a brasilidade de ivan santos na música sem fronteiras
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a brasilidade de ivan santos na música sem fronteiras
ANYWHERE, SONGS FROM NOWHERE: A BRASILIDADE DE IVAN SANTOS NA MÚSICA SEM FRONTEIRAS Entrevista a Tânia Gabrielli-Pohlmann © Em maio recebi o CD de Ivan Santos, “Songs from Nowhere”. Uma seqüência de surpresas a cada faixa. Um brasileiro que faz música universal, sem perder a brasilidade. Ou um brasileiro que faz música brasileira com toques universais? « Songs from Nowhere » é uma viagem pelo planeta. Dos toques nordestinos aos sons urbanos de New York, Paris ou Berlim. Um vôo e um encontro com a própria identidade? Um susto de se saber mais brasileiro do que nunca. Encontro de brasileiro que vê o Brasil de fora, mas que nunca deixou de tê-lo por dentro. A entrevista foi inevitável… Tânia Gabrielli-Pohlmann Tânia Gabrielli-Pohlmann - Ivan, você iniciou sua carreira ainda na Paraíba ou em suas andanças pelo Brasil? Ivan Santos - Eu comecei a tocar violão na época do iê-iê-iê, em João Pessoa. Logo no início descobri que era possível escrever minhas próprias canções e foi aí que comecei a compor. Coisas muito primárias. Mas foi só na década de 70, no meu tempo de universitário, ao me ligar ao pessoal que formava a cena musical pessoense, que a música começou a ocupar um espaço maior na minha vida. Mas ainda nesse tempo ser músico profissional era apenas um sonho que eu não me preocupava muito em realizar. No fim dos 70, depois de esgotar a maioria das possibilidades de apresentações na Paraíba e nos estados vizinhos, segui o caminho que na época era o natural: fui para o Rio. Tânia Gabrielli-Pohlmann E os treze anos vividos no Rio o fizeram redescobrir a musicalidade paraibana? Ivan Santos - Eu nunca fui um compositor regional e sempre gostei de experimentar formas de canções que não são obrigatoriamente brasileiras. Mas os meus ouvidos e meu coração sempre estiveram impregnados de música nordestina. Com certeza porque essa era a música que estava no ar no meu tempo de criança e de adolescente, mesmo na época em que me interessava muito mais pela cultura musical norte-americana e inglesa. A partir do momento em que me voltei para a música dos repentistas, dos cantadores de rua, dos sanfoneiros, etc., descobri que o “feeling” dos cantores de blues, que me arrepiava tanto, tinha sua equivalência nos rabequeiros (violinistas populares) nordestinos. Que a mesma energia do rock’n’roll podia estar acumulada em um baião. Nunca paro de aprender coisas com essa música, mas quando fui para o Rio esse “reencontro” já havia se dado. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Em que situação aconteceu seu encontro com Lenine? Ivan Santos - Nós tínhamos um conhecido em comum. Um cara de Recife que estava sempre visitando uma amiga em João Pessoa e que passava o tempo inteiro falando do “garoto de 17 anos” que no palco era um incendiário. Logo em seguida fomos apresentados, viramos admiradores um do outro e em pouco tempo estávamos dividindo o palco em pequenos shows. Ele com a sua banda e eu com a minha. Recife e João Pessoa são cidades que apesar de estarem a 110 km uma da outra, têm características físicas e culturais muito diferentes e nessa época quase nenhum músico fazia uma ponte entre elas - Zé Ramalho era um dos poucos. O encontro com Lenine foi de certa forma o início de um relacionamento maior entre os músicos da nossa geração, provenientes dessas duas cidades. Nos seis anos que dividimos apartamento no Rio, nossa casa funcionava como uma base estratégica e albergue anarquista para os músicos recém-chegados dessas duas cidades. Anos depois esse encontro veio dar, por exemplo, em coisas como a produção do novo CD de Chico César (que no momento está sendo gravado) por Lenine. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Como você veio parar na Alemanha? Ivan Santos - Eu estava de saco cheio do Rio de Janeiro e do Brasil e de mim. Vir para cá foi a maneira mais radical que encontrei de refazer a vida. De reaprender o Brasil, de reiniciar muitas coisas em mim. Tratamento de choque, mesmo. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Como foi sua adaptação por aqui? Ivan Santos - A adaptação de qualquer estrangeiro em seu novo país se dá em vários níveis, que eu simplifico dividindo em dois: o físico e o psicológico. Um influenciando o outro. A minha adaptação física, acho que foi como a de qualquer pessoa vinda dos trópicos para uma região onde o sol é artigo de luxo. O primeiro inverno chegou cheio de novas informações sobre a natureza e os hábitos humanos; a neve, as baixas temperaturas, a secura da pele, as mudanças radicais no modo de vestir, as frutas secas, a interiorização das pessoas, etc., e informações sobre meu corpo submetido a essas novas condições. Foi inesquecível. A partir do segundo inverno o deslumbramento já foi diminuindo e comecei a tentar aproveitar esse tempo de maior recolhimento para me concentrar em minha criação e para aprender a ser só (uma lição muito alemã). Já aprender a viver de uma maneira quase normal durante o inverno me tomou anos. Embora ainda hoje tenha que lutar contra um fantasminha bem nordestino que de lá do fundo ainda fica me cochichando: o tempo está ruim, fica em casa. Mas esse aprendizado depende quase que somente de você. A adaptação psicológica já é uma coisa que depende dos outros e dos aspectos culturais e isso comigo levou e ainda está levando muito tempo. A adaptação superficial nunca foi um grande problema. Como a música já é uma forma de contato muito forte, a comunicação sempre foi muito facilitada. Mas o idioma pode ser uma passagem e também pode ser uma barreira. Ainda não consegui – e nem sei se conseguirei - falar alemão como se deve. Para isso eu teria que mergulhar mais fundo na mentalidade alemã, me desprender mais da linguagem brasileira e isso não consigo. É que as nossas culturas são extremamente opostas e, na maioria dos gestos, ainda me sinto fazendo uma concessão. Eu sou semi-adaptado. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Songs from Nowhere é uma volta ao mundo, com identidade marcadamente brasileira. Você vem desenvolvendo interessantes caminhos musicais. Conte um pouco sobre o seu processo de criação… Ivan Santos -Dizer que escuto todo tipo de música soa muito pretensioso, mas eu escuto coisas muito diferentes. Eu tenho um gosto pela canção bem escrita, independente de onde ela venha. Então na hora de compor é meio natural que essas coisas que entraram pelos ouvidos saiam pela voz. Às vezes eu planejo compor em um determinado gênero, eu digo: vou fazer um blues!, faço, mas nesse blues é quase certo que vão aparecer fragmentos de outros gêneros. Mas na maioria das vezes eu inicio uma idéia, vou em frente e só depois da música pronta é que identifico aquele estilo. Às vezes escrevo uma letra e depois procuro uma melodia para ela. Outras vezes faço o contrário. Às vezes mando uma letra para um parceiro, outras vezes mando música e ele escreve a letra. Pode também acontecer de eu fazer um arranjo e depois fazer a melodia e a letra que caibam nele. Não obedeço apenas a uma regra para compor, sigo minha intuição. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Em “Amnésia” você consegue sintetizar a resistência do europeu ao novo de maneira bastante requintada. Você conseguiria viver aqui e produzir música sem a memória brasileira? Ivan Santos - Não. Minha música pode ter influências muito distintas mas o centro, o miolo é brasileiro. Eu me preocupo muito com isso. Eu sempre falo que pra mim seria uma espécie de morte artística tocar no Brasil e notar que as pessoas me escutam como estrangeiro. Quando há poucos meses soube que uma das minhas novas parcerias com Lenine “Do it” estava tocando muito no rádio e que pouco depois foi indicada para o prêmio de melhor canção do ano no “Prêmio Tim de Música”, fiquei muito feliz. Não pela possibilidade da premiação, mas pelo fato de depois de tanto tempo fora do Brasil eu ter escrito uma letra que fez muita gente me mandar e-mails, ou telefonar pra dizer que aquilo era exatamente o que elas estavam precisando ouvir. E não é uma letra que conta uma história de amor, é sobre atitudes. Aí eu vi como é gratificante essa preocupação constante em continuar no Brasil, mesmo de longe. Tânia Gabrielli-Pohlmann - A sua maneira de lidar com a palavra possibilita ao público de qualquer país a se inserir no contexto sugerido. Como você vê ou vivencia as diferenças culturais ao pensar no texto para uma canção? Ivan Santos - Quando eu cheguei aqui, notei de cara que o lado que eu considerava mais forte em minha canções, a letra, havia acabado de ser deixado de lado pelo público. Isso me levou, inicialmente, tanto a virar mais “músico” como a começar a pensar mais no “som” da palavra e um pouco menos no seu “sentido”. Um exemplo é a canção “Go-En-Lai”, onde as palavras, ou as frases, podem não ter sentido mas com certeza carregam muito sentimento. Como quase nunca trato de temas regionais, minhas letras podem ser traduzidas e ganhar o interesse de alguém que não seja brasileiro. Quando escrevo uma letra eu quase sempre estou pensando no Brasil e em mim. Acho que uso o Brasil como uma miniatura do mundo e a mim como um arquétipo do cara que está sempre pulando de um lado para o outro. Isso me lembra aquela história antiga de conhecer bem sua aldeia como meio de se tornar universal. É possível que as diferenças culturais penetrem nos temas e nos textos sem que eu ao menos note. Uma letra como a de “Lady Multimelancólica”, que não foi planejada, acho que nunca conseguiria escrever no verão do Brasil. Por mais que eu permaneça como era antes, muita coisa mudou em mim. Pessoas são permeáveis e é pra mudar que a gente se muda. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Tenho que mencionar a explosão musical em “Acorda Maria Bonitinha”. Uma versão universal, porém imediatamente identificada com nosso Brasil. Fico imaginando a reação do público… Ivan Santos - Essa é uma marchinha despretensiosa, que compus de improviso no estúdio, para completar o CD, que estava muito pequeno. Como faltava tempo pra elaborar um arranjo para mais uma canção, compus essa “quadrilha de São João”. Eu não sou um tocador de harmônica mas é um instrumento que toco de vez em quando e tiro muito prazer disso. Logicamente devido às minhas limitações o que consigo é muito desprovido de sofisticação. É como se fosse um “eu menino” tocando. Acho que o que faz as pessoas gostarem dessa a música é a sua sinceridade e despojamento. É básica. A gente só tocou essa música uma vez e fez isso pelo meio do público. A reação foi ótima. Por algum motivo nunca mais fizemos isso, mas tenho certeza de que vamos repetir. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Em junho você apresentou shows em Frankfurt com sua banda. Quem são os músicos que o acompanham? Ivan Santos -Nossa baterista e percussionista é a paulista Angela Frontera, figura muito requisitada e com muitas horas de palco com gente boa. No Brasil ela já tocou com Cauby Peixoto e aqui com gente como Nina Hagen. Dá pra ver que é uma instrumentista de “largo espectro”. O saxofonista, percussionista, flautista e quem canta algumas partes comigo é o gaucho Márcio Tubino. Também um cara muito ativo na cena musical alemã e austríaca. Toca regularmente com Rosanna & Zélia, já gravou com Egberto Gismonti e de vez em quando toca com pessoas como Joe Zawinul. O baixista, percussionista, cavaquinhista e produtor do meu CD é o mineiro Geovany da Silveira. Meu cúmplice mais constante nesse projeto. O bom do Brasil é que você pode ter uma banda internacional só de brasileiros. Explico: Angela é filha de italiano com brasileira, Márcio tem antepassados italianos e Geovany, como eu, tem a maior cara de árabe. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Rosanna & Zélia têm um trabalho lindíssimo. Vocês pretendem desenvolver um trabalho juntos? Ivan Santos - Há muitos anos que nós fazemos coisas juntos, mas de uma maneira intermitente e temporã. Nós somos parceiros muito práticos; juntos só compusemos quatro canções, mas três delas foram gravadas por R&Z e a quarta é uma das músicas fortes do meu show. Às vezes Zélia colabora no meu projeto tocando baixo em algum concerto, no ano passado Rosanna “apareceu“ em João Pessoa como convidada no show que nós apresentamos lá (ela também canta comigo uma música no meu cd), vez por outra dou uma “canja“ nos seus concertos. Nossos projetos são paralelos, nossas direções bem diferentes mas gostamos dessa colaboração recíproca, que sempre traz uma surpresa para o que estamos produzindo. E somos grandes amigos. Tânia Gabrielli-Pohlmann - E o público brasileiro, quando é que vai poder vê-lo no palco? Ivan Santos - No ano passado fizemos o lançamento do CD na Paraíba. Agora estamos planejando alguns shows em Recife, na época que antecede e durante o carnaval. Uma das coisas mais interessantes no carnaval de rua de Recife é a diversidade de estilos. Tem palco pra todos os gostos, de frevo a hard core. Não precisa ser música de carnaval, basta ter vida. Além desses show faríamos também duas apresentações em João Pessoa, que é a minha cidade e com a qual sempre me sinto em débito. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Novo CD à vista? Shows ainda para este ano? Ivan Santos - Estamos começando a fazer o planejamento inicial de um novo CD, mas por enquanto seguimos tocando o “Songs from Nowhere” que ainda não foi suficientemente tocado. Na agenda temos algumas apresentações com a banda – que é minha prioridade – mas não muitas, tem mais shows solo. Mas estamos cuidando pra corrigir isso, também. Tânia Gabrielli-Pohlmann - Qual o papel social do artista, especialmente o brasileiro, num país tão plural e contrastante como o Brasil? Ivan Santos - Acho que o papel do artista brasileiro é igual ao do artista de quase todos países ocidentais. O que muda é a intensidade com que toca em um ou outro ponto. Eu admiro muito mais os artistas que transgridem, mas acho que ser apenas um entertainer já pode ser muito, desde que sua criação tenha alma. Mas como o Brasil é um país onde ainda se lê muito pouco, a poesia, as posturas filosóficas, comportamentais e políticas sempre foram muito mais popularizadas pelas canções do que pelos livros – especialmente a partir dos anos 60. E não só no meio dos jovens. Por isso esse papel de “educador”, de “missionário” me parece muito mais intenso - e necessário – no Brasil do que nos países desenvolvidos. Não que eu ache que o artista tenha que sacrificar sua estética em função de uma “mensagem educadora” (educação estética é imprescindível), mas quando as duas coisas caminham juntas, ele ganha um lugar especial na nossa história. Só pra citar os clássicos, é o caso de Noel Rosa, Luís Gonzaga, dos Tropicalistas, de Chico Buarque, que contribuíram de uma maneira mais completa com a música brasileira. Entertainers, músicos revolucionários e ao mesmo tempo cantando textos que diziam “coisas” a que a sociedade naquele momento dificilmente teria acesso por outros meios. Eu tento mais ir por essa linha, mas tenho também um grande respeito pelos artistas “alienados”. O iê-iê-iê, com seu instrumental inglês, suas melodias italianas e suas letras sobre namoros inocentes e personagens engraçados, entre outras coisas introduziu a guitarra elétrica no Brasil e motivou milhares de adolescentes a tocarem um instrumento; e um desses garotos era eu. Tânia Gabrielli-Pohlmann é escritora, editora e professora. Nascida em São Paulo, capital, vive em Osnabrück, Alemanha, desde dezembro de 1999, onde apresenta dois programas de rádio (Brasil com S e Revista Viva, este com Clemens Maria Pohlmann) sobre a história, a cultura, a literatura e a música brasileira, abrindo espaço, inclusive, a artistas independentes. Contato com Tânia: mailto:[email protected] Julho de 2005.