amor - Maurício Garcia

Transcrição

amor - Maurício Garcia
Versos para Olga
e outros poemas
Poesias de Francisco de Toledo Duarte (1881-1978)
Organizado por Maurício Garcia
23/JAN/1999
Prefácio
Quando meu bisavô faleceu, em 1978, eu tinha 17 anos de idade e já tinha consciência de suas aptidões
literárias, afinal já tivera a oportunidade de ler vários de seus poemas, sempre me encantando com eles.
Mesmo após sua morte, não raramente lia e relia seus versos em um material fotocopiado a partir de alguns de
seus manuscritos.
Nunca pude deixar de me impressionar com a forte carga emocional de seus versos. A decisão, assim, de
reuní-los e organizá-los foi sobretudo uma oportunidade ímpar de conhecer mais a fundo sua obra. Com ajuda
de vários de seus parentes, entre filhos, netos e bisnetos, foi possível reunir mais de 50 poemas do autor,
muitos com datação razoavelmente precisa. Optou-se por separar sua obra em quatro fases, para que fosse
possível caracterizar o contexto histórico e pessoal de cada uma. Assim, antes de cada fase foram
acrescentados dados biográficos do autor e informações sobre a época.
A grande maioria de seus versos foram dedicados a sua esposa, Olga, desde os tempos de namoro, no início
do século, até vários anos após sua morte. A carga lírica da poesia de Francisco de Toledo Duarte mostra uma
paixão cega e avassaladora. Versos como “Íntima”, composto quando o autor tinha 87 anos em homenagem à
sua esposa no dia dos namorados, são capazes de emocionar até os mais empedernidos corações.
A poesia de Francisco de Toledo Duarte, antes de mais nada, é um ode ao amor. Aonde quer que se
encontrem, Francisco de Toledo Duarte, nosso querido “Vovô Chiquito”, e Olga certamente estão juntos e
felizes, a zelar pelos seus filhos, netos, bisnetos e trinetos que por aqui ainda passeiam.
Maurício Garcia
Fevereiro de 1999.
2
Sumário
Confissão (Descantes à desgarrada) .................................................................................
Primeira fase
Credo.................................................................................................................................
Só um pedacinho...............................................................................................................
Arranhões ..........................................................................................................................
Sonho gorado ....................................................................................................................
A abelha e a flor ................................................................................................................
Primeira audácia ...............................................................................................................
Em viagem ........................................................................................................................
Último beijo ......................................................................................................................
Dama gentil .......................................................................................................................
Candura .............................................................................................................................
Segunda fase
À Olga ...............................................................................................................................
À minha mulher ................................................................................................................
Mãos .................................................................................................................................
Doce ilusão .......................................................................................................................
Desejo incompreendido ....................................................................................................
Cuidado .............................................................................................................................
Terceira fase
Ao Benedito de Lima Franco Lapin .................................................................................
Anjo inconsciente .............................................................................................................
À Olga, no dia dos namorados ..........................................................................................
À Olga, no dia das mães ...................................................................................................
À Olga ...............................................................................................................................
Íntima ................................................................................................................................
Quarta fase
Oásis .................................................................................................................................
Lembrança da vovó...........................................................................................................
In extremis ........................................................................................................................
À memória da Olga ...........................................................................................................
Revelação ..........................................................................................................................
Estranha solidão ................................................................................................................
Sem Olga ..........................................................................................................................
Ao Durval Emmerich Filho ..............................................................................................
O velho contador...............................................................................................................
Vida ameaçada ..................................................................................................................
A Causa .............................................................................................................................
Censura do coração ...........................................................................................................
A fada e o bom menino .....................................................................................................
Súplica ..............................................................................................................................
Aniversário .......................................................................................................................
Decisão .............................................................................................................................
Esperança ..........................................................................................................................
Carinho incompreendido ..................................................................................................
Glosa .................................................................................................................................
Canto de despedida ...........................................................................................................
3
Versos satíricos
Vejam só ...........................................................................................................................
Burro .................................................................................................................................
Corujas ..............................................................................................................................
Elevador ............................................................................................................................
Coleguinha gentil ..............................................................................................................
Curtas ................................................................................................................................
Traduções
De Trilussa ........................................................................................................................
De Campoamor .................................................................................................................
4
Confissão
Quando eu estava mal saindo da puberdade, recebi um livro de trovas populares portuguesas, pelas quais me
entusiasmei, levando meu entusiasmo ao ponto de passar a copiá-las, isto é, copiar aquelas que lá se achavam
sob o título de “Descantes à desgarrada”. E o fiz, pondo em seguida a cada quadrinha do poeta que se
ocultava sob o pseudônimo de “Azor”, uma das minhas, sob o pseudônimo de “Penca”, por causa do meu
narigão, então muito criticado. Depois, fui tomando gosto e perpetrando outros crimes literários pelos quais
humildemente peço desculpas a algum leitor que por ventura venha a ter.
Francisco de Toledo Duarte
Descantes à desgarrada
Ilusões! Quem dera tê-las
Sem à verdade chegar!
Estrelas! Que lindo é vê-las
Tremo boiando no mar!
Quem dera morrer por elas
Longe do mar e de escolhos;
Tendoo amor por estrelas
Po mar, os teus olhos lindos.
Corações que não servis
Para somente pulsa,
Dizei se o ser feliz
É amar ou não amar...
Não amar é não viver;
Viver, portanto, é amar;
Porém, amar é sofrer...
Quem dera a morte alcaçar!
Foram teus lábios moldura
Onde os meus fui enquadrar;
Quadro assim, com tal doçura
Pouco podia durar,
Porque se os anjos o vissem,
Querde perfil ou de frente,
Talvez o céu preferissem
Contemplá-lo eternamente.
A um msl-me-quer desfolhado
A minha sorte perdi:
“Que por ti não era amado”
Foi a sentença que li.
Qu’importa, porém, meu fado
Se me é dado, por enquanto,
Ver teur rosto idolatrado,
Que me inspira amor tão santo.
5
Se se mudassem as cousas,
Se quem morresse falasse
Auditoria eram as lousas
Sem que ninguem escutasse
Vencedor, alfim, veriam
O mal que hoje me consome
E as lousas só me ouviriam
A repetir o teu nome.
Na fímbria de teus sobrolhos
E de teus cílios sombrios,
Deixei saudades aos molhos
Ficando teus olhos frios.
Por isso, se acaso os fito,
Antegozando a miragem,
Punge-me um mal infinito,
Pois vejo lá outra imagem...
Deus ao fazer-te tão bela,
Mais que bela, irresistível,
Deu-te o condão de uma estrela,
Linda, sim, mas insensível.
Porém, a mim, que assim digo,
Se me afigura outra cousa:
Tenho zelos de um amigo
Que em ti seus olhos repousa...
Com uma e com outra mão,
Segurei-te a cabecinha;
Das nossas bocas então,
Nem soube qual era minha.
É que teus lábios, segundo
Uma vontade de Deus,
Foram postos neste mundo
Para esconderem os meus...
Beijei-te primeiro a boca;
Tu tremeste de desejos;
E pediste ansiosa e louca
Deixasse cair meus beijos.
Então, ainda mais que os sábios,
Por tal eu mereço a palma:
Beijei-te o canto dos lábios,
Levando o beijo minh’alma.
Nada vemos quando amamos
Nem mesmo devemos ver,
Porque se a ver nós chegamos,
Não é amar, é sofrer.
6
Há tanto tempo que vejo
As cousas como elas são,
Que hoje só tenho um desejo:
Reaver meu coração.
Eu quisera ser dotado
De um poder transformador,
Capaz de fazer, querida,
De cada dia uma flor.
O meu primeiro cuidado
Seria logo formar
Co’os dias da minha vida
Um buquê para te dar.
Geme, pois, guitarra, chora,
Chora comigo, porquanto,
Tivemos risos outr’ora,
Agora só temos pranto.
7
Primeira Fase
(até o casamento)
Francisco de Toledo Duarte nasceu em São Paulo, no dia 30 de outubro de 1881, filho de Aloísio Elíseo
Teixeira Duarte. Sua mãe, Brasília de Toledo Duarte, era irmã de Pedro de Toledo, um dos líderes da
revolução constitucionalista de 1932. Cursou o primário no Colégio Delamare e o secundário no Colégio
Macedo Soares. Diplomou-se em contabilidade pela antiga Escola Álvares Penteado. Durante a epidemia de
gripe espanhola (1918) prestou relevantes serviços à Sociedade Vicentina, visitando doentes aos quais
fornecia remédios, alimentos, etc.
8
Credo
Eu creio em Deus e nos santos
Que aos infelizes amparam;
Eu creio nos teus encantos
Que tanto me angustiaram;
Eu creio em todos os anjos
Por seres tu um dos tais,
Mas, sendo embora uns arcanjos,
Roubam a paz dos mortais.
Eu fujo do teu regaço
Como quem foge da chama,
Pois, só concebo um abraço
Se dado por quem nos ama.
Mas, sonho pelo caminho
Julgando, como um sandeu,
Ter meu coração juntinho
Sentindo pulsar o teu...
De assim pensar não me pejo
E creio como ansia louca:
Só há doçura no beijo
Se dado na tua boca!
Se eu creio tanto, persisto,
Em Deus e nas criaturas
Porquê, sofrendo com isto.
Não creio nas tuas juras?
9
Só um pedacinho
Eu sei, donzela, que estes versos, quando
Forem pousar em tua branca mão,
Serão rasgados, ficarão chorando
O amor que, ingênuo, alimentei em vão.
Mas custa a crer que as tuas mãos mimosas,
Que a tua alma e o coração, enfim,
Sinceramente possam dar-me provas
De tanto ódio sem razão assim.
Tu já esqueceste com certeza aquele
Amor jurado sob os péd de Deus;
Rasga, portanto, este soneto; é ele
O tradutor dos pobres sonhos meus.
Peço-te apenas um pedaço dele.
Pois sei que esteve sob os olhos teus.
10
Arranhões*
A minha noiva, por demais formosa,
Era como o botão da linda rosa,
E como tal, é claro,
Mimosear-me com arranhõeszinhos
Não era muito raro,
Pois não há rosa que não tenha espinhos!
É bem de ver que agora eu falo
Nos arranhões que foram o regalo
De meu feliz noivado,
Porque sabeis (e não julgais ser pêta)
Que é um modo figurado
De referir-me aos ciúmes de Henriqueta.
Com modos de homem de mui fino trato,
Eu fui pedir-lhe um dia o seu retrato,
E ela não m’o quis dar.
Por que razão? Não sei. O que é verdade,
O que eu posso afirmar,
É que eu perdi toda a serenidade.
E eu quando a perco torno-me um selvagem:
- Pois, não preciso! - Disse - a tua imagem...
(Temi vê-la zangada
E conclui com aparente calma):
...eu já tenho gravada.
Há muitos anos aqui dentro d’alma!
* originalmente sem título
11
Sonho gorado
Se é doce a vida e se o viver consiste
Nesse desejo de gozar, somente,
Fugindo a gente de tudo que é triste,
Buscando os meios de viver contente;
Se hoje no mundo a quem melhor assiste
Esse direito, creio ser a um ente
Que vive longe e que já não resiste
A estar de ti uma semana ausente;
Se não é crime, pois, se é permitido
A mor ventura dentre as mais venturas
Gozar, felizes, por que não gozá-la?
Eis a razão de ser algo atrevido
Quando ficamos, meu anjo, às escuras,
À noite, a sós, lá no divã da sala...
12
A abelha e a flor
Fui ontem ao prado
Ficando abismado ao ver
Numa flor vermelha
De mimosa abelha o ser;
Pois estava ali
Com tal frenezi de amor,
Qual meigo donzel
Ao sugar o mel da flor,
Que eu longo senti
Outro frenezi em mim,
Tendo desejado assim:
Eu seria a abelha
E a tal flor vermelha, ó bela,
Teus lábios seriam
Que a forma teriam dela.
Oh! Viveria assim
Séculos sem fim!
Da flor qual meigo donzel,
A sugar o mel de amor.
13
Primeira audácia
A noite correu veloz,
Aquela noite fagueira!
A ler o teu bilhetinho,
De gozo chorei a sós...
A ler o teu bilhetinho
Passei eu a noite inteira!
Dizias, com tanta graça,
“Eu córo, meu Deus, eu córo,
Somente por escrever-te!”
Comigo o mesmo se passa:
Somente por escrever-te,
Corando, perdão imploro!
E conste que a profecia
Já quase me enlouqueceu...
Que eu acho divina graça
O que ela me prescreveu:
Que eu julgo divina graça
Unir o meu nome ao teu!
Que um anjo de amor celeste
Meus rogos a Deus conduza:
Suplica tal graça a Deus,
Ai! Tu que do ceu vieste,
Suplica tal graça a Deus,
Que a ti Êle não recusa...
14
Em viagem
Longe de ti, em pleno mar bravio,
Eu peço a Deus para te ver em breve,
Enquanto às ondas, o nosso navio,
A dar combate, com vigor, se atreve.
Esse navio, pequenino e leve,
Estava cheio. A tiritar de frio,
Como se a todos nos cobrisse a neve,
Por não haver mais um lugar vazio,
No tombadilho foramos deitar.
Singra o navio pelo vasto mar,
Longe da terra já, livre de escolhos.
Oh! Todos tremem, menos eu que entanto,
Sinto no peito, a arder, o fogo santo
Lançado ali pelos teus lindos olhos!
15
Último beijo*
Sobre a morte de sua mãe
Dos três aos oito anos, julgava a vida bela.
Mas, não era feliz: estava longe dela.
Depois de nos revermos, deu-me ela um longo abraço.
E eu, de tão feliz, chorei no seu regaço.
A Deus, então, pedi que fosse aquilo eterno,
Pois, só então senti quão doce é o amor materno.
Eu, pobre como Job, sentindo-me ao seu lado,
Julgava-me um ricaço, um rei, um potentado.
Um dia...o coração daquela mãe querida
Deu mostras de querer deixar p'ra sempre a vida.
Chamado, eu acorri - ó Deus! - passara a crise.
"Volta, meu filho, volta, não falta quem te avise
Se a parca retornar com mais vigor e viço
Querendo completar o seu negro serviço."
Fingi voltar, menti, eu nem transpus a porta,
Quis dar-lhe o último beijo, porém...já estava morta.
* originalmente sem título
16
Dama gentil*
Um seu pedido para mim é ordem
E eis-me a seguí-la com o maior respeito
Haverá entes que não se conformem
Com sua própria e maior falta de jeito.
Eu me escondo de quem por aqui passa
E lhe peço que deixe figurar
Para poder a todos agradar
Os seus dotes de beleza e graça
* poema inacabado
17
Candura*
Estavas junto a mim, oh que ventura!
Quando te vi pela primeira vez
Eras o exemplo de maior candura
Ou, se quiseres, da mor candidez
Eram meus versos a tua leitura....
* originalmente sem título, poema inacabado
18
Segunda Fase
(do casamento até aposentadoria)
Trabalhou na Cia. Viação São Paulo-Mato Grosso e foi um dos fundadores da Associação Comercial de São
Paulo, da qual ocupou o cargo de vice-presidente durante a presidência de Clóvis Ribeiro, secretário da
Fazenda do Estado de São Paulo. A convite do próprio Clóvis Ribeiro, ingressou no serviço público como
chefe da Seção de Centralização de Contabilidade do Estado, tendo posteriormente ocupado o cargo de
Diretor do Orçamento do Estado e, mais tarde, como Diretor Administrativo da Assessoria Técnico
Legislativa, aonde se aposentou por limite de idade. Foi também contador e auditor da Faculdade Paulista de
Belas Artes, de 1931 a 1974.
Teve seis filhos: Raul, Roberto, Célia, Dudute, Helena (1910) e Quico.
19
À Olga, no dia em que se queixou de se haver esgotado a minha veia poética
1908 (aos 27 anos)
Tu te queixaste, lirial candura,
De que meu estro abandonou-me e eu trilho
A estrada negra, tendo a vista escura
Perdida a luz que iluminou Castilho.
É que uma estrela resplandece, pura,
Mas, vindo ao sol, este lhe ofusca o brilho.
Assim, meu estro que na dor se apura,
Meu estro inglório, que do pranto é filho,
Tal como a estrela sob a luz solar,
Se ofusca e morre sem que eu tal procure
À luz puríssima de teu olhar.
Ó que essa luz p'ra todo o sempre dure
Vinda do sol de teu amor sem par
E a estrela, - o estro - que jamais fulgure.
20
À minha mulher
09/10/1911 (aos 30 anos)
Essa roseira, dentre as mais formosas,
Era a mais bela, mas não dava rosas!
O jardineiro que delas cuidava,
Muito perito nessas enxertias,
A um forte galho de roseira brava
Mui bem ligou-a. Após alguns dias,
Brotavam rosas de beleza rara,
Pois, desse modo, ela se completara.
Assim, minh'alma, que da tua é escrava,
Tal como o galho da roseira brava,
Foi, por divinos e gentis desejos,
Já quase ao termo de um formoso dia,
Unida à tua por uns doces beijos.
E, dessa estranha e feliz enxertia,
Nasceram rosas que são maravilhas:
As nossas belas e galantes filhas.
21
Mãos *
Quando te dei a mão, ainda criança,
Vi que seria para a eternidade,
Só no momento, não, mas na esperança
De uma crescente, enorme afinidade.
As mãos não têm o dom de atraiçoar,
Elas demonstram o que a alma sente,
Não escondendo como esconde o olhar,
E não mentindo como a boca mente...
Quais pássaros voando com leveza
Num céu sereno, azul, de encantamento,
São como vozes estuantes de beleza,
São refrigério para o sofrimento.
Sei que estaremos para sempre unidos,
Quer no prazer, quer no pungir da dor,
Quais sombras um do outro, confundidos,
Seremos um só ente, ó meu amor.
* originalmente sem título
22
Doce ilusão
Dos bens em cuja busca o homem se empenha,
Na partilha me coube a sorte ingrata:
Só meus cabelos é que são de prata
E o coração - de ouro talvez tenha.
Mas um desejo apenos me maltrata,
Dentre os tesouros que o mundo desdenha
Quiera Deus que em meus dias ainda venha
A ter esta fortuna bem mais grata:
Com meus filhos, a esposa e a mãe querida,
Possa eu viver ainda mais uns anos
Até que se aprontem as valises...
Por eles dar depois a minha vida
E morrer sem amargos desenganos,
Ao menos na ilusão de os ver felizes.
23
Desejo incompreendido
Tenho três filhas crescidas
Por igual extremecidas.
Em meio aos meus dissabores,
São elas os meis amores
E o meu consolo na vida.
São mistos de anjo e mulher,
Sendo uma mais despreendida:
Como ela é a que menos quer,
Quer ser a menos querida...
24
Cuidado...
Há tantos, tantos amores,
Que eu deles formo um conceito:
No mundo só entre as flores
Se encontra um amor perfeito.
Ó filha, tu jamais creias
Dos homens na cantilena,
Que os homens são quais sereias!
Enleva-te a prosa amena.
E eu falo, assim, porque anseias
Ouvir-me, calma...serena...
Minh'alma toda se esvai
Nas frases cheias de encanto
Mas filha, não creias! Ai!
Que eu minto como outros tantos!
25
Terceira fase
(da aposentadoria até a morte de Olga)
26
Ao Benedito de Lima Franco Lapin
Recitado pelo autor no “Diana” em 24/8/42 (aos 61 anos) no jantar promovido em homenagem ao Lapin por
motivo do aniversário natalício.
Quando o Lapin veio ao mundo,
Alguém de saber profundo,
Sem que ninguém lhe pedisse
Não por gracejo ou por manha
Porém, numa língua estranha,
“Sia Benedeto”, lhe disse.
Os circunstantes ouviram
E, com prazer, traduziram
Um voto tal, no momento,
Mas, uns, - porque muitos eram “Bendito sejas” - disseram,
E outos disseram “Sê Bento”.
Bento que fosse, eu bendito,
O certo é que Bendedito
É hoje o Lapin amigo.
Se Lima é, sem defeito,
Também será, desse jeito,
A doce lima de umbigo.
Sua alma é qual lírio branco,
E como o Lapin é Franco
No nome e em tudo mais
Na paz ou entre perigos,
É o mais leal dos amigos
Entre os amigos leais.
É das personalidades,
Que, tendo só qualidades,
Tem um defeito, porém,
É um brasileiro “vermelho”
E, embora sendo Coelho,
Atende só por Lapin.
27
Anjo inconsciente
É um gosto ver-se aqueles avós!
Avós tão cedo, quem tal diria?
Sempre estão juntos, nunca estão sós,
E sempre ao lada a Stela Maria.
Dia após dia, se estão à mesa,
Vovô, vovó e a netinha amada,
Vereis tal cena, tenho certeza,
Pois dir-se-ia cousa assentada.
Vovô lhe leva a comida à boca
Fingindo zanga, mas, sorridente,
E depois fica numa ânsia louca
Caso a Stelinha está inapetente.
Já todos sabem naquela sala
Pois essas burlas são bem notórias
P’ra que Vovô possa alimentá-la
Vovó distraía-a contando histórias...
E assim o casal, que foi forte e bravo,
E por ser forte teve o que quis,
Tornou-se fraco, tornou-se escravo
Daquele anjo que o faz feliz.
28
À Olga, no dia dos namorados
12/06/1961 (aos 80 anos)
Vejo ao fim desta longa caminhada
Em que foste a valente companheira:
De trabalhos foi ela quase inteira,
De prazeres e ócios, quase nada.
A subida foi íngreme, foi dura!
Oh! Teria talvez desanimado,
Mas eu tive a dulcíssima ventura
De te ver, a sorrir, sempre ao meu lado.
Sim, galguei essa estrada sem queixume,
Pois ao ver que subíamos juntinhos
Só sentia, das flores o perfume,
Sem notar o pungir de seus espinhos.
Nossas pernas, se às vezes cambaleiam,
Já não temos por que ficar inquietos;
Outras flores agora nos rodeiam:
Nossos filhos e netos e bisnetos.
Minh'alma, que da tua inda é cativa,
Me obriga a repetir a fé jurada:
Sempre foste e serás, enquanto eu viva,
Minha terna e querida namorada.
29
À Olga, no dia das mães
13/05/1962 (aos 81 anos, em Águas da Prata)
Em meio destas serras sempre azuis,
Distantes da família e da morada,
Bendita sejas tu, ó minja amada,
Bendita pelos dotes que possuis.
Se acaso nesta vida atribulada,
Ocorre uma desdita, não te excluis,
E eu quero que a meu lado continues
Sempre que uma ventura for gozada.
"Bendita sejas tu por que me queres"
"Bendita sejas tu entre as mulheres"
São esses meus constantes estribilhos.
Bem sei que de os ouvir não te enfastias.
Bendite, digo eu todos os dias,
Por seres tu a mãe de meus seis filhos.
30
À Olga
21/12/1967 (aos 86 anos) - no dia em que completaram 60 anos de casados
Ó minha esposa querida:
Conquanto, durante a vida,
Eu tenha experimentado
Prazeres e desenganos,
Bendigo os sessenta anos
Em que vivi ao teu lado.
E digo mais uma cousa:
Bem mais do que aquela esposa
Que eu recebi no altar,
Tu foste, a cada momento,
De ditas ou de tormento,
O meu Anjo Tutelar!
"Tornai-vos bons jardineiros"
"Plantai amor no canteiros"
Do alto, Deus ordenou.
Fui recebê-las, garbosas,
A meia dúzia de rosas
Com que o bom Deus nos brindou.
Que estranhas rosas aquelas,
Tão simples e tão singelas...
Têm olhos para nos ver,
Têm coração, para amar;
Ninguém as pode passar
Na arte de bem querer.
De humano, têm as feições;
De santos, os corações
De onde a maldade não sai.
E seguem, sem desatino,
O tal preceito divino:
"Crescei e multiplicai"
Elas de fato cresceram,
Humildes, obedeceram:
Proliferaram de fato
Isto é uma cousa sabida
No árduo problema de vida
Já estão no segundo ato.
Façamos, Olga, uma prece,
Pois Deus de nós não se esquece
Nos bons e maus momentos.
São preces bem fervorosas:
Benditas sejam tais rosas,
Benditos os seus rebentos!
31
Íntima, no dia dos namorados
12/06/1968 (aos 87 anos)
Se há no mundo quem queira por à prova
Meu amor - Olga minha - por você;
Se há quem queira fazer-me um Casanova
A despeito da idade em que me vê;
Esse alguém, com certeza, se equivoca
Supondo-me um Dom Juan dos de maloca.
As agruras da vida não me atingem,
Nem as dores dos dias mal passados.
Mas, eu sinto uma espécie de vertigem
Com a poeira dos sonhos malogrados.
Porém, nada me faz entritecer
Se um tesouro de amor eu tenho em casa:
Nem a neve caída em meus cabelos,
Ou o desprezo votado aos meus desvelos
Conseguiram sequer arrefecer
O calor de paixão que ainda me abrasa.
32
Oásis
Em seu passo ligeiro, saltitante,
Ela corre por todos os recantos
Não podendo parar um só instante.
Seus temores, seus sustos, eram tantos
Que a faziam fugir do próprio lar
Em busca de um refúgio sossegado.
A despeito de tudo combinado
Seu desejo era os dias encurtar,
Fazê-los escoar rapidamente
Naquela agitação cotidiana;
Quizera exterminá-los de repente,
Deixando uns dois ou três só por semana.
A calma vindo então a dominá-la,
Passava ali sonhando horas inteiras
No canto meio escuro de uma sala.
Até sombras saíam sorrateiras
P'ra deixá-la sozinha, em devaneio
Pois só era feliz naquele meio.
33
Quarta fase
(após a morte de Olga)
Faleceu em 4 de novembro de 1978, aos 97 anos de idade.
34
Lembrança da vovó
1968 (aos 87 anos)
A praia estava cheia e junto a mim,
Um garoto de menos de seis anos.
Ele era um verdadeiro querubim
Dos raros entre nós, seres humanos.
"Vem brincar, vem brincar aqui, meu anjo"
(Minha voz eu enchia de bondade)
"Vem brincar, vem pular com este marmanjo"
Parecia que eu tinha a mesma idade.
Afinal convenci-o, ele chegou-se;
Muitas horas enchemos o cenário,
Ele, com sua voz, que era tão doce,
Eu, com o vozerão de otogenário.
Por fim, ele aos seus ali se junta;
Mas vendo que eu ficara triste e só,
Ele volta a correr, e me pergunta:
"Porque você não veio c'oa vovó?"
Nada soube responder. Eu nada disse.
Como alguém que se sente mal disposto
E vê sumir a terra em que descansa
Com medo de que alguém assim me visse.
Pondo as mãos e a toalha no meu rosto,
Desandei a chorar como criança.
35
In extremis
1968 (aos 87 anos)
Fito teus olhos, com amor sem par,
E eis que sorrio e tu também sorris;
Tu não evitas esse meu olhar
E isso me basta para ser feliz.
Mas tudo é sonho. É sonho e nada mais.
Acordado é que a mente se povoa
Dessas cousas falazes, irreiais,
Que nos fazem supor que a vida é boa.
Se acordado, a sonhar eu me disponho,
E a vida me parece um céu aberto,
Eu bendigo esta vida quando sonho
E passo a maldizê-la se desperto.
Há uma cousa somente que eu aspiro:
Deste mundo nos últimos compassos,
Exalar o meu último suspiro
Sentindo-te, amorosa, nos meus braços.
36
À memória da Olga
Ao sentir o raiar de cada dia
E à noite, quando fujo para o leito,
Quero ter a ilusão, o dom perfeito
De ter a ver qual em vida eu sempre via.
O retrato em que tu sempre sorris,
Parece segredar-me um não sei quê,
Que não se ouve, também que ninguém vê
E que me faz cuidar que sou feliz...
De tal sonho este mundo me desperta,
Volto à vida real, que me maltrata,
Porquanto o coração me desacata
Dizendo que a viver já não acerta...
37
Revelação
Há tantos anos seu rosto encanta,
E custa a crer que ante beleza tanta
Eu me extasie e não perca a cabeça
E ao contemplá-la, deste mundo esqueça...
Sua voz, soando como um acalento,
Põe um pausa no meu sofrimento.
Sendo eu feliz, somente porque a vejo,
Dá-me vontade de furtar-lhe um beijo.
Mas, tudo passa e dos anos felizes
Só restam n’alma muitas cicatrizes.
Seria tão bom! Seria tão doce!
Tê-la junto a mim, onde quer que eu fosse...
Ela a meu lado, como uma rainha,
Sempre no seu reino, ... mas somente minha!
Eis que só lembro aquilo que perdi
Porque...só hoje é que eu a conheci...
38
Estranha solidão
Neste último quartel de minha vida
Algo ocorre de estranho, de anormal:
Deixo a parte da vida já vivida,
Corro em busca do bem e encontro o mal.
Quero ver a meu lado os bem queridos
Sob as luzes de todos os matizes,
Sem que tenha de ouvir os seus gemidos,
Qual se fossem um bando de infelizes.
Entretanto, se deles eu me acerco
Pouco a pouco vão eles se afastando;
Nesses invios caminhos eu me perco
Cumprindo o meu destino miserando.
Nessa análise, às vezes, me aprofundo
E não sei porque sofro tanto assim.
Eu me sinto sozinho neste mundo
E bem mais se te vejo ao pé de mim...
39
Sem Olga*
Inclina o corpo, recosta-o na cadeira;
Deixa o peso ir caindo por igual.
Assim, eu viveria a vida inteira
Revendo essa figura angelical.
Essa é que seria a verdadeira,
A vida a ser passada sem o mal:
Eu, perto de ti - simples mortal;
Tu, junto a mim - sem ciumeira.
No entanto, tudo agora é diferente:
Jamais eu te verei juntinho a mim
Embora a te adorar perenemente.
Minha vida verei correr assim:
Lembrando-me de ti constantemente
Bem pouco - minha vida está no fim.
* originalmente sem título
40
Ao Durval Emmerich Filho
Em retribuição ao seu lindo soneto
31/10/70 (aos 89 anos)
Tu te sentes feliz como meu neto?
Meu viver, em contraste, é fecundo:
Se vivo como um pária neste mundo
Que direi de uma tal prova de afeto?
Em questões de “querer” não me aprofundo
Nem quero vir a ser o predileto;
Mas, vindo a ser o avô por um decreto,
Quero ser o “primeiro” e não o segundo.
Agiste com um verdadeiro amigo;
Então, repara bem no que te digo,
Porque gosto de ser bem positivo.
Num ponto, com certeza, não me engano:
Em sendo teu avô - eis que me ufano
Embora seja apenas adotivo.
41
O velho contador*
1971 (aos 90 anos)
O velho contator, nonagenário,
As faces amiúde contraia
C'oas dores cruciantes que sentia
Mais fortes do que aquelas de ordinário.
O netinho adorado ali se via
Contando nas continhas de um rosário
As orações contidas num breviário
E que ele com fervor lia e relia.
As dores foram vindo num crescendo
E ele fugiu delas não podendo
Aceita ver seu fim nesse retiro.
E mostra-se ainda e sempre, conformado
Um beijo recebeu do neto amado
E exalou o seu último suspiro.
* originalmente sem título
42
Vida ameaçada*
A vida ameaçada que desfruto
Faz-me prever a morte ali por perto
No entanto, quando deito e me desperto
Julgo estar vendo um saboroso fruto
Esse fruto quisera para dar-te
Há nele muito amor, sabor e arte
Mas tu és ou raivosa ou distraída
O que torna um inferno a minha vida
* originalmente sem título
43
A Causa
Agora que eu dispunha-me a escrever
Eis-me tolhido por forças estranhas.
Muito mais fortes do que meu querer.
Tento valer-me de artes e de manhas,
Mas, tudo em vão: não tenho mais poder.
Idéias ainda tenho, mas tacanhas,
Que tomo por tolices e, tamanhas,
Capazes de fazer-me enrubecer.
Eu devo conformar-me com a idade,
Fugindo de causar hilaridade
Àqueles que me virem hoje assim.
Bem poucos poderão considerar
Que os faço deste modo gargalhar
Por que já me avisinho de meu fim.
44
Censura do coração
Mal chegado o final da madrugada,
Começa para mim uma agonia
Pois sinto, numa angústia prolongada
Meu penoso sofrer de cada dia.
Recorro então ao sonho, onde sepulto
O mal que me crucia, que me maltrata
E a dor que em meu rosto se retrata
Os sonhos que dos outros eu oculto.
Forjados são por mim com tanto zelo,
E acabam quase sempre em pesadelo.
Em seu gesto de augusto soberano,
O coração, solene, assim me diz:
"É triste, deplorável, desumano,
Que precises sonhar p'ra ser feliz."
* originalmente sem título
45
A fada e o bom menino
1970?
Você conhece uma fada?
Pois eu conheço uma delas.
Como é exigente a malvada:
Espia pelas janelas,
Espia em todos os cantos,
E depois disto, ela exclama:
- "Não quero que sejam santos,
Mas quero ver bons meninos.
Corre a buscá-los, senão...
Eu corto-te o narigão."
Com medo, sai correndo,
Mas voltei logo, dizendo:
- "Em vez de trazer diversos
Não posso trazer um só?
Os outros estão dispersos.
Ó fada, de mim tem dó!"
- "Um só?" - diz ela - "Vejamos.
Ele é bom, inteligente,
Sabe as lições que passamos,
É dócil e obediente?"
Eu retruquei: "Isso é pouco!
Esse menino é um portento,
Estuda tal como um louco
É um verdadeiro talento!
Educação exemplar;
No que toca aos sentimentos
Eu nem devia falar,
Mas digo em poucos momentos
Ele os tem tão delicados
Que cativa toda a gente.
Tem todos os predicados!
E digo orgulhosamente:
Esse prodígio de gente,
Esse menino sem vício
É o meu amigo Maurício."
46
Súplica
Agora que vejo aqui
Alegres e sorridentes,
Mues amigos e parentes
Com os quais sempre vivi.
É tal a satisfação
Que experimento com isso
Que sinto no coração
Com mais vigor, com mais viço.
Quizera bem mais ainda:
Agindo sem contratempo
Quizera parar o tempo
E a noite tornar infinita.
Sabendo quanto vos quero,
A este pensar dai guarida:
Fazei-me esquecer da vida
Que é tudo quanto mais espero.
47
Aniversário*
1974 (no dia em que completou 93 anos)
A todos que aqui vieram
Somente p'ra me saudar
Tenho a dizer, que já eram
Os santos do meu altar
E para ser bem exato
Nas provas de gratidão
Devo dizer, que sou grato
A todos, sem exceção.
* originalmente sem título
48
Decisão
1974 (aos 93 anos)
Eu te vi, quando estavas à janela
Estando por tal forma decotada
Que se diria estátua fria e bela
Bela, sim, mas de todo inanimada.
Eu deploro por ti, tal proceder
Lastimo tua falta de pudor
Eu bem sei, aliás o que fazer...
É matar de um só golpe o meu amor
49
Esperança*
(ao redor de 1975)
Eu tenho, pelo menos, esperança
De ver o Mundo caminhar em paz
De ver o amor nascer de uma criança
E o repouso que a morte traz...
* originalmente sem título, poema inacabado
50
Carinho incompreendido
A convivência faz com seja cimentada a amizade de dois entes unidos pelo matrimônio, assim como muitas e
muitas vezes separa casais que há pouco tempo, perante Deus, juraram amor eterno. Vivi sessenta e um anos
unido à Olga e ambos queríamos que nossa convivência fosse ininterrupta e duradoura, pois, graças a ela,
nosso amor era cada vez mais intenso e cada vez mais puro. Deus quis chamá-la para junto dele e eu,
submetendo-me à sua santa vontade, vivo hoje só, a despeito de minha numerosa prole. Não se julgue que
estou abandonado pelos meus. Eles me cercam amiúde e dão-me inúmeras provas de amizade. Mas há
momentos em que eu fico inteiramente só. Não me queixo. Essa solidão me é grata. Aproveito-a com
satisfação para recordar os momentos felizes, os momentos de ventura. Estes casos fazem com que eu sofra
outra vez, mas esse sofrimento me é grato e eu quero suportá-lo sozinho, ninguém mais deve participar desse
sofrimento, do qual tenho ciúmes com se tratasse de um prazer indivizível. Os meus vivem a ralhar comigo a
cada passo, com se eu fosse um menino travesso, irriquieto. Entretanto, sou nonagenário. Quem sabe se,
apesar da lucidez que, mercê de Deus, ainda desfruto, já atingi a segunda infância? Quem sabe se procedo
menos sensatamente? Não. Do que eu preciso, do que estou sequioso, é de um bocado de carinho, cousa que
já ninguém me dispensa. Esse carinho, que faria esquecer todas as mágoas, que me transportaria a um mundo
totalmente diferente daquele em que vivo, ainda não foi entendido por aqueles que me querem, por aqueles
que tanto me agradam. Ainda não aprenderam esse carinho que me transportaria para mais perto de Olga...
51
Glosa
"Ó bom Deus, muito obrigado
Por tudo quanto me deste."
Por ti sou sempre lembrado,
Por ti, que és ente celeste.
O amor aos entes queridos,
Poesia das madrugadas,
Chego a ficar sem sentidos
Nos braços das bem amadas.
De culpas sou perdoado
(É isto que tu quizeste)
Ó bom Deus, muito obrigado
Por tudo quanto me deste.
52
Canto de Despedida
Ao dormir no mesmo leito qu’ele sofria e sonhava
Quis sofrer da mesma forma e senti-lo junto à mim
Sem pensar que fora embora, que seu sol inda brilhava
Qu’eu podia inda afagá-lo com meus braços até o fim.
E num sono tão gostoso, sentindo seu bafo quente
Esqueci-me da tristeza que envolveu a nossa terra
Pra sentir o mesmo encanto com que rodeava a gente
No amor, na sua ternura, na nobreza que se encerra
Quero vê-lo eternamente junto à nós com seu sorriso
Quero tê-lo no meu peito c’oa saudade que é doída
Sua lembrança, seus exemplos. - Nova vida eu diviso
Dessa árvore frondosa com sua sombra abençoada
Cobrindo toda a família sempre alegre e reunida
Na saudade que recorda a pessoa mais amada
O sol de sua vida
53
Versos satíricos
Poemas satíricos curtos, escritos à mão, puderam ser encontrados vários. Muitos são para se referir a casos do
cotidiano e são de um humor sutil e inteligente. Como muitos deles não puderam ser datados adequadamente,
optou-se por reuní-los em um único capítulo, à parte das quatro fases do autor.
54
Vejam só
Um casal de pombinhos arrulhava
No beiral da casa da minha avó;
O pombinho, ciumento, não deixava
A pombinha um momento ficar só.
Vejam só, vejam só,
Que pombinho ciumento e desalmado,
Vejam só, vejam só,
Procedia como muito homem casado....
Certo dia, por traz de uma janela
O pombinho arrulhava, vejam só...
A pombinha, porém, não era aquela
Do beiral da casa da minha avó...
Vejam só, vejam só,
Permiti que eu no caso me interponha.
Vejam só, vejam só,
Que pombinho ciumento e sem vergonha.
Neste mundo onde há tanta peçonha
Também há muitos homens sem vergonha.
55
Burro*
Serei burro ao quadrado unicamente?
Agradeço muitíssimo a Vossência.
Pois há burros no mundo - diz um Lente Elevados à última potência.
P'ra que eu turre p'ra sempre como turro,
Há um conceito que muito me enaltece:
O dos burros, senhora, o menos burro
Aquele - com eu - que se conhece.
* originalmente sem título
56
Corujas*
Corujas de vida obscura,
A vossa sorte nos diz
Que a verdeira ventura
É não tentar ser feliz
* originalmente sem título
57
Elevador*
Ó vizinhos das alturas,
Tende piedade de nós;
Somos pobres criaturas
Inquelinos como vós.
Não prendais o elevador
Mais do que o tempo preciso;
Será prova de juízo
E, para nós, um favor.
Grande favor, já se vê,
Aos sairdes do ascensor,
Apertai o botão "T"!
* originalmente sem título
58
Coleguinha gentil
Nas prosinhas costumeiras
As colegas gritadeiras
Não queira sobrepujar.
Nesta sala - não se esqueça Por incrível que pareça
Há quem queira trabalhar...
59
Curtas
Meu umbigo eu não desatarracho
Se ele cai da barriga eu não acho.
Mandei a minha Maria
Robustecer-se na aldeia.
Foi de barriga vazia,
Voltou de barriga cheia.
A empregada lá de casa
Botou fogo no avental.
Ai, se os bombeiros não chegam
Queimava-se o principal.
Tenho uma força inacunda,
Por isso não desespero.
Meto dois dedos na boca,
Não rasgo porque não quero.
60
Traduções
Francisco de Toledo Duarte fez algumas experiências na tradução de poemas de autores estrangeiros. Nesta
obra, puderam ser compiladas traduções de dois poetas europeus: Trilussa e Campoamor.
Trilussa, pseudônimo do poeta italiano Carlos Alberto Salustri (1873-1950), ficou famoso em seu tempo por
suas fábulas humorísticas como “Homens e Animais” (1908) e “Lobos e Cordeiros” (1919). Neste ensaio, o
autor traduz três poemas satíricos de Trilussa: “Leilão de Consciências”, sobre a falta de consciência à sua
época, “Legítima defesa”, sob a defesa aos ataques de sedutores e “A Diplomacia”, sobre um exemplo de
Trilussa para o uso da diplomacia.
Ramón de Campoosorio (1817-1901), conhecido como Campoamor, foi um poeta espanhol, autor de poesias
realistas com características ora ingênuas, ora picantes. Autor de “Doloras” (1846), “Pequenos poemas”
(1874) e “Humoradas” (1886). Aqui, o autor traduz alguns versos desta última obra.
61
Trilussa
Leilão de Consciências
Quem quisesse comprar uma consciência
Lá acharia de todos os matizes.
“Vinde ver, porque aqui serei felizes,
Pois, os preços não temem competência...”
“Restos de uma falência...” E o camelô
A mala que trazia escancarou.
“Só não crê quem não vê. Se alguém procura
Consciências políticas, aprova
Uma de pouco preço, quase nova,
Feita de guta-percha da mais pura,
De ideiais elevados, garantidos,
Adaptáveis a todos partidos.
Temos uma de elástico santista,
Adequada a qualquer amigo urso,
Cozida com um fio de discurso
De um membro do partido comunista,
Repleta de promessas e louvores
Capazes de enganar trabalhadores”.
“Est’outra é ára dos bons republicanos:
Tem fonógrafo aposto, de tal sorte,
Que um dia toca o hino, noutro a morte
Da república amada há tantos anos.
Destarte, poderão fazer folia
Sem, contudo, abalar a monarquia...”
“Eis aqui! É consciência nacional!
É toda pintadinha de má fé,
Com um tirante de elástico que até
Vai desde o Vaticano ao Quirinal!
É a última. Quem leva este portento?
Estou pronto a acabar o sofrimento.”
Foram, todos dali saindo a êsmo
E o camelô também com a mercancia,
Foi pregar numa outra frequesia.
E cada qual falou consigo mesmo:
“Para que hei de comprar tal bagatela
Se a gente pode bem viver sem ela?”...
Legítima defesa
P’ra mim, quando a mulher tem certeza
De ser honesta verdadeiramente,
Vítmia que seja de um valente,
O pões no seu lugar sem tibieza.
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Faz carranca e se pões de venta acesa,
Estrila, morde, arranha, chama gente,
Mas a honra defende tão somente
Com os meios que lhe deu a Natureza.
Mas aquela, que fez? Tomou um trabuco
Daqueles verdadeiros e ... que acertam
E matou o sedutor, um mameluco.
A Marquesa, porém, sentenciadora:
“P’ra fugir dos rapazes que me cercam
Precisaria um metralhadora!”
A Diplomacia
Definiremos a diplomacia
Dizendo que ela é útil às nações
Que querem manter boas relações
Sem expor sua grade felonia.
Diplomático o modo, alguém diria,
De embrulhar o parceiro em condições
De esconder suas negras intenções
Com um jeitinho de fisionomia.
Por exemplo, dizendo claramente:
“Tua mulher, ouça bem, procede mal”.
Sincero serei eu, mas imprudente.
Mas se eu disser: “Tua esposa é uma lunática...”
Cornudo continuas, tal e qual,
Mas t’o direi em forma diplomática.
63
Campoamor
Humoradas
Seremos sempre os mesmos, mortais,
Por toda a parte, em guerra ou nos brinquedos:
Os brincos infantis são sempre iguais,
Como o são da velhice os sonhos ledos.
***
Já sei, já sei e duvidas não ponho:
Sonhaste em resistir, porém... foi sonho.
***
Sentindo novas, ternas emoções,
Provaram-me tuas graças feiticeiras
Que as nossas derradeiras ilusões
Em tudo se assemelham, às primeiras.
***
O amor se toca as raias da loucura,
Acaba mais em ódio que em ternura.
***
Perguntas: - “Que é o amor?” - É um desejo
Em parte terrenal e em parte santo.
Um “quê” que não se exprime e que, entretanto,
Eu sinto sempre, que te vejo.
***
As graças foram três. Não se presuma
Que o número é maior presentemente.
As graças eram três antigamente,
Depois que nasceste, há apenas uma.
***
A um tempo nos deleita e nos maltrata
A linda e encantadora Luzita:
Se acaso elas nos olha, eis que nos mata,
Porém, se volta a olhar nos ressuscita.
***
Oh! Traze com recato, sob um manto,
Teus dotes de beleza e rende culto,
Assim, a quanto deve andar oculto,
Que, sem esse mistério, adeus encanto!
64
O prêmio da virtude
Não coube de virtude o prêmio àquela
Que em paz de consciência e santa calma,
Viveu com uma candura de donzela,
Entregue ao meigo esposo em corpo e alma.
Porém o alcançou mulher casada,
Que em luta com o amor e ânimo fote,
Por outro loucamente apaixonada,
Foi fiel a seu marido até a morte.
Ser fiel sempre que o queiras é teu lema;
Porém, quererás sempre?...Eis o problema.
Boas pecadoras
Tão pecadoras e à casa do Senhor
Tu vais rezar, muito contrita e calma!
E eu digo então: “Dos males o menor:
Se ao diabo o corpo, dás a Deus a alma”...
Como sempre
I
Oh! Quanto ele a amava!
E ela ria, enquanto ele chorava.
II
Depois de um belo dia...
Enquanto ela chorava, ele é que ria!...
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