do arquivo

Transcrição

do arquivo
Uchidachi e Shidachi
Por Nishioka Tsuneo, Menkyo Kaiden.
Notas iniciais:
1) Nishioka Tsuneo iniciou o treinamento em Shinto Muso Ryu em 1938, sob a tutela de Shimizu Takaji, de
quem, posteriormente, recebeu o título de Menkyo Kaiden, licença (diploma) de transmissão completa do
estilo. Possui também a licença de ensino e o título de Hanshi Hachidan (8º Dan), concedido pela Zen
Nihon Kendo Renmei (ZNKR, Federação de Kendô do Japão). É autor de vários livros sobre artes marciais e
lidera o Seiryukai, grupo devotado à preservação dos ensinamentos de Shimizu Sensei.
2) Do tradutor para o inglês: O seguinte texto tem, como núcleo, um capítulo do livro “Budo-teki na Mono
no Kangaekata: Shu, Ha, Ri” (O modo de pensar do Budô: Shu, Ha, Ri). Traduções diretas do japonês são
frequentemente problemáticas por conta da inerente ambiguidade no estilo japonês de escrever ensaios.
Visando a clarificar as ideias do autor e apresentar seu pensamento da melhor maneira possível em
inglês, suplementamos o texto original com uma séria de entrevistas pessoais. Assim, o resultado
intencionalmente sugere o sabor de ensinamento passado adiante [oralmente] diretamente de mestre a
discípulo.
Por favor, percebam que, nesse ensaio, os sufixos –Do (caminho, via, modo de ser) e –Jutsu (técnica ou
habilidade) são usados à maneira japonesa, ou seja, sem marcar uma distinção precisa entre eles. O autor
considera que não são duas entidades distintas, mas, sim, complementares, diferentes facetas de um
todo maior. A esse todo ele se refere, às vezes como Budô, às vezes como Bujutsu. Em certos momentos,
ele usa a terminologia típica das artes tradicionais (Koryu Budô), enquanto que, em outros momentos ele
usa os termos comumente aplicados ao se discutir Budô moderno (Shin Budô). Seus comentários
pretendem cobrir ambos.
O ensaio inicia com o conceito de “Rei”. Essa palavra em si já apresenta dificuldades específicas na
tradução. Apesar de, em geral, “Rei” ser traduzido como etiqueta, decoro, polidez ou cortesia, nenhum
desses termos é o equivalente exato ao termo japonês. Portanto, nesse ensaio, não será dado um
substituto a esse termo. Pensem nisso como sendo “a essência ou a qualidade do relacionamento entre
indivíduos”.
Traduzido do inglês por Yoko Sato, com notas suplementares e introdução por Diane Skoss.
Traduzido do inglês para o português (com as adaptações anotadas abaixo) por Anderson.
Ao invés de notas explicativas de rodapé, optou-se por acrescentar entre colchetes “[]” explicações ou
termos equivalentes que pudessem explicitar melhor o conceito quando algum termo não tivesse o
equivalente exato em português, dentro do mesmo contexto.
Também quanto às questões de pontuação, na tradução para o português optou-se por dividir alguns
parágrafos que, no texto em inglês apareciam como um só, de forma a tornar a leitura mais fluida e, ao
mesmo tempo, marcar a ênfase em alguns conceitos e ideias que, na forma anterior apareciam, talvez,
com menor destaque.
O texto em inglês faz parte do livro “Sword and Spirit, Classical Warrior Traditions of Japan, Vol. 2”, Vários
autores, editado por Diane Skoss. Koryu Books. 1999.
Texto disponível (parcialmente) em www.koryubooks.com
Uchidachi e Shidachi
O coração do Bujutsu é “Rei”. A responsabilidade do professor é comunicar isso a seus alunos. Se essa
comunicação falha, os alunos podem desenvolver atitudes incorretas e, assim, o verdadeiro significado do
treinamento se perde. Infelizmente, há uma grande dose de abuso de poder no Budô japonês hoje em dia. Em
minha opinião, poucos professores estão ensinando os princípios do Budô corretamente. “Rei” no Budô tornou-se
bastante artificial, parecendo-se com o velho estilo de hierarquia militar. O verdadeiro sentido de “Rei” não é
mais expressado. Parece estarmos preservando apenas os piores aspectos da tradição e cultura japonesas, e
precisamos considerar maneiras de mudar essa situação.
Bujutsu leva a “rei”. O instrutor, idealmente, comporta-se como um exemplo para guiar os alunos em direção a
algo maior. “Rei” é uma expressão de humildade diante dessa existência superior. Mas, alguns, à medida que
desenvolvem suas habilidades e atingem graduações elevadas, deixam de prestar atenção àquilo que deveriam
ter aprendido sobre “Rei”. Aqueles que falham ao trabalhar tão diligentemente para melhorar o espírito quanto
trabalham para melhorar suas técnicas estão, aparentemente, esquecendo a correta humildade do verdadeiro
“Rei”. Estão aptos a tornarem-se pretensiosos, orgulhosos e condescendentes. Desenvolvimento espiritual e
desenvolvimento técnico são coisas completamente diferentes e não há, necessariamente, qualquer
relacionamento entre os dois.
O treinamento em Jojutsu, por exemplo, tem uma qualidade maravilhosa, pois pode resultar em ambos os
desenvolvimentos: crescimento espiritual leva ao crescimento técnico e vice-versa. Desenvolvimento não é
puramente uma questão de técnica. No entanto, se as técnicas físicas são ensinadas de maneira imprópria ou
superficialmente, os alunos ficarão confusos. Haverá ainda mais confusão se o foco estiver apenas no processo de
aperfeiçoar as técnicas. Nós não podemos nunca tirar os olhos do objetivo de “corrigir e aperfeiçoar o espírito”. A
única maneira de assegurar isso é estudar sob a tutela de um Mestre.
Em geral, as pessoas não entendem o que é um Mestre. Elas podem ficar confusas ao igualar a ideia de mestre
com a de Instrutor/professor ou de “mais antigo”. Infelizmente, à medida que o nível de habilidade de alguém
cresce, frequentemente, ocorre o mesmo com o tamanho de seu ego. Muito frequentemente, jovens que
possuem graduação elevada ou então ou uma licença de ensino ou pergaminho assumem estar qualificados para
serem professores apenas por possuírem certificação de ensino, um dojô ou ter alunos. É um grave erro acreditar
que uma pessoa é um mestre apenas porque possui alta graduação ou uma licença.
Certa vez meu mestre, Shimizu Takaji (1896-1978), me disse para não copiar o Jo [as técnicas de bastão] praticado
pelo seu colega mais jovem Otofuji Ichizo [ambos foram alunos do mesmo mestre].
A não ser que alguém reflita cuidadosamente sobre o que Shimizu Sensei realmente queria dizer, essa afirmação
pode ser facilmente mal interpretada.
Ele sabia que havia certas diferenças entre o seu jeito de manusear Jo [bastão] e Tachi [espada] e o modo como
Otofuji Sensei usava essas armas. Mesmo nos kata de Bujutsu, é bastante natural que haja diferenças na forma.
Isso ocorre porque diferentes pessoas têm diferentes níveis de compreensão técnica e diferentes mentalidades.
Isso os leva a fazer os movimentos de modos ligeiramente diferentes e eles transmitem essas características
individuais [junto] com seus ensinamentos.
Shimizu Sensei temia que os estudantes mais novos percebessem essas diferenças, ficassem confusos ou
desconfiados, e pensassem que um modo ou o outro estivessem errados. Ele parecia preocupado com os erros
inevitáveis que resultam quando um estudante não pode ou não quer seguir apenas um professor. Ele me
incentivou a seguir um professor único, pelo maior tempo possível, e a evitar confundir-me desnecessariamente,
desviando meu foco para outros professores.
Ter mais de um professor pode criar sérios problemas no seu treinamento. Por outro lado, insistir que os alunos
sigam cegamente a “um e somente um professor” pode resultar em “panelinhas” separatistas e impedir que
estudantes de diferentes professores treinem juntos. Essa situação desagradável ainda ocorre no mundo das
artes marciais japonesas. A única solução é esperar pelo crescimento espiritual de ambos, o professor e o aluno,
de modo que estudantes possam treinar sob a tutela de um professor único e, ainda assim, beneficiar-se da
interação com estudantes de outros grupos.
É por isso que o entendimento de “Rei” é tão essencial no processo de crescimento espiritual em Bujutsu. Uma
das mais profundas expressões de “Rei” está na interação entre Uchidachi [atacante], aquele que recebe a
técnica, e Shidachi [defensor], aquele que executa a técnica. Infelizmente, mesmo professores frequentemente
entendem mal as sutilezas de Uchidachi [atacante] e Shidachi [defensor] no treino de Kata. Eles [os professores]
falham em transmitir aos alunos a diferença de intenção inerente a esses dois papéis.
Particularmente, nas tradições clássicas, os papéis de Uchidachi [atacante] e Shidachi [defensor] são bastante
distintos. Cada um deles tem o seu próprio [particular] ponto de vista psicológico. É essencial que essa qualidade
distintiva seja sempre mantida. Eu acredito que a diferença entre esses dois papéis é a característica definidora
do treino de kata. Recentemente cheguei à conclusão de que nem vale a pena treinar [de que prática é
irrelevante] a não ser que ambos os parceiros compreendam bem isso.
Quando um expectador externo observa [a execução de] um kata, parece [superficialmente] que o Uchidachi
[atacante] perde e o Shidachi [defensor] vence. Isso é intencional. No entanto, há muito mais envolvido do que
apenas isso. O Uchidachi [atacante] deve ter o espírito de um pai zeloso e apoiador. O Uchidachi [atacante] guia
o Shidachi [defensor] provendo um ataque verdadeiro; isso permite ao Shidachi [defensor] aprender o correto
deslocamento do corpo, distância de combate, o espírito correto e o senso de oportunidade.
Para o Uchidachi [atacante], um espírito humilde é tão necessário [importante] quanto a técnica correta. Burla
[malandragem], arrogância ou uma atitude condescendente jamais devem ser permitidas no treinamento. A
missão do Uchidachi [atacante] é vital.
No passado, esse papel era desempenhado apenas pelos praticantes mais avançados, capazes de uma execução
técnica acurada, que possuíssem um espírito correto e entendimento [profundo] do papel [de atacante]. O
Uchidachi [atacante] deve prover o exemplo de linhas de corte “limpas” e precisas, alvo correto e ainda prover
focalização intensa [foco] e uma aura de autoridade.
Se o Uchidachi [atacante] é o “pai” ou “professor” [tutor], então o Shidachi [defensor] é a “criança” ou “aluno”. O
objetivo é adquirir as habilidades [requeridas para fazer frente] à técnica (ataque) [provida] pelo Uchidachi
[atacante]. Infelizmente, os estudantes frequentemente agem como se quisessem testar suas habilidades contra
as habilidades dos Uchidachi [atacante] mais graduados. Eles consideram essa competição [esse tipo de
competição] como sendo [aquilo em que consiste] o seu treinamento. De fato, isso não leva nem a
desenvolvimento técnico e nem a grande desenvolvimento espiritual, pois o relacionamento correto entre
Uchidachi [atacante] e Shidachi [defensor] ficou obscurecido.
É a repetição das técnicas [combinada] com esse relacionamento pai/filho ou veterano/novato [sempai/kohai]
que leva a um engrandecimento do espírito através da prática física.
Os papéis de Uchidachi [atacante] como “mais velho” ou “veterano” [sempai] e Shidachi [defensor] como “mais
novo” ou “calouro/novato” [kohai] são [devem ser] preservados independentemente dos respectivos reais
[efetivos] níveis de experiência do par [i.e. independentemente do nível de experiência relativo dos parceiros,
aquele que assume o papel de atacante deve comportar-se e assumir sua responsabilidade como “guia” e viceversa]. O kata deve ser praticado de tal forma que ambos os praticantes aprendam a dar e receber. Isso é o que
torna aperfeiçoamento técnico e desenvolvimento espiritual possível.
Infelizmente, na prática do Jo [Jodo], as pessoas muitas vezes acham que se pratica [revezando-se] nos dois
papéis meramente para memorizar as sequências de movimentos das duas armas, Tachi [espada] e Jo [bastão].
Até existem instrutores que ensinam que o objetivo [principal] do Shinto Muso Ryu Jojutsu é aprender como se
derrotar uma espada usando um bastão. Isso é um erro [grosseiro]. Se as coisas continuarem assim, Kata Bujutsu
[a prática tradicional baseada na execução de kata] poderá morrer, pois tanto a técnica quanto o espírito do
Uchidachi [atacante] não evoluirão.
Hoje em dia há poucas pessoas que conseguem assumir o papel de Uchidachi [atacante] corretamente. Eu
acredito que o Bujutsu [técnica marcial] evoluiu para Budô [Caminho, modo de vida marcial] preservando [e
enfatizando] a ideia [do relacionamento] de Uchidachi [atacante] e Shidachi [defensor]. Essa é a característica
fundamental do Bujutsu Clássico. Apesar de as artes japonesas, tais como Kenjutsu, Iaijutsu e Jojutsu terem sido
transformadas de “Jutsu” para “Dô”, se os papéis adequados no treinamento não forem preservados, as artes
“Dô” desviarão na direção errada. Obviamente que há uma diferença em tentar preservar a distinção adequada
entre Uchidachi [atacante] e Shidachi [defensor] e ainda assim não atingir a perfeição e uma completa falta de
esforço ou entendimento sobre a distinção. A existência da intenção ou a qualidade dessa intenção é manifestada
na prática diária e nas ações [de cada um]. Aqueles que possuem os olhos [treinados] e a experiência para ver
podem dizer [ver, perceber] a diferença.
No entanto, minha preocupação é que, hoje em dia, há poucas pessoas que compreendem este conceito. No
futuro haverá ainda menos. As pessoas parecem não perceber mais que a existência de Uchidachi [atacante]
[atacante, uke] e Shidachi [defensor] é a essência do treinamento em Budô.
Tudo isso considerado, estou convencido de que a coisas mais importantes que aprendi do Shinto Muso Ryu e de
Shimizu Takaji Sensei foram os papéis de Uchidachi [atacante] [atacante, uke] e Shidachi [defensor] nos Kata. Não
há maneira de transmitir [corretamente] os kata da tradição clássica japonesa sem um entendimento correto
desse espírito de dar e receber.
Não é correto para os mais antigos, no papel de Uchidachi [atacante] [atacante, uke], tratar inadequadamente
[faltar com respeito], maltratar ou atormentar os novatos [mais novos e/ou menos graduados]. Ao contrário, sua
função é guiar e educar. No mesmo sentido, também é terrível ver o Shidachi [defensor] [defensor, nage] assumir
uma atitude que é essencialmente parricida, tentando “destruir” [vencer] o Uchidachi [atacante]. Tudo que posso
dizer é que tal espírito não deveria jamais existir.
Shimizu Sensei sempre dizia: “Você deve treinar comigo” [i.e. diretamente com seu próprio mestre]. Ele
constantemente assumia o papel de Uchidachi [atacante]. Mesmo com principiantes, ele nunca relaxava sua
atenção. Ele sempre se mostrava sério em relação a todos e nunca era arrogante ou prepotente com ninguém. Eu
acredito que essa atitude é o ensinamento mais importante do kata de Bujutsu e a forma de treinar de Shimizu
Sensei era um maravilhoso exemplo disso. Esse espírito é muito difícil de cultivar, não apenas em Jojutsu, mas em
várias outras situações também. Isso é completamente diferente de um estudante veterano ou professor
exibindo sua técnica para os novatos, tratando-os com arrogância e condescendência, o que torna fácil ficar preso
em um círculo de interação que leva o Shidachi [defensor] a reagir, numa tentativa de competir com o Uchidachi
[atacante]. O acompanhamento de um mestre é absolutamente essencial para evitar essa situação.
Uchidachi [atacante] ensina ao Shidachi [defensor] sacrificando-se a si mesmo, treinando como se fosse ser morto
a cada instante. Esse auto sacrifício engloba o espírito dos pais e mestres.
O treino de Kata não serve de nada sem o entendimento dessa lição e atitude.
É esse espírito que permite ao Shidachi [defensor] crescer e polir seu próprio espírito.
O kata de Bujutsu não ensina nem vitória e nem derrota e, sim, como cultivar os outros e guiá-los a um nível mais
alto. Isso é Budô.
Eu honestamente faço votos para que todos [os praticantes de Budô], especialmente aqueles que praticam
Jojutsu, lembrem-se sempre desse axioma: “Não rejubilar-se na vitória. Não tornar-se servil [rebaixar-se] na
derrota. Perca com dignidade”. É esse espírito que devemos emular.

Documentos relacionados