risco, sociedade digital e cultura do medo
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risco, sociedade digital e cultura do medo
ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – RISCO, SOCIEDADE DIGITAL E CULTURA DO MEDO CANOAS, 2015 1120 CULTURA DO MEDO E VITIMIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE OS DADOS DO OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA DE CANOAS NO ANO DE 2014 Diego Oliveira Pereira1 Emerson Wendt2 Renata Almeida da Costa3 RESUMO: Os dados referentes à criminalidade no Brasil, veiculados pela imprensa, são tidos como significativos na produção da sensação social de (in)segurança. Expressões usadas pela mídia, como violência e vitimização, tendem a estar presentes no cotidiano da população de grandes centros e acabam influenciando a percepção social de (in)segurança. Nesse sentido, evidencia-se a tentativa de contingenciamento de riscos mediante demandas por produção e aplicação do Direito.Por esse motivo, faz-se necessária uma observação crítica dos dados estatísticos criminais de cidades como Canoas, buscando-se uma análise dialógica entre a sensação de insegurança com a realidade social contemporânea e a adoção (ou não) de políticas públicas compensatórias à produção do medo. Assim, o município de Canoas é o local de experimentação da investigação e a pesquisa procura, desde a definição teórica do que consistem “medo”, “insegurança” e suas “sensações” no território urbano, analisar dois estudos realizados pelo Observatório de Segurança Pública de Canoas. Para tanto, abordam-se: (a) a representatividade (social, cultural e econômica) dos dados estatísticos da criminalidade de Canoas em 2014; (b) o medo e a sensação de insegurança e a repercussão nos comportamentos humanos; e (c) a atuação dos gestores públicos, em especial o municipal, com o propósito de perscrutar criticamente a resposta do poder público às demandas sociais de (maior) segurança. 1 2 3 Graduando em Direito pelo Centro Universitário La Salle – UNILASALLE, bolsista em iniciação científica pela própria instituição (PROIC). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2143608046670140. Mestrando em Direito e Sociedade (Unilasalle, Canoas-RS). Graduado em Direito - pela Universidade Federal de Santa Maria (1997). Pós-graduado em Direito pela URI-Frederico Westphalen. Delegado de Polícia Civil no RS. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9475388941521093. Pós-Doutora pelo Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati (2015), Doutora em Direito pela UNISINOS (2010), Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002) e Graduada em Direito pela Universidade de Passo Fundo (1998). É professora do Centro Universitário La Salle – UNILASALLE, em Canoas/RS, nos cursos de Direito e Mestrado em Direito, e, também, da Escola de Direito da Universidade Anhembi Morumbi (LaureateInternationalUniversities), em São Paulo/SP.Lattes: http://lattes.cnpq.br/8431378002523967. 1121 PALAVRAS-CHAVE: Contingenciamento de riscos; Criminalidade; Cultura do Medo; Gestão Pública; Vitimização. 1 INTRODUÇÃO O espaço de convívio e interação do homem, a “polis”, passa constantemente por transmutações. Hodiernamente, as grandes metrópoles e as cidades são os núcleos da complexidade das relações sociais. Nesse sentido, os dados referentes à criminalidade no Brasil, veiculados pela imprensa, são tidos como significativos na produção da sensação social de (in)segurança. Expressões usadas pela mídia, como violência e vitimização, além da seletividade das notícias, tendem a estar presentes no cotidiano da população na busca de contingenciamentos aos riscos, i.e., por elas, procura-se controlar aquilo que pode ocorrer mas não necessariamente vai ocorrer, no afã de serem negadas as indeterminações derivadas desse risco não somente pela produção (legislativa) como também pela aplicação do Direito. Nessa senda, as concepções da contemporaneidade, sob as perspectivas de Zygmunt Bauman, por exemplo, atentam para as consequências das rápidas transformações, questionando as instituições de um Estado Democrático de Direito quanto às suas capacidades para resolução de conflitos. Por esse motivo, considerando a historiografia da cidade de Canoas, sua proposta de “enfrentamento” à criminalidade e a “criação” dos chamados “Territórios da Paz”, faz-se necessária uma observação crítica dos dados estatísticos criminais da maior cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, buscando-se uma análise dialógica entre a sensação de insegurança com a realidade social contemporânea e a adoção (ou não) de políticas compensatórias à produção do medo, com o propósito de verificar se essas decisões governamentais são ou não corretas, se são ou não inclusivas. Consideradas incomuns as características do município em relação às demais cidades gaúchas e, em especial, às localizadas na região metropolitana de Porto Alegre, é Canoas o local de experimentação da investigação e a 1122 pesquisa procura, desde a definição teórica do que consistem o “medo”, a “insegurança” e as suas “sensações” no território urbano, analisar dois estudos realizados pelo Observatório de Segurança Pública de Canoas. Por fim, aborda-se (a) a representatividade (social, cultural e econômica) dos dados estatísticos da criminalidade de Canoas em 2014, (b) medo e sensação de insegurança e a repercussão nos comportamentos humanos, e (c) a atuação dos gestores públicos, em especial o municipal, com o propósito de perscrutar criticamente a resposta do poder público às demandas sociais de (maior) segurança. A cidade de Canoas e seus Territórios de Paz: da construção de ideias ou ideais à exclusão social O povoamento da cidade de Canoas teve início no ano de 1874, quando fora inaugurado o primeiro trecho de estrada de ferro do Rio Grande do Sul, entre Porto Alegre e São Leopoldo (MAYER, 2009, p. 36). No entanto, foi apenas em 27 de junho de 1939 que Canoas é elevada à categoria de município. O crescimento demográfico de Canoas, nos anos seguintes à sua emancipação política, foi um fenômeno sem similar no RS. No decênio de 1950 a 1960, o crescimento populacional atingiu a cifra de 390%. Naquele período, a população de Canoas deu um salto demográfico, passando de 19.471 habitantes a 95.401. Segundo dados de um censo escolar realizado em 1964, a população seria de 117.000 habitantes (MAYER, 2009, p. 38). Logicamente, a hipertrofia demográfica acarretou uma série de problemas, principalmente na prestação de serviços e efetivação de obras públicas. Segundo Mayer, os números atestavam que a cidade de Canoas não conseguiu evoluir dentro dos parâmetros de uma autêntica concentração urbana. Já o inusitado surto de povoamento da década de 1940, promoveu uma verdadeira “desconcentração urbana”. Isto quer dizer que, naquele momento, o núcleo central da cidade não estava suficientemente consolidado, quanto ao social, ao político e ao urbano (MAYER, 2009, p. 60). É possível observar que a cidade de Canoas não teve o devido planejamento por parte da gestão pública no aspecto do desenvolvimento social, dado que o crescimento da cidade fora processado de forma desordenada e 1123 espalhada em dezenas de bairros e vilas, atingindo uma extensão de dez quilômetros ao longo da rodovia BR-116 (MAYER, 2009, p. 39). O povoamento local foi se processando com a abertura de dezenas de loteamentos sem as mínimas exigências urbanísticas, localizados em áreas alagadiças e banhados, resultando em graves problemas de ordem técnica, social, educacional e econômica e que vêm sobrecarregando todas as gerações das administrações municipais. Esse fenômeno ocorreu (a) devido ao Plano de Metas do Governo Federal e provocou o êxodo de milhares de famílias do interior do estado para Porto Alegre à procura de empregos e melhores rendas, e, (b) a localização de Canoas junto à capital gaúcha, que então surge como um promissor parque de trabalho. Ou seja, a cidade de Canoas passou a oferecer possibilidades de emprego, atraindo famílias de Porto Alegre com sérios problemas de moradia. A procura por terrenos foi tanta que fez surgir um grande número de loteamentos, muitos deles distantes do núcleo central. Formaram-se, assim, dezenas de núcleos sem interconvivência social, vivendo todos (e até o próprio centro), mais na órbita da capital do que da própria comunidade canoense (MAYER, 2009, p. 38-39). Esse adensamento, que na maioria das vezes ocorreu sem planejamento nem controle, se de um lado ofereceu a uma parcela da população acesso ao trabalho e, para alguns, melhores condições de vida, por outro lado causou um desequilíbrio urbano que não se conseguiu solucionar ainda, inclusive no que toca às questões ambientais (GRANZIERA, 2014, p. 630). Ainda durante a década de 1950 e 1960, quando o país era atingido pela “febre desenvolvimentista” do Plano de Metas4, a esperança para a resolução dos problemas do município era sua rápida industrialização e, assim, Canoas tornouse um dos municípios gaúchos com maior índice de desenvolvimento industrial e comercial. Atualmente, grandes empresas nacionais e multinacionais (como a Refinaria Alberto Pasqualini – Refap, Springer Carrier e AGCO do Brasil, além de 4 O Plano de Metas foi um programa de industrialização e modernização, de ordem federal, de autoria do então Presidente da República Juscelino Kubitschek. O plano contemplou o desenvolvimento do setor industrial nacional 1124 nomes fortes nos ramos de gás, metal-mecânico e elétrico) estabeleceram-se em Canoas. Esse extraordinário crescimento da cidade de Canoas, como polo industrial, comercial e de serviços marcava os discursos políticos, quando esses se referiam a Canoas como a “cidade que mais cresce no Estado”, que se encontrava de “braços abertos” para receber todo o empreendimento que trouxesse “progresso” (MAYER, 2009, p. 40). Por outro lado, os jornais ostentavam manchetes que refletiam a preocupação das lideranças e do conjunto da população perante essa rápida expansão urbana. Em suma, a cidade de Canoas teve, e ainda tem, seu “urbanismo ad hoc”5 à industrialização. É notadamente um território operário. 2 TERRITÓRIOS DE PAZ: GUAJUVIRAS E GRANDE MATHIAS VELHO A cidade de Canoas possui 17 bairros identificados no mapa urbano, no entanto, contabilizam-se outros 15 bairros, sendo que esses são subdivisões dos primeiros. Desses bairros identificados, dois deles ganham atenção do gestor municipal (e também do estadual) pelas altas taxas de incidência de delitos, são eles: Grande Mathias Velho (Bairros Mathias Velho e Harmonia) e Guajuviras. O aumento rápido da taxa de criminalidade é o motor principal da transformação dos comportamentos e atitudes públicos no desenvolvimento do aparato de controle do crime e da criminologia. Visto da perspectiva da exclusão, este aumento teve efeitos profundos (YOUNG, 2002, p. 37). Em vista disso, a administração municipal, com apoio das esferas estadual e federal, buscou através de dois projetos políticos o reestabelecimento da (sensação de) segurança pública através da, e consequente, redução das altas taxas de crimes que a cidade de Canoas apresenta. 5 Para o urbanista francês François Ascher, “o neourbanismo privilegia a negociação e o compromisso em detrimento da aplicação da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a solução ad hoc em detrimento da norma”. Em vez de regulação, negociações caso a caso, projeto a projeto, na concretização do que o urbanista nomeou como “urbanismo ad hoc” [...] ASCHER apud VAINER, Carlos. In: MARICATO, Ermínia. Quando a cidade vai às ruas. In: Cidades Rebeldes. Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 2013, p. 38. 1125 Em relação à legitimidade que assegura o Estado o poder/dever de proteger os cidadãos adotando discursos que tem por perspectiva a segurança pública, faz-se oportuna a lição de Foessel: El tema de la seguridad permite precisamente mantener ese discurso de identidad inmediata entre el pueblo y sus gobernantes: la seguridad es un objetivo que todos pueden compartir, y así se reconstruye una ficción de unidad de la que no está permitido dudar. […] Del lado de las instituciones, el deber de vigilancia produce legitimidad y constituye, por tanto, un cierto amparo retórico ante el sentimiento de impotencia pública” (FOESSEL, 2011, p. 28). Para tanto, estabeleceu-se a primeira iniciativa municipal. Denominada de Canoas Mais Segura6, o projeto é composto por profissionais da Fundação da Brigada Militar, Guarda Municipal e Secretaria Municipal de Transportes, tendo ainda o espelhamento da SIM (Sala Integrada de Monitoramento) e o 15º Batalhão da Brigada Militar. Segundo a gestão municipal, trata-se de um projeto estratégico que objetiva prevenir o crime e as violências, aperfeiçoar o controle de tráfego, oportunizar o zelo urbanístico, ampliar a vigilância ambiental, aperfeiçoar a fiscalização e implantação de projetos e programas7. Com semelhante propósito, efetivou-se o segundo programa, denominado “Territórios da Paz”. Inicialmente, um centro de pesquisa social aplicada à segurança pública de Canoas foi estruturado com recursos do Governo Federal, todavia, somente com a cooperação de outros órgãos governamentais e não governamentais que foi possível a instalação dos Territórios de Paz nos bairros de Mathias Velho e Guajuviras. O projeto objetiva a monitoração das ruas, através de câmeras que captam áudio e vídeo, e rígido policiamento em pontos considerados críticos dentro das comunidades. Além disso, o gestor público estabeleceu projetos sociais de integração comunitária para ambos os bairros a fim de compor, junto à ideia principal, a “ordem” nessas localidades. 6 Essa ação política objetivou agregar 192 centrais de alarmes, instaladas em prédios públicos, 204 câmeras de vídeo, das quais 120 encontram-se em vias públicas, áudio-monitoramento com 44 sensores instalados no Território de Paz Guajuviras. A Guarda Municipal da cidade é o principal gerenciador dessas ferramentas, tanto no atendimento aos alarmes, quanto no apoio as diversas solicitações advindas das tecnologias implantadas sempre em apoio às demais integrantes da SIM. 7 Dados disponíveis no sítio http://www.canoas.rs.gov.br/. 1126 Tratando-se de intervenção estatal direta sobre a comunidade, há que se observar os efeitos sobre o tecido social urbano a partir do ato de decisão da Administração municipal em criar os Territórios de Paz. São eles: (a) a estigmatização desses territórios (tornam-se estigmatizantes e estigmatizados), e (b) o fomento à segregação social no (e do) território urbano. Pelo primeiro, o fato do gestor estatal estar promovendo os dois bairros à condição de “especiais”, o imaginário social é conduzido à falácia do local a ser evitado, do local perigoso, do ambiente belicoso. Ao enfatizar-se o local como necessário à implantação da paz, reforça-se o estereótipo do que ele não é. Ou seja, pretendendo-se negar o conflito e o medo, evidencia-se aquele espaço como o "locus" dos mesmos (PEREIRA; COSTA, 2014). Assim, a cidade se torna a polis das barreiras, de inclusão e exclusão de indivíduos, embora deve-se destacar que tais barreiras não são apenas imposições de classes hierarquicamente mais abastadas. Os sistemas de exclusão, visíveis e invisíveis, são criados tanto pelos ricos como pelos setores precários (YOUNG, 2002, p. 38). Ainda sob a perspectiva de Young: A conduta atuarial de policiamento, zoneamento e prevenção diferenciais ajuda a manter esta situação; com efeito, na medida em que desloca o crime das áreas bem protegidas de classe média para as áreas menos protegidas das camadas mais baixas da classe trabalhadora, esta linha atuarial agrava o problema (HOPE apud YOUNG, 2002, p. 43). [...] Um processo de atuarial de exclusão e administração de riscos que se acopla a um mecanismo cultural de produzir bodes expiatórios: a criação de um outro desviante segregado espacial e socialmente (YOUNG, 2002, p. 43). Embora a existência de tais políticas auxilie na queda dos índices estatísticos de criminalidade dos bairros em questão, a sensação de medo e insegurança permanece incorporada a estas localidades. Isla (apud ROLLERI, 2006, p. 101) constata que “la sensación de inseguridad es más alta que la tasa de delito”. Afora isso, pode-se notar que tais medidas implicam tanto o isolamento sociomoral de uma categoria estigmatizada quanto a amputação sistemática do espaço e das oportunidades de vida de seus integrantes (WACQUANT, 2008, p. 75). 1127 Esses dois territórios são notoriamente áreas pobres8, consolidados, historicamente, sem os equipamentos urbanos adequados. Em outros termos, o Poder Público enfatiza a vigilância – monitoramento e segurança – em detrimento ao desenvolvimento do meio ambiente urbano acessível e saudável. A classe proletária que reside nos Territórios de Paz tem mais desvantagens porque ao mesmo tempo em que é o setor privilegiado para recrutamento da criminalidade tradicional e a principal vítima, é ainda o setor mais vitimado pelo aparato repressivo-punitivo e o menos protegido pelo setor judiciário, além de ser estigmatizado segundo a famosa associação pobreza/criminalidade (PASTANA, 2011). Nesse compasso, o Estado mostra a forma como pretende efetivar a segurança e a pacificação desses bairros. Em um primeiro momento implementase o monitoramento e o patrulhamento ostensivos, para, logo depois, criar políticas socioeducacionais e de integração comunitária (PEREIRA; COSTA, 2014). Dessa forma, pode-se entender que a partir da decisão do gestor municipal cria-se a imagem de território perigoso, indiretamente do território a ser evitado. Logo, produz-se um espaço estigmatizado e excluído. Esse efeito, por si só, tende a dificultar a efetivação das estratégias de integração urbana. 8 Segundo Wacquant, durante e depois da era progressista, o termo “gueto” se expandiu para designar o confinamento socioespacial dos recém-chegados à metrópole, especialmente as famílias de classes populares provenientes da Europa do sul e central, mas também os afroamericanos que fugiam do regime opressivo do Sul segrecionista e tentavam alcançar a “terra prometida” do Norte Industrial. Ou seja, esses lugares onde segregação, degradação do meio ambiente, superpopulação e miséria (associada a desemprego e instabilidade no emprego) se aliam para exacerbar os males urbanos e inibir a participação na vida societal (WACQUANT, 2008, p. 62). Embora os dois bairros em estudo não enquadram-se no conceito etno-racial de gueto, compartilham características semelhantes. Desse modo, descarta-se o jargão popular cujo rótulo identificam Mathias Velho e Guajuviras sendo os guetos da cidade de Canoas. 1128 3 O MEDO E A CULTURA À SUA VOLTA NO AMBIENTE SOCIAL DAS CIDADES Hodiernamente, o problema social da violência urbana está associado à criminalidade, ao passo que o medo9 generalizado do crime se incorporou ao modus vivendi da população urbana. Nesse contexto, é possível visualizar mudanças nos comportamentos e hábitos sociais. Um exemplo de tais transformações é a arquitetura das cidades, na qual é possível identificar, cada vez mais, a fragmentação do espaço urbano, evidenciada pelo cerramento dos imóveis de uso público e privado, pela construção de muros mais altos, pela imposição de cercas em volta de das edificações, pelo emprego de sistemas tecnológicos de segurança, dentre outros aparatos. A utilização de aparatos de proteção é, desse modo, feita sob o escopo de agregar mais segurança aos ambientes urbanos. Dito de outro modo, é nos grandes centros urbanos que a complexidade da vida contemporânea produz incerteza, uma vez que rotinas subjetivas e individuais são constantemente alteradas, ou pelos adventos tecnológicos e mercadológicos, oriundos da globalização, ou por influência de ordem estatal, ou, principalmente, pela percepção sensorial dos fatos e dos acontecimentos ao seu redor (PEREIRA; COSTA, 2014). Ademais, incerteza, indeterminação e risco são os elementos característicos da contemporaneidade; mais do que isso. São os elementos diferenciadores da sociedade contemporânea da sociedade moderna e/ou tradicional, por sua vez, pautada na certeza e na determinação. No contexto da incerteza característica da contemporaneidade, pode-se dizer que, como afirma Alba Zaluar (apud PASTANA, 2011), o aumento real, ou percebido como tal, da violência criminal tem consequências no plano simbólico, econômico e político. A incerteza leva à sensação de medo e de insegurança, e 9 Segundo Bauman (2008, p. 8), “Medo” é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que pode e do que não pode para fazê-la parar ou enfrenta-la, se cessá-la estiver além de nosso alcance”. 1129 essa, também tida como um aspecto da Cultura do Medo, apresenta-se como um problema multifacetário10. Geralmente as causas das sensações de medo e de insegurança, da forma como são percebidas, usualmente levam a população a associar o crime e seus acusados (BAUMAN, 2009, p. 16) a um determinado local (habitat dos criminosos). Em outras palavras, o imaginário social fia-se na falácia da conduta desviante11 ser oriunda de um local predeterminado devido à relação desse local com o crime. A ideia, como se percebe, não é nova (v. Ferri e sua Sociologia Criminal, v.g.) Esse entendimento popular é pautado na premissa de que se teme aquilo que não se pode controlar, e, chama-se essa incapacidade de controle de incompreensão; o que não se pode administrar é “desconhecido e assustador”. Portanto, medo é outro nome que se dá à indefensabilidade humana. O medo assombroso do que se pode e deve descrever como a esfera do desconhecido, do incompreensível e do incontrolável (BAUMAN, 2008, pag. 125). Wacquant (2008) acrescenta que, não obstante ao sentimento de medo pelos crimes e criminosos, há um fator agravante a essa sensação: a criminalização da miséria e da pobreza Logo, a pobreza, e o espaço urbano na qual se concentra, são alvos de estigmatização. Outro fator que aumenta a tensão causada pelas sensações de medo e de insegurança reside na percepção dos cidadãos sobre as normas de seguranças existentes no território em que habitam. Dessa forma, de acordo com o entendimento de Rolleri (2006), é inexorável questionar a capacidade de o Estado controlar e conter o crime e a violência: Esta sensación de inseguridad aparece en función de la percepción que tienen los ciudadanos sobre los estándares de seguridad que existen en el entorno que habitan. En la mente del ciudadano surge el 10 Barry Glassner enumera diversos fatores que, em suas pesquisas, revelam-se causadores de medo e insegurança à sociedade norte-americana, como dependentes químicos, mães jovens e solteiras, extrema pobreza, violência no transito, dentre outros. Desta forma, entende-se que a Cultura do Medo não tem um único elemento constitutivo e é composta por diversos fatores sociais (GLASSNER, 2003). 11 Para Émile Durkheim (1983) o comportamento desviante é saudável para a manutenção do convívio social, uma vez que a não aceitação de uma conduta – norma, comportamento –, por um indivíduo, ou por um coletivo, torna-o contrário à ordem social preestabelecida. 1130 cuestionamiento del estado en cuanto a su capacidad para controlar el delito y la violencia (ROLLERI, 2006, p. 77). Ora, se por um lado tem-se o próprio Estado afirmando a necessidade de pacificar determinados territórios, sendo esses territórios reconhecidamente operários, além de vítimas da violência – estatal/policial e urbana – são notórias as sequelas causadas pelos pânicos morais: a segregação e a exclusão social, a criminalização dos mais pobres e a desconfiança e o sentimento de desamparo das instituições políticas (PEREIRA; COSTA, 2014). 3.1 Seletividade Midiática do medo e da violência A estigmatização das classes operárias e sua aproximação com as práticas delituosas, conforme fomentado pela mídia e, em segundo plano, pelas adoções de medidas excludentes por parte da gestão municipal – políticas de segurança pública -, colabora negativamente para a crença da relação direta da pobreza com o crime. Nesse sentido, Glassner relata a forma como a mídia norte americana trata o assunto: Os jornalistas, os políticos e outros formadores de opinião fomentam o medo em relação a determinados grupos sociais, tanto por aquilo que apregoam como por aquilo que não divulgam. Consideramos o medo americano em relação aos negros. Esse medo se perpetua pela atenção excessiva dada aos perigos causados por uma pequena porcentagem de afro-americanos contra outras pessoas, assim como por uma relativa falta de atenção para os perigos que a própria maioria de negros enfrenta (GLASSNER, 2003, p. 193). Nesse quadro, ao associar, indevida e injustamente, a miséria e a pobreza à criminalidade, os pânicos morais que causam mal estar à sociedade, repousam sobre a excessiva vinculação de manchetes e noticiários, cujo teor tem por base os crimes e a violência, a dadas áreas do território urbano. Por óbvio, as consequências dessa fórmula resultam na sensação de medo a essas pessoas, a esses locais (PEREIRA; COSTA 2014). Em uma busca efetuada no sítio eletrônico do principal canal de mídia voltado à cidade de Canoas, ao pesquisar os nomes dos dois bairros supramencionados tem-se apenas notícias relacionadas a crimes, tais como: “Homem é morto com quatro tiros no Mathias Velho (01/09/2014)”. “Tentativa de homicídio no Guajuviras resulta em seis prisões e apreensões de armas 1131 (23/08/2014)”. “Brigada apreende um quilo de Crack no Guajuviras (22/08/2014)”. “Corpo encontrado no Mathias Velho (19/08/2014)”. “Brigada Militar apreende armas e munição no bairro Guajuviras (10/08/2014)”12. Muito embora as notícias que ganham destaque sejam essas, é necessário ressaltar que nem todas partilham conteúdo policial (PEREIRA; COSTA, 2014). Os problemas de infraestrutura também são levados a conhecimento da sociedade canoense: “Mathias Velho é o bairro mais afetado pela chuva, em Canoas (04/07/2014)”. “Moradores queixam-se da falta de sinalização no Mathias Velho (10/01/2014)”13. Nesse contexto, evidencia-se a importante participação dos veículos midiáticos na estimulação do imaginário coletivo frente aos problemas dessas localidades: a partir do momento em que se tornam repetitivas as notícias sobre um determinado tema, e nessa abordagem a problemática gira em torno da violência (e suas consequências) e da falta de estrutura, cria-se uma identidade (negativa) associada ao local. Portanto, da excessiva repetição, nasce o hábito de associar tais problemas como originários única e exclusivamente desses territórios. Isto é, não bastasse a violência estrutural e política, outro setor da sociedade – a mídia – apresenta-se como agente reativo, estimulador dessa estigmatização. Nessa senda, Rolleri, sustenta que as informações veiculadas pela mídia exercem grande influencia na rotina das pessoas: Como dijimos, después de ver y escuchar reiteradamente, por televisión, la cantidad de robos cometidos en la misma ciudad, la persona que sale de su casa lo hará con mayor precaución y cuidado que si no hubiera encendido el televisor. Todo esto tiene las más diversas consecuencias colaterales, como el cambio en la utilización de medios de transporte, la suspensión o el cambio de horario de encuentros, la compra de elementos para protección (ROLLERI, 2006, p. 147). Rolleri (2006, p. 128) ainda alerta que “la violencia que aflora al dominio público es sólo una fracción de la que se vive en ese submundo, y se hace 12 Jornal Diário de Canoas, pesquisa disponível no http://www.diariodecanoas.com.br/index.php?id=/busca/index.php&request=1, resultados acesso em 07/07/2014, às 16h56min. 13 Jornal Diário de Canoas, pesquisa disponível no http://www.diariodecanoas.com.br/index.php?id=/busca/index.php&request=1, resultados acesso em 07/07/2014, às 16h56min. link do link do 1132 conocida por la población en general debido a los hechos delictivos denunciados o mediatizados”. Perante o exposto, é possível notar que nos discursos públicos, os medos proliferam por meio de um processo de troca. A cultura do medo cresce cada vez mediante correntes de temores e contra temores (GLASSNER, 2003, p. 39). Dizendo de outro modo, a fim de assegurar a segurança perdida na contemporaneidade frente a superveniência da categoria do risco, produz-se mais insegurança. Ou seja, a retroalimentação do medo se faz mediante o processo circular de comunicação das próprias contingências. E, portanto, o emprego de mais Direito ou de mais “segurança” finda por se configurar em um mecanismo de produção de mais insegurança. Eis aí uma das vertentes do paradoxo da cultura e da sociedade atuais. 4 OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA DE CANOAS – FUNÇÃO E ATIVIDADES14 Instituído pela da Lei Municipal (de Canoas) nº 5386, de 19 de maio de 2009, o Observatório de Segurança Pública de Canoas iniciou suas atividades em maio de 2010. Um Centro de Pesquisa Social Aplicada à Segurança Pública de Canoas foi implementado, inicialmente, com recursos advindos do Programa Nacional de Segurança Pública (PRONASCI), da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, e da Prefeitura Municipal de Canoas. Posteriormente, tornou-se política pública mediante sua institucionalização, através da referida lei local, com o objetivo de qualificar e aperfeiçoar as atividades realizadas pelo Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGI-M), possibilitando um acompanhamento no processo de gestão da segurança pública do município, facilitando o feedback para os gestores (PREFEITURA DE CANOAS, 2015). 14 Os autores do texto agradecem a Eduardo Mattos (Coordenador), Thiago Magnus e Cátia Agne Vanzellotti (Sociólogos),Daniel Montenegro (Geógrafo), Jardel Fischer (Antropólogo) e Eliége Teixeira (Guarda Municipal), integrantes do Observatório de Segurança Pública de Canoas, além do Secretário de Segurança Pública de Canoas, Carlos Adriano Klafke dos Santos,pelo desenvolvimento da pesquisa empírica que embasa este trabalho e, sobremaneira, pela interlocução franca, simples e acessível, sem a qual o presente texto não seria possível. 1133 Atualmente, o Observatório sistematiza e coordena os indicadores para avaliar processualmente a política de segurança pública planejada e executada na cidade de Canoas, conforme referido, a partir de três programas estratégicos: “Guarda Comunitária”, “Canoas Mais Segura” e “Territórios de Paz”, sendo os dois últimos já citados neste estudo. Nesse processo de sistematizar e organizar os indicadores, avaliando a política de segurança pública realizada em Canoas, o Observatório divulgou, respectivamente em 2014 e 2015, a “Segunda Pesquisa de Vitimização Canoas” (MATTOS, 2014) e o relatório anual sobre “Indicadores Criminais 2014” (MATTOS, 2015). A análise dos dados coletados permite constatar como a sociedade se vê frente ao contexto da insegurança urbana e quais os locais a temer, bem como o quanto confia nos órgãos públicos relacionados à segurança pública. Além disso, é possível correlacionar essa observação social sobre a segurança com os dados estatísticos oficiais. 4.1 Pesquisa de Vitimização em Canoas Na primeira pesquisa de vitimização realizada em Canoas, no ano de 2009, verificou-se que 63% dos crimes, em geral, não eram registrados, já que a sensação era de que registrar não daria em nada mesmo, segundo 65,5% dos entrevistados. Naquela pesquisa, 79,2% dos entrevistados, em média, consideravam a Polícia Civil e a Brigada Militar ineficientes ou muito ineficientes. Então, ficou evidenciado que o não registro de ocorrência têm relação com a incerteza de que as polícias não teriam capacidade de resolver os problemas (MATTOS, 2014, p. 3-6). Já a segunda pesquisa, com dados coletados em 2013 e divulgada em 2014 (MATTOS, 2014), revelou que a segurança é o segundo assunto que mais preocupa os entrevistados (29,6%), mas que somados aos assuntos que têm relação com o tema “segurança”, como drogas e tráfico (11,8%) e corrupção (3,2%), chega-se a um nível de preocupação próximo à metade dos entrevistados (44,6%). 1134 No aspecto de vitimização da população, quase 1 a cada 5 (19,2%) moradores da cidade já foram vítimas de algum crime ou violência, sendo o número de vítimas maior na Área Integrada de Segurança Pública (AISP) que abrange bairros outros que não os Territórios da Paz.15 Esse dado, assim visualizado, permite refletir que a eleição do território identificado como “da Paz” considera não o local onde os fatos ilícitos ocorrem, mas uma região de moradia dos supostos autores desses delitos. Em sendo assim, o fator “estigmatização” do local estaria intimamente associado ao fator “estigmatização” do morador. Em relação aos delitos mais citados, o grande percentual gira em torno dos delitos contra o patrimônio (furtos e roubos, seja de residência, veículos, acessórios, na rua etc.), sendo que somente 46% das vítimas registraram ocorrências, havendo uma taxa de subnotificação de 54%. Os motivos relativos à subnotificação têm a ver com a concepção de "perda de tempo" (52,8%), mas também se relaciona com o medo de denunciar (4% dos homens e 11% das mulheres têm medo de encaminhar o registro), não ter prova (6,5%) e considerar que a polícia não cuida desse tipo de problema (7,4%). Nesse panorama, pode-se afirmar que a baixa notificação dos delitos revela, sobremaneira, o desinteresse individual na própria persecução formal dos ilícitos. Ao mesmo tempo, não se pode descuidar de um fator – na pesquisa não explorado, mas que aqui surge da reflexão como conclusão possível – que contribuíra para as subnotificações: a burocratização. Ou seja, a ausência de tempo alegada pelos entrevistados estaria intimamente relacionada à necessidade de tempo para o procedimento. O que, por si só, faria concluir que as ações de notificação de ocorrências são compreendidas pelos usuários do serviço de segurança pública como algo pouco simples ou de alta complexidade. De qualquer sorte, o fator “medo diante do próprio ilícito não é a escusa para a ausência de provocação de ações concretas 15 Canoas possui quatro Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs). A AISP 1 é composta pelos Bairros: Industrial, São Luis, Mathias Velho, Harmonia e Centro, ambiente em que, segundo os entrevistados, 20,5% já foram vítimas de crimes; na AISP 2, que é composta pelos bairros Nossa Senhora das Graças e Niterói, há o segundo menor percentual, de 16,4% entrevistados que foram vítimas de delitos; a AISP 3, composta pelos bairros Brigadeira, São José, Igara, Guajuviras, Marechal Rondon, Estância Velha e Olaria, tem o menor percentual de vitimização, tendo 12,4% dos entrevistados sido vítimas de delitos. O maior índice de vítimas, de 34,6% dos entrevistados, está na AISP 4, composta pelos bairros Mato Grande, Fátima, Ilha das Garças e Rio Branco. 1135 de repressão e de persecução punitiva estatais. O medo, assim, se evidencia como geral e não especifico – ter-se-ia medo da criminalidade (no geral), mas não do crime ou do “criminoso” (na espécie). Em contrapartida, na relação com as polícias, em uma pontuação de 1 a 5, a eficiência das instituições foi avaliada. A Brigada Militar foi considerada ineficiente por 42% e eficiente por 37,5% dos entrevistados, enquanto que a Polícia Civil teve o índice de ineficiência de 40% e o de eficiência de 36,4%. Quanto à violência, a Brigada Militar foi considerada assim por 40,9% dos entrevistados e a Polícia Civil por 25,1% dos respondentes. Um em cada 5 entrevistados foi abordado na rua pelas polícias, sendo que a maioria foi de homens e, dentre os jovens entre 16 e 24 anos, 40% considerou a abordagem agressiva. Esses aspectos demonstram, em função dos percentuais alcançados, uma certa relatividade, um descrédito da população canoense para com o sistema policial, seja ele preventivo (ostensivo), seja ele repressivo (investigativo. Sequencialmente, quanto à sensação de segurança, ao serem questionados o quanto a "minha vida foi afetada pela criminalidade", 74,9% dos entrevistados respondeu que discordava dessa afirmativa. No entanto, quanto à outra afirmativa, "me sinto seguro em Canoas", embora a maioria concorde, 52%, há uma discordância de 35,9% dos entrevistados. Relativamente à mesma afirmativa, porém no âmbito dos bairros ("me sinto seguro no meu bairro"), há uma concordância de 59,1% e discordância de 16,1%, percebendo-se uma maior segurança no local de habitação que propriamente no contexto citadino. Assim, embora 70% dos crimes ocorrerem no bairro, na rua ou na residência, a sensação de segurança experimentada pelos respondentes quanto aos bairros é maior do que no contexto da cidade, ou seja, o "bairro é percebido como mais seguro que a cidade" (MATTOS, 2014, p. 30). A pesquisa também revelou um alto índice de aceitação pública para as câmeras de monitoramento (56,3%), sistema de áudio monitoramento (39,2%) e os territórios da paz (37,2%). Por outro lado, também demonstrou desconhecimento da população acerca de medidas importantes de presença dos órgãos públicos no ambiente urbano, como os Núcleos de Policiamento 1136 Comunitário (desconhecimento de 55,2% dos entrevistados), Projetos Sociais (desconhecimento de 54,2% dos entrevistados) e Ronda Escolar (desconhecimento de 50,7% dos entrevistados), embora que 82,1% considerem, pelo menos em parte, os projetos sociais relevantes na prevenção da violência. Entre as causas principais da criminalidade, segundo os entrevistados, está o uso e o tráfico de drogas. A falta de estrutura familiar, a desigualdade social e a pobreza, também são pontuadas como causas dos crimes. Outros fatores, como desemprego, falta de investimento em segurança, impunidade, embora sejam citados, não se demonstram são tão relevantes para o incremento da criminalidade. Um dos aspectos importantes da pesquisa foi pontuar, segundo a população entrevistada, os responsáveis pela segurança, demonstrando-se o protagonismo do município na área de segurança pública, hoje responsabilidade dos Estados federados e do Governo Federal. Assim, 72% dos entrevistados entendem que a responsabilidade por garantir a segurança pública é do Prefeito e 36,4% do Secretário de Segurança Municipal, enquanto que as Polícias (de caráter estadual), ficam com 40,6% e o governador com 31,8% "das responsabilidades". Ou seja, pode-se por isso, cogitar que indiretamente há uma crítica ao modelo estadual de resolver os problemas na área da segurança pública, em locais específicos, como as cidades com características próprias. Por outro lado, quando questionados sobre as medidas adequadas para diminuir a criminalidade, 3 a cada 10 pessoas afirmaram que colocariam mais policiais na rua e 2 em cada 10 combateria o tráfico de drogas, sendo que apenas 10,2% melhoraria as condições de educação e aumentaria as condições de emprego e/ou criaria programas de inclusão social e diminuição da pobreza. Esses resultados, uma vez mais, revelam o paradoxo pois, ao mesmo tempo em que discursos na área da segurança pública são produzidos considerando o “medo” da criminalidade como estandarte, a opinião individualizada dos entrevistados populares não revela o interesse majoritário no policiamento ostensivo, nemmesmo, na criminalização (aqui assim entendida frente ao emprego da expressão “combate” – sendo essa a principal política estatal para o controle da questão das drogas) das condutas associadas ao comércio e/ou uso 1137 de drogas ilícitas. Ao contrário. A manifestação popular foi no sentido majoritário do reforço de políticas públicas outras que não as criminais e/ou as policialescas. Ainda, quanto ao combate aos delitos, dentre os crimes apontados como os que devem ser mais reprimidos estão os homicídios (24,9%) e furtos/roubos de rua (19,9%), embora existam outros indicadores que tenham relação com os crimes contra o patrimônio que, somados, têm uma relevância importante. Tais números, por seu turno, não impressionam. Afinal, as modalidades ilícitas apresentadas (homicídios, furtos/roubos) correspondem aos modelos tradicionais da “criminalidade de massas” e, dessa forma, são espécies tradicionalmente invocadas como objeto do controle penal. Desse modo, tais delitos, nem mesmo nos processos e/ou debates minimalistas ou abolicionistas figurariam. Pois bem. A despeito das reflexões que aqui se avolumam, a gestão municipal passou a entender como reais as melhorias na área da segurança pública. Logo, as iniciativas denominadas Territórios de Paz, Projetos Sociais, Policiamento Comunitária, Ronda Escolar, Áudio monitoramento e Câmeras, têm sido evidenciadas como efetivas (quiçá como políticas públicas) para o estabelecimento de expectativas sociais (i.e., distribuição de segurança). 2.2 Dados estatísticos de indicadores criminais de Canoas no ano de 2014 A pesquisa quanto aos "Indicadores Criminais 2014" (MATTOS, 2015) reuniu informações de três principais indicadores (aqui empregados como paradigmas). Segundo o relatório, todos foram acompanhados periodicamente pelo Observatório de Segurança Pública de Canoas: a) furto de veículos; b) roubo de veículos; c) mortes violentas, e, ainda, estudo sobre os autores de homicídios. Quanto ao furto e roubo de veículos, o estudo foi relacionado com a frota de veículos no município de Canoas, que a partir de 2007 teve um incremento, em média, de 10 mil veículos por ano. Em 10 anos a frota de veículos de Canoas cresceu 92,8%, possuindo, em 2014, 186 mil veículos. Sobre esse dado, a taxa de roubos e furtos, por cada 10 mil veículos, é, respectivamente, de 48,2% e 39,3%. 1138 O estudo traz um comparativo dos casos de roubo de veículos nos últimos oito anos, incluindo 2014, permanecendo a variação dos casos não inferior a 625 (2013) e não superior a 1127 (2009) registros por ano. Segundo o levantamento, junto aos órgãos oficiais, considerando os bairros com mais ocorrências de roubos de veículos no ano de 2014, as faixas horárias mais recorrentes são: entre as 18h e 19h59min, entre as 20h e 21h59min, e entre as 22h e 23h59min, somando 56% dos casos de roubos ocorridos nos bairros com maior número de ocorrências16, nenhum deles sendo integrante dos Territórios de Paz. Há, também, um comparativo dos casos de furto de veículos no mesmo período, permanecendo a variação entre 537 e 835 casos noticiados (registrados em delegacias de polícia) entre os anos de 2007 e 2014. Ambos os estudos apontam os meses de maior incidência de roubos e furtos de veículos nos últimos três anos, porém a variação não é grande, com exceção do aumento dos furtos de veículos nos meses finais de 2014. Os mapas de hotspots de roubos e furtos de veículos17, integrados ao estudo e divididos por faixas horárias, ajudam a delimitar os locais de maior incidência de ambos delitos. Percebe-se a baixa incidência de casos de furtos e roubos de veículos registrados nas áreas dos Territórios de Paz, caso comparado aos locais centrais da cidade. Quanto ao indicador "mortes violentas", a metodologia aplicada tem relação com o agregado de crimes violentos com resultado morte em 2014 comparado com anos anteriores. Neste agregado estão fatos como (a) encontros de cadáver, (b) latrocínios e (c) mortes por confrontos com a polícia, (d) falecimentos por lesões. Neste indicador, o comparativo é feito a partir de 2009, que teve o maior índice de casos (154), não sendo menor do que 112 casos em 2011, e, no caso de 2014 (com 137 casos), a maioria se refere a homicídio (91,2%). Além disso, o estudo é também voltado aos comparativos de meses e semestres desses anos analisados e, embora não se tenha ciência do motivo de tais análises 16 Os bairros com um maior número de ocorrências policiais registradas em 2014, nos órgãos da Polícia Civil, são Marechal Rondon, Nossa Senhora das Graças, Niterói, Centro e São José. 17 Em uma das traduções possíveis, hotspots ou hot spots significa locais quentes ou áreas geográficas específicas consideradas zonas críticas, no caso de incidência acentuada de delitos. 1139 comparativas, percebe-se que ela não tem uma relevância específica no contexto do estudo, ou melhor: sua finalidade não está latente e perceptível. Somente relativamente a 2014 há um estudo pormenorizado sobre o percentual de vítimas homens (95,6%) e mulheres (3,6%). Embora também não esteja claro o motivo de tal parcela de estudo, crê-se que tenha referência ao aumento constante da atenção social da mídia aos casos de feminicídio que, inclusive, gerou a aprovação da Lei nº 13.104/2015, prevendo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, portanto inserindo inciso VI no art. 121, § 2º, do Código Penal, quando o delito é cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Tal lei também alterou o art. 1º da Lei nº 8.072/1990, incluindo o feminicídio no rol dos crimes hediondos. O estudo aponta que a maioria das vítimas de 2014 (104) era branca (75,9%), sendo 20,4% delas negra ou parda (28 vítimas). Do total de vítimas, 53% tinham até 29 anos, porém 86,9% delas possuíam antecedentes, a maioria por tráfico de drogas (26,3%) ou por homicídio (16,4%). A maioria dos casos ocorreu nos bairros Guajuviras (19,7%), Harmonia (19%), Mathias Velho (18,2%), Rio Branco (10,9%) e Mato Grande (6,6%), estando os demais bairros com menor índice. Assim, tem-se os Territórios da Paz com o número de maior incidência dos casos de mortes violentas: 56,9%. Além disso, 83,2% das vítimas residia em Canoas e 46,7% morreu no próprio bairro de residência, embora apenas 21,2% tenha morrido no próprio local de domicílio. Assim, o perfil dominante das vítimas são homens, brancos, jovens e envolvidos com o tráfico de drogas. Outros aspectos de relevância apontados, portanto, são: (a) a relação com o local de moradia e (b) o já envolvimento prévio com outros delitos. Esta circunstância é reforçada pelo fato de os autores das mortes terem acesso à arma de fogo, já que do total de mortes violentas em 2014, 87,5% (120 casos) tiveram arma(s) de fogo como meio empregado. Se por um lado se traça um perfil estigmatizante da vítima, por outro não há dados objetivos acerca do perfil dos autores. Na análise do histórico dos casos de mortes violentas nos Territórios de Paz Guajuviras e Grande Mathias Velho, a partir de 2009, verificou-se que 2014, em relação a 2013, houve um aumento de 45,7% dos casos no TP Grande 1140 Mathias Velho, enquanto que o percentual do TP Guajuviras seguiu a tendência de aumento da cidade de Canoas: Considerando o acumulado de mortes violentas em Canoas e nos TPsGuajuviras e Grande Mathias entre Janeiro e Dezembro de 2014, as faixas horárias mais recorrentes são aquelas compreendidas entre as 20h e as 05:59h. Destaca-se, ainda, a faixa entre 18h e 19:59h na Grande Mathias. (OBSERVATÓRIO, 2015, p. 36). Destaque, assim, para o TP Grande Mathias Velho, onde 72,6% dos casos de mortes violentas ocorreram entre às 18h e 05h59min, depreendendo-se que os criminosos procuram agir em horários em que há maior facilidade de locomoção e também maior dificuldade de identificação, seja por testemunho, seja por câmeras de vídeo, já que o período da noite prejudica o uso da tecnologia e dificulta a visão humana. O estudo aponta que após o desencadeamento de Operações policiais (maio de 2009, novembro de 2010 e maio de 2013) há uma redução nos casos de mortes violentas (MATTOS, 2015, p. 39). No entanto, não existem dados concretos sobre essa afirmação nem bases capazes de demonstrar isso, havendo necessidade de estudo específico para confirmar essa afirmação. Quanto ao perfil dos autores de homicídios, 98% são do sexo masculino. Também, a grande maioria é de cor branca (79%), sendo autores negros e mulatos 19%, possuindo uma média de 30 anos de idade. Praticamente um a cada 10 autores foram também vítimas de homicídio. Dos 88 autores de homicídio com registros de residência em Canoas, 72,7% têm domicílio nos Territórios de Paz, o que caracteriza esses locais não como espaços de inserção de segurança e tranquilidade, mas de exclusão e propagação de mais violência. Aproximadamente 7 em cada 10 autores de homicídios já tem passagem pelo sistema prisional e a grande maioria possui antecedentes policiais que vão além dos casos de homicídios, como arma de fogo, ameaças, lesão corporal, roubo, posse e tráfico de entorpecentes, dano, lesão corporal e vias de fato, receptação, dentre outros. Finalmente, o estudo pontua a alta incidência de presença de arma de fogo nos indicadores analisados (MATTOS, 2015, p. 45): 87,5% das vítimas por arma de fogo; 92,5% dos roubos de veículo (2º semestre) com presença de arma de fogo. 1141 Assim, percebe-se que a iniciativa do Observatório de Violência do município de Canoas tem o objetivo de, conhecendo as percepções sociais quanto à sensação de segurança e as políticas públicas municipais, validar as escolhas por determinadas ações sociais e culturais e afirmar como corretas as decisões municipais, dos seus gestores, não avaliando ou contextualizando as ambiências como formas de exclusão ou inclusão, mas, sim como áreas de atenção governamental. Em suma, pode-se dizer que indiscutível é o mérito da pesquisa quanto o método empregado (empírico) e o investimento da gestão pública no aparelhamento de um setor especializado para o cumprimento dessa tarefa inovadora, com a contratação e manutenção de recursos humanos capacitados (sociólogos, geógrafos e antropólogos) para tanto. Contudo, sob a perspectiva da complexidade social e dos fatores criminológicos, carece o levantamento de dados e suas conclusões de maior interrelação. Especialmente no que atine à abordagem da estigmatização social (aqui podendo ser entendida amplamente, em diversas acepções: individual, coletiva e/ou espacial). Ao mesmo tempo, as conclusões alcançadas pelo relatório final não estabelecem vetores de solução e de busca por mais segurança que não os já estabelecidos no município, embora algumas ações sejam mais desconhecidas que outras18, o que, por si só, inebria as razões de ser de todo o levantamento. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização da presente reflexão acadêmica, e a comprovação das hipóteses de pesquisa aventadas pelo Grupo Criminalização, Cultura e Urbanização do Unilasalle, foi possível graças à existência no Município de Canoas, no estado do Rio Grande do Sul, de um Observatório de Segurança Pública. Como se verificou, o órgão, criado e mantido pelo gestor público municipal, emprega o método empírico para a coleta de dados acerca da violência 18 Conforme já pontuado, os Núcleos de Policiamento Comunitário são desconhecidos por 55,2% dos entrevistados, os Projetos Sociais são desconhecidos por 54,2% dos entrevistados, e, a Ronda Escolar é desconhecida por 50,7% das pessoas entrevistadas. 1142 e da criminalidade na região. Ademais, percebeu-se que há o emprego direto e permanente de equipe profissional altamente capacitada (profissionais da Sociologia, Geografia e Antropologia) para a criação, aplicação e interpretação dos instrumentos de coleta dos dados. Instigados à compreensão dos dados apresentados pelo Observatório de Segurança Pública do Município de Canoas, os signatários do presente texto, realizaram, primeiramente, um estudo teórico do espaço urbano. Nesse compasso, pretendeu-se identificar os fenômenos sociais que influenciam o modus vivendi da população. Isto é, buscou-se perceber como a população se comporta, trata e reage à criminalidade na contemporaneidade. Ademais, o fenômeno em comento tem especial atenção da gestão municipal. Em outras palavras, o combate ao desvio, para o administrador público, é uma clara preocupação; todavia, as iniciativas políticas que visam o enfrentamento ao desvio, proporcionam um efeito antagônico para qual foram criadas. Desse modo, percebeu-se que o projeto Territórios de Paz, para o gestor municipal, apresenta-se comouma política de sucesso traduzida em números: índices e estatísticas comprovam que, a partir do surgimento dos referidos “territórios”, as condutas desviantes de maior incidência no espaço urbano de Canoas diminuíram, no entanto, a ideia de transformar bairros em “Territórios de Paz” transmite à população o efeito contrário. Afirma-se que não são:de paz! Isto é, são “Territórios de Medo”. Locais a serem evitados. Espaços associados à ocorrência de crimes. Locais onde moram pessoas indesejadas, os excluídos socialmente. Nesse compasso, evidenciou-se como o Estado enfrenta o contingente de condutas delitivas efetivando a segurança e a pacificação dos bairros Mathias Velho e Guajuviras. Em um primeiro momento, implementa-se o monitoramento e o patrulhamento ostensivos, para, logo depois, criar políticas socioeducacionais e de integração comunitária; primeiro atacam-se as consequências (aumento do Estado Penal) para depois oferecer as oportunidades de inclusão e reintegração à sociedade. 1143 No entanto, o que não é vislumbrado como de caráter efetivo e considerado na política pública é que, na própria pesquisa de vitimização mencionada, há sensação de segurança nesses locais, pelos próprios habitantes, muito mais do que no contexto social. Se a própria pesquisa demonstra o quanto a sociedade analisada desconhece práticas sociais, desenvolvidas pelo gestor municipal, dever-se-ia apontar outros caminhos para a solução dos problemas, justamente voltados para a participação e inclusão dos territórios hoje estigmatizados. Assim, objetivou-se, a partir de um contexto conceitual e histórico a respeito da cultura do medo no contexto urbano e a percepção dos dados criminais da cidade de Canoas, que avalia a sensação de (in)segurança de acordo com a “sua” realidade social contemporânea e, a partir da adoção de políticas públicas compensatórias à produção do medo, a ênfase à continuidade do sistema estigmatizante de determinada comunidade, bairro, taxando-o, a contrario sensu, de Território da Paz quando na verdade é mais um espaço do contexto da municipalidade, merecedor de uma atenção e de propostas inclusivas. Derradeiramente, percebeu-se o esforço por, um lado, traçar um perfil, por assim dizer estigmatizante, da vítima (são homens, brancos, jovens e envolvidos com o tráfico de drogas), não havendo, por outro, dados objetivos acerca do perfil dos autores. Também, neste raciocínio, ao se detectar que 88 dos autores de homicídio com registros de residência em Canoas, 72,7% têm domicílio nos Territórios de Paz, observou-se que esses locais se caracterizam não como espaços de inserção de segurança e tranquilidade, mas de exclusão e propagação de mais violência, necessitando da atenção do gestor público de maneira diferenciada, inclusiva e não exclusiva. REFERÊNCIAS BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Tradução Eliana Aguiar. – Rio de Janeiro: Zahar, 2009. 1144 ______. Medo Líquido. Tradução, Carlos Alberto Medeiros – Rio de Janeiro: Zahar, 2008. ______. Ensaios sobre o conceito de cultura. Tradução, Carlos Alberto Medeiros – Rio de Janeiro: Zahar, 2012. DONZELOT, J. 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Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. 1146 INTERAÇÃO DIGITAL Arnaldo Rizzardo Filho; RESUMO: A sociedade está em constante transformação, fruto de um contínuo desenvolvimento tecnológico que aproxima os indivíduos em uma escala mundial. Esse movimento é verificável a partir do estudo da comunicação em sua historicidade. Desde a forma mais simples de comunicação, a comunicação face a face (oral), a interação humana vem se desenvolvendo através da virtualização. Começou com a escrita, agora está digitalizada. Esse movimento histórico pede a identificação e comparação dos elementos que compõem a interação face a face e a interação virtual em suas diversas modalidade. A partir daí é possível debater sobre o resultado que cada um desses diferentes ambientes de existênciade comunicação produz na sociedade. Ao longo do desenvolvimento da interação social, há um nítido processo de dessubstanciação, amplamente verificável na interação virtual da forma digital, resultado de uma tendência autopoiética que a sociedade possui a partir da absorção das alteridades sociais. O artigo faz uma análise comparativa entre os estudos da “interação face a face” do antropólogo ErvingGoffman e do “fenômeno virtual” do filósofo Pierre Lévy. Há, definitivamente, uma relação evolutiva não exclusivista entre a interação face a face e a interação virtual, evidenciada principalmente pela formação de uma inteligência coletiva que alimenta-se de cada inteligência individual. A virtualização digital é hoje o ambiente ideal para (auto)reprodução de atualidades sociais. Se interação virtual é um processo multiplicador de atualidades, a interação virtual “digital” embaralha essas atualidades (uma potencialização do virtual), sendo, por isso, uma fomentadora máxima de possibilidade de desenvolvimento social. A virtualização digital evidencia a consciência coletiva enquanto um novo paradigma, ou melhor, um paradigma “atual”, diferente daquele paradigma passado calcado em uma consciência ainda fortemente individual. PALAVRAS-CHAVE: interação social; interação face a face; interação digital, Inteligência coletiva. 1 INTRODUÇÃO Dentre as últimas revoluções sociais, a comunicação digital representa uma força grande o suficiente para ser comparada com a própria comunicação 1147 escrita. Trata-se, antes de tudo, de uma comunicação predominantemente à distância, que muitas vezes sequer ocorre de forma concomitante entre os atores envolvidos no ato. É uma forma de comunicação virtual, como a escrita. O elemento básico que não está presente na interação digital é o encontro face a face. A comunicação digital ocorre através do teclado, do som ou da imagem, mas sem a presença atual. A questão que vem à tona é a sua potencialidade se comparada com a interação face a face e até mesmo com a própria interação virtual escrita. O ambiente digital fornece condições especiais de expansão à comunicação, permitindo que a interação se potencialize em escala maior. A proposta desse artigo é analisar a interação virtual (escrita e digital) em relação à interação face a face, aproximando as ideias que o antropólogo/sociólogoErvingGoffman expôs nos artigos que compõem sua obra “Ritual de Interação”19, com as ideias que o filósofo Pierre Lévy explana sobre cultura virtual em seus livros, em especial “O Que É Virtual?”. O artigo abordará primeiramente a caracterização do que é virtual e suas implicações na interação social. Após, serão abordados fenômenos físicos e psíquicos presentes nos rituais de interação social face a face. Ao fim, estarão dadas as evidências de como a interação social está sendo modificada pela virtualização digital da comunicação. 2 INTERAÇÃO VIRTUAL (DIGITAL) Pierre Lévy explica o virtual a partir da sua distinção do atual. “A virtualização pode ser definida como o movimento inverso da atualização”.20 Há um constante movimento de passagem do atual ao virtual, uma ‘elevação à potência’ da entidade considerada. A questão do virtual não diz respeito ao real, mas sim ao atual, pois o acontecimento virtual é um acontecimento real, que chama a atualização para um processo de resolução do problema virtualizado existente. Se virtual é um problema, atualização é a solução. A virtualização é 19 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia). 20 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 17. 1148 uma mutação de identidade, uma modificação ontológica do objeto; por isso, enquanto a atualização é a solução de um problema, a virtualização é o próprio problema. O movimento da atualização vai do problema à solução; o movimento da virtualização vai de uma solução ao problema. O fato é que esse movimento (chamado por Lévy de efeito Moebius) caminha em redes de virtualizações, uma ação apoiando-se em outra, em uma historicidade total21. Há uma tendência autopoietica aqui22 (que é reafirmada quando o filósofo chama a atenção para a existência de um “espírito” compatível com a coletividade, com uma inteligência múltipla, heterogêneo, constantemente auto-organizador ou autopoiético, que se desenvolve a partir do ‘acolhimento da alteridade’ do mundo ao seu redor). Para Lévy, “a entidade carrega e produz suas virtualidades: um acontecimento, por exemplo, reorganiza uma problemática anterior e é suscetível de receber interpretações variadas. Por outro lado, o virtual constitui a entidade: as virtualidades inerentes a um ser, a uma problemática, o nó de tensões, de coerções e de projetos que o animam, as questões que o movem, são uma parte essencial de sua determinação”23. Resumindo, o atual é uma resposta ao virtual. O virtual, com muita frequência, não está presente, adverte Lévy. Há uma desterritorialidade. Citando as ponderações de Michel Serres no livro Atlas, afirma que o virtual se identifica com a falta de presença. “A imaginação, a memória, o conhecimento, a religião são vetores de virtualização que nos fizeram abandonar a presença muito antes da informatização e das redes digitais”24. As virtualizações tornam as coisas, as pessoas, em não presentes, em desterritorializadas. Mas nem por isso deixam de ser reais, de acontecer, de existir, de surtir efeitos. Apenas não há atualidade no virtual. O virtual também é heterônomo. Esse conceito é de crucial importância para Lévy. Ser heterônomo significa estar sujeito a um “processo de acolhimento 21 A importância da historicidade para a formação do pensamento é latente. Bem ao estilo de NiklasLuhmann. 23 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 16. 24 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 20. 22 1149 da alteridade”25. Assim, a reprodução do que é virtual não se dá de forma autônoma, e esse é o efeito embaralhante da virtualidade. A heterogênese da virtualidade é explicada pelo já referido “efeito Moebius”, ou seja, a passagem do interior ao exterior e do exterior ao interior. Os lugares e tempos se misturam e se recriam. No mundo das ideias, talvez a escrita seja o maior instrumento de virtualidade, muito embora existam outros, como nas belas artes. De qualquer modo, parece certo que instrumento de virtualização funcione como meio socialização. Hoje, o instrumento evoluiu: foi do entalhamento ao grafite, deste à tinta, e depois de mais alguns passos evolutivos chegou à digitalização. Das cavernas à lua[...] Armazenar a escrita em memória digital é uma potencialização extrema da comunicação. Pelo menos extrema até agora, mas como será vista em 250 anos? No início da década de 60, o que havia de mais virtual na comunicação era o telefone; o mundo estava interligado por ele. O que ocorreu nas décadas seguintes foi um processo gradual de digitalização do sistema de telecomunicações, até então, completamente analógico. Potencializou-se a comunicação, e é nesse movimento virtualizante da comunicação que a sociedade se desenvolve. Lévy faz um questionamento interessantíssimo e empiricamente verificável: “Posto que a escrita alfabética hoje em uso estabilizou-se sobre um suporte estático, e em função desse suporte, é legítimo indagar se o aparecimento de um suporte dinâmico não poderia suscitar a invenção de novos sistemas de escrita que extrapolariam muito melhor as nova potencialidades”26. Isso já ocorre, por exemplo, através das placas de trânsito – pois algumas são identificadas por qualquer pessoa em qualquer país, e através de plataformas como o whatsapp: J. Um dos efeitos avassaladores da virtualização é a passagem do privado para o público, com a recíproca transformação do interior em exterior – “uma emoção posta em palavras e desenhos pode ser mais facilmente 25 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 25. 26 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 50. 1150 compartilhada”27. Mas a emoção compartilhada é uma emoção virtual. Fato é que na comunicação digital a interação social é diferente da comunicação “em carne e osso”, principalmente em função da desterritorialidade, da heterogenia, e da constante passagem do estado privado ao público. Três são as virtualizações decisivas para o ser humano, segundo Lévy: o nascimento das linguagens, que significa a virtualização do presente; o domínio da técnica, que significa a virtualização da ação; e o surgimento do contrato, que representa a virtualização da violência. Nesse último caso, “os rituais, as religiões, as leis, as normas econômicas ou políticas são dispositivos para virtualizar os relacionamentos fundados sobre as relações de forças, as pulsões, os instintos ou desejos imediatos. Uma convenção ou um contrato, para tomar um exemplo privilegiado, tornam a definição de um relacionamento independente de uma situação particular; independente, em princípio, das variações emocionais daqueles que o contrato envolve; independente da flutuação das relações de força”28. A virtualização evidencia que a inteligência é construída a partir do envolvimento coletivo dos indivíduos. Lévy afirma que “as instituições sociais, leis, regras e costumes que regem nosso relacionamento influem de modo determinante sobre o curso de nosso pensamento [...] Pela biologia, nossas inteligências são individuais e semelhantes (embora não idênticas). Pela cultura, em troca, nossa inteligência é altamente variável e coletiva. Com efeito, a dimensão social da inteligência está altamente ligada às linguagens, às técnicas e às instituições, notoriamente diferentes conforme os lugares e as épocas”29. Segundo Lévy, os princípios darwinianos aplicam-se às populações, e de acordo com Gilles Deleuze, o interior é um dobra do exterior. O devir está na transição para outra subjetividade. A inteligência de cada indivíduo é atravessada de uma dimensão coletiva, “porque o psiquismo é, desde o início e por definição, coletivo: trata-se de uma multidão de signos-agentes em interação, carregados de valores, 27 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 73. 28 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 77. 29 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 99. 1151 investindo com sua energia redes móveis e paisagens mutáveis. Os coletivos humanos são espécies de megapsiquismos, não apenas por serem percebidos e afetivamente investidos por pessoas, mas porque podem ser adequadamente modelados por uma topologia, uma semiótica, uma axiologia e energética mutuamente imanentes”30. O progresso virtual da comunicação abre a consciência individual à consciência social, sendo o ambiente digital um ambiente coletivo,onde as alteridades de cada consciência podem se manifestarem. E esse fenômeno ocorre automaticamente, decorrente das próprias características da virtualidade. A nova inteligência coletiva, proporcionada pela digitalização, afirma a existência de um pensamento atual, efetivo, oriundo dos coletivos humanos. Conforme Lévy, “o desenvolvimento da comunicação assistida por computador e das redes digitais planetárias aparece como a realização de um projeto mais ou menos bem formulado, o da constituição deliberada de novas formas de inteligência coletiva, mais flexíveis, mais democráticas, fundadas sobre a reciprocidade e o respeito das singularidades. Nesse sentido, poder-se-ia definir a inteligência coletiva como uma inteligência distribuída por toda a parte, continuamente valorizada e sinergizada em tempo real”31. 3 INTERAÇÃO FACE A FACE Em contraste com o virtual há o atual. Passa-se a analisar o atual a partir dos estudos sobre a interação social face a face do antropólogo ErvingGoffman. As identificações e caracterizações dos fenômenos autoevidentes, como “linha”, “fachada”, “aprumo”, “deferência”, “porte”, “constrangimento”, “alienação”, “sintomas”, e “caráter”, são capazes de dar pistas sobre como a sociedade age, ou atua; os elementos físicos e psíquicos encontrados na interação ritualística dos encontros sociais mostram exatamente o que se passa na atualização do virtual. 30 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 109. 31 O que é virtual? / Pierre Lévy; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição), pág. 99. 1152 A comunicação é carregada de elementos oriundos do corpo e da psique que informam tanto quanto as palavras ou os sinais utilizados para comunicar. Passa-se a explicar, ilustrativamente, esses fenômenos expressivos segundo os artigos que compõem o livro Ritual de Interaçãode ErvingGoffman. 4 LINHA, FACHADA E APRUMO NA INTERAÇÃO FACE A FACE “Todas as pessoas vivem num mundo de encontros sociais que as envolvem, ou em contato face a face, ou em contato mediado com outros participantes. Em cada um desses contatos a pessoa tende a desempenhar o que às vezes é chamado de linha – quer dizer, um padrão de atos verbais e não verbais com o qual ela expressa sua opinião sobre a situação, e através disso sua avaliação sobre os participantes[...]”.32 A linha é, nessa base, o padrão comportamental comunicacional expressivo da pessoa. Fachada, por seu turno, é o valor social positivo que as pessoas tentam transparecer aos demais participantes da interação social. A fachada é o resultado da linha que o indivíduo possui em suas interações. “A fachada é uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados[...]”.33 A relevância da linha e da fachada decorre de um efeito particular da interação social: ela põe em evidência os efeitos emocionais que os indivíduos sofrem quando no contrato de outros indivíduos. Conforme explicita Goffman, “o apego de uma fachada particular, junto com a facilidade de comunicar informações falseadoras por ela e por outros, constitui uma das razões que fazem com que ela considere que a participação em qualquer contato com os outros seja um compromisso[...] A fachada pessoal e a fachada dos outros são construtos da mesma ordem; são as regras do grupo, e a definição da situação que determinam quantos sentimentos devem ser distribuídos pelas fachadas envolvidas”.34 32 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 13. 33 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 13. 34 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 14. 1153 Um dos principais efeitos da interação face a face, oriundo justamente do que simboliza o corpo presente de uma pessoa, é a combinação da regra do respeito próprio e da regra da consideração. Essa combinação de regras é a tendência de condução de um indivíduo durante a interação social. Assim se mantém a própria fachada e a fachada do terceiro. Essa é a obrigação latente do envolvimento social. Proteges a ti e ao teu irmão. A proteção mútua é uma característica estrutural básica da interação, especialmente quando se trata de interação face a face. E não que essa proteção de um a outro e vice versa seja o exato reflexo do eu (do um ou do outro), mas talvez apenas uma praticidade, na linha de argumento de Goffman, para manter-se a sociedade. “A aceitação mútua de linhas tem um efeito conservador importante sobre os encontros”.35 É necessário preservar a fachada, e esse exercício é realizado através do “aprumo”, ou seja, através do controle do próprio constrangimento em alguma situação, além de outras práticas habituais e padronizadas. Há, na interação face a face, uma série de etiquetas e diplomacias nas quais os indivíduos que estão interagindo mantêm como forma de cooperação para preservação da fachada. Goffman segue a linhagem da antropologia social da Tradição Durkheimiana, focada nos símbolos e rituais da interação social. Segundo Collins, “um ritual é um momento de uma densidade social extremamente alta. Novamente, quanto mais pessoas estiverem juntas, tanto mais intenso será o ritual. Mas os rituais também elevam os contatos entre as pessoas; ao fazer os mesmos gestos, ao entoar as mesmas canções e outras coisas do tipo, as pessoas voltam a atenção para uma mesma coisa. Elas não estão apenas reunidas, mas têm plena consciência do grupo ao seu redor. Como resultado disso, certas ideias passam a representar o próprio grupo, tornando-se seus símbolos”36. Nesse contexto, há, na interação social, rituais cotidianos inconscientes, que estão presentes em cada ponto de um encontro social. Collins afirma que Goffman segue explicitamente Durkheim quando explica que “na sociedade moderna, os deuses dos grupos isolados deram lugar à adoração de 35 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 19. 36 Quatro tradições sociológicas / Randall Collins ; Tradução de Raquel Weiss. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2009. – (Coleção Sociologia), pág. 165. 1154 um único ‘objeto sagrado’ que todos temos em comum: o eu individual”.37 Os rituais são as performances que têm consequências sociais ao criar imagens adequadas sobre os indivíduos, e requerem habilidades materiais e culturais. “Rituais são armas que sustentam e renegociam a estrutura de classe. Eles não apenas criam o eu, mas classificam os diferentes tipos de eu em diferentes classes sociais”.38 Na interação falada o ritual se expõe por símbolos e sinais que significam diversas coisas. Goffman exemplifica: “Uma olhadela descuidada, uma mudança momentânea no tom de voz, uma posição ecológica tomada ou não, tudo isso pode encharcar uma conversa de importância avaliativa”.39 São gestos, interrupções e pausas que regulam o fluxo de mensagem dando algum sentido especial a ele, pois representam o nexo subjetivo existente entre o indivíduo e sua ação. São “atestados de autenticidade”. Quando se comunica algo, o indivíduo expõe sua figura a decepções, como ocorre, por exemplo, quando os comunicados não prestam atenção no que foi informado, ou quando os comunicados não correspondem com a empolgação que o comunicador espera. São inúmeras as possibilidades, e em muitas delas somente a presença física é capaz de revelar. Nessa linha, preservar a fachada significa, na interação falada, uma organização convencional, mantendo-se um fluxo bem ordenado de mensagens faladas através de uma estrutura de ritual. Para Goffmann, se há de fato uma natureza humana universal, ela deve ser pesquisada nos encontros sociais. A forma de mobilizar os indivíduos para os encontros sociais é através do ritual. A percepção, os sentimentos e outros efeitos da racionalidade são provocados quando se está face a face com outra pessoa. O efeito que o corpo humano gera em outro corpo humano ainda é inexplicável, mesmo para os que estudam a mente. É algo quase místico, ou, talvez, para os mais existencialistas, seja o que há de místico. 37 Quatro tradições sociológicas / Randall Collins ; Tradução de Raquel Weiss. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2009. – (Coleção Sociologia), pág. 190. 38 Quatro tradições sociológicas / Randall Collins ; Tradução de Raquel Weiss. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2009. – (Coleção Sociologia), pág. 191. 39 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 39. 1155 5 DEFERÊNCIA E PORTE INTERAÇÃO FACE A FACE Segundo Goffman, “uma regra de conduta pode ser definida como um guia para a ação, recomendada não porque é agradável, barata ou eficiente, mas porque é apropriada ou justa. As infrações caracteristicamente levam a sentimentos de desconforto e a sanções sociais negativas”.40 As regras de conduta interagem entre si de forma a padronizar o comportamento humano de acordo com o ideal institucionalizado pela sociedade. Assim, geram expectativas e obrigações. Quando um ato humano submete-se a uma regra de conduta, segundo o autor em análise, entra em cena a perspectiva comunicacional do ato, pois se passa a representar a forma pela qual os “eus” são confirmados. Ato que segue ou não segue uma regra de conduta sempre é comunicação, pois seguir ou não seguir só têm peso ôntico a partir de quando o paradigma é comunicado. Caso contrário, há, apenas, arbitrariedade. A partir do momento que um comportamento concreto vira paradigma para uma expectativa comportamental, há comunicação. O componente cerimonial do comportamento concreto possui pelos menos dois elementos básicos: a deferência e o porte. A deferência vem a ser, nas palavras de Goffman, o “componente da atividade que funciona como um meio simbólico através do qual se comunica regularmente apreciação para um receptor deste receptor, ou de algo do qual esse receptor é considerado um símbolo, extensão ou agente”.41 É a apreciação que um indivíduo faz sobre o outro individuo para esse próprio indivíduo. São representações da relação entre ator e receptor de uma interação face a face; a deferência significa estima. É possível identificar atos de deferência em expressões corporais, como nos abraços, nos apertos de mão, na voz, nos tapas nas costas, nas lágrimas. Já o porte é o “elemento do comportamento cerimonial do indivíduo tipicamente comunicado através da postura, vestuário e aspecto, que serve para expressar àqueles na presença imediata dele que é uma pessoa de certas qualidades desejáveis ou 40 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 52. 41 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 59. 1156 indesejáveis”.42 Através do porte o indivíduo cria uma imagem de si, que para si mesmo pode conscientemente não ser verdadeira, pode ser fruto de um desleixo momentâneo, um de um momento de pressa. Mas para terceiros, inconscientemente ou até mesmo conscientemente é uma imagem verdadeira. É difícil saber o que se passa na vida e na mente de outras pessoas. Como diz o ditado popular, a primeira impressão é a que fica. Fato é que tanto a deferência quanto o porte apresentam e representam as pessoas, e ainda submetem-se a regras de conduta. É do senso comum que não se pode recusar um aperto de mão, ou ir mal vestido para um aniversário. Enquanto regras de conduta, o porte e a deferência comunicam os indivíduos, e por isso são fontes de conhecimento. 6 CONSTRANGIMENTO NA INTERAÇÃO FACE A FACE O constrangimento pode ser notado em si mesmo e nos outros indivíduos por sinais objetivos de perturbação emocional, como enrubescimentos, balbucios, gaguejos, entonações da voz, suor, palidez, piscadelas, tremor das mãos, movimento hesitantes ou vacilantes, tremor das mãos, distrações e disparates.43 Segundo Mark Baldwin, citado por Goffman, também se pode notar o constrangimento no rebaixamento dos olhos, nos movimentos da cabeça e na posição e movimento das mãos e dos dedos. O normal, na interação face a face, é estar tranquilo, de forma que o constrangimento é um desvio do estado normal. O constrangimento, dessa forma, tem relação direta com o que o indivíduo representa diante de quem está presente em um encontro social. O interessante é que dos efeitos do constrangimento se pode notar uma certa união ou uma certa indiferença dos coparticipantes do evento para com os envolvidos diretamente no ato constrangedor. Afinal de contas, o constrangimento é contagioso. Ou seja, além dos efeitos do constrangimento refletir o constrangedor ou o constrangido, também reflete a interação do grupo. Ninguém 42 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 78. 43 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 95. 1157 gosta de se sentir constrangido, e por isso é normal que pessoas sensíveis e ponderadas evitem constranger outras (deixando a salvo suas fachadas). A relatividade do constrangimento é óbvia e é verificável na própria historicidade da humanidade. Os costumes, a tradição, os mitos, os totens, os tabus, tudo muda, e por isso “eventos que levam ao constrangimento e os métodos para evita-lo e dissipá-lo podem fornecer um esquema de análise sociológica que atravessa culturas”.44 O constrangimento, no sentido acima delineado, possui uma importante função social. No momento em que se identifica um constrangimento, a identidade social está desmistificada. Por traz do conflito individual gerado pelo constrangimento, está o conflito organizacional, “pois o eu, para muitos propósitos, consiste apenas da aplicação de princípios organizacionais legítimos para o nosso eu. Construímos nossa identidade a partir de reinvindicações que, se forem negadas, dão-nos o direito de nos sentirmos injustificadamente indignados”.45 7 ALIENAÇÃO NA INTERAÇÃO FACE A FACE Uma conversação tem “vida própria”, no sentido de transcendência. Formase um pequeno sistema social em cada interação social desse tipo que transcende aos indivíduos envolvidos. Formam-se exigências próprias para cada situação que devem ser respeitadas pelos atores do evento, sob pena de comprometer todo o ritual e sua finalidade. A alienação do indivíduo em um encontro conversacional é uma das causas do seu fracasso, gerando consequências negativas individuais e sociais. São algumas formas de alienação, segundo Lévy, a preocupação externa ao foco da conversação, a consciência de si mesmo (quando o indivíduo dá mais atenção a si mesmo, ao invés de dar atenção ao conteúdo da conversação), a consciência dos outros (distração 44 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 99. 45 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 108. 1158 advinda de outros participantes, como beleza, feiura, estatura, etc.) e a consciência formal da interação (preocupação demasiada com a forma como a interação está ocorrendo, e não com o próprio conteúdo da conversação). Essas alienações são preocupantes porque o ritual da interação face a face cria obrigações para quem participa dele. “Em nossa sociedade prevalece um sistema de etiquetas que dirige o indivíduo a lidar com estes eventos de forma conveniente, projetando através deles uma imagem de si correta, um respeito apropriado pelos outros presentes e uma consideração adequada pelo ambiente. Quando o indivíduo quebra uma regra de etiqueta, intencionalmente ou não, os outros presentes podem se mobilizar para restaurar a ordem cerimonial, de forma parecida com aquela utilizada quando outros tipos de ordem social são transgredidos. Através da ordem cerimonial que é mantida por um sistema de etiqueta, a capacidade do indivíduo de ser levado por uma conversa se torna socializada, assumindo uma carga de valor ritual e função social”.46 Segundo TalcottParson, citado por NiklasLuhmann, os atores sociais dão sentido individual (subjetivo) às ações quando atuam entre si. Assim, devem integrar as expectativas recíprocas de comportamento, e essa integração ocorre a partir da estabilização através de regras compreensíveis e assimiláveis. De outra forma, seria impossível assimilar a dupla contingência da determinação do sentido da ação a partir de dois sujeitos, e tampouco constituir a complementariedade das respectivas expectativas. Por isso toda interação pressupõe normas, e sem elas não se constitui um sistema.47 Em face dessas alienações, o sistema social da interação cria solidariedade para salvar o ritual face a face. Conforme explica Goffman, “A obrigação do indivíduo de manter o envolvimento espontâneo na conversação e a dificuldade de fazer isso o coloca numa posição delicada. Ele é salvo por seus coparticipantes, que controlam suas próprias ações para que ele não seja forçado a sair do envolvimento apropriado. Mas, assim que ele for resgatado, ele terá que 46 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 111. 47 Sociologia do Direito I / NiklasLuhmann; tradução de Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileito, 1983, pág. 31. 1159 resgatar outra pessoa, e por isso seu trabalho de participante da interação se complica ainda mais. Aqui, então, está um dos aspectos fundamentais do controle social na conversação: o indivíduo deve não apenas manter o seu próprio envolvimento, mas também agir de forma a garantir que os outros mantenham o deles”.48 Quando ocorre um problema de alienação na interação falada a realidade é atingida, e o sistema social que a reflete fica desorganizado a ponto de não mais servir de horizonte ao ritual de interação. A veracidade dessa realidade será confirmada apenas no conflito, na decepção pelo desrespeito do ritual. Nos termos de Goffman, “ao examinar as formas pelas quais o indivíduo pode perder o passo com o momento sociável, talvez possamos aprender algo sobre a forma pela qual ele pode ser alienado de coisas que ocupam muito mais o seu tempo”.49 As regras de conduta para a interação falada é de importância capital entre inúmeras pessoas em incontáveis situações. É a forma básica de envolvimento e por isso a consciência de si mesmo é forte nesse tipo de relação. 8 SINTOMAS MENTAIS NA INTERAÇÃO FACE A FACE A tradição freudiana da psiquiatria aborda que sintomas do comportamento psicologicamente anormal podem ser interpretados como parte do sistema de comunicação e de defesa do ofensor. A reversão a modos de conduta infantis é o exemplo dado por Goffman. Em um encontro social, um comportamento inapropriado é entendido por todos, é autoevidente, pois é uma coisa pública. É pública porque é potencialmente acessível a todos, e assim torna-se uma preocupação a todos. A ordem do ritual está em jogo. Dessa forma, analisando a interação social se pode observar sintomas da psicopatia. A análise de Goffman parte do exame da regra geral de conduta que o comportamento ofensivo infringe. A partir daí se examina o conjunto de regras do qual a regra geral faz parte. 48 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 113. 49 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 131. 1160 Identifica-se um conjunto de regras gerais para então se analisar o grupo social onde vigem essas regras e sua estrutura. Quando esse trabalho estiver feito, pode-se, então analisar o ofensor e o que significa para ele burlar aquelas regras sociais. Talvez seja possível, até mesmo, encontrar um grupo de sintomaspadrão. O fato é que o desvio de conduta pode ser fruto de um comportamento psicótico, mas o que normalmente ocorre é o contrário: a burla a um regra de conduta é realizada por um comportamento normal. A preocupação repousa sobre o tipo de ordem social que é relacionada ao comportamento psicótico. “Agir de forma psicótica é, com muita frequência, associar-se incorretamente com os outros na sua presença imediata; isso comunica alguma coisa, mas a infração em primeira instância não é de comunicação, e sim de regras de counião”.50 É possível, então, conhecer a estrutura de uma sociedade a partir de suas regras de conduta; e a partir daí, é possível conhecer, também, a estrutura do comportamento. Ao final, pode-se chegar à perspectiva da infração sob o ponto de vista do ofensor. O ofensor será desmascarado e classificado como um mero transgressor que agiu de uma forma anormal ou como um psicótico. Afinal de contas, como observa Goffman, todos os desvios psicóticos de conduta podem ser encontrados na vida cotidiana, na conduta de pessoas mentalmente sãs. Os desvios perpetrados por pessoas sãs são copiados de desvios perpetrados por pessoas psicóticas. Por isso a social válvula de escape de “se fazer de louco”. 9 CARÁTER E COMPOSTURA NA INTERAÇÃO FACE A FACE A capacidade das pessoas de agir de forma correta e firme diante de pressões repentinas é um aspecto do caráter do indivíduo. A incapacidade de se comportar corretamente sob pressão é sinal de um caráter fraco. Manter o autocontrole total quando a questão envolve uma decisividade é sinal de um caráter forte. Segundo Goffman, a ação está nos momentos de decisividade, quando é possível analisar o caráter das pessoas. “Ao procurar onde a ação está, 50 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 137. 1161 chegamos a uma divisão romântica do mundo. Em um lado estão os lugares seguros e silenciosos, o lar, o papel bem regulado nos negócios, na indústria e nas profissões; no outro estão todas as atividades que geram expressão, exigindo que o indivíduo dê a cara para bater e se coloque em perigo por um momento passageiro”51. Para o sociólogo em estudo, a compostura é uma das qualidades do caráter que merecem atenção. Compostura no sentido de autocontrole, de domínio de si, de aprumo. “A compostura tem um lado comportamental, uma capacidade de executar tarefas físicas (tipicamente envolvendo o controle dos músculos das mãos) de forma suave, organizadas e autocontrolada sob circunstâncias decisivas[...] A compostura também tem aquilo que é considerado um lado afetivo, o autocontrole emocional necessário para se lidar com os outros”52. Pela compostura também se pode analisar a dignidade, a confiança, o controle emocional, enfim, a compostura informa a pessoa. 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA INTERAÇÃO FACE A FACE À INTERAÇÃO DIGITAL É notório que na interação face a face existem elementos comunicacionais que estão ausentes na interação digital. A era da digitalização trouxe um impulso socializante extremamente revolucionário. O mundo passou a estar conectado. Obviamente, para se dar essa abrangência à interação social, foi preciso abrir mão de muitos elementos humanos que se associam à fala. A psique humana se expressa pelo corpo humano, e na virtualização tudo o que sai do corpo para comunicar, como o som da voz e as expressões faciais, são substituídas por símbolos, que na maioria das vezes representam só o objeto da comunicação, não o sentimento do comunicador. 51 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), pág. 254. 52 Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face / Erving Goffman ; tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia), págs. 212 e 213. 1162 Mas isso não quer dizer que a digitalização da comunicação signifique alienação. Pelo contrário, significa socialização, muito embora a alienação esteja em um ambiente propício a se desenvolver, justamente devido à falta do corpo místico. É simplesmente paradoxal. O fenômeno é novo e certamente ainda estamos nos primeiros estágios da digitalização, e isso não só em termos técnicos, mas também em termos antropológicos. Novos símbolos de comunicação, diferentes das palavras, são incorporados na comunicação digital. A voz e a imagem passaram a ser virtualizadas pela digitalização em uma velocidade e facilidade de acesso espantosa. Agora, os aspectos físicos das pessoas é alcançável a todos. Na interação virtual escrita, fenômenos biológicos autoevidentes, como “linha”, “fachada”, “aprumo”, “deferência”, “porte”, “constrangimento”, “alienação”, “sintomas”, e “caráter” dissipam-se. Não que sumam, mas diminuíram consideravelmente. Isso leva a uma impessoalização da comunicação. Mas a interação virtual digital, longe de alienar, representa uma virtualização da comunicação, da mesma forma que as linguagens são a virtualização do ser. Toda a virtualização expande o ser virtualizado, pelas características que o ambiente virtual possui. Não se pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, salvo se se está virtualizado. Inclusive, aí se pode estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Tal evidência explica porque, nos últimos 20 anos, comunicou-se mais do que nos últimos 2.000 anos. A virtualização digital definitivamente coloca no texto elementos da antropologia humana. Esse é uma das características do hipertexto. O ambiente digital potencializa a comunicação, e, conforme mencionado alhures, potencialização da comunicação é potencialização da sociedade. Longe se alienar, a virtualização digital cria, ou melhor, dá o ambiente à criação, a partir de um movimento autopoético heterógeno, acolhedor de alteridade. O virtual, digital ou escrito, sempre será um problema a ser resolvido, atualizado. Dessa forma, a interação virtual sempre será uma multiplicadora de atualidades, ou seja, uma fomentadora do desenvolvimento social. A digitalização é um avanço da virtualidade humana, e não uma degradação humana. 1163 Como problema que é, gera conflito, que será resolvido a cada atualização. O conflito, então, mostra-se como fonte da criação. Num ambiente socializado, a melhor forma de solucionar um conflito é pela diferenciação. Quanto for maior o leque de possibilidades, mais chance há de se ter uma resolução perfeita do conflito. Conflito pede, portanto, especialização, diferenciação, que, em âmbito sistêmico, se dá de forma estruturada e funcional. Há possibilidade, portanto, de se visitar as mais diferentes tradições sociológicas a partir do presente tema, pois, como ficou evidente, há questões conflituais, ritualísticas e sistêmicas. Com efeito, identificar o ambiente em que se está interagindo é situar-se no estado atual. Não há uma luta do pessoal contra o digital, há uma relação de espaço e tempo que, plenamente identificado e conhecido, serve ao desenvolvimento social. Com bem observado por Lévy, os grupos humanos são meios ecológicos nos quais espécies de representações ou ideias desenvolvem-se autopoieticamente. Os princípios darwinianos aplicam-se aos ambientes de desenvolvimento da inteligência, dentre eles, o ambiente virtual, hoje amplamente digitalizado, formadores de inteligência coletiva. É a partir da virtualização que os indivíduos terão cada vez mais consciência para, na atualização, interagirem com a linha, a fachada, o aprumo, a deferência, o porte, e o caráter corretos, sem constrangimento e alienação. Esse fato traz instabilidade porque os fenômenos da interação face a face não se fazem presentes na interação virtual escrita. Mas na interação virtual digital há essa possibilidade, de forma fácil, rápida e eficiente. Essa é a principal característica do hipertexto. REFERÊNCIAS COLLINS, R.. Quatro tradições sociológicas; Tradução de Raquel Weiss. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2009. – (Coleção Sociologia). GOFFMAN, E. Ritual de interação : ensaios sobre o comportamento face à face. tradução de Fábio Rodrigues Ribeiro da Silva. – Petrópolis, RJ : Vozes, 2011. – (Coleção Sociologia). 1164 LÉVY, P. O que é virtual?; tradução de Paulo Neves. – São Paulo: Editora 34, 2011 (2ª edição). 1165 O MEDO COMO ALAVANCA DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL E DO AUMENTO DO RISCO SOCIAL Suelen Webber, Leonel Severo Rocha, RESUMO: Esta pesquisa analisa como a sociedade brasileira na contemporaneidade comunica a necessidade de punições mais severas e mais previsões legais de penalização. O objetivo neste trabalho foi observar como a figura do medo (real ou fictício), que é comunicada na Sociedade, fomenta o mito de que punir mais e com mais rigor é melhor. Nesse cenário de busca desenfreada pena punição, a sociedade depara-se com o fenômeno da expansão do Direito Penal de forma descontrolada, na medida em que se passa a punir atos preparatórios, editar leis penais em branco, penalizar situações que deveriam ser resolvidas na esfera administrativa, além de se vislumbrar que a única resposta satisfatória para frear a criminalidade é a pena privativa de liberdade. Como resultados preliminares, observou-se que os meios de comunicação de massa, em especial a mídia, utilizam um discurso sedutor em torno da criminalidade, a fim de convencer o senso comum de que o enrijecimento das leis e a penalização de tudo é a única solução eficiente a ser encontrada. A metodologia sistêmica, através de Niklas Luhmann e Leonel Severo Rocha, foi a forma encontrada para observar estas comunicações sociais, aliada aos trabalhos de autores como Silva Sanchez, Díez Ripolléz, Pierre Bourdieu. Das conclusões obtidas até o momento, tem-se que, atualmente, existe um discurso embotado pelo medo, que nem sempre advém de situações reais, e está a favor da mídia e do Sistema Político, e faz com que o risco seja ampliado na Sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Direito penal; medo; risco. 1 INTRODUÇÃO O objetivo desse trabalho é observar como o medo, que nem sempre é uma sensação criada de uma situação real, tem sido comunicado na Sociedade, e como isso tem fomentado o mito que se abriga no imaginário do senso comum, de que punir mais é melhor. Para realizar esta abordagem, é necessário observar como os meios de comunicação e o Sistema da Política tem usado a criminalidade real para fomentar um discurso de expansão do Direito Penal. 1166 A expansão do Direito Penal, consiste, no aumento de penas de crimes já tipificados, na administrativização do Direito, sobretudo penal, e no aumento ou enrijecimento de penas. Todas essas características vem sendo aceitas por grande parcela da população, graças ao discurso da mídia e das ações políticas. Assim, a ideia de que punir mais é melhor é comunicada e efetivada na Sociedade de Complexidade, ampliando os riscos e perigos deste sistema. Para tratar desta questão, o artigo é dividido em duas partes. Na primeira, observa-se como o medo e a punição tem sido comunicados na Sociedade. Na segunda, procura-se indicar os resultados das comunicações deste medo e anseio por mais punição nesta mesma Sociedade. É assim que este trabalho se apresenta. 2 MEDO E PUNIÇÃO: AS COMUNICAÇÕES SOCIAIS ATUAIS Atualmente, na Sociedade de Complexidade, em que existem muitas possibilidades, conforme definiu Niklas Luhmann, há uma comunicação que tem ressoado cada vez mais forte: “punir mais é melhor”; “punir mais é a única solução”. A partir da propagação desta informação, outra comunicação é formada, uma comunicação de medo, de risco e de um sentimento vago de insegurança que assola a sociedade brasileira, e, talvez, possa-se dizer mundial. Esse é o sentimento alimentado pelos meios de comunicação, e pelo Sistema Político. Segundo eles, a única solução para exterminar este medo coletivo (como se isso fosse possível, medo zero), é diminuir a criminalidade, e isso seria feito com mais punição. Assim, as expectativas cognitivas dos cidadãos direcionadas ao Sistema Político, são no sentido de mais direito penal. Dito de outra forma, é: “vamos penalizar tudo, vamos prender, vamos punir mais”. A internet ganha papel de destaque neste cenário, mormente nos últimos cinco anos, pois possibilita que quase toda a população tenha acesso à informação, as notícias de crimes que dominam as comunicações virtuais. Além disso, possibilita que todos, incluídos e excluídos (LUHMANN, 1983) possam expor ao mundo, neste ambiente cibernético, as suas opiniões sobre o que está 1167 ocorrendo. Invariavelmente, a maior parte das comunicações, assim como ocorre nas ruas, é por mais punição. Todo esse movimento comunicacional circular, qual seja, informações midiáticas, clamor social, penalização de mais condutas, mais notícias tendenciosas, mais expectativas de punição, leva a questionar quais os reais efeitos desta comunicação na estrutura da sociedade. Quais os ruídos e interferências que ele pode gerar. Na verdade, este é um questionamento que se coloca não apenas a nível nacional, mas cabível também para países como a Espanha ou os Estados Unidos. A Espanha, é um dos locais em que o medo se apropriou tanto destas comunicações que ela sofre um processo de expansão do Direito Penal, levando-a a um Direito Penal discriminatório, como no caso das leis referentes à pessoa do imigrante. Na atual quadra da história, em que tudo acontece de maneira simultânea (LUHMANN, 2002. p. 101) e as situações deixam de se limitar às fronteiras dos países, as comunicações são transnacionais assim como seus efeitos sociais. Não é afetado apenas o imigrante que efetivamente tente ingressar em território espanhol, mas todo o imigrante que tenha esta expectativa, mormente se proveniente de alguns países específicos. Curiosamente, os espanhóis sofrem este mesmo problema para tentar ingressar nos Estados Unidos. Nesse conhecido debate sobre expansão do Direito Penal, Díez Ripollés vai dizer que falar em expansão “implica reconsiderar o flexibilizar el sistema de imputación de responsabilidad y de garantías individuales vigentes, lo que se ha de hacer en función de la necesidad políticocriminal de mejorar la efectividad en la persecución y encausiamento penales.” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007. p. 85). As teorias que argumentam que esta expansão do Direito Penal é proveniente da mídia, defendem que ela possui um caráter meramente simbólico, o que vem justificado por um discurso de eficiência. Acrescentam ainda que este discurso é respaldado, validado e realizado pelos meios de comunicação aliados à forças políticas interessadas em angariar votos, exercendo grande poder sobre a Sociedade. De forma acertada, mencionam que, este temor social e justificado, gera um aparato denominado Direito Penal 1168 Simbólico. No entanto, em que pese a simbologia social que ele alcança na esfera do medo, seus efeitos são efetivamente sentidos na sociedade. afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica (não empírica) destas. A função simbólica é assim inseparável da instrumental à qual serve de complemento e sua eficácia reside na aptidão para produzir um certo número de representações individuais ou coletivas, valorizantes ou desvalorizantes, com função de “engano” (ANDRADE, 1997. p. 293). Da forma como este problema é explorado, tem-se que o Direito Penal, que deveria ser o último recurso social, passa a ser utilizado como um instrumento para a solução de todos os problemas da sociedade, e essa instrumentalização amparada pelo Sistema da Política - Governo/Oposição (LUHMANN, 2002), ganha a aceitação de grande parte da população. Com o ingresso dos meios de comunicação nesta questão, e a possibilidade que alguns deles, como as redes sócias, dão de que todos possam dizer o que pensam, este sentimento de medo e mais punição se multiplica ao ponto de não se ter mais certeza do quanto ele é real e o quanto é falacioso. Fomentado pela mídia ou não, o fato é que a consequência desta expansão é o abarcamento do Direito Penal por áreas que não deveriam lhe dizer respeito, o que leva obrigatoriamente a um modelo de Direito Penal máximo. Entretanto, onde há um estado com Direito Penal máximo, nem sempre as garantias constitucionais e as verdadeiras expectativas dos indivíduos são respeitadas. O contexto social em que se desenvolve a expansão do Direito Penal é frequentemente marcado pela noção de que a pena é suficiente para resolver todos os problemas da sociedade. Quando se fala em pena como solução de problemas, em regra, fala-se de pena privativa de liberdade, a que afasta o “delinquente”, o “marginal”, do convívio social, já que “só isso é capaz de trazer segurança à população”. Prova de que este é o pensamento que tem dominado as comunicações sociais é a recente aprovação do projeto de redução da menoridade penal (PEC 171/93). Para o senso comum (WARAT, 1985), que guarda o maior número de eleitores, o encaminhamento de transgressores da lei à prisão cada vez mais cedo, é a maneira de frear a criminalidade no Brasil. 1169 Neste caso, fica muito bem retratado o que se quer comunicar com este artigo: no imaginário social, a prisão em uma cadeia, em um presídio, é o que vai resolver o problema. Isso é simples de se constatar, na medida em que jovens infratores já são afastados da Sociedade e internados, mas não são presos, com todo o peso e simbologia que esta palavra tem. O fato de se estar em uma Sociedade de Complexidade, na qual risco/perigo dominam as comunicações (WEBBER, 2013), afastando a tão almejada segurança absoluta, não justifica esta situação. Tudo ocorre nesta sociedade (ROCHA; KING; SCHWARTZ, 2009. p. 19). Assim, o risco seria apenas mais comunicações um elemento sistêmicas (generalizado) (ROCHA; CLAM, que se faz presente nas SCHWARTZ, 2005.p. 36), merecendo uma observação mais atenta em razão dos ruídos que pode causar nas comunicações e dos efeitos decisivos que gera na tomada de decisão. Nessa senda, o risco sempre estará vinculado a uma tomada de decisão, mas não vai definir a sociedade, embora possa interferir nas expectativas dos indivíduos. Não se pode eliminar o risco, apenas se pode gerenciá-lo. Também não se fala em níveis de risco ou quantidade de risco, já que este altera-se de acordo com quem é o responsável pela decisão e pela comunicação em si (LUHMANN, 2006. p. 47/48). Assim, risco na Teoria dos Sistemas seria la posibilidad de daños futuros debido a decisiones particulres. Las decisiones que se toman en el presente condicionan lo que acontecerá en el futuro, aunque no se sabe de qué modo: deben ser tomadas sin tener una conciencia suficiente de lo que sucederá. Con otras palabras: quien toma una decisión en el presente no se puede proteger, con seguridad, de eventuales danõs futuros y éstos pueden ser consecuencia de un comportamiento. El riesgo está caracterizado por el hecho de que, no obstante la posibilidad de consecuencias negativas, convieve, de cualquier modo decidir mejor de una manera que de outra.” (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 2006. p. 193). Portanto, a existência do risco/perigo deve ser melhor administrada em nossa Sociedade, e não usada para fomentar o medo através dos meios de comunicação. Ao fazer isso, estar-se-ia, voltando a modelos de Sociedades segmentárias, e com isso, propiciando a expansão do direito penal, de forma desnecessária e irresponsável, o que pode causar muitos danos à população. Independente da noção de risco que se adote, o fato é que nenhuma delas justifica a expansão do Direito Penal na forma como ela ocorre. É patente 1170 que atualmente, em qualquer postura epistemológica que se aposte, o medo está presente na vida dos indivíduos e que antes de definir a sociedade em razão do risco existente, é mais plausível defini-la pela complexidade que se esta inserido atualmente. Essa complexidade, aliada ao medo, poderia ser a condição de possibilidade para que o Direito Penal sofresse espontaneamente uma leve expansão (a necessária), uma vez que novos crimes têm surgindo, como os cibercrimes, novos modos de se operar crimes antigos foram aparecendo e outros bens jurídicos necessitaram ser protegidos. Entretanto, o problema enfrentado não é essa expansão natural, e sim uma expansão que busca, segundo Callegari e Motta (2007. p. 20): a) incrementação da criminalização a partir da proliferação de bens jurídicos de natureza coletiva, intangíveis ou abstratos; b) criminalização de atos de mera conduta que presidem da efetiva lesão aos bens jurídicos tutelados; c) antecipação da intervenção penal ao estágio prévio à efetiva lesão do bem jurídico, generalizando-se a punição de atos preparatórios, como, por exemplo, a associação criminosa; d) ampliação da discricionariedade das autoridades policiais; e) aumento indiscriminado do limite de tempo da pena de prisão; f) alterações nas regras de imputação e no sistema de garantias penais e processuais, a partir da proliferação de tipos penais pouco precisos e de leis penais em branco, bem como da introdução da ideia de efetividade como princípio norteador do processo penal, ainda que à custa da flexibilização, senão da supressão, das garantias dos acusados. Um exemplo privilegiado que estampa todas as características acima elencadas, bem como contém os elementos clássicos da expansão trabalhada por Silva Sáchez, é a criminalização do delito de embriaguez ao volante no Brasil. A embriaguez ao volante, que por muitos anos foi considerada um delito de trânsito (Código de Trânsito Brasileiro), que possuía inicialmente punição administrativa, nos últimos anos passou por grandes transformações. Ele passou de infração administrativa para crime (Lei n. 11.705/2008). Mesmo permanecendo dentro do Código de Trânsito, ela prevê penas de prisão. Além da Lei n. 11.705/2008, posteriormente, como os números dos acidentes não estavam diminuindo, houve uma nova alteração através de Lei 12.760/2012, inclusive para tentar terminar com uma série de interpretações dadas pelos tribunais. A alteração mais recente ocorreu em 2014, através da Lei 12.971, que disciplina as novas formas de auferimento da tipicidade da conduta. 1171 Como isso, obviamente não fez com que diminuíssem as mortes no trânsito, esta legislação passou por várias modificações nos últimos anos (WEBBER; ROCHA, 2013), passando pela necessidade de se comprovar, além da ingestão da bebida, a incapacidade do sujeito, e voltando para diversas compreensões judiciais desta questão com a modificação posterior e que se encontra atualmente em vigor. Revela-se relevante trazer as observações que Silva Sánchez, já fez há alguns aos, e ainda mantêm-se atuais no Brasil, frente a colcha de retalhos que espelha o delito de embriaguez ao volante no Brasil. Sobre dispositivo semelhante da Lei Espanhola, quando trata da administrativização do Direito Penal, o estudioso, a fim de demonstrar que a expansão não se apresenta apenas no Brasil, mas é transnacional, afirma: O limite da infração administrativa em matéria de tráfego e veículo é de 0,5 mg de álcool por litro de sangue, segundo a normativa espanhola. Obviamente, tal limite, ou inclusive um inferior, pode estar plenamente justificado sob perspectivas globais de ordenação do setor, inclusive com base em dados estatísticos. Desde logo, a maioria das pessoas representa um perigo para a circulação se seu sangue apresenta essa concentração de álcool. Mais ainda, em termos de gestão administrativa do risco da circulação – redução das enormes cifras anuais de mortes nas estradas – pode ter inclusive sentido o limite absoluto de 0 mg de álcool por litro de sangue, cuja superação conduziria à infração administrativa. Mas, vejamos, tal critério por si só não è operativo no âmbito jurídico-penal. Pois aí não interessa o aspecto estatístico, senão se a pessoa cuja conduta está sob exame judicial pôs realmente em perigo bens jurídicos ou não. E aqui a apreciação estatística pode somente constituir uma presunção contrário, a qual, em princípio, não constitui base suficiente para imputação (SILVA SÁNCHEZ, 2002. p. 148). Destaque-se que a análise dessa lei foi feita de maneira proposital, já que é uma das legislações que teve maior clamor público, com incentivo dos meios de comunicação, “justificando” uma expansão concreta do Direito Penal. Constantemente são veiculadas notícias de acidente de trânsito nos telejornais. A internet através de suas redes sociais oferece cenas exclusivas e mais detalhadas deste mesmo acidente, e o folhetim principal vai explorar isso, usando um personagem que ingeriu bebidas alcoólicas, dirigiu e acidentou-se, ficando com dificuldades de locomoção (ou outras variações de desgraças). Na mesma senda, pode-se citar: a Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), que apenas aumentou penas de crimes já previstos no Código 1172 Penal Brasileiro; a Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), que prevê penas extremamente elevadas e declara a inafiançabilidade de referidos crimes; o instituto do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), instituído pela Lei nº 10.792/2003, dentro da Lei 7.210/1984 (Lei de Execuções Penais), sob o argumento de que a legislação de execução penal é retrógrada e não atende às necessidades da sociedade. Ainda, querendo ampliar esta observação, surgiram no cenário mundial, principalmente após o “11 de setembro”, uma gama variada de legislações do medo, as quais, na prática, pelo que se pode acompanhar de movimentos como o Estado Islâmico e o Boko Haram, ou a queda de dois aviões na Ucrânia, e os ataques ao jornal francês Charlie Hebdo, não foram tão eficiente, como se anunciavam. Nada obstante, outro referencial que necessariamente deve ser considerado ao se analisar a expansão é o que Silva Sanchez denomina Direito Penal de Velocidades. Para Sanchez, há um Direito Penal de Velocidades, na qual, por meio da expansão e da anedota da prevenção, que justificaria qualquer ilimitação dos atos do Estado em busca de segurança, passa-se a tolerar, inclusive, a flexibilização de direitos fundamentais, como é o caso do Regime Disciplinar Diferenciado no Brasil. Sobre o Direito Penal de velocidades, Sanchez (2002. p.148) esclarece que este possui três velocidades: Uma primeira velocidade, representada pelo Direito Penal “da prisão”, na qual haver-se-iam de manter rigidamente os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os princípios processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que, por não tratar-se já de prisão, senão de penas de privação de direitos ou pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma flexibilização proporcional a menor intensidade da sanção. A pergunta que há que elaborar, enfim, é se é possível admitir uma “terceira velocidade” do Direito Penal, na qual o Direito Penal da pena de prisão concorra com uma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais. Inexoravelmente o punitivismo descabido vai ganhando cada vez mais espaço nas expectativas cognitivas dos indivíduos e nas expectativas normativas da Sociedade. Evidentemente que o Direito tem e deve ter papel de destaque na Sociedade, já que ele é o responsável pela tomada de decisão. 1173 Mas neste aspecto, os olhares devem se voltar para a Política, pois é ela a primeira a possibilitar que esta expansão ocorra. . E esse é o grande perigo. Sua consolidação e estruturação na Sociedade na forma de legislação (expectativa normativa). Também é fato que os meios de comunicação de massa vendem a ideia de que punir mais é melhor e que a criminalidade atualmente (e aqui usa-se a expressão atualmente porque estes meios de comunicação sempre a usam tentando passar a ideia de que agora sim o problema não tem mais solução) está desenfreada. Isso tem gerado na população um medo intensificado, fazendo com que as pessoas cedam e passem a aceitar “a influência cada vez maior dos meios de comunicação de massa nos processos de formação da opinião sobre os mais diversos assuntos” (CALLEGARI; WERMUTH, 2010. p. 43), entre eles o clamor por mais Direito Penal. Como normalmente é esquecido, a porta de entrada para esta solidificação está na Política, e não no Direito, e a Política aproveita-se disso para alimentar o seu sistema, que é operacionalizado pela forma Governo/Oposição. 3 O RISCO DAS IRRITAÇÕES MIDIÁTICAS NA SOCIEDADE Nesse contexto de insegurança, risco e complexidade, nada é mais “lucrativo” do que lidar com o medo, uma vez que essa seria a mercadoria à disposição nesse século. Para ganhar esse mercado, a imagem de acontecimentos sociais passa a ser manipulada e/ou valorizada, em busca de maior audiência. Uma das consequências dessa manipulação é o fato de que certos casos são escolhidos pela mídia como “carro-chefe” da programação e passam a instigar a população na busca por “justiça”. No caso “Daniela Peres” nos anos 90, depois o “caso Isabela Nardoni”, o “caso Eloá”, e mais recentemente o “caso do menino Bernardo” e da Boate Kiss, e, entre eles os inúmeros acidentes de trânsito em que os condutores estavam embriagados, foi possível observar isso. O caso Daniela Peres, é emblemático porque, afirma-se ter resultado na lei dos crimes hediondos, as vítimas do trânsito, que poderiam ou não estar embriagadas, no enrijecimento da lei de 1174 delitos do trânsito. Possivelmente os “casos Isabela Nardoni e Menino Bernardo” inspirarão algum legislador na criação de uma lei para os que assassinam crianças, mesmo que isso já exista. O fato é que a mídia vem explorando ao máximo estes casos e pedindo “justiça” que se traduz por mais punição e criação de novas leis, mesmo que inócuas. Isso remete as observações de Callegari e Wermuth (2010. p. 43): O caso Isabela Nardoni, no Brasil, bem ilustra a forma como a mídia de massa nacional explora o crime e a criminalidade: o caso isolado de uma menina que foi assassinada violentamente passou a ser visto como uma forma de criminalidade bastante frequente no país e, mesmo contrariando a realidade objetiva – visto que casos semelhantes são bastante raros no país -, serviu como “espetáculo” midiático por mais de dois meses consecutivos, espetáculo esse marcado pelas pressões populares por justiça – leia-se vingança – contra o pai e a madrasta da menina, acusados pela prática do crime. A divulgação ad nauseam de imagens dos acusados sendo escoltados por policiais em meio a uma massa popular sedenta por agredi-los[...]. E passado algum tempo do crime, ao abrir a edição 2193 da Revista Veja (1 de dezembro de 2010), nas páginas centrais você encontrará a seguinte chamada: “O homem que faz Justiça”, referindo-se ao Promotor de Justiça que atuou no caso Isabela Nardoni. Com o julgamento do caso Eloá, novamente a mídia voltou a lembrar do caso Isabela, e da mesma forma, recentemente, com o “caso Bernardo”. Com o passar dos anos, as formas de atingir o público de aperfeiçoam através da tecnologia, e isso permitiu, por exemplo, que os depoimentos e interrogatórios do “caso Bernardo”, fossem divulgados nos meios de comunicação, em uma atitude sem nenhuma justificativa plausível. Qual a relevância (e até mesmo o direito) para a Sociedade ter acesso a este tipo de informação? Embora a mídia tenha a pretensão de atingir a população de massa, o fato é que ela “reproduz”, em regra, casos penais de pessoas que não pertencem a essa massa. Observe-se que os casos citados acima não envolviam pessoas de baixa renda. Com exceção, os “atores televisivos” dos acidentes de trânsito são pessoas de parcas condições, mas apenas se isso garantir um índice de audiência maior. Estas são exceções que só ocorrerão se o caso for realmente trágico. Em regra, busca-se mesmo em acidentes de trânsito procurar envolvidos por quem a população tenha um interesse maior em 1175 saber de suas condutas, seja por afinidade por rejeição. Como exemplo, tem-se o caso em que o filho do conhecido empresário Eike Batista (o rapaz muitas vezes não tem nem mesmo nome, é “o filho de”, a fim de fazer uma chamada mais apelativa) teria sido o culpado no atropelamento de um ciclista humilde. Isso, mais do que aumento de pontos nas pesquisas, gera outras consequências de cunho grave. Os noticiários sobre episódios violentos, mas distantes, não provocam aumento generalizado do medo dos públicos. Esse nível de temor aumenta única e exclusivamente no local da ocorrência do crime. Esse resultado foi obtido igualmente por Michelle Slone, que constatou aumento significativo da ansiedade em pessoas reunidas em grupo experimental submetido à transmissão de mensagens teledifundidas com ameaças terroristas à segurança do país. A autora confirma a hipótese de que a mídia tem poder de provocar a emoção das pessoas e pode eventualmente ter um impacto prejudicial no bem-estar psicológico das populações vítimas potenciais (WAINBERG, 2005.p. 63). Veja-se que este atropelamento ocorreu no ano de 2012, e ainda hoje, em 2015, ele é notícia (G1, fevereiro de 2015), foi Thor foi absolvido, após a sentença de primeiro grau ser altamente divulgada como uym exemplo de justiça, principalmente quando se noticiou que o pai do acusado, Eike Batista, estava com suas empresas em crise, uma vez que o carro envolvido no adente era um modelo de grande valor e nada popular. Não é apenas de casos reais que a mídia alimenta o medo e o clamor da Sociedade. A ficção também exerce este papel muito bem. Seja no cinema ou em programas televisivos semanais. No cinema, o Brasil ganhou seu “primeiro super-Herói” (VEJA, edição 2190, 2010) com Wagner Moura, no filem Tropa de Elite. O discurso do filme, é que é preciso ser implacável com bandidos, ou ainda, “bandido bom é bandido morto”. Não é necessário dizer que o implacável implica em violação total dos direitos humanos. Assim, a mídia vende um material de fomentação ilimitada da violação de Direitos Humanos no Direito Penal, que passa a ser o que a grande massa entende como sendo a única forma de solucionar os problemas criminais no Brasil. E quando se fala em grande massa, está-se falando no sentido literal, porque os números que envolvem o filme são impressionantes. Os cinemas lotaram. Tropa de Elite 2 arrecadou em três dias mais de 14 milhões de reais e atraiu um público de 1,3 milhão de pessoas. Foi a maior abertura de um filme nacional nesta década, e a maior renda do 1176 ano, superando a estreia de Eclipse, terceiro filme da série vampiresca adolescente Crepúsculo, que entrou em junho. Em média, até a semana passada, o filme de José Padilha estava atraindo 430 000 espectadores por dia. Até a última quarta-feira, 13, Tropa de Elite 2 foi visto por 2,6 milhões de pessoas e arrecadou mais de 25 milhões de reais[...].” (VEJA, edição 2187, 2010). Nesse diapasão, o lobby que a mídia de audiência procura fazer é buscar que as pessoas se identifiquem com o fatos que estão vislumbrando na tela. Foi assim com o caso de Daniela Peres, foi assim com o caso Isabela Nardoni, e é esse um dos motivos que justifica as milhares de associações contra a violência no trânsito. É esse um dos motivos que fundamenta o grande sucesso dos filmes Tropa de Elite, principalmente em sua continuação, em que, para buscar o apelo final, a vítima da violência é o filho do protagonista. Essa “trama narrativa” que, por meio de recursos que contemplam um cenário de angústia e sofrimento (fortemente auxiliados por recursos sonoros, jogos de câmera e cenários estratégicos), busca a empatia dos espectadores com as vítimas. Assim, os telespectadores passam a acompanhar passo a passo o que está acontecendo ou o que aconteceu com a vítima, vivenciando um sentimento de angústia, porque aquilo que está sendo representado poderia por ele ou por sua família ou conhecidos ter sido sofrido. Em se tratando de programas televisivos, no Brasil, um programa que seguia exatamente esta linha era o programa Linha Direta, exibido na Rede Globo entre os anos de 1999 e 2007. Nele, podia-se perceber que o repórter passava a ter mais do que o papel de transmitir a notícia. De fato, o programa buscava uma identificação entre o telespectador e a vítima, para que se despertasse o sentimento de injustiça na Sociedade, o qual poderia ser restaurado com a apresentação do programa e a participação ativa do telespectador. O programa não se limita a “noticiar” a existência de um criminoso foragido. É preciso reconstruir o crime com o máximo de carga emotiva para que o telespectador ao se identificar com a família da vítima – afinal o crime “poderia ter acontecido com você” - execute a denúncia (MENDONÇA, 2002. p. 67). Outro mecanismo que programas como o Linha Direta – e tantos outros que retratam casos verídicos pelo mundo – se utilizam é o fato de procurarem “afastar” o tempo decorrido desde os acontecimentos reais até a apresentação 1177 dos casos, a fim de que os sentimentos como insegurança e revolta sejam “recuperados” nas pessoas. Assim, “não será por acaso que as feições físicas dos atores e dos envolvidos reais serão tão convincentes” (MENDONÇA, 2002. p. 70), uma vez que essa “ênfase na semelhança realça a credibilidade da simulação” (MENDONÇA, 2002. p. 74). De fato, a mídia acaba por manipular tão bem a verdade dos fatos que, em situações como a do Programa Linha Direta, houve pessoas que confundiram um dos atores com o verdadeiro acusado. No caso, a casa do referido ator foi cercada e o mesmo chegou a ser levado pela polícia para prestar esclarecimentos (ÉPOCA, de 29 nov de 1999). Em outra situação, essa “veracidade” do programa e sua forma especulativa e até mesmo imprudente da instigação em busca de “justiça” foi fatal para Ronaldo Josias de Souza, o qual foi espancado até a morte após ter seu caso exibido no referido programa (MENDONÇA, 2002. p. 56). Saindo do cenário brasileiro e de programas voltados especificamente para a exploração de casos de crimes não solucionados, esse poder midiático pode ser verificado nos telejornais ou nos jornais impressos, da mesma forma que em programas como o citado. Como as pessoas acreditam que se tratam de temas informativos, elas não costumam questionar as informações veiculadas, e não percebem quando fatos – mesmo que graves- são manipulados. O governo Bush controlou o discurso da mídia em parte por meio da desinformação e da propaganda e em parte pelo controle da imprensa graças ao sistema de pool. Nos primeiros dias da “crise do Golfo”, por exemplo, o governo levou a cabo uma campanha de desinformação muito bem-sucedida graças ao controle e à manipulação das fontes que legitimavam a mobilização militar americana na Arábia Saudita em 8 de agosto de 1990. Durante os primeiros dias da crise, o governo americano afirmava constantemente que os Iraquianos estavam mobilizando tropas nas fronteiras da Arábia Saudita, dispostos a invadir esse reino rico em petróleo. Era pura desinformação, e os estudos feitos posteriormente revelaram que o Iraque não tinha a intenção de invadir a Arábia Saudita e não tinha grande contingente nas fronteiras em posição de ataque (KELLNER, 2001. p. 256). Para reforçar essa noção do poder que a mídia teria junto à população e até mesmo frente ao governo, há estudos que apontam que as próprias organizações criminosas se utilizam dela para causar o impacto desejado, qual seja, de medo, insegurança e muitas vezes de desespero. 1178 As Brigadas Vermelhas da Itália, por exemplo, adequaram-se às rotinas produtivas da mídia, realizando prioritariamente suas operações às quartas-feiras e sábados a fim de ocupar o maior número de páginas das tradicionais edições de quintas e domingos, sempre mais generosas na cobertura dos fatos. [...] Comenta-se que o choque do segundo avião contra a segunda torre do WTC foi retardado para assegurar que todas as câmeras de televisão estivessem focadas no prédio no momento do impacto. Na Europa, tanto o IRA como a ETA avisam a imprensa com antecedência da explosão de uma bomba (WAINBERG, 2005. p. 63/72). Todas essas manipulações ou seleção dos fatos “mais importantes” feita pela mídia resulta na criação de pseudoperigos. Isso faz com que as pessoas a abandonem espaços públicos, a busquem novas formas de garantir a segurança de suas residências (ampliando o mercado das empresas de segurança privada) e a se centrem em discussões superficiais procurando soluções imediatistas que as livrem de enfrentar os reais problemas como os de políticas públicas. Outra importante consequência da “midiatização do medo da criminalidade” é a sua influência na política, redundando na elaboração de legislação que, atendendo aos clamores midiáticos, cada vez mais alargam o âmbito de interferência do Direito Penal na vida social, bem como incrementam o seu rigor na tentativa de “tranquilizar” a alarmada população, proporcionando-lhe maior “segurança” por meio da atuação do sistema punitivo[...]”(CALLEGARI, WERMUTH, 2009. p. 64). No senso comum, esse modo de tranquilização passa, evidentemente, pela criação de novos tipos penais ou pelo enrijecimento das penas, acreditando-se que o mito, a falácia de que “punir mais é melhor” é a solução dos problemas sociais. a construção de novas prisões, a redação de novos estatutos que multiplicam as infrações puníveis com prisão e o aumento das penas – todas essas medidas aumentam a popularidade dos governos, dado-lhes a imagem de severos, capazes, decididos e, acima de tudo, a de que “fazem algo” não apenas explicitamente pela segurança individual dos governados mas, por extensão, também pela garantia e certeza deles- e fazê-lo de uma forma altamente dramática, palpável, visível e tão convincente (BAUMAN, 1999. p. 127). Um dos indícios de que punir mais não é a solução é o fato de que, em países como os Estados Unidos, o qual tem um direito penal máximo, um direito de lei e ordem, os números indicam que mais punição e punição com privação de liberdade não tem resolvido a situação. Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da população viva nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5 milhões na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil são 300 presos por 100 mil habitantes. [...]. O paradoxo dos EUA é que em 75, quando Regan começa a buscar a Presidência, os EUA tinham 100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 manos, a taxa multiplicou-se 1179 por oito. [...]. Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo social. Essa é a questão. [...]. Uma regra que ajudou a aumentar a população carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora. Em direito penal isso significa que após três delitos, que podem ser pequenos, você está preso. Você está fora porque não temos paciência para tratá-lo. Vamos eliminá-lo. [...]. Dos 180 e poucos países do mundo, não passam de 10, 15 os que têm reduzido o número de presos. Na Itália, temos 100 presos por 100 mil habitantes. Há 30 anos, porém, eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro vezes em três décadas. Isso acontece na Ásia, na África, em países que não se comparam com os EUA e a Europa. (..). Mas hoje as pessoas acham que o direito penal que castiga mais tem mais eficiência. (PAVARINI). É claro que não se pode deixar de mencionar que, infelizmente, as pesquisas também são manipuláveis, e por isso, há um grande número de pesquisas com informações contraditórias a respeito deste tema, principalmente sobre os números dos Estados Unidos. Os números acima apontados apenas materializam o que foi dito até o momento neste artigo: punir mais nunca foi e provavelmente nunca será a solução para diminuir a criminalidade. Essa atitude apenas faz com que o medo seja estruturado na Sociedade. Se as expectativas sociais são no sentido de reduzir a criminalidade, é preciso encontrar uma maneira de gerenciar estas comunicações de infrações da lei e medo, e a prisão já se mostrou insuficiente para isso, ao menos no formato atual. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A expansão do Direito Penal é um fenômeno global que tem efeitos nefastos, embora receba a nomenclatura de simbólica. Portanto, um primeiro ponto precisa ficar claro: simbólico nesta circunstância é apenas a sensação de que o problema da criminalidade terá fim. Os efeitos advindos deste tipo de legislação são bem reais e causa o rompimento de estruturas da sociedade. Com efeito, em busca de uma expectativa cognitiva de segurança, além da administrativização, outro fenômeno que se apresenta é o aumento exorbitante de penas para crimes que já se encontravam tipificados em leis anteriores e no próprio Código Penal, ou ainda a previsão de institutos, como o o Regime Disciplinar Diferenciado. É o Estado Democrático de Direito 1180 compactuado com o modelo do Direito Penal máximo e com elementos que mais se assemelham a um Direito Penal do Inimigo. Por trás de tudo isso, tem-se a mídia. Não há negócio mais lucrativo do que jogar com o medo das pessoas. E é exatamente isso que a mídia faz. Como foi demonstrado, os meios de comunicação de massa utilizam-se de artifícios que vão desde a inocente manipulação de fatos através de recursos tecnológicos até, a identificação dos espectadores com os fatos narrados, passando, algumas vezes, pela completa distorção dos acontecimentos e dos números que o envolvem. E essa manipulação dos fatos e a forte influência que a mídia exerce na população é que acaba por fomentar a expansão do Direito Penal. A mídia com seus discursos eficientista incute nas pessoas a necessidade de que haja mais punição porque a violência está descontrolada e por todos os lados, em todos os lugares. Nada mais está seguro e a única forma de se resolver isso é com mais punição e punição que afaste esses delinquentes das ruas em que o cidadão de bem transita. Em razão de todos esses acontecimentos, é que se tentou demonstrar que ideologias como “punir mais é melhor” ou “apenas a pena de prisão pode resolver o problema da criminalidade”, frases essas que são plantadas pela mídia, são falsas e não passam exatamente disso: de mitos. A realidade é que mais punição ou punição através da privação de liberdade historicamente já se mostraram insuficientes e ineficazes. Necessitase de um Direito Penal sério e comprometido, no qual se busque um processo de punição adequado, não só para crimes de apelo popular. Não se quer negar que a criminalidade existe. Ela de fato existe e cresceu muito nos últimos anos. Efetivamente, é preciso ter receio. Agir com cautela e gerenciar condutas e comunicações de risco. O que não pode acontecer é aceitar uma manipulação dos fatos, para incutir um medo descabido que é usado a serviço de interesses individuais. 1181 REFERÊNCIAS ANDRADE, V. R. P. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1997. BECK, U. La sociedad del riesgo: hacia uma nova modernidad. Trad. NAVARRO, J.; JIMÉNEZ, D.; BORRÁS, M. R. Barcelona: Paidós, 1998. __________. La sociedad del riesgo global: amor, violencia, guerra. Trad. REY, Jesús Alborés. Madrid: Siglo, 2001. BOURDIEU, P. Sobre a televisão. Trad. MACHADO, Maria Lúcia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1997. 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Edição 2193 – ano 43 – n 48. 1 de dezembro de 2010. Editora Abril. 1184 CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA DESDE A VITIMIZAÇÃO: ABORDAGEM CRÍTICA A PARTIR DOS DADOS ESTATÍSTICOS DE HOMICÍDIOS DE HOMOSSEXUAIS NO BRASIL NO ANO DE 2013 Valquiria P. Cirolini Wendt, RESUMO: O texto analisa os dados estatísticos sobre homicídios de homossexuais, apresentados a partir de levantamento de dados pelo Grupo Gay da Bahia – GGB, que apontam o Brasil na primeira colocação no ranking mundial de homicídios homofóbicos em 2013. Desde essa percepção, não oficial, e no contexto das mobilizações sociais e da Criminologia, discute-se sobre os altos índices ser um dos principais argumentos utilizados na campanha pela criminalização da homofobia. Ainda, questiona a necessidade de produção do Direito Penal, a fim de discutir se a estratégia normativa é a política adequada para o enfrentamento do problema. PALAVRAS-CHAVE: Homossexuais; Homofobia; Homicídio; Teoria Queer; Criminalização. 1 INTRODUÇÃO Há pelo menos três décadas o Grupo Gay da Bahia – GGB53 faz levantamento de notícias relacionadas aos crimes de homicídios cometidos contra homossexuais no Brasil. Essas informações são organizadas e, posteriormente, divulgadas através de relatórios de dados estatísticos referente a este crime. O Brasil vem sendo apontado como um dos líderes do ranking de países com elevado índice de crimes homofóbicos54 contra lésbicas, gays, bissexuais, 53 O Grupo Gay da Bahia é a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil. Fundado em 1980, registrou-se como sociedade civil sem fins lucrativos em 1983, sendo declarado de utilidade pública municipal em 1987. É membro da ILGA, LLEGO, e da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT). Em 1988 foi nomeado membro da Comissão Nacional de AIDS do Ministério da Saúde do Brasil e desde 1995 faz parte do comitê da Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC). Ocupa desde 1995 a Secretaria de Direitos Humanos da ABGLT, e desde 1998 a Secretaria de Saúde da mesma (GGB, 2003, s/p). 54 Crime homofóbico é praticado “por um não homossexual, tendo como motivo ou inspiração do crime o fato da vítima pertencer a uma minoria sexual socialmente estigmatizada e extremamente vulnerável, ou por ostentar um estilo de vida diferenciado” (CARVALHO, 2014, p. 265). 1185 transexuais, travestis e transgêneros – LGBTs. Essas pesquisas trazem resultados que apontam um aumento desse crime a cada novo período observado. No entanto, é necessário resaltar que esses dados não são oficiais55; ao contrário, são obtidos através de levantamento de notícias vinculadas na mídia sobre crimes praticados contra homossexuais, principalmente em relação ao crime de homicídio, pois não há uma apuração oficial a respeito desses “números”, de modo que, eles podem ser ainda maiores ou não56. Diante destes resultados, há aumento das manifestações para que seja criminalizada a homofobia no Brasil, sendo apontada esta como a principal maneira de diminuir os homicídios contra homossexuais no país. Neste contexto será analisado, a partir da importância destes dados, a atuação da mídia e a pressão da população (a favor ou contra), o porquê da criminalização da homofobia ainda não ter sido aprovada. Seria o direito penal, utilizado como um mecanismo de contingenciamento jurídico, realmente fundamental para haver uma redução do número de casos, ou melhor, a política adequada para o enfrentamento do problema seria a estratégia normativa? Deste modo, pretende-se analisar, a partir dessas questões, se a opção da criminalização da homofobia é a única ou a forma mais adequada a ser utilizada para se alcançar o reconhecimento dos direitos dos homossexuais ou são necessárias outras políticas públicas por parte de Estado. 2 PANORAMA SOBRE OS DADOS ESTATÍSTICOS (NÃO OFICIAIS) RELATIVOS A HOMICÍDIOS DE HOMOSSEXUAIS NO BRASIL NO ANO DE 2013 55 No momento em que é realizado o registro policial em Boletins de Ocorrência (BOs) referente ao crime de homicídio não há nenhum “campo” específico para que seja indicada a homofobia como um motivo presumido, deste modo, com a falta desse dado, não há como se obter um levantamento oficial de quantas situações de violência acontece por motivação homofóbica. Os casos registrados são todos através de coletivos e organizações não governamentais (ONGs) (SANDER, 2014, s/p). 56 O fato de ser noticiada a morte (homicídio) de um homossexual não significa que a causa/motivação para este crime tenha sido em razão da sua orientação sexual. 1186 Atualmente, muito se tem falado e escrito na mídia sobre casos de violência envolvendo homossexuais, principalmente no que se refere ao crime de homicídio. Dados estatísticos são divulgados com informações de que a cada ano este tipo de crime vem aumentando consideravelmente. Desde o início da década de 1980, movimentos sociais LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros) no Brasil, em iniciativa pioneira do Grupo Gay da Bahia, realizam o levantamento de notícias relacionadas a homicídios cometidos contra a população LGBTs no sentido de embasar estatísticas não oficiais sobre homofobia no Brasil. Estabeleceu-se, pois, uma série histórica de dados que permite comparar, se não o número real de assassinatos de caráter homofóbico no Brasil, pelo menos o volume de notícias relacionadas a este tipo de crime na mídia brasileira (RELATÓRIO SOBRE A VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA NO BRASIL, 2012). O Grupo Gay da Bahia – GGB (2014) divulgou o Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais no Brasil (LGBT) relativo ao ano de 2013, informando que foram documentados 312 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil, apontando que: [...] a cada 28 horas um homossexual brasileiro foi barbaramente assassinado em 2013, vítima da homofobia. Nunca antes na história desse país foram assassinados e cometidos tantos crimes homofóbicos. A falta de políticas públicas dirigidas às minorias sexuais mancha de sangue as mãos de nossas autoridades. E 2014 começa ainda mais sanguinário: só neste último Janeiro foram documentados 42 homicídios, um a cada 18 horas [...]. Ainda de acordo com o referido relatório, o Brasil continua sendo o campeão mundial de crimes homo-transfóbicos: segundo agências internacionais, 40% dos assassinatos de transexuais e travestis no ano passado foram cometidos no Brasil. A região nordeste continua sendo a mais homofóbica do Brasil, concentrando 43% das mortes, seguido de 35% no Sudeste e Sul, 21% no Norte e Centro Oeste. Pernambuco e São Paulo são os estados com maior número de casos e os estados do Acre e Espírito Santo onde menos casos foram registrados. No Rio Grande do Sul, por sua vez, foram detectadas 1,16 mortes para cada milhão de habitantes. Deste modo, embora os dados sobre homicídio possam sugerir um aumento da violência “antigays” no Estado, sendo apontado que em 2013 foram 1187 13 casos de homicídios de homossexuais no RS, isso não quer dizer que os gaúchos estejam entre os mais homofóbicos do país. Comparando-se o número de registros com o tamanho da população, o Rio Grande do Sul fica abaixo da média nacional de 1,55 mortes por milhão de habitantes (GONZATTO, 2014). Foi traçado o perfil dessas vítimas e verificou-se que 7% dos LGBTs tinham menos de 18 anos quando foram assassinados; 31% tinham menos de 30 anos e 10% mais de 50 anos. A faixa etária considerada com maior risco de assassinato (55%) está entre 20-40 anos. Outro dado observado é quanto à violência extremada com que este tipo de crime é cometido, confirmando, desse modo, o que a Vitimologia costuma chamar de “crime de ódio”. Dos 312 homicídios analisados no relatório, a maioria foi praticado com arma branca e, em segundo lugar, com arma de fogo. Também foram identificadas mortes por espancamento, asfixia, fogo, entre outros meios. Da mesma forma, traçou-se o perfil dos assassinos, embora com maior dificuldade diante da falta de dados, uma vez que apenas ¼ dos homicidas foram identificados nos inquéritos policiais. Entre os identificados, cerca de 17% tinham menos de 18 anos e 85% abaixo de 30 anos. Deste modo, como apontado pelo relatório do GGB (2014), fica demonstrado como é alto o índice de homofobia entre os jovens. Outro dado que chama a atenção é em relação ao fato de que 1/5 desses crimes terem sido praticados por 2 a 4 homens e, assim, fazendo com que a defesa da vítima se tornasse ainda mais difíceis. No entanto, cumpre-nos observar, que os dados foram pautados em notícias coletadas pelo Grupo Gay da Bahia, referentes aos casos ocorridos durante o ano de 2013. É não consta nenhum dado ou confirmação oficial desta estatística, muito menos de como as polícias militares e civis costumam atender e tratar esses casos. Deste modo, estes números ainda podem ser diferentes, maiores ou menores, já que nem sempre a orientação sexual foi a razão do crime, e um grande número de outros casos não entra nessa estatística porque a vítima esconde sua condição ou, simplesmente, o crime não virou notícia. Nesse sentido, afirma o secretário-geral do Nuances – Grupo pela Livre Expressão Sexual –, Célio GolIn: 1188 Faltam dados mais concretos. Por isso, uma das nossas batalhas é que a polícia tenha um olhar mais direcionado, ao registrar a ocorrência desse tipo de crime, se a motivação pode ter relação com a homossexualidade para que isso apareça claramente no inquérito (GONZATTO, 2014). Ao analisar estes dados, Luiz Mott, antropólogo da Universidade Federal da Bahia (GONÇALVES, 2014), considerado um dos pioneiros do movimento no País, relatou que “nunca se matou tantos gays e, sobretudo, lésbicas, que teve um número muito maior de assassinatos do que em anos anteriores”. Para Mott, a única forma de redução dos crimes de homicídio de homossexuais seria a criminalização da homofobia. Para o Presidente do GGB, Marcelo Cerqueira (MOTT; ALMEIDA; CERQUEIRA, 2010), há quatro soluções emergenciais para a erradicação dos crimes homofóbicos: [...] educação sexual para ensinar aos jovens e à população em geral o respeito aos direitos humanos dos homossexuais; aprovação de leis afirmativas que garantem a cidadania plena da população LGBT, equiparando a homofobia e transfobia ao crime de racismo; exigir que a Polícia e justiça investiguem e punam com toda severidade os crimes homo/transfóbicos e finalmente, que os próprios gays, lésbicas e trans evitem situação de risco, não levando desconhecidos para casa e acertando previamente todos os detalhes da relação. A certeza da impunidade e o estereótipo do gay como fraco, indefeso, estimulam a ação dos assassinos. Segundo o antropólogo Osvaldo Fernandez (2011) “será com a criminalização da homofobia e com uma política de educação sensível à diversidade sexual que conseguiremos transformar o contexto das atuais violações dos direitos humanos dos homossexuais no Brasil.” Com relação à criminalização da homofobia, havia o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006 tramitando no Congresso Nacional há mais de uma década e foi arquivado recentemente (SENADO FEDERAL, 2015a). Sobre o tema da criminalização, voltar-se-á a discuti-lo posteriormente. 3 HOMOFOBIA SOB O OLHAR DA TEORIA QUEER A teoria queer surge da cultura intelectual gay e lésbica a partir da metade dos anos 1980, inspirada especialmente pela crítica ao modelo de definição das identidades sexuais e de gênero como estáveis e fixas (heteronormatividade). 1189 Ainda, procura concentrar-se menos às identidades e mais nas práticas sexuais, incluindo, dessa forma, tanto travestis e drag queens, quanto sadomasoquistas etc. (FURLANI, 2009). O termo queer foi mantido no vernáculo inglês por assim já estar consolidado, entretanto, poderíamos traduzi-lo de várias formas, segundo Salo de Carvalho: [...] como um adjetivo, se aproxima de estranho, esquisito, excêntrico ou original. Como substantivo normalmente é traduzido como homossexual; mas o seu uso cotidiano e a sua apreensão pelo senso comum denotam um sentido mais forte e agressivo, com importantes conotações homofóbicas: ‘gay’, ‘bicha’, ‘veado’, ‘boneca’ (CARVALHO, 2014). Diferente não é o que acentua Anzaldúa (2009, p. 207), ao conceituar o termo queer: Como es sabido, el término <<queer>> es rico em connotaciones. Si bien designa lo <<raro>> o <<extraño>> es también la palabra usada para designar de forma peyorativa a lãs personas homosexuales. Em esos casos, se há preferido La traducción al español. Sin embargo, queer adquiere también um uso político, y deviene um término que se apropia del insulto para reivindicar el carácter subversivo de toda práctica que desestabilice la moralidad convencional. Em los casos em que La palabra tiene este sentido, y dado que no hay um término em español que permita. Portanto, queer engloba termos que são utilizados para insultar, falar mal e se referir aos homossexuais. Embora toda a sua carga de estranheza e de deboche, é assumido pelo movimento homossexual como uma forma de protesto contra a normalização e à estabilidade das propostas pela política de identidade. Deste modo, “queer passa a ser, também o sujeito da sexualidade desviante – bissexuais, homossexuais, transexuais, travestis, drag queens” (MASIERO, 2013). Esta teoria surge como uma forma de chamar a atenção para o fato de como uma política de identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela pretende se insurgir e para isto se utiliza como foco principal a crítica à oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria central que organiza as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre os sujeitos. Dentro deste contexto de protesto, segundo Miskolci (2009, p. 169), é que surge a teoria queer no fim da década de 1980 nos Estados Unidos com uma proposta de mudança de foco dos estudos de minorias que caracterizaram a maioria dos empreendimentos na sociologia para os processos de construção da 1190 sexualidade a partir da díade hetero/homossexualidade. Ainda, para o autor, “o queer mantém, portanto, sua resistência aos regimes de normalidade, mas reconhece a necessidade de uma epistemologia do abjeto57, baseada em investigações interseccionais” (MISKOLCI, 2009, p. 173). Deste modo, com as pesquisas sociológicas focadas nos processos normalizadores resultariam na criação das identidades e sujeitos subordinados. Neste sentido, como já mencionado, a teoria queer, surge como forma de oposição dos homossexuais com relação às instituições políticas tradicionais quanto à normalização e à estabilidade das propostas de política de identidade sexuais julgadas como “normais”, ou seja, a heteronormatividade e buscam ser reconhecidos como sujeitos de direitos. 4 A HOMOFOBIA E SUA CRIMINALIZAÇÃO Antes de adentrar no estudo sobre a criminalização da homofobia, a primeira questão a ser enfrentada é acerca do significado e da extensão do termo homofobia. Este termo é geralmente utilizado para descrever uma atitude de hostilidade contra homossexuais, tanto homens quanto mulheres. Segundo Borillo (2010): Homofobia pode ser definida como hostilidade geral, psicológica e social, contra aqueles e aquelas que, supostamente, sentem desejos ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu próprio sexo. Forma específica do sexismo, a homofobia rejeita, igualmente, todos aqueles que não se conformam com o papel predeterminado para seu sexo biológico. Construção ideológica que consiste na promoção constante de uma forma de sexualidade (hétero) em detrimento de outra (homo), a homofobia organiza uma hierarquização das sexualidades e, dessa postura, extrai consequências políticas. Ou seja, vivemos em uma sociedade em que a sexualidade “normal” em nosso meio é a heterossexual e, desta forma, constitui-se um padrão heteronormativo de mundo, onde há uma cultura que busca condicionar 57 Segundo Butler (2010, p. 155), “o abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’, e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do “inabitável” é necessário para que o domínio do sujeito seja circunscrito. […] Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, ‘dentro’ do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio”. 1191 determinados comportamentos que visam à heterossexualidade e, deste modo, todas as outras orientações sexuais são vistas como anormais, desviantes, problemáticas, sendo, na melhor das hipóteses, entendidas como “diferentes” (WELZER-LANG, 2001). Insatisfeita com esta situação e diante da apresentação de dados estatísticos que revelam, senão o aumento do número real de assassinatos de caráter homofóbico no Brasil, pelo menos o aumento no volume de notícias relacionadas a esse tipo de crime na mídia brasileira, a comunidade dos Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais mobiliza-se há muito, com o fito de conseguir tutela estatal58. Uma das propostas é a utilização do Direito Penal, criminalizando condutas que se relacionem com o preconceito em virtude da orientação sexual. Neste sentido, o Coordenador da pesquisa realizada pelo Grupo Gay de Bahia há mais de três décadas, Luiz Mott lamenta que, diferentemente de países como Argentina e Chile, onde o Legislativo e o Executivo abraçaram a causa, o Congresso brasileiro nunca tenha aprovado uma lei para os cidadãos LGBT. Nossa última esperança continua sendo o Poder Judiciário, disse Mott, assinalando que, em dezembro passado, a criminalização da homofobia sofreu mais um golpe, ao ser excluído do texto do novo Código Penal (PLC 122) em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal (FRANÇA, 2012, s/p). Conforme referido anteriormente, com relação à criminalização da homofobia havia o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 122/2006, que buscava definir como crime a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero alterando a norma incriminadora dos arts. 1º, 3º, 4º, 8º e 20, da Lei 7.716/89, bem como § 3º do art. 140 do Código Penal. Este projeto vinha tramitando no Congresso Nacional há mais de uma década59 e, por ter passado mais de duas legislaturas sem decisão, o PLC foi arquivado e o assunto poderá ser pauta no 58 A criminalização da homofobia tem sido a pauta da maioria dos movimentos sociais dos homossexuais, especialmente os conhecidos como “Parada Gay”, exemplo que ocorreu na Parada Gay de São Paulo, em 2014, com o lema "País vencedor é país sem homolesbotransfobia. Chega de mortes! Pela aprovação da lei de identidade de gêneros!", militantes cobraram a criminalização da homofobia e mais direitos para os transgêneros (ESTARQUE, 2014, s/p). 59 Este projeto foi apresentado na Câmara em 2001, pela deputada Iara Bernardi (PT/SP), e lá aprovado em 2006, quando então seguiu para o Senado onde ficou aguardando ser votado até o início deste ano de 2015, quando foi arquivado (SENADO FEDERAL, 2015a). 1192 projeto de reforma do Código Penal - PLS nº 236/2012 (SENADO FEDERAL, 2015b). Esta situação torna-se curiosa, na medida em que, ao se analisar a política criminal brasileira dos últimos anos, percebe-se uma crescente tendência à expansão penal, com uma grande facilidade, por parte do parlamento, na aprovação de leis penais, pois os legisladores se deixam levar pela empolgação da mídia e a grande pressão exercida pela sociedade exaltada pelo sentimento de medo e insegurança e acabam por criar novos tipos penais de forma precipitada e sem uma discussão devida da matéria60. Como já mencionado, apesar da forte campanha, seja pela mídia (através de divulgações constantes de violência contra homossexuais, especialmente o crime de homicídio), seja por parte dos movimentos sociais dos LGBTs e parte da população, para que a homofobia seja criminalizada, não foi o suficiente e, após mais de uma década esperando por aprovação, o projeto acabou sendo arquivado. Uma explicação para isto pode ser intensa oposição de bancadas conservadoras, particularmente a religiosa com a matéria do PLC nº 122 e, ainda, a contrariedade de grande parte da sociedade que, por consequência dos preconceitos internalizados e crenças religiosas que se declaram como verdades absolutas, a admitir que os homossexuais sejam protegidos de uma maneira específica, como se fez com a lei de criminalização do racismo e/ou da Lei Maria da Penha (tratamento processual especial à violência doméstica). Não se admite no Brasil que a um negro possam ser atribuídas “características” negativas, mas aqueles acham válido fazer esse exercício a respeito de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (BAHIA e SILVA, 2015, s/p). No entanto, embora tenha ocorrido o arquivamento do PLC nº. 122/2006, ainda persiste o intento na criminalização e a pergunta que se impõe, nas palavras de Salo de Carvalho, é quanto à legitimidade jurídica (constitucional) e política da tutela da livre orientação sexual e da identidade de gênero, ou seja, “se 60 A produção legislativa penal brasileira caminha simultaneamente às pressões exercidas pelos veículos de comunicação em massa. Ocorre que essa produção não vem sendo acompanhada de avanços positivos, em virtude de o legislador atuar de forma imediatista, tentando ceder aos apelos da Mídia. A guerra comunicacional prejudica sobremaneira os profissionais do direito que se veem diante de leis espalhafatosas, produzidas diante do clamor popular ensejado por casos criminais célebres (MASCARENHAS, 2010, s/p). 1193 é legítimo no Estado Democrático de Direito diferenciar os crimes em geral daqueles praticados por preconceito ou discriminação de orientação sexual ou identidade de gênero” (CARVALHO, 2012). Quanto a esta questão, ainda, a posição do autor: Desde este ponto de vista (garantista), não percebo a priori como ilegítima a diferenciação qualitativa dos crimes homofóbico dos demais crimes. Entendo justificável, do ponto de vista da tutela dos direitos fundamentais, a motivação homofóbica adjetivar condutas que implicam em danos concretos a bens jurídicos tangíveis, como a vida (homicídio homofóbico), a integridade física (lesões corporais homofóbicas) e a liberdade sexual (violação sexual homofóbica). Inclusive porque estes bens jurídicos invariavelmente integram a restrita pauta de criminalização defendida nos programas de direito penal mínimo. Retorno (e adapto), portanto, uma conclusão que externei em outro momento, relativa ao debate sobre violência contra a mulher: a mera especificação da violência homofóbica em um nomem juris próprio designado para hipóteses de condutas já criminalizadas não produz o aumento da repressão penal, sendo compatíveis, inclusive, com as pautas políticoscriminais minimalistas (CAMPOS e CARVALHO, 2011, apud CARVALHO, 2014, p. 269). De qualquer modo, trata-se de uma questão muito polêmica, devendo ser amplamente debatida, como deveria ser, a propósito, de toda e qualquer legislação criminal, sobretudo a que pretenda instituir novos tipos penais, haja vista o elevado potencial de carregar consigo graves prejuízos políticos-criminais (MASIERO, 2013). Ainda que se entenda como legítima a criminalização da homofobia, ela não resolve o problema, porque se deve avaliar qual estratégia normativa seria a mais adequada ao tratamento da matéria, tendo em vista as linhas já traçadas do que se entende como forma legítima de tutela penal diante do problema da população LGBTs (MASIERO, 2013). Na avaliação de Carvalho (2014) uma reflexão sobre experiências penais de matérias semelhantes em vigor no Brasil se faz necessária, neste caso, da Lei n. 7.716/1989 (crimes raciais) e Lei n. 11.340/2006 (Lei da Violência Doméstica), por se tratar de dois cases distintos em termos de criminalização, e, que são referenciais. É interessante notar as distintas configurações dos projetos políticoscriminais a partir da consolidação normativa das reivindicações do movimento negro e do movimento de mulheres. A Lei 7.716/89 simplesmente nomina as condutas lesivas resultantes de preconceito de raça e ou de cor e as insere dentro do tradicional sistema repressivo, ou 1194 seja, trata-se de uma inovação de tipos incriminadores no âmbito do direito penal. Em sentido distinto, a Lei 11.340/06 projetou a construção de um novo modelo de gestão de conflitos, com a intenção de superar e ultrapassar as estruturas dogmáticas que reduzem os problemas às esferas penal e civil [...] (CARVALHO, 2014, p. 269). Mais recentemente, houve aprovação da Lei nº 13.104/2015, prevendo o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, portanto inserindo inciso VI no art. 121, § 2º, do Código Penal, quando o delito é cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Também, alterou o art. 1º da Lei nº 8.072/1990, incluindo o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Portanto, mesma estratégia utilizada na Lei dos Crimes Raciais, Lei nº 7.716/1989, conforme a reflexão de Carvalho (2014, p. 269), já exposta anteriormente, qual seja, apenas se nominou novas condutas de violência contra a mulher e as inseriu dentro do “tradicional sistema repressivo”. Já há quem defenda ser inconstitucional a previsão do feminicídio (COSTA, 2015, s/p). Deste modo, o PLC nº 122/2006, com proposta de alteração da Lei nº 7.716/89 como forma de inclusão dos termos relativos à orientação sexual e à identidade de gênero (criminalização da homofobia) não foi a mais adequada. Melhor seria seguir um caminho próprio, que tivesse criatividade para romper a racionalidade penal moderna, ou seja, no sentido de se apropriar do poder simbólico que o direito penal exerce perante a cultura social punitivista e utilizá-lo de forma a produzir o menor dano possível, dentro de uma pauta racional e democrática de política criminal (MASIERO, 2013). Este também é o entendimento de Salo de Carvalho: [...] o problema da criminalização da homofobia no Brasil reside na estratégia utilizada pelo movimento LGBTs. Não vejo problemas de legitimidade jurídica ou de incompatibilidade com o projeto políticocriminal garantista se a forma de nominação (nomenjuris) de o crime homofóbico ocorrer apenas através da identificação de certos crimes em decorrência da motivação preconceituosa ou discriminatória quanto à orientação sexual – por exemplo, especificação da violência homofóbica nas estruturas típicas do homicídio, da lesão corporal, do constrangimento ilegal, do estupro. A técnica legislativa poderia ser restrita à identificação desta forma de violência – sem qualquer ampliação de penas, objetivando exclusivamente dar visibilidade ao problema – através da remissão da sanção ao preceito secundário do tipo penal genérico [...]. No máximo, seguindo o caminho trilhado pela Lei Maria da Penha, a inserção da motivação homofóbica como causa de aumento de pena no rol das agravantes genéricas. (CARVALHO, 2014, p. 270). 1195 Mesmo que se considere o direito penal como um meio de poder facilitar e impulsionar a mudança relativamente à imagem social da comunidade LGBTs, pois a tipificação da homofobia daria um efeito simbólico (em inúmeros casos o efeito simbólico é o único que a criminalização possui), porém ele será ineficaz se não for acompanhada por um trabalho pedagógico, no sentido de demonstrar à população que a sexualidade heterossexual não é incontestável e tampouco compartilhada por todos e que a hierarquia de sexualidades é tão detestável quanto à de raças. Dessa maneira, compreende-se que não precisa, necessariamente, ser utilizado o direito penal, pois as políticas antidiscriminatórias não punitivas de reconhecimento dos direitos civis representa um impacto político muito maior do que qualquer criminalização, pois conseguem quebrar com muito mais vigor o preconceito e, contribuir, assim, para a diminuição da violência (CARVALHO, 2014). Portanto, embora prepondere a “vontade social” de criminalização da homofobia, deve-se ter em conta aspectos outros que representem a fuga do direito penal como único mecanismo capaz de satisfazer e contingenciar os riscos relacionados à opção sexual diferente da heterossexual, riscos estes resultantes da não aceitação da diferença, da não concordância com os “outros” comportamentos sexuais, no caso os homossexuais. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, buscou-se realizar a análise de dados estatísticos divulgados pelo Grupo Gay da Bahia, referentes aos homicídios de homossexuais ocorridos no ano de 2013 no Brasil a partir de levantamento de casos noticiados na mídia e que apontam o Brasil na primeira colocação no ranking mundial de homicídio homofóbico no período analisado e, também, observou-se que estes dados são “usados” como um dos principais argumentos na reivindicação pela criminalização da homofobia. Realizou-se, de forma sucinta, uma abordagem sobre a teoria queer que surgiu no final da década de 1980, como uma forma de chamar a atenção para as reivindicações dos homossexuais e, também, como uma forma de criticar o 1196 modelo de identidades sexuais e de gênero tidos como “normais”, ou seja, a heterossexualidade. Como foco principal deste artigo, foi abordada a questão da criminalização da homofobia, discutindo-se sobre o projeto legislativo que se encontrava em pauta no Congresso Nacional, os possíveis motivos que fizeram com que esse projeto permanecesse por mais de uma década tramitando e que acabou sendo arquivado sem que fosse votado. A tendência é que este tema volte a ser apresentado, entretanto, salienta-se que, caso não seja debatido e sua análise realizada adequadamente com base nos dados não apenas divulgados pela mídia, mas correlacionado com os dados oficiais, poderá conduzir a uma decisão, gerida pela demanda social, mesmo que específica, que cultue o comando normativo penal, ou seja, de se criar um contingenciamento da homofobia que leve a expansão do direito penal, com mais crime e mais pena. Dessa maneira, ainda que se entenda que a utilização da lei possa ser uma forma de facilitar e impulsionar os direitos almejados pela comunidade LGBTs, pois a nominação da homofobia como crime daria um efeito simbólico, isto não bastaria para evitar a discriminação, pois não será a criminalização da homofobia que vai fazer com que os homofóbicos deixem de ter preconceitos. Ao contrário, vão procurar outras formas de manifestar esse sentimento que não pela via da agressão verbal ou física. As pessoas tendem a acreditar nessa expansão do Direito Penal como única alternativa para amenizar o sentimento geral de impunidade, influenciados pelas estatísticas e notícias divulgadas através da mídia (muitas vezes especulativa), elementos que afirmam, e não necessariamente comprovam a existência de um grave problema pendente de solução. No entanto, é preciso muito mais que a atuação coercitiva do Estado através do direito penal, pois se trata de um problema de origem social e, para isso, é necessária a atuação do Estado através de políticas antidiscriminatórias não punitivas e de reconhecimento dos direitos civis o que representará um impacto político muito maior do que qualquer criminalização, pois conseguem quebrar com muito mais vigor o preconceito e, contribuir, assim, para a diminuição da violência. 1197 Deste modo, conclui-se, que não é a criminalização de práticas discriminatórias que fará diminuir estas atitudes e, consequentemente, os índices de violência contra os homossexuais, mas sim, por meio de mecanismos de conscientização e reconhecimento das diferenças será possível alcançar uma igualdade de direitos. REFERÊNCIAS ANZALDUA, G. Miedo a volver a casa: homofobia (1987). In: JIMÉNEZ, R. M. M. (ed.). Manifiestos gays, lesbianos y queer. Barcelona: Icaria, 1 ed., p. 207-208, 2009. BAHIA, A. G. M. 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Acesso em: 2 jan. 2015. 1199 A SOCIEDADE DO RISCO, A MODERNIDADE REFLEXIVA E A REFLEXIVIDADE DO DIREITO CONTEMPORÂNEO: OS CLAMORES DA EFICÁCIA E A CONTEXTUALIZAÇÃO DO JURÍDICO Natalia Brigagão Ferrer Alves Carvalho, RESUMO: Há décadas, a sociologia vem apontando profundas mudanças na dinâmica social, que afetam da escala regional à internacional. O movimento duplo de contingência e internacionalização inerente ao aprofundamento da vida globalizada constitui um inevitável incremento à complexidade das relações intersubjetivas e intercoletivas, e a percepção de que os velhos mecanismos legais do direito positivo moderno clamam por revisões é cada vez mais forte. O Direito passa, hodiernamente, por uma crise estrutural e fundamental. Sob esta percepção e a partir dos estudos de Ulrich Beck, este trabalho objetiva analisar as consequências impostas pela “Sociedade do Risco” ao universo jurídico, orientando-se a partir de uma revisão bibliográfica crítica, centrada nos estudos de Ulrich Beck e seus livros "Sociedade do Risco: rumo a uma nova modernidade" e "O que é Globalização?", com o suporte de outros autores tais como Eduardo C. B. Bittar e seu "O Direito na Pós-Modernidade". É perceptível, pela análise das colocações destes autores, a necessidade de construção permanente de uma reflexividade do Direito em uma Modernidade Reflexiva, tendo como norte a eficácia. É imprescindível, assim, a constante construção de um universo jurídico dialógico e teleologicamente orientado, fundado nas necessidades concretas que ultrapassam os sistemas binários do Direito Estatal, tendo como pedra de toque um arcabouço de Direitos Humanos e Fundamentais de sólida teoria e desenvolvidos artifícios hermenêuticos. PALAVRAS-CHAVE: Direito Contemporâneo; Globalização; Sociedade de Risco Modernidade Reflexiva; 1 INTRODUÇÃO A partir da segunda metade do século XX, um expressivo número de sociólogos passou a alertar acerca de mudanças fundamentais e estruturais nas formas de organização social, que, para muitos, constituíam uma transição para uma nova era; para outros, representavam a reciclagem dos parâmetros de ordenação da modernidade. Em geral, essa corrente teórica é identificada como 1200 “pós-modernismo” – expressão posta por Lyotard –, sendo que há variantes na utilização da expressão de acordo com a interpretação dos fenômenos indicados – lembremos da Modernidade Liquida de Bauman e da Modernidade Reflexiva de Ulrich Beck. Como coloca Bittar, A pós-modernidade é discutida menos como um anseio teórico ou um fetiche acadêmico e mais como um estado de coisas assumido, pois inevitável, presente e fortemente sentido pela sociedade, como um conjunto de mutações que vêm sido provocadas em diversas dimensões, projetando-se em abalos marcantes sobre os conceitos modernos, sob o manto dos quais se conduzia a vida, se organizavam as instituições, se agia socialmente, se estruturavam os relacionamentos humanos, se concebiam as regras morais e jurídicas etc. (BITTAR, 2014, p.1). Os fenômenos da globalização são discutidos por cada corrente em seu particularismo, mas o que é consensual é que os modos de vida desse novo tempo se diferenciam e muito daqueles de algumas décadas atrás e isto impõe uma reavaliação dos parâmetros de convívio, da ética e das instituições, na forma de uma transição paradigmática [...] cujo perfil é ainda imperscutável e até imprevisível. Trata-se de um longo processo caracterizado por uma suspensão ‘anormal’ das determinações sociais que dá origem a novos perigos, riscos e inseguranças, mas que também aumenta as oportunidades para a inovação, a criatividade e a opção moral (SANTOS, 2001, p. 186). Como afirma Bittar, Em lugar das certezas modernas (verdade, ciência, ordem, regra, poder central, norma, código, capital, produção, propriedade, sistema[...]), um outro quadro se instaura em seu lugar, indícios e características de crise e mudança paradigmática, identificáveis a partir de algumas palavras: desmantelamento, descompasso, desestruturação; desagregação; banalização; abalo; incômodo; choque; contradição; desordem; ilegalidade; contracultura; ineficácia. [...] Mas, no momento da crise paradigmática, em plena expansão da crise, deve-se ter uma visão otimista desse processo de reversão de padrões, captando-se em tudo isto um momento privilegiado de reflexão, um momento de reavaliação de valores, um momento de ouvir vozes dissonantes e, enfim, um momento de transformar estruturas de justiça[...].”(BITTAR, 2014, p.146). Neste contexto, o Direito ocupa uma posição estratégica e extremamente delicada, preso entre as rígidas construções clássicas e as necessidades de um palco cujos atores tem fobia à rigidez, mas clamam pela estabilização de seus fluxos efervescentes, imprevisíveis, atordoantes e aparentemente incontroláveis. Há um desassossego no ar. Temos a sensação de estar na orla do tempo, entre um presente quase a terminar e um futuro que ainda não nasceu. O desassossego resulta de uma experiência paradoxal: a vivência simultânea de excessos de determinismo e excessos de indeterminismo. [...] A coexistência desses excessos confere ao nosso tempo um perfil especial, o tempo caótico onde ordem e desordem se 1201 misturam em combinações turbulentas. Os dois excessos suscitam polarizações extremas que, paradoxalmente, se tocam. As rupturas e as descontinuidades, de tão frequentes, se tornam toina e a rotina, por sua vez, torna-se catastrófica (SANTOS, 2001, p. 41). Há, portanto, uma metamorfose radical nas formas de interação e vivência, cuja instabilidade gera cada vez mais desconforto. Isso multiplica a quantidade e a complexidade dos conflitos e exaure os artifícios jurídicos clássicos, já insuficientes, e muitas vezes indesejados por estarem no cerne da Modernidade – situação originária que os tornaria responsáveis, em parte, pela própria situação de desamparo dos novos tempos.61 Ao mesmo tempo em que cresce a demanda pela atuação reguladora do direito, suas vias de oferta se esvaem, anêmicas, gerando uma crise de caráter eficacial.62 Como afirma Faria, a decantada ‘crise’ jurídica ocorre, assim, no 61 “No fundo, se trata de perceber que as promessas da modernidade haveriam, paradoxalmente, de conduzir à Auschwitz, este que pode ser considerado o trauma do século XX, quando os ideais de Aufklarung (corrigir) do século XVIII, foram transformados em aparato para a realização de tánatos. O pensamento de Freud não deixa de ser sensível a esta profunda contradição, o paradoxo da civilização moderna ocidental. Esse movimento próprio da dialética da modernidade, que ainda não cessou de operar, e que se desdobra com as mais recentes transformações do capitalismo toyotista mundializado, continua a produzir efeitos. Desta forma é que nosso tempo se torna uma sucessiva onda de manifestações de violência, atentados, genocídios, guerras e forma de dominação, que torna a assinatura deste tempo muito mais afim com a dimensão de tánatos do que de éros. Quando tánatos ecoa em nosso tempo, a condição hodierna se vê marcada pela indelével marca da ressonância do medo, do temor, da violência, do trauma psicossocial, de cujas ondulações não se pode libertar os indivíduos do hoje. Suas ressonâncias tornam inaudíveis as vezes que falam a favor de éros. Trata-se, portanto, de desmistificar a ideia moderna de progresso”. (BITTAR, 2014, p. 72) Sobre essa (des)mistificação, Beck afirma que o “‘Progresso’ pode ser compreendido como uma transformação legítima da sociedade sem legitimação político-democrática. A fé no progresso substitui o escrutínio. E mais: ela é um substituto para os questionamentos, uma espécie de consentimento prévio sobre metas e resultados que permanecem desconhecidos e indefinidos. Progresso é a tabula rasa assumida como programa político, diante da qual se exige uma aceitação global, como se se tratasse do caminho a ser seguido na Terra rumo ao paraíso celestial. As exigências fundamentais da democracia são viradas de cabeça para baixo no modelo do progresso. [...] “A fascinação que o deus substituto, o progresso, exercia sobre a humanidade na época da sociedade industrial revela-se tanto mais surpreendente quanto mais de perto se contemple sua construção, demasiado mundana. [...] O “progresso” é a transformação social institucionalizada na irresponsabilidade.” (BECK, 2010, p.314-315) 62 Deve-se ressaltar, contudo, que não se pode atribuir a crise de eficácia exclusivamente aos processos de metamorfose pós século XX. “As tentativas de formulação de novos paradigmas normativos, a partir das exigências decorrentes do desenvolvimento capitalista, enfrentam, assim, as tensões permanentemente existentes entre o comportamento real e a conduta juridicamente exigida, bem como entre a conduta juridicamente exigida e a conduta moralmente desejada. Mesmo porque, longe de se constituírem um problema, essas tensões estão na essência do próprio papel do direito, enquanto instrumento de controle social, não podendo ser 1202 momento em que os mecanismos tradicionais de neutralização dos conflitos e trivialização das tensões já não conseguem mais rechaçar aquelas ameaças. (FARIA, 1988, p.90). Bittar ainda completa que A crise de eficácia é um ponto de comprometimento da própria existência e sobrevivência do contrato social, na medida em que a ausência ou inoperância prática das instituições conduz a um profundo abismo entre a legalidade e a facticidade das regras jurídicas. É desse abismo que se nutrem as desavenças sociais, os desvios, as condutas antijurídicas [...]. A crise pós-moderna de eficácia do ordenamento jurídico tornou-se tema de inúmeras reflexões na medida em que passou a representar um problema francamente sistemático [...] capaz de significar a desrazão de toda a arquitetura jurídica projetada para sua aplicação sobre a realidade social. Quando o sistema jurídico não está permeável para absorver identidades, mas apenas testemunha sua ampla defasagem em face dos avanços tecnológicos, reconhecendo a impossibilidade de atender a tantos e tão conflituosos fluxos de divergentes interesses, torna-se inábil para cumprir sua fundamental meta de pacificação do convívio social e da mediação regulamentada dos interesses sociais (convergentes e divergentes). (BITTAR, 2014, p.154-169). Todo esse peso exige que a ciência jurídica se reinvente pela autocrítica, pela autoconstrução, tomando como referencial esta nova sociedade que se articula, superando as dificuldades geradas pela erosão de valores, pela alteração de parâmetros de comportamento, pela decrepitude e pela inadequação das instituições aos desafios presentes, pelas mudanças socioeconômicas, bem como pela explosão da complexidade provocada pela emergência de novos conflitos socioinstitucionais, [...] e pelas alterações profundas nos modos tradicionais de se conceber o ferramental jurídico (BITTAR, 2014, p.8). Será que ainda se pode conviver, num contexto pós-moderno, com fluxos ininterruptos de mudança social, com uma estrutura jurídica inteiramente voltada para a neutralização, apenas ideológica, dos paradoxos sociais? A função do Direito não poderia deixar de estar sintonizada com as querenças e necessidades da sociedade do século XIX, para estruturar-se, por ora, em torno de problemas conjunturais e históricos sensivelmente mais agudos na contemporaneidade? Não deveriam as estruturas conceituais dogmáticas e mas molduras legislativas de adaptarem para servir à realidade sócio histórica da pósmodernidade, em vez do contrário ser o tentado pelos Tribunais? Os paradigmas encontram-se em mutação, e os valores anteriormente consagrados como nucleares para o sistema jurídico erodiram. (BITTAR, 2014, p. 67). É sob esta perspectiva que este trabalho propõe-se a analisar os desafios do Direito Contemporâneo a partir de um olhar geral sobre a ótica moderna confundidas como simples distorções funcionais resultantes das diferenças entre o ritmo das mudanças sociais e o ritmo da atualização e modernização dos códigos.” (FARIA, 1988, p. 89) 1203 reflexiva de Ulrich Beck – que aborda a percepção de que a modernidade se encontra em um processo de autodissolução e rearranjamento, com base em duas dialéticas da modernidade, as ambivalências do mais-moderno e do antimoderno63. Este estudo se desenvolve pela análise das concepções de Globalização e Sociedade de Risco, chaves das duas principais obras do autor. Estas serão aqui analisadas em dois momentos, cada um associado a um tipo predominante de recomposição que traz desafios ao Direito – o primeiro à redinamização espacial, o segundo, à redinamização temporal do comportamento humano. 2 A REDINAMIZAÇÃO ESPACIAL DA MODERNIDADE REFLEXIVA: O DIREITO E A TOPOPOLIGÂMICA “GLOBALIZAÇÃO DAS BIOGRAFIAS” Apesar das muitas divergências a respeito da exatidão do conceito de globalização, é consenso que ela se associa aos fluxos internacionais de capitais, mercadorias, informações e pessoas; representa, portanto, uma interconexão que transcende os limites do espaço físico geográfico. Na interpretação de Ulrich Beck, A globalização significa: surgem alternativas de poder, de ação e de percepção da vida social que desmontam e confundem a ortodoxia da política e da sociedade nacional-estatal. [...] Os sonhos, as ambições, as utopias cotidianas dos homens já não estão mais presas aos espaços geopolíticos e às identidades culturais. (BECK, 1999, p.122-123). Esses fluxos internacionais tão intensificados a partir do século XX, potencializados pela virtualização do mundo, ocasionaram profundas mudanças nas relações humanas, que, em termos espaciais, sofreram uma recomposição em formato de rede dinâmica e complexa de sujeitos que interagem entre si, presos entre as intersecções do global e do local. Na concepção de Beck, 63 “No primeiro caso, a vitória dos princípios básicos modernos gera crises nas instituições básicas modernas. Há ao mesmo tempo crise e não-crise: a continuidade dos princípios modernos leva à descontinuidade das instituições básicas. No segundo caso, a modernidade contraria seus próprios princípios básicos. O autor cita o exemplo da bomba atômica. Da vitória da modernidade criou-se uma arma de sua destruição, transformando o apocalipse, de uma visão religiosa, em uma possibilidade real criada pelo progresso científico. Assim, do sucesso da modernidade criaram-se os riscos globais, os quais colocam os princípios básicos da modernidade à disposição: podem ser destruídos e essa possibilidade por si só já os destrói, em parte.” (MOTTA, 2009, p. 394) 1204 Isto já havia disso entrevisto por Elizabeth Back-Gernsheim [...]: ‘[...]Trata-se, nestes casos, de histórias de vidas muito embaraçadas, movediças e agitadas, que recusam um enquadramento nas categorias já estabelecidas [...]’. [...] O local e o global, como argumenta Robertson, não se excluem. Pelo contrário: o local deve ser compreendido como um aspecto do global, Globalização também quer dizer: a conjunção e o encontro de culturas locais que deverão ainda ser conceitualmente redefinidas em meio a este ‘clash of localities’. Robertson propõe a substituição do conceito base de globalização cultural por glocalização [...]. (BECK, 1999, p. 91-95). Surge, assim, uma sociedade mundial não-territorial, não-integrada, nãoexclusiva, o que não quer dizer que essa forma da diversidade social e da diferença cultural não possui ou não conhece nenhum vínculo local. Essa nova organização não traz [...] anomia, destruição, dissolução do social. Nas biografias multilocais, transnacionais, glocais, os pontos de cruzamento e semelhança entre os homens se ampliam e se diversificam. (BECK, 1999, p. 185). É nessa linha que o autor desenvolve os conceitos de “globalização das biografias” – que traduz a irrestrição geográfica das vidas humanas – e de “topopoligamia” – que interpreta as múltiplas relações entre o sujeito e os diferentes e distantes espaços como uma forma de estar casado com vários lugares e pertencer simultaneamente a distintos mundos, de forma que esses seres humanos compartilham internacionalmente vivências de um destino comum, manifestas nas proximidades improváveis do distante em um mundo sem fronteiras (BECK, 1999, p.99). Como o contemporâneo Bauman também chegou a afirmar, a proximidade física não se choca mais com a distância espiritual. (BAUMAN, 1935, 2005, p.33) Quem deseja compreender a figura social da globalização das vidas individuais deve relativizar as contradições dos diversos locais entre os quais elas são apresentadas. E isto requer, entre outras coisas, uma nova compreensão da mobilidade. [...] Surge no primeiro plano a mobilidade interna da vida individual, que já se habituou a ir e vir, a estar simultaneamente aqui e ali. [...] A mobilidade interna não é, há muito tempo a exceção e sim a regra [...] significa a medida da flexibilidade física e espiritual necessária ou desejada para o domínio desta vida cotidiana entre mundos diferentes. [...] Se a vida individual se expande por diversos lugares, isto pode significar que estas biografias se desenvolvem num espaço comum [...]. A multilocalização não quer portanto dizer [...] nem emancipação e nem a não-emancipação, nem a anomia e nem a não-anomia, nem o automatismo da “visão cosmopolita” e nem um novo fundamentalismo, nem a banalização e nem o alarmismo, nem a difamação [...]. Ela quer dizer: há algo novo, que se tem a curiosidade se der ou experimentar para decifrar este(a) novo(a) (visão de) mundo. (BECK, 1999, p.38-41). 1205 O desligamento da restrição “aqui e agora” – já que o aqui é múltiplo e o agora se esvai na busca pela apreensão dessa multiplicidade – e a consequente flexibilidade física e espiritual fazem com que os indivíduos sejam bombardeados de possibilidades, estas muito mais transcendentes que efetivas. É disso que se decorre o primeiro impacto da globalização (na perspectiva das biografias) ao âmbito jurídico: a complexização da individualidade64. Se a questão da identidade era minimamente previsível e uniforme há dois séculos atrás, hoje esse universo tão vasto de pretensas possibilidades que nos é exibido nas “vitrines” da globalização nos atordoa e faz buscar uma imensa diversidade de elementos para a construção do Eu. Isso se agrava pelo fato de que se têm perdido importância as formas tradicionais e institucionais de supressão do medo e da insegurança no interior da família, no casamento, nos papeis de gênero, na consciência de classe e nas instituições e partidos políticos nela apoiados. (BECK, 2010, p.93) [...] Dessa maneira, surgem sempre novos movimentos de busca, que em parte põem à prova modos experimentais de abordar as relações sociais, a própria vida e o próprio corpo, segundo diversas variantes de subculturas alternativas e juvenis. (BECK, 2010, p.111) O Direito, que se propõe a resguardar o desenvolvimento da personalidade, vê-se obrigado a resguardar também toda essa efervescência inconstante de um eu esparso em busca de si; vê-se impelido a acomodar uma pluralidade exponencialmente maior de sujeitos com ambições cada vez maiores e mais complexas. Quanto maiores e mais complexas essas ambições plurais, maior é o desafio jurídico de proporcionar um “habitat” propício e seguro para seu exercício simultâneo e maximizado – principalmente num contexto de 64 “Repentinamente nos vemos lançados diante de um quadro [...]: as antinomias e as contradições dos continentes, culturas, religiões [...] transcorrem incessantemente na vida de cada pessoa. O global não espreita e ameaça sob a forma de Todo exterior – ele faz seu ninho e chama a atenção no espaço de origem da vida das pessoas. Mais ainda: constitui uma boa parcela da autenticidade e da particularidade da vida própria.” (BECK, 1999, p.136) 1206 descentralização dos âmbitos de atuação e influência, o que Beck trabalha mais a fundo pelo conceito de subpolítica.65 Ao mesmo tempo, a uniformidade das situações e casos jurídicos se esvai com a uniformidade dos sujeitos, exigindo uma flexibilização cada vez maior. Já afirmou Luiz Roberto Barroso, com enorme sensatez, que o paradigma jurídico, que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora para o caso concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser resolvido. (BARROSO, 2001, p. 3-4) Neste contexto de particularização, os princípios – normas mais porosas à flexibilidade da realidade concreta – tornam-se indispensáveis ao juízo, ao passo em que o perigo da relativização excessiva torna imprescindível o desenvolvimento hermenêutico. Movamo-nos ao segundo impacto da globalização (na perspectiva das biografias) ao Direito – a complexização da sociabilidade –, que também se decorre desta supracitada pluralidade pulsante e glocalizada. Ao passo em que a diversidade de sujeitos e personalidades cresce, cresce também a potencialidade de conflitos e litigiosidade; ao passo em que isso se esparrama para além dos espaços sociais geográficos óbvios, esses conflitos são desencaixotados e desafiam a jurisdição clássica, cuja previsibilidade escapa à compartimentação do Direito. Temos, desta forma, uma demanda maior e primária, a quantitativa, que traz uma demanda secundária e qualitativa: a de mecanismos inéditos para resolução de dinâmicas conflituosas inéditas, não mais presas ao sistema binário que pressupõe o envolvimento simplificado de dois agentes únicos em polos antagônicos, circunscritos por um Estado soberano clássico.66 Nesse contexto complexo, a demanda pela resolução judicial de conflitos não se restringe ao termo médio, rígido, artificial – o Estado – mas exige cada vez 65 Sobre esse desafio de regulação da esfera de atuação não-central, melhor desenvolvido por ele em longas considerações no livro "Sociedade de Risco: rumo a uma nova modernidade", Beck afirma: “Minha resposta é a seguinte: por meio de uma ampliação e da garantia jurídica de possibilidades específicas de controle da subpolítica., assim como uma esfera pública forte e independente, com tudo o que isto pressupõe." (BECK, 2010, p. 340) 66 “Juntamente com estes fatos, os conflitos deixam de ter a proporção e a perspectiva de serem conflitos individuais, e passam a se tornam conflitos conjunturais, coletivos, associativos, difusos, transindividuais, motivando o colapso das formas tradicionais de se atenderem as demandas para as quais somente se conheciam mecanismos típicos do Estado liberal, estruturado sobre as categorias do individual e do burguês.” (BITTAR, 2014, p.142) 1207 uma intersecção da mínima e da máxima escala – do pluralismo jurídico intraestatal e do Direito Internacional, que florescem com a crise do Estado – já que são conflitos glocalizados, postos entre os paradoxos do local e do global. Ressalta a importância de um direito contextualizado espacialmente, já que a particularidade deve ser o enfoque, mas universalizado na interconexão global, ambas as dimensões em diálogo cujo árbitro potencial mais apto parece ser os Direitos Humanos67. Temos, portanto, os desafios: a) de uma pluralidade subjetiva cada vez mais aguda, que deve ser resguardada pelo Direito em sua proteção do desenvolvimento de personalidade, bem como de esferas de atuação igualmente difusas, no âmbito da subpolítica, que exigem Tribunais fortes, mas igualmente abertos e dialógicos; b) de casos cada vez mais complicados e desuniformes, que exigem uma ponderação muito mais atenciosa, fundada na porosidade normativa dos princípios e na hermenêutica; 67 Em vários momentos, Ulrich Beck aborda com extrema sensatez a questão do universalismo e do relativismo dos Direitos Humanos. Para ele, os “direitos humanos não devem ser submetidos ao universalismo universalista da forma inventada pelo Ocidente que deveria ter validade em todo o globo [...] (e)xistem versões dos direitos humanos até mesmo nos diferentes cantos da Europa. [...] As reinvindicações provenientes de outras partes do mundo remetem a outra compreensão dos direitos. [...] Com a curiosidade de outras tradições e concepções não ocorre, como teme o universalismo universalista, algo como o abandono da ideia da equidade de direitos para todos os homens. “Somente” pode começar, ou melhor: só agora começa uma disputa das culturas, dos povos, dos Estados e das religiões pelas mais ricas dentre as concepções de direitos humanos, E se inicia o enfeitiçado diálogo sobre o assunto. [...] O universalismo contextual afirma: é preciso abrir daquilo que possuímos de mais sagrado para a crítica dos outros”. (BECK, 1999, p. 153-155). Esta concepção mostra a possibilidade de conciliação jurídica entre o global e o local de forma não negligenciar nenhuma das duas perspectivas, já que o “universalismo contextual parte da constatação [...] de que a não-mistura é impossível [...] vivemos na era da semelhança, toda tentativa de manter seu isolamento e de buscar refúgio na ideia de que há mundos separados é grotesca, inadvertidamente cômica. O mundo é a caricatura de um incontestável (não)-diálogo consigo mesmo e com os outros. [...] Não existem mundos separados. Existe a multiplicidade de um contexto global descontextualizado diante do qual o retorno ao não-diálogo parece ser algo idílico. Em substituição ao pacto de não-mistura, considerado inviável, entra em cena a admissão da vida glocal. [...] Não está em discussão o se, mas o como da miscigenação, de tornar-se miscigenado, da contra – ou com-mistura. [...] O contextualismo absolutista afirma: deixe-me em paz! Mas não por ser proibida a perturbação da paz, mas por ela não ser capaz de transpor os abismos da não-comparabilidade. E no final, o resultado continua a ser o mesmo. Em contraposição, o princípio do universalismo contextual afirma: não há escapatória diante da falta de paz promovida pela mútua mistura, não há escapatória possível. [...] Mas surge esta possibilidade: há o meu e o seu universalismo – um universalismo plural. [...] (BECK, 1999, p.149-153) 1208 c) de uma litigiosidade crescente em magnitude e dinamicidade, não- binária e não-compartimentada como esperam os artifícios da jurisdição clássica, o que impõe uma visão cada vez mais ampla, flexível e dialógica da realidade e do Direito, para que ele supra as duas dimensões do crescimento da demanda judicial; d) de um necessário e constante escapamento do Direito das tradicionais vias estatais, que ressalta a imperiosidade de valorização das perspectivas jurídicas glocalizadas, interseccionando o pluralismo jurídico intraestatal e o Direito Internacional a partir da conciliação dos Direitos Humanos (vistos sob a ótica do que Beck denomina universalismo contextual). Como é perceptível, o mínimo denominador comum entre tais realidades é a exigência cada vez mais aguda de um universo jurídico poroso, flexível, dialógico, sendo o grande trunfo do Direito Contemporâneo sua composição axiológica fundada nos princípios, nos Direitos Humanos e Fundamentais68. A redinamização temporal da Modernidade Reflexiva: o Direito, o determinismo do futuro, o "poder-ser" e o "dever-ser" Segundo Ulrich Beck, a sociedade do risco designa uma época em que os aspectos negativos do progresso determinam cada vez mais a natureza das controvérsias que animam a sociedade. Desta forma, não se trata, pois, de analisar os perigos como tais, mas de demonstrar que, diante da pressão do perigo industrial que nos ameaça [...] aparecem chances de novas configurações. (BECK, 2010, p. 1) Sob esta perspectiva de renovação, analisaremos o deslocamento de referencial temporal dessa nova conditio humanitas descrita 68 Como coloca o próprio Beck, “Direitos fundamentais são, nesse sentido, pontos decisivos para uma descentralização da política com efeitos amplificadores de longo prazo. Eles oferecem várias possibilidades de interpretação e, em situações históricas diversas, sempre novos pontos de partida para romper com interpretações restritivas e seletivas até então válidas. A mais recente variante desse aspecto verificou-se na ampla ativação política dos cidadãos, que, com uma diversidade de formas que ultrapassa todos os esquemas políticos habituais – de grupos de iniciativa, passando pelos assim chamados “novos movimentos sociais”, até formas alternativas e críticas de atuação profissional (entre os médicos, químicos, físicos nucleares etc.) - , usufruem, com urgência extraparlamentar, de seus direitos antes de mais nada formais e dãolhes a vida que faz com que sejam algo pelo que lutar.” (BECK, 2010, p.290) 1209 pelo autor e algumas possíveis perspectivas sobre os seus efeitos na dinâmica jurídica. O conceito de Sociedade de Risco refere-se à uma situação histórica específica, característica da Modernidade Reflexiva, que impõe esforços teóricos e práticos para a adaptação dos modos de vida e das instituições às novas necessidades. Como esclarece Estevão Bosco, a sociedade de risco designa uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna em que os sucessos da modernização industrial passam a gerar efeitos colaterais imprevisíveis, diagnosticados como causa de danos e destruições (ambientais, econômicos, políticos e individuais) e, num segundo momento, como riscos cientificamente projetados e social, econômica e politicamente percebidos e geridos. Efeitos estes que tendem a escapar dos mecanismos de controle e proteção institucional da sociedade industrial. A sociedade de risco é caracterizada por uma ambivalência expressa: o progresso técnicoeconômico não necessariamente corresponde a progresso social. (BOSCO, 2012, p.5). O que torna essa nova forma de percepção e relação com os riscos peculiar e imprescindível? Todas as sociedades temem a morte, as doenças, os incêndios, as inundações, a fome, os temporais e a guerra; todas as sociedades conhecem os riscos que a ameaçam; todas as sociedades procura evitar danos (HERMITTE, 2005, p.7), mas só na sociedade moderna-reflexiva de risco essas percepções referem-se a consequências amplamente catastróficas e presentes de formas tão difusas e aparentemente inescapáveis, já que tão intrínsecas. A sociedade de risco é marcada fundamentalmente por uma carência: pela impossibilidade de imputar externamente as situações de perigo, vendo-se, ao lidar com riscos, confrontada consigo mesma. Riscos são um produto histórico, a imagem especular de ações e omissões humanas, expressão de forças produtivas altamente desenvolvidas.” (BECK, 2010, p.275) Na modernidade reflexiva, paira de maneira constante o fantasma da iminência. No terrorismo que apavora, nas catástrofes ambientais, no transgênico cancerígeno: a sensação de risco é tão intensa e onipresente que desloca o eixo de referência do passado para o futuro – um futuro não em-si, mas empotencialidade. Há uma inflação da percepção do movimento ação-consequência, com simultâneo e paradoxal atordoamento, tanto pela inestimabilidade da 1210 consequência, quanto pela indeterminabilidade da ação, em um mundo não mais binário69 e compartimentado. Beck explica que Sociedade de risco significa: o passado perdeu o seu poder de determinação sobre o presente. Entra no lugar o futuro – ou seja, algo que não existe, algo fictício e construído – como a causa da vida e da ação no presente. Quando falamos de riscos, discutimos algo que não ocorre mas pode surgir se não for imediatamente alterada a direção do barco. (BECK, 1999, p. 178). É esse aspecto da sociedade de risco que este enfoque propõe abordar: essa redinamização temporal do comportamento humano, agora muito mais voltado ao futuro. A atenção que antes não vislumbrava de maneira tão sensível as consequências, não se voltava para o ser-no-futuro e nem agia tendo-o como norte, agora procura avaliar este espectro de probabilidades. O referencial para a ação no presente não é mais o passado, é o que está por vir, nisso inclusos de maneira especial e protagonista os riscos. A questão que redefine o comportamento é a difícil e turva escolha entre muitas possibilidades, entre muitos peculiares poder-ser. O Direito, como dever-ser social – ou seja, como a busca de um poder-ser específico – tem então a incrível oportunidade de colocar-se em consonância com este paradigma e não só superar sua crise de eficácia, mas renovar-se observando seu enfoque central: a constante construção de uma ordenação social futura por ele regulada e estabelecida. A ciência jurídica tem, em seu cerne, o potencial para tornar-se um referencial na ponderação de escolha hojeamanhã, ou seja, na gestão do probabilidades e riscos – agora tão inflados – de maneira reorientar-se para sua efetividade. Para tal, é necessário que o Direito imponha a si mesmo algumas perspectivas. Primeiramente, é preciso que ele se veja, como o contexto em que se insere, reflexivo. Tendo sofrido os processos das duas dialéticas dessa fase da modernidade – a mais-moderna, pela crise de muitas das suas instituições, anêmicas demais para suportar a pressão da demanda pela eficácia dos princípios jurídicos, e a antimoderna, pelo uso de seus ferramentais contra estes 69 Enquanto anteriormente era simples a determinação do conjunto das causas em uma lógica binária quase que ao estilo agressor-vítima, hoje “a complexidade das causas leva a discussão do universo nas causas”, já que “a pluralidade das possíveis causas e ainda mais interações a forma com a qual produzem efeitos que se juntam a ouras causas para produzir novos efeitos provocam um certo desânimo”. (HERMITTE, 2005, p. 11) 1211 mesmos princípios70 – a ciência jurídica vê-se em momento de autocrítica e renovação. Se o Direito é um dever-ser, seu dever-ser máximo é a organização da sociedade – como já entendeu Norberto Bobbio71 – e deve-ser este seu eixo de orientação para sua recomposição reflexiva. Em virtude disso, é necessário que o Direito constitua-se como teleológico, em dois sentidos. No primeiro e fundamental sentido, teleologicamente orientado pela busca da melhor eficácia na organização desta nova sociedade, adaptando-se às necessidades e ansiedades desta. Bittar nos lembra que a crise que mais de perto se estará a discutir é aquela referente à eficácia do Direito, pois de nada adianta pensar-se no Direito como regra de dever-ser (Sollen) isolada do ser (Sein) (BITTAR, 2014, p. 10). O objetivo máximo é a máxima harmonização das e com as necessidades sociais atuais e futuras. No segundo e decorrente sentido – já contextualizado nessas necessidades específicas da sociedade reflexiva –, teleologicamente voltado ao manejamento dessa nova disposição temporal que se coloca, ou seja, dirigido a 70 Este movimento antimoderno, que é usualmente exemplificado pela bomba atômica, pode ser, no âmbito mais restrito do Direito, relacionado ao próprio uso do ferramental jurídico nas Grandes Guerras para a promoção de atrocidades. O sucesso do Direito Positivo acabou por esfacelar a própria segurança jurídica que era por ele proclamada. Já o primeiro movimento dialético entre os princípios e instituições jurídicas, o mais-moderno, é indiretamente abordado pelo autor: "[...] ambos os processos – o empalidecimento do intervencionismo do Estado Social na esteira de seu sucesso e as ondas de grandes inovações tecnológicas com ameaças futuras até o momento desconhecidas – somam-se a uma dissolução das fronteiras da política e, na verdade, em duplo sentido: de um lado, direitos estabelecidos e assim percebidos reduzem as margens de manobra no sistema político e fazem com que surjam fora do sistema político demandas por participação política sob a forma de uma nova cultura política (iniciativas da sociedade civil, movimentos sociais)". Ao mesmo tempo, "a perda em termos de poder estatal de conformação e realização não é, nesse sentido, expressão de um certo fracasso político, e sim produto da democracia e da política social realizadas, em meio às quais os cidadãos sabem dispor de todos os meios de intervenção e controle público e judicial para a defesa de seus interesses e direitos.” (BECK, 2010, p.278) Em resumo, "quanto mais exitosamente direitos políticos foram conquistados, estabelecidos e avivados ao longo deste século, tanto mais energicamente foi questionado o primado do sistema político e tanto mais fictícia se tornou ao mesmo tempo a concentração decisória pretendida pela cúpula do sistema político-parlamentar" (BECK, 2010, p.285) 71 “Quem desejar compreender a experiência jurídica nos seus vários aspectos deverá considerar que ela é a parte da experiência humana cujos elementos constitutivos são: ideais de justiça a se realizar, instituições normativas para realiza-los, ações e reações dos homens frente àqueles ideais e a estas instituições. Os três problemas são três aspectos diversos de um só problema central, que é o da melhor organização da vida dos homens em sociedade” (BOBBIO, 2001, p. 53-54) (grifos meus). 1212 atuar hoje pelo referencial da eficácia do dever-ser no amanhã, onde se encontra o risco, onde se encontra o poder-ser que deve(-)ser regulado. Essa imprescindibilidade do Sein abordada por Bittar, portanto, refere-se a um Sein não só presente mas também futuro, ocupado pelas peculiaridades da dinâmica açãoconsequência da sociedade de risco. O jurídico não pode, numa sociedade já tão repleta de iminências indesejáveis, dar-se ao luxo de ignorar a discussão acerca d’“o que queremos” e “como alcançaremos”, nem a riqueza de sua pluralidade, nem a oportunidade que deriva de sua ocorrência72. Há duas alternativas: adaptar-se à supremacia do futuro ou definhar no apego ao passado. Não cabe mais, por exemplo, enxergar hoje que uma sanção tem (pre)dominância sobre uma medida reparadora qualquer, se aquela acarretará mais prejuízo futuro a à sociedade, em seu saldo negativo, enquanto esta sanará os prejuízos daquele dano e prevenirá sua recorrência. Em termos gerais, não cabe qualquer decisão que, em supervalorização do passado, se esqueça que este é imutável e, na sociedade do risco, perdeu seu poder de determinação sob o presente (BECK, 1999, p. 178) de tal forma que o que importa é o Sein de amanhã, entre seus muitos "podes" e "deves". É necessário que as instituições jurídicas que objetivam se adaptar à modernidade reflexiva levem em consideração: o que trará efeitos mais adequados à eficácia do dever-ser? De que forma o Direito pode, tendo em vista um específico desvio do dever-ser para um não dever-ser, cumprir sua função primordial de ordenar, organizar, harmonizar o convívio social de forma alcançar o resultado almejado? Já foi citada a sensata afirmação de que o paradigma jurídico, que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora para o caso concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser resolvido. (BARROSO, 2001, p. 3-4). Devemos não só enfatizar o uso meticuloso da expressão "resolvido", que sugere um caráter quase que restaurativo, mas também acrescentar que este mesmo paradigma não se limita àquele caso 72 Como coloca o próprio autor, “por trás de todas as retificações, cedo ou tarde emerge a questão da aceitação e, com ela, a velha nova questão: como queremos viver? O que há de humano no ser humano, de natural na natureza, que é preciso proteger?” (BECK, 2010, p.34) 1213 concreto em sua localização temporal passada, mas aos seus efeitos e possibilidades decorrentes da atuação e reverberação no futuro. O foco do Direito moderno-reflexivo configura-se tendo pela eficácia constante (presente e futura) do dever-ser; por isso, o paradigma jurídico passa a constituir-se teleologicamente. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS A modernidade reflexiva, em escala espacial e temporal, vive um constante paradoxo: o glocal. Biográfica, exacerba diferenças, acentua particularidades; internacionalizada, exerce pressões equalizadoras, acentua interdependências, torna complexo o movimento ação-consequência. Enquanto o regresso (infinito) às questões “sou realmente feliz?”, “sinto-me realmente realizado?” e “quem é que aqui na verdade diz e pergunta ‘eu’? conduz a modos sempre novos de respondê-las (BECK, 2010, p. 145) num individualismo e numa diferenciação peculiares, amigo e inimigo, leste e oeste, em cima e embaixo, cidade e campo, preto e branco, sul e norte são todos submetidos, no limite, à pressão equalizante dos riscos civilizacionais que se exacerbam. Elas contêm em si uma dinâmica evolutiva de base democrática que ultrapassa fronteiras, através da qual a humanidade é forçada a se congregar na situação unitária das autoameaças civilizacionais. (BECK, 2010, p.57) A vida privada de fato se torna extremamente especifica, mas seu individualismo esbarra nas circunstâncias de um contexto que esvai entre os seus dedos, sobre o qual se exerce ínfimo controle. Ínfimo também é o controle que se tem sobre o futuro, sobre o próprio vir-a-ser, sobre o próprio (auto)determinismo. Desta forma, [...] surge uma nova imediação entre indivíduo e sociedade, a imediação entre indivíduo e sociedade, a imediação entre crise e enfermidade, na medida em que as crises sociais surgem como se fossem individuais, sendo que somente sob uma série de condições e mediações seu caráter social pode ser percebido. (BECK, 2010, p.110). O fato é que a dinâmica social foi desterritorializada – principalmente no que concerne à dinâmica do risco –, o que tornou as relações humanas mais complexas, e, principalmente, complexas as decisões e as ações humanas. Há 1214 novas fontes de conflito e consenso, a novas fontes de catástrofes e soluções, de forma que as causas esfarelam-se numa vicissitude generalizada de atores e condições, reações e contrarreações, o que confere evidencia social e popularidade à ideia sistêmica. (BECK, 2010, p.39) Para a compreensão dos desafios desta nova sociedade, a expressão “sistêmica” é um conceito chave. As interconexões que compõem esse gigante e complexo sistema e aniquilam pretensões de estabilidade e compartimentação exigem ação pensada, cautelosa e flexível, que seja capaz de manter-se de maneira positiva num mundo que parece precisar do senso existencialista de responsabilidade para gerir a si próprio. A imprescindibilidade desta revisão de responsabilidade emerge quando os maniqueísmos são dissolvidos, quando os laços se tornam embaraçados, quando cresce o sentimento de que “estamos todos no mesmo barco”. O efeito socialmente circular de ameaça pode ser generalizado, já que cedo ou tarde se atinge a unidade entre culpado e vítima, sendo que no mais inconcebível dos casos – o cogumelo atômico -, isto é evidente: ele aniquila inclusive o agressor (BECK, 2010, p.45); sob este risco, somos obrigados a redirecionar nossas ações com atenção ao Sein futuro. Como já afirmou Beck, não é possível continuar a aceitar o mito da imprevisibilidade dos efeitos. Não é a cegonha que traz os efeitos – eles são feitos (BECK, 2010, p. 262), e, num contexto tal como esse, a direção é regular quais deles desejamos e quais combateremos de forma evitar a latência do efeito circular de ameaça. Essa atitude teleológica, cuja necessidade já foi abordada, insiste que temos de lidar com uma ‘variável projetada’, com uma “causa projetada” da atuação presente, cuja relevância e significado crescem em proporção direta à sua incalculabilidade e ao seu teor de ameaça, e que concebemos para definir e organizar nossa atuação presente. [...] (BECK, 2010, p.40). A grande questão é: como o Direito deve organizar sua atuação presente? Toda teleologia tem seu referencial, qual será o de uma ciência jurídica modernareflexiva? Não há pretensão de precisar tal resposta. Num mundo tão complexo, a unificação de um valor universal parece um tanto forçada e ilusória; a discussão de tais objetivos deve ser central e incessante, nunca definitiva. O que podemos 1215 afirmar se restringe ao fato de que, num contexto plural, biográfico e interdependente, não há alternativa senão manter uma flexibilidade controlada e não omissiva, ou seja, que se adapte à diversidade, à complexidade e à intensidade das vidas humanas. Na visão sistêmica, é necessário que se regule com muita atenção as consequências – e, decorrentemente, a responsabilidade – de forma que todas estas biografias possam se desenrolar ao máximo, como é de seu desejo. É preciso gerar efeitos positivos, permitir o desenvolvimento da maneira mais próxima possivel à plenitude de maneira aliar a auto realização individual a uma visão quase holística, de forma acalmar os conflitos, reduzir os danos e garantir que os anseios e interesses de todos esses sujeitos de direito sejam valorizados devidamente – daí a emergência do paradigma de valorização jurídica máxima da pessoa. Para isso, não há muitos caminhos senão a busca proativa de uma garantia universal de desenvolvimento que não rotule e estipule um conceito de desenvolvimento, mas procure conciliar a diversidade sistêmica dos projetos de vida, que, inegavelmente, não se harmonizam por si mesmos. Destaca-se a necessidade deste tipo de visão quando se percebe que [...] se por um lado as biografias individualizadas seguem estruturalmente atadas à autoconfiguração, por outro lado elas se abrem até o limite do interminável. Tudo aquilo que parece isolado numa perspectiva teórico-sistêmica se converte em componente integral da biografia individual: família e trabalho assalariado, educação e ocupação, administração e transporte, consumo, medicina, pedagogia etc. [...] Visto dessa forma, trata-se de situações institucionais individualizadas cujos nexos e fissuras, negligenciados no nível sistêmico, acabam gerando permanentemente, tanto nas biografias individuais quanto entre elas, pontos de fricção, empecilhos à harmonização e contradições. Sob tais condições, a condução da vida se converte na superação biográfica de contradições sistêmicas. A biografia é – com base na formulação de N. Luhmann – a soma das racionalidades subsistêmicas, e de modo algum o meio ambiente que as envolve. Não é só que a compra do café na loja da esquina eventualmente se torna uma questão relativa à contribuição com o espólio dos trabalhadores rurais sul-americanos. Não é só que a onipresença dos pesticidas transforma uma formação básica em (anti)química num pré-requisito para a sobrevivência. (BECK, 2010, p.201) (grifos meus) Caberia [...] proteger e ampliar o nível já alcançado de direitos sociais e democráticos contra investidas (BECK, 2010, p.341), no âmbito dos Direitos Humanos e Fundamentais, tendo em vista um Direito não só teleológico mas axiteleologico; construindo um sistema dialógico, poroso, que mantivesse, com os 1216 devidos limites, a autonomia das margens decisórias judiciais73 em Tribunais fortes e independentes (BECK, 2010, p. 340), de forma garantir o protagonismo da melhor decisão para o caso concreto74. Esta decisão, por sua vez, – e aí está uma das (de)limitações a serem postas à autonomia – não deve ceder ao particularismo de ignorar ao seu entorno, mas sim considerar os amplos aspectos que se relacionam sistemicamente com aquela situação individual, levando em conta as complexidades da redinamização espacial de nossos tempos e orientando-se pelo referencial temporal que tal complexidade exige. REFERÊNCIAS BARROSO, L. R. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ, v.1, n.6, set. 2001. BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. BECK, U. O que é a globalização? Equívocos do globalismo; respostas à globalização. Tradução de André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999. BECK, U. Política na sociedade de risco. Tradução de Estevão Bosco. Campinas: Ideias. 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Teoria da norma jurídica. 1.ed.São Paulo: Edipro, 2001. 73 Afirma Beck que “na posição profissional de juiz, protegida na Alemanha pelo direito administrativo, tornam-se visíveis, em parte através de novas formas de percepção e interpretação e em parte através de alterações externas, margens decisórias parcialmente autônomas, que, conforme percebem com perplexidade uma comunidade de juízes e uma esfera pública surpresas, também vêm sendo utilizadas de modo controverso nos últimos anos.” (BECK, 2010, p.291) 74 É interessante a colocação do autor que demonstra a flexibilização da norma positiva nessa busca pelo protagonismo do caso concreto – “Para o legislador, isto leva à seguinte consequência: ele vê-se cada vez com mais frequência colocado no banco dos réus nos tribunais.” (BECK, 2010, p. 292) 1217 BOSCO, E. Reflexividade, incerteza e risco: uma crítica imanente da teoria da Sociedade de Risco Mundial de Ulrich Beck. VII Congresso Português de Sociologia. Porto, 2012. FARIA, J. E. O. C. Eficácia jurídica e violência simbólica: o direito como instrumento de transformação social. São Paulo: EDUSP, 1988. MOTTA, R. Sociologia de risco: globalizando a modernidade reflexiva. Sociologias, Porto Alegre, ano 11, nº 22, jul./dez. 2009. SANTOS, B. de S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2001. VARELLA, M. D. (org); HERMITTE, M. A. Governo dos Riscos. Brasília: Rede Latino-americana-europeia sobre Governo dos Riscos, 2005. 1218 DIREITO, RISCO E SOCIEDADE INDUSTRIAL: O SISTEMA JURÍDICO NA PERSPECTIVA DE ULRICH BECK Damáris Costa Ribeiro, Rafael Lazzarotto Simioni, Rodrigo Pedroso Barbosa, RESUMO: Quando se pensa em risco, geralmente pensa-se em risco em plano individual. Mas quando se pensa na relação entre o Direito e a decisão jurídica, os riscos vão além destes limites. Direito acontece em um ambiente social e não matemático ou probabilístico. Por conseguinte, é preferível, que a noção de risco também seja fundada em riscos sociais, especialmente quando vivemos em uma sociedade globalizada onde riscos ultrapassam fronteiras, são não localizados e possuem contornos não delimitáveis. Quais os limites do risco de uma catástrofe ecológica? De um acidente nuclear? Como se pode mitigar a perda da camada de ozônio e o aquecimento global? Em menor escala, mas ainda de maneira mais ampla do que o antigo conceito de risco, estão os riscos de decisões jurídicas e atividade legislativa. O risco de uma nova lei ou de um novo precedente, que pode afetar milhares de pessoas, sua segurança, patrimônio, renda, saúde etc. Nessa perspectiva, a questão central desta pesquisa é qual a relação do risco com o direito? O presente artigo objetiva compreender a relação do risco com o Direito, especificamente nas questões do que representa o risco na sociedade contemporânea globalizada, a diferenciação entre risco e vulnerabilidade, e como o Direito pode funcionar como mecanismo de absorção de risco, algo não mais possível através dos mecanismos anteriores da sociedade industrial. Utiliza-se a metodologia analítica, em especial através do pensamento de Ulrich Beck. Na sociedade mundial de risco, as nações não conseguem, sozinhas, resolver os problemas. Devem dialogar para minimizar os riscos e perigos, assessorar umas às outras e aliarem-se, conforme imperativo cosmopolita. Vencer os problemas exige esforços políticos globais, no entanto, nada ocorrerá sem conflito. As soluções estão nas negociações e não nas guerras. A reflexividade da sociedade de risco global, a expansão dos riscos, a quebra de fronteiras dos estados-nações decorrentes da globalização, a quebra da fórmula do progresso tecnológico equivaler a progresso social, nos levam a uma ruptura com os mecanismos de gerenciamento e compensação de riscos existentes na sociedade industrial. Ulrich Beck propõe, então, como solução para esta auto incapacitação a própria responsabilidade pelos efeitos colaterais, ampliam-se e garantem-se juridicamente controles subpolíticos. E ainda aponta a importância de tribunais fortes e independentes e uma esfera pública forte e independente. 1219 PALAVRAS-CHAVE: Risco; Direito; Globalização; Decisão Jurídica 1 INTRODUÇÃO A noção de risco geralmente está associada a perigos em um plano individual. O risco de um acidente, de uma doença, de uma catástrofe, parecem poder ser calculados na forma das probabilidades e com contornos delimitados. Assim nos apresenta o chamado risco pessoal. O homem primitivo que empunhava sua lança e saia para caçar estava sujeito ao risco de ser morto por animais selvagens. O homem antigo que se engajava em um combate, com armas de cobre, estava sujeito ao risco do oponente ser mais habilidoso ou possuir armas de aço. O homem moderno que se lançava ao mar com pretensões expansionistas estava sujeito aos riscos inerentes de tal empreita: intempéries, doenças, fome. Eram todos riscos delimitados, ou ao menos delimitáveis, e de natureza pessoal, ainda que pudesse se expandir às pessoas próximas, como a família do caçador que, em face da morte do mesmo, corria o risco de forme. E esses riscos, antigamente, podiam ser enfrentados mediante a fé religiosa. Na modernidade, contudo, enquanto probabilidades, os riscos passam a ser calculáveis. E enquanto delimitados, parecem poder ser mitigáveis. Cientistas ao longo dos séculos vêm estudando o risco, em suas diversas manifestações temporais. Assim como o caçador pode ir em bando, um homem contemporâneo pode analisar o mercado para calcular o risco de um determinado investimento ou de uma atividade. Esses cálculos são baseados em médias estatísticas e se fala em risco enquanto probabilidade de um evento. Casos que caem fora desses limites são tratados como anomalias estatísticas e, se necessário, mitigados. Fala-se de risco aceitável, controle e gerenciamento de riscos, seguros e garantias. Unidades de análise de risco, com o micromort (HOWARD, 1980, p. 89-113), foram criadas com o maior rigor científico. Um cidadão comum nos EUA, em 2010, tem um risco de morte, por qualquer causa, de 22 micromorts por dia (MURPHY; XU; KOCHANEK; 2014). 1220 Entretanto, todos estes estudos foram focados em riscos individuais, localizados, delimitados. Quando se pensa no Direito e na decisão jurídica, os riscos vão além destes limites individuais delimitáveis e mitigáveis. O Direito acontece em um ambiente social, e não matemático e probabilístico. Por conseguinte, é preferível, e não premente, que a teoria de risco também seja fundada em riscos sociais, especialmente quando vivemos em uma sociedade globalizada onde riscos ultrapassam fronteiras, são não localizados e possuem contornos não delimitáveis. Afinal, quais os limites do risco de uma catástrofe ecológica? De um acidente nuclear? Como se pode mitigar a perda da camada de ozônio e o aquecimento global? Em menor escala, mas ainda de maneira mais ampla do que o antigo conceito de risco, estão os riscos de decisões jurídicas e atividade legislativa. O risco de uma nova lei ou de um novo precedente, que pode afetar milhares de pessoas, sua segurança, patrimônio, renda, saúde etc. Recorre-se então ao pensamento de Ulrich Beck, sociólogo do risco, com a ajuda do qual é possível perguntar: qual a relação do risco com o Direito? O presente artigo objetiva estabelecer uma reflexão sobre a relação do risco com o Direito. Nessa perspectiva, a pesquisa procura inicialmente a) distinguir as diferenças entre a concepção de sociedade industrial e sociedade de risco, para depois b) analisar o problema da relação entre a globalização do risco e a territorialidade das juridisdições; em um segundo momento, c) explicita-se a diferença entre perigo e vulnaribilidade e d) a identificação de possíveis mecanismos sociais contemporâneos de mitigação ou absorção de riscos. A questão central é como o Direito pode funcionar como um mecanismo social de absorção de riscos, já que os mecanismos tradicionais, como a fé religiosa ou a “fortuna” já não são mais mecanismos suficientes de justificação das condutas arriscadas. E para serem alcançados esses resultados, esta pesquisa utiliza a metodologia analítica, através do estudo das obras do referencial teórico da sociedade do risco de Beck e obras afins, visando assim questionar e expandir o conhecimento jurídico na área. 1221 2 SOCIEDADE INDUSTRIAL E SOCIEDADE DE RISCO A transição da primeira modernidade – sociedade industrial clássica - para a segunda - sociedade mundial de risco - traz como problema central e consequência: uma sociedade construída por riscos incontroláveis, em nome do progresso, e desestruturada pelas incertezas. [...] assim como no século XIX a modernização dissolveu a esclerosada sociedade agrária estamental e, ao depurá-la, extraiu a imagem estrutural da sociedade industrial, hoje a modernização dissolve os contornos da sociedade industrial e, na continuidade da modernidade, surge uma outra configuração social. (BECK, 2011, p. 12-13). A ruptura que indica a passagem da sociedade industrial clássica para a sociedade mundial de risco define-se por ter ocorrido de forma "indesejada, despercebida e compulsiva no despertar do dinamismo autônomo da modernização.” (BECK; GIDDENS; LASH, 2012, p. 18). A sociedade industrial clássica ostenta estas características: sociedade nacional, crença no progresso, exploração econômica da natureza com consequências “invisíveis”, oferta de tecnologia advinda da industrialização, distribuição de seguridade social, pleno emprego (e conflitos das suas relações), sociedade de classes ou camadas sociais, antagonismo entre os interesses conflitantes dos partidos políticos, grandes grupos, ciência institucionalizada, continuidade, concretização (ou instabilidade em sua própria concretização), tradição familiar, união da escassez - produção e distribuição de riquezas, utopia da segurança científica dos riscos vinculados aos lugares em que foram gerados riscos controlados tanto geográfica como economicamente e linearidade. Na sociedade industrial clássica, a produção de certezas é cega às ameaças. A segurança propagada carrega um risco intrínseco, até então “inconsequente” e gerado aos "outros". E, assim como os riscos a riqueza, é licitamente distribuída de forma socialmente desigual. As “sociedades de classe são sociedades nas quais, para além das trincheiras de classe, a disputa gira em torno da conspícua satisfação das necessidades materiais. Contrapõem-se fome e fartura, poder e impotência” (BECK, 2011, p. 54). Para Ulrich Beck é a primeira modernidade. “A força motriz na sociedade de classes pode ser resumida na frase: tenho fome! O movimento 1222 desencadeado com a emergência da sociedade de risco, ao contrário, é expresso pela afirmação: tenho medo!" (BECK, 2011, p. 60). Na segunda modernidade, a produção de riqueza acompanha sistematicamente a produção social de riscos. Mas o que são riscos? O conceito de riscos é moderno. Riscos referem-se à antecipação, com destruições que ainda não ocorreram, mas são iminentes (BECK, 2011, p. 39). São as consequências "permitidas" por decisões "calculáveis", sem avaliação dos seus reflexos, em nome do progresso. Sociedade de risco significa: o passado perdeu seu poder de determinação sob o presente. Entra em seu lugar o futuro – ou seja, algo que não existe, algo fictício e construído – como a causa da vida e da ação no presente. Quando falamos em riscos, discutimos algo que não ocorre, mas que pode surgir se não for imediatamente alterada a direção do barco. (BECK, 1999, p. 179). Na sociedade de risco, assinalam-se os seguintes aspectos: autonomia inconsequente, que ganha o processo de modernização; ameaça, que surge para toda a humanidade; ubiquidade dos riscos gerada pela imprevisibilidade nuclear; força atômica, que gera a possibilidade de destruição de qualquer tipo de vida no planeta terra; riscos que se esgueiram da consciência; quebra das fronteiras; mundo à mercê da contaminação; incalculabilidade dos efeitos nocivos da modernização; intenso crescimento econômico; instabilidade dos mercados financeiros globais; alta velocidade do desenvolvimento tecnológico; engenharia genética; individualização; dinamismo; abstração; velocidade das transformações atreladas à falta de controle, que leva às incertezas; dissolução da família nuclear e dos papéis dos sexos na família, etc. A segunda modernidade é caracterizada pela incerteza. A “classe” torna-se um conceito insuficiente perante as dificuldades das desigualdades da sociedade mundial de risco (BECK, 2011, p. 366). Nesta sociedade a visibilidade das diferenças da sociedade industrial clássica dá lugar à invisibilidade dos riscos que ameaçam e transcendem quaisquer fronteiras, no entanto, não exclui que alguns sejam mais afetados pelos riscos que outros. Nos "efeitos colaterais imperceptíveis" existem os que têm poderes para decidirem quem serão os mais afetados pelos riscos, trata-se da "vulnerabilidade social". O que se anuncia sobre riscos para a sociedade já foi discutido a portas 1223 fechadas pelos que lucram com os riscos, pois, à medida que há a percepção pública dos riscos surge uma sociedade autocrítica (BECK, 1999, p. 177). Existe a necessidade de politização decorrente da percepção pública dos riscos. Há a necessidade de mobilização política para que a população mais vulnerável tenha consciência dos riscos, visto que não são iguais para todos. A população mais afetada não tem essa noção, quais poderão ser as consequências. Os segredos entre os poluidores e os potenciais receptores tendem a diminuir quando o direito, a economia, a ciência, a política trabalham em conjunto e refletem sobre a questão ecológica, descobrindo-a como poder (BECK; GIDDENS; LASH, 2012, p. 86). Na sociedade de riscos, antecipam-se danos ecológicos, nucleares, genéticos, bioquímicos, econômicos, industriais, militares, informacionais, científicos, políticos, sociais e individuais, que se revelam como consequências incontroláveis das decisões humanas como civilização e se acumulam diante de um futuro produzido pela modernização. A sociedade de riscos não quantifica ou qualifica. Beck distingue risco de catástrofe. “Risco não significa catástrofe; significa antecipação da catástrofe” (BECK, 2011, p. 362). Entende por riscos a encenação do futuro no presente (presente do futuro), já as catástrofes são desconhecidas para o futuro (futuro do futuro). A antecipação das catástrofes futuras para o presente pode se transformar em uma força política. O autor difere os riscos das "incertezas fabricadas". As "incertezas fabricadas" são impostas pela sociedade, de forma que são imprevisíveis, inevitáveis, incalculáveis, incontroláveis e incomunicáveis. São provocadas pelas respostas sociais à velocidade do desenvolvimento tecnológico, além de identificar também, as ameaças, que são incertezas que o mundo não está preparado para enfrentar. Ameaças não são riscos, são os desastres naturais que vem de fora, são atribuídos a Deus ou à natureza (BECK, 2011, p. 362-363). Aumentam-se os riscos, aumentam-se as ameaças. Na distinção entre a sociedade clássica industrial e a sociedade de riscos, é importante destacar que existem sociedades com ambas as características. Ulrich Beck, em desenvolvimento à linearidade proposta no início da sua teoria, 1224 reconhece que a desigualdade de classes sociais continua existindo concomitantemente a um mundo globalizado pela sociedade de riscos. Para os países mais pobres a linearidade existente na sociedade de industrial convive com a sociedade de risco (BECK, 2011, p. 365). Os conflitos da sociedade industrial clássica entre trabalho/capital, esquerda/direita permanecem (BECK; GIDDENS; LASH, 2012, p. 63). Na proporção em que, na sociedade industrial, a “lógica” da produção de riqueza domina a “lógica” da produção de riscos, na sociedade de risco a “lógica” da produção de riscos domina a “lógica” da produção de riqueza (BECK, 2011, p. 15). Enquanto a sociedade industrial distribui riquezas e a classe de baixa renda sofre com a falta de capital, emprego e seguridade social, na sociedade de riscos, a classe menos favorecida financeiramente continua sofrendo restrições, no entanto, os riscos não abrem exceções, são distribuídos democraticamente. 3 GLOBALIZAÇÃO DO RISCO E TERRITORIALIDADE DA JURISDIÇÃO Na segunda modernidade, o Estado é de ordem transnacional, caracterizado pela unificação global dos riscos. As relações sociais e de poder, ao contrário da unidade entre Estado, sociedade e indivíduo proposta pela primeira modernidade, são desvinculadas dos Estados nacionais (BECK, 1999, p. 181). A globalização é precursora da segunda modernidade apresentada por Ulrich Beck , a qual, como um dos fenômenos da sociedade mundial de risco, ocorre de forma não controlada e descentralizada, tendo como um dos seus desafios a territorialidade da jurisdição. Os riscos têm uma tendência globalizante, são onipresentes, caracterizamse pela sua deslocalização, por não haver “porta de saída”, barreira jurídica, política, econômica, cultural, lingüística ou religiosa que os detenha. “Reduzindo a uma fórmula: a miséria é hierárquica, o smog é democrático” (BECK, 2011, p. 43). Na sociedade industrial clássica, os riscos eram divididos em classes e aos mais poderosos era permitida a proteção, no entanto, na sociedade de risco há o “efeito bumerangue”, isto é, mais cedo ou mais tarde, todos serão afetados pelos riscos, e nem aos mais ricos, que lucraram com eles, é garantida a segurança 1225 (BECK, 2011, p. 44). Na globalização, a soberania dos países sofre interferência cruzada de atores transnacionais (BECK, 1999, p. 30). A transição dos riscos restringidos geograficamente pelas fronteiras nacionais para os riscos democraticamente distribuídos a uma sociedade global exige do direito novos desafios e interpretações. Para Ulrich Beck, existem dois tipos de globalização, uma simples, linear e outra reflexiva. A globalização simples é ameaçadora à medida que homogeniza a cultura e a identidade das nações. A globalização reflexiva ultrapassa a relação contígua (BECK, 2014). Globalização significa a experiência cotidiana da ação sem fronteiras nas dimensões da economia, da informação, da ecologia, da técnica, dos conflitos transculturais e da sociedade civil, e também o acolhimento de algo a um só tempo familiar mas que não se traduz em um conceito, que é de difícil compreensão mas que transforma o cotidiano com uma violência inegável e obriga todos a se acomodarem à sua presença e a fornecer respostas. Dinheiro, tecnologia, mercadorias, informações e venenos “ultrapassam” as fronteiras como se elas não existissem. (BECK, 1999, p. 47). É uma quebra de fronteiras que alia Estados através dos perigos e riscos da segunda modernidade. Ulrich Beck questiona como é possível fazer política na era da globalização. E responde: "percibiendo la globalidad de los peligros, globalidad que funde el aparentemente férreo sistema de la política internacional y nacional haciéndolo maleable" (BECK, 2003, p.20). A globalização é um processo ambivalente e irreversível, afirma o autor, pois os pequenos países, que dela são vítimas, abandonam suas políticas de autarquia nacional e conectam-se ao mercado mundial (BECK, 2003, p. 46). A democracia, na segunda modernidade, é transnacional; a política, cosmopolita. As mudanças climáticas decorrentes das ações humanas ameaçam o planeta e demandam implementação de políticas e vínculos com organizações internacionais. Os países com maior “vulnerabilidade social” e com recursos naturais sofrem pressões internacionais por parte dos mais poderosos, no entanto, desertificados, que impõem uma "globalização" diante de favores econômicos na condição de que não haja desmatamento. Ulrich Beck levanta questões como: até que ponto os países industrializados podem reivindicar que outros em vias de desenvolvimento protejam seus recursos naturais e lhe 1226 garantam os recursos energéticos (BECK, 2003, p. 24). Na estrutura de poder, riscos não são apenas riscos. São também oportunidades de mercado. Na sociedade de risco existem aqueles que são afetados pelos riscos e aqueles que lucram com eles. Por exemplo, na Word Wide Web (www – rede de alcance mundial), a criminalidade informática é transnacional, de modo que um ilícito penal pode ser praticado de qualquer lugar da sociedade mundial de riscos, o que dificulta a definição da jurisdição. Na globalização dos riscos, estão presentes a instabilidade do mercado financeiro global, a velocidade das mudanças na tecnologia da informação, o desenvolvimento das tecnologias sem fronteiras, os crimes ambientais transnacionais, as ameaças terroristas, a plurimodernidade, o pluriuniversalismo, a pluridimensionalidade etc. A impotência das autoridades diante dos acidentes tóxicos e escândalos de lixo tóxico, assim como a avalanche de questões de legalidade, competência e indenização [...] (BECK, 2011, p. 47) são exemplos da criminalidade transnacional que demanda um direito transnacional. Na sociedade mundial de risco, as nações não conseguem, sozinhas, resolver os problemas. Devem dialogar para minimizar os riscos e perigos, assessorar umas às outras e aliarem-se, ‘conforme o imperativo cosmopolita cooperamos todos ou fracassamos todos! (BECK; ZAPEDA, 2014) O autor enfatiza a necessidade da presença de Estados que atuem cooperando entre si, visando a soluções ambientais, políticas, jurídicas e sociais, pois todos serão afetados, as gerações presentes e as futuras. Vencer os problemas exige esforços políticos globais, no entanto, nada ocorrerá sem conflitos. As soluções estão nas negociações e não nas guerras (BECK, 2003, p. 23-26). A perda da soberania e a solidariedade entre os Estados decorre de uma sociedade globalizada pela necessidade da modernização e unida por riscos e perigos incontroláveis. A transnacionalização da Economia, do Direito, da Cultura, da Política, se ainda não é uma realidade posta, é uma realidade vindoura. 1227 4 PERIGO E VULNERABILIDADE "A definição de perigo é sempre uma construção cognitiva e social" (BECK; GIDDENS; LASH, 2012, p. 19). O perigo é imprevisível, imperceptível, incontrolável. É uma das consequências incalculáveis das decisões humanas na sociedade mundial de riscos. Pode ser entendido como produto do desenvolvimento mais avançado da modernidade. O seu diagnóstico corresponde à sensação de inelutável desamparo diante dele (BECK, 2011, p. 8). Desde meados do século XX, as instituições sociais da sociedade industrial enfrentam a possibilidade de destruição da vida no planeta (BECK, 2002, p. 83). Os riscos da modernização, quando os perigos da sociedade industrial se tornam iminentes, somam-se a estes e forma-se “uma peculiar carga de dinamite política” (BECK, 2011, p. 95). É importante o entendimento da dificuldade que a linguagem humana encontra em informar sobre os perigos da sociedade mundial de riscos, uma vez que a sua conscientização é perturbadora para toda a sociedade. Pues la outra cara de admitir la presencia de peligros es reconocer el fracaso de las instituciones, cuya legitimidad se deriva de su afirmación de dominar el peligro. Por eso, el <<nacimiento social>> de un peligro global es un acontecimiento tan poco probable como dramático, más bien, traumático, un aconntecimiento que sacude a la sociedad mundial. (BECK, 2003, p. 16-18). A outra face da presença dos perigos é a falência das instituições de domínio do perigo. A sociedade mundial de risco mostra-se vulnerável, pois os perigos são consequências imprevisíveis, deles só elas restam. Assim como os riscos, os perigos da era nuclear também não podem ser segregados. A violência do perigo suprime todas as zonas de proteção e todas as diferenças entre classes da primeira modernidade. Para uma contaminação nuclear, inexiste uma “saída possível para regiões, países ou continentes inteiros” (BECK, 2003, p. 7). Uma simples virada no tempo pode ser suficiente para que a toxicidade atinja o “outro”, pois o perigo viaja com o vento, com a água, com os alimentos, com os objetos etc.. Por uma contaminação nuclear, pode não haver sobreviventes no mundo inteiro. A sensação é de desamparo (BECK, 2011, p. 710). 1228 Os perigos ambientais apresentam um horizonte de conflito: sempre há perdedores e ganhadores. Os interesses dos que contaminam enfrentam os dos demais. À medida que o perigo se concretiza, aumenta-se o interesse de prevenilo, de evitá-lo, de eliminá-lo, no entanto inclui-se um fatalismo negativo “nada se pode fazer, já é tarde demais” (BECK, 2002, p. 162-163). Os países mais pobres atraem mais os riscos. As indústrias químicas altamente tóxicas tendem a instalarem-se nos países subdesenvolvidos por possuírem uma população desempregada que aceita inconscientemente os riscos em troca de empregos. Todavia, à medida que os riscos se potencializam, tudo se converte em perigo (BECK, 2011, p. 49-53). “As anteriormente celebradas fontes de riqueza (energia atômica, indústria química, tecnologia genética etc.) transformam-se em imprevisíveis fontes de perigos.” (BECK, 2011, p. 62) O perigo transpassa tudo o que lhe poderia opor resistência. Para o perigo não há barreiras, não há controle pela modernidade. O perigo tem acesso a tudo, ao ar, à água, ao solo, aos alimentos, às plantas, aos animais, aos seres humanos (BECK, 2011, p. 9) Na sociedade global de risco, existem três dimensões de perigo, cada uma seguindo uma lógica singular: a crise ecológica, a crise financeira global e o perigo terrorista da rede transnacional que age nesses parâmetros. Nas três dimensões apresentadas, a globalidade do perigo abre oportunidades de ações geopolíticas (BECK, 2003, p. 19). Para Ulrich Beck, o problema do perigo global tem solução global e demanda cooperação global. A ideia dos países de que podem sozinhos dar respostas às questões é a grande ilusão do século XXI. A persistência dos países na individualização das questões faz com que ao invés de evitar as catástrofes, elas sejam multiplicadas. O perigo tende a ser maior à proporção que se nacionalizam as tentativas de soluções para ele. As fusões sociais tendem a serem positivas na busca de respostas (BECK; ZEPEDA, 2014). Na segunda modernidade, a sociedade é interdependente, é autocrítica. Na modernidade reflexiva, apresentada por Ulrich Beck, devemos encontrar respostas aos riscos produzidos. A modernização torna-se “reflexiva” ao passo que se transforma em um problema para ela mesma. Para Beck, é a etapa da 1229 modernidade em que o progresso se autodestrói. Necessária se faz a reflexão das consequências do progresso. Questiona-se: as intervenções irreversíveis e incalculáveis do progresso compensam à existência humana, à natureza etc. Quais são os limites da ciência para lidar com a incerteza a longo prazo? Quais os riscos que o consumo dos transgênicos traz à saúde dos seres humanos? Os cientistas querem evoluir seus trabalhos independentemente do quanto precisam potencializar os riscos em contextos precários. O ser humano e a natureza são vulneráveis àquilo que não é considerado tóxico e tem circulação livre. A ciência considera como risco apenas o que comprovadamente já foi registrado como nocivo aos seres humanos e à natureza, deixando livre para consumo toda e qualquer outra substância. As substâncias tóxicas utilizadas no processo de envenenamento dos alimentos geram riscos e perigos globais e demandam limites de tolerância. Ulrich Beck alerta que a expressão “pouquinho” torna-se “normal”, mas, na verdade, trata-se de um “envenenamento admissível”, coberto pelas lacunas do silêncio (BECK, 2011, p. 79-80). Relevante e especificamente grave também é o problema das concentrações tóxicas nos seres humanos, pois os estudos isolados da toxicidade dos produtos não garantem sua inocuidade (BECK, 2011, p. 31). Mesmo quando são fixados os limites de tolerância para substâncias isoladas, desconsidera-se o envenenamento total. Ademais, não se pode estender o resultado com as experiências em animais para testar os riscos futuros de uma substância isolada, se os efeitos reais serão postos a prova de forma particular e cumulada com outras substâncias nos seres humanos. A verdade científica tem validade finita, sendo constantemente questionada pela própria ciência. Do que é que se deve ter medo ou não são os especialistas a tentar responder, no entanto, foge à capacidade humana dar respostas àquilo que é imprevisível e incontrolável sendo que a possibilidade que resta é sonegar o perigo, que gera menos pânico na população, que é mantida na paz da ignorância e longe da verdade da percepção dos riscos e perigos. 1230 A impotência e a vulnerabilidade dos seres vivos em relação à energia nuclear, às indústrias químicas, à engenharia genética, ao terrorismo e às mudanças climáticas fazem com que uma situação de “normalidade” seja convertida em perigo em questão de segundos. A mutação tende à alteridade, que conduz os seres humanos a aprenderem a lidar com o medo e a insegurança, suportar os perigos e superar as consequências como realidade. “Quando tudo se converte em ameaça, de certa forma nada mais é perigoso” (BECK, 2011, p. 43). Quando não há solução, solucionado está! 5 MECANISMOS DE ABSORÇÃO DOS RISCOS (ECONOMIA, CIÊNCIA, INDIVIDUALIDADE, POLÍTICAS LOCAIS) Com o advento da segunda modernidade e o fim da sociedade industrial, a partir da qual esta nasceu, a maneira como os riscos se disseminam e seus efeitos mudaram. Porém, a demanda da sociedade por garantias e controles continua existindo, muitas vezes ignorando as mudanças na própria realidade do risco. Ulrich Beck indica, diretamente, que a sociedade demanda e confia no controle (BECK, 2014), mesmo com o advento de riscos inconhecíveis. Riscos surgem que não são mais compensáveis, catástrofes novas, inconhecíveis e, principalmente, incompensáveis (BECK, 2014). Ultich Beck nota, frequente e enfaticamente, que as instituições que desenvolvemos para lidar com a incerteza que é criada pela modernidade não são capazes de produzir esta certeza, porque são tão bem-sucedidas, porque têm consequências que vão além dos estados-nações (BECK, 2014). Ora, a economia, ciência, individualidade e políticas locais, bem como várias outras subpolíticas, se encaixam nessa categoria. Vemos o modelo de “seguros” e contingenciamento local, já não são mais possíveis, quando os riscos são globalizados e ultrapassam fronteiras. Vemos claramente isso no clássico exemplo de Chernobyl, mas também em exemplo mais recentes como Fukushima, a crise econômica russa e posteriormente do mercado imobiliário americano e, principalmente, a mudança climática. 1231 A própria ideia de individualização como mecanismo de absorção de riscos não é apenas inefetiva, porém irreal. Na atual modernidade, com a universalização das comunicações e a internet, vamos até além da descrição oferecida por Ulrich Beck sobre a televisão (BECK, 2011, p. 196), quando já indicava que a mesma isola e padroniza. Ao mesmo tempo que temos uma individualização, temos uma padronização que faz com que “circunstâncias individuais, mesmo em sua dependência institucional, já não podem ser limitadas pelas fronteiras dos Estados Nacionais.” Ou seja, mesma tal individualização ainda exista – mesmo que superficialmente – ela não mais representa um isolamento e, na falta deste, não mais opera como mecanismo de absorção de riscos. Nenhuma individualização permite se proteger de catástrofes globais. Nenhuma medida individual (ainda que este “indivíduo” seja um grupo) pode, por exemplo, isolá-lo das consequências das mudanças climáticas globais. Outros mecanismos de absorção tradicionais da sociedade industrial, como a economia e as ciências também caem por terra. Estes, outrossim, acabam se tornando fontes originadoras de riscos. O progresso e o desenvolvimento deixam de ser unicamente mecanismos que evitam, por exemplo, o risco de que uma dada sociedade não tenha alimentos suficientes, através de práticas de aumento de produtividade, e passa a se tornarem riscos devido a estas mesmas práticas, em uma escala ou outra. Alguns falam até mesmo de uma extinção em massa de espécies, apesar de, em termos científicos, isto ainda não estar totalmente caracterizado (DELL’AMORE, 2014). Temos a mudança climática, e mesmo os tão discutidos alimentos geneticamente modificados (GMOs). Como Beck bem indica, de uma sociedade industrial obcecada com o progresso, hoje este progresso se precariza com a ampliação dos riscos (BECK, 2011, p. 296). Temos os efeitos sociais da transformação tecnológica. Talvez um dos casos mais exemplificativos da reflexibilidade da sociedade de risco global seja a recente descoberta de amostras do vírus da varíola em um depósito da FDA (Food and Drug Admnistration) dos Estados Unidos (EUA, 2014). A ciência então fracassa como fonte legitimadora do progresso, e como mecanismo de absorção do risco, uma vez que quanto maior o progresso, maior o risco gerado por ele próprio. O 1232 consenso cultural sobre o desenvolvimento técnico-econômico se perde, e cada vez mais somos advertidos sobre as ameaças. A economia pode ser vista pelo menos prisma da ciência, em que de tem a “fórmula pacífica partilhada por todos de que ‘progresso econômico é igual a progresso social’”, o que leva novamente ao conceito de efeitos sociais. Nota-se que nas avaliações de efeitos sociais, sejam eles positivos ou negativo, pressupõem-se o consenso em torno da consumação do desenvolvimento econômico (BECK, 2011, p. 299). E uma vez que tal consumação é desejável, cabe ao estado realizar tarefas indiretas, como o controle de riscos. Porém, com a ampliação dos riscos, as premissas dessas fórmulas são suspensas, da unidade entre progresso tecnológico e social. No caso da economia, temos ainda um outro desdobramento. A globalização permitiu que corporações transnacionais utilizem a ameaça de dano econômico como fonte de poder (BECK, 2005, p. 122), como por exemplo a transferência de empregos para outros países, fazendo com que a economia não apenas deixe de ser um possível mecanismo de absorção, e passe a ser um mecanismo de extrapolação de riscos. Por último, outro mecanismo de controle e compensação de riscos oriundos da sociedade industrial é o de políticas, especialmente políticas locais. Porém, a “política não é mais a única e nem mesmo a mais importante instância em que se decide sobre a configuração do futuro social” (BECK, 2011, p. 338). Isto é uma autolimitação historicamente consumada, que precisa ser compreendida. O poder decisório proposto pela política, e pelos políticos, é muitas vezes simulado, especialmente durante campanhas eleitorais. É uma lenda determinada pelo sistema. “Essas ficções têm sua realidade na encenação e na estrutura de poder funcional da sociedade industrial” (BECK, 2011, p. 338). E, se o poder não é real, a capacidade de absorção de riscos pela política também não pode sê-lo. 1233 6 DIREITO COMO MECANISMO DE ABSORÇÃO A reflexividade da sociedade de risco global, a expansão dos riscos, a quebra de fronteiras dos estados-nações decorrentes da globalização, a quebra da fórmula do progresso tecnológico equivaler a progresso social, nos levam a uma ruptura com os mecanismos de gerenciamento e compensação de riscos existentes na sociedade industrial. Porém, a sociedade demanda e confia no controle. Como riscos não são mais compensáveis, tais acidentes, catástrofes, não podem acontecer. É a precaução por prevenção (BECK, 2014). E assim novos mecanismos de controle e absorção se tornam necessários, onde o risco pode ser visto como um ônus social. “[S]empre que direitos são garantidos, que ônus sociais são redistribuídos, que a participação é viabilizada, que cidadão se tornam ativos, a política avança um pouco mais na dissolução de suas fronteiras e em sua generalização” (BECK, 2011, p. 287). A democracia implica em uma autodesautorização e de deslocalização da política. Economia, ciência não podem mais fazer política com seus meios. Uma vez que os riscos estão distribuídos e são, agora, gerais, os mecanismos de controle inevitavelmente também devem assim se tornarem, uma vez que não temos mais a ficção de um centro de comando da sociedade moderna. Em outras palavras, com a mudança dos riscos pessoais para as ameaças globais, a transição da sociedade industrial para a sociedade de risco global, é necessário que os riscos também sejam tratados de forma mais ampla, e não local ou pontual. Não pode mais se falar em controle ou gestão de riscos, e muito menos compensação, pois as catástrofes não são compensáveis. Uma vez que o resultado de tais catástrofes é inaceitável, elas simplesmente não podem acontecer, e a maneira de manter o controle que a sociedade demanda é distribuindo-se o ônus social na mesma. Como os riscos são globais, as fronteiras e barreiras da política devem se tornar tão rarefeitos como as fronteiras e barreiras dos riscos. Sistemas políticos apenas formalmente democráticos não são mais suficientes, e devemos ter não uma democracia usufruída, mas sim uma democracia estabelecida. “Nesse sentido, a democracia estabelecida, na qual os 1234 cidadãos são conscientes de seus direitos e lhes dão vida, exige uma compreensão da política e instituições políticas diferentes daquelas da sociedade que ainda caminha nessa direção” (BECK, 2011, p. 288). Porém, uma solução política de distribuição do ônus não é sustentável, pois a política é autoincapacitativa, limitando-se a propagandista do processo e a propaganda oficial, quando abertamente questionada, pode se converter em ameaça aos resultados eleitorais. Assim, riscos que existem, não deveriam existir, e revela-se a impotência da política. Temos então o desencontro ainda mais dos riscos com a economia e a política. “A economia não tem responsabilidade sobre algo que ela desencadeia, e a política é responsável por algo sobre o que ela não tem qualquer controle” (BECK, 2011, p. 329-331). Ulrich Beck propõe, então, como solução para esta autoincapacitação a própria responsabilidade pelos efeitos colaterais, “uma ampliação e da garantia jurídica de possibilidade específicas de controle da subpolítica” (BECK, 2011, p. 339). E ainda aponta a importância de tribunais fortes e independentes e uma esfera pública forte e independente. No topo disso, ele ainda aponta a necessidade de autocrítica dentro do progresso, como contralaudos, discussões interprofissionais e interempresariais a respeito do risco do próprio desenvolvimento etc, ou seja, a medicina contra a medicina, a física contra a física, a ciência contra a ciência, a economia contra a economia. Algo que poderíamos até chamar de autoreflexão crítica dos mecanismos de progresso, “provavelmente a única a maneira pela qual poderia ser desvelado de antemão o erro que, de outro modo, faria com que, mais cedo ou mais cedo ainda, o mundo nos passasse em branco” (BECK, 2011, p. 340). Porém, vale notar que mesmo sendo o Direito o único mecanismo que possui a possibilidade de absorver os riscos, estes ainda persistem, e qualquer atitude em contrário, tentando indicar que o Direito elimina os riscos, ou mesmo os compensa, é um retorno a uma realidade utópica não mais condizente com a sociedade contemporânea. 1235 7 CONCLUSÃO As sociedades estratificadas do mundo medieval não tinham um conceito de risco tal qual temos hoje. No mundo medieval, as catástrofes, as doenças, os acontecimentos indesejados eram explicados e entendidos como castigo divinos, como “fortuna” ou simplesmente como dádiva ou provação mística. Na modernidade, contudo, a fortuna começa a ser imputada ao resultado das ações humanas. “O futuro depende do que fazemos hoje”, diz o ditado popular moderno. Fruto do Renascimento e do humanismo, é na Modernidade que os riscos e perigos vão deixar de ser entendidos como castigos divinos e passarão a ser compreendidos como efeitos colaterais das ações ou decisões da sociedade. Na sociedade pós-industrial, na modernidade reflexiva, como a denomina Ulrich Beck, a noção de risco ultrapassa os limites das cadeias de ações e reações. Pois agora, os riscos já não possuem mais fronteiras. Não possuem mais limites, nem geográficos, tampouco temporais. Um risco de catástrofe ecológica pode desencadear perigos incontroláveis em termos não apenas geográficos ou espaciais, mas também em termos de tempo, de gerações, de história. A noção de risco, com efeito, rompe com as noções tradicionais de tempo e de espaço. Pois a extensão especial e temporal dos perigos já não é mais controlável, nem previsível. Entretanto, os impactos dessa noção não se limitam apenas a essa reflexão científica da sociedade do risco. O risco rompe também com as tradições categorias sociológicas de entendimento e de organização da sociedade. Conceitos como modernidade central e modernidade periférica, países de primeiro e países de terceiro mundo, classes sociais, grupos sociais, campos simbólicos, enfim, os riscos já não se encontram delimitados por esses conceitos sociológicos. Uma guerra não afeta apenas os países envolvidos, como a escassez de água não afeta apenas a região com a estiagem. Os riscos econômicos, ecológicos, políticos, religiosos, são questões que podem afetar todas as classes sociais. Ricos ou pobres, todos se encontram igualmente submetidos aos riscos – embora, como demonstrado nessa pesquisa, em países de modernidade 1236 periférica, como o Brasil, podem existir grupos de maior vulnerabilidade a riscos do que outros. O Direito se torna importantíssimo em uma sociedade do risco pois ele produz confiança. Quanto mais correto é o funcionamento do Direito e das instituições jurídicas, mais confiança a sociedade produz para enfrentar os seus riscos. O direito trabalha com as expectativas da sociedade. Ele afirma o que podemos esperar uns dos outros, apesar do risco de frustração, apesar das coisas poderem sair de modo diferente do que era esperado. O Direito não garante que as expectativas sociais que ele consubstancia vão ser efetivadas tal como esperadas pela sociedade. Mas ele garante a diferença entre o que deve ser esperado de modo contrafático e o que deve ser abandonado pelo aprendizado. Assim o Direito funciona como um importante mecanismo social de absorção de riscos. Ele não evita, tampouco controla, muito menos prevê a produção de riscos. Mais importante do que isso, o Direito produz a confiança institucional necessária para que a vida continue apesar da sempre presente probabilidade de efeitos colaterais, de consequências indesejadas e de frustrações nas expectativas. As expectativas jurídicas imunizam a frustração, gerando, assim, confiança. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECK, U. La sociedad del riesgo global. Traducción de Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 2001. __________. O que é globalização? Equívocos do globalismo: respostas à globalização. Trad. André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999. __________. What is globalization?. Translation Patrick Camiller. USA: Polity Press, 2005 __________. Sobre el terrorismo y la guerra. Traducción de R. S. Carbó. Barcelona: Paidós Asterisco, 2003. __________. 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