de aids, mas lá existem pessoas que riem, que dançam e que cantam também o dia inteiro para mostrar ao mundo que elas existem. A identidade (...) supõe uma alteridade. Ela se situa, obrigatoriamente ou quase, contra, ao lado de ou face ao outro. Se o ser humano não sentisse o olhar dos outros sobre ele, existiria sua identidade? Não é ela o conjunto de elementos que fazem com que um indivíduo se distinga dos outros membros de seu grupo e que este grupo se distinga dos demais grupos? A identidade só existe na diferença, sendo esta diferença ela própria definida com relação ao outro, o outro indispensável à existência mesma da identidade. Suprimi-lo é suprimir a si próprio. Daí, todos os ardis, os artifícios, as mentiras que estão ligados à afirmação de uma identidade. Este jogo com o outro, que é seu outro ele-mesmo, esta tentação de modificar o outro à sua própria imagem, é sabendo que não conseguiremos e que, tal como Golem, nos escapará e que será preciso destruí-lo. A identidade está na origem de todos os nossos conflitos, de todos os males, de todas as guerras, de tudo que há de malvado no homem e, ao mesmo tempo, ela é a fonte de sua criatividade e do que esta criatividade pode gerar de mais bonito no homem. Há alguns anos, nós procurávamos saber como conciliar a identidade e a abertura para o outro, a identidade e a luta contra o racismo: vã procura. É preciso nos render à evidência da evolução acelerada que sofreu o conceito de identidade e de sua associação, de sua assimilação aos conceitos de exclusão e do racismo. A defesa e a ilustração da identidade são atuais em qualquer lugar do mundo, ligadas às guerras, aos massacres, às purificações étnicas, aos genocídios. Mas por que esta evolução radical enquanto todos os indicadores passavam ao verde para anunciar um mundo mais livre, mais aberto, mais fraternal? (...) Ë que nós entramos na era do grande medo, houve, conscientemente ou inconscientemente, grande medo, medo, e a justo título, grande medo, medo de ver as identidades negadas, rejeitadas, niveladas, passadas no rolo compressor da uniformização, do que chamamos de globalização, medo de ver substituir regimes arbitrários e ditatoriais, regimes ainda mais injustos, mais cruéis e sem 133 “A defesa e a ilustração da identidade são atuais em qualquer lugar do mundo, ligadas às guerras, aos massacres, às purificações étnicas, aos genocídios.” piedade, porque respondem apenas à lei do dinheiro e do lucro, regimes que se instalam insidiosamente chamando à tona instintos primários do homem, os das necessidades a satisfazer, dos bens a adquirir, liberando assim seus outros instintos de conservação, de sobrevivência, e o aumento da violência sem limites jorrou como a lava de um vulcão e se abateu lá para onde o mercado queria se expandir, deixando para trás cinzas, mortos e lamentações. Esta reação das identidades ignoradas e desprezadas encontrou conforto nas mesmas armas da globalização, a midiatização e suas ferramentas. Separados de suas tradições e de suas raízes, os povos que se viam criticados em seu passado, sendo encorajados a ascender à modernidade, apertaram o passo e passaram da era atômica à era digital com uma facilidade desconcertante, e as ferramentas de comunicação que serviam para vender produtos vendem também ódio e ostracismo, crimes e racismo, vício e terrorismo. Estas identidades mortíferas foram elas mesmas afetadas, desarraigadas, foram elas mesmas digitalizadas. Estas identidades digitais e robóticas são, ademais, como Quasímodo, o corcunda de Notre-Dame, suicidas, porque elas têm uma vaga consciência do fato de que elas perderam tudo. Que resta a fazer? Como parar esta lava fervente que jorra de todos os vulcões, os antigos que estavam adormecidos e todos os novos que se criam dia após dia? O que podem fazer alguns intelectuais que mantiveram a cabeça fria neste pânico universal que deixou multidões transtornadas? A resposta que parece se impor: nada, não há nada a fazer, mas um grão de areia pode às vezes mudar o destino de um homem, de um povo, do mundo, é preciso encontrar este grão de areia, é preciso ser este grão de areia nas engrenagens da modernização conquistadora, desta besta imunda que provoca o grande medo, o fim do século XX. Em um livro de contos de fadas do terceiro milênio, a avó conta à neta a seguinte história: há muito tempo, os povos da terra se matavam entre si, cada um queria possuir o que o outro tinha e cada um queria impor sua lei aos outros, então vieram os poetas para lhes dizer: por que não vos enriquecer com vossas diferenças em vez de destruí-las? Que cada um fale sua língua, se vista à sua maneira, cante seu próprio canto, cultive suas tradições e respeite o outro. Os homens da terra escutaram os poetas e viveram na paz e harmonia e foram mais felizes e mais ricos. Por que os poetas, perguntou a neta. Porque eles são os únicos que não têm nada para vender, respondeu a avó. Elise M’Balla, na mesa Afro-globalização e no debate Política Pública Cultural e Investimento Privado em Cultura É preciso gerenciar a identidade, como enfocar este produto no mercado diverso, trazer as realidades próximas em detrimento das realidades globalizadas. É preciso preservar a “ecologia cultural” dos países e incluir as novas tecnologias. As redes digitais, radiodifusoras, devem ser permeáveis. Qualquer espaço para criação e difusão da produção cultural é viável, a criação pequena só existirá se a TV der acesso a ela. A ocupação cultural precisa ser autogestionável. Andrés Morte, na mesa Mudança nos Mercados Culturais Não devemos perder nossa identidade, nossas raízes, para que assim possamos preservar a integridade de nossas tradições. As purezas e a alma das formas tradicionais estão sendo perdidas ao tentarmos progredir para chegar a um estado que dizem ser “ideal”. Não devemos impor nossa visão do que é ideal para o outro, temos que ter respeito ao outro. Edric Ong, na mesa O Papel da Cultura e das Artes em Programas de Desenvolvimento 134 “A apropriação criativa, e não estamos falando de plágio, é a mesma essência de toda a cultura e a base da nossa identidade cultural” (...) Na realidade, o que eu vou tentar mostrar é que a cibercultura de alguma maneira potencializa e traz à tona o que ao meu ver seria a essência de todo o processo cultural e de todo o processo de formação de identidade: colaboração, intercâmbio, mútuas influências. Eu vou usar aqui a metáfora do copyleft. Para quem não sabe copyleft pode ser definido como processos de transformação de obras na qual o usuário pode adicionar informações e transformações desde que a obra continue livre para novas transformações. Vou usar essa metáfora para falar não da evolução, mas de algo que talvez possamos, com licença, falar de devolução, no sentido de uma volta ao que deveria ser e o que deve ser toda a dinâmica cultural. (...) A apropriação criativa, e não estamos falando de plágio, é a mesma essência de toda a cultura e a base da nossa identidade cultural. A identidade cultural não existiria sem intercâmbios diversos. A identidade pode ser definida assim como uma especificidade que emerge de mútuas influências: a música, a literatura, a economia, a ciência e a tecnologia são exemplos concretos de expressões culturais que se nutrem de fontes geográficas, ideológicas e sociais distintas. O que vamos tentar mostrar rapidamente aqui é que essa dinâmica da cultura está de alguma forma sendo colocada em marcha pelos fenômenos da cibercultura. Então não há propriedade privada nem no campo da cultura, nem no campo da identidade. Há algo sempre autoritário e violento na defesa de uma suposta, já que falsa, origem única, fonte absoluta, princípio gerador ou essencial. Os deuses estão nas pequenas coisas em relação, em rede, na cooperação, nas trocas. A riqueza de qualquer sociedade sempre está ligada à complexidade da sua cultura. Isto é, a força do seu poder criativo e empreendedor. A comunicação nesse sentido é a forma pela qual uma sociedade põe em marcha e intercambia o conjunto de seus empreendimentos, sejam eles artísticos, sociais, políticos, científicos. Uma cultura complexa é uma cultura plural, aberta, circulando livremente pelo corpo social. A criatividade está na originalidade da circulação de diversas formas, incluindo aí a riqueza artística e cultural, hábitos sociais, a criatividade simbólica e imaginária. A cibercultura, esse conjunto de processos tecnológicos, midiáticos e sociais emergentes a partir da década de 70 do século passado, tem enriquecido a diversidade cultural mundial e proporcionado formas de criatividade cultural local em meio ao global, supostamente homeogeneizante. Uma das principais características, eu estou falando de fatos, dessa cibercultura planetária é o compartilhamento de mensagens sobre os mais diversos formatos: arquivos, fotos, filmes, música, mensagens pessoais, construindo uma inteligência coletiva. A cibercultura está fazendo crescer a troca de mensagens das mais diversas, de fóruns e chats a weblogs, fotologs a mensagens de celular, dos jogos em linha à atividade acadêmica. Ela pode potencializar o conjunto do que há de mais rico e também de mais nefasto nas culturas humanas. A universidade, por exemplo, parece estar saindo agora da Idade Média. O ideal científico, que é a circulação do saber estruturado, a troca de informações, o encontro entre pesquisadores, está em marcha. A internet estaria assim potencializando a cultura científica em nível mundial. E esse crescimento só se dá pela influência mútua, a cibercultura nesse caso é fator de enriquecimento social e diversidade cultural. E não há aqui qualquer perspectiva ingênua ou otimista. Eu estou falando em termos quantitativos de uma forma informante, evidente em todas as estatísticas sobre 135 “A identidade, a diversidade e a riqueza de uma cultura só se estabelecem pelo contato e não pela interdição e isolamento” o mundo virtual: o maior uso da internet é para contato entre pessoas nas mais diversas formas. Assim, a cibercultura pode ser, em alguns setores já é, um fator de troca de conhecimentos, apropriação criativa, desenvolvimento de uma inteligência compartilhada. Aqui chamamos isso de cultura copyleft. (...) Vivemos assim a liberação do pólo de emissão. A emissão do ciberespaço não era para ser controlado centralmente. Todos podem emitir, diferentemente das mídias clássicas em que os poderes estão associados ao poder econômico e político, concessões de televisão, rádios e jornais. (...) O ciberespaço vem assim a pôr em xeque vários princípios da cultura de massa do século XX. Não estamos falando em substituição, já que ambas formas midiáticas vão coexistir, mas da emergência de um princípio em rede que está colocando sinergias em contato, incentivando a troca, a apropriação, buscando uma evolução inteligente do planeta. (...) Neste sentido podemos dizer que, com a emergência da cibercultura, a cultura popular passa por um processo de descentralização de circulação e de apropriação. As diversas manifestações da cultura da internet, e eu não vou entrar aqui nesses detalhes, mostram essa emergência de uma lógica rizomática. Como rede, e eu vou concluindo, os ciberespaços, entretanto, abertos a priori, tendo a sua forma determinada pelo tempo e pela dinâmica social, pela constituição complexa dos nós das redes. E a rede não é aqui um dispositivo fechado, mas aberto. Um lugar de passagem e de contato, crescendo em valor de acordo com o crescimento do número de seus utilizadores. Ela é construída pela dinâmica de suas interações não sendo assim a prioristicamente determinada. (...) A cultura não deve ser propriedade privada já que a sua riqueza se dá no livre intercâmbio de experiências, nas mútuas influências e na abertura ao que Habermas e Zimmel chamavam de mundo da vida. O que sabemos do mundo e de nós mesmos vem daquilo que herdamos dos outros, do que lemos, ouvimos, aprendemos, vivemos. A liberdade e a identidade não devem ser opostos, mas complementares. O emblema maior que é o movimento dos softwares livres e a idéia do copyleft para marcar a contemporaneidade. A identidade, a diversidade e a riqueza de uma cultura só se estabelecem pelo contato e não pela interdição e isolamento. Nossa cultural brasileira tem na sua identidade a prática cotidiana dessa apropriação criativa e acumulativa de diversas influências. Nossa identidade, se é que é possível falar no singular, só foi possível pela criação autêntica, a partir do uso de diversas influências européias, indígenas e africanas. Da diversidade criamos uma diferença. O mesmo princípio está hoje em andamento com a cibercultura. Acho que o grande conflito que se dá hoje é entre uma identidade contemporânea que deve dialogar entre a dissolução total do global e uma afirmação fechada sobre si mesmo que leva a grandes atrocidades. Esse talvez seja o desafio do século XX. E eu acho que o grande paradoxo está na relação entre duas frases. Uma do Rimbaud e outra do Sartre. O Rimbaud dizia “ge é anotre”, “eu é o outro”, então nós nos construímos pelo outro e, ao mesmo tempo, o inferno é o outro. Então não saímos muito dessa equação. André Lemos, no debate Evolução Cultural e a Dinâmica da Identidade e Tradição 136 “(...) e a vida pode ser tornar apaixonante, pois temos a impressão de que durante todo o dia temos possibilidades de escolha, outras maneiras de ser no mundo são possíveis” (...) eles decidiram fazer uma criação com uma parte dessas mulheres operárias durante toda a vida delas e ele montou uma criação com elas e é impressionante como em um tempo muito curto foi possível ver a transformação dessas mulheres que no começo sonhavam apenas em retornar à fábrica porque elas só tinham conhecido isso até então e elas queriam ter um trabalho que era a vida delas e como finalmente elas compreenderam que a vida delas podia ser muito mais que isso e agora nenhuma delas tem vontade de voltar para a fábrica. Elas entenderam que podiam sonhar, desejar, fazer outra coisa em suas vidas e é o que elas estão fazendo realmente. E tenho a impressão que tudo o que ocorre com todos esses artistas abre possibilidades de tomada de consciência muito rápidas. Não são tomadas de consciência que passam por longos caminhos teóricos, de repente as pessoas se vêem diferentes. As discussões que ocorreram desde o inicio desses encontros são muito importantes, a importância dos artistas nas escolas, no quotidiano das pessoas, pois todas essas coisas estão aí para nos tirar desse quotidiano, para nos dar outras perspectivas e a vida pode ser tornar apaixonante, pois temos a impressão de que durante todo o dia temos possibilidades de escolha, outras maneiras de ser no mundo são possíveis. É um pouco isso o coração de nossos sonhos, retomar o poder de nossa própria vida. E quando tivermos recuperado esse poder não deixaremos outra escolha a nossos governos senão a de mudar. Eles podem ser artistas plásticos, dançarinos coreógrafos, músicos, gente do teatro, eles se arriscam para criar situações nas quais eles vão encontrar pessoas para leválas a mudar os seus olhares sobre si próprias. Nos damos conta que quando trabalhamos muito com as crianças, até uma certa idade se está verdadeiramente conectado consigo mesmo, reage-se em relação ao que se sente de verdade e depois de um certo momento separa-se de seu sentimento e se prefere pensar sobre si mesmo e sobre as coisas da vida o que nos ensinam pensar, o que vamos encontrar em livros, o que vamos ouvir dizer mais do que sentimos nós mesmos. E em relação a esse lugar, talvez o posicionamento desses artistas, de forma intangível, seja que eles tentem reconectar as pessoas com elas mesmas para dar-lhes a força para pensar que eles têm muitas coisas nelas mesmas e que elas têm muito mais possibilidades do que elas acreditam. Fazette Bordage, na mesa Para Uma Rede Mundial de Artistas. 137 “Identidade como processo, não como ponto de partida ou chegada, mas como l ugar do diálogo, do reconhecimento de si e do outro.” Regina Novaes, no debate Procurando uma Identidade Cultural