A natureza jurídica do Ministério Público

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A natureza jurídica do Ministério Público
A natureza jurídica do Ministério Público1
Bernardo Ladeira Ferreira
Bacharel em Direito – IPTAN
E-mail: [email protected]
Telefone: (32)88442428 / (32)33723245
Data de recepção: 02/03/2010
Data da aprovação: 15/06/2010
Resumo: O presente artigo objetiva discorrer sobre a base conceitual e a
tipologia científica do Ministério Público como órgão indispensável no Estado
Democrático de Direito. Seu principal escopo é avaliar a natureza jurídica do
referido órgão, como seus traços fundamentais, suas bases epistemológicas e
gnosiológicas a estrutura administrativa do Estado brasileiro. Isso se justifica
pela importância do órgão no bojo do Estado Democrático de Direito. Instituição
independente e permanente destaca-se na defesa dos direitos transindividuais,
da ordem jurídica, do efetivo cumprimento da lei e da sociedade. A partir da
nova ordem constitucional de 1988, o Ministério Público merece profunda
atenção acadêmica e científica, sobretudo sob o enfoque jurídico.
Palavras-chave: Ministério Público – Direito Constitucional – Natureza jurídica
– Epistemologia
1
Este artigo é resultado de monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) para a obtenção de título de
Bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves – IPTAN –
em 2009.
Introdução
O Estado Democrático de Direito é uma construção histórica que se
processou aos poucos na consciência da sociedade brasileira, principalmente
com o advento da Carta Magna de 1988. As lutas, as conquistas, as
discussões e as transformações da coletividade constroem um processo de
consolidação dos valores fundamentais, função jurídico-política do Estado.
Uma das maiores expressões desse fenômeno, na efetiva transformação
do direito em realidade, é o Ministério Público. De fato, a sua atuação no seio
do Estado Democrático, impulsionado pelo Texto Constitucional de 1988, tem
contribuído para o fortalecimento da democracia e dos sentimentos de respeito
à ordem jurídica brasileira.
Dessa forma, diante seu destaque e indispensabilidade na busca dos
preceitos de justiça, faz-se mister a compreensão de sua natureza jurídica, isso
é, do que consiste e em que está baseado tal órgão, para melhor abstrair sua
real função na ordem estrutural do Estado. Todavia, tal compreensão ainda não
se vê pacífica e uniformizada entre aqueles que discorrem sobre o tema.
Muitos defendem a ideia de que a referida instituição pertence e vinculase ao Poder Executivo, devido promover e dar eficácia às normas. Outros, por
sua vez, advogam ser o Ministério Público pertencente ao Poder Legislativo, ou
até mesmo ao Poder Judiciário. Ainda, poucos afirmam ser o “Quarto-Poder”
da República, amparado por suas garantias, funções e prerrogativas
constitucionais.
A diversidade conceitual e a temeridade de concluir sobre a natureza do
aludido órgão ministerial criam disfunções no universo acadêmico-científico,
tornando ainda mais difícil tal entendimento e ofuscando a nitidez do Ministério
Público no bojo da democracia.
Neste trabalho serão discutidos conceitos sobre a instituição do Ministério
Público e sua epistemologia dentro do ordenamento jurídico brasileiro. O
desenvolvimento do trabalho se pautará pela observação dessa natureza face
à estrutura organizacional do Estado, e como tal instituição está nela inserida,
principalmente à luz da filosofia jurídica e dos conceitos da ciência do direito.
1. Ministério Público
1.1. Visão Geral
A expressão Ministério entende-se, semanticamente, o exercício de
determinada função ou profissão; já o vocábulo Público significa tudo que
pertence à coletividade ou ao povo em geral, sob domínio do Estado. “A
expressão Ministério Público significa ‘um ofício pertencente à essência do
Estado’”. (MIRANDA apud SANTANA, 2008, p. 21)
Inserido na posição de destaque no sistema jurídico brasileiro, o
Ministério Público2 é umas das principais instituições de defesa dos interesses
sociais e da promoção da mudança social.
Diz o art. 127, caput, da Constituição Federal de 1988 que “O Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime e dos interesses
individuais indisponíveis”, consagrando, além da reserva da persecução
criminal, à sustentabilidade das liberdades públicas constitucionais em defesa
da
sociedade,
com
liberdade,
unidade,
indivisibilidade,
autonomia
e
independência funcional da instituição e de seus órgãos. (MAZZILLI, 1991, p.
41-42)
Como bem registra Edilson Santana, o órgão é “permanente, porque é
parte integrante do Estado; essencial à função jurisdicional, porque, sem a
mesma, essa ficaria mutilada”. (SANTANA, 2008, p. 21)
Sendo um ente eminentemente voltado para a sociedade e para suas
necessidades sociais, ele transcende o direito positivo, desenvolvendo-se
significativamente para concretizar umas das suas grandes aspirações: a
realização da justiça, da proteção e da servidão àquela sociedade que o criou.
(MACHADO, 1989, p. 25)
Ora, responsável pela transformação da realidade social e da guarda da
ordem jurídica, e considerado indispensável ao Estado Democrático de Direito
e às funções essências à justiça, o Parquet, tratado no Título IV (‘da
organização dos poderes’), no Capítulo IV da Constituição Federal de 1988 nos
2
Neste trabalho, Ministério Público é expressão equivalente a MP, Instituição Ministerial,
Parquet e Magistratura de Pé.
artigos 127 a 130-A, não participa do processo de elaboração das leis, mas
vela pela sua observância; não integra o ato jurisdicional, mas é essencial à
sua prestação; não se subordina ao poder executivo, mas seus atos têm
natureza administrativa. (MAZZILLI, 2007, p.42)
Dessa forma, funciona o órgão ministerial em proteção do regime
democrático sem, contudo, assumir qualquer forma de subordinação e de
vínculo a qualquer dos poderes, seja executivo, seja legislativo, seja judiciário.
1.2. Origens Históricas
Não é possível uma exata precisão sobre o aparecimento do Ministério
Público na história. Muitos foram os processos de aperfeiçoamento, e inúmeras
as transformações que a instituição sofreu para chegar ao modelo atual, na
migração da tutela do Estado para a tutela da sociedade. Alguns autores
procuram sua origem no Antigo Egito, há cerca de quatro mil anos, na figura do
funcionário real Magiaí3.
Outros, inspirando-se nos ‘Éferos de Esparta’, referem-se à figura de um
funcionário grego, chamado de tesmoteti ou desmodetas, espécie de agente
judicial, militar e religioso, como sendo a fonte de surgimento da instituição,
“cuja missão precípua era vigiar pela correta aplicação das leis, pois tinham a
função de contrabalancear o poder real e o poder senatorial, exercendo a
acusação pública” (MORAES, 2003, p. 490).
Alguns autores encontram o embrião do Ministério Público na Roma
Antiga, nos Procuratoris Caesaries, defensores do Estado Romano.
Ocorre que no decorrer dos anos, a instituição do Parquet sempre
defendeu os interesses do Rei, as vontades do soberano e do império,
principalmente após a Revolução Francesa, quando a referida instituição
assume oficialmente o papel de acusador oficial do Estado e fiscal da lei
(SANTANA, 2008, p. 29), o que vai sendo ao longo dos anos, num processo
3
Segundo textos descobertos em escavações do Egito, tal funcionário era a língua e
os olhos do Rei; castigava os rebeldes, reprimia os violentos, protegia os cidadãos
pacíficos; acolhia os pedidos do homem justo e verdadeiro, perseguindo o malvado
mentiroso; era o marido da viúva e o pai do órfão; fazia ouvir as palavras da acusação,
indicando as disposições legais que se aplicavam ao caso; tomava parte das
instruções para descobrir a verdade. (VELLANI apud MAZZILLI, 1991, p. 1 e 2).
evolutivo, aperfeiçoado através de lutas e conquistas, certo de que, em seu
advento, o órgão não fora criado para a defesa incontestável dos
hipossuficientes, dos oprimidos e dos direitos sociais.
A temeridade de ver o Estado julgar sem imparcialidade, corroborado
com os ideais franceses de uma Instituição Constitucional no século XIV, faz
surgir um órgão multifacetário, institucionalizando sua vontade em prol da
justiça, da liberdade, da igualdade e da fraternidade, deixando o Ministério
Público formalmente destinado às atividades essenciais da prestação
jurisdicional.
Em sucinto desfecho, preciosas são as palavras de Hugo Nigro Mazzilli
(2003, p. 17):
O mais comum é indicar-se que o Ministério Público moderno
tem origem nos procuradores do Rei da França, ou, mais
especificamente, na Ordenança de 1302, de Felipe IV.
Entretanto, verdade seja dita, contemporaneamente na Itália e
em Portugal (Ordenações do Reino), existiram Procuradores do
Rei, com atribuições semelhantes. (...) A verdade é que a
origem do Ministério Público está ligada à defesa do Rei e à
acusação penal (grifo nosso).
1.3. O Ministério Público no Direito Brasileiro
A trajetória do parquet no direito brasileiro e sua evolução institucional
não foram diferentes da sua própria história no mundo, trajetória essa marcada
pela transição do ‘advocatus rei’ para ‘advocatus civilis-societatis’.
No Brasil-colônia, antes da independência, e até mesmo no Brasilimpério, afirma Edilson Santana (2008, p. 32):
A 10 de novembro de 1937, sob o argumento de que os
comunistas iriam iniciar um levante no País, o Governo fechou o
Congresso Nacional, as Assembléias Estaduais e as Câmaras
de Vereadores, impondo censura aos meios de comunicação de
massa, suprimindo garantias constitucionais. Getúlio Vargas
sacramentou um golpe de Estado e, com o apoio das Forças
Armadas, outorga uma nova Constituição. O Ministério Público
sofreu com o golpe. Houve retrocesso institucional.
Procurador da Coroa e da Fazenda exercia a função de Promotor de
Justiça, cujas atribuições eram estritas e unicamente cuidar dos interesses do
Rei, não se podendo falar propriamente de uma instituição e nem de
autonomia.
A Constituição Imperial de 1824 não se referiu à Instituição do Ministério
Público, tratando-o tão-somente nas disposições do juízo criminal, na qual
registrava o dito Procurador como dominus litis (senhor da ação penal)4, o que
não foi diferente anos depois, na primeira Constituição da República (1891),
fazendo simplesmente referência ao procurador-geral, um ‘bacharel-idôneo’
escolhido dentre os membros do Supremo Tribunal Federal.
Somente após algumas décadas de república e passado pouco mais de
um século de independência, a Constituição de 1934 trouxe a lume a primeira
referência constitucional do Ministério Público 5 , instante quando se pode
afirmar o seu aparecimento no Brasil como Instituição6, num momento marcado
por enfraquecimentos e distúrbios democráticos, como relata Edilson Santana
(2008, p. 32):
A partir daí, novas constituintes marcaram a evolução
republicana brasileira, vindo a instituição ministerial alcançar
sua autonomia, a obrigatoriedade de concurso público para o
ingresso na carreira (na qual só poderiam perder a referida
função por sentença judicial ou processo administrativo, sendolhes assegurado o contraditório e a ampla defesa), e sua
inamovibilidade7.
Da mesma forma, a Lei Fundamental de 1967 (e sua emenda de 1969)
trouxe expressivas transformações ao órgão, ao tratá-lo no capítulo do Poder
Judiciário e inspirada na conceituação de que ‘O Ministério Público é instituição
essencial à função jurisdicional do Estado’, transformações essas fundamentais
para as conquistas de princípios indispensáveis para o correto e eficaz
exercício do parquet, como a unidade, indivisibilidade e independência
funcional e autonomia administrativa.
Atentamente, Edilson Santana (2008, p. 32) leciona sobre tal evolução:
Observa-se, contudo, que, embora topograficamente, no âmbito
do Poder Judiciário, a Instituição não se libertou das amarras do
Poder Executivo, posto que os Procuradores da República,
Procuradores de Justiça e Promotores de Justiça (em primeira e
4
Código de Processo Criminal do Império de 1832.
5
Sem, contudo, dedicar-lhe título autônomo, considerando-o como órgão de cooperação nas
funções governamentais.
6
Em que pese a nomeação de seus membros ser feita de forma discricionária pelo Presidente
da República.
7
Estrutura organizacional contida na Lei Maior de 1946.
segunda instância) ainda estavam incumbidos de representar
certos interesses de governantes.
Ora, o posicionamento constitucional da instituição sempre causou
perplexidade
na
doutrina,
devido
às
mudanças
nos
próprios
textos
constitucionais e as evoluções jurídico-sociais que sofreu o Ministério Público,
resistindo para a construção de um poder democrático, o que foi consolidado
no moderno texto de 1988 (MORAES, 2003, p. 494).
Sob a atual ótica constitucional, não restam dúvidas sobre a significante
evolução que passou o Ministério Público no Brasil, inserido dentro de um novo
conceito institucional de defesa dos anseios sociais e da democracia,
abandonando o antigo papel que possuía, onde não mais luta pelos interesses
do Estado singular, mas por aqueles de uma sociedade formadora desse
Estado democrático.
1.4. Funções Institucionais
Examinando-se as últimas três décadas, percebe-se que a consciência
social do conceito da referida instituição se aperfeiçoou, despindo-se daquela
visão limitada e simplista de um ‘Promotor8 de acusação’ no processo penal.
Tal aperfeiçoamento concretiza a típica instituição pública como uma
organização aceita universalmente pelos povos como defensora e guardiã dos
valores mais relevantes da sociedade (custos societatis 9) e do direito (custos
juris 10 ). De fato, sendo o Ministério Público titular privativo da ação penal
pública, seu mister acusatório é pioneiro na defesa das liberdades individuais,
ao assegurar o contraditório na acusação, possibilitando um juízo imparcial.
Atualmente, inspirado pelas novas necessidades tangíveis da sociedade,
valendo-se da nova ordem constitucional trazida pelo constituinte de 1988, e
pelo avanço da salva-guarda dos direitos humanos, exigida por todas as
culturas, o Ministério Público é instituição ampla, preocupada com a
8
A expressão ‘Promotor de acusação’ ainda é difundida na linguagem social, visto que o
profissional, membro da instituição ministerial, é denominado “Promotor de Justiça’. Esse é livre
para fazer justiça, e não está vinculado ao pedido de condenação do suposto réu, podendo,
inclusive, requerer o arquivamento dos autos (investigatórios ou processuais) diante elementos
que demonstrem a descriminalização de sua conduta.
9
Defensor da sociedade.
10
Defensor do Direito.
concretização do bem-comum, funcionando na proteção da ordem jurídica, do
regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis,
provocando o judiciário em inúmeras ações11, em defesa do meio-ambiente, do
idoso, do consumidor, do patrimônio público, do patrimônio histórico-cultural, da
legalidade, eficiência e moralidade na administração pública, zelando,
sobretudo, pela sociedade e seu bem-estar. Pode ainda, visto seu caráter
interveniente, atuar como custos legis12, defendendo, seja a indisponibilidade
dos interesses de determinada comunidade (devido a qualidade de uma parte),
seja o interesse público (devido a natureza da lide).
Essa missão materializa-se no art. 129 da Lei Fundamental, que
preconizou o zelo pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de
relevância pública aos assegurados na Constituição, promovendo as medidas
necessárias à sua garantia; o inquérito civil e a ação civil pública; a ação de
inconstitucionalidade ou a representação para fins de intervenção da União e
dos Estados; o direito-dever de expedir notificações nos procedimentos
administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos
para instruí-los; o controle externo da atividade policial; o direito de requisitar
diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial; além de exercer
outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua
finalidade (vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades
públicas), estabelecendo, por conseguinte, atuação direita e independente do
órgão ministerial junto à atividade social e estatal, sustentando seu papel no
cenário constitucional.
Em conclusão, importa-nos registrar as doutas palavras de Antônio
Cláudio de Costa Machado (1989, p. 25):
O Ministério Público é, portanto, esse ser jurídico permanente,
posto que extrapola o indivíduo no tempo e no espaço, e que
possui vida e disciplina próprias, forças e qualidades
particulares e uma vocação especial de bem servir a própria
sociedade que o criou.
11
Órgão Agente; demandista.
12
Fiscal da lei.
Dessa forma, hoje o Ministério Público é a instituição que mais tem
atuado para a defesa dos interesses e direitos massificados, no campo extrajurisdicional e no jurisdicional, tornando-se parte do próprio Estado para a
concretização da realização da justiça13.
2. Natureza Jurídica: conceito
Dizer qual seja a natureza 14 de um determinado instituto, é dizer sua
epistemologia 15 (ou gnosiologia), é saber o que é esse instituto, conhecendo
sua essência, ou seja, identificar seu conceito basilar sob a ótica científica,
dogmatista16 e apriorística17. O termo expressa o sentido de qualidade, espécie
do ser, identificando suas características peculiares, sua estrutura e em que tal
objeto se consiste, seja de per si, seja condicionado, seja inserido dentro de um
contexto específico.
In casu, a conceituação epistemológica se dará no universo jurídico 18,
aplicando-se aos institutos dessa ciência.
Ao tratar o tema, faz-se indispensável fazer alusão às palavras do ilustre
professor Miguel Reale (2002, p. 301 e 305, visto que tal conceito pertence ao
campo da Filosofia do Direito.
A Ontognoseologia Jurídica é parte geral da Filosofia do Direito
destinada a determinar em que se consiste a experiência
jurídica, indagando de suas estruturas objetivas, bem como a
saber como tais estruturas são pensadas, ou seja, como elas se
expressam em conceitos.
(...)
13
Minas Gerais. Ministério Público. Procuradoria-Geral de Justiça. Centro de Estudos e
Aperfeiçoamento Funcional. Manual de Atuação Funcional do Ministério Público do Estado de
Minas Gerais / Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional. Belo Horizonte: CEAF, 2008,
p. 68-69.
14
Etimologia latina – naturae.
15
Estudo crítico dos princípios, hipóteses e resultados das ciências já constituídas; teoria da
ciência; teoria do conhecimento. Busca tratar um problema nascido de um pressuposto
filosófico específico (ABBAGNANO, 2000, p. 183).
16
Doutrina estabelecida. O conhecimento do sujeito sobre o objeto já é pré-estabelecido
(MESSEN, 2000, P. 29).
17
Mediação entre o racionalismo e o empirismo. Considera tanto a experiência quanto o
pensamento como fontes do conhecimento (MESSEN, 2000, P. 62).
18
Relativo ao direito: conforme os princípios do direito (FERREIRA, 2004, p. 410).
É, pois, o estudo crítico da realidade jurídica e de sua
compreensão conceitual, na unidade integrante de seus
elementos que, como veremos, são suscetíveis de serem vistos
como valor, como norma, e como fato, implicando perspectivas
prevalecentemente éticas, lógicas ou histórico-culturais.
A partir dessa indagação, é possível questionar qualquer elemento
componente do objeto estudado, e como esses elementos se poem em relação
aos outros, ou seja, que é que, em suma, nessa realidade o torna
“compreensível” como jurídico. Assim, como fator essencial, será possível
diferenciar um objeto do outro, dividi-los e organizá-los sistematicamente para
sua melhor compreensão, e para, metodologicamente, inseri-lo dentro de
campos tipológicos distintos na ciência estudada.
A sistematização de divisões dos diversos institutos estudados na ciência
jurídica proporciona a visão universal da árvore jurídica, oferecendo a
perspectiva de estudo e aplicabilidade. Essa setorização de classes e ramos
(obra da Ciência do Direito e da Dogmática Jurídica) torna prático seu
conhecimento, as investigações científicas e o aperfeiçoamento de suas
instituições (NADER, 2005, p. 347) 19.
Sobre o assunto, ensina-nos Miguel Reale (2002, p. 306):
Uma das tarefas primordiais da Epistemologia Jurídica consiste,
aliás, na determinação do objeto das diversas ciências jurídicas,
não só para esclarecer a natureza e o tipo de cada uma delas,
mas também para estabelecer as suas relações e implicações
na unidade do saber jurídico.
Como forma de aclarar, destarte, a questão, de forma com que o objeto
estudado (a instituição do Ministério Público) fique de tal modo classificado e
determinado como instituto jurídico, bem como explicado epistemologicamente,
mister se faz a conceituação de três institutos (jurídicos) no deslinde do tema:
instituição20, órgão e poder.
2.1. Instituição
19
Um claro e simples exemplo desse fenômeno é a clássica divisão entre Direito Público e
Direito Privado, ensejando fundamentos para identificar em que se consistem determinados
institutos jurídicos. O Direito Constitucional, por exemplo, insere-se no ramo do Direito Público.
Essa conceituação traduz, genericamente, sua base epistemológica, portanto, qual seja sua
natureza jurídica.
20
Aqui em sentido de coisa instituída.
O conceito de instituição traduz-se em ser um ente abstrato,
convencionado e legitimado pela sociedade21 a fim de estabelecer relação de
ordem, relacionamento, ou autoridade. É um mecanismo social que controla os
indivíduos, sendo um produto de seus interesses que refletem suas
experiências, organizado sob a forma de regras e normas, visando,
principalmente, a ordenação entre suas interações.
Dentro da órbita político-constitucional 22 , as instituições podem ser
personalizadas e despersonalizadas, estabelecidas e legitimadas para,
organizadamente e estruturadamente, concretizar certo objetivo, ou seja, tornar
real e eficaz determinada necessidade.
2.2. Órgão
Por sua vez, órgão (aqui entendido também sob a perspectiva políticoconstitucional) seria toda e qualquer micro-unidade inserida dentro de um
macro-sistema capaz de gerenciar seus objetivos.
São eles supremos (constitucionais) ou dependentes
(administrativos). Aqueles são os a quem incumbe o exercício
do poder político, cujo conjunto se denomina governo ou órgãos
governamentais. Os outros estão em plano hierárquico inferior,
cujo conjunto forma a Administração Pública, considerados de
natureza administrativa. Enquanto os primeiros constituem
objeto do Direito Constitucional, os segundos são regidos pelas
normas do Direito Administrativo (SILVA, 2006, p. 107).
Etimologicamente, órgão é uma unidade com atribuição específica dentro
da organização do Estado. É composto por agentes públicos que dirigem e
compõem o órgão, voltados para o cumprimento de uma atividade estatal. Eles
formam a estrutura do Estado, mas não têm personalidade jurídica, uma vez
que são apenas parte de uma estrutura maior, essa sim detentora de
personalidade. Como parte da estrutura maior, o órgão público não tem
vontade própria, limitando-se a cumprir suas finalidades dentro da competência
funcional que lhes foi determinada pela organização estatal (SILVA, 2006, p.
760).
21
Ou por um grupo social. Não cabe discutir a amplitude que esta instituição deva abranger.
22
Excluído o conceito filosófico.
3.3. Poder
A etimologia da expressão ‘poder’23, do latim, potere, revela a capacidade
de imposição da vontade, do direito de deliberar, agir, decidir, exercer sua
autoridade, soberania, domínio, influência ou força.
Da análise do verbete descrito por Norberto Bobbio, podemos perceber
um conceito diferente do julgado por uma ideia geral, entendo o poder social
não como uma coisa ou a sua posse, mas sim uma relação interpessoal:
O poder é entendido como algo que se possui: como um objeto
ou uma substancia (...) que alguém guarda num recipiente.
Contudo, não existe ‘poder’, se não existe, ao lado do individuo
ou grupo que o exerce, outro individuo ou grupo que é induzido
a comportar-se tal como aquele deseja (BOBBIO, 2000, p. 933
a 942).
Festejada conceituação de José Afonso da Silva sobre o tema, quando
diz que “o poder é um fenômeno sócio-cultural. (...) Define-se como uma
energia capaz de coordenar e impor decisões visando à realização de
determinados fins” (SILVA, 2006, p. 106/107).
No modelo constitucional atual, o Estado Brasileiro exerce tal soberania
através dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, conforme previsão no
artigo 2º da Lei Fundamental de 1988.
3- A natureza jurídica do Ministério Público
A fim de alcançar melhor compreensão e visualização do Ministério
Público, da sua classificação e disposição na atual estrutura organizacional da
República, devemos citar aqui as três funções nas quais o Estado exerce sua
soberania, o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário,
especificando a atuação, o papel e os limites de cada uma dentro desse
mesmo Estado, relacionando-as, finalmente, com a instituição ministerial.
Essas funções são divididas, segundo o critério funcional, consagrado
pelo pensador francês Montesquieu. Baseando-se na obra Política, do filósofo
Aristóteles, e na obra Segundo Tratado do Governo Civil, publicada por John
Locke, Montesquieu escreveu a obra O Espírito das Leis, traçando parâmetros
23
Conceito Sociológico: habilidade de impor a sua vontade sobre os outros, mesmo se estes
resistirem de alguma maneira. Conceito Político: capacidade de impor algo sem alternativa
para a desobediência; o poder político, quando reconhecido como legítimo e sancionado como
executor da ordem estabelecida, coincide com a autoridade.
fundamentais da organização política liberal. O filósofo iluminista foi o
responsável por explicar, sistematizar e ampliar a divisão dos poderes que fora
anteriormente estabelecida por Locke. Montesquieu acreditava também que,
para afastar governos absolutistas e evitar a produção de normas tirânicas,
seria fundamental estabelecer a autonomia e os limites de cada poder, criandose, assim, o sistema de freios e contrapesos, o qual consiste na contenção do
poder pelo poder, ou seja, devem eles ser autônomos e exercerem
determinada função, porém o exercício desta função deve ser controlado pelos
outros. Assim, pode-se dizer que estes são independentes, porém harmônicos
entre si24 (PIÇARRA apud MORAES, 2003, p. 369).
Com base nessa premissa, o legislador constituinte originário afirmou no
artigo 2º da Carta Política que são poderes da União, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, estabelecendo
que o Legislativo, por meio de seus representantes eleitos diretamente pelo
povo, funciona tipicamente legislando e fiscalizando25 dentro dos limites e dos
ditames legais; o Executivo, por sua vez, representado pelo Chefe de
Governo 26 , funciona precipuamente na prática de atos de administração,
executando e dando efetividade à lei, gerindo a coisa pública, realizando e
definindo a política de ordem interna (e as relações exteriores); finalmente,
pois, o Judiciário, representado por seus membros independentes, inamovíveis,
e vitalícios, cabe a função típica de julgar, a administração da justiça,
solucionando os conflitos que surgirem no seio de sua jurisdição, “aplicando a
lei a uma hipótese controvertida mediante processo regular, produzindo, afinal,
coisa julgada, com o que substitui, definitivamente, a atividade e vontade das
partes” (ALVIM apud MORAES, 2003, p. 448).
Registre-se, ainda, que inexiste no atual modelo constitucional, a
exclusividade funcional absoluta, possibilitando, a cada poder, o exercício das
24
Essa divisão clássica está consolidada atualmente pelo artigo 16 da Declaração Francesa
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e é prevista no artigo 2º na nossa Constituição
Federal de 1988.
25
26
Controle político-administrativo e financeiro-orçamentário.
No sistema presidencialista (nosso modelo de sistema de governo estabelecido pela
Constituição Federal de 1988), a figura de Chefe de Estado se mistura com a de Chefe de
Governo, em se tratando da Função Executiva Federal.
funções que lhe são típicas, e das que lhe são atípicas, no exercício dos
misteres constitucionais (MORAES, 2003, p. 420), permitindo, ao Legislativo,
administrar e julgar; ao Executivo, legislar e julgar; e ao Judiciário, legislar e
administrar, nos limites legais.
Contudo, o Ministério Público, sendo participante da divisão funcional do
Estado, é elemento indispensável no sistema de freios e contrapesos na
contenção do poder estatal, como os são o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário. Ora, tanto esses como aquele (o Ministério Público), assemelham-se
em virtude da autonomia, independência e finalidades constitucionais,
exercendo todos, funções únicas do Estado.
Ocorre é que o posicionamento constitucional do Ministério Público
sempre provocou impasses na doutrina, principalmente devido à transformação
e à evolução que a instituição sofreu ao longo dos anos, restando perplexidade
ao defini-lo como órgão atrelado (ou vinculado) a algum poder, seja ao
Legislativo, seja ao Executivo, seja ao Judiciário.
Sobre o tema, Hugo Nigro Mazzilli (1997, p. 19 e 20) discorre:
Há quem sustente que o Ministério Público estaria atrelado ao
Poder Legislativo, a esse incumbida a elaboração da lei e ao
Ministério Público, a fiscalização do seu fiel cumprimento. Há
quem defenda que a atividade do Ministério Público é
eminentemente jurisdicional, razão pela qual estaria ele atrelado
ao Poder Judiciário. E há, ainda, quem afirme que a função do
Ministério Público é administrativa, pois ele atua com o fim de
promover a execução das leis e estaria atrelado ao Poder
Executivo.
Alexandre de Moraes continua (SLAIBI FILHO; MELLO FILHO;
FERREIRA FILHO apud MORAES, 2003, p. 494):
Analisando a Carta Anterior, que colocava o Ministério Público
como órgão do Poder Executivo, Celso de Mello já apontava
que seus membros sujeitavam-se a regime jurídico especial,
gozando, no desempenho de suas funções, de plena
independência. Por sua vez, Manoel Gonçalves Ferreira Filho,
concordando com a independência ministerial, colocava-o como
órgão administrativo, destinado a zelar pelo cumprimento das
leis, cabendo-lhe a defesa do interesse geral de que as leis
sejam observadas. Da mesma forma, José Afonso da Silva
afirma que a Instituição ocupa lugar cada vez mais destacado
na organização do Estado, em virtude do alargamento de suas
funções de proteção aos direitos indisponíveis e de interesses
coletivos, tendo a Constituição Federal dado-lhe relevo de
Instituição permanente e essencial à função jurisdicional, mas
que ontologicamente sua natureza permanece executiva, sendo
seus membros agentes políticos, e como tal, atuam com plena e
total independência funcional.
Todavia, na Carta Atual, baseada na tendência internacional, o Ministério
Público consagra-se plenamente independente, desvinculado de qualquer
poder, tornando-se um “estranho no ninho” no Legislativo, no Executivo e no
Judiciário, comportando todos os requisitos, garantias e vedações atinentes
aos clássicos poderes do Estado, contudo, sem a função precípua de julgar, de
administrar, muito menos de legislar. Como bem observa o Ministro do
Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence,
A seção dedicada ao Ministério Público insere-se, na
Constituição Federal de 1988, ao final do título IV – Da
Organização dos Poderes, no seu capítulo IV – Das Funções
Essenciais à Justiça 27 . A colocação tópica e o conteúdo
normativo da Seção revelam a renúncia, por parte do
constituinte de definir explicitamente a posição do Ministério
Público entre os Poderes do Estado.
(...)
A razão subjacente à crítica contemporânea da integração do
Ministério Público no Poder Executivo [ou no Poder Legislativo
e até no Poder Judiciário] esta, na verdade, na postulação da
independência política e funcional do Ministério Público,
pressuposto da objetividade e da imparcialidade de sua atuação
nas suas funções sintetizadas na proteção da ordem jurídica 28
(MORAES, 2003, p. 494 e 495).
Portanto, observa-se que a relação que o Ministério Público tem para
com os outros poderes é eminentemente independente, complementando-as
tão somente naquilo que lhes foram conferidos: funcionar para que a soberania
do Estado se exteriorize, a fim de cumprir seu papel pelo qual foi criado.
Independência essa é essencial e indispensável à sobrevivência da instituição,
sobretudo à viabilidade e à eficácia de sua atuação, sendo que seu papel
institucional restaria prejudicado e inócuo, se, de fato, a instituição ministerial
fosse de tal modo subjugada ou atrelada a qualquer outro órgão.
27
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - Capitulação separada dos três
‘poderes’:
Título IV (Da Organização dos Poderes)
Capítulo I (Do Poder Legislativo)
Capítulo II (Do Poder Executivo)
Capítulo III (Do Poder Judiciário)
Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça)
Seção I (Do Ministério Público)
28
RTJ 147/129-30
3.1. Ministério Público: “Quarto Poder”?
Discussão que ainda se estende de forma heterogênea entre os
cientistas jurídicos, sendo pertinente sua breve abordagem nesse artigo, é
sobre a visualização e a conceituação do Ministério Público como um ‘Poder,’
ou melhor, o ‘Quarto Poder’.
Muitas são as abordagens e os argumentos que sustentam tal
conceituação. Passados vinte anos da promulgação da Carta Magna de 1988,
a doutrina discute onde se situaria a Instituição no quadro definido pela
Constituição Federal. Por conseguinte, para alguns, o Ministério Público,
atualmente, constitui um verdadeiro ‘Quarto Poder’. É o que vaticina Alfredo
Valladão (1954, p. 33-39) nas palavras de Edilson Santana:
As funções do Ministério Público subiram, pois, ainda mais, de
autoridade, em nossos dias. Ele apresenta como a figura de um
verdadeiro poder Estatal. Se Montesquieu tivesse escrito hoje O
Espírito das Leis, por certo não seria tríplice, mas quádrupla a
divisão dos poderes. Ao órgão que legisla, ao que executa, ao
que julga, um outro órgão acrescenta ele – o que defende a
sociedade e a lei, perante a Justiça, (sic!) parta a ofensa donde
partir, isto é, dos indivíduos ou dos próprios poderes do Estado.
Outros consideram que a Instituição constitui órgão dotado de autonomia,
participante do sistema de freios e contra-pesos29 fixados pelo constituinte, e,
portanto, não integra o quadro de nenhum dos poderes.
Autores como Hugo Nigro Mazzilli e Clèmerson Merlin Cléve apontam
que o constituinte poderia ter evitado essas discussões se tivesse colocado o
Ministério Público, lado a lado com o Tribunal de Contas, entre os órgãos de
fiscalização e controle das atividades governamentais, ou como já o fizera a
Carta
de
1934,
entre
os
Órgãos
de
Cooperação
nas
Atividades
Governamentais (MAZZILLI, 1997, p. 142).
29
A decantada tripartição de poderes estabelecida por Montesquieu, com independência e
igualdade de garantias entre eles, visava apenas a um objetivo: assegurar o Estado de Direito,
através da existência de um poder sempre capaz de frear os outros. Com isto, Montesquieu
preleciona a máxima outrora dita: ‘para que se não possa abusar do poder, urge que o poder
detenha o poder’. Faz-se necessário que os poderes cedidos ao Estado estejam dispostos de
tal forma que mutuamente se travem (checks and balances). É nessa evolução que
Montesquieu distingue três poderes dentro do Estado: Legislativo, Executivo e Judiciário,
sustentando que esses poderes devem ser independentes uns dos outros e confiados a
pessoas diferentes.
Ora, o Ministério Público está inserido na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 no Título IV — Da Organização dos Poderes —;
porém, em seção própria (arts. 127 a 130 da CRFB/88), dentro do Capítulo Das
Funções Essenciais à Justiça. Está, portanto, separado dos demais Poderes do
Estado, não possuindo, ainda, tal “status” pela Lei Fundamental, deixando de
ser conceituado como poder.
Cabe ressaltar que a própria definição feita pelo legislador constituinte
originário do Ministério Público como “Instituição” e como “Órgão”, exclui sua
caracterização como ‘Poder’, por ser etimologicamente incompatível dentro do
atual modelo constitucional de estrutura estatal, estando o Ministério Público
funcionando como um mecanismo legitimado pela sociedade a fim de refletir
seus interesses –instituição –, estruturado como uma unidade inserida nesse
Estado – órgão.
Com efeito, vislumbramos que a Constituição Federal de 1988 não o
elevou à categoria de ‘Poder’, mas dispôs que ele, no exercício de suas
funções, é órgão obrigatoriamente independente. Por conseqüência, tem,
como os três poderes, funções independentes, sem a interferência de qualquer
um deles e sem posicioná-lo em nenhum dos poderes públicos.
Considerações finais
Nessa perspectiva, considerando os diversos posicionamentos elencados
ao longo dessa reflexão, funda-se nosso entendimento na ressalva de um
Ministério Público representante de uma sociedade político-juridicamente
organizada no Estado, não sendo, portanto, qualquer espécie de pessoa
jurídica pertencente a seus governantes, defendendo os interesses sociais da
comunidade a que serve, salvaguardando os bens e os valores essenciais à
prevalência da cidadania e do estado de direito. Encarrega-se, dentre outras
atribuições, de fazer com que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no
uso de suas atribuições, respeitem os direitos que a lei maior assegurou,
exigindo uma completa e absoluta independência e autonomia para funcionar,
sendo que nesse Estado Republicano de Direito, representativo e democrático,
cabe ao Parquet a principal tarefa da defesa de sua integridade, e, sobretudo,
da sociedade a quem se destinam os seus serviços e cuidados, mostrando-se
incompatível tal vinculação.
Importa registrar que, ao longo das duas últimas décadas do século
passado, essa autonomia torna-se ainda mais tangível, ao ponto que a
instituição conseguiu romper barreiras que a prendiam junto ao Poder
Executivo, tornando visível a processo de judicialização do país. Tal ascensão
paradoxal, realizada num contexto marcado por ideologias anti-Estado, só se
deu porque, no curso de redemocratização do país, o Ministério Público lutou
para se desvincular do Poder Executivo e construir uma imagem de agente da
sociedade na fiscalização dos poderes políticos. Nesse sentido, por mais
contraditório que pareça, o Ministério Público soube captar o sentido da
mudança da época e, na virada dessa redemocratização, posicionou-se ao
lado da sociedade e de costas para o Estado, apesar de ser parte dele.
Assim, antecipando-se à consolidação da democracia, viu sacramentado
o seu perfil institucional no corpo da Lei Maior do país, em capítulo próprio,
gozando de total autonomia, independente dos clássicos poderes da
República, judicializando os conflitos que antes ficavam à mercê de um
tratamento exclusivamente político ou administrativo, transmutando um órgão
tipicamente de justiça em defensor do povo, traduzindo um ofício integrante da
essência do Estado, exercendo parcela de soberania, imprescindível à própria
sobrevivência da sociedade, dada a sua tamanha importância no atual
paradigma.
Por tudo isso, torna-se evidente que o Ministério Público é possuidor, no
exercício de suas
funções, dos qualificativos das clássicas funções
fundamentais do Estado: Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, sendo de
significante importância registrar que sua função administrativa não se
confunde com a tradicional função administrativa efetivada pelo Poder
Executivo, não se achando subordinado aos demais poderes, posto que foi
elevado à posição de órgão constitucional autônomo, gozando de equivalência
no tocante à qualidade do regime jurídico-constitucional, podendo exercer suas
atribuições inclusive contra esses poderes estatais, na plenitude de suas
garantias e prerrogativas.
Destarte,
entendemos
que,
das
concepções
sobre
a
natureza
institucional do Ministério Público, a que melhor explica a sua postura
institucional é a que o desloca da sociedade política, como órgão repressivo do
Estado, para a sociedade civil, como legítimo e autêntico defensor da
sociedade. Esse deslocamento se justificaria por três razões fundamentais. A
primeira seria a social, que se originou com a vocação do Ministério Público
para a defesa da sociedade: ele assumiu paulatinamente um compromisso com
a sociedade no transcorrer de sua evolução histórica. A segunda seria a
política, que foi surgindo com a vocação da Instituição para a defesa da
democracia e das instituições democráticas. A terceira seria a jurídica, que se
efetivou com a Constituição de 1988, que concedeu ao órgão autogestão
administrativa e funcional e lhe conferiu várias atribuições para a defesa dos
interesses primaciais da sociedade.
Em verdade, o deslocamento do Ministério Público da sociedade política
para a sociedade civil é muito mais funcional que administrativo, pois
administrativamente, o Ministério Público ainda permanece com estrutura de
instituição estatal, com quadro de carreira, lei orgânica própria e vencimentos
advindos do Estado, o que é fundamental para que ele tenha condições de
exercer o seu papel constitucional em igualdade com os Poderes estatais por
ele fiscalizados.
Importa ressaltar, de forma conclusiva, que o constituinte originário não
alçou o Ministério Público à categoria de Poder, mesmo porque não era o caso,
mas, indubitavelmente, disse e bradou que ele, no exercício de suas funções é
órgão necessariamente independente, sem a ingerência de qualquer um deles,
a fim de assegurar a defesa não do Estado, mas da ordem jurídica e do Direito,
em prol do povo, verdadeiro titular do poder.
Referências
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São
Paulo: Malheiros, 2007.
The legal nature of the Prosecuting Counsel
Abstract: The present article aims at studying the conceptual basis and the
scientific typology of the Prosecuting Counsel as an indispensable structure in
the democratic state of law. The main objective of this paper is to evaluate the
legal nature of that structure, such as its fundamental aspects and its
epistemological and gnosiological basis. This is justified due to the importance
of that structure in the ambit of the democratic state of law. As an independent,
permanent institution it distinguishes itself in protecting the transindividual
rights, the juridical order, the effective accomplishment of the law and the
society. From the establishment of the 1988 new constitutional order, the
Prosecuting Counsel starts to deserve special scientific and academical
attention, especially under the juridical scope.
Keywords: Prosecuting Counsel – Constitutional Law – Legal Nature Epistemology