ANTÓNIO LOBO ANTUNES: ORIGAMI ESPÁCIO
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ANTÓNIO LOBO ANTUNES: ORIGAMI ESPÁCIO
ANTÓNIO LOBO ANTUNES: ORIGAMI ESPÁCIO-TEMPORAL [ANTÓNIO LOBO ANTUNES: SPATIOTEMPORAL ORIGAMI] by BRUNO GONÇALO NOGUEIRA SALES (Under the Direction of Robert Henry Moser) ABSTRACT António Lobo Antunes is one of the most well know and most researched Portuguese authors of our age. Yet, little has been published about the unique position that space occupies in his works. This study examines the unique characteristics of his evocation of space in his narratives, and demonstrates the role that this element plays in the construction of a profoundly mnemonic narrative. Through a critical analysis of two of his novels, A ordem natural das coisas (1996) and Não é meia noite quem quer (2012), this study identifies the vast array of stylistic techniques and leitmotifs that António Lobo Antunes reverts to in the elaboration of the aforementioned relations. In this process, concepts like pluridimensionality, spatiotemporal transgression, and relational reciprocity are surveyed. INDEX WORDS: António Lobo Antunes, Geocriticism, Topoanalysis, Bertrand Westphal, Gaston Bachelard, Portuguese Literature, A ordem natural das coisas, Não é meia noite quem quer ANTÓNIO LOBO ANTUNES: ORIGAMI ESPÁCIO-TEMPORAL by BRUNO GONÇALO NOGUEIRA SALES A.B., The University of Georgia, 2000 A Thesis Submitted to the Graduate Faculty of The University of Georgia in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree MASTER OF ARTS ATHENS, GEORGIA 2013 © 2013 Bruno Gonçalo Nogueira Sales All Rights Reserved ANTÓNIO LOBO ANTUNES: ORIGAMI ESPÁCIO-TEMPORAL by BRUNO GONÇALO NOGUEIRA SALES Electronic Version Approved: Maureen Grasso Dean of the Graduate School The University of Georgia May 2013 Major Professor: Robert H. Moser Committee: Susan C. Quinlan Luis Correa-Díaz iv DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à minha avó paterna, Edwiges da Conceição Rosa. Foi no seu lar que as minhas primeiras memórias se formaram. Ainda a oiço, “Anda cá Bruuuuuno, moço dum cabresto que não pára quieto!” e como sorrio. Pão com manteiga e açúcar amarelo. Costeletas de porco com ovos estrelados e batatas fritas. Bolo de bolacha! E outras tantas infindáveis e indeléveis receitas de amor. Um amor que carrego dentro de mim e o qual me transporta, que nem um casulo, perante as sucessivas metamorfoses que demarcam os tantos eus que sou, fui e serei. Que esta seja outra maneira de olhar para céu e indagar sobre a divindade das estrelas, como me recontou que eu fazia quando eu era criança. Desta vez, porém, olho para o infinito, cheiinho de saudades, e procuro-a, avó, encontrando-a, digo-lhe, este é para si, avó! v AGRADECIMENTOS A gratidão do mundo inteiro não chega para exprimir o que sinto em relação à minha mãe, Fernanda. Ainda assim, fica mais esta tentativa de saldar um saldo que sei ser impossível de saldar… para ser sincero, nem sei se realmente o desejo saldar, mas agrada-me tanto corresponder. Obrigado mãe, por teres sido sempre uma constante nesta equação cheia de variáveis a que chamamos vida. Amo-te! Ao meu pai, António, cujas palavras que num dia distante tanto me assustaram, noutro dia se tornaram numa forma de ser, que sendo tanto minha, tanto dele o é também. Se hoje sou capaz de ver o mundo como vejo, de encontrar na literatura muito mais que um refúgio, isso se deve ao discernimento e sentido crítico que me incutiu. Obrigado pai, por me teres ensinado a diferença entre liberdade e autonomia. Amo-te! À Fernanda, minha melhor amiga, namorada, parceira, e… Por todo o seu apoio, pela sua inesgotável paciência e pelo constante estímulo, tanto durante este processo, como fora dele. Pelo amor e carinho com que transformou a minha existência. Por isto e por tudo mais (e é realmente tanto) que a tua presença na minha vida oferta, fico-te imensamente grato, sendo que o que quero realmente dizer, repetida e continuamente, é: Amo-te! Aos restantes membros da minha família, regozijo-me no sangue que partilhamos, na vivência que juntos tecemos, pelas memórias que, independentemente da distância, deles sempre guardo. Destaco o meu irmão, Mário, pela pessoa linda que vi é e que tanto orgulho me dá. E, ainda, o Dick White, meu padrasto, que não só me abriu novos e vastos horizontes, mas ainda me ensinou o valor da responsabilidade. Ao professor Moser, pelo seu constante apoio e disponibilidade ao longo deste processo. Pela sua habilidade de saber ouvir e interpretar as minhas ideias tão frequentemente labirínticas e emaranhadas. Pela sua postura sempre exemplar. À professora Quinlan, pelo papel fulcral que desempenhou, hà anos atrás, em estimular o meu interesse pela literatura portuguesa e pela escrita académica. Pela sua incansável tenacidade em proteger e desenvolver este cantinho da língua portuguesa. Obrigado! Ao professor Correa-Díaz pela eficácia das suas sugestões e pela criatividade das suas soluções. Fico-lhe grato por me ter, através destas, facilitado tanto este processo. À professora Amélia pela sua ajuda e prestatividade, mas também pela sua forma única de tão humildemente exsudar conhecimento. Agradece-lho por me ter acolhido tão simpaticamente. A todos os professores que tive durante o meu percurso académico e que me simultaneamente me saciaram e instigaram a curiosidade. Com uma palavra de apreço para a professora Anna Klobucka e para professora Cecília Rodrigues; a primeira pela sua instrução rigorosa nos meus primeiros passos neste percurso e depois por pela ajuda que me prestou em o reatar; a última, pela maneira radiante como ensina e apoia. vii Aos meus camaradas de mestrado, com quem partilhei momentos tão bonitos e inesquecíveis de divertimento e aprendizagem. Com um abraço especial para a Cris Lira, cujo talento tanto admiro. Aos meus grandes amigos – Brett, Sarah and Chris – que comigo passaram por momentos tão lindos que só podem ser de um outro mundo. Sem eles não seria nem metade do que sou hoje. À Fundação Luso-Americana (FLAD) e ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo por me terem proporcionado uma experiência única de conhecer melhor a história do meu país e, por conseguinte, me ajudarem a cultivar uma apreciação mais profunda dos sacrifícios por que tantos passaram para que eu pudesse nascer numa sociedade mais livre e democrática. Ao grande mestre, António Lobo Antunes, pelas coisas lindas que faz com linguagem, pela beleza que transmite ao mundo. Foi um enorme prazer passar tanto tempo no seu universo. E, finalmente, a esta elemento fundamental da minha vida que me recuso a denominar. A esta força universal que tudo permeia, invisível e omnipresente; que sagacidade sussurra, inaudível e persistente; que se insinua, imperceptível e omnisciente. No dia em que lhe tomei consciência, tudo mudou e nunca mais foi o mesmo. viii SUMÁRIO Página AGRADECIMENTOS........................................................................................................ v CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO: UMA FOLHA LISA DE PAPEL ............................................... 1 Os primeiros vincos teóricos ....................................................................... 6 Dobrar os lados para o vinco central .......................................................... 9 2 UMA CASA DE PAPEL .................................................................................. 14 Erguer, em cada prega, uma parede ........................................................ 16 Em vincos frisados escorrem as águas do mundo ................................... 21 Dobra rotativa nas dobradiças da infância ................................................ 36 A dobra invertida entre o telhado e o barco .............................................. 46 3 PAPEL AMARROTADO ................................................................................. 48 Coincidir nas dobras os filamentos da teia ............................................... 49 Interverter os cantos aos significados ....................................................... 56 (Re)unir os cantos no vínculo central ....................................................... 68 Desabar as abas do descom(es)pa(ç)o .................................................... 72 (Des)montar todos os vértices da (i)realidade .......................................... 78 4 CONCLUSÃO: UM MUNDO REDOBRADO................................................... 80 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 86 1 CAPÍTULO 1 INTRODUÇÃO UMA FOLHA LISA DE PAPEL “When you fold a piece of paper you are essentially changing the memory of that piece.” Erik D. Demaine1, Between the Folds “I wished to fold the laws of nature, the dignity of life, and the expression of affection into my work.” Yoshizawa Akira2, Inochi Yutaka na Origami Descobrimos recentemente Between the Folds, um documentário sobre o origami, a antiga arte e disciplina de modelar uma folha de papel, através de sucessivos vincos e dobras. As diversas ramificações e utilizações desta arte revelaram-se-nos surpreendentes. Origami, no seu âmago, trata de transformar o mundo bidimensional da folha de papel plana e lisa, num mundo tridimensional das construções erigidas através dos variados manuseamentos desta. Ultimamente, através da extrapolação deste conceito noutras áreas, como na matemática, na física, na biologia e na engenharia, o origami tem sido aproveitado como modelo para 1 Erik Demaine é um conceituado teórico de matemática e informática, bem como um artista de origami, cujas honras incluem a recepção bolsa de MacArthur e ter o recorde de se ter tornado o professor mais novo de M.I.T. quando foi contratado aos 20 anos de idade. Ele tem sido alvo do interesse público e académico pelos seus diversos projectos que abordam o origami através da matemática e vice-versa. 2 Yoshizawa Akira é aceite no universo do origami como o mestre que, no começo do século XX, transformou este passatempo numa arte. A ele é também atribuída a fama de ter desbravado nova e inventivas técnicas de modelar o papel. 2 idealizar a materialização de outras possíveis dimensões e soluções. Origami, como nos foi revelado no documentário começa a ser a arte da ciência e a ciência da arte, isto é, um possível elo interdisciplinar que aproxima campos que, tão habitualmente, se encontram em margens opostas dos vastos abismos que separam e excluem a arte da ciência. Foi através destas cogitações que começamos por conceber algumas das semelhanças entre o intuito do origami e as características espácio-temporais que procuramos aprofundar no nosso estudo. Confiamos que existem equivalências pertinentes entre a pluridimensionalidade erguida a partir dos vincos e das pregas do origami e aquela conseguida pelo manuseamento linguístico do espaço e do tempo na narrativa antuniana. São duas formas que começam num folha lisa e em branco e a transformam, através de dobras e metáforas, de vincos e metonímias, em novas formas de conceber o universo que habitamos e de expandirmos a nossa autoconsciência. Como, na primeira epígrafe, Erik Demaine ilumina, trata-se de alterar a memória do papel, onde o papel é um mundo e a narrativa um universo. É, portanto, quase impossível tecer quaisquer considerações sobre a obra de António Lobo Antunes sem, eventualmente, nos depararmos no terreno da memória. Todavia, sem querermos ladear completamente este tema, devemos desde já prevenir que qualquer abordagem que fizermos nas páginas que seguirão será secundária e oblíqua. Mas, pretendendo evitar qualquer mal entendido, clarificamos que esta tese não é uma tentativa de fundamentar uma direcção analítica antitética, ou seja, não é o nosso intuito contradizer esta corrente mnemónica tão vincadamente presente, não só 3 na obra romanesca, mas também na corpus da análise crítica que a tem acompanhado ao longo das suas quatro décadas de existência. Aliás, neste propósito, subscrevemo-nos às palavras de Felipe Cammaert, quando ele declama em “‘You don’t invent anything’: Memory and the patterns of fiction in Lobo Antunes’s works”3 que: When describing the arising of a fictional universe, the term invention identifies the foundational act accomplished by the writer to distinguish his work from other types of literature. Yet, for António Lobo Antunes’s works, the creative process denotes a more complex procedure involving memory and its correlation with imagination. (267-268) Ora, não sendo a memória o cerne da nossa análise, queremos ainda assim destacar outro conceito que Cammaert introduz neste artigo, isto é, o que ele denomina de “mnemonic paradox” (269), e cuja a relevância reside na seguinte afirmação: This concept suggests that the imaginative faculty, applied to the production of a work of fiction, draws solely from mnemonic activities. Hence the literary distinction between facts and fiction is clearly undermined. Imagination no longer determines the fictional quality of a text, but is now associated to the individual perception of past time. (269) 3 Neste artigo, Filipe Cammaert identifica três padrões da configuração da memória na ficção de António Lobo Antunes: “Autobiographical fiction: Fictionalization of the past” (271 – 275), “Polyphonic fiction: Mnemonic invention transferred to the character’s minds” (275 – 280), and “Poetic fiction: The characters in the role of the author” (280 – 285). O crítico conclui que: in the autobiographical fiction the imaginative faculty is placed in the author’s own consciousness, whereas in the polyphonic fiction it lies within the character’s consciousness. As for the poetic fiction, the imaginative mnemonic act ends up being positioned once more in the author’s consciousness, yet it is referred to the activity of writing rather than to his personal experiences. (285-286) 4 Esta ideia do paradoxo mnemónico, revelar-se-á particularmente útil quando analisarmos o romance Não é meia noite quem quer no capítulo 3. Antes, o que pretendemos nas páginas que advirão é destacar a importância de um elemento omnipresente na obra do conceituado autor lusitano que, a nosso ver, tem passado relativamente despercebida. Referimo-nos ao espaço físico e concentraremonos, particularmente, na importância que a evocação do espaço e que o manuseamento do eixo espácio-temporal ocupam na elaboração da recolecção dentro da narrativa antuniana. Salientaremos, consequentemente, os efeitos resultantes desta urdidura do espaço físico que consideramos serem os mais pertinentes e intrínsecos à trama antuniana. A nossa análise bifurcar-se-á perante os dois romances de António Lobo Antunes que nos propomos a examinar: A ordem natural das coisas (1996) e, como acima referimos, Não é meia noite quem quer (2012). Esta dicotomia justifica-se nas muitas semelhanças constitutivas irrefutáveis entre as duas obras, mas igualmente pelas diferenças, que são de menor frequência, mas que nem por isso devem ser consideradas como sendo de menor significância. Esta bifurcação explica-se, ainda, pela vasta amplitude de pareceres críticos que emanaram ao longo do anos a propósito do espaço romanesco, mas ainda mais pela notável antítese ideológica vigente entre as principais perspectivas teóricas que adoptamos na construção da nossa lente crítica, nomeadamente, os conceitos de geocriticismo de Bertrand Westphal e de topoanálise de Gaston Bachelard. 5 De seguida abordaremos com maior profundidade os elementos que constituem esta dicotomia, ou seja, explicaremos em detalhe as várias ramificações teóricas sobre o espaço romanesco, bem como o porquê das nossa incidência sobre os teóricos mencionados no parágrafo antecedente. Depois, facultaremos, com a minúcia que a ocasião exige, uma leitura comparada entres os dois romances, prestando particular atenção à referencialidade espacial destes. Mas, julgamos ser imperativo estabelecer pormenorizadamente o que iremos destacar nas obras seleccionadas de António Lobo Antunes. No que diz respeito ao romance A ordem natural das coisas (Capítulo 2), o nosso foco irá recair sob dois aspectos fundamentais: primeiro, demonstraremos a preponderância do espaço na ambientação fabular, evidenciando com maior especificidade a relação entre a recorrente e obsessiva invocação do elemento aquático – através do mar, do rio Tejo, da chuva e até do sistema de canalização – e a transmissão de uma sensação de submersão condizente com a infelicidade depressiva ostentada pelos personagens. Depois, convergiremos o foco da nossa análise sob a casa, tanto no que diz respeito às conexões que esta alberga com alguns do personagens, particularmente com Julieta e com o seu filho, bem como com o contraste propositadamente estabelecido, e mantido ao longo do romance, entre as casas (e vizinhanças) de diferentes classes socioeconómicas, representadas pelas contraposições descritivas entre a Calçada do Tojal e Quinta do Jacinto, isto é, Benfica e Alcântara, respectivamente. Entretanto, em Não é meia noite quem quer, enveredaremos por uma abordagem de cariz mais abstracto, que contemplará alguns dos aspectos da poética 6 de António Lobo Antunes responsáveis pela elaboração da fragmentação intrínseca da sua narrativa, considerando que esta característica é um elemento preponderante para a descontinuidade espácio-temporal que procuramos evidenciar. Exploraremos, ainda, a relação patenteada neste romance entre a memória e a espácio-temporalidade, e a evocação deste através da imagem. Iremos, finalmente, realçar a insistência do autor na teia relacional entre os personagens, em detrimento do delineamento individual, procurando comprovar que esta dispersão não estratificada dos personagens proporciona a formação de uma pluridimensionalidade espacial. Os primeiros vincos teóricos Qualquer tentativa de perceber o espaço sem parâmetros predefinidos verteria, com certeza, na filosofia pré-socrática, onde os naturalistas, como Tales de Mileto, Heraclito e Demócrito, entre tantos outros, se indagavam sobre a constituição material do universo, oscilando entre teorias elementares e até, no caso de Demócrito, tendo chegado à percepção do matéria através do átomo. Divagaria, também, essa discussão perante as várias escolas filosóficas que se sucederam, até, já numa era mais recente, o estudo do mundo natural ter sido apropriado pelo método científico. Esta seria, sem dúvida, uma discussão interdisciplinarmente rica e extensiva. Contudo, não é esta a nossa proposta, pois o que procuramos estabelecer é uma compreensão mais exacta sobre a representação do espaço na literatura, de forma a podermos destacar na obra de António Lobo Antunes esse elementos que a constituem e a sustêm. 7 Concentrámo-nos, portanto, numa pesquisa que realçasse um perspectiva espácio-temporal condizente com as características estéticas que germinam na narrativa antuniana. Mesmo, perante as delineações destes parâmetros, os pontos de vista que encontrámos foram muitos e variados, o que nos levou a nos concentrarmos, principalmente, naqueles cujos argumentos ressoavam na prosa de António Lobo Antunes. Desta forma, a nossa análise basear-se-á, sobretudo, nas vertentes teóricas de Gaston Bachlelard e de Bertrand Westphal, com o apoio dos estudos sobre o espaço desenvolvidos por Yi-Fu Tuan, Osman Lins e Ozíris Borges Filho. De fora ficaram as teorias fundamentadas na óptica marxista do espaço social, articuladas por Henry Lefebvre, David Harvey e Edward Soja4, porque sendo a relação entre estas e os romances um pouco mais ténue, decidimos não enveredar nessa direcção, admitindo contudo, que também esse terreno faculta material frutífero para uma análise. Sobre o primeiro dos dois principais esteios teóricos, Bachelard, recorremos à sua obra A poética do espaço (1957), pela força que esta exerce na fundação duma ligação entre o espaço físico e a memória através, principalmente, da imagem poética, algo que se encaixa perfeitamente com estética antuniana. Ademais, o teórico devota o seu esforço nesta obra ao desenvolvimento da importância que a casa natal aufere na psique humana, particularmente, no que se refere à conexão entre o sujeito e sua infância, um conceito cuja pertinência relativa aos objectivos que acima delineámos é 4 Segudo Ozíris Borges Filho, o livro de Lefebvre, A produção do espaço (1974), foi considerado por Frederic Jameson como um ponto de viragem no interesse pelo espaço na literatura. Quanto a Soja, ele expande os conceitos de espaço social de Lefebvre em Postmodern Geographies: The Reassertion of Space in Critical Social Theory (1989) e em Thirdspace: Journeys to Los Angeles and Other Real-andImagined Places (1996). São trabalhos que introduzem conceitos importantes e intrigantes que mesmo não se relacionando directamente com o nosso tópico não queríamos deixar de mencionar. 8 inegável. Finalmente, encontrámos em A poética do espaço, uma linha de diálogo com os romances de António Lobo Antunes baseada no foro intimista, que tanto uma como as outras projectam, que iremos desenvolver na nossa análise. Quanto ao ensaio de Bertrand Wespthal, Geocriticism: Real and Fictional Spaces (2007), este oferece uma construção teórica que engloba as mutações teóricas e ontológicas sobre espaço instauradas pela correntes pós-modernas. Ademais, Westphal relativiza o espaço e o tempo como inversamente relacionados, onde a descontinuação histórico-temporal possibilita a ascensão do espaço em termos de relevância. Por conseguinte, este estatuto do espaço é acompanhado por uma nova percepção da sua constituição. A definição do espaço que Westphal propõe é, acima de tudo, fragmentado, maleável e multifacetado, que oferece uma interpretação diferente para as recorrente sobreposições espácio-temporais existentes na obra de António Lobo Antunes. É neste espaço permissivo a fluxos e transgressões que ignoram as fronteiras previamente estabelecidas e respeitadas que os personagens de antunianos coexistem. A eleição destes dois conceitos teóricos foi feita porque a obra de António Lobo Antunes requer esta distensão a extremas latitudes e a pontos de vistos distintos e por vezes divergentes. Algo que é sublinhado quando Westphal se refere a Bachelard, dizendo que, “In my view, however, the study of nongeographical places—intimate, domestic spaces, for example, so admirably described by Gaston Bachelard in The Poetics of Space—does not fall within the field of geocriticism” (119). Ora, esta afirmação define perfeitamente a nossa necessidade de albergar no nosso trabalho 9 esta tipo de dissonância analítica, pois se o geocriticismo, através das diversas teorias que o autor emprega, se enquadra perfeitamente numa análise da distorção do espaço e do tempo para fusão da memória com a realidade presente dos seus personagens, ele já fica aquém dos requerimentos que o narrativa antuniana exige na compreensão dos elementos intimistas, familiares e emocionais. E, claro, o oposto é verdade sobre as teorias propostas por Bachelard. De referir ainda, em nome da verdade, que a nossa análise nunca chega a ser, propriamente dita, uma análise geocrítica, pois esta enquadrar-se-ia melhor com uma análise interdisciplinar de um lugar específico, como se, por exemplo, tivéssemos analisado a representação de Lisboa em A ordem natural das coisas. O que fizemos, portanto, foi empregar a redefinição do espaço proposta por Westphal na elaboração da sua lente analítica e juntá-la a outras fontes para que tivéssemos algo que explicasse mais concretamente aquilo que António Lobo Antunes consegue, através da evocação e representação do espaço, na sua obra literária. Dobrar os lados para o vinco central Numa entrevista dada a João Paulo Cotrim do jornal português O Expresso, em 2004, António Lobo Antunes declara o seguinte sobre os livro que publicara: Tenho a sensação que formam um contínuo. Não me era consciente, mas algumas pessoas que escrevem sobre os livros deram-me a entender isso. Tinha a sensação de que estava a fazer várias obras sem ter consciência de que era um tecido contínuo que se prolongará até deixar de escrever, até à minha morte, certamente. Tinha a ilusão de que estava 10 a fazer livros muito diferentes uns dos outros e, no entanto, é como se formasse um único livro dividido em capítulos, e cada capítulo fosse um livro de per si. (Arnaut, Entrevistas com António Lobo Antunes 475) Esta ideia do próprio autor, explica eximiamente a razão da nossa escolha destes dois romances, bem como a nossa eleição de os organizar isoladamente. Como se pode verificar acima, António Lobo Antunes considera que existe uma coesão entre as obras distintas, que elas constituem um universo onde cada obra se relaciona e, de certa forma, se completa. Esta constatação confirma-se nas leituras de A ordem natural das coisas e de Não é meia noite quem quer, pois independentemente de mais de duas décadas as separarem, de ambas terem estruturas externas e narrativas distintas, encontramos nelas temas idênticos, personagens com histórias e trajectórias semelhantes e, claro, representações espácio-temporais que se ressoam. Em termos cronológicos, A ordem natural das coisas pertence ao terceiro ciclo da obra antuniana, o que o autor nomeia de ciclo de Benfica, em referência ao bairro de Lisboa onde passou a sua infância, algo que se reflecte na presença preponderante deste na obra. Já Não é meia noite quem quer pertence, segundo Ana Paula Arnaut, ao sexto ciclo da obra antuniana, o qual ela denomina de ‘ciclo do silêncio,’ e que define como: [uma] estreita aliança com o silêncio instaurado na e pela própria escrita, através da ausência desses ruídos de diversa espécie linguística, a classificação que propomos é ainda justificada pelo facto de…. António Lobo Antunes parecer ter conseguido o intimismo (quase) completo, 11 absoluto, que em várias entrevistas afirmou querer alcançar. (As mulheres na ficção de António Lobo Antunes 24) A estética da escrita afigura-se, portante, como uma diferença significante entre as duas obras, algo que se torna óbvio pelo forma como o efeito de multiplicidade de vozes é conseguido numa e na outra. No romance mais antigo, isto é exteriorizado através do comparecimento de múltiplos e alternados narradores, enquanto que no romance mais recente, o oposto acontece, isto é, a polifonia é interiorizada por uma narradora que se desdobra, através da memória, nas vozes do outros personagens. Esta é, aliás, uma peça fundamental na emanação do silêncio e na impressão intimista. Mas, como havíamos referido, as diferenças não são muitas, senão observe-se: Em A ordem natural das coisas, o autor introduz-nos a Julieta, que segundo Maria Alzira Seixo, “pode ser de facto encarada como uma verdadeira heroína de romance, a primeira da obra de Lobo Antunes” (Os romances de António Lobo Antunes 236). Ou seja, nesta obra, o autor designa, pela primeira vez, um papel central a uma mulher. Em Não é meia noite quem quer, temos uma narradora-protagonista através da qual a história se desenrola. Depois, no primeiro caso, Julieta, fruto de um caso extraconjugal da mãe com outro homem, tem, por isso, um relacionamento familiar atípico do qual se ressalva somente a sua afectividade com o irmão mais velho, o Jorge. Este, depois de passar por várias prisões políticas e muitas sessões de tortura, suicida-se, afogando-se no oceano em Tavira. Julieta, já no fim do romance, decide ir à procura do irmão falecido, recalcando em Tavira a fatal trajectória do irmão e também põe término à sua própria vida. No segundo caso, a narradora, cujo o nome desconhecemos, tem três 12 irmãos, um deles surdo e que resultou dum caso extraconjugal da mãe com outro homem. O único irmão com quem mantém uma relação fraterna é o irmão mais velho, Este, depois de actividades anti-salazaristas e após se ter recusado a participar na guerra colonial, sob a pressão de poder ser preso e torturado, decide suicidar-se e fá-lo atirando-se duma ribanceira, aparecendo mais tarde à beira-mar, afogado na maré. A narradora, décadas depois, reconhece este acto como o epicentro das sucessivas ondas de insucessos que compuseram a sua vida e decide repisar a pegadas do irmão, repetindo a trajectória deste, para se lançar da mesma falésia, para o mesmo mar, para a mesma morte. Destas semelhanças fabulares, destacamos outra distinção importante: a quase completa ausência de nomes próprios em Não é meia noite quem quer, algo que iremos analisar em detalhe no capítulo dedicado a esta obra, pois esta eleição do autor representa não só uma mudança estilística, mas acentua ainda mais o conceito do fragmentação espácio-temporal. Poderíamos continuar a enumerar comparações por muitas páginas, confrontando a forma como a natureza serve de refúgio, como o espaço é usado como marcador da efemeridade do tempo e como o segredo é central em ambas as narrativas, entre outros tantos paralelos que poderíamos tecer. Mas, cremos que os exemplos que apresentámos são suficientes para comprovar a ressonância entres as duas obras, bem como a importância que as divergências assumem. Reiteramos, contudo, o essencial, ou seja, que existe perante as diferenças que distinguem estas obras, um eco de diálogos – imagens, lugares, objectos, fados – cuja correspondência 13 transgride a autonomia habitual de obras romanescas, e de tal forma palpamos, entre os dedos da nossas leituras, o ‘tecido contínuo’ a que o autor se refere. Esta constatação levou-nos a abordar cada obra separadamente e através de pontos de vista teóricos distintos. Fizemo-lo por duas razões: primeiro, para evitar as eventuais redundância que poderiam ter sido geradas por uma análise de temas idênticos em ambas as obras; segundo, porque esta opção proporcionou-nos uma liberdade mais ampla para identificar e acolher as disparidades entre os dois romances. Compreendemos, ainda assim, os méritos de uma abordagem mais ortodoxa e, admitimos, que foi por aí que iniciámos esta expedição, mas estamos confiantes que as nossas escolhas encontram as suas justificações naquilo que conseguimos salientar em ambos os textos e acreditamos, ainda, que isto compensará também o que foi omitido da nossa análise. Assim, o que propomos, do ponto de vista organizativo, é uma estrutura em estilo de puzzle, em que os capítulos dedicados às análises de cada romance são peças que destacam elementos díspares, desconstruídos através de teorias distintas, mas são peças que se encaixam e cuja a totalidade representa um panorama da referência espácio-temporal nas obras de António Lobo Antunes. 14 CAPÍTULO 2 UMA CASA DE PAPEL Como caem as árvores eu caio e caindo caio como as folhas e as sombras caem devagar e leves e oiço-os chorar e falar comigo e não posso responder enquanto caio porque se respondesse que diria senão que me abato como se abateram outrora o meu pai a minha mãe o meu marido de repente calados e imóveis e assim brancos como a luz nesta casa tão branca sobre os móveis brancos os espelhos devolvem o silêncio e as lágrimas deles e amanhã subirão comigo lá acima e sem palavras para além das do padre voltarão o meu rosto na direcção do sol. António Lobo Antunes, A ordem natural das coisas 323 A epígrafe que acima reproduzimos constitui, na íntegra, o penúltimo capítulo do romance A ordem natural das coisas. Escolhemo-la porque abrange, nas suas poucas linhas, alguns dos elementos mais recorrentes nos romances de António Lobo Antunes e, por conseguinte, factores importantes na análise do espaço romanesco. Neste capítulo a narradora é Maria Antónia, uma mulher da qual sabemos que sofre de cancro e cuja vida, segundo ela indica, serve de referente para elaboração do resto do romance, ou seja, ela surge-nos como a autora do romance, ou no mínimo, a musa do autor. 15 Quanto aos elementos a que nos referíramos, destacamos, primeiro, a qualidade lírica da prosa antuniana, algo que mesmo não tendo uma ligação directa ao nosso estudo merece ser apontada e apreciada. Depois, salientamos a conexão entre a enunciadora e a natureza, onde o movimento descendente das árvores e das folhas representam a morte anunciada desta narradora que vive os últimos dias da sua vida. Mas, para além desta referência simbólica, as primeiras linhas demonstram também a intimidade tão frequentemente existente entre o mundo natural e os personagens nos romances de António Lobo Antunes. Aqui, como em tantos outros, verifica-se o contraste entre a sintonia com o mundo natural e a disfonia patente com os outro seres humanos. Finalmente, registamos a presença da casa e do seus conteúdos que, como iremos aprofundar estão associados à memória, neste caso particularmente fúnebre, aparecem como reflexões da dissipação da vida da narradora. São, portanto, estes os conceitos que nos propomos analisar neste romance, ou seja, iremos, através das evocações do espaço difundidas por todo o romance, identificar as relações entre o espaço e os protagonistas; de seguida, focalizar-nosemos no papel que a casa desempenha no devir dos personagens e nas relações destes com os seus passados e as suas memórias. Na primeira instância, daremos particular atenção para os diversos despontamentos do elemento aquático na narrativa, nas figurações do rio Tejo, do Oceano Atlântico, da chuva e, até, do sistema de canalização da cidade. Demonstraremos que o efeito cumulativo destas evocações literárias do espaço resultam na personificação da ambientação a qual, através dum derramamento 16 insistente deste elemento, consegue espelhar e amplificar a disposição sombria dos personagens. Enquanto que na segunda instância, iremos demonstrar que as casas assumem um papel tão preponderante que quase se tornam em personagens. Consequentemente, destacaremos as funções que estas desempenham, primeiro na vivência do primeiro narrador do romance, cujo nome nos é ocultado, particularmente no que diz respeito à sua passagem, enquanto criança, pela vivenda da família em Benfica, onde ele viveu, despercebidamente, com a sua mãe, Julieta. Iremos, igualmente, examinar a relação de Julieta com a Calçada do Tojal, visto que ela viveu uma boa parte da sua vida apreendida no sótão da casa, em função da sua proveniência clandestina. Em todos os casos acima referidos, procuraremos patentear a função da casa como reservatório de memórias, experiências e emoções. Erguer, em cada prega, uma parede A ordem natural das coisas (1992) é o segundo livro da previamente denominada trilogia de Benfica, que inclui também Tratado das paixões da alma (1990) e A morte da Carlos Gardel (1994). Esta divisão foi mencionada por António Lobo Antunes numa entrevista dada a Rodrigues da Silva do Jornal de letras, artes e ideias, onde o autor comenta que este ciclo é, “uma mistura dos dois ciclos anteriores, e a que eu chamaria de Trilogia de Benfica” (Arnaut, Entrevistas com António Lobo Antunes 214). Noutra entrevista ao 17 mesmo jornal, mas desta vez a Luís Almeida Martins, o autor esclarece que o romance: Trata-se de uma mulher que está a morrer no meio de uma grande solidão e que povoa a sua agonia destes fantasmas todos, que são diversos personagens que ela adapta, transforma, muda, de maneira a conjurar a angústia da aproximação da morte…. É a dissolução de um cérebro. (159) Esta citação esclarece algo que é ofuscado na leitura do romance, pois só no fim do mesmo o leitor descobre que os personagens que até então conhecera são projecções meta-ficcionais de outra personagem, a Maria Antónia. Este processo contribui para o que Maria Alzira Seixo constata em Os romances de António Lobo Antunes: o plano da organização fabular marcado pela negativa e pelo desconhecimento é o que justamente se desenvolve como centro da narrativa e faculta a possibilidade da descrição, desenvolvendo neste romance como que a desocultação de um enigma e, progressivamente, o conhecimento do(s) outro(s) como uma impossibilidade. (225) Realmente, a narrativa é definida por vários mistérios, que ora distanciam, ora aproximam os personagens, contudo nenhum deles é tão significante como a autoreferencialidade entre Maria Antónia e a história que precede a sua confissão. Mas, até esse momento, a narrativa é relatada através de narradores intercalados. O romance é dividido em cinco partes, cada parte apelidada de livro e intitulada da seguinte forma: “Doces odores doces mortos,” “Os argonautas,” “Viagem à 18 China,” “A vida contigo,” e, finalmente, “A representação alucinatória do desejo.” Cada uma destas divisões é repartida por sete capítulos e, como tal, cada ‘livro’ é narrado por dois narradores cujas vozes se intercalam e que cujos pontos de vista contribuem para a tecedura de uma trama gradualmente mais envolvente e mais inter-relacionada. A trama reparte-se basicamente em dois planos espaciais: a Quinta do Jacinto e a Calçada do Tojal, divagando ocasionalmente por outros lugares com associações a períodos específicos das vidas de um ou outro personagem. A Quinta do Jacinto, em Alcântara, alberga a história de um funcionário público de meia idade que vive na casa da família da sua esposa, Iolanda, uma jovem de dezoito anos que se casou com ele pela convencia dele poder ajudar a tia e o pai (respectivamente Orquídea e Domingos Oliveira) a pagarem as contas da casa. Enquanto que a Calçada do Tojal, em Benfica, hospeda as crónicas da família Valadas: Álvaro e Madalena, os patriarcas, e Jorge, Fernando, Anita, Maria Teresa e Julieta, os irmãos. Destes, a narrativa concentra-se nas existências de Jorge, militar preso e torturado por conspirar contra o estado; Fernando, membro da Legião Portuguesa e considerado pela família como um fracasso; e Julieta, a heroína deste romance que vive enclausurada no sótão por ser filha do amante de Madalena. O fio que eventualmente conecta estes dois lugares e famílias tão díspares é o funcionário público, cuja a história nos é descrita pelo próprio, quando ele a partilha com Iolanda, a qual o despreza desde as profundidades do seu sono, como também o faz à luz do dia. Assim, logo no primeiro livro desvendamos que, “Até aos seis anos… não conheci a família da minha mãe nem o odor dos castanheiros que o vento de 19 Setembro trazia da Buraca, com as ovelhas e os chibos que galgavam a Calçada na direcção do cemitério abandonado” (11). Ao invés, ele viveu, “numa aldeola da região da Ericeira”(14) com a madrinha, e por lá ficou até que esta faleceu e ele foi levado para a casa da família da mãe. Como se pode deduzir, essa casa é a Calçada do Tojal e a sua mãe é Julieta que o tivera num caso secrecto com o filho da costureira e que, por isso, ele fora asilado na Ericeira para evitar mais vergonhas para a família Valadas. Ademais, mesmo quando ele viveu na Calçada do Tojal, o filho e a mãe passaram despercebidos, uma vez que Julieta vivia, também ela exilada, no sótão, o único registo que ele teve da sua presença foram os passos que dela que ressoavam no soalho da vivenda. Sobre o funcionário público apenas isto se reconhece, pois dele sabemos somente aquilo que da sua infância ele reconta a Iolanda, bem como aquilo que nos consta da sua vida agoniada, passadas mais de quatro décadas: que ele acata o desdém conjugal, interesseiro e ignóbil, em que coexiste com Iolanda e com a sua família, algo que diz muito sobre no que se transformou a vida daquela criança ilegítima da família Valadas. Sobre a sua mãe, também ela ilegítima, que viveu sob pena de prisão perpétua na própria casa, sem nunca ter sido esclarecida daquilo de que era acusada, ressaltamos um desabafo seu quando, depois de ter perdido o seu único amigo, o seu irmão Jorge, conhece pela primeira vez o seu pai e recompõe a sua história pessoal: e eu, descobrindo de súbito a razão do meu passado e da minha existência inteira, os anos no sótão, a amargura do meu pai, a ansiedade 20 dos meus irmãos, a desistência de ser feliz da nossa mãe…. Foi por sua causa que me prenderam aqui, foi por sua causa que não queriam que me vissem, foi por sua causa que me mandaram para a Guarda e não me ensinaram a ler nem a escrever e me proibiram de sair, foi por sua causa que me obrigaram a apodrecer na Calçada do Tojal, foi por sua causa que fiquei sozinha, sem água nem luz, à espera de morrer de fome… nestas ruínas de casa, porque o meu pai não é meu pai e você me fez…(317). A angústia é, aqui, tão palpável como o relâmpago da epifania. Depois de uma vida azeda, após ter passado pelo desprezo do pai, pela morte da mãe e das irmãs, pelo abandono do Fernando e pela partida, ainda não esclarecida, do seu querido irmão Jorge, ela reconhece no cabelo ruivo dum estranho que lhe bateu inesperadamente à porta, toda a sua génese, bem como a origem natural da sua desordem. É este o resumo do fio fabular de A ordem natural das coisas, onde nos faltaria apenas anotar a pluralidade de pontos de vista que contribuem para a sua elaboração e potencial resolução. Mas, sendo este um dos romances mais consagrados da obra antuniana, cremos que se torne desnecessário pelo muito que já foi publicado previamente5. Assim sendo, avançamos prontamente para a nossa análise. 5 Sugerimos a consulta das análises deste romance de autoria de Maria Alzira Seixo tanto em Os romances de António Lobo Antunes, como em Dicionário da obra de António Lobo Antunes, Volume 1, para análises mais extensas da trama de A ordem natural das coisas. 21 Em vincos frisados escorrem as águas do mundo No romance A ordem natural das coisas, como noutros romances do mesmo autor, a tristeza desempenha uma função central na vida dos personagens. Segundo Eunice Cabral declara em “In the name of the father: In search of a lost name and place,” esta tristeza reflecte, “[a] specific form of unhappiness caused by the characters’ inability to adapt to the reality of adulthood” (292). E, esta incapacidade de enquadramento com as suas próprias vidas é algo que se pode constatar na maioria dos narradores-protagonistas deste romance. Como Cabral acrescenta: This deep and irreparable failure to adapt on the part of the protagonists… results in their mercilessly distanced and critical view of life. It reflects the estrangement experienced by those who inhabit the adult world as it happens to be organized but without taking an active part in it. (292) Encontramos, portanto, nestes personagens uma capitulação perante a vida, num acto subjacente à constatação das suas próprias limitações e à aquiescência das suas impotências perante circunstâncias sociais e pessoais cujo controle se lhes evadem. Poderíamos, talvez, alegar que esta é outra das desordens naturais ironizadas pelo título do romance. Uma das formas de transmitir esta condição em A ordem natural das coisas, para além do relato fabular, é através da ambientação e, particularmente, através da recorrente evocação de elementos aquáticos que criam a impressão do naufrágio da narrativa num mar de miséria humana, da submersão dos personagens num estado deprimente. 22 Em termos de ambientação, referimo-nos ao conceito elaborado por Osman Lins em Lima Barreto e o espaço romanesco (1976), em que o autor se propõe a analisar, “o problema do espaço nos romances de Lima Barreto – sua importância e decorrências – especialmente em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá” (62). Perante este desafio ele constata, a propósito do espaço, que, “Move-se o homem e recorda o passado. Nada disto o pacifica ante o espaço e o tempo, entidades unas e misteriosas, desafios constantes à sua faculdade de pensar” (63). Tendo determinado a necessidade de, “assentar certos pressupostos indispensáveis à conclusão do estudo [do espaço]” (62), Lins prossegue na elaboração teórica a que se propôs e dá entrada no conceito de ambientação. Desta forma, segundo Lins: Pode-se dizer, a grosso modo, que a personagem existe no plano da história e a caracterização no plano do discurso. A personagem diz respeito ao objeto em si; a caracterização, à sua execução. Esta a distância subsiste entre espaço e ambientação. Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos a nossa experiência do mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa. (77) 23 O conceito é, portanto, bastante rectilíneo, isto é, a ambientação consiste na evocação do espaço – “a nossa experiência do mundo” – para elaborar, na narrativa, um certo ambiente. Lins explicita, de seguida, três tipos distintos de ambientação, se bem que ele nos previne que a distinção entre eles nem sempre se mantém e, por vezes, estas tipologias de ambientação podem-se combinar. De qualquer forma, a ambientação pode ser qualificada, então, como franca, reflexa ou oblíqua, sendo que estas classificações relacionam-se particularmente com a forma como esse processo de ambientação é inserido na narrativa. No primeiro caso, ambientação franca, segundo a análise de Ozíris Borges Filho em Espaço e literatura: Introdução à topoanálise (2007), que aqui privilegiamos devido à sua concisão, é um tipo de ambientação que se caracteriza por ser, “composta por um narrador independente, pauta-se pelo descritivismo e sua característica diferencial é o efeito de objetividade impressa na descrição. Depende do narrador e ocorre apenas dentro da narrativa em terceira pessoa” (62). O segundo tipo, ambientação reflexa, envolve, segundo Lins, processos descritivos idênticos aos do Naturalismo, isto é, “evitar um certo hiato entre descrição e narração, de preencher os interstícios da narrativa, tornando verossímeis as interrupções” (81). Ainda do mesmo propósito, Filho acrescenta que: os espaços são percebidos através da personagem sem intrusão direta do narrador, exceto se o narrador for também personagem. Sua característica distintiva em relação à espacialização franca é o efeito de 24 subjetividade dado à descrição.… Tanto a espacialização franca como a reflexa produzem, geralmente, dentro do texto literário uma pausa, demarcada pela mostragem de um espaço. (64) Convêm, no entanto, realçar que ainda segundo Filho, a forma como estas descrições irrompem na narrativa tem-se vindo a alterar, de modo que, “Modernamente, [as pausas] são mais curtas e entremeadas com reflexões ou ações da personagem, diminuindo sensivelmente a suspensão da narrativa” (64-65). É, todavia, no terceiro método, ambientação oblíqua (ou dissimulada), que se verifica uma distância crítica maior na forma como o espaço é evocado. Assim, como Lins expõe, “A ambientação dissimulada exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace entre o espaço e a ação…. Assim é: atos da personagem nesse tipo de ambientação, vão fazendo surgir o que a cerca, como se o espaço nascesse dos seus próprios gestos.” (83-84). Cremos que, este último tipo de ambientação é o que mais se encaixa com a metodologia de representação do espaço adoptada por António Lobo Antunes, pois como iremos de seguida evidenciar, o espaço desencadeia-se em A ordem natural das coisas através da enunciação dos personagens, surgindo como a matriz da narrativa e não como um aparte paisagístico. Comecemos, então, a especificar as diversas evocações do elemento aquático que se relacionam com a ambientação dum estado geral que complementa a sensação de depressão evidenciada pelos personagens. Primeiro, salientamos o papel desempenhado pelo rio Tejo neste processo de espacialização do estado emotivo. Relembramos, antes, que o vasto plano de acção 25 ocorre em Lisboa e que, por conseguinte, os exemplos que passaremos a apresentar levam em consideração a relação geográfica entre Lisboa e Tejo. Maria Fernanda Afonso destaca esta relação na entrada “Mar, rios e águas,” do Dicionário da obra de António Lobo Antunes, volume 2, ao afirmar que, “Lisboa surge invariavelmente enquadrada pelo Tejo…. A perspectiva do rio, avistado de uma janela…. é muito frequente e permite que o vislumbre da cintilação da água ilumine os percursos sórdidos na cidade e nas existências” (359). Esta perspectiva é difundida, sobretudo, pelo personagem Ernesto Portas, o ex-agente da PIDE que a Revolução dos Cravos transformou em professor de levitação por correspondência, e que no primeiro livro, noutro rasgo meta-ficcional, o ‘amigo escritor’ contrata para desvendar o paradeiro do funcionário público. Assim, Ernesto Portas reclama, sobre a omnipresença do Tejo, que: O mal de Lisboa, amigo escritor, consiste em tropeçarmos no Tejo em cada bairro da cidade como se tropeça num objecto esquecido, o Tejo que nos aparece em todos os postigos, que nos baloiça a cama, durante o sono, com o seu vai-vem de berço, o Tejo e as suas luzes nocturnas. (31) Encetada, desta forma, a delineação do cerco obsessivo que rio monta à cidade, Portas prossegue a diatribe contra este feitiço aquático inelutável: Não existe aí, já notou, restaurante onde se não escute o murmúrio do rio, onde as vitrinas não ondulem consoante o humor das marés, onde os estabelecimentos não estalem batidos pelas correntes do Bugio, onde as 26 vidraças se não encarnicem de pulsações de farol. Lisboa é uma cidade submersa, senhor, a água fecha-se sobre as nossas cabeças, as nuvens não passam de bancos de limos que flutuam…. (32) Daqui, sobressai-nos imediatamente a visão de Lisboa como uma cidade submersa, particularmente se atendermos ao facto que relação geográfica entre Lisboa e o rio Tejo foi invertida, pois sendo Lisboa conhecida como a cidade das setes colinas, isto é, uma cidade relativamente elevada, a perspectiva dos seus habitantes em direcção ao rio é maioritariamente descendente. Mas, de acordo com Ernesto Portas, essa dinâmica é subvertida pela sensação de ser perseguido pelo Tejo, ao ponto dessa sensação se transformar em submersão. Do ponto de vista da ambientação, ressaltamos o paralelismo entre este tipo de submersão e a subalternização do sujeito antuniano em relação à vida, como anteriormente substanciamos através do estudo de Eunice Cabral. A tristeza e a frustração, emoções predominantes no romance, são espelhadas através da apropriação de Lisboa, e dos seus habitantes, pelo rio Tejo. Em função disto, os personagens vivem num mundo submerso, literalmente e figurativamente. Estabelecido, assim, o nosso raciocínio, queremos ainda ilustrar que esta referência ao rio Tejo não é singular nem exclusiva à perspectiva de Ernesto Portas, pois o rio reaparece por todo romance, contudo nunca com a mesma preponderância que faz o ex-PIDE. Ele acompanha o funcionário público durante as suas noites de insónia, porquanto ele revela, “Levanto-me da cama, subo um bocadinho os estores e as luzes de Alcântara prolongam-se até às docas e ao Tejo semeado de canoas, à cata 27 de peixe na babugem” (18). Ressurge, depois, para Domingos Oliveira, pai de Iolanda, que tal como o funcionário público conta com a companhia do Tejo, pois também ele divulga que, “De modo que acabo por arrancar os cobertores dos caixilhos, por erguer os estores, e, vencido por esta luz que me odeia, permaneço na sala a escutar o Tejo” (114). Para Jorge Valadas, enquanto preso político, é a ausência do Tejo que serve de referência nas suas tentativas de determinar em que prisão ele se encontra, visto que, “Depois de cinco ou seis semanas…a urinar sangue na enfermaria do Forte de Caxias…mudaram-me para uma cela no piso inferior da cadeia…. Não ouvia as ondas nem o vento do Tejo, o brado das gaivotas sumira-se…” (161). Os exemplos continuam a desdobrar-se: ora para Iolanda, ora para a tia, a D. Orquídea, ora para o seu colega do colégio, o Alfredo, ora para Julieta. Enfim, o rio permanece um referente que nos remonta à Lisboa submersa articulada no romance por Ernesto Portas e, consequentemente, à ambientação da depressão e repressão inerente à infelicidade típica dos personagens antunianos. Outra manifestação preponderante do elemento aquático em A ordem natural das coisas é o mar, que em Portugal assume proporções consideráveis tanto geograficamente como historicamente. Retomando a entrada de Maria Fernanda Afonso, “Mar, rios e águas,” no Dicionário da obra de António Lobo Antunes, volume 2, esta propõe que: O mar toma lugar significativo nos romances em que perpassa em surdina como matéria ficcional a História de Portugal na época das descobertas marítimas e, no século XX, quando a Nação assiste ao fim do império 28 colonial…. O apelo das águas do mar, decorrente de vicissitudes infelizes, associa-se a obsessões que perseguem várias personagens…. (357-358) O mar, ou se quisermos neste caso concreto, o oceano Atlântico, tal como o rio Tejo anteriormente, surge na narrativa recorrentemente, mas de maneira diferente, pois a sua presença é pautada mais pela intensidade do que pela frequência com que aparece. Assim, em termos de ambientação, o mar jorra na trama, principalmente, através dos relatos de Jorge e de Julieta, mas também, mais circunstancialmente, na experiência da Dona Orquídea, para quem o mar é pano de fundo que suscita a rememoração da experiência traumática da perca de virgindade. Para o primeiro, o mar é um acompanhante que ele reencontra nas sucedâneas prisões para onde é transferido, todas elas à beira mar. Para ele, o mar é também o local onde a sua vida esvazia prematuramente. Para a irmã deste, Julieta, o mar é, “a ‘representação alucinatória do desejo’ [e] mescla-se com a ânsia de liberdade… “ (Cabral et al. 358). Jorge Valadas, que fora preso após uma denúncia o ter incriminado numa tentativa de organizar um golpe de estado contra o regime Salazarista, transita por várias prisões, algo que reflecte a realidade dos presos políticos em Portugal nessa época. Neste caso, Jorge começa no infame Forte de Caxias, para onde regressa depois de algumas sessões de tortura na Rua António Maria Cardoso, a sede da PIDE em Lisboa. Depois, ele é transferido para o Forte de Peniche, outro símbolo desprezível dos abusos políticos do Estado Novo. Finalmente, o filho primogénito da 29 família Valadas, termina a sua tourné de patrimónios prisionais no Forte de Tavira, onde eventualmente se suicida. Sobre este último local, Jorge declara que, “De forma que estou aqui há séculos, perto da praia, e nunca ouvi o mar. Perto da praia pelo brado das gaivotas, pelo ar cor de iodo que respiro, pelos motores dos barcos de pesca que julgo perceber à noite” (141), todavia, ele relativiza, afirmando que, “Caxias situava-se também perto da praia, como Tavira, mas sem o hálito de África à noite, só o cheiro dos esgotos e o rio a transformar-se em mar” (142). Ou seja, o mar, quer pela sua presença, quer pela sua ausência é um marco que orienta o rodopio trágico da vida de Jorge. Mais tarde, já em Peniche, ele observa que, “Em Peniche era sempre inverno também mas sob um céu de pedra sem nuvens, as ondas quebravam nas paredes da cadeia…. O mar batia nos muros, a sereia do salva-vidas desenrolava o seu grito desde o fundo da praia” (191192). Persiste, portanto, a referência ao mar, desta vez denotando a violência áspera das condições do seu cativeiro. Já em Tavira, ele relembra, “Ainda hoje oiço as ondas de Peniche em Tavira… as ondas desse inverno” (196). Numa última instância, mentalmente desorientado pelo período prolongado e atribulado de opressão, Jorge convence-se que ele se encontra numa cidade inventada, uma réplica de Tavira, perto da China, pois: Quando, depois de me prenderem, me meterem pela primeira vez na ambulância e perguntei onde íamos, responderam-me Isto é a viagem à China, rapaz… naveguei de um lado para o outro até ancorar em Tavira. no quartel junto ao mar onde não vejo o mar onde oiço as ondas e não 30 vejo as ondas… de forma que compreendi que me mentiram, que não estou em Tavira, que… me largaram aqui, não em Portugal mas perto da fronteira com a China…. (213) Então, a confusão junta-se à desorientação, pois tudo em Tavira é, simultaneamente, reconhecível e estranho. Inicia-se, por isso, o plano de fuga para a China, forma-se a convicção que para o fazer basta atravessar o oceano que o separa da autenticidade, da reconciliação, da liberdade. Assim o compreendemos quando ele declara que, “As ondas, essas, só na semana seguinte me achei perante elas, das ondas, dos navios, dos pescadores a bordarem as redes, só na semana desci cidade abaixo, a caminho da China, e encontrei o mar” (215). Nessa travessia pela cidade artificial ele confirma as suas suspeitas de que esta não era realmente Tavira, – “Do largo de Tavira que não era Tavira” (218) – que a praia era fronteira da China, que até que chega o momento da sua evasão: Ao poente o clarim do quartel tocou para o rancho… a lua despontando do mar e o ruído das vagas… levantei-me, compus o dólman e caminhei para as ondas. Ainda hesitei em descalçar os sapatos que me dificultavam a marcha a água, mas não se me afigurou sensato desembarcar em peúgas num País desconhecido: suponho que… os meus pais não haveriam de gostar. (221) Termina assim a odisseia de Jorge, diluindo a sua essência nas ondas, suas companheiras na solidão do cárcere que provocara o seu gradual aluimento. 31 Para Julieta, o mar tem outra significância que reflecte outro conjunto de circunstâncias traumáticas. Relembramos que, por ser fruto de uma infidelidade da mãe, Julieta foi enclausurada no sótão pelo seu pai, para quem o seu cabelo ruivo era uma perpétua relembrança da ofensa que lhe fora feita. Por consequência, a presença de Julieta era constatada pela família pelos ruídos que os seus passos emitiam e pelos sons de árias de ópera que se propagavam da sua grafonola. Como a própria Julieta descreve: No momento seguinte achava-me aqui em cima no sótão, a oscilar na cadeira, e o ruído do chão dir-se-ia cravado como um osso no silêncio da casa. Julgo que mesmo o som dos meus passos e as árias do gramofone são uma forma de silêncio, e que o barulho principia no instante em que as pessoas se calam e ouvimos os pensamentos moverem-se dentro delas como as peças, que tentam ajustar-se, de um motor avariado. (277) A única excepção à indiferença da família era o Jorge, por isso se compreende o tanto que ela foi afectada pela prisão do irmão, pois efectivamente o único esteio que lhe restava tinha foi-lhe retirado. Como reconta Fernando, “Quando prenderam o Jorge o mais difícil foi acalmar a inquietação dos passos dela no sótão, tão viva para cá e para lá que um pedaço de estuque se despenhou do tecto” (149). O seu outro grande trauma foi terem-na separado do seu filho, pois como ela própria confidencia, “me senti órfã do meu filho quando mo tiraram na Guarda” (278). A estes três momentos cruciais da vida de Julieta – clausura e as percas de Jorge e do filho – adicionamos o momento em que, como acima referíramos, conhece o seu pai e se apercebe que não era uma Valadas. 32 Numa vida contornada por experiências tão radicalmente perturbadas como as que acabamos de resumir, é expectável que a ambientação a ela associada espelhe essas desfigurações. Contudo, como de seguida evidenciaremos, a relação de Julieta com o mar assume contornos que têm mais a ver com a compensação do vazio da sua existência. Assim, esse relacionamento iniciou-se através da fascinação, pois como a nossa heroína comenta: Nunca vi o mar a não ser nas fotografias e nos quadros. Na sala do résdo-chão existem um ou dois retratos das minhas irmãs na praia…. No quarto que foi dos meus pais há uma paisagem de arribas e falésias em que se não percebe a água, mas supõem-se as vagas pelos chorões. De modo que imagino o mar como um prado com senhoras de chapéu sorrindo ao vento. (293) Curiosamente, é este fascínio pelo mar que motiva um desenlace importante na sua vida, aproximando-a daquele que seria o pai do seu filho, o filho da costureira, visto que: Talvez por nunca ter visto o mar é que deixei de dar ordens ao filho da costureira quando, ainda criança, ele regressou de férias de Peniche…. o filho da costureira contou-me da volta das traineiras, contou-me dos cestos de cherne e de garoupa na lota…. Como o mar dele se afigurava diferente do mar sem mar das fotografias e dos quadros, o filho da costureira desenhou-me Peniche, a lápis de cor, numa folha de papel…. (293-294) 33 Todavia, este desenho retratava tudo menos o mar, frustrada pelo facto que, “toda a gente me escondia as ondas” (294), Julieta enfureceu-se e quase atingiu o seu amigo com um tijolo. De castigo, ela sentiu-se, “despeitada por me negarem o mar que recusei comer” (294). O mar, nesta ocasião, acolhe na sua perpetuada ausência a associação a um vácuo paralelo ao da existência de Julieta, reflectindo o vazio que ela sentia. Contudo, este tema é revisitado anos depois quando o filho da costureira reapareceu na sua vida, surgindo na casa da família Valadas aos domingos enquanto os membros desta se encontravam na missa. Como Julieta admite, “Com ele entrou a ausência de mar porque o mar só existe, sem aparecer, nas fotografias e nos quadros… quis ordenar-lhe Vai-te embora, não me desenhaste o mar, mas… fiquei a observá-lo…. Sentia que com a sua chegada havia um ciclo que terminava em mim” (296). Desta vez o filho da costureira, homem e enamorado, responde às expectativas e desenha aquilo que devia ter desenhado anos antes, aliás supera as expectativas, pois segundo a descrição de Julieta, “ele agarrou num lápis e pôs-se a riscar uma praia na parede, dunas, rochedos, toldos de banhistas, paquetes, e eu, logo que após os violinos o tenor começou a cantar, O mar é verde, tens de o pintar de verde” (297). Repare-se, portanto, que este desenho é feito nas paredes do sótão, não numa folha de papel, algo que é salientado em tons de êxtase, “Que lindo… coloriu a cabeceira da cama, coloriu os vidros da janela, coloriu o tecto, coloriu o meu corpo e eu ouvia o sifão da água na falésia, não ouvia a música, não ouvia a raposa, não ouvia os arbustos, 34 ouvia o sifão da água na falésia” (298). Ou seja, presenciamos outra transformação em Julieta e no seu mundo através da espacialização do mar. Como Julieta indica, estamos perante o fim de um ciclo e, por extensão, o início de outro ciclo da sua vida. O facto de que o mar se alastra, através das acções do filho da costureira, do papel, às paredes e até ao seu corpo indicam, à nossa vista, que estamos perante a exteriorização do acto sexual, da perca de virgindade, da êxtase orgástica, enfim, da sensação de emancipação a isto associada. Aliás, esta ideia é reforçada com a contínua difusão do verde do mar, “os lençóis também verdes, e a almofada, e o meu peito, e os meus ombros… e a fúria da minha família verde, e a música verde, e a noite verde até ao domingo em que ele chegava, verde” (299). A associação aqui parece-nos clara, o acto de desenhar o mar transformou-se no acto sexual, que coloriu de verde o universo de Julieta e, portanto, por algum tempo Julieta saboreou a felicidade, nesse período o vácuo foi preenchido, pela ternura do filho da costureira, pelo êxtase do acto sexual e, finalmente, pela nova vida que carregava dentro de si. Infelizmente, o fruto desse acto de sintonia com a vida denotou também o limite desse período da vida de Julieta. Primeiro porque a gravidez suscitou a fúria e curiosidade da família. Depois, porque essa criança lhe foi retirada, também ele o mar, visto que como ela segreda ao irmão Jorge, “Querido jorge querem tirar-me o mar não deixes, quando me perguntaram quem foi não dice nada, só te conto a ti, o mar chora” (299). Noutra altura, Julieta exclama a comprovação da nossa interpretação, relembrando o filho da costureira que, “Coloria as vagas no meu corpo, coloria Peniche 35 no meu peito, nas minhas costas, nos meus ombros, e as ancas alargaram-se-me de búzios e canoas mas depois levaram-me para a Guarda e roubaram-me o mar, roubaram-me as ondas logo que o mar saiu chorando do meu ventre” (316). Eis, portanto, a fusão espacial entre sujeito e objecto e, ainda mais pertinente, omnipresença do mar ao longo da vida de Julieta, mas como indicámos anteriormente, essa relação distende-se até à morte. No caso de Julieta, o rio da sua vida vai desaguar na praia de Tavira, no ímpeto de uma última obsessão, a reunião com o Jorge. Abandonando a Calçada do Tojal, ela reconta que: comecei a caminhar para a Venda Nova, alheia às pessoas que se cruzavam comigo…. As trevas impediam-me de distinguir os barcos, impediam-me de distinguir o salva-vidas, as traineiras, as grazinas, as dunas, a ponte romana e a esplanada de Tavira… impediam-me de distinguir o meu irmão Jorge sorrindo à minha espera, mas não valia a pena chamá-lo por já me achar perto dele, por me achar perto do mar. (329) E assim, tal como o seu irmão, a vida de Julieta desvanece-se elipticamente, na morte que cuja finalidade se dilui nas águas salgadas do oceano e na promessa de um além. Cremos que, com base nos factos e interpretações acima propostos, a interpolação do elemento aquático em A ordem natural das coisas sustem as nossas suposições sobre o desempenho deste em reflectir, reforçar e complementar, através da ambientação, os sentimentos de frustração e infelicidade manifestados pelos 36 narradores. De formas díspares, mas nem por isso desniveladas em termos de significância, tanto a omnipresença obsessiva do rio Tejo, como a intercalada presença e ausência do mar, ecoam nas entrelinhas conotativas da prosa antuniana aquilo que os personagens sentem mas não podem ou não sabem transmitir.6 Dobra rotativa nas dobradiças da infância A casa desempenha uma função determinante em A ordem natural das coisas. Isto porque, quando pronunciamos a palavra casa conjecturamos um conjunto de associações que constituem o âmago da trama deste romance. A casa é, assim, tanto o núcleo familiar como um repositório de lembranças; tanto a evocação doutro tempo como a ressuscitação da infância; tanto a tentativa de fixar o tempo como a constatação da degradação que esse causa. Como Graça Abreu explana na sua entrada sobre tema no Dicionário da obra de António Lobo Antunes, as casas são, “nalguns casos, [o] verdadeiro centro de pulsação… para uma ou outra das principais personagens” (107). Abreu acrescenta ainda que as casas: Distantes no tempo e no espaço da narração em que são evocadas, representam o lugar iniciático da infância, modelador de uma subjectividade inquieta que sobre ele projecta fantasmas de afecto ou de rejeição. Disso são exemplo os três romances em que Benfica é lugar proeminente… por se centrarem (no passado convocado) na casa aí 6 Poderíamos aprofundar esta ideia, relatando ainda o desempenho da chuva que acompanha vários personagens, colorindo, particularmente, a visão que Julieta tem do mundo através da janela do sótão. Talvez pudéssemos relatar as duas instâncias em que um acidente de canalização de esgotos, primeiro pelo funcionário público e depois por Domingos Oliveira, inunda Alcântara, submergindo-a na imundice narrada e imaginada. Mas, cremos que, relativo ao que já apresentámos, estes relatos afigurar-se-iam como circunstanciais e pouco adicionariam. 37 situada e no meio suburbano que a rodeava na primeira metade do século XX. (107) Devemos, ainda, referir que, como a citação sugere, as associações tecidas em torno da casa propagam-se aos bairros em que estão se situam, ou seja, neste romance veremos a importância da Calçado do Tojal e da Quinta do Jacinto, mas também de Benfica e de Alcântara, respectivamente. No âmbito de interpretarmos as potencialidades da casa, recorremos ao conceito de topoanálise, que foi articulado por Gaston Bachelard em A poética do espaço (1958). Neste estudo, Bachelard propõe que, “Com a imagem da casa, temos um verdadeiro princípio de integração psicológica. Psicologia descritiva, psicologia das profundidades, psicanálise e fenomenologia poderiam, com a casa, constituir esse corpo de doutrinas que designamos sob o nome de topoanálise” (196). O teórico instiga, portanto, um estudo que examine as profundidades e intimidades que constituem a psique humana através da relação deste com a casa. Para este fim, Bachelard considera que a casa é, “um ser privilegiado, sob a condição… de tomarmos… a sua unidade e a sua complexidade, tentando integrar todos os seus valores particulares num valor fundamental. A casa nos fornecerá simultaneamente imagens dispersas e um corpo de imagens” (199). Percebemos, nesta necessidade de integrar a parte e o todo, um leque de possibilidades analíticas, pois no foro da nossa análise esta dinâmica implicaria a consideração directa da casa como unidade, mas também a casa como uma agregação de quartos e salas. Algo, aliás que repercute a descrição de Graça Abreu das casas antunianas, quando esta 38 afirma que, “Com frequência, casas são interiores profusamente recheados em que se destacam objectos – móveis, decoração, relógios, espelhos – e algumas divisões diversamente privilegiadas em diferentes romances – quarto, sala, cozinha” (Cabral et al. 107). Ademais, esta reciprocidade entre a unidade e a divisão, proporciona também uma visão da casa em relação à família, sendo esta a unidade, e os seus membros, as partes. Para Bachelard, a casa é um termo abrangente e profundamente interligado com o desenvolvimento do ser humano. Abrangente porque, como ele declara: todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores de onirismo consoante. Não é mais em sua positividade que a casa é verdadeiramente ‘vivida’, não é só na hora presente que se reconhecem os seus benefícios. O verdadeiro bem-estar tem um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova. (200). O conceito, portanto, supera as paredes da casa como construção palpável e distendese pelas memórias, experiências e associações com que esta nos imprime enquanto crianças. E, como fica esclarecido, esta definição alberga não só a casa, propriamente dita, mas também outros tipos de alojamentos. Ademais, o conceito embrenha-se no psique humano porque, “a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo” (Bachelard 200). Como iremos demonstrar estas são iterações do conceito que definem, de certa forma, as existências do funcionário público e de Julieta. 39 A topoanálise consiste, portanto, das associações formadas e mantidas entre o sujeito e o espaço físico, especificamente a casa, tendo em particular consideração as ramificações de ordem profundamente psíquica e intimista que originam desta relação. Bachelard, explana crucialmente que: A topoanálise seria então o estudo psicológico sistemático dos lugares físicos de nossa vida íntima. No teatro do passado que é a nossa memória, o cenário mantém os personagens em seu papel dominante. Às vezes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer passar no tempo, que no próprio passado, quando vai em busca do tempo perdido, quer ‘suspender’ o voo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. O espaço serve para isso. (202) Esta citação é, sem dúvida, o fulcro do fundamento da nossa lente analítica, pois ela retrata eximiamente a intermediação triangular que verificamos em A ordem natural das coisas, entre os personagens, a memória e a casa, através do qual o passado é reanimado perante a indagação espacial. Regressando então ao romance, começamos por salientar o impacto que as várias casas em que o funcionário público viveu tiveram na demarcação cronológica da sua vida. Relembremos que esta personagem, filho ilegítimo de Julieta e do filho da costureira, nasceu na Guarda, parte remota do interior de Portugal, para onde a sua mão fora enviada para que o pudesse ter em segredo. Depois de ter nascido, ele foi 40 afastado da sua mãe e foi levado para viver com a sua madrinha numa pensão na Ericeira. Lá ficou até aos seis anos, aquando do falecimento da sua encarregada, e nesse momento foi viver na Calçada do Tojal, com a família da mãe, mas ainda assim sem nunca tomar o conhecimento de que era ela que vivia no sótão. Finalmente, encontramos o funcionário público a viver na Quinta do Jacinto com a família da sua esposa, Julieta, com quem só teve a permissão para se casar porque se voluntariou a pagar as despesas da casa. Em nada nos surpreende portanto que o funcionário público demarque a sua vida consoante as casas que habitou. Sobre este propósito, Maria Alzira Seixo conclui que: A temporalização vivida concentra-se… no seguimento intervalar das casas… que se alçam a espaços simbólicos de uma anulação do sujeito, se aceitarmos, com Bachelard, que a casa é uma metonímia do corpo, e que, portanto, sendo a personagem cada vez mais estranha ao espaço doméstico, e perdendo-o progressivamente, esse estranhamento gradual de algum modo lhe apaga a existência…. (Os romances de António Lobo Antunes 230-231) Esta progressão que Seixo indica inicia-se logo no começo do romance, onde o funcionário público reconta a Iolanda, adormecida, a história da sua infância, começando pela Ericeira: recomeço a minha história no episódio em que a deixei, regressando, Iolanda, à casa onde vivi antes de conhecer a família da minha mãe, com 41 os seus mil corredores, os seus mil esconsos, os seus mil esconderijos, a casa, a casa, a casa, meu Deus, cercada de grazinas sobre a falésia e os vapores do oceano, de portadas batidas pelo vento e cortinas em pedaços…. (13) Torna-se palpável, principalmente pelo ritmo repetitivo da palavra ‘casa,’ que a sua ligação com aquele lugar foi marcante. Descobrimos também que ele guarda recordações felizes da sua infância na Ericeira, pois ele declara, “Iolanda, não julgues que a minha vida numa aldeola da região da Ericeira em que os eucaliptos gotejavam as lágrimas de um desgosto sem cura não era agradável: era agradável” (14). A sua passagem pela Ericeira foi curta, mas ainda assim no presente momento de insónia, marcado pela solidão e rejeição, ele é assaltado por recolecções insistentes, recordando-se, “dos crepes da igreja num cabeço de moitas e de macieiras que resistiam à nortada, dos painéis de santos da casa mortuária, e de uma falha de tijolos pela qual entrava o mar de inverno e se percebiam as chaminés da Ericeira lançandose em tumulto para a água” (19-20). Depois, sobre a casa da família, ele relata que: a casa da Calçada do Tojal… era uma moradia de três pisos depois de um portãozinho de lanças e de um pedaço de relva com arbustos agitando os membrozitos das hastes…. O que primeiro me impressionou… foi a ausência do mar, substituído pelo ruído das árvores…. A meio do corredor havia uma escada para o piso de cima aonde me proibiam subir, e a claridade do rés-do-chão morria nos degraus numa poeira difusa. (40) 42 Verificamos, novamente, a comparação entre duas moradias diferentes, bem como a espacialização do tempo, visto que a passagem deste é compartimentalizada pela preponderância das casas. Esta é, aliás, uma nítida ressonância de algo que Bachelard propôs sobre esta dinâmica: o espaço é tudo porque o tempo não mais anima a memória. A memória… não registra a duração concreta…. Não se podem reviver as durações abolidas…. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de uma duração concretizados em longos estágios…. As lembranças são imóveis e tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas. (203) António Lobo Antunes parece, neste sentido, concordar com Gaston Bachelard, pois a sua invocação mnemónica, como pudemos observar, é altamente espacializada. Para o funcionário público, portanto, a sua capacidade de restabelecer um elo com a sua infância é potencializada, como diria Bachelard, pela impressão que traz na sua psique das casas por onde passou. Esta conexão entre a angustia existencial e a ânsia saudosista é sublinhada por outro episódio que ele reconta a Iolanda. Nesta instância, o funcionário público relembra uma tentativa mal sucedida de revisitar os terrenos da sua infância. Assim, ele fica surpreso com o que descobre, pois a Benfica que sustinha dentro de si já não existia: Um feriado qualquer, há meses, tomei… um autocarro para a minha infância, e viajei por ruas desconhecidas ladeadas de prédios opacos, 43 todos idênticos, em que não reconheci uma única fachada…. Não dei com a palmeira nem com os muros de glicínias, o zumbido das abelhas não escurecia o céu, prédios de dez andares haviam engolido as quintas…. (39) Constatada a disparidade entre a memória e a realidade, entre o passado que sobrevivia das suas lembranças e o presente que os sentidos lhe transmitiam, o funcionário é forçado a admitir, penosamente, que se sentia, “um homem sem passado, nascido quarentão num banco de autocarro, a inventar para si mesmo a família que nunca tivera numa zona da cidade que jamais existiu” (40). Do ponto de vista topoanalítico, a trajectória do funcionário público demonstra a influência que a casa, principalmente a casa infância, pode exercer no desenvolvimento do sujeito, visto que a maioria do seu discurso é relativizado pelos lugares onde viveu. Repare-se que todo o envolvimento enquanto narrador é interpolado através de um dialogo sem interlocutor, um diálogo transformado em solilóquio pela a indiferença que o sono de Iolanda simboliza. Ademais, este discurso é proferido enquanto ele observa, a partir da janela do apartamento da Quinta do Jacinto, os seus arredores. Como o próprio relata, “Levanto-me da cama, subo um bocadinho os estores e as luzes de Alcântara prolongam-se até às docas e ao Tejo” (18). Todavia, o espaço que ele observa suscita, intercaladamente, visões de lugares distantes, no espaço e no tempo, e cujas evocações remontam-nos à tese de Bachelard, quando este sugere que, “acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece apenas uma série de fixações nos espaços da estabilidade do ser” (202). Portanto, o funcionário público é 44 um homem olha para fora da janela de uma casa para ver as outras, isto é, a janela do seu quarto na Quinta do Jacinto ao abrir-se para encarar Alcântara, desabrocha também outros tempos e outros lugares, cujo imaterialismo se impõe à realidade espácio-temporal do presente momento. O caso de Julieta representa, de certa formo, o inverso do seu filho, pois a experiência dela é definida pelo facto de ter vivido enclausurada no sótão duma só casa. Desta forma, a sua vivência remete-nos a outra observação de Gaston Bachelard, nomeadamente que, “a casa é nosso canto do mundo… nosso primeiro universo” (200). Para Julieta, esta é uma verdade constrangedora e desumanizadora que não só molda a sua existência, mas condiciona também a forma como ela se relaciona com o passado, e por extensão, confina a sua capacidade de rememorar, algo que se verifica quando, no processo de narrar um episódio da sua vida, ela confessa que: isso, como o resto, também se passou há muito tempo, ou então tudo se passou ao mesmo tempo num ano ou num mês ou num minuto da minha vida que não consigo determinar ao certo, onde o antes e o depois possuem uma idêntica textura que me exclui, como o que sucedeu antes do meu nascimento e se prolongará quando eu me for embora….(275) Ou seja, o que registamos no caso de Julieta é uma inversão da relação entre a memória e a casa proposta por Bachelard, isto é, uma vez que ela foi privada de desenvolver um elo com a sua casa de infância, o seu acesso mnemónico a essas experiências é descontextualizado. Esta restrição é exemplificada quando ela anuncia 45 que, “as minhas lembranças mais antigas principiam aqui, na Calçada do Tojal, e não em Queluz onde os meus irmãos nasceram num rés-do-chão perto de um parque com faias e bancos de ripas e a relva dos canteiros suja de papéis e de pontas de cigarros” (273). Percebemos, nesta passagem, uma certa inveja de não poder ter usufruído da mesma diversidade experiencial que os seus irmãos e, adicionalmente, confirmamos que todo o seu passado é armazenado na Calçada do Tojal. Umas das poucas alternâncias mnemónicas que Julieta descreve consiste no facto de haver uma divisória nítida na sua história pessoal: antes e depois do sótão. Assim, ela recorda que, “As minhas lembranças começam em Benfica, não aqui no sótão mas lá em baixo, no pátio da cozinha, do lado oposto à palmeira dos Correio” (274). Noutro momento ela informa-nos que: a partir de certa altura a nossa mãe, ou o meu pai, ou os meus irmãos, ou a família em conjunto impediam os estranhos de me verem…. Empurraram as coisas do sótão para uma zona esconsa, trouxeram a minha cama para aqui , e só aos domingos me chamavam para comer com eles na sala de jantar do rés-do-chão” (276). Percebemos neste contraste um fosso enorme, onde avistamos num lado as reminiscências de uma infância ainda não condicionada e, do outro lado, uma prisão corporal e emocional chamada sótão. Assim, Julieta comprova, pela negativa, a espacialização da memória, pois se, como disse Bachelard, “o espaço retém o tempo comprimido” (202), então a constante confinidade de Julieta no sótão e na Calçada do 46 Tojal denota que a sua clausura se alastra também à sua memória, sendo o seu passado indissociável do seu espaço encarcerado. Quando, finalmente, Julieta se liberta da Calçada do Tojal, ela fá-lo por motivações questionáveis, pois essa jornada é encetada, primeiro, porque ela se apercebe que, para o resto do mundo, ela não existe. Assim, numa altura em que todos os membros da família Valadas já haviam falecido, Julieta constata, na visita de um primo que pretende vender a vivenda a um casal que o acompanha, que todos aqueles que sabiam do segredo da sua existência haviam perecido. Por isso ela indaga: Quem será este primo que se tornou proprietário da Calçada do Tojal e quer vender a estranhos o que me pertence, este primo que somente agora, ao cabo de tantos anos, me vem expulsar de casa acompanhado por estranhos, espiolhando a minha roupa, os meus chás de rebentos de nespereira, o meu sótão, apropriando-se do esconso em que me oculto como um bicho na terra…. (324) Confirmada a sua invisibilidade e inexistência perante o mundo e desapossada do seu universo, Julieta concebe uma só alternativa: o reencontro com o irmão Jorge no mar de Tavira. A dobra invertida entre o telhado e o barco O romance A ordem natural das coisas reúne nas suas páginas uma forte demonstração da conexão indissociável entre o espaço e a memória e evidencia também a capacidade de ambientação do espaço natural. António Lobo Antunes insiste 47 frequentemente nestas configurações do espaço nos seus romances e, como pudemos observar, neste romance em particular o autor faz do espaço uma personagem. Quer seja a constante interpolação do rio Tejo na narrativa, quer seja o palpável balanço das ondas do mar nas vidas dos personagens, o espaço, aqui manifestado através do elemento aquático, ultrapassa o pano de fundo paisagístico e remodela-se na função activa e preponderante de transmitir conotativamente as emoções dos personagens. Ademais, testemunhámos a função central que a casa desempenha na articulação mnemónica do personagens, onde o domicilio serve não só de referência para o enquadramento temporal das histórias dos personagens, mas é fundamental também na evocação de tempos e lugares díspares daqueles onde são enunciados. 48 CAPÍTULO 3 PAPEL AMARROTADO De relance Semeio com minhas mãos, Planto com os meus rins; É muda a chuva fina. Numa senda estreita, Escrevo o meu segredo. Não é meia noite quem quer O eco é meu vizinho, A bruma, a minha sequência. René Char, Chants de la Balandrande 51 Quando, em 2012, o romance Não é meia noite quem quer foi publicado soubese, através das entrevistas dadas pelo autor e pela epígrafe inscrita na página que antecede o inicio da narrativa, que o título desta obra fora retirado de um poema de René Char, o qual incluí, integralmente, na epígrafe deste capítulo. 7 Acreditamos ser este um ponto de partida adequado para análise desta obra, pois a relação entre o poema de René Char e o romance de António Lobo Antunes vai 7 Aliás, a primeira referência feita por António Lobo Antunes foi registada numa crónica de 2011 publicada na revista Visão, na qual o autor declara que, “Há anos que este verso de René Char me persegue. Pensei usá-lo como título para um livro, como coda para um capítulo, fazer variações em torno dele num texto qualquer. Não fiz nada, até agora, porque me anda na cabeça mas não me aparece na mão, e só consigo escrever com os dedos, os miolos não pegam na esferográfica.” 49 além da doação do título. Assim, as mesmas sensações de isolamento, solidão, inaudibilidade, mistério e irreversibilidade inevitável sussurrados pelo eu lírico de Char são conferidos à narradora que protagoniza a fábula deste romance. São estas as características que permeiam a oscilação espácio-temporal que predomina a narrativa,ou seja, é a tentativa da narradora de compreender e, porventura, ultrapassar esse marasmo existencial em que se depara aos 52 anos de idade que a leva a retraçar as suas pegadas até ao epicentro da sua infância, donde tudo devém. Coincidir nas dobras os filamentos da teia O desenvolvimento fabular de Não é meia noite quem quer ocorre num período de três dias, mas os acontecimentos descritos distendem-se muito além e, na maioria dos casos, a divagação mnemónica propaga-se ao longo de cinco décadas. Ainda assim, a divisão estrutural do romance explicita este período fundamentado de três dias através do título das suas três divisões: sexta feira, 26 de agosto de 2011, sábado, 27 de agosto de 2011 e domingo, 28 de agosto. Cada uma destas partes é dividida em dez capítulos, com a particularidade de todos os décimos capítulos serem narrados por outrem que não a protagonista. No primeiro caso, a narradora é a colega mais velha, depois é a vez do irmão não surdo e, na última instância, é o irmão surdo que, mesmo que muito brevemente, assume a narração. Em todos os casos, os diversos narradores são geralmente autodiegéticos e, como tal, narram sobre as próprias experiências. Contudo, a narradora principal 50 discorre, por vezes, por uma narrativa homodiegética e, nessas ocasiões, ela limita-se a um discurso testemunhal das histórias dos outros personagens. Essas incursões progridem, ocasionalmente, para o campo de consciência e de memória da pessoa cujas experiências estão a ser relatadas e a narração é feita do ponto de vista desta personagem, podendo ela, inclusive, apoderar-se provisoriamente da palavra, como acontece com o pai e a mãe quando estes se recordam, respectivamente, do seu pai e da sua mãe. Por conseguinte, estes três dias abrangem uma jornada decisiva na vida e morte da protagonista. O que inicialmente aparentava ser uma viagem de despedida da casa de verão revela, depois, consequências muito mais fúnebres. Eis, então, que motivada pela venda iminente da casa de férias da família, a protagonista decide ir revê-la uma última vez. Nesse processo de despedida ela encontra muito mais do que antecipava, deparando-se, simultaneamente, com a decadência física da casa, da vila e de alguns dos seus habitantes que ainda lá permanecem. Deste contacto directo com o repositório corpóreo de um passado longínquo emerge um fluxo de memórias que explica as ramificações da vida de uma mulher, que aos 52 anos de idade, não se revê nem nela, nem nas suas experiências, nem no mundo que delas advém. Remetendonos, assim, para a infância da protagonista e, particularmente, para os episódios desses tempos conturbados cuja enunciação indica serem a génese da distopia pessoal que a sua meia idade ostenta. A narrativa oscila entre o presente e o passado, isto é, a presença da protagonista na velha casa de férias e, que através de interregnos anacrónicos, 51 retrocede a vários pontos traumáticos da sua vida que não conseguira superar e cuja rememoração estabelece uma consciência da causalidade destes na sua infelicidade. Entre eles destaca-se, primeiramente, o suicídio do irmão mais velho, que se jogara duma falésia e aparecera afogado na maré. Depois, provém a lembrança das infidelidades da mãe cujos frutos foram o seu filho surdo e o alcoolismo do seu marido. De seguida, surge a perca inesperada e repentina da sua amizade com Tininha, que partiu um dia sem aviso e jamais regressou. Algo que mais tarde vai influenciar a sua decisão de aceitar as ofertas afectivas da colega mais velha e que, por conseguinte, reflecte o seu amor de perdição por Tininha nesta relação lésbica com a sua colega. Ademais, a morte do pai, que fora antecedida pela sua degradação física e social. E, finalmente, a loucura do irmão não surdo, que regressou de África abatido pela experiência marcial e incapaz de se distanciar daquilo que vivenciou. Já noutra altura da sua vida, destacam-se mais percas: a de um filho que perdeu num aborto involuntário, algo que levou à deterioração da sua relação conjugal e à eventual separação com o marido. Perdeu, ainda, um peito para o cancro, ganhando, ao invés, a vergonha do estigma a isso associado. Não é, portanto, sem razão que ela desabafa, “ao longo de cinquenta e dois anos o que não perdi eu, o meu irmão mais velho, o meu pai, o meu filho” (265). Ou seja, a protagonista parte para a derradeira visita da casa que tanto albergou, lacerada pelo abandono, pelas sucessiva percas e por um sentido geral de ter passado ao lado da sua vida. O abandono das mortes do pai e do irmão mais velho, cujas retiradas da sua vida deixaram marca indeléveis, erigem barreiras quase 52 intransponíveis à afectividade. A sua amizade com a Tininha, descontinuada súbdita e irreversivelmente, projecta-se ao longo da sua vida por uma constante indagação saudosista, cuja vera natureza se revela mais tarde no relacionamento amoroso que iniciou com a colega mais velha quando o seu casamento ainda não tinha desabado completamente. Esta tentativa de substituir emocionalmente a amiga de infância pela colega mais velha transforma-se, simplesmente, noutro empreendimento falido, pois as comparações obsessivas entre as duas minam a relação e desvendam o óbvio: Tininha, ou melhor a potencialidade que sua memória alimenta, é insubstituível. Os restantes solavancos da marcha fúnebre em que a sua vida se consagrou simplesmente reiteram aquilo que já era sabido e sentido: um desalento incessante que a todo o momento comunica os sucessivos descarrilamentos que fomentou um presente descompassado. A despedida da casa revela-se, portanto, como uma despedida de si própria, da sua trágica história pessoal. Fica aberta à interpretação do leitor se esta viagem à casa de férias estava, desde início, impregnada com a ideia da suicídio, mas a nosso parecer, essa semente funesta ainda não havia brotado. Foi, precisamente, o desencadeamento memorial provocado pela sua presença na casa de férias que fez da semente um rebento. Aliás, parece-nos claro que a narradora se esforça, em diversas ocasiões, por encontrar um fio de alegria na história da sua árvore genealógica, mas este perde-se perante a malograda multidão de desilusões e insucessos. Goradas que foram as possibilidades de construir um futuro, tanto pela morte uterina do filho que não foi, como pelo desvanecimento do seu casamento, como ainda 53 pelo fracasso do seu namoro com a colega mais velha, a protagonista procura, através da rememoração, a reconstrução dum espaço alterno que a acolha. Contudo, essa experiência, agudizada pela justaposição de temporalidades opostas num só espaço – a casa de férias – resulta numa constatação imperiosa: a única solução que lhe resta é uma reunião com o irmão mais velho, pois a morte deste é o epicentro do seu sofrimento, cuja constância desrespeita, na sua propagação, todas as barreiras espácio-temporais. Assim, retomando, num ritual cheio de fé, as pegadas do irmão, cujas as marcas a memória susteve no terreno empoeirado do topo da falésia, a protagonista segue uma trajectória enfaticamente descendente, em direcção às ondas do mar, que são o espaço comum que tem com o irmão mais velho, e, simultaneamente, o afastamento eterno da mãe, num momento descrito com a clarividência da morte anunciada: o facto de o meu irmão mais velho comigo fez-me sentir tranquila… mas a noite que começa, mas o meu corpo lá em baixo… e nunca vi instantes tão instantes como estes instantes, mas os instantes de silêncio no interior do ruído, mas uma valsa na telefonia e a minha mãe a levantar-me no chão para me pegar ao colo e dançar comigo… à medida que a valsa nos aproxima do ângulo da rocha a girarmos as duas… e o meu irmão mais velho a seguir-nos do destroço de mesa… o meu irmão mais velho falecido há tanto tempo a sorrir um sorriso que lavava a cara dele e a minha…a minha mãe a separar-me de si e a estender-me na direcção do 54 mar… no momento em que me largou, não sei qual de nós duas caiu. (453-454) O desfecho, portanto, desagua na libertação através da morte, não uma morte qualquer, uma morte reencontro, uma morte despedida e uma morte reconciliação. Como se pode apurar através da amostra dos personagens acima referidos, outra característica desta obra é o desígnio dos personagens, que pode ser categorizado em três géneros distintos: primeiro, temos o anonimato da narradoraprotagonista; depois, a denominação através de títulos de parentesco e sociais; finalmente, registamos a apelidação através de nomes próprios, cuja única curiosidade é que, independentemente da ortodoxia desta selecção, a sua adopção é reservada a personagens periféricos, algo que surge, portanto, como paradoxal. Sobre o primeiro caso há pouco mais a desenvolver, pois dito simplesmente, a narradora permanece efectivamente anónima, sendo que a única designação que ela recebe é do pai e do irmão mais velho que se lhe referem como ‘menina’ em diversas ocasiões. Contudo, a importância da repetida menção deste vocábulo relaciona-se mais com a definição dos termos afectivos entre a protagonista e este dois familiares, particularmente porque essa afectividade se desenha num contraste nítido com as relações que ela mantém com os restantes familiares. Já no segundo caso, o do uso de frases descritivas, deparamo-nos com uma opção muito mais frutífera e passível a uma análise. Contudo, para que isso seja possível é essencial apresentar os personagens principais e, para tal, é necessário, primeiro, definir que, uma vez mais, António Lobo Antunes elegeu enveredar pela 55 evocação de um dos seus temas recorrentes: o drama familiar. Iremos, com toda a certeza, debruçarmo-nos sobre este aspecto nas páginas que seguirão, mas para já é suficiente a constatação deste facto. Ora, no que se refere à família da protagonista, ela é constituída pela mãe e pelo pai e depois pelos três irmãos: o irmão mais velho, o irmão não surdo e o irmão surdo. Ao mesmo nível de significância que este núcleo familiar podemos introduzir o marido, a Tininha/Doutora Clementina e a colega mais velha. Portanto, do grupo de personagens centrais somente uma, a Tininha, foi apelidada com um nome próprio, enquanto que os restantes são identificados através de títulos de parentesco. Logo, somos forçados a questionarmo-nos sobre a razão de ser desta opção do autor. Existem várias interpretações possíveis, tanto do foro psicológico como do foro ideológico, mas o desenrolar da narrativa sugere-nos que o arbítrio do autor, neste caso, pretende enfatizar a teia relacional entre a narradora e os seus familiares e, ao mesmo tempo, desacentuar a relevância desses personagens por si próprios. Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, em Dicionário de narratologia, consideram que: um nome próprio é um designador de referente fixo e único…; de facto, o nome próprio garante a continuidade de referência ao longo do sintagma narrativo, já que através dele se mantém a identidade da personagem, suporte fixo de acções diversificadas…. No romance contemporâneo assiste-se por vezes a um certa desestabilização do estatuto tradicional da personagem reflectida na ausência de nomes…. (301) 56 Cremos, portanto, que nesta ocasião, essa ‘desestabilização’ tende para o amortecimento da relevância individual dos personagens e para a fortificação da importância das conexões estabelecidas entre eles. Contudo, é igualmente importante não assumirmos uma hierarquia com base nestes critérios porque, como afirmámos anteriormente, a narradora-protagonista permanece, de certa forma, ocultada pelo seu anonimato onomástico. Aliás, é precisamente através da adopção de uma organização que resiste à verticalização e que, pelo contrário, se prima por uma ordenação densificada horizontalmente, que da narrativa raia a distribuição equânime das inter-relações das personagens. Nesta vertente multidireccional franqueada pelo sistema de nomenclatura aplicado por António Lobo Antunes iniciaremos a nossa primeira abordagem à análise espacial de Não é meia noite quem quer. Interverter os cantos aos significados Começando, então, com a malha tecida pelas relações estabelecidas entres os personagens centrais, convém clarificar que todas são enunciadas através da rememoração da narradora. Isto é, a única acção ancorada no presente é a marcha fúnebre da narradora, que se desloca à casa de férias antes de, tal como o seu irmão mais velho, pôr término à sua própria vida. Tudo o resto é revelado através da capacidade conferida à narradora de se mobilizar nesse mundo paralelo da memória, do passado. De sublinhar, também, que essa habilidade não é restrita às suas próprias 57 recolecções, pelo contrário, ela propaga-se também às memórias dos outros personagens, dos seus parentes, do seu marido, da sua amante. Esta aptidão da protagonista confirma a ainda vigente visão do mundo onde o materialismo, o imediatismo e o reducionismo, que durante tanto tempo, pelo menos nas sociedades ocidentais, ditaram limitações que privilegiaram uma ontologia espáciotemporal firme, homogénea e hegemónica. Contudo, na obra de António Lobo Antunes, como a mobilidade mnemónica da narradora alvitra, verifica-se uma tendência para a dissolução dessas formas de consciência, pois o que sobressai é a alteridade própria, o nosso próprio outro, o passado conjuga-se no presente, as fronteiras da temporalidade são transgredidas e o espaço é simultaneamente favorecido e abolido, dilatado e abatido. Estes são fenómenos literários e ontológicos que se coadunam com elementos explicitados por Bertrand Westphal em Geocriticism – Real and Fictional Spaces. Segundo o teórico francês, houve uma mudança radical na forma de conceber o mundo após a Segunda Guerra Mundial: At the end of the war, the two coordinates of the plane of existence were in crisis, and with them all that exists. Time was deprived of its structuring metaphor. Space, dangerously concentrated, got lost between the barbed wire of the camps and the rapid fire over the trenches. The straight line was dead…. At the height of this global cri- sis, postmodernism (as an aesthetic) and postmodernity (as a condition) found their epistemological and ontological foundations, if they may be so called…. Hence, one might 58 say that the spatiotemporal revolution took place around 1945. After the Second World War, time and space became less ambitious, more tentative: the instants do not flow together at the same duration; in the absence of hierarchy, durations multiply; the line is split into lines; time is here- after superficial. (12-13) Assim, Westphal estabelece uma ligação directa entre as ramificações da crise mundial que se instalou com a guerra e com a ascensão da legitimidade do espaço, que até então fora relegado para um segundo plano em favorecimento do tempo. Mas, mais do que isso, a própria visão do espaço (e a sua representação) evoluiu, passando a ser menos rígida e rectilínea e tornando-se, ao invés, mais fluida e heterogénea. Uma das consequências desta revolução foi o surgimento de novas metáforas que pudessem captar as novas dinâmicas espácio-temporais, uma vez que a redita e redobrada metáfora do rio (e outras que se baseassem na linha recta) deixara de fazer sentido. Como George Poulet declara em Studies in Human Time: The specific objective of history is to put in place a continuity among different moments of time, to show some rational principle according to which they relate to one another. But a string of discrete moments cannot form a history…. But the new game consists in grasping those points or moments in a way that eliminates any hierarchical arrangement, so that the linear model disappears and, with it, the meaning and unity it afforded. The way is now free, but labyrinthine. From a given moment in time—or 59 rather, in history—the straight line becomes a tortuous path. (citado em Westphal 16) Surgem, portanto, novas formas de tentar capturar e representar o mundo que exprimam os novos modelos de compreensão do mesmo. Começara a era da fragmentação. Não deixa de ser curioso que as qualidades mais referenciais do espaço quando este estava subjacente ao tempo – a sua solidez e consolidação – foram invertidas quando a ordem espácio-temporal foi reordenada. Uma destas novas representações foi, segundo Westphal, proposta por Maria Luisa Dalla Chiara Scabia, quando ela em 1973 introduziu ao mundo o conceito de tempescule como substituto do conceito de momento.8 De acordo com esta teoria: While the moment is a homogeneous and indivisible point, the tempuscule is ‘understood as an interval of time (a given Δt) ‘brief enough’ in relation to a theoretical context for reference.’… Under this theory, the ‘moment’ is no longer a point (sensu stricto) in an autonomous ensemble with limited meanings. (Westphal 16) A relevância directa deste conceito com o nosso estudo da obra romanesca de António Lobo Antunes aclara-se ainda mais quando Westphal explica que: Dalla Chiara Scabia elaborated the principle of biographical lines, which rely on different tempuscules. Each of these lines would fit into a family of biographical lines in an overall system of individuals who participate in analogous, if not shared, histories…. The idea of the tempuscule reveals 8 Westphal indica que mais informação sobre o conceito do tempescule pode ser obtida no artigo de Scabia, “Istanti e individui nelle logiche temporali,” publicado na Rivista di filosofia em 1973. 60 that the classic relationship between the moment and duration in time, between the point and the line, may be superseded beneficially, to interconnect infinitely variable sets of tiny series or intervals endowed with a modicum of meaning. Such semantics requires a free circulation of tempuscules in a sort of erratic coasting across an archipelago of the possible. (16-17) Ora, aqui regressamos à eleição por parte do autor, expresso pela narradora, de favorecer as relações entre os personagens, fazendo-o estruturalmente, através da evasão ao uso de nomes próprios, bem como semanticamente, através da contextualização dessas relações num mundo suspenso, predominantemente mnemónico, mas nem por isso menos ‘real.’ Começamos, portanto, a discernir este arquipélago relacional de significados que é sustido entre os personagens e, como iremos observar, das contenções espaciais que os representam directa ou indirectamente. Por consequência, passamos a assinalar alguns dos leitmotive identificados em Não é meia noite quem quer e definir a razão de os considerarmos tempuscules. Uma das técnicas diegéticas que registamos nas obras antunianas, particularmente nas que foram publicadas na última década, é a construção formal do que Ana Paula Arnaut apelida de ‘ciclo de silêncio’ em “O arquipélago da insónia – litanias do silêncio.” Segundo a teórica, este romance iniciou um novo ciclo onde: António Lobo Antunes parece ter conseguido o silêncio, o intimismo, (quase) completo, absoluto, que, em diversas ocasiões, disse querer 61 alcançar. Esta sensação não decorre apenas do facto de as personagens parecerem falar para dentro de si mesmas… o silêncio a que nos referimos concorre, ainda, o uso de uma linguagem substancialmente despojada do que muitos leitores classificam como ruído e que o próprio Lobo Antunes designa por “gordura” ou “banha”…. (“O arquipélago da insónia – litanias do silêncio”) Podemos afirmar que Não é meia noite quem quer se mantém fidedigno às características estilísticas apontadas por Arnaut. Assim, o que se observa é que no interior deste silêncio, desta interioridade, estabelecem-se referências entre os personagens através de imagens representativas, imagens estas que captam o essencial de um momento fulcral desta relação. Esta figuração pode ser exprimida como um objecto, uma descrição paisagística, um odor, um som, enfim, uma qualquer manifestação sensorial que é depois repetida em associação a um momento que define o relacionamento entre dois ou mais personagens. É, portanto, desta forma que interpretamos a formação de tempuscules na narrativa antuniana. Estes são os glóbulos semânticos que se interligam e se rearranjam para criarem diversos arquipélagos significativos, onde impera uma espécie de caos organizado. No caso concreto deste romance, presenciamos vários exemplos, dos quais destacaremos alguns que consideramos mais relevantes. O primeiro destes tem, obrigatoriamente, de recair sobre o irmão mais velho, pois ele é o ponto de viragem no rumo da vida da protagonista. Inicialmente, porque era com ele que ela tinha uma relação mais próxima e carinhosa. Depois, porque o seu suicídio transtornou 62 completamente a vivência da narradora, tanto pelo choque do acto em si, como pelo vácuo que a sua ausência criou. O irmão mais velho é reproduzido principalmente por duas imagens: a bicicleta, por vezes o quadro da bicicleta, e o Alto da Vigia. O primeiro caso refere-se não só ao facto de que andava de bicicleta, mas ainda porque a narradora retém lembranças vívidas das instâncias em que o irmão mais velho a levava no quadro da bicicleta. Assim, logo de início reconhecemos esta dinâmica, pois como a narradora descreve: eu cinco anos, os meus irmãos sete e nove, não vou falar do meu irmão mais velho, não se fala do meu irmão mais velho, aí está ele a sorrir-me - Menina e a descer de bicicleta para a praia comigo no quadro que me magoava um bocadinho, feliz e com medo - Não vamos cair promete e não caíamos, ao saltar do quadro continuava a magoar-me um bocadinho e depois passava….” (13). A harmonia entre os dois é, portanto, empreendida através desta imagem, um irmão mais velho que carrega a irmã mais nova na sua bicicleta, que a traz com ele, que exploram o mundo juntos, que se divertem desta forma inocente nas férias de verão. Logo, percebe-se a robustez da ligação entre esta imagem e a memória do irmão. Noutros momentos, a bicicleta torna-se o fulcro para outras emoções: a tristeza, aquando da descoberta do suicídio do irmão mais velho, pois, “uma ambulância subiu a rua, que a bicicleta descia na direcção da praia, o meu pai trancou-nos no quarto do 63 meu irmão surdo…” (20); a saudade, “uma tarde em que supunha que não viam dei pelo meu pai diante da bicicleta do meu irmão mais velho, na garagem onde se acumulavam uma armação de berço, objectos quebrados, lixo…” (22); a ausência, palpável, uma vez que: o lugar vago à mesa insistia - Estou aqui conforme a bicicleta - Estou aqui e as camisolas do meu irmão mais velho na gaveta - Estamos todas aqui… (53); o ciúme, visto que, “a empregada dos Correios, se descesses a rua da praia com ela no quadro da bicicleta, ia buscar a faca do peixe, a grande, à gaveta e espetava-lha” (278). Estes são apenas alguns dos exemplos de uma das imagens que, uma vez estabelecida, passa a ser um referente do irmão mais velho. Percebe-se a flexibilidade desta abordagem, algo fica ainda mais evidente quando essa mesma referência é usada para contextualizar outras dinâmicas entres outros personagens, como pode ser observado na citação acima que fala do pai. Na continuação da mesma, o pai sugere, “– Anda dar uma volta menina” (22), e neste instante as relações cruzam-se: para ela o pai assume o papel do irmão; para o pai, ela assume o papel do filho mais velho. A dor da ausência é partilhada, comiserada, o vácuo é, momentaneamente, preenchido. Os exemplos deste fenómeno desdobram-se por toda a narrativa. Ainda a propósito do irmão mais velho, registam-se, como havíamos dito, as seguintes 64 imagens: o Alto da Vigia, que se refere a um letreiro dum restaurante falido e abandonado, que se situava no topo da falésia donde ele se suicidara; um burro, que por ter anteriormente caído da mesma falésia e aparecido morto na praia, tal como o irmão mais velho, assume, por vezes, a substituição deste; os livros O manual do perfeito carpinteiro e A classe operária ao poder, o primeiro por ser o livro que simbolizava passagem a homem do irmão, o segundo porque o associava ao estatuto de revolucionário que ele assumiu e que contribuiu para a decisão de se suicidar. Os outros personagens centrais recebem tratamentos idênticos. O pai é evocado ora pelo terlintar das garrafas que bebia às escondidas na dispensa, ora pelo pão esfarelado que deixava na mesa depois das refeições. Em ambos os casos, o pai surge como alguém que a narradora relembra com carinho, mas que conheceu em fase de decadência moral e física, de forma que: o meu pai contente também… vaidoso de si mesmo, esquecido das garrafas - Sou de chumbo tirando o fígado, que não era de chumbo, se esfarelava mais depressa do que o pão na toalha, não mexa no seu fígado, senhor, não o transforme em migalhas, a minha mãe a sacudi-lo na marquise para a fome dos pardais…. (75). Observa-se, portanto, esse jogo de palavras que, numa só passagem, assimila o potencial do pai (ser de chumbo indica uma fulgurância física e solidez geral da 65 pessoa), e depois a sua decomposição, a doença do fígado, transformação em migalhas e, finalmente, ser varrido pela mãe para o quintal. A mãe, por sua vez, é designada por uma expressão que repete muito e que, segundo o ponto de vista da narradora, capta a sua forma de ser em relação à família: ‘Já viu a minha sina?’. É uma locução popular em Portugal que transmite um sentido intrínseco de vitimização e desânimo. É, também, uma frase que exprime a distancia e frieza da relação entre a mãe e a narradora. Contudo, no nono capítulo do primeiro dia, a narrativa é dedicada, quase exclusivamente, ao episódio que retrata o primeiro dia de escola da narradora, onde: a mulher que se afastou, parecida com a minha mãe, hesitando no portão… a caminhar no passeio, ao longo das grades, cada vez mais depressa, aflitíssima, estacando de repente… a correr até à esquina, a abrandar, a olhar-me de novo, a sumir-se…. (129) Isto é, a passagem delineia, por um lado, a sensação de abandono por parte da criança e, por outro, a ansiedade e preocupação da mãe. A narradora relembra que a mãe vestia, “uma saia azul que nunca esquecerei, de cada vez que a punha tinha a certeza de que não gostava de mim e se chamava não vinha” (129). A saia azul, passa então a representar esse sentimento desconexo entre a idealização e a actualização da relação entre as duas, da vontade de aproximação e a distância intrínseca a essa dinâmica de parentesco, mas também, a compreensão por parte da narradora desta forma de ser. Entretanto, o irmão não surdo, o que participou na guerra colonial em África, é evocado, principalmente, por essa mesma experiência. A narradora, servindo-se do 66 trauma mnemónico do irmão e tendo acesso às recolecções dele, descreve-as e depois cristaliza-as para se referir a ele. Então, de diversas formas o irmão não surdo é equacionado através de uma paisagem onde se observam, “palhotas incendiadas, galinhas que se escapavam, um velho de cachimbo diante de uma mulher estendida, o meu irmão não surdo a subir para a camioneta na ponta da aldeia…” (72). E, para últimos exemplos, indicamos o irmão surdo e a Tininha. O irmão surdo, porventura pela sua dificuldade de expressão, é, por todo o romance, articulado através de uma frase que ele proferiu: ‘Ata titi ata a tia atou.’ Enquanto que, a amiga de infância, a Tininha, é referenciada através de algo que remonta aos tempos das suas amizades: as pétalas de flores que usavam em vez de verniz para decorarem as unhas e os brincos de princesa que usavam igualmente a condizer. Todos os casos assinalados seguem, mais ou menos, linhas de desenvolvimento semelhantes, isto é, a isolação de um aspecto de um momento transforma-se numa representação associativa a uma das personagens nele envolvidas, ou à relação entres esses personagens. Depois de estabelecida, esta imagem, através do significado por ela invocada, esta emerge na narrativa repetidamente e assume novas iterações significativas, dependendo de onde e como surge. Como observámos, essas evocações relacionam-se directamente com a representação textual do espaço, tendo em conta que, como defende Yi-Fu Tuan em Space and Place – The Perspective of Experience, o conceito do espaço abrange as diversas combinações sensoriais, ou seja, “space can be variously experienced as the 67 relative location of objects or places, as the distances and expanses that separate or link places, and—more abstractly—as the area defined by a network of place” (12). O que propomos, desta forma, é que estas instâncias evocativas de elemento espaciais servem, efectivamente, de tempuscules, pois são pequenos intervalos, reduções de um momento, que albergam a sua própria semântica e cuja dimensão e flexibilidade proporciona a uma extensa variedade de interligações entres eles donde resulta uma igualmente extensa diversidade de novos significados. Em vez de todos os pontos se alinharem para formar uma linha recta, deparamo-nos com uma nuvem anárquica de pontos, onde reina uma certo caos criativo. Como Westphal indica: The figure of entropy is undoubtedly more appropriate to express this “pointillism” because it relies on a logic of particles…. Furthermore, in entropy, two dialectical elements are invariably linked: the creative elements of disorder and of order…. Nonequilibrium is coherent and, ultimately, more interesting than equilibrium, since the latter is deprived of history… In sum, equilibrium is equivalent to a nonstory, which is why change is not compatible with it. Through non- equilibrium, it is possible to have a very complex story, which corresponds to a garden of forking paths, of points (not lines!) of instability. (19) Percebe-se, portanto, que é precisamente desta aparente desorganização de interjeições polifónicas e evocações figurativas donde emanam os padrões que formam a história. O que nos leva à próxima questão: Como padronizar, como organizar, como apreender e aglutinar as marés de significados possíveis? 68 (Re)unir os cantos no vínculo central A melhor resposta que encontrámos para estas perguntas devolve-nos ao Geocriticism – Real and Fictional Spaces de Bertrand Westphal, em particular ao capítulo dedicado ao conceito de transgressividade (transgressivity). O teórico aborda várias ideias úteis à nossa análise de Não é meia noite quem quer de António Lobo Antunes, mas no que diz respeito à descodificação da organização relacional entre os tempuscules que acima definimos, a que melhor se enquadra é a teoria de rizoma que Gilles Deleuze e Félix Guattari elaboram em Mil platôs – Capitalismo e Esquizofrenia (1980). Em oposição às ordenações hierárquicas do passado, este novo sistema reflecte as restruturações pós-modernas que favorecem os valores de heterogeneidade e multiplicidade. Desta forma: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo…. Num rizoma… cada traço não remete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos… colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. (Deleuze, Gille, and Guattari (14) É essa organização predominantemente horizontal e em cadeia que melhor capta as conexões relacionais entres os diversos personagens no romance de António Lobo Antunes. Algo que Westphal elucida ao declarar que: 69 Rhizomatic territory is subject to the delinearization of time, to its fabric. This anomic space-time is appropriate for the fluid forms of the postmodern. In its rhizomatic character, territory lacks all stability in time; similarly, its spatiality is always changing, even fugitive. (51) Este modelo desvaloriza um centro organizador e uma estrutura hierárquica em favor doutro modo de ver o mundo, um modo onde o que mais interessa é a inter-relação, a flexibilidade, a fugacidade. Estas são características que se percebem na obra de António Lobo Antunes e que, na nossa opinião, advêm da forma como o autor suspende o tempo e transgride as fronteiras espaciais. Como Sérgio Guimarães de Sousa comenta no seu artigo, “Suturas, rizomas, montagem e vozes em António Lobo Antunes:” Nesta configuração narrativa desprovida de centro organizador e de um fio diegético unitário, que aglutinaria portanto numa narrativa de conjunto as linhas de acção mais secundárias e paralelas, instaurando assim um princípio orgânico e unitário de hierarquia, podemos ver uma forma de narrar não hierárquica … próxima, em termos de registo deleuziano, da estrutura rizomática. À revelia do despotismo de uma unidade principal – de um eixo narrativo central –, as condições discursivas da estrutura rizomática radicam na multiplicidade. Os eixos-tronco ramificam-se dicotomicamente e consubstanciam um sistema a-centrado que difere da arborificação (sistema totalizador) e que se prende antes com a proliferação das ervas-daninhas. (406) 70 Ainda assim, seria ridículo defender uma total ausência de verticalidade ou de centralidade, pois afinal temos uma narradora definida cuja vida e morte servem de centro enunciativo para o restante da narrativa. Contudo, o que é mais saliente é a possibilidade, a sugestão talvez, de que facilmente esta história poderia ser contada por outro personagem, focalizada na experiência deste, propagada a partir de outro centro, de outro tempuscule, ramificada através de outro nódulo do rizoma. Isso consegue-se porque predomina uma insistência na fluidez diegética, ou seja, no estilo fugaz em que, por exemplo, a narradora incorre nas lembranças dos outros e como, por consequência, às vezes, isso leva à transferência de narrador sem qualquer demarcação. Esta qualidade multidireccional da narrativa implica uma imaterialidade, portanto, uma descorporificação, o que, por sua vez, nos remete a um exaustivo manuseamento da representação espacial no romance. Sobre este assunto, a relação entre corpo e espaço, Yi-Fu Tuan declara que: if we look for fundamental principles of spatial organization we find them in two kinds of facts: the posture and structure of the human body, and the relations (whether close or distant) between human beings… The word ‘body’ immediately calls to mind an object rather than an animated and animating being. The body is an ‘it,’ and it is in space or takes up space… Body is ‘lived body’ and space is humanly construed space. (35) Ora, de acordo com os princípios fundamentados por Tuan, isto é, a existência de uma relação intrínseca entre o corpo e a definição e percepção do espaço, a destituição das 71 delineações do corpo no texto automaticamente transtornam a paisagem. É, precisamente, esta ausência de autoridade corporal que relativiza a distância entres os personagens e que desmantela a solidez espacial, o que não deixa de ser outro paradoxo, pois ao mesmo tempo que factores espaciais – objectos, elementos naturais, estímulos sensoriais, etc. – são a chave para a evocação mnemónica, o próprio espaço é transgredido de tal forma que quase é aniquilado. Este fenómeno corresponde ao processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização inerentes ao princípio de transgressividade elaborado por Westphal. Segundo este: When variation is continuous, the punctual transgressive act (the variable that will not remain a constant) is in a state of permanent transgressivity, which in turn affects territory, another name for a system of spatial reference that would like to be homogeneous and that is not homogeneous. Transgression belongs to homogeneous and unitary systems, those expressing explicit and stable limits, which one can then courageously cross. It changes character in heterogeneous and multiple systems that can create their own escape routes. (51) Desta forma, compreende-se a interpolação deste conceito ante a teia conectiva tecida em Não é meia noite quem quer. Se relembrar-mos as palavras proferidas por Ana Paula Arnaut sobre as características do ciclo do silêncio da obra antuniana, recordaremos que ela aludiu a, “personagens [que] parecem falar para dentro de si mesmas” (O Arquipélago da Insónia: litanias do silêncio), bem como da presença de 72 ‘fantasmas.’ Sendo que, essa construção diegética que ao pender para o interior do sujeito e despovoar o mundo condiz a um efeito de desterritorialização. Enquanto que a repovoação e legitimação do mundo interior se enquadram com o processo de reterritorialização. Logo, a oscilação entre estes quadrantes produz a tal fluidez diegética a que nos referimos e, por conseguinte, discernimos uma reformulação da representação e evocação do espaço que concomitantemente o eleva a um plano de extremo relevo e o neutraliza e difusa através destas constante transgressões. Desabar as abas do descom(es)pa(ç)o Acreditamos que umas motivações deste fenómeno é referenciada por Westphal na citação anterior quando ele menciona que um dos frutos produzidos pela transgressividade é a criação de rotas de fuga. Esta ideia é pertinente, talvez primordial à obra de António Lobo Antunes, porque neste romance, e decerto na maioria dos restantes, deparamo-nos com um sujeito desenquadrado com o seu meio, um sujeito incapaz de encontrar, ou conquistar, o seu próprio espaço. O que sugerimos, portanto, é que este desconjuntamento do indivíduo leva à desagregação e dissolução do mundo que o rodeia e favorece a incursão para dentro de si próprio. É, efectivamente, uma tentativa de iludir o espaço estriado e construir o seu próprio espaço liso, termos que foram desenvolvidos por Deleuze e Guattari em, uma vez mais, Mil platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. Estes conceitos elaboram uma dicotomia que capta a oposição entre o espaço politizado e o espaço livre, entre o espaço homogéneo e o espaço heterogéneo, respectivamente. Como Westphal aponta: 73 Striated space, then, is the space occupied by the state apparatus. This is the space of the polis, politics, the policed, and the police, as opposed to the space of the nomos, which is smooth space.… ‘sedentary space is striated, by walls, enclosures, and roads between enclosures, while nomad space is smooth marked only by ‘traits’ that are effaced and displaced with the trajectory.’ (39) O exemplo apresentado portanto, é a oposição metafórica entre a vida sedentária e a nómada. Contudo, nada nos impede de extrapolar essa contraposição conceptual para o espaço pessoal, traçando um paralelo entre este e o espaço social. Desta forma, percebemos o espaço liso como a capacidade do indivíduo de se impor na sua própria existência duma forma autónoma e personalizada, ou seja, o sujeito que observa ao seu redor a liberdade concedida pela amplitude do deserto. Enquanto que o espaço estriado seria representativo da experiência pessoal que é enclausurada por forças exteriores, existindo dentro de parâmetros inibitórios e repressivos. Neste caso, ao seu redor, o indivíduo reconhece um constrangimento semelhante àquele que os sucessivos quarteirões de arranha-céus impõe no espaço urbano. Portanto, para a narradora de Não é meia noite quem quer, a opção de reverter para uma sociedade nómada, isto é, a um espaço em que a sua autonomia ainda não foi restringida pela influência de experiências que lhe foram impostas, não existe. Perante a impossibilidade de se libertar do seu polis pessoal, ou seja esse conjunto de experiências, memórias, desilusões e outras edificações existenciais, por extensão, de 74 desmantelar a sociedade que a deformou, e incapaz, ainda, de se descomplexar das preces institucionalizadas, resta-lhe, então, uma solução: construir dentro de si um mundo liso, nem que este seja apenas um semblante, um holograma, uma miragem no deserto sedentário. Deste ponto de vista, a rememoração passa a ter menos a ver com a tentativa passiva de reviver o passado e, pelo contrário, passa a ser um exercício activo de reconstrução, de reabilitação. Tendo em conta o desfecho fatídico que aguarda a narradora, é natural que se questione o a eficácia deste exercício, pois raramente consideramos o suicídio como uma avenida reabilitadora. Contudo, e iludindo propositadamente esta matéria controversa, o que se nos afigura como mais pertinente é que durante os três dias que precederam a sua morte, ela consegue, efectivamente, recuperar alguma da autonomia perdida, pois durante esse tempo e nesse espaço recriado, é ela quem navega e controla o fluxo da vida. Convém, também, relembrar que o seu objectivo era da apaziguar e não de reconquistar, ou seja, como a seguinte citação ilustra, o intuito da narradora era reconciliatório: vim despedir-me da casa ou do meu irmão mais velho e, através dele, de mim mesma… da lâmpada no tecto do hospital onde me tiraram o, onde o meu pai, onde a minha mãe um dia, onde eu de novo… e regressei aqui não sei porquê esperava encontrar o meu irmão não surdo, à minha espera num dos compartimentos da casa… agarra na espingarda, aponta-a para mim e ordena que caminhe até à ponta da falésia para que, 75 ao contrário do nosso irmão mais velho, alguém me auxilie a tombar. (9596) Verificamos, portanto, que a protagonista procura tanto o reconforto das despedidas, como o encorajamento das memórias para o desfecho que ela considera o melhor, senão mesmo o único. Algo que, aliás, é reforçado na já citada cena do suicídio, em que ela concomitantemente se aproxima do desejado irmão mais velho e se distancia da mãe e das memórias dos restantes parentes. Os momentos que melhor exemplificam essa manifestação de reconstrução activa do espaço liso são as incontáveis ocasiões em que a narradora meandra o entre espaço de dois mundos que nela aparecem sobrepostos, mas que deveriam ser distintos tanto no tempo como no espaço. Isto regista-se nitidamente quando a narradora afirma sobre si própria que, “eu não com onze, com cinquenta e dois anos, ou seja eu com onze e com cinquenta e dois anos, de cabelo loiro por cima do cabelo branco” (21). Neste caso, a sobreposição é dos seus próprios registos físicos e etários ao longo da sua vida, os anos passam, a idade muda e o cabelo também, mas naquele momento tudo se conjura numa só pessoa, num só momento. Esta citação demarca ainda a principal oscilação temporal do romance, os onze anos de então e os cinquenta e dois do presente, contudo por momentos, como este, essa oscilação transforma-se numa nova realidade que assimila os dois pólos, suspendendo o tempo e transgredindo o espaço. Noutra instância uma divagação da narradora aclara esta ideia: 76 Já não me lembrava de haver tão poucas luzes neste sítio salvo um ou outro candeeiro entre as árvores, uma ou outra lanterna no alpendre e o halo do mar, a casa escura, a rua escura, depois do poço uma treva de arbustos que se arrepia com o vento e aquieta de novo, não os vejo, sei que existem apenas, caminho nesta casa porque a lua, quando as nuvens se esquecem de a esconder, inventa paredes maiores do que as paredes do dia que me permitem deslocar-me entre elas, sei lá se é nesta casa que morei ou noutra que a lua criou, um brilho nos caixilhos, um pedaço de sobrado, um caixote de que se esqueceram com talheres e roupa, onde estou eu, de facto, parece que vozes e não vozes, presenças e não presenças e no entanto a suspeita, num ângulo da alma, que habitámos aqui…. (271) Neste momento de contemplação, encontramos a alternância entre os dois mundos, a confrontação entre a lembrança e a constatação do presente, e uma fresta aberta pela dúvida gerada entre a luz e as sombras. Uma forma de compreender essa tentativa de abrir novos mundos nestas frinchas oscilatórias é abordada por Michel Foucault em “Of Other Spaces” (1967), onde o teórico discursa sobre heterotopias. Segundo esta teoria: The space of our primary perception, the space of our dreams and that of our passions hold within themselves qualities that seem intrinsic: there is a light, ethereal, transparent space, or again a dark, rough, encumbered space; a space from above, of summits, or on the contrary a space from 77 below of mud; or again a space that can be flowing like sparkling water, or space that is fixed, congealed, like stone or crystal. (“Of Other Spaces”) Percebe-se, portanto, que Foucault está disposto a explorar a heterogeneidade do espaço e, por conseguinte, a multiplicidade que tal propicia. A heterotopia surge, então, na categoria de lugares que, “have the curious property of being in relation with all the other sites, but in such a way as to suspect, neutralize, or invert the set of relations that they happen to designate, mirror, or reflect” (“Of Other Spaces”). Ademais, Foucault propõe que heterotopias são: real places - places that do exist and that are formed in the very founding of society - which are something like counter-sites, a kind of effectively enacted utopia in which the real sites, all the other real sites that can be found within the culture, are simultaneously represented, contested, and inverted. Places of this kind are outside of all places, even though it may be possible to indicate their location in reality. Because these places are absolutely different from all the sites that they reflect and speak about…. (“Of Other Spaces”) Assim, considerando as passagens do romance de António Lobo Antunes que seleccionámos anteriormente, apercebemo-nos da compatibilidade entre o que Foucault sugere e o que a narradora vivencia. Portanto, oprimida pela desilusão do espaço estriado, que no seu caso é exponenciado pelo trauma familiar, a narradora atinge o seu limite, o que a leva, inicialmente, a recorrer à vontade de se voltar para o passado, de corrigir na memória tudo aquilo que se descarrilara. Porém, esse processo 78 de rememoração, auxiliado pela evocação espacial proporcionada pelo seu retorno à casa de férias de infância, ao epicentro físico donde tudo se propagara, produz uma oscilação quase constante entre esses dois mundos. Daí resulta a possibilidade de incursão, de procurar nas frechas do próprio ser o estabelecimento de um espaço liso. A heterotopia serve como portal para esse novo mundo, pois, como Foucault indica: The heterotopia is capable of juxtaposing in a single real place several spaces, several sites that are in themselves incompatible… [they] are most often linked to slices in time - which is to say that they open onto what might be termed, for the sake of symmetry, heterochronies. The heterotopia begins to function at full capacity when men arrive at a sort of absolute break with their traditional time. (“Of Other Spaces”) O teórico reúne, neste excerto, a ideia principal sobre as divagações da narradora, evocando as possibilidades, por elas já realizadas, de justapor espaços diferentes, de congregar tempos díspares, de ir além daquilo que, à primeira vista, seria possível. (Des)montar todos os vértices da (i)realidade Em Não é meia noite quem quer, António Lobo Antunes evidencia, uma vez mais, a sua tendência para o manuseamento do espaço representado, onde a narrativa se desdobra em oscilações espácio-temporais. Assim, semelhante à narradora, quando esta, em tom de epifania, afirma que: trazemos tanta onda connosco, a que fomos e aquelas que se sucederam à gente e de certa maneira fomos nós também, não acabamos de 79 alcançar a praia e de partir da praia como as anémonas, talvez alminhas inocentes de crianças, não acabamos de ser, fixando-vos com olhos que a água limpou e nos quais o passado mais real que o presente…. (212) Sabendo, como sabemos, o desfecho deste romance, esta passagem tem um significado especial, ela ressoa um lirismo trágico que abrange o desafio de uma vida perdida. Mas, do ponto de vista analítico, ela alude também a vários argumentos sobre os quais discursamos nas páginas antecedentes. Na comunhão da maré, confunde-se a identidade das ondas, desvaloriza-se o território do eu, desmantela-se a alteridade, favorece-se o relacionamento entre os entes. As ondas oscilam, entre o mar e a praia, entre um fluxo temporal que se reproduz, num sentido ébrio de incompletude, cujo único auxílio é retroceder ao passado e, no processo, recriar um outro espaço, que não é nem um nem o outro. A narradora atinge, finalmente, o fim trágico que concebeu, reconciliando-se com a família, numa despedida feita no espaço aéreo entre o topo da falésia e o mar que a aguarda, o mar onde se reunirá com o irmão mais velho. Mas, não antes de ter tido a oportunidade de encontrar, finalmente, o seu próprio espaço, de remexer as cinzas e atear uma nova labareda que consumindo tudo que lhe restava, a libertou. 80 CAPÍTULO 4 CONCLUSÃO UM MUNDO REDOBRADO Três dia no Porto, num hotel da Foz, com uma nesguinha de mar na janela. À noite, mesmo com as luzes do quarto apagadas, um halo de milagre sobre a cama, um dia mais secreto, mais intimo, a modelar as coisas e os corpos. A claridade vinda não sei de onde, da pele talvez, transfigurava tudo, as almofadas inchavam de luz, cada prega do lençol desfazia-se e refazia-se numa cadência de onda. O silêncio da rua que o silêncio da chuva, de tempos a tempos, aumentava, acrescentando palavras às vozes. Meu deus, como com tão pouco se constrói o mundo. António Lobo Antunes, Quarto livro de crónicas 21 Temos vindo, ao longo deste trabalho, a interpolar referências ao origami através das quais pretendemos evidenciar as semelhanças que percebemos entre esta arte de origem japonesa e as construções linguísticas e estilísticas da narrativa de António Lobo Antunes. Na introdução desta tese intimámos, inclusive, a existência de uma relação estreita entre as dobras e os vincos transformam o papel de origami em formas variadas tridimensionais e a as metáforas e metonímias que na obra antuniana elevam, da página do livro, um universo ímpar que expande, linha a linha, as fronteiras da prosa portuguesa. 81 Considerámos enveredar por uma linha comparativa entre o origami e a prosa de António Lobo Antunes, algo que reunisse e dialogasse com os diversos conceitos estruturais e linguísticos referentes às funções metafóricas e metonímicas na organização da linguagem e na estruturação da mente humana. Mas, decidimos deixar para outra altura as considerações sintagmáticas de Roman Jacobson e as extrapolações psicológicas que Jacques Lacan teceu sobre este tópico; preferimos não mergulhar nas concepções oníricas de Sigmund Freud sobre a condensação e o deslocamento. Justificamos as nossas decisões pelo facto de não ser este o foco da nossa pesquisa, mas ainda mais porque a relação metafórica que queremos estabelecer entre o origami e os romances antunianos pode ser feita de um forma muito mais simples. Basta, aliás, ponderar sobre a epígrafe que seleccionamos para este capítulo, pois nela descobrimos o próprio autor a confidenciar, num estilo meta-literário típico das suas crónicas, a constatação de como “com tão pouco se constrói o mundo” (21). Ou seja, o autor comenta sobre o vínculo que existe entre os fenómenos quotidianos dos quais o mundo se erige, e é erigido pela memória e criatividade de quem o descreveu. Pois existe, de facto, esse duplo sentido na constatação citada, ou seja, o mundo que com tão pouco é construído, o é tanto na realidade palpável do momento em que aconteceu, como no momento em que é relembrado, imaginado, escrito. Uma ideia que é reforçada quando, na mesma crónica o narrador declara que: Acabaram-se os três dias do Porto, é segunda-feira e chove. Não chovem nuvens apenas: chovem lembranças antigas, um piano, velhos cheiros 82 quase esquecidos… Chovem as pobres poesias que compunha aos sete anos… Chove a Beira Alta. Chovo eu a começar a Memória de Elefante, roidinho de medo de não ser capaz…. Chove em todos os sítios em que estivemos. E, por dentro da chuva, a clara luz do dia. (22) Desta forma, a própria chuva se transforma na junção enunciativa de dois mundos distintos e, ao mesmo tempo, indissociáveis, onde a observação e a descrição de um lugar suscita uma torrente de memórias, as quais relevam outros espaços, outros objectos, onde cada enunciação amplia o sentimento de dissolução entre o real e o imaginário, e concomitantemente, essa dissolvência constitui uma ampliação de coesão ontológica. E foi isto, portanto, que procurámos salientar: uma relação irrefutável entre a evocação do espaço físico, através de lugares, objectos, imagens e as ademais manifestações sensoriais, e as rememorações tão predominantes na obra antuniana. Foi com dificuldade que constatámos, durante a nossa pesquisa, a escassez de estudos críticos sobre conceito. Contudo, encontrámos nas palavras de Richard Zenith uma articulação desta relação que nessa altura propulsionou a nossa pesquisa. Declara o crítico, num artigo intitulado “The Geographer’s Manual: The Place of Place in António Lobo Antunes,” que: The place of place, in the work of Lobo Antunes, is so large and multiplex as to become, at times, a bit dizzying…. The geography of [his] novels could, on the macro level, be studied as a kind of national photograph, that reflects, among other things, the profound changes in Portuguese 83 demographics – with massive numbers of retornandos and immigrants having flooded into its urban centers since the 1974 Revolution, while rural towns and regions are, more often than not, the nostalgically remembered birthplaces of people now settled in greater Lisbon…. (135) Verificamos, portanto, que também Zenith distingue a pertinência da representação do espaço na prosa antuniana, mesmo que aquiesçamos a divergência de rumos que a nossa pesquisa tomou. Optámos pela exclusão de uma abordagem ao espaço social que a citação acima sugere e que, decerto, as teorias de Henry Lefebvre e Edward Soja sustentariam. Elegemos, ao invés, analisar a função que o espaço natural desempenha no romance. Através das definições de Osman Lins e das clarificações de Ozíris Borges Filho sobre a ambientação, demonstramos o papel activo que o elemento aquático tem, em A ordem natural das coisas, na complementação e reflexão do estado emocional – tristeza, frustração, depressão – dos personagens. Registámos, no mesmo romance, a preponderância da casa cuja capacidade de armazenar, demarcar e evocar o espaço mnemónico repercutiu perfeitamente os conceitos avançados por Gaston Bachelard em A poética do espaço. Observámos como a casa poder ser tanto uma prisão como um a referência de nomadismo involuntário; como ela poder ser tanto uma unidade imagética como uma aglomeração de divisões e divisórias, onde por toda parte, em cada quarto, quadro, canto ou móvel, uma memória pode desabrochar um mundo; e finalmente, da casa como a projecção da unidade familiar, bem como dos seus membros individuais. 84 Procurámos, ainda, patentear que o manuseamento do eixo espácio-temporal por parte do autor luso reflecte, a nosso ver, muito mais que uma tentativa de representar o espaço da memória, pois cremos que viabilizámos a potencialidade de essa manipulação linguística e estilística representar um perspectiva ontológica que privilegia a teia relacional em detrimento do delineação individual. Em Não é meia noite quem quer, com o apoio de esteios teóricos defendidos por Bertrand Westphal em Geocriticism: Real and Fictional Places, testemunhámos esta preferência de António Lobo Antunes, nas suas escolhas de não utilizar nomes próprios para os principais personagens; de, como afirmou Ana Paula Arnaut, interiorizar a polifonia narrativa ao pôr os personagens a falar para dentro, conferindo à narradora a habilidade de divagar e discursar por entre as suas rememorações, bem como as dos outros personagens. Concordamos que esta abstracção do espaço e descorporificação do indivíduo proporciona uma organização e dispersão dos personagens e da narrativa não estratificados e não hierárquicos, onde os vários pontos, ou tempescules, se organizam duma forma rizomática que se coaduna com as propostas de Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Por fim, e retomando o tema do origami, queremos partilhar que a nossa participação pessoal nesta arte nos ensinou algo que se repercute na nossa predilecção pelos romances de António Lobo Antunes. Assim, descobrimos que esta arte é, simultaneamente, extremamente simples e inegavelmente complexa. Afinal, trata-se apenas de fazer uma dobra aqui, um vinco ali, uma prega acolá, e assim se constrói um módulo, que depois se repete várias vezes, até que, como num puzzle, as 85 vária peças que construímos se agregam e conjuntam para formar o todo cuja beleza supera as partes constituintes. Nesse todo, se registam as deficiências, as falhas, pois um vinco fora do lugar ou um modulo machucado, se torna visível na imperfeição do produto final. Mas, o inverso é igualmente verdade, pois a paciência, o rigor, a persistência e o artesanato são também evidentes no artefacto. Assim é com a mestria romanesca de António Lobo Antunes, onde o rigor da narrativa, a imaginação da linguagem, a arte da imagem descrita, a profundidade filosófica dos temas que trata, todos estes elementos se articulam e se congregam para formar um vasto universo onde ecoa uma preocupação constante pelo lugar que o ser humano ocupa na sociedade, no mundo e em si mesmo. Em cada vinco palavras, mais vincos linhas, dobras que parágrafos são, viramse páginas que elevam o papel em direcções surpreendentes, assenta a página e a dobra encaixa, e o processo repete-se, erigindo do papel um espaço que outros espaços ocupam num desdobramento frenético, que no papel vinca a memória e em nós de memórias nos vinca… 86 BIBLIOGRAFIA Antunes, António Lobo. A ordem natural das coisas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992. Impresso. ---. Não é meia noite quem quer. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2012. Impresso. ---. Quarto livro de crónicas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2011. Impresso. 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