Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd - MAE – USP
Transcrição
Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd - MAE – USP
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. INVERSÃO E SUBVERSÃO DO FEMININO NA ORESTÉIA DE ÉSQUILO Maria Amalia Longo Tsuruda* TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. RESUMO: O objetivo deste artigo é examinar algumas questões de gênero existentes na Orestéia de Ésquilo. Partindo de uma figura central, Clitemnestra, desejamos destacar que essa personagem, não somente inverte, 33mas também subverte os papéis e funções que se esperava que a mulher desempenhasse na sua vida, tanto sob o ponto de vista da sociedade homérica a que a trilogia do poeta se remete, quanto sob a óptica da sociedade ateniense que assistiu às suas peças. UNITERMOS: Ésquilo – Orestéia – Gêneros – Papéis femininos – Inversão – Subversão. 1. Introdução O objetivo deste artigo é examinar alguns aspectos do problema do feminino na Orestéia de Ésquilo. A análise será desenvolvida a partir de um eixo central: a figura de Clitemnestra. Um dos problemas que enfrentamos neste tipo de trabalho consiste em tentar estabelecer a maneira como Ésquilo e o seu público viam o gênero feminino na época em que as peças da trilogia foram concebidas e apresentadas. Para tentar amenizar o problema, aplicaremos o conceito de função social à figura feminina. Neste trabalho, o conceito de função social, aplicado à mulher, tem por objetivo estabelecer qual seria a função desempenhada pelas mulheres na sociedade ateniense. Partindo de perguntas que visem a esclarecer o que é a mulher, para quê ela (*) Doutoranda em História da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Prof. de Filosofia da Educação e do Desporto – Universidade Ibirapuera-UNIb. [email protected] serve, qual deve ser a sua educação e o seu comportamento, torna-se mais fácil entender o que a sociedade esperava das suas mulheres e, a partir dessas expectativas, como Ésquilo e o seu público, homens e mulheres atenienses,1 julgavam o comportamento de suas heroínas, a sua história de vida e o seu desenlace. No caso da tragédia, entretanto, essa tarefa é marcada por um caráter de duplicação, que discutiremos a seguir. Neste momento basta registrar que, uma vez que a tragédia trabalha com duas realidades sobrepostas, uma referente à sociedade heróica, na qual o tema da peça está ambientado, e outra referente ao (1) Existem estudiosos que colocam em dúvida a afirmação segundo a qual as mulheres freqüentavam os teatros. Aqui, esta controvérsia não tem a menor importância, pois mesmo se aceitarmos o pressuposto de que elas não assistiam às peças, não podemos aceitar que elas não conhecessem os mitos que formavam as matrizes para a poesia trágica. Acreditamos, ao contrário, que tais relatos formavam o núcleo ideológico da educação feminina, assunto que já desenvolvemos em um artigo intitulado Os Modelos de Educação Feminina em Homero (Tsuruda 1994). 33 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 33 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. tempo histórico em que a peça é representada, torna-se necessário examinar a função feminina nesses dois momentos distintos, para que se possa estudar a atuação das personagens segundo os parâmetros peculiares a cada uma dessas realidades. 2. O anacronismo na tragédia grega Na realidade, no exame de toda peça trágica devemos ter em conta uma relação bastante peculiar existente entre o tempo em que o enredo da tragédia se desenvolve, isto é, o do passado mitológico, e determinadas referências que os personagens fazem em relação a fatos, conceitos e realidades próprias do momento histórico em que a peça é encenada. Assim, poderíamos considerar que, na verdade, as peças apresentam duas realidades e dois tempos sobrepostos. Para P. E. Easterling (1985: 1-10), os autores trágicos tinham um conhecimento profundo a respeito do mundo em que os heróis viviam, baseado no seu conhecimento de Homero, dos poemas do ciclo épico e da poesia lírica, ao mesmo tempo em que dramatizavam os problemas e atitudes da sociedade contemporânea. Para o autor, eles atendiam a princípios que determinavam a maneira pela qual o passado heróico e o mundo moderno poderiam ser combinados de uma maneira melhor. Easterling examina o modo pelo qual os poetas trágicos tentaram contornar o problema do anacronismo em relação a diversos aspectos, tais como o uso da escrita, da moeda etc. e onde eles falharam, notadamente nos casos em que a solução do conflito é remetida a instâncias políticas que são próprias da democracia ateniense e, portanto, estranhas ao mundo heróico, como é o caso do rei Pelasgo convocando o povo para votar nas Suplicantes de Ésquilo. O autor observa que Ésquilo naturaliza cuidadosamente esses aspectos não tradicionais, colocando-os em um contexto heróico familiar, com o objetivo de prevenir o sentimento de incongruência. O anacronismo não deve ser visto como um defeito do gênero trágico. A esse respeito, é de grande valia a lição de J. -P. Vernant e P. VidalNaquet (1977:7), “o universo trágico situa-se entre dois mundos e essa dupla referência ao mito, concebido a partir de então como pertencente a um tempo já decorrido, mas ainda presente nas consciências, e aos novos valores desenvolvidos tão rapidamente pela cidade (...) é o que constitui uma das originalidades e a própria mola da ação. No conflito trágico, o herói e o tirano ainda aparecem bem presos à tradição heróica e mítica, mas a solução do drama escapa a eles: jamais é dada pelo herói solitário e traduz sempre o triunfo dos valores coletivos impostos pela nova cidade democrática”. Esse é exatamente o caso da Orestéia, onde a resolução do conflito acaba nas mãos dos cidadãos atenienses, reunidos no tribunal do Areópago. No caso em questão, o nosso problema consiste em determinar se existe um anacronismo em relação às funções e aos papéis femininos, isto é, se existe uma transposição de comportamentos femininos próprios da sociedade homérica, que estariam sendo anacronicamente aplicados às mulheres atenienses do século V a.C. ou se, ao contrário, não existe anacronismo e sim uma permanência desses comportamentos através do tempo, a despeito de toda a evolução sofrida pela sociedade grega. Assim, acreditamos ser produtivo aplicar ao papel e à função desempenhada pelas mulheres da peça, tanto as funções e os valores próprios da sociedade homérica, quanto àqueles próprios da sociedade ateniense que formava a platéia e observar se a figura de Clitemnestra pode ser utilizada para uma melhor compreensão da imagem que os homens atenienses da época em que as peças foram apresentadas faziam de suas mulheres e o que esperavam delas. 3. Mulheres de Homero e mulheres de Atenas É na Odisséia de Homero que encontramos, pela primeira vez, o relato do fim trágico do Atrida Agamêmnon, bem como o papel desempenhado por sua esposa Clitemnestra nesse fim. Uma vez que, nesse poema, encontramos descrições de vida doméstica, a Odisséia é um documento extremamente importante, se for vista como uma fonte para o estudo do papel da mulher nos poemas épicos, uma vez que na Ilíada, devido a uma série de motivos, sendo o primeiro deles a sua temática, a presença feminina é bem mais apagada. O estatuto da mulher Considerando as observações anteriores, parece-nos altamente indicado, para a compreen- 34 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 34 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. são do nosso tema, alguns apontamentos sobre o estatuto e a função da mulher em dois momentos distintos, a saber: na poesia épica, fonte de inspiração para o poeta na composição de sua obra, e na Atenas do século V a.C., que forneceu o público dessas obras. 3.1 A mulher nos poemas homéricos Devido ao fato de já termos tratado do estatuto da mulher na poesia épica em artigo anteriormente publicado (Tsuruda 1994: 4-23), faremos aqui apenas um breve resumo dos pontos principais pertinentes ao nosso tema atual. Claude Mossé, ao analisar o problema da mulher na sua obra La Femme dans la Grèce Antique, faz uma distinção entre os aspectos do público e do privado na sociedade grega: aos homens cabe a vida pública, as atividades do mundo exterior; às mulheres a vida no interior da casa, com atividades ligadas à manutenção e à reprodução da família, o que significa a produção de alguns tipos de bens (tecidos, por exemplo), o gerenciamento do trabalho dos escravos, a guarda dos tesouros familiares, a procriação e a criação dos filhos. Ao mesmo tempo em que consigna tantas responsabilidades às mulheres, a sociedade grega dos tempos históricos é altamente misógina: de fato, as mulheres permanecem em segundo plano, em estado de eterna menoridade, comparado ao das crianças e ao dos escravos. Todavia, é interessante observar que nos poemas homéricos a mulher é altamente valorizada, em especial a esposa legítima. Na sociedade descrita por essas obras, uma mulher se torna esposa legítima por meio de um acordo entre famílias, estabelecido por meio da troca de “presentes inúmeros” e de “dádivas resplandecentes” (cf. Mossé 1991: 20 e Leduc in Duby e Perrot s.d.: 277-302, mais especificamente pág. 289). Como bem observa Moses Finley (1982: 94-95), não se trata de uma operação comercial, uma “compra de noiva” como ocorre, por exemplo, em certas sociedades africanas. Na verdade, os poemas retratam um mundo instável onde é necessário estabelecer alianças entre os reinos, e essas alianças são feitas por meio dos casamentos: são as trocas que criam as redes de vínculos familiares, nas quais as mulheres desempenham o papel de estabelecer o elo entre a casa de seu pai e a casa de seu esposo, ligação essa que se revela extremamente útil no momento de fazer as alianças para a guerra. Dentro da casa, a função primordial da esposa era a de gerar filhos legítimos e, dessa forma, perpetuar a família de seu esposo. Assim, a fidelidade conjugal adquire um aspecto primordial. Por outro lado, como na sociedade homérica a casa desempenha também a função de unidade de produção (Mossé 1991: 17), a esposa tem uma série de atribuições, sendo a mais citada a de fiar e tecer. Com efeito, a fiação e a tecelagem são atributos exclusivamente femininos desde os primórdios da civilização helênica, e assim continuarão a ser considerados durante toda a história grega.2 Heitor, no canto VI da Ilíada (versos 490 e segs.), aconselha Andrômaca a voltar às suas atividades de tecelagem. Na Odisséia (canto IV, versos 100-139), Helena é vista no palácio de Menelau fiando em uma roca de ouro, cercada por suas servas. Penélope utiliza esta arte feminina para enganar os seus pretendentes: desmancha de noite o trabalho tecido de dia.3 Além disso, as mulheres da classe aristocrática desempenhavam outros tipos de trabalho: Nausícaa, princesa dos feáces, tinha sob seus cuidados a lavagem da roupa da família (cf. Odisséia, canto VI, versos 1-103); as mulheres administravam toda a atividade doméstica, que incluía a preparação dos alimentos (em especial a farinha e o pão), a distribuição do trabalho para os servos e velavam pela acolhida dos hóspedes de seu marido, ordenando (2) Existem muitos exemplos para a tecelagem como arte feminina, tanto na iconografia quanto na literatura. Em Hesíodo, por exemplo, a deusa Atena ensina Pandora, a primeira mulher, a arte e tecer (cf. Os Trabalhos e os Dias, versos 63-64). Um exemplo mais recente pode ser encontrado em Aristófanes, As Aves. Nos versos 829-831, o poeta cômico do século V a.C. atribui a Clístenes, que ele supõe ser um homem efeminado, o trabalho de tecelagem. Outro exemplo, esse do século IV a.C., é encontrado no Econômico de Xenofonte, como veremos adiante. (3) A passagem é bem conhecida: como Ulisses não volta, os príncipes de Ítaca supõem que ele morreu e, desejando tomar o poder, pressionam Penélope para que escolha, entre eles, um novo marido. Penélope, tentando ganhar tempo, sempre na esperança da volta do rei, estabelece um trato com seus pretendentes: escolherá um novo marido quando acabar de tecer um sudário para seu sogro, Laertes. Assim, ela tece de dia e desfaz o trabalho à noite, e o ardil só é possível pois, sendo a arte da tecelagem exclusivamente feminina, os pretendentes não tinham a mais vaga idéia de quanto tempo poderia ser consumido no trabalho. 35 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 35 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. que as escravas preparassem o banho, servissem o jantar e arrumassem os leitos para os recémchegados (cf. Odisséia, canto III, verso 465 e segs.; canto IV, verso 50 e segs., versos 297 e segs.). 3.2 O paradigma da esposa Na nossa análise da função feminina, Penélope é o paradigma da esposa fiel. Quando Ulisses partiu para a Guerra de Tróia, Penélope devia ser bastante jovem e Telêmaco apenas um bebê. Na ausência do rei, a rainha assumiu todas as funções de administração dos bens, incluindo-se aí a das fazendas e a guarda dos tesouros. A guerra durou dez anos e o regresso de Ulisses mais dez, o que perfaz um período de ausência de vinte anos. Isto criou uma crise dinástica no reino, pois Telêmaco era muito jovem para ocupar o lugar do pai.4 Temos então um reino sem rei e uma casa sem homem, aos olhos da sociedade grega uma situação de acefalia, que aguçou a cobiça dos nobres de Ítaca e das imediações que, imaginando estar Ulisses morto, passaram a fazer a corte à suposta viúva, objetivando ocupar o trono.5 Examinando a situação de Penélope, quais seriam os modelos para o comportamento feminino? Em primeiro lugar, a mulher deveria ser fiel ao seu marido. É a fidelidade feminina que assegura a legitimidade dos filhos e, como já vimos antes, gerar filhos legítimos é a primeira função da esposa. Em seguida, deve velar por esses filhos. A crise gerada pelo vácuo de poder poderia ser facilmente resolvida se Telêmaco assumisse o trono e enviasse Penélope para Icário, seu avô materno, para que (4) O cálculo de tempo, na Ilíada e na Odisséia é uma mera conjectura posto que, nos mitos, o tempo nem sempre apresenta coerência. Assim, se Telêmaco já tinha nascido quando seu pai partiu para Tróia, como afirma o mito (e não poderia ser de outra forma), na época do regresso de Ulisses ele devia ter mais de vinte anos. Entretanto, o seu comportamento e as suas dificuldades em se impor ante os pretendentes de Penélope dão a entender que ele ainda é um adolescente. (5) Considerando-se que se trata aqui de uma sociedade patriarcal e patrilinear, seria uma forma bastante estranha de sucessão e, ao nosso ver, espúria, posto que as mulheres jamais herdavam. A sucessão deveria ocorrer sempre por meio da linhagem masculina, e é isso que Telêmaco pensa. Para uma opinião contrária, ver Claudine Leduc, Como dá-la em casamento, in Duby e Perrot (s.d.: 277-302). ele decidisse o futuro matrimonial da filha6 (cf. Odisséia, canto I, versos 275-278; canto II, versos 52-54). Entretanto, sendo Telêmaco tão jovem e inexperiente, quanto tempo poderia ele resistir no trono, frente aos pretendentes que, evidentemente, não desejavam apenas uma esposa, mas, primeiramente, o poder no reino de Ulisses? Aqui se subentende mais uma função feminina, a de guardiã que zela pela segurança dos filhos. Em segundo lugar, a esposa deveria estar em sintonia com o seu marido. Ulisses é sempre descrito como um herói que, sem prejuízo de suas qualidades guerreiras, tem como característica principal a astúcia (métis). Desta forma, Penélope não poderia ser menos astuciosa do que o seu esposo, e a prova cabal disto é o ardil da tecelagem. E os pretendentes só conseguem descobrir o engodo por meio da delação de uma outra mulher, a escrava infiel Melanto (cf. Odisséia, canto XXIV, versos 135-172). 3.3 Uma mulher da Atenas histórica - A esposa de Iscômaco Este é o quadro descrito nos poemas homéricos para a função feminina. Mas, quanto a passagem dos séculos e as transformações sociais e políticas processadas no seio da sociedade ateniense teriam mudado esse quadro, se pensarmos na Atenas que assistiu a trilogia de Ésquilo? Para podermos avaliar essas mudanças, utilizaremos, em primeiro lugar, o texto denominado Econômico, de autoria de Xenofonte. Antes de nos lançarmos a essa tarefa, consideramos importante lembrar que o Econômico é uma obra do século IV a.C., portanto distante, no tempo, da época da elaboração e apresentação da Orestéia de Ésquilo. Entretanto, sob o ponto de vista prático, existe muito pouca ou quase nenhuma variação nas funções femininas tal como se apresentam no século IV a.C. em relação ao século anterior. Some-se a isso o fato de que não existem textos do século V a.C. que tratem da vida das (6) Conforme o costume, a viúva deveria ser devolvida à casa de seu pai juntamente com as “dádivas resplandecentes” que foram entregues ao seu marido por ocasião do casamento. Entretanto, Telêmaco não quer abrir mão dessas riquezas e também se sente constrangido com a idéia de mandar a mãe embora. 36 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 36 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. mulheres, excetuando-se as próprias obras teatrais, tragédias e comédias, e que o Econômico é uma obra bastante adequada ao tipo de análise que faremos, posto tratar justamente do gerenciamento do lar, lugar privilegiado das mulheres. O surgimento da cidade e a transferência do poder das mãos do rei para as do corpo de cidadãos reunidos em assembléia em um espaço público – a praça – opera uma série de transformações nas funções femininas, ao mesmo tempo em que favorece a permanência de outras. Mas não podemos deixar de registrar que o Econômico de Xenofonte é uma construção literária e não o registro histórico da vida de duas pessoas reais, Iscômaco e sua esposa. Antes, trata-se da descrição ideal do que deveria ser a vida doméstica das famílias abastadas atenienses. O relato feito por Xenofonte da dinâmica do lar de um rico ateniense, Iscômaco, mostra que os casamentos já não se fazem, necessariamente, segundo a necessidade de alianças políticas. Ainda é um problema das famílias, mas agora elas devem se preocupar apenas com a sua perpetuação e com o destino dos filhos: “Nós não estávamos preocupados, nem eu nem você, em encontrar com quem dormir. Mas depois de ter refletido, eu por minha própria conta, e os seus parentes pela sua, sobre os melhores pretendentes que nós poderíamos proporcionar para a nossa casa e nossos filhos, eu a escolhi de minha parte, e os seus parentes, parece-me, escolheram-me, entre os partidos possíveis” (VII, 11). Entretanto, a jovem esposa e Iscômaco, de quem se esperava apenas que soubesse tecer a lã (VII, 5-6) desempenha, dentro da casa, exatamente as mesmas funções que ocupavam a vida das rainhas descritas nos poemas homéricos: como Penélope, ela deve cuidar das crianças, preparar a farinha, trabalhar com a lã (VII, 20-21), dirigir o trabalho das servas e administrar os estoques, “para não gastar em um mês o previsto para um ano” (VII, 35-36). Como Penélope, ela cuida dos bens preciosos da casa (VIII, 10), mas as semelhanças terminam aí. Ela não tem o direito de erguer a voz em um espaço comum do palácio, via de regra reservado aos homens, como Penélope o faz diante dos pretendentes reunidos em seu salão (cf., entre outras passagens, Odisséia, canto XXI, versos 67 e segs.). Aqui encontramos um problema: as rainhas apresentadas nos poemas homéricos exercem uma forma de poder: Penélope é a guardiã dos tesouros familiares (cf. Odisséia, canto XXI, versos 5 e segs.), administra não somente a casa, mas também os trabalhos do campo (cf. Odisséia, canto XV, versos 376 e segs.) e aparentemente tem o poder de escolher o seu próprio marido, como a proposta feita por ela aos pretendentes parece demonstrar. Entretanto, não temos como avaliar a natureza e a origem desse poder. Uma das hipóteses possíveis é aquela segundo a qual o poder das rainhas residiria na proximidade física existente em relação à figura do rei; ou no fato de que o centro do poder estava localizado no palácio, que era também a sua residência; ou ainda no fato de que elas desempenhavam o papel de sacerdotisas (conferir Mossé 1991: 26-28). Seja como for, a evolução histórica da sociedade grega, do ponto de vista político substituiu as casas reais pela democracia e sob o ponto de vista físico deslocou o centro do poder do palácio para a praça pública, ao mesmo tempo em que confinava as mulheres ao espaço físico da casa. Como Gilda Naécia Maciel de Barros (Barros 1997: 15) registra com muita propriedade, Xenofonte, no Econômico, desenvolve uma cuidadosa argumentação para estabelecer a diferenciação dos papéis masculinos e femininos e as regras que disciplinam a atuação de homens e mulheres no contexto matrimonial. O que nos interessa particularmente é que, para Xenofonte, “o castigo divino acompanha a inversão de papéis” (Barros 1997:15). E, como aponta C. Mossé (1991: 38), “a cidade, este clube de homens, as havia definitivamente fechado no gineceu”. 3.4 Outra mulher ateniense – A esposa de Eufileto Se o Econômico de Xenofonte tem o dom de abrir diante dos nossos olhos o gineceu de uma casa rica da Atenas clássica, o texto intitulado O Assassínio de Eratóstenes, de autoria de Lísias, oferece um precioso testemunho da vida das mulheres pertencentes à classe média ateniense. Trata-se de um discurso judiciário cuja data de elaboração é aparentemente um pouco posterior a 403 a.C. Nele, um homem chamado Eufileto descreve os motivos que o levaram a matar um outro cidadão, Eratóstenes. Eufileto afirma que “Eratóstenes cometeu adultério com a minha mulher, a seduziu, desonrou os meus filhos e me ultrajou penetrando em minha casa, que entre ele e mim não existia motivo de inimizade 37 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 37 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. exceto este, e que não agi assim por dinheiro, para transformar-me de pobre em rico, nem por qualquer outro interesse que a reparação prescrita pelas leis (...)” (Eratóstenes, 4). Da mesma maneira que a mulher de Iscômaco, a esposa de Eufileto era “uma excelente dona de casa, econômica e exata administradora de todas as coisas” (Eratóstenes, 7), até arrumar um amante, que conheceu nas cerimônias fúnebres de sua sogra. Ela enganou o marido com a ajuda de uma jovem escrava, até o momento em que os vizinhos avisaram Eufileto que, em sua ausência, a casa estava sendo freqüentada por um estranho. O marido traído armou um flagrante e, na presença de testemunhas, matou o ofensor. A argumentação de Eufileto demonstra que era ponto pacífico entre os atenienses que um homem que cometesse tal crime deveria ser punido (Eratóstenes, 1) e mais, que tal punição poderia ser a morte: “não sou eu quem mata, mas a lei da cidade, que tu violaste, tendo-a em menos conta do que os teus desejos e preferindo cometer um tal crime contra a minha mulher e contra os meus filhos em lugar de obedecer às leis e ser honrado”(Eratóstenes, 26). Para sustentar a sua posição perante o tribunal, Eufileto cita a lei (Eratóstenes, 30-33): segundo ele, o crime de sedução é pior do que o de violação, pois o violador é odiado por sua vítima, ao passo que o sedutor perverte a alma do seduzido, de forma que a esposa adúltera passa a amá-lo mais do que ao esposo, “de modo que toda a casa permanece em suas mãos”. Além disso, Eufileto lembra que, nesses casos, passa a pesar sobre os filhos a suspeita de ilegitimidade, pois não se pode saber ao certo se são do marido ou do amante. Recordando as leis, Eufileto observa que “o autor da lei lhes [aos adúlteros] impõe como pena a morte” (Eratóstenes, 33), e acrescenta que elas “não só me absolvem de todo delito, como me exortam a tomar esta vingança” (Eratóstenes, 34). Observe-se que nada sabemos em relação ao destino da mulher de Eufileto. Conforme registra Gilda Naécia Maciel de Barros (Barros 1997: 2325), o direito ático impunha à mulher adúltera pesadas sanções civis e penais (era repudiada pelo marido, exposta à execração pública, impedida de freqüentar santuários públicos etc.), mas era proibido matá-la. A comparação entre o Econômico de Xenofonte, o discurso de Eufileto e os comporta- mentos femininos preconizados nos poemas homéricos mostra a permanência, na Atenas do período clássico, das funções femininas de gerenciamento do lar e de determinadas preocupações, notadamente em relação à legitimidade dos filhos e à guarda dos bens. Por outro lado, a dimensão da exclusão política da mulher é demonstrada por um pequeno detalhe: os nomes da mulher de Eufileto e da mulher de Iscômaco (ainda que esta seja uma construção literária) não foram registrados pela história. 4. Ésquilo e a Orestéia Entre os poetas trágicos do século V a.C. dos quais nos chegaram obras, Ésquilo é o mais antigo.7 Teria nascido em aproximadamente 525 a.C., nove anos após o primeiro concurso trágico (ocorrido em cerca de 534 a.C.) e morrido em aproximadamente 456 a.C., dois anos antes da transferência do tesouro da ilha de Delos para Atenas (454 a.C.), fato que marcou o início do Império Ateniense. Os estudiosos de teatro grego costumam observar que Esquilo compunha trilogias ligadas. Estas consistem em conjuntos de três peças versando sobre o mesmo mito. Nas trilogias ligadas, cada peça é uma obra completa, com começo, meio e fim mas, colocadas na ordem adequada, apresentam uma história maior. De toda a obra de Ésquilo, estimada entre 73 e 90 peças, a única trilogia ligada que chegou completa até nós é a Orestéia, objeto deste artigo. As outras tragédias remanescentes, todas datadas dos últimos quinze anos de sua vida, são As Suplicantes, Os Sete Contra Tebas e Prometeu Agrilhoado, consideradas partes de trilogias hoje perdidas, e Os Persas, uma obra independente. A Orestéia, composta por Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, trata do mito da casa dos Atridas. Segundo Carrière, Gaillard, Martin e MortierWaldschmidt (1994: 127), foi a partir de estudos da Orestéia que os modernos construíram a sua idéia de um Ésquilo historiador da consciência grega, moralista e teológico, cujas construções dialéticas visavam a conciliar os valores antigos com os novos, (7) Sófocles nasceu entre 497 e 495 a.C. e Eurípides em aproximadamente 480 a.C. 38 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 38 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. em função das necessidades de seu tempo. Mas se o poeta tende realmente a construir uma teologia racional, isso não faz desaparecer o trágico, na medida que mostra também que os caminhos da vontade divina são sempre misteriosos e que a realidade, por sua violência angustiante e “demoníaca”,8 escapa a todas as teorias humanas. 4.1 A história da família dos Atridas na mitologia O mito da família dos Atridas é suficientemente conhecido e foi explorado pelos três grandes poetas trágicos atenienses, Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Segundo os relatos, Agamêmnon, rei de Micenas e irmão de Menelau, era casado com Clitemnestra, meio-irmã de Helena por parte de mãe. Tinham três filhos: Ifigênia, Electra e Orestes. Quando da viagem da frota aquéia para Tróia, os navios ficaram retidos em Áulis pela falta de ventos. A causa dessa falta de ventos era uma dívida de Agamêmnon com a deusa Ártemis. Sob o pretexto do casamento de sua filha Ifigênia com o herói Aquiles, Agamêmnon enganou a esposa e fez com que ela trouxesse a jovem a Áulis. Então, sacrificou Ifigênia para que Ártemis permitisse o retorno dos ventos e a conseqüente partida dos navios. Durante os dez anos da guerra Clitemnestra maquinou a vingança pela morte da filha. Sozinha em Micenas tomou como amante Egisto, o maior inimigo do rei e, quando este retornou, cometeu o assassinato e passou a reinar junto com seu amante. Passados os anos, o deus Apolo exigiu que Orestes vingasse o seu pai, matando Clitemnestra e Egisto. É interessante notar que nos poemas homéricos, considerados como a principal matriz para as tragédias gregas, a figura de Clitemnestra está quase ausente. Na Odisséia, por exemplo, ela aparece apenas no Canto I (versos 29-43), no Canto III (versos 234-235; 264-275; 303-310), no Canto IV (versos 520-533), e no Canto XI (versos 409-439; 452-453). Entretanto, o seu nome quase nunca é dito: ela é mais comumente (8) A palavra é aqui empregada no sentido de que a realidade humana sofre constantemente a ação dos deuses e de outras entidades do mundo sobrenatural (daimon). Segundo Walter Burkert (1993: 353), “daimon é um poder oculto, uma força que leva o homem a fazer algo (...)”. designada como a “funesta mulher” ou a “esposa funesta”. Por outro lado, diante da situação enfrentada por Telêmaco no palácio de Ítaca (o assédio dos pretendentes a Penélope, sua mãe, e a dilapidação dos bens do rei por meio de banquetes) seus interlocutores, Nestor (Odisséia, canto III, versos 193-200) e Menelau (Odisséia, canto IV, versos 520-539), aconselham o jovem a “seguir o exemplo do divino Orestes”, o que pode ser interpretado de várias maneiras: ou Telêmaco deve matar os pretendentes; ou deve tomar o trono que é legitimamente seu; ou ainda ambas as coisas. Por outro lado, o relato existente na Odisséia é seco: fala somente dos mecanismos de tomada do poder, do assassinato do rei e da vingança do filho. Nele, o papel de Clitemnestra é minimizado por uma fraqueza feminina que, entretanto, não a exime de culpa. Na ausência do aedo que deveria protegê-la, ela cai nas garras de Egisto, o verdadeiro culpado da morte do rei. Assim, podemos considerar que a versão mais corrente que possuímos desse mito depende, em grande parte, do relato apresentado pelas próprias obras teatrais que chegaram até nós, em especial da Orestéia de Ésquilo. E é nesse momento que deparamos com a arte do poeta: ele toma um mito tradicional e reescreve, dando-lhe uma nova forma. Na sua versão, Clitemnestra conduz a ação, ao passo que Egisto desempenha um papel passivo, de mero coadjuvante e instrumento da vingança da rainha. 4.2 O enredo da Orestéia de Ésquilo Na primeira peça da trilogia, Agamêmnon, vemos como a rainha assassina o seu esposo e a exposição dos motivos desse crime. Nela, o coro lembra o sacrifício de Ifigênia e os motivos que o levam a considerar Agamêmnon um criminoso; Cassandra, por sua vez, relata os crimes da Casa dos Atridas, em especial o banquete de Tiestes. Essa série de lembranças serve para estabelecer a cadeia de crimes da dinastia, cada um deles exigindo vingança, e que encontra o seu término no tribunal que julga Orestes na peça As Eumênides. Na segunda peça, Coéforas (isto é, “portadoras de libações”), a rainha acorda assustada com um pesadelo: sonhou que amamentava uma cobra e que esta lhe mordia o seio. Erradamente, Clitemnestra interpreta que o perigo vem da sombra de Agamêmnon, que não recebe as honras nem as oferendas devidas aos mortos. Com medo da 39 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 39 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. vingança do rei assassinado e sem coragem de ser ela mesma a portadora de libações ao túmulo há muito abandonado, confia à filha Electra, acompanhada de um coro de escravas, a missão de levar as libações e realizar os ritos para aplacar o morto. Electra realiza os ritos, mas pede vingança. No túmulo, encontra-se com Orestes, que retornara a Micenas para vingar o pai. Juntos, tramam a vingança. Na seqüência, Orestes mata Egisto e depois a mãe. Imediatamente começa a ser perseguido pelas Erínias, terríveis deusas do mundo dos mortos que vingam o sangue familiar derramado. As Eumênides, isto é, “as benfazejas”, cujo título remete ao caráter que as Erínias assumem no final da obra, é a última peça da trilogia. Ela é dedicada à solução do conflito estabelecido entre Orestes, a sombra de Clitemnestra e as Erínias, encarregadas de vingar a sua morte. A peça começa no santuário de Apolo em Delfos e a cena é deslocada para Atenas, onde um tribunal composto por cidadãos atenienses promove o julgamento de Orestes. 5. O feminino na Orestéia M. Lynn-George (1993: 2) afirma que Clitemnestra é “uma das mais poderosas figuras de toda a tragédia grega”. Ela não é uma mulher comum; logo nos versos 10-11 do Agamêmnon, o vigia explica que permanece no telhado obedecendo a ordens de uma mulher que tem deliberações másculas: “Assim o determina o coração de uma mulher de máscula vontade (...)” (w(=de ga\ r kratei= gunaiko\j a)ndro/boulon ke/ar).9 Ela tomou as providências necessárias à execução de seu plano: criou um mecanismo para ser a primeira a saber notícias sobre a queda de Tróia, de forma a não ser surpreendida pela volta do rei. 5.1 Análise dos discursos de Clitemnestra na Orestéia Os discursos de Clitemnestra no Agamêmnon não podem ser caracterizados como femininos. No (9) Para as citações da Orestéia em português utilizamos a tradução de Manuel de Oliveira Pulquério; para as citações em grego, utilizamos a edição da Belles Lettres, ambas indicadas na bibliografia. primeiro, que vai dos versos 320 a 350, Clitemnestra observa que, o que uma mulher tem a dizer é que espera que o exército grego, em Tróia, assuma uma atitude de piedade, respeitando os deuses da cidade e os seus santuários. Apesar de ela afirmar que esse é um raciocínio feminino (é o que uma mulher tem para dizer), o corifeu afirma que Clitemnestra fala “com a sensatez de um homem sábio” (Gu/nai, kat ) a) / n dra sw/fron e ) u)fro/nwj le/geij - verso 351). No segundo discurso (versos 587-614), aparentemente feminino, posto descrever a alegria da esposa que recebe em casa o marido que regressa da guerra, da esposa que permaneceu fiel guardando o lar, nada mais é do que uma cruel ironia, tem caráter dúbio e encerra uma ameaça do que está ainda por vir. Assim, em primeiro lugar, Clitemnestra observa que quando ela anunciou a notícia da queda de Tróia transmitida pelos sinais de fogo ninguém acreditou (versos 587-592). A seguir, a rainha arrola uma série de qualidades femininas, das quais diz ser possuidora, tais como a guarda dos bens, a fidelidade e a lealdade, o que sabemos ser uma ironia, e chama Agamêmnon “o querido do povo”, quando já ouvimos o coro afirmar que o povo nutria um ódio surdo contra seu rei (versos 449-451). À saída de Clitemnestra, o corifeu observa que o discurso por ela proferido é belo somente na aparência. O terceiro discurso, que abrange os versos 885-913 repete, em parte, o anterior. Contém uma descrição dos sofrimentos das mulheres que esperam os seus maridos voltarem da guerra e já prenuncia a armadilha que aguarda Agamêmnon dentro de casa. Ela fala do desespero que as mulheres sentem quando ouvem boatos e notícias más, e tenta justificar a ausência de Orestes. Esse discurso, falando dos sentimentos femininos, termina com a armadilha mortal: a ordem para que as escravas cubram o caminho a ser percorrido pelo rei com tecidos tintos de púrpura. O quarto discurso de Clitemnestra, talvez o mais impressionante, está contido na discussão que ela mantém com Agamêmnon a respeito do tapete que ela providenciou e no qual ele deve pisar para entrar no palácio.10 Haruo Konishi (1962) chama a (10) A colocação de um tapete púrpura para o rei pisar configura uma armadilha para Agamêmnon. A morte do rei deve ser causada por seus próprios defeitos. No caso específico, em que pesem todos os relatos do coro demonstrando os crimes de Agamêmnon, é necessário que 40 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 40 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. nossa atenção para o fato de Agamêmnon classificar os argumentos de Clitemnestra como “não apropriados” (versos 916-917), “do tipo feminino” (verso 918), “bárbaros” (versos 919-920) e “ímpios” (versos 921-922). Adicionaríamos a isso que Agamêmnon lembra a necessidade de medida e que ele deseja evitar a hýbris, rejeitando honras excessivas, que só seriam aceitáveis para os deuses (versos 922-924). Ora, o discurso de Clitemnestra tem o objetivo de persuadir e/ou confundir Agamêmnon. Dessa maneira, os dois desenvolvem um debate retórico, que utiliza argumentos lógicos. Apesar de todas as ressalvas feitas anteriormente, Agamêmnon cede às ponderações de Clitemnestra; portanto, os argumentos da rainha são eficazes.11 Em que pese o fato de Agamêmnon afirmar que concorda apenas para agradar à esposa (verso 944), no fundo ele espera receber honras de acordo com o tamanho que ele imagina ter a glória de seus feitos, idéia que é reforçada pelo fato de ter admitido que outro, no lugar dele, teria caminhado sobre a púrpura (versos 935-936). Portanto, a escolha de Agamêmnon encontra o seu fundamento no desejo de reconhecimento do feito heróico, tão caro aos personagens homéricos, uma fraqueza que a rainha manipula com maestria. O diálogo entre Clitemnestra e o coro, que vai do verso 1372 até o êxodo,12 revela a verdadeira natureza dessa mulher, que antes só podia ser pressentida por meio das ameaças veladas e das palavras de duplo sentido. Desaparecem completamente as queixas e as alusões ao amor, pois ela afirma que vai dizer o contrário daquilo que antes falara apenas por uma ele cometa o delito supremo, aquele que sela o seu destino: pisar no tapete vermelho. Trata-se aqui do pecado da hýbris: não reconhecer as suas limitações humanas e desejar honras divinas. A hýbris é uma ação de usurpação das prerrogativas divinas e, portanto, oposta à sophrosýne ou comedimento, medida, uma areté altamente prezada pelos gregos antigos. Conferir A. Bailly (1963: verbete hýbris). (11) As possíveis razões para que Agamêmnon ceda aos pedidos de Clitemnestra e pise no tapete, a saber: loucura (a)/(th), desmedida (u(/brij), cansaço, são discutidas por H. Lloyd-Jones (1962) e por Haruo Konishi (1962). A única razão não colocada em posição de destaque pelos autores citados é aquela que aventamos aqui: a de que o rei cede porque a lógica da rainha é masculina e pode, portanto, ser aceita por ele. (12) O êxodo é a saída do coro e marca, tanto nas tragédias quanto nas comédias, o fim da peça. questão de conveniência. Nele ela relata o que fez e porque fez. Ela assassinou o rei para vingar a morte da filha, mas também as infidelidades de Agamêmnon com Criseida e Cassandra (versos 1438-1443). Diante de um coro composto por velhos fracos, ela afirma a sua força e admite que o seu coração não conhece o medo (verso 1441-1443), que está preparada para tudo, inclusive para castigar aqueles que tentarem se opor a ela (versos 1421-1425). A rainha conseguiu alcançar os seus objetivos, assassinou o rei e a sua concubina e pensa poder, a partir de agora, reinar em paz ao lado de seu amante, sem ter que se preocupar com possíveis vinganças. A tragédia As Coéforas apresenta variações significativas em relação ao Agamêmnon. Clitemnestra, que na primeira peça da trilogia afirmara dar pouco crédito aos sonhos (Agam., verso 275), agora aparece aterrorizada por um sonho profético, relatado mais adiante (versos 523539), que faz com que envie Electra, acompanhada por um coro de escravas, ao túmulo do rei assassinado, com o objetivo de aplacar a sua sombra por meio de libações (Coéf., versos 31-42). A aparição de um sonho profético logo no início das Coéforas marca uma mudança no retrato do caráter de Clitemnestra. No Agamêmnon, (versos 259-279) há um diálogo entre a rainha e o corifeu, que a ela se dirige para saber da veracidade das notícias a respeito da queda de Tróia e do retorno dos guerreiros. Esse diálogo demonstra a idéia que os homens tinham da capacidade feminina de avaliação das situações. O corifeu pergunta a Clitemnestra se ela estaria confiando em “visões persuasivas de sonhos” (Po/tera d ) o)neirwn fa/smat ) eu)piqh= se/beij - verso 274), ao que ela responde: “Pouco crédito dou às fantasias de um espírito ensonado” (Ou) do/can a)/n la/boimi brizou/shj freno/j - verso 275). O corifeu pergunta ainda se ela estaria confiando em boatos (A)ll )h(= s )e)piane/n tij a)/pteroj fa/tij verso 276), ao que ela responde que ele está creditando a ela uma atitude infantil (Paido\j ne/aj w)=j ka/ r t )e)mwmh/sw fre/naj - verso 277) e passa a relatar o mecanismo por meio do qual ela recebeu as notícias. Assim, Clitemnestra não apresenta a credulidade infantil própria das mulheres. Ao contrário, como um homem, ela confia em dados racionais. O caráter mais feminino de Clitemnestra em Coéforas, que faz com que acredite em um sonho, é ressaltado pela fala de 41 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 41 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. Egisto nos versos 844-846, quando este personagem afirma ser própria às mulheres a propensão a acreditar em boatos. Nas Coéforas há dois discursos de Clitemnestra que revelam que o seu caráter alterna entre as características masculinas e femininas. O primeiro, que vai dos versos 691 a 717, intercalado por uma fala de Orestes (versos 700-706), é o típico lamento da mãe que acaba de receber a notícia da morte do filho (versos 691-699). Entretanto, do mesmo modo que nos seus discursos anteriores à morte do rei no Agamêmnon, este lamento está permeado de hipocrisia, pois mais uma vez ela sente segurança: Orestes, o legítimo vingador do pai, está morto. O segundo discurso, que vai do verso 887 ao verso 930, um diálogo entre Clitemnestra e Orestes, revela novamente a natureza masculina da rainha. Ao saber da morte de Egisto e sentir a aproximação de seu próprio fim, Clitemnestra pede um machado (versos 887-891), a mesma arma com que matara Agamêmnon e, como não o recebe, muda de tática, abandona o espírito aguerrido e lança mão das armas da doce persuasão. Entretanto, neste discurso das Coéforas (versos 896-928), ela apela para os sentimentos de um filho em relação à sua mãe: “ao seio materno que alimentou” (versos 896-898), alega que o enviou para a casa de um hóspede (verso 914), ao que Orestes responde que, na verdade, ele foi vendido, ele que era filho de um pai livre (verso 915), joga a culpa dos acontecimentos no destino ((Moi=ra – verso 910), ameaça com a maldição materna (verso 912) e com a vingança das Erínias (os “cães da mãe” – mhtro\j ... ku/naj - verso 924), evoca a culpabilidade de Agamêmnon, que a traiu com Cassandra (verso 918) e as dificuldades sofridas pelas mulheres que são obrigadas a ficar sem o marido (verso 920), enfim, um discurso recheado de argumentos tipicamente femininos, ao qual não deve dar o menor crédito, pois já vimos antes a verdadeira Clitemnestra, aquela que prefere sempre ter um machado à mão. O interessante é notar que, quando Clitemnestra combate tendo como arma o discurso, este discurso é eficiente na medida que faz uso da lógica e dos valores masculinos, como é o caso dos argumentos utilizados na passagem do tapete púrpura do Agamêmnon. Quando o argumento é tipicamente feminino, centrado nas emoções e não na razão, como no caso presente, o discurso não se revela eficiente. E, como ele não é suficiente, Clitemnestra morre nas mãos de Orestes. Cumpre lembrar que a morte de Egisto e de Clitemnestra, nas Coéforas, obedece à ordem dada pelo deus Apolo a Orestes: vingar a morte do rei. Orestes reconhece que Clitemnestra pode invocar justiça por sua morte: “Ares lutará contra Ares e o Direito contra o Direito” (verso 461), o que de fato acontece nas Eumênides, mas, diante do horror do matricídio, Orestes deve levar em conta a possibilidade da vingança de Apolo, caso não cumpra o que foi ordenado (versos 269 e segs.) e Pílades, companheiro de Orestes, observa que é melhor ter contra si os homens do que os deuses (versos 900-902). Mas, centrando a nossa atenção em outro problema, o do adultério, a morte de Egisto estaria em perfeito acordo com as leis citadas por Eufileto no discurso O Assassínio de Eratóstenes. Entretanto, sob o ponto de vista das mesmas leis, a causa da morte de Clitemnestra não pode repousar sobre a traição conjugal cometida, pois, em Atenas, como já vimos antes, era proibido matar a mulher adúltera. Clitemnestra deve morrer porque matou o marido. Nas Eumênides há somente um discurso de Clitemnestra (na verdade, de sua sombra), que vai dos versos 93 a 139. Trata-se de uma acusação pelo fato de sua morte permanecer impune e contém queixas em relação ao fato de as Erínias terem permitido a fuga de Orestes. Nessa peça, o coro composto pelas Erínias assume o papel de porta-voz de Clitemnestra. Basicamente, o corifeu clama pelo respeito que é devido à mãe (verso 624) e afirma que Orestes deve ser punido, segundo as antigas leis, pelo fato de ter derramado o sangue de sua mãe (versos 653-656), aqui entendido como o sangue de sua própria família. Orestes, por seu lado, afirmara não ter o sangue da mãe (verso 606), ao que o corifeu perguntara se ela não o criara em seu seio e se ele renegava esse sangue (versos 607-608). Entretanto, o desenrolar da peça demonstra que os filhos pertencem à linha paterna segundo o raciocínio de Apolo (versos 657661) e o discurso de Atena (versos 734-735, 741). Esse desenlace já fora anunciado no canto do coro das Coéforas dirigido a Orestes: E tu, sem vacilar quando chegar o momento de agir, se ela te gritar “Filho!”, responde-lhe gritando: “Por obra de meu pai!” e realiza a obra da vingança, sem temor de censura. (versos 827-830) 42 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 42 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. 5.2 Clitemnestra e seus pares É interessante observar o que acontece quando comparamos Clitemnestra com outros personagens, formando pares. Assim, examinemos Clitemnestra com seus parceiros, Helena, Agamêmnon e as Erínias. Existe uma relação simétrica entre as duas irmãs, Clitemnestra e Helena, ambas esposas adúlteras. No início do Agamêmnon, o coro afirma que todos os males que se abateram sobre os gregos e os troianos devem ser creditados a Helena: “tudo por causa de uma mulher que foi de muitos maridos” (polua/ n droj a) m fi\ gunaiko\ j - verso 62) e, no final da mesma peça, reconhece que os males que se abateram sobre os descendentes de Tântalo (isto é, Agamêmnon e Menelau) se realizaram por meio de “mulheres de alma igual” (versos 1470-1471). Clitemnestra, a rainha assassina, afirma que a motivação do seu ato reside na vingança do sangue de sua filha Ifigênia. Entretanto, Ifigênia, nas palavras do coro do Agamêmnon, foi sacrificada em uma espécie de rito preliminar à partida das naus que levam a vingança pelo rapto de Helena (versos 255 e segs.) e que é caracterizado por esse mesmo coro como um “sacrifício impuro” (cf. versos 219-225). Então, foi preciso uma virgem morrer para que se pudesse devolver a esposa adúltera ao seu marido. E Helena, por cujo retorno Ifigênia morreu, é comparada com o filhote de leão criado como animal doméstico e que, chegando à idade adulta, traz a morte para a casa em que cresceu (verso 717 e segs.). Ela carrega a ambigüidade, evocando associações contraditórias, pois faz a aliança entre o casamento e a dor (versos 699-716) e traz um dote de lágrimas para o noivo (versos 744-749).13 O fato de o sacrifício de Ifigênia ser considerado “impuro” pode legitimar a vingança da rainha. E a sua ira não recai sobre Helena, motivo desencadeador de todos os acontecimentos posteriores, mas sim sobre Agamêmnon, pois, em Áulis, ele tinha a possibilidade de escolher entre a morte da filha e o retorno imediato dos exércitos, abortando os planos de guerra. As duas irmãs se aproximam na sua capacidade de destruição. Clitemnestra, de certa forma, coloca (13) Uma Erínia que traz lágrimas para a noiva. em movimento a roda da desgraça da casa dos Atridas; Helena leva para Tróia, como dote, a aniquilação da cidade (Agam., versos 405-409), ou é uma Erínia que leva um dote de lágrimas para o noivo (Agam., versos 744-749). Ela também poderia ser responsabilizada, juntamente com Agamêmnon, pelas cinzas dos mortos a que se refere o coro do Agamêmnon nos versos 438 e segs. O seu nome, segundo o mesmo coro, revela a sua natureza: ela é Helena, e é também helenas, hélandros, heléptolis (e(le/naj, e/(landroj, e(le//ptolij - versos 688-689), isto é, destruidora de navios, destruidora de homens, destruidora de cidades. O par seguinte a ser examinado é composto por Clitemnestra e Agamêmnon. Clitemnestra é a esposa assassina de um marido assassino. A caracterização do rei como criminoso é feita pelo coro de velhos no párodo da peça Agamêmnon. Em primeiro lugar o coro descreve um festim de duas águias, identificadas com Agamêmnon e seu irmão Menelau, que devoram uma lebre prenhe, e observa que Ártemis detesta a casa dos Atridas por causa desse festim (versos 114 – 138). Essa imagem introduz o tema do sacrifício de Ifigênia (versos 130 e segs.), definido como “sem lei” (a)n / omo/n) e “não partilhado” (a)/daiton - verso 150). Isso é, a vítima permaneceu inteira. Segundo o costume, em um sacrifício, as carnes da vítima eram divididas entre os deuses, cuja parte era consumida pelo fogo nos altares, e os homens, cuja parte era consumida em um festim (cf. Hesíodo, Teogonia, versos 535-557). A anomalia do sacrifício de Ifigênia, um sacrifício humano, é marcada pela ausência do banquete. Na descrição do sacrifício que vem a seguir (versos 184-257) o coro define o ato como ímpio (dussebh= - verso 219), impuro ou criminoso (a)/nagnon - verso 220), não consagrado (a) n i/eron - verso 220), um pensamento de uma audácia inacreditável (to\ pantotolmon fronei=n - verso 221), causado por uma loucura (parakopa\) que está na origem do mal (prwtoph/m%n - verso 223) e que dá conselhos vergonhosos (di/sxromhtij verso 222). Em simetria com o sacrifício de Ifigênia está o assassinato de Agamêmnon, abatido como um touro sacrifical com o uso de um machado. O coro de velhos da peça Agamêmnon define a morte do rei como ímpia (verso 1517), usando termos similares aos anteriormente utilizados para definir a morte de Ifigênia (dussebh= - verso 219/ a)sebei= - verso 1517). 43 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 43 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. A partir da terceira estrofe do primeiro episódio (verso 438 e segs.) o coro caracteriza Agamêmnon como assassino: ele é responsável pela morte dos guerreiros nos campos de batalha de Tróia, o que faz com que recaia sobre a sua cabeça o ódio do povo (versos 446-451). Além disso, no segundo episódio (versos 527-528) o arauto observa que em Tróia os altares e os templos dos deuses foram arrasados por Agamêmnon, o que configura um crime de sacrilégio, respondendo assim à observação feita por Clitemnestra nos versos 339-347 em que ela dizia esperar que o exército respeitasse os lugares sagrados. Em último lugar, temos a própria questão da hýbris de Agamêmnon ao pisar na púrpura. Para que o elemento trágico atue de maneira correta é necessário que o herói apresente um caráter culpável, de forma que a sua queda possua um sentido de restabelecimento da ordem e possa funcionar como um castigo. No caso da peça Agamêmnon, o relato da sucessão de culpas do rei culmina com o pecado da hýbris, com o ato de pisar na púrpura, prerrogativa dos deuses, um desejo de se igualar a eles, uma desmedida que demonstra que ele se esqueceu de suas limitações, próprias da natureza humana. A morte de Agamêmnon fica assim plenamente justificada sob o ponto de vista religioso. A descrição da morte do rei feita por Cassandra (versos 1114 e segs.) se aproxima dos ritos que envolvem o sacrifício: Agamêmnon é um touro que é abatido com um machado (versos 1125-1129), o que nos remete novamente ao sacrifício de Ifigênia. Em ambos os casos, os sacrificados são transformados em animais: Ifigênia é uma cabrita (ximai/raj – verso 232), Agamêmnon é um touro (verso 1126 – tau=ron) e o corifeu compara Cassandra com uma novilha (boo\j) que avança para o altar (verso 1298). A escolha desses animais (cabrita, touro e novilha) reside no fato de que, segundo Marcel Detienne, no caso de sacrifícios cívicos, eles são as vítimas apropriadas: “na prática sacrifical das cidades, quando se sacrifica uma trittya, os bovinos fornecem a vítima maior, ao passo que as vítimas menores são tomadas entre os caprinos e os ovinos” (Detienne 1989:104). O uso do machado como arma na morte de Agamêmnon e Cassandra também é sintomático. Walter Burkert (1993:129) e Marcel Detienne (1989:106) estão de acordo ao afirmar que o machado era o instrumento utilizado no abate sacrifical. Malcolm Davies (1987:65-75) recupera uma longa discussão iniciada por Fraenkel a respeito da arma usada por Clitemnestra no Agamêmnon e nas Coéforas, uma vez que o tipo de arma permanece indefinido. Ele relata que para Fraenkel (e outros após ele) Ésquilo teria optado pelo uso da espada. Davies observa que a tradição literária e a iconografia anteriores à Orestéia de Ésquilo são concordes em relação ao uso do machado, da mesma maneira que as tragédias posteriores, de autoria de Sófocles e Eurípides e que não haveria, neste caso, qualquer motivo para o poeta contrariar o imaginário e a tradição. Girard (1990:13-26), ao analisar as relações existentes entre a violência e o sacrifício, observa que, em primeiro lugar, o sacrifício apresenta duas faces opostas, a de “algo muito sagrado” legítimo e público, “do qual não seria possível abster-se sem negligência grave” e a outra, que o considera ilegítimo, furtivo e uma espécie de crime. Segundo ele, sacrifício e assassinato são aparentados e se prestam ao jogo de substituição recíproca. Na sua análise ele demonstra que o sacrifício tem como função canalizar a violência coletiva para vítimas animais que substituem as vítimas humanas, mas que, em certos momentos, o sacrifício humano ainda é aceitável, como no caso do pharmakós grego e de outras criaturas marginais, isto é, “crianças e adolescentes ainda não iniciados” ou o rei, considerado também ele marginal, por estar em uma posição “acima da sociedade, análoga à do pharmakós, que está abaixo da sociedade”. Entretanto, segundo o coro, tanto no caso da morte de Ifigênia como no da morte de Agamêmnon e de Cassandra não estamos diante de sacrifícios legítimos, e sim de assassinatos, pois, como veremos adiante, Clitemnestra usurpou a função sacrifical ao realizar uma inversão nos papéis legitimamente desempenhados pelas mulheres. Portanto, existe uma perfeita concordância entre esse casal composto pela esposa assassina do marido assassino, mesmo que se trate aqui de dois seres marginais, o rei e a donzela que, segundo Girard, se encaixam perfeitamente nos papéis de vítimas sacrificais. Além disso, na evolução histórica dos sacrifícios o animal substituiu o ser humano. No caso de Ifigênia, Agamêmnon e Cassandra temos o ser humano no lugar do animal, pois Ifigênia corresponde à cabrita, Agamêmnon corresponde ao touro e Cassandra corresponde à novilha. Nada mais natural, nas Eumênides, que as Erínias façam par com Clitemnestra, pois é de se 44 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 44 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. esperar que as divindades cuja esfera de atuação seja o mundo dos mortos se apresentem como defensoras da mãe assassinada. Contudo, não podemos esquecer que a ligação entre Clitemnestra e essas divindades vingadoras é mais antiga. Em primeiro lugar, no Agamêmnon, Helena, a irmã de Clitemnestra, é qualificada como uma Erínia (versos 745-749). Além disso, Cassandra descrevera um “coro” de Erínias que habitava o palácio dos Atridas, Erínias que já tinham se alimentado de sangue humano (Agam., versos 1185 e segs.) e que estavam aguardando mais sangue. Clitemnestra, na sua ânsia por vingança, afirma ser o alástor familiar e, assim, identifica-se com estas divindades antigas, porque dedicadas ao que pertence ao passado – os mortos. E ao fazer isto, volta a alimentá-las. Então, a polarização existente nas Eumênides entre Apolo e as Erínias pode ser interpretada como a oposição entre duas esferas: a vida, a luz, o masculino (Apolo) e a morte, a escuridão, o feminino (Erínias). Jean-Pierre Vernant, ao discutir os papéis desempenhados por homens e mulheres na religião grega, registra que, enquanto os homens se dedicam à religião políade, cujo culto visa a integrar o indivíduo no contexto social, a religião feminina “dirige-se a deuses que não são políticos, que não têm templos ou os têm poucos, que conduzem seus fiéis para longe das cidades, para a natureza selvagem, e cujo papel é arrancar os indivíduos de suas relações sociais ordinárias, de suas ocupações habituais, para desenraizá-los de sua própria vida e de si mesmos. Tal tipo de religião é especial questão das mulheres, na medida que são menos bem integradas que o homem na cidade, onde estão precisamente excluídas da vida política. Socialmente desqualificadas, enquanto mulheres, para participar no mesmo nível dos homens nos negócios públicos, elas se encontram religiosamente qualificadas para animar cultos que são, de certo modo, o contrário da religião oficial” (Vernant 1992:102-103). O famoso discurso de defesa de Orestes proferido por Apolo nessa peça (versos 657-673), discurso este que afirma que o filho não possui o sangue da mãe, tem sido interpretado como uma afirmação do patriarcado, em detrimento do poder do matriarcado.14 Segundo esta hipótese, o discurso seria a expressão da transição de um estágio social mais antigo (matriarcado) para o tipo de sociedade patriarcal que o substituiu. Acreditamos que o conteúdo do discurso de Apolo é, pelo menos em parte, reflexo das idéias médicas da época a respeito dos mecanismos da concepção dos seres humanos. Rousselle (1984: 40 e segs.) desenvolve o argumento segundo o qual o desconhecimento da fisiologia feminina levou à conclusão, por parte dos médicos gregos, de que o homem era o único responsável pela geração do embrião humano, cabendo à mulher apenas a tarefa de abrigá-lo e nutri-lo.15 Assim, na geração dos filhos, o homem teria um papel ativo e a mulher um papel passivo. Esta idéia apareceria sob a forma de uma metáfora em que o homem é o semeador e a mulher, a terra nutriz que recebe a semente. Portanto, nada mais natural do que a idéia segundo a qual o filho carrega somente o sangue do pai, sendo a mãe apenas a depositária da semente masculina. Uma semente não se confunde com a terra. À mulher cabe a tarefa de guardar, nutrir e dar à luz algo que não pertence a ela. A idéia acima exposta segundo a qual os laços de sangue de um indivíduo se definem por sua linhagem paterna encontra eco no direito ático no que diz respeito à linha de sucessão nas heranças, que se realiza no lado masculino das famílias (cf. Blundell 1995: 116-119). Dessa perspectiva temos uma chave para a melhor compreensão do problema exposto nas Eumênides, isto é, se Orestes derramou o sangue de sua família ao matar a sua mãe. Assumindo essa orientação, ao matar Clitemnestra, Orestes não teria derramado o seu próprio sangue, pois ele possuiria o sangue de seu pai. Conforme essa perspectiva, a sede de vingança das Erínias não possuiria legitimidade. Em segundo lugar, é direito e dever de Orestes vingar o seu sangue derramado, isto é, o assassinato de Agamêmnon. E, finalmente, Orestes, como já dissemos anteriormente, age movido pelas ordens de Apolo, que ele hesita em cumprir, pois está diante da escolha entre dois males: a poluição religiosa que o matricídio implica ou a desobediência às ordens do deus. Entretanto, a solução do conflito estabelece que, a partir desse momento, a vingança dos crimes de sangue deixa de ser exercida diretamente pelas famílias ultrajadas e (14) Ver o artigo de F. I. Zeitlin (1978: 149-184). Para opinião contrária à de Zeitlin, ver M. Pope (1974: 100-113). (15) A fonte de Aline Rousselle é A Geração dos Animais de Aristóteles. 45 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 45 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. passa a ser prerrogativa do tribunal de cidadãos reunidos para esse fim. Girard (1990: 28-32) observa que os mecanismos de vingança de sangue tendem a se perpetuar: “Por que, em qualquer lugar onde grassa, a vingança de sangue constitui uma ameaça intolerável? Face ao sangue derramado, a única vingança satisfatória é o derramamento do sangue do criminoso. Não há diferença nítida entre o ato que a vingança pune e a própria vingança. Ela é concebida como uma represália, e cada represália invoca uma outra. Muito raramente o crime punido pela vingança é visto como o primeiro: ele é considerado como a vingança de um crime mais original”. Assim, segundo ele, o sistema judiciário afasta a vingança, substituindo-a por uma represália única, afirmandose sempre como a última palavra da vingança. Ainda segundo ele, na ausência de um sistema judiciário, o sacrifício funcionaria como a canalização das tendências violentas da sociedade em direção à vítima sacrifical, e quanto mais aguda a crise, mais a vítima deve ser preciosa. Para ele, nas sociedades desprovidas de um sistema judiciário, o sacrifício desempenha um papel primordial, posto afastar a vingança, e esse mecanismo é atestado pelo fato de que a instalação de um sistema judiciário causa a atrofia das funções sacrificais, como foi o caso da Grécia e de Roma, mesmo que elas continuem existindo por bastante tempo. A conclusão da trilogia, então, explica mitologicamente a legitimidade do tribunal do Areópago em julgar os crimes de sangue e explica a substituição da vingança familiar por mecanismos judiciários. Ao fazê-lo, estabelece dois preceitos jurídicos vigentes até os dias de hoje, a saber, o de que, em caso de dúvida, o veredicto deve ser a favor do réu, e o de que, em caso de empate, o voto do juiz é aquele que determina a sentença. 6. Conclusão: a inversão e a subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo É inevitável a comparação entre essa mulher terrível, que diz ser o alástor vingador da casa, e o protótipo da esposa, Penélope. Como já dissemos antes, Clitemnestra é a mulher de quem, na Odisséia, pouco se fala, e sempre muito mal. No canto III (versos 239-343), Nestor conta a Telêmaco o “golpe de estado” levado a cabo por Egisto, amante de Clitemnestra, e nesse relato a posição da rainha é dúbia. Ela, a princípio, não desejava trair o esposo, mas depois cedeu, pois o aedo que por ela velava foi morto por seu amante. No canto IX (versos 422-434 e 452) o relato é feito para Ulisses pela sombra de Agamêmnon. Em outras passagens, o mesmo fato é narrado (canto I, versos 33-43; canto IV, versos 65-99), porém nem se fala o seu nome. Ela é a “funesta mulher” e a “esposa funesta”. Em ambos os casos, o do reino de Ulisses e o do reino de Agamêmnon, estamos diante de crises dinásticas causadas por um vácuo de poder, cuja origem repousa na ausência do rei, e a resolução dessas crises depende da atuação das esposas. As esposas formam pares harmônicos com seus maridos e Penélope, a esposa de um herói “positivo” e astuto, é a esposa astuta e modelar. Clitemnestra é a esposa assassina de um rei culpado. Segundo Lloyd Jones (1962), na Orestéia de Ésquilo, Agamêmnon é culpado pelo sacrifício de Ifigênia,16 culpado pela destruição dos templos e dos altares de Tróia, culpado, perante Ártemis, pela morte dos que não nasceram17 e culpado por ter cedido diante dos argumentos de Clitemnestra e ter pisado no tapete púrpura, um ato de hýbris, final que sela o seu destino. (16) Lloyd Jones (1962) considera que no caso do sacrifício de Ifigênia, o rei não tinha alternativa. Entretanto, podemos observar que alternativa existia e consistia basicamente em desmobilizar os exércitos e voltar para casa. A prova da existência dessa alternativa pode ser encontrada no relato do coro (versos 184 e segs.): “Foi assim que o mais velho dos chefes das naus aquéias preferiu dobrar-se à sorte que o feria (isto é, sacrificar a filha) a resistir a um adivinho (...)”. Obviamente, o abandono do projeto de guerra seria impensável segundo o ponto de vista da moralidade heróica, mas não segundo a moralidade trágica. Na tragédia, o personagem se transforma em um herói no momento em que, diante de duas possibilidades de ação, tem que fazer uma escolha. Acreditamos que, segundo esse ponto de vista e nas tragédias em questão, Agamêmnon pode ser considerado culpado pela morte da filha, uma vez que poderia ter optado pela vida de Ifigênia e, conseqüentemente, pela desmobilização dos exércitos. Mas neste caso, ele teria se anulado como um herói guerreiro. (17) William Whallon (1961) afirma que Ártemis se dedica a um vasto esquema de destruição contra a casa argiva, levada por seu amor a todo tipo de “cria” ou “ninhada” e, nesse caso, Agamêmnon carregaria a culpa pelo festim das águias, pelo festim de Tiestes e pela morte das crianças troianas no ventre de suas mães. 46 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 46 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. 6.1 A subversão da função feminina Sob o ponto de vista das funções femininas a serem desempenhadas, Clitemnestra é o oposto do que se deveria esperar de uma mulher, tanto se analisarmos a sua ação segundo os parâmetros do mundo homérico, quanto sob os parâmetros da sociedade ateniense do século V a.C. Clitemnestra não é fiel, mas, ao contrário, se une ao maior inimigo de seu marido (Coéf., versos 130-134), odeia quem devia amar, isto é, Agamêmnon (Coéf., versos 905907), é uma traidora, pois Orestes diz que vai mandá-la para o mesmo túmulo de Egisto, “assim não poderás traí-lo depois de morto” (versos 894895); não cuida das propriedades do rei, entregando o trono ao amante; não protege a sua prole mas, ao contrário, é um perigo para os próprios filhos, como demonstra o lamento de Orestes e Electra nas Coéforas. Nele, diz-se que Clitemnestra sente um ódio ímpio contra seus filhos (fro/nhma paisi\ du/sqeoj - versos 190-191). Mais adiante o coro relata uma série de crimes femininos, sendo o primeiro deles a morte de Meleagro nas mãos de sua mãe Alteia (versos 601-612). Assim, fica claro o perigo representado por Clitemnestra em relação aos seus filhos na associação que Ésquilo estabelece entre os filhos Orestes e Meleagro e as mães Clitemnestra e Altéia. Então, o reconhecimento da subversão do papel materno fica claro na fala de Orestes: “Sei bem que os que nos deveriam amar são precisamente os que nos odeiam” (verso 234). Resumindo, ela subverte os papéis de esposa e mãe. Além disso, Electra, nos versos 445-450, articulados aos versos 486-487 das Coéforas, relata outro crime de Clitemnestra: além de subverter os papéis de esposa e mãe, a rainha nega à filha esses mesmos papéis. Electra permanece solteira, impedida de atingir a maior realização feminina sob ambos os pontos de vista, o da sociedade homérica e o da sociedade ateniense, isto é, o casamento e a maternidade. Em Clitemnestra a subversão dos papéis femininos está bem exemplificada na questão da tecelagem. Como vimos anteriormente, fiar e tecer são funções exclusivamente femininas. A confecção de tecidos envolve dois aspectos distintos e complementares: por um lado, trata-se de uma atividade econômica dessa unidade de produção que (18) Conferir a oikos como unidade de produção em C. Mossé (1991: 17). é a oikos.18 Por outro lado, trata-se de abrigar e proteger os familiares. Penélope tece para ganhar tempo e esperar a volta do esposo; Clitemnestra tece para matar, faz a rede, o fio, o laço (Agam., verso 1382) que prendem o rei e impedem a sua reação contra o machado. Nas Coéforas é constante a referência ao tecido e à rede que propiciaram o assassinato do rei: a)mfiblhstron (verso 492), fa=roj (verso 1011), ste/gastron (verso 984). No verso 494, a referência é a um “tecido vergonhoso” (ai)sxrw=j kalummasin). Se a análise da subversão do comportamento da rainha se detiver na questão dinástica, Clitemnestra inverte a ordem das sucessões. Nas sociedades patrilineares e patriarcais,19 as heranças e o poder se transferem conforme a linhagem masculina. Clitemnestra, ao colocar Egisto no trono, subverteria a ordem estabelecida, pois a sucessão de Agamêmnon seria feita passando por sua esposa e não por seu filho. Além disso, ela afastaria dessa sucessão o herdeiro legítimo, isto é, Orestes. Mais uma vez, é de grande utilidade a comparação com Penélope. A atuação da esposa de Ulisses é diametralmente oposta em uma situação comparável. Também no caso dela, o novo casamento colocaria no trono um rei por uma sucessão feita por via feminina – da própria Penélope – e afastaria Telêmaco, o herdeiro legítimo, do trono. Diante dessa possibilidade, Penélope opta pela resistência via contemporização, sempre na esperança do retorno do marido. 6.2 A inversão do gênero feminino Com relação a Egisto, a subversão da ordem vai mais além. Trata-se, na verdade, da inversão ou troca de papéis. Se Clitemnestra é uma “mulher de másculas deliberações”, se ela pode “falar com a sensatez de um homem sábio”, se ela pode utilizar uma lógica masculina, ela é o homem da relação no casal que forma com Egisto. Para Cassandra, Clitemnestra é “uma mulher capaz de tudo, como um guerreiro a quem a vitória sorri no meio duma batalha” (versos 1236-1237), ao passo que Egisto “é um leão covarde e caseiro” (Agam., verso 1223), posto não ter ido à guerra, ficando em casa com as mulheres, e um “lobo” (Agam., verso 1259), isto é, um (19) Para os conceitos sociológicos de patriarcado e de patrilinearidade, conferir Rosaldo e Lamphere (1979). 47 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 47 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. covarde. A inversão dos papéis de cada um dos gêneros é realizada de tal forma que, no diálogo com Cassandra, o corifeu pensa que quem vai matar Agamêmnon é um homem (verso 1251). Egisto, por sua vez, é corajoso em relação a um coro de velhos desamparados que não têm força nem poder. Esse coro o acusa de ser covarde: “não passas de uma mulher (...)” (verso 1625), “tramaste a morte deste homem, mas não tiveste coragem de agir, matandoo com a tua própria mão!” (versos 1633-1635), “porque é que não mataste tu próprio este homem, alma covarde (...)?” (versos 1643-1644) e “vangloria-te, mostra-te corajoso, como um galo ao pé da galinha” (verso 1671). Em Coéforas, a acusação de ter coração de mulher (covardia) novamente recai sobre Egisto (versos 304-305). Se aceitarmos a hipótese de que a morte de Agamêmnon e de Cassandra é uma forma de sacrifício, teremos outro aspecto da inversão de papéis operada por Clitemnestra, pois, segundo Walter Burkert (1993:200), “o condutor do sacrifício é o chefe da casa, da família e da aldeia, o presidente do conselho, o dirigente eleito da cidade, o qual em Atenas se denomina ‘arconte’, ou ‘general’”. Portanto, nesse caso, o papel de sacrificante caberia a Egisto. O sinal de que existe aqui uma inversão dos papéis próprios a cada um dos gêneros reside no fato de que a ação pertence a Clitemnestra; é ela que comete o assassinato/sacrifício e toma o poder. Na verdade, Clitemnestra é o rei e Egisto permanece apagado, em segundo plano. Duas referências feitas por Ésquilo na trilogia podem servir como fecho de nossa conclusão. A primeira é encontrada em Coéforas, versos 631636. Trata-se do relato dos crimes cometidos por mulheres. Esse relato, que começa com o já citado mito de Meleagro e Alteia, tem a sua continuidade em dois crimes cometidos por mulheres impudicas (versos 594-601), a saber, o assassinato de Niso, rei de Megara, nas mãos de sua filha Cila (versos 613622) e do mito das mulheres lêmnias que, abandonadas por seus maridos, mataram todos os homens da ilha (versos 631-638). A segunda referência pertence a As Eumênides (versos 685-690), onde o autor estabelece a localização do tribunal que deverá julgar Orestes: ele deve se reunir no Areópago, local onde outrora as amazonas haviam montado o seu acampamento quando, no passado mitológico de Atenas, sitiaram a cidade com o objetivo de resgatar sua rainha, raptada por Teseu (versos 683-695). As amazonas poderiam ser vistas como uma forma anormal de agregado humano, quer do ponto de vista estrutural, posto negar e afastar o governo masculino, quer do ponto de vista sexual, posto se entregarem a relações sexuais fortuitas e passageiras, com o simples objetivo de procriação. As amazonas negavam o casamento, considerado pela sociedade grega como o destino natural das mulheres e o instrumento da procriação legítima. Também assumiam o seu próprio governo, afastando os homens e apoderando-se da sua função natural na sociedade. Trata-se, para os padrões vigentes na época de Ésquilo, de uma sexualidade desregrada e de uma aberração política. Tal como as mulheres lêmnias, Clitemnestra é a fêmea que mata o macho. Como as amazonas, ela toma o poder e a sua sexualidade é anormal. Portanto, nossa conclusão final é que a abordagem feita por Ésquilo do feminino na Orestéia estaria mostrando que papéis e funções do gênero feminino descritos nos poemas homéricos ainda permaneciam vigentes e eram considerados apropriados na sociedade de seu tempo. TSURUDA, M.A.L. Inversion and subversion of the feminine in the Aeschylus’ Oresteia. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. ABSTRACT: The purpose of this article is to study some gender questions in the Aeschylus’ Oresteia. By the analysis of a central character, Clytemnestra, I wish to emphasize that her actions, not merely invert, but also subvert, the feminine roles and functions that women were supposed to play in their lives, under both the viewpoint of the Homeric society which the Aeschylus’ trilogy is remitted and the Athenian audience. UNITERMS: Aeschylus – Oresteia – Gender – Feminine roles – Inversion – Subversion. 48 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 48 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. Fontes citadas ARISTOPHANES 1950 The Peace, The Birds, The Frogs, translated by Benjamim Bickley Rogers, The Loeb Classical Library. London – Cambridge: William Heinemann Ltd. – Harvard University Press. ESCHYLE 1993 Agamemnon, Les Choéphores, Les Euménides, texte établi et traduit par Paul Manzon. Paris: Les Belles Lettres, onzième tirage. HESÍODO 1990 Os Trabalhos e os Dias, tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras. HESÍODO 1992 Teogonia, tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras. HOMERO 2001 Ilíada, tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro. HOMERO 1980 Odisséia, tradução de E. Dias Palmeira e M. Alves Correia. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 5ª edição. JENOFONTE 1984 De la Casa, introducciones, traducciones y notas de Orlando Gutiñas Tuñon. Madrid: Editorial Gredos S.A. LISIAS 1953 Discursos, vol. I, texto revisado y traducido por Manuel Fernández-Galiano. Barcelona: Ediciones Alma Mater S.A. Obras de referência BAILLY, A. 1963 Dictionnaire Grec-Français. Paris: Librairie Hachette, 26e édition. BRANDÃO, J.S. 1991 Dicionário Mítico-Etimológico de Mitologia Grega, vol. I. Petrópolis: Editora Vozes. FERREIRA, A.B.H. 1986 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2a edição revista e ampliada, 26a reimpressão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. HARVEY, P. 1987 Dicionário Oxford de Literatura Clássica (grega e latina), tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Referências bibliográficas BARROS, G.N.M. DE 1997 A Mulher Grega e Estudos Helênicos. Londrina: Editora da UEL. BLUNDELL, S. 1995 Women in Ancient Greece. Cambridge, Massachusets: Cambridge University Press. BOWIE, A.M. 1993 Religion and Politics in Aeschylus’ Oresteia. The Classical Quartely, new series, XLIII: 10-31. BURKERT, W. 1993 Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, tradução de M. J. Simões Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. CARRIÈRE, J.-C.; GAILLARD, J.; MARTIN, R.; MORTIERWALDSCHMIDT, O. 1994 La literature gréco-romaine. Paris: Nathan. DAVIES, M. 1987 Aeschylus’ Clytemnestra: Sword or Axe? The Classical Quarterly, new series, 37 (1): 65-75. DETIENNE, M. 1987 Les Jardins d’Adonis. Paris: Éditions Gallimard. DUBY, G.; PERROT, M. (Org.) s/d História das Mulheres, vol. I, sob direção de Pauline Pantel, tradução de Alberto Couto e outros. Porto: Edições Afrontamento. EASTERLING, P.E. 1985 Anachronism in Greek Tragedy. The Journal of Hellenic Studies, CV: 1-10. FINLEY, M. 1982 O Mundo de Ulisses, tradução de Armando Cerqueira. Lisboa: Editorial Presença. GIRARD, R. 1990 A Violência e o Sagrado, tradução de Martha Conceição Gambini. São Paulo: Editora da Universidade Paulista. JAEGER, W. 1979 Paidéia, tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda. KONISHI, H. 1962 Agamemnon’s Reasons of Yielding. American Journal of Philology, 110 (2), summer: 189199. LLOYD-JONES, H. 1962 The Guilt of Agamemnon. The Classical Quartely, new series, XII: 187-199. LYNN-GEORGE, M. 1993 A Reflection on Homeric Dawn in the Parodos 49 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 49 9/4/2006, 12:47 TSURUDA, M.A.L. Inversão e subversão do feminino na Orestéia de Ésquilo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 33-50, 2004. of Aeschylus, Agamemnon. The Classical Quarterly, new series, XLIII (1): 1-19. MARROU, H.-I. 1973 História da Educação na Antigüidade, tradução de Mário Leônidas Casanova. São Paulo: co-edição EPU/EDUSP. MOSSÉ, C. 1991 La Femme dans la Grèce Antique. Bruxelles: Editions Complexe. PEREIRA, M.H.R. 1982 Hélade: Antologia da Cultura Grega. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra - Instituto de Estudos Clássicos, 4ª edição. ROSALDO, M.Z.; LAMPHERE, L. (Orgs.) 1979 A Mulher, a Cultura, a Sociedade, tradução de Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ROUSSELLE, A. 1984 Pornéia: Amor e Sexualidade no Mundo Antigo, tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Editora Brasiliense. TSURUDA, M.A.L. 1994 Os Modelos de Educação Feminina em Homero. Cadernos de História de Filosofia da Educação, São Paulo, FEUSP, II (3): 4-23. VERNANT, J.-P.; VIDAL-NAQUET, P. 1977 Mito e Tragédia na Grécia Antiga, tradução de Anna Lia A. de Almeida Prado, Maria da Conceição M. Cavalcante e Filomena Y. Hirata Garcia. São Paulo: Duas Cidades. VERNANT, J.-P. 1992 Mito e Sociedade na Grécia Antiga, tradução de Myriam Campello. Brasília – Rio de Janeiro: Editora da Universidade de Brasília – Livraria José Olympio Editora. WHALLON, W. 1961 Why Arthemis is Angry? American Journal of Philology, LXXXII (1): 149-184. ZEITLIN, F.I. 1978 The Dynamics of Misogyny: myth and mythmaking in the Oresteia. Arethusa, II: 149-184. Recebido para publicação em 2 de setembro de 2004. 50 Maria Amalia Longo Tsuruda.pmd 50 9/4/2006, 12:47