- Sociedade Brasileira de Economia Política

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Dualidade monetária e
soberania em Cuba
Jaime Marques-Pereira *
Bruno Théret **
Certo, o regime castrista sobreviveu. Mas o preço a
pagar é pesado. O dólar é rei, que símbolo! É a
primeira vitória política americana obtida após 40
anos. (J. HABEL, 1999, p. 37).
Resumo
Este artigo analisa a especificidade da dolarização cubana. Esta, instituindo uma
dualidade monetária — dólar e peso cubano, duplicada por uma duplicidade de taxas
de câmbio, permitiu reativar a economia e, ao mesmo tempo, preservar o controle e a
repartição socialista da renda. Esta análise é realizada sobre um duplo plano. Em primeiro lugar, se descreve o financiamento da produção e a repartição da renda que
resulta do jogo da dupla taxa de câmbio que articula o setor emergente e o setor público. Em seguida, se analisa a dimensão ética desse sistema de conversão entre signos
monetários dentre os quais um, o dólar, regula a ordem restrita dos ganhos da atividade
mercantil individual, e o outro, o peso nacional, a ordem ampliada da repartição do
produto coletivo; mostra-se que não há necessariamente um paradoxo por trás desse
aparente abandono de soberania monetária sob o ponto de vista da afirmação da soberania política.
Palavras-chave: Soberania, dualidade monetária, transição ao mercado, repartição,
socialismo, ética cubana.
Diz-se que o dinheiro não tem cheiro. Dinero es dinero, es igual em uma
versão recente que se ouve freqüentemente em Cuba. Portanto, qualquer observador curioso sobre esse acontecimento só pode se espantar com essa dissonância: o dólar, bilhete verde emblema do poderio dos Estados Unidos, circula
*
Professor da Universidade de Grenoble II.
Professor da Universidade de Paris I.
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legalmente e livremente em um espaço público atravessado igualmente por um
discurso nacionalista antiamericano que se apega ao caráter imperial dessa
potência. Pode-se, então, legitimamente perguntar, e essa cacofonia entre as
formas de comunicação social nos incita a fazê-la: se não tem cheiro, ao contrário, o dinheiro também não teria uma cor? Cor do dinheiro no sentido de
que, pelo fato de que ele se inscreve no universo simbólico de seu emissor,
potência pública ou poder privado, nacional ou estrangeiro, cada forma monetária ao circular em um território político tinge as relações sociais. Essa dimensão simbólica das moedas aparece claramente nos anos noventa em Cuba,
anos de crise profunda de uma economia socialista que busca se manter custe
o que custar em um ambiente que se tornou totalmente hostil e que não experimentou um processo de dolarização, como outras economias latino-americanas ou pós-socialistas. Se em essência, foi mobilizando os recursos simbólicos
do nacionalismo e de uma ética igualitária que o regime revolucionário cubano
pôde perdurar resistindo ao desejo de anexar do ogro americano, então é importante, se bem que pouco usual, considerar essa dimensão simbólica das
práticas e das políticas monetárias para investigar a evolução em curso na sociedade cubana. Apesar, ou precisamente devido aos benefícios da dolarização
para a economia e para o regime político cubano nos anos noventa, o espírito
do dólar, as identidades, os estatutos e as hierarquias sociais das quais ele é o
meio em sua região de origem, não seriam os vetores sub-reptícios de uma
anexação soft da Ilha pela potência americana? A cor do dólar não iria novamente tingir as relações sociais no seio da sociedade cubana?
A dinâmica ética, própria à dolarização, implica se interrogar sobre a
ameaça que ela representa para a legitimidade do regime e a possibilidade de
preservar a aceitação da moeda nacional, apesar de que Fidel Castro não hesita
em declarar que ele domina perfeitamente o processo, a “livre circulação para
o pagamento de numerosos bens e serviços só duraria enquanto fosse recomendável para os interesses da Revolução.” (Granma, 22 de junho 2000, apud
RITTER e ROWE, 2000, p. 1). A análise dos economistas cubanos, explicitamente mais moderada do que a de seu “Comandante em Chefe”, mostra, com
efeito, muito claramente, a ambivalência da dualidade monetária implementada que é ao mesmo tempo viável macroeconomicamente, portanto politicamente, mas que coloca por outro lado limites ao crescimento, que podem ameaçar
a sua sustentabilidade a longo prazo. Mais estruturalmente, essa ambivalência
se traduz no fato de que, de um lado, a dolarização tende a ameaçar a legitimidade do regime pelas suas conseqüências políticas e sociais, enquanto que de
outro, ela a sustenta pela retomada econômica que permitiu e pelo jogo da
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dualidade do regime cambial, que assegura, custe o que custar, a manutenção
do modelo social anterior.
Entretanto as análises dos economistas não permitem prever se as possíveis irreversibilidades da dolarização permitirão Cuba escapar do dilema, que
a Argentina acabou de nos mostrar o exemplo entre uma dolarização completa
e seu contrário, a “repesificação”. É claro que as experiências argentina e cubana de dolarização são profundamente diferentes e que o pior não é necessariamente o mais provável. Além disso, a informação é cheia de lacunas ou
imprecisa para que nós nos arrisquemos a indicar qual evolução é a mais provável. Por isso nós nos limitamos aqui a relatar por que e como o regime cubano chegou a esta situação de dolarização e quais são as evoluções e saídas
possíveis. Para tanto, recolocamos o processo cubano de dolarização em seu
contexto (primeira parte), e, em seguida,examinamos as formas específicas
(segunda parte). Na terceira parte, descrevemos as conseqüências econômicas
e sociais, destacando a ambivalência do sistema monetário dual instalado. Enfim, na quarta parte, dedicamos à dimensão moral das transformações da sociedade cubana relacionadas à dolarização. É a oportunidade para retornarmos
ao simbolismo da moeda, que é crucial não somente no domínio dos valores e
normas sociais, mas igualmente pelas conseqüências macroeconômicas do sistema social que ela representa e abrange. A capacidade do regime político de
estabelecer uma economia que continua socialista e que, ao mesmo tempo,
estimula a competição individual e que, por outro lado, estabelece, a regulação
pelos preços de mercado das atividades que fornecem divisas, não é uma questão que possa ser respondida por uma análise instrumental das funções da moeda.
A decisão sobre o modo de cumpri-las é, primeiro, política. Aqui está uma
característica universal que, em Cuba, aparece mais claramente do que em
outros lugares. Mas o caráter particular da dolarização na Ilha esclarece o que
esta última tem de comum com o resto da América Latina, a saber, uma crise
de soberania monetária, na qual os efeitos deletérios, econômicos e sociais,
são melhor dominados.
Como Cuba se dolarizou?
A dolarização oficial do país encontra sua principal fonte na crise associada à suspensão da ajuda soviética; a queda drástica dos mercados de exportação e a redução dramática da capacidade de importar alimentos e combustíveis caminharam juntas. A dependência externa de Cuba era a contrapartida de
sua inserção no bloco soviético, inserção vivida como uma proteção frente aos
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Estados Unidos. Até 1989, essa inserção-dependência permitiu à Cuba se beneficiar de uma renda externa sob a forma de ajudas diretas (doações e empréstimos a baixas taxas de juros) e indiretas (através de um jogo sobre os
termos de intercâmbio das exportações e das importações, mais favoráveis do
que aqueles do mercado mundial). É essa renda que, em grande medida, permitia às autoridades do país implementarem com sucesso um modelo de desenvolvimento social exemplar na América Latina.
Após a revolução de 1959, o funcionamento da economia cubana apóiase, com efeito, sobre uma lógica de repartição igualitária dos rendimentos individuais e dos serviços coletivos, lógica baseada na capacidade do Estado em
centralizar e distribuir a riqueza. Para chegar a essa performance social, além
da redução na escala de salários (coeficiente de 4,5 entre o mais elevado e o
menor em 1987, MESA-LAGO, 2000, p.286), o emprego vitalício garantido
pelo Estado (particularmente importante para melhorar as condições de vida
dos trabalhadores dos canaviais, em sua maioria negros), a implementação de
sistemas universais gratuitos de saúde e educação, e a subvenção dos serviços
públicos, como o telefone local, os transportes e a distribuição de eletricidade,
o regime castrista apoiou-se na instituição central do socialismo cubano que é
a libreta de abastecimiento, uma espécie de renda mínima universal de cidadania. A libreta é a expressão individual de um sistema de distribuição da riqueza social que visa assegurar a cobertura das necessidades básicas para todos, o
que ocorreu efetivamente até 1989 (FABIENKE, 2001, p. 106). Esse sistema
permite que cada um obtenha uma cesta de bens de consumo a preços fixados
pelo Estado muito inferior aos do mercado. Tem como efeito reduzir ainda
mais o leque dos rendimentos, os primeiros pesos gastos para pagar as compras referentes à libreta têm um poder de compra superior àqueles gastos nas
lojas e nos mercados paralelos onde os preços, fixados em função da relação
oferta/demanda, são maiores; isso ainda continua verdadeiro, se bem que a
importância desses mercados, atualmente formalizados, tenha crescido
consideravelmente.Nesse contexto, o desaparecimento da União Soviética e
do COMECON foi um choque de extrema violência. Isso porque, de um lado,
o país estava impossibilitado de acessar fontes alternativas de crédito internacional, considerando que havia parado de pagar as dívidas desde 1986 e que,
de outro, sofria o bloqueio americano, reforçado desde 1992 pela lei Torricelli,
que especialmente teve (e ainda tem) como efeito impedir todo o acesso de
Cuba ao crédito das organizações financeiras internacionais (ESCAITH, 1999a,
p. 58). Assim, entre 1989 e 1993, o PIB diminui mais de um terço em volume;
as receitas de exportação caem cerca de 80% e as importações 75%. O consu-
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mo diminui 28% (o consumo privado foi consideravelmente mais afetado do
que o consumo público) e o investimento reduziu-se a 5% do PIB em 1993;
quando era de 28%, em 1989 (ROMERO, 2001, p. 62). Ao mesmo tempo, o
salário real diminuiu, mas não encontra no que ser gasto, de modo que a poupança líquida se acumula, com o governo continuando a remunerar os salários
e pensões no mesmo nível anterior. Simultaneamente, o déficit orçamentário e
a massa monetária atingem, respectivamente, cerca de 30% e 70% do PIB, em
1993, e a hiperinflação, contida no setor estatal pela fixação dos preços, se
desencadeia no mercado negro que se expande: a cotação do peso desaba nas
transações não oficiais e “o índice de preços nos mercados informais (base 100
em 1989) atinge 1.552,6%, em 1993” (HIDALGO, 2002, 3). Enfim, a população em subemprego maciço e crescente não é muito estimulada a ir ao trabalho, tendo em vista seu poder de compra deteriorado e a necessidade de passar
uma grande parte do seu tempo à procura do necessário, dólares e mercadorias,
para subsistir (KILDEGAARD e ORRO FERNANDEZ, 1999, p. 29).
Qual é então a reação do governo cubano? Em um primeiro momento,
“entre 1990 e a primeira metade de 1993, a interpretação dominante é que a
crise é essencialmente o resultado de mudanças negativas no contexto internacional e as medidas econômicas realizadas nesse período visam somente o
setor externo” (ROMERO, 2001, p.64). Um programa nacional de alimentação é lançado, destinado a estimular a produção doméstica numa perspectiva
de substituição de importações. A mobilização e o envio dos habitantes das
cidades ao campo se inscreve no quadro desse programa. Promoveram-se, igualmente, notadamente nos setores industriais e nos mais dependentes do exterior
para peças de reposição, diversas formas de colaboração com o capital estrangeiro. As empresas são finalmente incentivadas à exportar e o monopólio estatal do comércio exterior é colocado em xeque. Mas isso necessitava de uma
reforma da Constituição. Essa reforma é realizada em 1992, mas não sem antes
ter sido precedida por um amplo debate público por todo o país (DILLA, 2000).
Essa reforma põe fim ao monopólio estatal sobre o comércio exterior e transforma o sistema de direitos de propriedade sobre os meios de produção na
agricultura e na indústria, limitando o monopólio estatal àqueles que são “fundamentais” (terras, minas e água). Ela torna possível a criação de empresas
mistas com o capital estrangeiro e de associações econômicas do tipo joint
ventures (MESA-LAGO, 2000, p. 295). Mas a reforma tem igualmente uma
face política: desburocratização do Estado e do partido (com a redução dos
efetivos em funcionários e militares), renovação dos representantes e dos diri-
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gentes administrativos e o desenvolvimento da participação política na esfera
local (VALDÈS PAZ, 2001, p.137-138).
Além das mudanças institucionais próprias à dolarização, pode-se distinguir sete grandes domínios de reestruturação econômica que vão compor o
contexto: 1) modificação na estrutura de direitos de propriedade no campo,
com o desenvolvimento da propriedade privada e cooperativas; 2) reabertura
dos mercados livres de produtos agro-alimentares e artesanais nos quais os
produtores privados e alguns intermediários, mas também as cooperativas e
fazendas estatais (com vistas à regulação dos preços), podem vender a preços
liberados a produção que exceda as cotas destinadas à distribuição pública; 3)
retorno à autorização de formas específicas de auto-emprego, principalmente
no artesanato e prestação de serviços para a população (117 profissões em
1993); 4) redução do déficit orçamentário, com o aumento do nível das despesas sociais de modo a amortecer os efeitos das reestruturações; 5) desenvolvimento dos investimentos estrangeiros; 6) constituição, desde 1997, de um “verdadeiro” setor monetário e financeiro, principalmente com a criação de um
Banco Central, de bancos especializados e da possibilidade dos bancos estrangeiros abrirem sucursais; 7) melhoria na produtividade e na competitividade
das empresas públicas, sem privatizações e promovendo a autonomia de gestão e auto-financiamento.
Dolarização à la cubana: criação de um sistema monetário e de um
regime duplo de câmbio.
A dolarização começa efetivamente com a legalização da posse e da circulação de divisas estrangeiras em julho de 1993. “A partir dessa data, o lugar
do dólar na circulação monetária vai crescer a uma velocidade muito alta. (...)
os haveres em moeda americana da população incham sob o duplo efeito do
aporte de dólares dos turistas, cada vez mais numerosos, e das remesas (envio
de divisas pelos cidadãos cubanos residentes no estrangeiro, em particular nos
Estados Unidos): o montante das transferências do exterior triplicam entre 1993
e 1998” (JOSHUA, 2001, p. 11). Ao mesmo tempo, são criadas lojas estatais
chamadas de “coleta de divisas”, as TRD (tiendas para la recaudación de
divisas), as quais, bem sortidas de produtos inexistentes em outras lojas (onde
se paga em pesos), permitem ao Estado recuperar os dólares provenientes das
remessas que nelas são gastos. Além disso, para que todo cubano possa ter
acesso a essas lojas sem ter que, em caso de necessidade, recorrer ao mercado
negro de dólares, foi instituído, em 1994, uma rede oficial de casas de câmbio
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(CADECA AS) nas quais, com pesos, é possível obter “pesos conversíveis”
equivalentes a dólares à taxa do mercado não oficial. As CADECAS recuperam
igualmente uma fração das remesas vendendo pesos contra dólares. Enfim, no
quadro da reforma das empresas, um sistema de prêmios em pesos conversíveis ou bônus de compras nas TRDs é instituído Assim pôde-se desenvolver
um circuito de consumo dolarizado (“mercado interno de divisas”) aberto oficialmente a todos os cubanos e que, simultaneamente, permite ao Estado recuperar dólares para financiar as importações ou empresas, de acordo com os
seus objetivos macro-econômicos.
Paralelamente às medidas relativas à estrutura dos direitos de propriedade
no campo, à reabertura dos mercados agro-alimentares livres, à renovação das
autorizações para certas atividades por conta própria na cidade, à redução dos
subsídios para as empresas e à reforma fiscal, a primeira etapa da dolarização à
la cubana ocasionou uma retomada da produção e do consumo (via as TRDs, os
mercados livres e a atividade dos trabalhadores por conta própria). Mas ela permitiu também enxugar uma parte significativa da super liquidez em pesos, graças, de um lado, a sua transformação em pesos conversíveis nas CADECAS e ao
aumento simultâneo da oferta nas TRDs e nos mercados; de outro lado, a uma
alta dos preços que foi ao mesmo tempo organizada nas lojas estatais em 1994,
para os bens que não eram de primeira necessidade (ESCAITH, 1999a, p. 14), e
estimulada automaticamente nos mercados agro-alimentares pelo próprio excesso de liquidez. Enfim, a melhoria das receitas fiscais obtidas pela retomada
da economia oficial, juntamente com a reforma fiscal de 1994 e as reduções dos
subsídios às empresas, torna possível um rápido ajuste no orçamento, permitindo a continuidade das políticas sociais. Esse ajuste se traduziu por seu lado, por
uma revalorização igualmente rápida na taxa de câmbio não oficial do peso.
Ainda que onipresente nos espíritos e desenvolvendo-se progressivamente,
a dolarização em Cuba ainda é parcial. Certamente o setor exportador, no qual
é preciso incluir a indústria do turismo e as atividades associadas (exportaciones
en frontera), está totalmente dolarizado, mas uma parte da economia continua
a funcionar utilizando o peso. Assim, em 1999, a dolarização só atingia 56%
do total das compras de bens de consumo finais e havia 60% das famílias que
tinham acesso ao dólar (HIDALGO, 2002, p. 17-18). A dolarização se traduz,
de fato, pelo desenvolvimento de um sistema monetário duplo, no qual o peso
e o dólar exercem simultaneamente o conjunto das diversas funções monetárias, mas em setores diferentes da economia.
Além disso o sistema se complica pelo fato de que, apesar da não conversibilidade do peso, este é trocado pelo dólar nas fronteiras de diversos setores
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da economia segundo duas taxas de câmbio muito diferentes: uma fixa e chamada de oficial (1 peso por dólar) e outra mais variável e “quase-oficial” (em
torno de 20 pesos por dólar). Enfim, o “peso conversível”, coberto oficialmente em 100% pelas reservas em dólares no Banco Central, circula como meio de
pagamento. Essa dupla dualidade das moedas e das taxas de câmbio torna a
matriz econômica da Ilha muito complexa, duplicando sua fragmentação entre
setores regidos por diferentes direitos de propriedade (figura 1)
Figura 1: Fragmentação das atividades econômicas
Meios de
pagamentos
Setores
econômicos
PÚBLICO:
Propriedade Estatal,
preços fixos e taxa de
câmbio oficial 1:1
PESO CUBANO
Setor estatal
tradicional
LIBRETA
PESO
CONVERSÍVEL
DÓLAR US
TRD: Tiendas de
recuperación de
divisas
Prêmios de
incentivos à
produção
Setor estatal
emergente
(FAR)
TRD
MISTO:
Propriedade mista ou
Estatal com preço de
mercado e taxa de
câmbio semi-oficial
1:20
Comércio livre das
cooperativas e
fazendas estatais
CADECA
Empresas mistas
Prêmios de
incentivos à
produção
Joint ventures
PRIVADO:
Propriedade privada,
preço de mercado e
taxa de câmbio semioficial 1:20
Camponeses
independentes
Mercados livres
agro-alimentares e
artesanato
Trabalhadores por
conta própria
(serviços para os
cubanos)
Atividades legais
relacionadas ao
turismo como
restaurantes
(paladares ) e
outros.
Por conta própria
Empresas
estrangeiras
Incentivos à
produção
Paladares e outros
por conta própria
(setor turismo)
Prostituição,
mercado negro e
outras atividades
ilícitas
Apesar disso, tentaremos uma explicação abstraindo parcialmente as diferenças nas formas de propriedade, as quais são secundárias aqui para nós.
Com as primeiras medidas jurídicas realizadas para favorecer o investimento
estrangeiro e conduzir ao fim do monopólio estatal do comércio exterior, um
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setor de produção operando direta e exclusivamente em divisas foi aberto em
1992, que teve como efeito, ao reduzir o risco cambial, estimular o investimento estrangeiro assim como a atividade exportadora. Esse setor, que inclui cada
vez mais empresas nacionais, principalmente pelo fato da retomada do ramo
“turismo”, é beneficiário de uma capacidade autônoma de importação e de
utilização de divisas. No entanto, ele deverá contribuir em dólares ao orçamento público, contrapartida de seus investimentos serem beneficiados pelo
financiamento estatal. A retenção de recursos em dólares passa por três canais:
os impostos sobre produtos; as contribuições das empresas para a Caja central
de divisas (Caixa central de divisas ou CCD), as contribuições que correspondem aos excedentes de seus balanços de divisas; os pagamentos de salários em
dólares a organismos especializados (entidades empleadoras, intituladas
ACOREC na figura 2) pertencentes aos ministérios de tutela das empresas e
que empregam para elas os assalariados pagando os salários em pesos (a diferença é embolsada pelo Estado).
Os dólares recolhidos pelo Estado são, como os que provêm das remesas,
utilizados para financiar as compras das empresas ditas do “setor tradicional”,
de bens intermediários ou de capital importados e/ou produzidos pelas empresas dolarizadas. Com efeito, nos limites em que são autorizadas pela planificação financeira, essas empresas compram em pesos na CCD, à taxa oficial de
um por um, os dólares que necessitam para pagarem suas compras de bens
intermediários e/ou de investimento. É nesse procedimento de alocação dos
dólares para o setor que funciona em pesos que nasce o mecanismo-chave
para a manutenção do modelo social cubano. Com efeito, contabilizando suas
compras em dólares, cerca de vinte vezes mais barato do que ao seu valor de
mercado, as empresas desse setor podem vender seus produtos a preços muito
mais baixos, o que eleva o poder de compra dos salários no mesmo montante.
Então, a dolarização permite substituir, nesse caso, os antigos subsídios orçamentários para essas empresas por subsídios “monetários”, passando pelo jogo
do duplo regime de câmbio interno. Além disso, quando elas vendem sua produção ao setor dolarizado, as empresas “pesificadas” são beneficiadas por esse
sistema de subsídios, pois elas não têm que repassar o efeito sobre o consumidor final via preços.
Em resumo, o procedimento de dolarização escolhido consistiu em dolarizar uma parte da economia, submetendo a uma restrição financeira a parte
não dolarizada que foi mantida, em larga medida, conforme o modelo social
revolucionário de repartição igualitária da riqueza. Em contrapartida, o novo
sistema monetário submete a economia não dolarizada ao ritmo dos ingressos
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e da captação estatal de dólares e, portanto, em grande medida, ao crescimento
e ganhos de produtividade da economia dolarizada, assim como aos ingressos
de capitais estrangeiros. Encontra-se, então, nesse segundo momento da
dolarização relativo à produção, um traço já presente em sua primeira etapa,
relativa ao consumo, a saber: uma dependência de seus efeitos favoráveis aos
fluxos externos, que o governo cubano não controla. No entanto, isso não impede que ele imprima sua marca sobre o sistema monetário — o duplo regime
de câmbio — para conformar, aos seus objetivos e para respeitar os valores
que o legitimam e condicionam a reprodução do regime político, o jogo dessa
determinação externa sobre a economia doméstica.
Essa marca, pode-se mesmo falar de um selo que exprime uma soberania,
destaca-se da figura 2, que tenta representar a arquitetura institucional da economia cubana dolarizada. Ali se distinguem três zonas monetárias (dólar, peso
conversível e peso) e três esferas econômicas (setor produtivo e comercial
“emergente” funcionando com o dólar e peso conversível; setor produtivo e
comercial “tradicional” funcionando com o peso e o dólar; e o setor de consumo doméstico funcionando com o peso, o peso conversível e, somente para
uma parte da população, igualmente com o dólar). Essas esferas têm sua própria lógica, mas também mantêm, através da mediação das moedas que nelas
circulam, interdependências que tomam a forma de regimes de câmbio (regime oficial e quase-oficial do peso e regime do peso conversível). No centro
dessa configuração da sociedade cubana, vista sob o ângulo monetário-econômico, assenta, enquanto grande mestre de cerimônias tentando assegurar a coerência e manter o dinamismo dessa sociedade fragmentada, o Estado cubano
sob suas três faces: do Orçamento em pesos, da Caja Central de Divisas
(geminado ao Banco Central) e de produtor de serviços públicos não mercantis.
Destaca-se dessa descrição que a dolarização à la cubana não é redutível
às suas formas “padrão” que se pode encontrar em outros países da América
Latina. Se a extrema sofisticação do sistema instituído mostra bem a capacidade de inovação institucional que os dirigentes cubanos foram capazes de provar, a análise econômica coloca, entretanto, em dúvida sua eficácia no longo
prazo. A esse propósito, o debate, além das divergências que podem apresentar
mais particularmente os economistas cubanos de Cuba, tende a preconizar uma
reunificação monetária que restaure a “verdade” dos preços. Apesar disso, podese compreender, os limites que o regime opõe ao desenvolvimento dos mercados se analisarmos de um ponto de vista antropológico os espaços sociais que
desenham as regras de conversibilidade. O caráter simbólico da moeda explica, como se verá depois de apresentado o debate econômico, o paradoxo aparente de uma dolarização que preserva a soberania monetária.
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A dolarização na prática: impacto econômico e social
A maioria dos observadores concorda que a dolarização permitiu uma
recuperação econômica que pode ser considerada como espetacular. De acordo com os dados disponíveis, é indubitável o sucesso das medidas tomadas no
plano macroeconômico. Depois de 1993, a taxa de crescimento do PNB, antes
negativa, tornou-se positiva em um nível anual médio de 3,5%. Se o déficit da
balança comercial passou de -5,6% para -11,1% do PIB, entre 1993 e 1999, e a
taxa de cobertura das importações pelas exportações baixou de 52,3% para
34,1%, de 1996 a 1999, foi porque houve degradação dos termos de troca.
Graças às receitas do turismo, às remesas e aos ingressos líquidos de capitais,
que compensaram a queda das exportações do açúcar, o balanço de pagamentos não ficou menos desequilibrado. O retorno do crescimento seguiu-se à redução do déficit orçamentário, que diminuiu instantaneamente de 30,4%, em
1993, para 2,6%, em 1994, e depois ficou quase estável a esse nível (HIDALGO,
2002, p. 3). Isso, se viu, foi o resultado de uma forte redução das subvenções às
empresas, resultado reforçado pelo crescimento do número dessas empresas
que, em razão da alta de sua rentabilidade, contribuem positivamente para o
orçamento do Estado (71% em 1998 contra 29% em 1993 — CEPAL, 2001).
De um outro ponto de vista, para o saneamento do orçamento realizado durante a estabilização dos preços que passaram, segundo os dados da CEPAL, de
um aumento anual de 204,6%, em 1993, a repetidas quedas de -10,1%, em
1994, -4,7% em 1995 e -25% em 1996, no mercado informal. O índice global
dos preços ao consumidor, publicados depois de 1994, mostra a continuidade
da deflação sobre os mercados legalizados afora um ligeiro aumento em 1997
e 1998, mais do que compensado pelas reduções de 1999 e 2000. (CEPAL,
2001). Assim, segundo H. Marquetti (2001), um novo modelo de crescimento
industrial pôde ser estabelecido graças a um círculo virtuoso entre os diferentes efeitos das reformas: desenvolvimento do mercado interno de divisas, ganhos de competitividade derivados da demanda do setor exportador, aprofundamento da substituição de importações que se acompanha, hoje, de uma política
industrial destinada ao crescimento da produção de bens de capital, difusão da
descentralização da gestão das empresas, enfim, que atenua as restrições materiais e financeiras.
As quedas importantes dos preços de mercado e a revalorização da taxa
de câmbio não-oficial do peso reduziram, por outro lado, as diferenças de renda que haviam crescido enormemente entre 1989 e 1993 entre os assalariados
e os detentores de outros tipos de renda. A parte dos salários no valor adiciona-
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do cresceu ligeiramente enquanto que aquela das rendas não salariais decresceu. Isso se fez apesar do custo do crescimento, muito menor, da diferença
entre assalariados do setor emergente e daqueles do setor tradicional (FERRIOL
MURUAGA, 2001, p. 162-164). A concentração da renda medida pelo índice
de Gini, de 0,22 em 1986, voltou a seu nível de 1953 de 0,55, ao final de 1995
(FABIENKE, 2001, p. 103-104). Ela haveria retornado, em 1996-98, a um
nível de 0,37-0,39 e, se as despesas de saúde e educação forem incluídas, o
índice cai para 0,30 (FERRIOL MURUAGA, 2001, p. 167). O desenvolvimento de incentivos no setor tradicional acentua as desigualdades internas para
esse setor, mas reduz aquelas entre as esferas do dólar e do peso. Por outro
lado, a parte das despesas sociais no conjunto das despesas do Estado e no PIB
não pararam de crescer entre 1995 e 2000: elas passaram de 33% e 20%, respectivamente em 1995, para 43,1% e 22,5% em 2000 (CEPAL, 2001, p. 3839). Este esforço explica sem dúvida porque, a despeito do fato que nos anos
1990 os indicadores demográficos de esperança de vida e de mortalidade infantil continuaram a melhorar, a libreta não permite mais viver que entre dez a
quinze dias, enquanto que antes ela assegurava a subsistência por todo o mês
(ROUX, 1999; FABIENKE, 2001). No total, levando em conta a amplitude do
choque externo, da crise econômica que se seguiu e suas conseqüências sociais, o resultado social das reformas pode ser considerado tão surpreendente
quanto o resultado macroeconômico. De fato, a busca da eqüidade no ajustamento não foi uma simples medida compensatória, foi muito mais uma restrição que conformou o modo de reestruturação econômica, permitindo especialmente salvaguardar o essencial do tecido econômico existente.
A recuperação econômica permanece, contudo, inacabada e a maioria
dos economistas estima que sem uma reforma financeira, a restrição externa
não permite vislumbrar taxas de crescimento mais elevadas do que as obtidas.
Em 1999, o PIB ainda era 20% inferior a seu nível de 1989 (-36% na agricultura e -1% na indústria). Em 2001, ele ainda foi provavelmente inferior, em
cerca de 10%. O processo de reforma, para além de seus sucessos econômicos
e sociais de curto e médio prazo, tropeça, segundo os economistas cubanos e
alguns especialistas internacionais, sobre os limites de mais longo prazo que
se expressam na fraqueza da taxa de investimento e nas restrições do financiamento externo (MARQUETTI, 2001; CEPAL, 2000, p. 238), e o contraste
surpreendente entre a penúria dos meios de financiamento da acumulação (em
dólares) e o excesso de liquidez persistente sob a forma de poupança em pesos,
tudo isso a despeito de uma importante reforma do sistema financeiro.
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É a respeito desses limites que se desenvolveu na Ilha um debate sobre a
viabilidade de longo prazo do sistema econômico e monetário empreendido.
Esse debate tem dois componentes. Um refere-se à natureza do regime de acumulação que a Ilha deve adotar para se inserir vantajosamente na nova ordem
econômica internacional, debate que opõe, de um lado, os partidários de um
novo regime de acumulação intensivo e de um novo conjunto de reformas
estratégicas, necessário, segundo eles, para sair verdadeiramente da crise graças a um “salto de eficácia” (MONREAL e CARRANZA, 2001); de outro os
defensores de uma evolução mais gradual e que consideram que as reformas
dos anos 1990 já desenharam pragmaticamente os contornos de um novo regime de acumulação que se trata somente de aprofundar (GONZALEZ, 1997;
MARQUETTI, 2001). O segundo componente do debate, aquele que nos interessa principalmente aqui, diz respeito ao regime monetário e ao regime de
câmbio, a linha divisória não passa mais, nesse caso, entre os economistas,
mas opõe a lógica discursiva e a visão de mundo que os reúne à lógica social
do político.
Para a maioria dos economistas cubanos, com efeito, é necessário reduzir
a dualidade monetária em seus dois aspectos, dualidade da taxas de câmbio
internas e dualidade das moedas servindo de unidade de conta e de meios de
pagamentos. A dualidade das taxas de câmbio seria de início um obstáculo a
uma verdadeira saída da crise, pois ela teria dois inconvenientes maiores. De
um lado, ela perturba o cálculo econômico tanto do lado das empresas quanto
do Estado e do setor financeiro, criando distorções dos preços relativos. Desse
ponto de vista, a distorção essencial refere-se à “subvenção monetária” engendrada pela aplicação da taxa de câmbio oficial no processo de alocação dos
dólares arrecadados pelo Estado, pois isso torna impossível a distinção entre
as empresas rentáveis e aquelas que não o são, da mesma maneira que ela torna
totalmente opaca a situação real das finanças públicas (HIDALGO, 2002, p.
15). De outro lado, a dualidade monetária torna difícil toda resolução dos
“desequilíbrios monetários” herdados da crise e por vezes reforçados pelo processo de reforma, os três desequilíbrios maiores estão, de um lado, no excesso
de liquidez das famílias associada à concentração da poupança em pesos nas
mãos dos atores do setor mercantil privado; de outro, no excesso de liquidez
das empresas; enfim na existência de uma cadeia de inadimplências entre as
empresas do setor tradicional (HIDALGO, p. 22-26).
Dessa situação, uma reforma do regime monetário, que permitisse reduzir os desequilíbrios monetários, requereria, preliminarmente, que se aproximasse de uma taxa de câmbio única e “realista” (refletindo os preços relativos
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“verdadeiros” segundo o ponto de vista dos mercados). Mas como a eliminação da dualidade das taxas de câmbio gera o risco de conduzir pedaços inteiros
da economia ao desastre, em razão desses desequilíbrios, o sistema monetário
se encontra preso num círculo vicioso que não é possível sair dele sem corrigir
preliminarmente os desequilíbrios. Com esse raciocínio, as soluções vislumbradas consistem em diferentes modalidades de ampliação da esfera do mercado, devendo resultar na “verdade dos preços” e que os atores públicos respeitem as “informações” que esses preços veiculam: reformas estruturais dos
direitos de propriedade e da gestão das empresas (o que remete ao debate entre
economistas, anteriormente citado), mas também reformas financeira e monetária com a introdução de um mercado interno de câmbio, progressivamente
ampliado, para as empresas e ao fim fundido àquele da população (CADECAS);
reconversão das “subvenções monetárias” em alocações orçamentárias em peso
com a eliminação das empresas não rentáveis, com o Estado tomando a responsabilidade da reconversão dos trabalhadores; desenvolvimento de um mercado de instrumentos financeiros para as empresas e para as famílias que, no
fim, iria resultar na fixação das taxas de juros (HIDALGO, p. 29-33). Somente
depois de tais reformas poderia ser instituído um novo regime monetário de
conversibilidade externa como último objetivo. Três regimes de câmbio são
então vislumbrados como viáveis (HIDALGO, p. 33-37): um regime de currency
board, com o peso ancorado eventualmente sobre o euro, regime que teria,
contudo, o inconveniente de ser sensível às tendências recessivas; um regime
de câmbio variável com bandas fixas que tem, quanto a ele, o inconveniente de
ser mais difícil de ser implantado, pois necessita o desenvolvimento de instituições financeiras sofisticadas; enfim esse mesmo regime de câmbio variável
com bandas fixas, mas excluindo o setor turismo, que permaneceria dolarizado
e isolado do resto da economia, com o inconveniente de acentuar a dualidade
econômica.
Essas proposições “padrão” são surpreendentes na medida em que, de
um outro ponto de vista, reconhecem plenamente a especificidade da dolarização
cubana. Apesar disso, como eles identificam a moeda a uma mercadoria e o
regime monetário a uma forma funcional da economia capitalista de mercado,
os economistas em Cuba, como em outras partes, concebem, explicitamente
ou implicitamente, a dolarização como um simples processo de acompanhamento da abertura ao mercado internacional, à propriedade privada e ao capital estrangeiro, e então como a premissa de uma transição inelutável da Ilha em
direção ao capitalismo. Esta transição, finalmente, não se distinguiria daquela
da Europa do Leste do que por um maior controle político do processo, autori-
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zado pela aprendizagem com as lições tiradas das experiências infelizes provocadas pelas terapias de choque.
O que está em jogo sobre a repartição não pode mais, então, entrar na
discussão dos regimes de câmbio e foi reduzido, como na maior parte da literatura internacional, a uma questão secundária de políticas compensatórias, o
que pode levar ao questionamento do caráter universal dos direitos sociais.
Então, compreende-se por que a posição dividida dos economistas sobre a necessária reforma monetária não encontra sustentação sem provocar fissura do
lado político. Isso é decorrente de uma posição ambivalente. De um lado, é
receptivo ao discurso que visa à restauração de uma moeda nacional forte. De
outro, a dolarização continua a ter seus atrativos: por que ela não poderia continuar a ser mobilizada com sucesso para, como até hoje, conter as repercussões da restrição externa sobre o modelo socialista de repartição?
Esses atrativos da dolarização conduzem a questões sobre as razões do
desinteresse dos economistas cubanos no estudo das condições da eficiência
do princípio da centralização-redistribuição, princípio fundador do socialismo
cubano que, através da política, funciona como uma restrição de ordem ética
sobre o desenvolvimento econômico da Ilha. Um tal desinteresse é ainda mais
chocante quando esse princípio foi largamente renovado nos anos 1990, tomando a forma de uma planificação financeira articulada aos mercados emergentes no quadro da configuração institucional examinada anteriormente. Seria que, confrontada aos problemas técnicos, a profissão teve que recorrer à
caixa de ferramentas imediatamente disponível e se encontrou volens nolens
fechada nas categorias padrão de uma ciência econômica internacional, ignorando totalmente as advertências de Karl Polanyi a respeito das dimensões
políticas e sociais da moeda? Ou é necessário aí ver-se o efeito de uma transformação dos valores na sociedade cubana depois de doze anos de crise e quase tanto de dolarização? A menos que isso reflita simplesmente o fato de que
todo debate sobre a maneira de tornar eficiente uma planificação financeira foi
sufocado dentro do ovo pelos limites colocados pelo regime político com sua
democracia deliberativa e participativa?
Sem dúvida todos esses fatores pesaram simultaneamente, mas nós preferimos atribuir uma ponderação mais forte em favor do último. Estimulando
as qualidades do mercado, os economistas cubanos operam como as elites políticas européias que, face ao impasse no qual a via diretamente política da
construção de uma Europa unida rapidamente se encontrou, mobilizaram a
economia de mercado para contornar o obstáculo. O resultado político equivalente em Cuba é a construção de uma democracia deliberativa e participativa
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se traduzindo em especial no processo de fixação dos objetivos da planificação financeira, isto é, o reconhecimento da iniciativa e da liberdade individual
enquanto valor compatível com o princípio da repartição igualitária das riquezas. Ora, esse desenvolvimento democrático efetivamente se produziu, se viu,
nos primeiros anos de 1990, mas em seguida sofreu um brutal golpe. O apelo
dos economistas ao mercado, à produção privada, à “verdade dos preços” pode
então, por analogia, ser interpretado como o ponto de inflexão econômico pelo
o qual a pressão pelo reconhecimento da iniciativa individual e da participação
democrática faz seu caminho quando a via diretamente política desse reconhecimento é fechada. Esse apelo ecoa no fato que, no novo contexto dos anos
1990, essa pressão da iniciativa individual não pôde ser, na prática, canalizada
pela política, porque na crise, foi obrigada a contar somente com ela para assegurar sua própria reprodução (BOBES, 2000; SUAREZ, 2001a, p. 238).
O que é notável, então, e isso nos conduz a nosso segundo fator explicativo, é que, segundo vários sociólogos e “numerosas pesquisas”, a despeito
desse recurso forçado à iniciativa individual, “os valores criados e promovidos
pela revolução (...) continuam a habitar as consciências”, a maior parte da
população continua “a aderir aos princípios ideológicos da Revolução” que,
eles mesmos, “continuam a ser os mesmos” (SUAREZ, 2001a, p. 238-239).
Esta força dos valores socialistas em Cuba não seria de fato, ao contrário do
que se produziu na Europa do Leste, uma variável-chave para o futuro da Ilha
que os economistas deveriam levar em conta? Vale a pena, por conseqüência,
precisar o seu alcance.
Na crise e na dolarização, os cubanos foram confrontados na prática com
três tipos de problemas no plano das representações e dos valores. O primeiro
levou à injunção da ilegalidade, praticada pela grande maioria dentre eles colocados em situação de “se virar” por todos os meios para sobreviver. O segundo é relativo ao aparecimento de uma nova escala de apreciação do valor das
pessoas, contraditória com aquela prevalecente até então. O último trata da
emergência de um novo grupo social de dirigentes-empresários. A ilegalidade
obrigatória, segundo Mona Rosendahl (2001, p. 99) que pesquisou sobre esse
ponto nos anos 1993-1997, acarretou menos uma ruptura do que uma “suspensão da ética”, em que numerosos cubanos colocaram entre parênteses a moral
sem no entanto romper totalmente com os valores instituídos.
O segundo tipo de problema simbólico está ligado às desigualdades entre
aqueles que têm acesso ao dólar e aqueles que não podem dele dispor. Uma
pesquisa realizada no início de 2000 indica que os valores tradicionais da revolução resistiram muito bem graças a uma desconexão entre economia e éti-
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ca. De um lado, os trabalhadores do setor emergente são objeto de uma valorização negativa sobretudo no plano moral, o que não impede, por outro lado,
que o conjunto dos que responderam à pesquisa julgue necessário, por razões
econômicas, sua introdução, e uma minoria dentre eles desejarem aí trabalhar
(SUAREZ, 2001a, p. 245-246).
Enfim, em relação ao aparecimento de um grupo de “dirigentes-empresários” que seria suscetível de minar o sistema de valores socialistas, uma outra
pesquisa de Juana Suarez (2001b) sobre esse grupo concluiu que o desenvolvimento dos valores individualistas levados pela nova classe dominante não é
inevitável, simplesmente devido ao fato que existe em gestação uma tal classe,
pronta a se formar no caso em que “o mercado ganhasse a batalha contra o
socialismo”. A representação social ainda globalmente negativa do grupo na
maior parte da população testemunha então a incerteza do resultado dessa batalha.
Adaptar o dólar à la cubana?
Nós podemos agora voltar a nossa preocupação inicial relativa ao simbolismo da moeda. Um segundo tipo de raciocínio, mais sociológico e compreensivo, deve então ser mobilizado para compreender que não há um verdadeiro
paradoxo simbólico da dolarização em Cuba na medida em que ela é realizada
num quadro institucional marcado pela preocupação de “lavar” o dólar de seu
caráter imperial de origem e de “branquear” a força corruptora ameaçadora
aos valores socialistas. Em outros termos, o dólar foi adaptado “à la cubana” e
integrado a um sistema institucional e organizacional que tende a mantê-lo à
distância do coração da sociedade e de seus valores de base, o que explica a
preferência das autoridades cubanas pela manutenção da dupla dualidade do
regime monetário e do regime de câmbio; este último é, com efeito, a expressão desse distanciamento.
Essa situação assume todo seu sentido quando a aproximamos daquelas
descritas por diversos antropólogos para outras sociedades e cujo modelo pôde
ser formulado da maneira seguinte: um grande número de sistemas sociais
“dispõem — e na verdade devem dispor — de um espaço ideológico no qual a
aquisição individual é um objetivo legítimo e mesmo louvável, mas onde tais
atividades são contidas numa esfera separada que é ideologicamente articulada, e subordinada, a uma esfera de atividade relativa ao ciclo de reprodução a
longo prazo da sociedade. (...) Que a presença desse espaço ideológico seja
necessário e inevitável resulta do fato que o sustenta no longo prazo, que é
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pragmaticamente e conceitualmente dependente dos comportamentos aquisitivos individuais de curto prazo. (...) Claro, a articulação das duas esferas é
sempre problemática, pois se não se deseja reduzir o ciclo longo no mundo
efêmero do indivíduo, eles devem ser conservados separados (...). Se se deseja
sustentar o ciclo longo pela criatividade e pela vitalidade do ciclo curto, eles
devem também ser vinculados entre eles (...)” (BLOCH e PARRY, 1989, p.
26). Ora, “a possibilidade da conversão entre as duas ordens é numa larga
medida ligada a sua valoração moral. Enquanto o ciclo de longo prazo é sempre positivamente associado com os preceitos centrais da moralidade, a ordem
de curto prazo tende a ser moralmente indeterminada por que ela refere-se aos
fins individuais que são amplamente sem relação com a ordem de longo prazo.
Se, entretanto, o que é obtido no ciclo individualista de curto prazo é convertido para servir à reprodução do ciclo longo, então ele torna-se moralmente positivo (...). Mas há também uma possibilidade oposta (...), aquela de um comprometimento do indivíduo no ciclo curto, que se torna um fim nele mesmo, e
não é mais subordinado à reprodução do ciclo mais longo; ou, mais ainda na
forma de “pesadelo”, o fato dos indivíduos gananciosos que desviam os recursos do ciclo longo para suas próprias transações de curto prazo” (BLOCH e
PARRY, p. 26-27). “Quando o ciclo curto ameaça substituir o ciclo longo,
então o modelo é rompido. É dentro dessas circunstâncias que um instrumento
moralmente indeterminado torna-se qualquer coisa de moralmente carregado
de ignomínia” (BLOCH e PARRY, p. 28).
Evidentemente, segundo esse modelo, o processo de dolarização da economia cubana se assemelha à mobilização de um novo ciclo de curto prazo
destinado a sustentar, através de certas conversões, uma ordem de longo prazo
referido a um cosmos de valores holísticos nacionais e igualitários. A dolarização
do setor emergente estimula a atividade individual aquisitiva e deve permitir o
ciclo longo de se reproduzir, continuando a mobilizar de seu lado os tipos de
transações que o caracterizam, quer dizer a repartição dos bens sobre uma base
igualitária pela centralização-redistribuição estatal. Mas o novo ciclo de curto
prazo das transações mercantis que substituem o ciclo de trocas com o
COMECON está ameaçado, pois é conectada à ordem cósmica da sociedade
americana, e está efetivamente pensada como uma ameaça. Também o processo de reformas que cai sobre o sistema social em três zonas monetárias e em
três esferas econômicas, descrito na figura 2, pode ser visto como a expressão
da conciliação, através do recurso a um simbolismo monetário complexo, de
duas necessidades contraditórias: de uma parte aquela de ativar uma ordem de
curto prazo de transações capitalistas de mercado; de outra, aqueles de conju-
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rar simultaneamente a ameaça antecipada da transformação possível desse ciclo de mercado em uma nova ordem de longo prazo substituindo a antiga.
A dolarização nasceu, com efeito, com a entrada das remessas, e isto é o
elemento o mais imediatamente perigoso para a ordem social estabelecida,
pois afeta diretamente a economia redistributiva que é o coração dos valores
dessa ordem. O dólar deve suportar aqui uma dupla conversão para poder ser
“digerido” pela ordem social dominante. Ele é inicialmente fiscalizado através
das TRD criados para o recuperar (ou as CADECAS logo que um cubano vende dólares contra pesos), depois transformado em peso cubano pelo circuito
das alocações orçamentárias nas empresas onde ele é igualado ao dólar. Além
disso, as TRD e as CADECAS, as organizações de conversão nesse primeiro
circuito compreendendo também as entidades empregadoras que recebem os
salários em dólares e os pagam aos assalariados em pesos cubanos ou eventualmente em pesos conversíveis quando se refere a prêmios. Assim a atividade individual na esfera dolarizada (emprego, bens complementares) está cuidadosamente separada, mas permanecendo ligada com a parcela da economia
doméstica em pesos cubanos; ela é transformada simbolicamente pelo resultado da dupla taxa de câmbio do dólar que permite tanto ao peso cubano quanto
ao peso conversível de lhe ser igual em valor em suas ordens transacionais
respectivas.
Uma segunda transformação relativa à mobilização estatal do dólar na
esfera da produção e da repartição da ordem social de longo prazo vem junto
com o sistema de conversão. O dólar, moeda símbolo da supremacia do mercado, é com efeito submetido a um processo de centralização-redistribuição característico da ordem longa, e submetido a um tipo de nova desmercantilização-fiscalização que opera uma transformação completa de seu significado
original. Melhor, em total contradição com os princípios do mercado que fixam seu valor nas CADECAS, ele é equiparado ao peso cubano no processo de
alocação nas empresas do setor tradicional, o que vem novamente afirmar a
subordinação da ordem do mercado a uma soberania política que toma sua
força na ordem holística de longo prazo. Estando declarado igual ao dólar na
ordem política, enquanto na ordem do mercado ele lhe é inferior, o peso é, por
conseqüência, declarado superior ao dólar. A passagem dos dólares pela Caixa
central de divisas, de procedência da ordem de curto prazo das empresas emergentes, desnuda então esta moeda de sua significação corrupta e desvalorizadora
dos valores dominantes na ordem social de longo prazo. Nesse branqueamento
da cor da origem do dólar, o papel de subvenção monetária das empresas “tradicionais” na manutenção da libreta é sem dúvida um elemento-chave. Mas o
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fato dessas empresas desenvolverem uma atividade dolarizada que permite
alimentar as TRD em produtos nacionais também joga um papel indireto no
processo conjunto de adaptação do dólar; pois ele permite reduzir a parte importada em dólar do consumo doméstico e de melhorar o rendimento do processo de conversão das remessas.
A conversão simbólica operada nesse circuito permite finalmente reintegrar na comunidade nacional a parcela da população ativa na ordem de curto
prazo rompendo a descontinuidade entre o setor emergente e o setor tradicional, sem no entanto os homogeneizar em um quadro puramente de mercado.
As organizações transformadoras do simbolismo monetário inerente ao dólar
são, então, a Caixa Central de divisas, autônoma do Orçamento (em pesos
cubanos), e as empresas do setor produtivo e distributivo tradicional.
Essa desvalorização simbólica do dólar sutilmente organizada pelas autoridades cubanas é um indicador de seu caráter ameaçador para a ordem igualitária e deverá perdurar enquanto ele permanecer. O dólar deve ser repudiado
na sua grandeza imperial, na sua capacidade de promover o individualismo
possessivo, seu poder corruptor e sua imoralidade latente (prostituição, relação com o capital estrangeiro, degradação do capital intelectual da população),
pois são valores negativos na ordem de longo prazo associado simbolicamente
à pureza revolucionária, à grandeza da nação e à altura da cultura. O aspecto
positivo da dolarização tanto para a retomada do crescimento e para o retorno
a um nível de desenvolvimento de menos penúria, como para a reinserção de
Cuba na ordem internacional, da qual ela é estruturalmente dependente, deve
ser por sua vez reconhecido e renegado pelo fato que o dólar não é eticamente
neutro, mas, ao contrário, que nega aquilo que faz a especificidade da ordem
social e simbólica cubana. Isso faz o dólar não parecer intrinsecamente imoral,
contrário à ética nacional, pois ele pode ser pensado como confinado à ordem
de curto prazo, o que poderia explicar a declaração de Fidel Castro citada na
introdução. Ele é moralmente neutralizável desde que somente coabite com o
peso, e que os dois não participem juntos de uma mesma ordem de grandeza.
Para concluir, se pode então se perguntar se o conjunto muito sofisticado
das instituições que se descreveu e que organiza a dupla dualidade do regime
monetário e do regime de câmbio em Cuba é vital para a manutenção da especificidade socialista na Ilha. E se é, ela pode se tornar mais eficaz economicamente e assegurar assim de uma maior viabilidade? Qual poderia ser a próxima inovação, de acordo com o espírito cubano, que traga uma melhoria mais
rápida do destino da população cuja economia interna se ergue exclusivamente da ordem “longa” do peso nacional?
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Uma democratização do Estado que permita uma (re) legitimação, especialmente aos olhos dos economistas, do princípio da centralização-redistribuição e da planificação financeira de distribuição de dólares, assegurando
uma maior transparência das escolhas efetuadas e dos ganhos de eficácia no
plano econômico obtidos graças a essa transparência? A emergência de uma
taxa de câmbio interna única e cujo valor intermediário entre as taxas oficial e
não oficial atuais, fundadas sobre uma retomada da confiança na viabilidade
do novo regime de industrialização que certos economistas cubanos consideram que está já traçado, asseguraria uma redução substancial das desigualdades entre os cubanos com acesso à ordem de curto prazo e aqueles confinados
na ordem longa?
São tantas as questões que permanecem sem respostas, mas que esclarecem o resultado da supremacia monetária sobre a qual se estabelece o impasse
da análise “padrão” dos regimes de câmbio. A dualidade monetária autorizou
ajustamentos interno e externo exemplares em Cuba, permitindo fazer frente
eficazmente ao efeito regressivo sobre a repartição direta e indireta das rendas.
Que ela tenha sido o meio de sair de uma crise de financiamento externo do
crescimento, cujo caráter exemplar escapou dos teóricos da integração financeira das economias ditas emergentes, não impede que em Cuba como em
todos lugares, a dolarização torne o crescimento dependente de um afluxo não
controlado de moeda estrangeira. Cuba não é, a esse olhar, que um caso particular da evolução das formas de dominação monetária que se conheceu em
geral nas economias onde o crescimento depende do financiamento externo.
Mas ela difere de outros países da América Latina, pois a dolarização oficial
não reduziu a capacidade de gerar seus próprios negócios enquanto que a aceitação da dolarização dos ativos financeiros impõe aos Estados, no resto do
continente, a implantação de programas de desvalorização do trabalho para
assegurar a conversibilidade. O caso cubano põe assim em evidência a tensão
entre as regras de conversibilidade que determinam o financiamento do investimento e aquelas que repartem o produto. O resultado dessa tensão permanece, em Cuba como em outros lugares da América Latina, em aberto.
Pois se a soberania monetária que protege Cuba sobre o plano da repartição da riqueza repousa sobre a autoridade carismática conferida ao regime
castrista pela sua defesa das conquistas sociais da Revolução, mudar o resultado de uma crise econômica sobre o terreno, propriamente simbólico, da concepção de soberania monetária defendida pelo poder político, só pode ser solução enquanto os processos simbólicos continuarem a operar, assegurando que
essas conquistas continuem a ser legítimas.
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Cuba, por sua excepcionalidade, esclarece então em que as crises financeiras latino-americanas são antes de tudo crises de soberania da moeda. O
problema da conversibilidade é aqui resolvido, mais bem que mal, se considera-se que o país não tem acesso ao financiamento internacional de longo prazo.
A questão da dualidade monetária é, a esse nível, menos importante do que
aqueles do controle do câmbio e da fixação das taxas de câmbio. Enquanto a
dualidade monetária é em Cuba o resultado de uma forma de planificação financeira, suscetível de evoluir, ela é num regime de liberalização financeira tal
como o concebe o FMI, o fruto da restrição da conversibilidade; o regime da
conversibilidade é nesse caso dependente da desconfiança financeira em relação à sustentabilidade das dívidas, o que retira do Estado toda margem de
manobra em relação à política monetária e o obriga a aceitar a regulação social
que implica a realização de reformas estruturais. O que não é somente uma
renúncia à soberania monetária, mas também à soberania política em matéria
de regulamentação do mercado do trabalho e dos direitos sociais (MARQUESPEREIRA, 2003).
(Traduzido do francês por Rosa Maria
Marques e Paulo Nakatani)
Abstract
The authors are looking forward to analysing a specific aspect of the Cuban
dollarization. This so called phenomenon constitutes a monetary duality. It is to say
that US dollar and Cuban peso, plus an exchange rate duality, which are resulting in
boosting the economy as well in protecting income’s socialistic repartition regulation.
The present analysis is conducted on two levels. It first describes production financing
and repartition of income, which results from a double rate of exchange between emergent
and public sectors. By after analysing the ethical dimension of this conversion system
with regard to both governance orders of these two monetary signs — dollar being
oriented toward short individual merchant activity in opposition to peso which is centred
on long term collective product sharing — it fairly becomes quite possible that no
paradox seams to be evident between a parallel political sovereignty assertion and a
apparent monetary sovereignty renunciation
Key words: sovereignty, money dualism, transition to market, distribution, socialism,
Cuba ethics.
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Referências Bibliográficas
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exchange. in: PARRY, Jonathan; BLOCH, Maurice (ed.). Money and the morality
of exchange. Cambridge-New York: Cambridge University Press, 1989, p. 1-32.
BOBES, Velia C. Los laberintos de la imaginacion. Repertorio simbolico, identidades
y actores del cambio social en Cuba. Mexico: El Colegio de Mexico, 2000.
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