IV Reunião Equatorial de Antropologia XIII

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IV Reunião Equatorial de Antropologia XIII
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IV Reunião Equatorial de Antropologia
XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste
04 a 07 de agosto de 2013 - Fortaleza-CE.
Grupo de trabalho:
Coletivo Madeira: (re)integrando etnologia, arqueologia e linguística no
conhecimento dos povos indígenas na bacia do alto rio Madeira.
Povos Tupi-Kagwahiva: um panorama etnográfico sobre a organização social
Edmundo Antonio Peggion
[email protected]
Universidade Estadual Paulista - UNESP
Programa de Pós Graduação em Antropologia Social – PPGAS/UFSCar
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Resumo
Pretende-se refletir sobre a organização social dos povos indígenas falantes do
Tupi-Kagwahiva que vivem ao sul do estado do Amazonas e norte de
Rondônia. O objetivo é tentar articular diferentes informações etnográficas e
históricas de modo a tentar compreender a atual dispersão territorial e a
persistência de um conjunto de elementos da organização social.
Particularmente, a intenção é focar sobre as metades exogâmicas que são
comuns aos diferentes povos falantes do Kagwahiva, mas que carregam
algumas variações que podem indicar fatores sociológicos mais profundos.
Forma de se pensar a si mesmo, as metades sinalizam também a relação com
a alteridade. Talvez haja a possibilidade de estabelecer um diálogo com outros
povos não falantes do Tupi-Kagwahiva, mas que habitam a região.
As metades exogâmicas Kagwahiva recebem o nome de dois pássaros. Nos
diferentes povos Tupi-Kagwahiva (Tenharim, Parintintin, Jiahui, Jupaú,
Amondawa, Karipuna, Juma), um dos pássaros – no caso o Mutum - sempre
permanece, enquanto o outro sempre varia. Além disso, alguns sinais apontam
para uma relação prototípica que pode ser associada àquela que caracteriza o
sogro e o genro.
Forma de organização social e elemento representativo de uma linguagem, as
metades são centrais para se compreender os povos aqui referidos. No
entanto, não foram fator determinante para o registro etnográfico de LéviStrauss.
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os povos Kagwahiva
Os povos Kagwahiva são referidos pela primeira vez em 1750, na
região do curso superior do rio Juruena, ao lado dos Apiaká. Essa região,
até então desconhecida das frentes de expansão, passou a ser registrada
como reino dos povos de língua geral, devido aos vários povos Tupi
habitantes do local. Logo depois, essa área foi vasculhada pela frente
mineradora que, desde Cuiabá avançava para o Norte à procura de novas
minas de ouro, o que pode ter provocado o início do processo migratório
Kagwahiva (Menéndez, 1989:38). Além disso, a guerra com os Munduruku
também foi assinalada como causa do deslocamento dos Kagwahiva dessa
região para as margens do rio Madeira (Nimuendajú, 1924:207-208).
Entretanto, é difícil fazer qualquer afirmação mais categórica sobre esse
período, pois os condicionantes dessa migração são muito mais complexos
e se ligam a uma dinâmica relação entre os povos na região (Menéndez ,
1989:47).
Com seus inimigos mais tradicionais constantes na bibliografia da
época, os Kagwahiva têm em comum o fato de possuírem metades
exogâmicas e de se utilizarem da cabeça do inimigo como troféu.
Entretanto, diferentemente dos Munduruku, que tinham as cabeças como
troféus individuais e que pertenciam ao matador, as cabeças-troféu dos
Kagwahiva só concretizavam o prestígio do matador quando eram
destruídas em terreiro. Já, com relação às metades, há uma série de
diferenças entre os sistemas dos referidos povos. No caso dos Munduruku,
as metades Vermelho e Branco compreendem de 16 a 22 clãs cada uma,
além de sub-clãs e fratrias, apresentando um outro tipo de complexidade
(Murphy, 1960).
***
Quando ocorreram as primeiras referências aos Kagwahiva, iniciava-se
a Política Pombalina, que definiu toda uma postura com relação aos índios
da Amazônia (Moreira Neto, 1988:27-30) O recurso à mão-de-obra indígena
através dos descimentos e os conflitos generalizados na região levaram
muitos grupos a longas migrações dentro do território amazônico. Na área
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compreendida entre os rios Madeira e Tapajós, tais conflitos levaram à
extinção e à fuga a maioria dos grupos que viviam à margem dos grandes
rios. Em conseqüência, povos que até então se localizavam no interior das
matas ocuparam os espaços vazios e passaram a ser citados mais
freqüentemente por cronistas e viajantes, que circularam na região durante
os séculos XVII e XVIII (Menéndez, 1981/82:350).
Assim acontece com os Kagwahiva: em 1817 são registrados pela
primeira vez na região do rio Madeira sob o etnônimo de Parintintin, dado,
talvez, pelos Munduruku aos seus inimigos 1. Em 1850, Kagwahiva e
Parintintin são registrados ao mesmo tempo sendo que depois disso o
etnônimo Kagwahiva desaparece e tais povos passam a ser designados por
Parintintin (Menéndez, 1989:26). Após a “pacificação” realizada por
Nimuendajú, em 1922, foi possível constatar que Kagwahiva é a
autodenominação dos Parintintin e que essa última designação apenas se
aplicava a um desses povos (Nimuendajú, 1924:204-205)2.
Na região do rio Madeira, a aproximação dos grupos Kagwahiva com a
sociedade brasileira deu-se após uma intensa guerra, que perdurou por
cerca de 70 anos, entre meados do século XIX e a década de vinte do
século passado. Tratados como selvagens e perigosos, os Kagwahiva
fizeram fama na região do rio Madeira. Eram constantes as levas de
soldados vindos de Manaus para atacar os pequenos grupos que
perpetravam ações contra regionais e outros povos indígenas.
Essa guerra só terminou com a ação do SPI - Serviço de Proteção aos
Índios e após a instalação definitiva de colocações de seringueiros na
região. Curt Nimuendajú foi o principal agente dessa aproximação:
contratado pelo SPI, organizou expedições e se fixou no interior do território
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Para uma discussão detalhada da origem desse etnônimo, ver Nimuendajú, 1924:204-211 e Menéndez
1989:42.
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Entretanto Nimuendajú (1924) não considera como Kagwahiva os outros povos do rio Madeira, fato
desconhecido na época, mas generaliza a autodenominação dos Parintintin aos povos do Alto Machado,
fazendo um minucioso levantamento do etnônimo Kagwahiva na documentação histórica.
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indígena.
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Por falta de verbas, Nimuendajú abandonou seu projeto com
apenas cinco meses, deixando em seu lugar vários auxiliares.
Nimuendajú chegou como funcionário do SPI para realizar o projeto de
“pacificação” dos Parintintin, intencionado há muitos anos na região, tanto
por particulares quanto por instituições como o SPI e a Igreja Católica. A
ocupação da região por seringueiros no início do presente século já havia se
efetivado dentro do território Kagwahiva, resultando em conflitos contínuos
com esses povos. De uma forma geral os conflitos são, na verdade,
anteriores à instalação definitiva de regionais e nos remetem a meados do
século anterior.
No século XIX, os grupos predominantes na região do Madeira eram
Mawé, Munduruku e Parintintin. No final desse mesmo século, requisitava -se
proteção policial devido aos ataques dos Parintintin (Hugo, 1959:202). Os
Munduruku nesse período colaboravam com os colonizadores contra outros
grupos indígenas da região (Moreira Neto, 1988:120).
Os Kagwahiva,
conhecidos após 1817 sob o etnônimo de Parintintin, estavam distribuídos
em pequenos grupos locais com território determinado e ocupando uma
vasta região entre os rios Madeira e Tapajós. Cada um desses grupos
locais, que provavelmente organizavam-se em torno de um grupo
doméstico, possuía o nome de seu líder ou de sua localização (no caso rios,
serras, etc.).
A fissão é uma característica dessa sociedade conseqüentemente as
uniões eram instáveis e novos grupos estavam em constante formação. As
estratégias políticas ligadas à questão residencial caracterizam a forma de
conceber a ocupação do território e a constituição de grupos. Registros orais
reforçam a territorialidade, narrando a distribuição dos grupos na região,
realizada por Nhaparundi, ancestral mítico Kagwahiva, e também que, em
momentos iniciais do contato, os grupos chegaram a se unir para fugir dos
não índios (Menéndez, 1987:86-87; 1989:80).
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Desse trabalho resultou uma monografia, hoje considerada clássica, onde descreve os pormenores de
como atrair um povo para o contato (Nimuendajú, 1924).
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Alguns anos após o início dos trabalhos indigenistas junto aos
Parintintin, um auxiliar do SPI, José Garcia de Freitas, choca-se ante a
quantidade de grupos, chamados por ele de "Clans Guerreiros".
Na década de 1930, intensifica-se a atuação do SPI na tentativa de
atrair os outros grupos Kagwahiva para o contato. Para tanto são montadas
expedições sob o comando de José Garcia de Freitas, já conhecedor dos
Kagwahiva pela sua atuação junto aos Parintintin. Garcia, como era
conhecido na região, dá-nos extensos relatos de sua busca das chamadas
“hordas desavindas”.
Em 1930, José Garcia de Freitas buscava estabelecer contato com os
outros grupos Kagwahiva. Entrando através de rios e igarapés, Garcia vai
encontrando vestígios de grupos isolados, que fogem ao contato. Sai em
busca, principalmente dos Jiahui, mas encontra os Pa’in e tem notícias dos
Apairandê. Os diversos documentos deixados por esse auxiliar do SPI
cobrem um período que vai dos anos 20 aos anos 40 do século XX. Depois
disso há um intervalo de informações sobre os Kagwahiva do médio rio
Madeira, que irão reaparecer com a abertura da BR-230, Transamazônica,
em fins dos anos 1960 e início dos anos 1970.
Na região do rio Machado, os grupos Kagwahiva meridionais são
referidos pela Comissão Rondon (1946) e por Claude Lévi-Strauss (1955;
1958; 1963), que chegou a visitar uma aldeia. As diversas denominações
nos documentos do SPI remetem aos grupos registrados por Rondon e LéviStrauss, ou a alguma característica cultural, como as famosas tatuagens
que deram nome aos “Boca Negra” (Hugo, 1959). 4
Observando o mapa feito por Nimuendajú em 1923 (e publicado em
1924) dando conta do território Kagwahiva, pode-se notar que a extensão
territorial Kagwahiva não indica, conforme normalmente se considera, uma
divisão que caracterize uma distinção entre os diversos grupos falantes da
mesma língua. Não que houvesse trocas e alianças entre os povos do
Machado e da região do medio rio Madeira, mas toda a região é uma
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“Boca Negra, isolados, grupo tupi Kawahyb, no alto rio Machadinho, afluente do rio Roosevelt. No
território de Rondônia habita uma tribo Txapakura conhecida por Boca Preta” (Malcher, 1964:101).
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espécie de zona de transição que implica movimentos gradativos entre os
povos que nela habitam. Diversos registros na documentação dão conta de
“índios antropófagos” na região sul-norte do mapa e registram eventuais
características comuns aos Kagwahiva, tais como o costume de pintar o
entorno dos lábios como jenipapo.
Nos locais tradicionalmente habitados pelos Kagwahiva, há outros
grupos falantes de outras línguas e que eram seus inimigos tradicionais. Os
Torá, falantes do Txapakura, vivem na região do baixo rio Marmelos. As
primeiras referências acerca da população Torá registra-a por volta de 1690
na região do rio Madeira, num espaço territorial que compreende todo o rio e
alguns afluentes. Os Torá foram os primeiros a resistir a uma ocupação não
indígena na região do rio Madeira.
E dessa maneira foi se construindo a ocupação não indígena da região
do médio rio Madeira. Contudo, após o fim dos conflitos com os Torá,
surgiram os Parintintin, inviabilizando mais uma vez os planos regionais de
expulsar as populações indígenas e ocupar suas terras. A guerra perpetrada
pelos Parintintin contra a ocupação da região durou cerca de 80 anos e teve
sua incidência reduzida com o trabalho realizado pelo SPI na década de 20
do século passado.
Conforme dito, o conflito na região na segunda metade do século XIX e
início do século XX, dava-se entre os regionais e os Parintintin. Nessa
guerra sofriam também os povos que já possuíam um contato maior com a
população regional, vivendo principalmente em missões religiosas. Os Torá,
juntamente com os Mura, estavam próximos dos padres Franciscanos, em
missões à beira do Madeira.
Por volta da década de 20 do século XX, com a chamada “pacificação”
dos Parintintin, a região foi sendo gradativamente tomada por seringueiros,
caucheiros e extratores de produtos nativos. Nesse processo as populações
da região foram envolvidas, adotando um sistema semelhante ao da
população regional, o chamado sistema de aviamento. Ocorria de os povos
viverem associados a um único comerciante, que trocava toda a produção
por produtos e bens manufaturados. Esse sistema, embora tenha, em
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alguns casos, retardado o processo do contato, acabou por ser determinante
das relações dos povos indígenas com a sociedade envolvente até o
presente.
Um outro grupo vizinho dos Kagwahiva são os Mura-Pirahã. Habitando
o centro do território Kagwahiva, os Pirahã sempre foram tidos como
grandes inimigos. 5 José Garcia de Freitas, funcionário do SPI teve
dificuldades em se desfazer do que considerava uma grande prova da
antropofagia Kagwahiva: um pedaço de língua humana oferecida a Garcia
de Freitas.
os Kagwahiva setentrionais
No curso médio do rio Madeira vivem, hoje, os Tenharim do rio
Marmelos, os Tenharim do rio Sepoti, os Tenharim do Igarapé Preto, os
Jiahui e os Parintintin. Os Tenharim do rio Sepoti são parte do grupo
Tenharim do rio Marmelos que migrou para a boca do rio de mesmo nome
nos anos 1940. Já os Tenharim do Igarapé Preto foram assim definidos após
o contato. Na verdade consideram-se outro grupo, que se autodenomina
Yvytytyruhu, etnônimo que alude à serra no entorno de suas aldeias.
Os Parintintin foram os primeiros a serem contactados nos anos 1920
por Curt Nimuendajú e uma equipe do SPI. Atualmente vivem em várias
aldeias separadas no interior da Terra Indígena. As aldeias Pupunhas e
Traíra são próximas e possuem acesso à rodovia Transamazônica. Já as
aldeias Ipixuna e Uruapiara localizam-se no interior da Terra Indígena e só
permitem acesso por via fluvial. Entre os Parintintin, hoje apenas uns poucos
indivíduos falam a língua materna e as regras matrimoniais são seguidas
com muita dificuldade. Há muitos casamentos com indivíduos de outros
povos como Torá (Txapakura) e regionais.
Os Jiahui (Diahói) foram atacados duramente nos anos 1950 pelos
regionais e por outros grupos Kagwahiva. Eram tidos como grandes ipaji,
capazes de exterminar aldeias inteiras à distância.
5
Apesar de existirem diversas aldeias Mura na região do médio rio Madeira, os registros desse etnônimo
na documentação específica sobre o rio Maici e Marmelos no início do século XX, diz respeito aos MuraPirahã, que falam a mesma língua, mas são tratados como outro povo. A citação abaixo, portanto, citando
apenas Mura está tratando de um Mura-Pirahã.
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Por conta desse pavor que os provocava, nos anos 1950, os Tenharim
organizaram uma expedição para atacar a aldeia Jiahui e destruir seu
principal líder. Depois disso os Jiahui viveram em fuga até os anos 1970,
quando a abertura da Transamazônica atingiu o centro de seu território.
Nessa época alguns Tenharim trabalhavam para a empresa que abria a
estrada e acabaram levando os remanescentes Jiahui para suas aldeias.
Como eram poucos – cerca de 5 pessoas – casaram-se com mulheres
Tenharim e viveram junto a esse povo até recentemente, quando resolveram
reivindicar suas terras tradicionais, em local contíguo aos Tenharim. Em
1999, os Jiahui somavam 17 indivíduos, mas com o processo de
identificação de suas terras muitos deles, que moravam nas cidades,
resolveram voltar para viver próximos dos parentes.
Os Tenharim do Igarapé Preto, conhecidos como
Yvytytyruhu,
padeceram fortemente com a descoberta, quase simultânea à abertura da
Transamazônica, de cassiterita em suas terras. Viveram à mercê de
empresas mineradoras até fins dos anos 1980 e atualmente tentam se
recompor. Possuem uma relação de aliança com algumas unidades dos
Tenharim do rio Marmelos. A Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto
localiza-se no final da chamada Rodovia do Estanho. Os 43 habitantes da
aldeia do Igarapé Preto (1997), sofrem hoje com a ocupação dos ricos
campos no entorno de suas terras, almejados por plantadores de soja e
arroz.
os Kagwahiva meridionais
No início dos anos 1980, a Funai estabeleceu os primeiros contatos
com o povo denominado Uru-eu-wau-wau na região central do estado de
Rondônia. Tal denominação, depois se descobriu que era uma forma de
chamá-los pelos Oro-wari, povo Txapakura que vive na mesma região. Os
Uru-eu-wau-wau se autodenominam Jupaú, “os que usam jenipapo”, e não
são o único grupo falante da mesma língua na região. De fato, como ocorreu
no curso médio do rio Madeira, um termo genérico, que não é
autodenominação, ficou como registro geral para os diversos grupos
falantes da mesma língua.
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Os primeiros contatos foram, então, com um grupo chamado Uru-euwau-wau.
Posteriormente
os
Amondawa
aproximaram-se
do
Posto
Comandante Ary para curar seus doentes, já acometidos por doenças como
gripe e pneumonia (Leonel, 1995). Ficaram registrados como um subgrupo
Uru-eu-wau-wau. Em tempos recentes sabe-se que os Amondawa chegaram
a viver próximos dos Jupaú mas, por questões de diferenças internas,
partiram para longe. A reaproximação parcial ocorreu apenas depois do
contato. Ainda assim, a aliança entre eles é muito difícil e são poucos os
casamentos acordados entre os dois grupos. Além dos Jupaú e Amondawa,
diversos grupos isolados ainda vivem na Terra Indígena Uru-eu-wau-wau.
Alguns, inclusive, são reconhecidos como parentes que recusaram o
contato, como é o caso dos Jurure’i.
Os Jupaú, conhecidos como Uru-eu-wau-wau, vivem divididos em
diversas aldeias distribuídas pelo território. Embora o faccionalismo
característico desses grupos não destoe de tal distribuição em pequenas
aldeias, a configuração atual parece ser estimulada pela FUNAI. Os Jupaú
somam 84 indivíduos vivendo em quatro aldeias (2003). A maior delas
possui 32 pessoas e a menor 10.
Um pouco mais ao norte habitam os Karipuna, em uma Terra Indígena
que foi, recentemente, reduzida. Existem alguns poucos casamentos entre
os Jupaú e os Karipuna. Atualmente a situação dos Karipuna é crítica, com
diversos casamentos com outros povos e muita dificuldade econômica. Em
1991, em relatório, o funcionário da FUNAI aponta a situação em que viviam
os Karipuna. Eram 14 indivíduos, sendo que duas crianças já eram filhas de
regionais. As possibilidades matrimoniais eram mínimas e mesmo as
mulheres solteiras já não desejavam mais viver com maridos Karipuna (Vaz,
1991:04).
Curiosamente, em relato registrado com uma série de entrevistas sobre
o contato dos Karipuna, há referência a um grupo Kagwahiva não muito
documentado: os Capivari. Desses Capivari há apenas um remanescente,
chamado Pitanga. Ele participou como intérprete junto à equipe do
sertanista Benamour Brandão Fontes em 1977 para estabelecer contato com
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os Karipuna. Posteriormente, uma equipe da FUNAI documentou os relatos
sobre a existência de índios isolados na região dos Karipuna.
É interessante observar que, em tempos recentes, no ano de 2003,
havia uma mobilização para garantir a integridade de um grupo isolado
numa região não muito longe de Porto Velho. Esse grupo, segundo
informações
do
Conselho
Indigenista
Missionário
–
CIMI,
seriam
remanescentes Kagwahiva que se autodenominam Capivari.
Já na região do rio Purus, o único povo Kagwahiva noticiado são os
Juma, que se tornaram conhecidos pelas ações trágicas impetradas contra
eles. São vários os registros nos quais constam ataques e tentativas de
extermínio. Nos anos sessenta lutavam para impedir o avanço da
exploração em suas terras, enquanto os invasores buscavam acabar com
toda a população Juma. Em 1964 aconteceu o maior dos massacres, no
igarapé da Onça, restando deste evento apenas sete sobreviventes
(Kroemer 1985:98, Bessa Freire, 1996:355).
Os sobreviventes permaneceram em suas terras, já sem representar
qualquer perigo aos invasores e responsáveis pela tentativa de extermínio.
No final da década de 1970 e início de 1980, o Conselho Indigenista
Missionário denunciou o massacre de 1964, através do Jornal Porantim,
caracterizando o fato como genocídio. Entretanto, ao que tudo indica, o
assunto caiu no esquecimento (Porantim ano I, nº 05, 1978; ano II, nº 09,
1979; ano II, nº 10, 1979; ano III, nº 15, 1980). Em 1993, Karé, um homem
de 35 anos foi atacado por uma onça, vindo a falecer (Bessa Freire,
1996:355). Os Juma reduziram-se, então, a seis indivíduos – um casal de
velhos, um homem e suas três filhas - , que ficaram recebendo assistência
esporádica da FUNAI, através da ADR de Rio Branco, que possui um posto
indígena em Lábrea e da Frente de Contato Rio Purus, ligada ao
Departamento de Índios Isolados da FUNAI. No início dos anos 90, tentou se o casamento das meninas Juma com homens Parintintin e Uru-eu-wauwau. Todas as tentativas realizadas na época foram frustradas. (Bessa
Freire, 1996:357-358). Recentemente, como todos estavam com a saúde
abalada, resolveram mudar-se para as proximidades da estrada que liga
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Lábrea a Humaitá. No local ficaram acompanhando pescadores que
transitavam pelo Purus. Estes, aproveitando a fragilidade do grupo,
seduziam as jovens Juma, levando-as consigo para suas viagens através do
rio (Cf. Boletim de Ocorrência de Lábrea lavrado em 31/07/98).
No ano de 1998, a Administração Regional da FUNAI de Porto Velho
retirou os Juma de sua terra, transferindo-os para a Casa do Índio. Percebese na transferência a tentativa de solucionar outro problema, a falta de
mulheres junto aos Uru-eu-wau-wau da aldeia do Alto Jamary em Rondônia.
os Kagwahiva de Lévi-Strauss
Em 1938, Lévi-Strauss foi à busca dos Kagwahiva na região do rio
Machado. Seduzia-o a idéia de adentrar numa aldeia Tupi intacta e juntarse, “quatrocentos anos depois, a Léry, Staden, Soares de Sousa, Thevet,
Montaigne inclusive, que meditou nos Ensaios, no capítulo dos ‘Canibais’,
sobre uma conversa com os índios Tupi, encontrados em Rouen. Que
tentação!” (Lévi-Strauss, 1996:317).
O autor encontrou um grupo que vivia da agricultura, em casas
comunais com pinturas nos esteios e chefes polígamos. A organização
social estava baseada em uma descendência patrilinear, com cerca de vinte
clãs localizados e denominados através de animais, vegetais, minerais e
objetos manufaturados (Lévi-Strauss, 1958).
O modelo de casamento dos Kagwahiva do alto Machado, segundo
Lévi-Strauss (1958) estava baseado em dois tipos: um primeiro endogâmico,
dentro do grupo local, através do casamento de primos cruzados. Esse tipo,
segundo o autor, levava à fissão do grupo e à constituição de novos grupos
locais. Um segundo tipo estava baseado na aliança entre grupos locais e
tendia ao longo das gerações a se constituir como o primeiro tipo, ou seja,
no casamento de primos cruzados. Entre esses dois tipos de casamento
estava o avuncular. Entretanto, para Lévi-Strauss (1958), o casamento
avuncular não seria um terceiro tipo, mas o resultado indireto da interação
entre os dois primeiros.
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Os clãs localizados eram transmitidos patrilinearmente e os nomes
eram relacionados a estes clãs. Os nomes, além de pertencerem aos clãs e
derivarem de radicais ou de séries ligadas ao epônimo do clã, mudavam
conforme a passagem para uma nova classe de idade.
As observações de Lévi-Strauss condizem perfeitamente com as
considerações realizadas por mim acerca dos Kagwahiva atuais. Em seus
detalhes, o sistema político Tenharim possui uma relação estreita com as
regras matrimoniais, transitando entre o casamento de primos cruzados e a
aliança entre segmentos definidos anteriormente como Unidades de Troca
de Cônjuge (Peggion, 1996). Esses tipos de casamento criam uma
paisagem na qual há tanto a união entre unidades diferentes quanto
disputas internas que levam à constituição de novas aldeias. 6
Os grupos Kagwahiva sempre se definiram através do nome do líder ou
do local em que viviam. Conforme já comentado, após a partida de
Nimuendajú da região do Madeira um funcionário do SPI registrou diversos
grupos na região (Freitas,1930:7-8). Os Tenharim hoje se autodenominam
Ytyngyhu, nome do rio Marmelos, nas proximidades do qual se localizam as
principais aldeias. Nos primeiros registros documentais aparecem como
Apairandê, nome de um grande líder e avô dos líderes atuais.
Também os grupos contactados nos anos 1980 na região do rio
Machado
se
autodenominam
por
antigos
líderes
ou
por
alguma
característica cultural ligada a elementos naturais – Mbo’uima’ga, um grande
chefe Amondawa e Jupaú, “os que usam Jenipapo” os Uru-eu-wau-wau. As
alianças e conflitos existentes entre esses grupos apontam para um mesmo
tipo de configuração do modelo matrimonial descrito por Lévi-Strauss em
1958.
Lévi-Strauss registrou também um ritual, que ocorreu entre os Mialat,
um dos grupos Kagwahiva que visitou. Um ritual com características
semelhantes ocorre entre os Kagwahiva atuais. Apesar da diferença no
nome da festa – os Tenharim chamam de Mboatawa, o nome da comida e
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Peggion, E.A. Alianças e Facções. A organização política dos Kagwahiva da Amazônia. Estúdios
Latinoamericanos. Polônia: Sociedad Polaca de Estúdios Latinoamericanos, 2004.
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os Jupaú e Amondawa chamam de Yreru’a, o nome da flauta – o ritual
transcorre da mesma maneira. Uma pequena diferença é que, enquanto os
Tenharim dançam com flautas do mesmo tamanho, os Jupaú e Amondawa
possuem várias flautas como as dos Tenharim e uma única mais longa e
que fica amarrada num fio sustentado por dois mastros laterais. No mais
todo o processo do ritual é muito semelhante em ambas regiões.
Por fim, percebe-se uma grande proximidade nas informações acerca
dos povos Kagwahiva, sejam os contactados por Nimuendajú em 1924,
sejam os visitados por Lévi-Strauss em 1938, sejam os grupos atuais do rio
Machado ou do médio rio Madeira. Apenas uma questão chama a atenção:
dado o poder acurado de observação de Claude Lévi-Strauss, por que não
registrou a presença de metades exogâmicas entre os Kagwahiva que
visitou?
Consideração final
No dia 30 de outubro de 2007, a Revista Carta Capital publicou uma
matéria sobre um grupo de índios isolados encontrados na região de Rondônia.
Dois nomes denominados de um povo denominado Piripkura. Dois homens
doentes em uma região devastada por queimadas e por disputas territoriais
terríveis. Dois homens – Mande´i e Tucan. Talvez sejam os últimos
remanescentes Tupi-Kagwahiva ainda isolados. Tucan foi internado em um
hospital para a retirada de pedras nos rins. Mande´i partiu e não deu mais
notícias.
bibliografia
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15
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