Legislar o riso e sacralizar o poder. Artigo de Roberto DaMatta

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Legislar o riso e sacralizar o poder. Artigo de Roberto DaMatta
25/08/2010
Legislar o riso e sacralizar o poder? :: Roberto DaMatta
Toda tentativa de tolher a liberdade de expressão engessa e, no fundo, tenta realizar
aquilo que é básico numa democracia competitiva e igualitária: a discussão política que
marca diferenças e estabelece limites para a multiplicidade de perspectivas vigentes
num sistema centrado no cidadão. No Brasil, temos leis para tudo. Tantas, que até
existe uma certa desconfiança de que o aparato torna os grandes bandidos
"imprendíveis". Temos leis até para regular como as pessoas devem ser presas, porque
se forem importantes deve-se evitar a "espetacularização" que, em todos os lugares,
algema, numa prova cabal de que a polícia cumpriu o seu papel. Um país com uma
etiqueta para aprisionar me preocupa. Estou convencido de que se tivéssemos uma
Futebolbrás jamais teríamos sido pentacampeões do mundo, porque a convocação e
nosso jogo seriam legislados, algo que muitos sentem falta. Seria proibido perder Copas
do Mundo e a prática exclusiva do "futebol-arte" seria estabelecida por lei!
Como ter confiança na lei se desconfiamos da polícia, e a própria polícia desconfia dela
própria, porque, tal como ocorre com as leis (e com a ética), temos muitas polícias para
o deleite dos bandidos e advogados?
Digo isso porque uma interpretação antidemocrática do artigo 45 da Lei das Eleições,
em vigência desde 1º de outubro de 1997, que reprime usar o humor com foco em
partido ou candidato em período eleitoral, fere a liberdade de expressão e vai abrir um
sério combate entre os que estão no poder e não gostam de liberdade e os humoristas
que dela vivem. Entre seriíssimos donos do poder e risonhos carnavalizadores
profissionais - os humoristas - cuja profissão é promover uma simbólica e galhofeira
troca de lugar. A tal troca de lugar capaz de provocar o riso de si mesmo, esse apanágio
que Bergson dizia ser exclusivamente humano já que os crocodilos choram, o que não é
o caso de nenhuma besta quadrada, sobretudo as que chegam ao poder. No Brasil, um
poder perpetuamente onipotente odeia e recusa o erro. Por isso todo-poderoso tem
tanto medo do riso que o traz de volta ao plano da cidadania. Se os comuns não
suportam politicalha diária, os poderosos detestam o riso.
Num livro famoso, Mikhail Bakhtin ajuda a desvendar esse assunto que talvez venha ser
mais excitante do que o debate eleitoral. Por que o riso não combina com eleições e
candidatos, no caso do Brasil, quando em países igualitários e democracias
estabelecidas, ele corre solto justamente nesta época?
Bakhtin - como Freud - enfatiza acima de tudo a capacidade do humor de, pelo riso
humano orgulhoso e zombeteiro, enfrentar (e vencer) a dor, as adversidades, o destino
e a morte. De fato, nosso pior inimigo fica mais aterrorizado diante de uma gargalhada
do que de um revólver. A própria desgraça recua se alguém se atreve a ridicularizá-la.
Ainda mais nesta vida que não merece mais do que uma boa anedota.
A tentativa de reprimir o humor em período eleitoral é coerente com a liturgia que cerca
o debate cheio de dedos dos presidenciáveis. Ela põe a nu o quanto o nosso sistema de
poder protege, dignifica, hierarquiza e sacraliza o governante. E o quanto somos
coniventes com isso. O medo do riso é o medo da igualdade que o momento eleitoral
inevitavelmente demanda e revela. Seria possível proibir o riso e o humor neste
momento, como fazem os radicais, que se levam tão a sério que não podem rir de si
próprios?
Falamos muito de "realidade" e pouco dos seus símbolos. A mentalidade legisferante é
uma clara tentativa de arrolhar o dia a dia. Ela é a responsável por esse universo de leis
que promovem o famoso axioma do "é ilegal, e daí?", a prova mais clara de que, entre
nós, as leis não acompanham o bom senso. Amordaçado o riso, o poder sacraliza-se
porque não há mais a liberdade de desafiá-lo e usá-lo como uma fonte de alegria - um
dos modos mais legítimos de mostrar a face humana dos poderosos.
No nosso universo político, a mentira, um ininteligível economês falado mais com os
dedos do que com o coração, as promessas de que, como "pai" e "mãe", se vai cuidar
do povo (haja saco e paciência!) são dominantes. Neste palco, sempre reinou o
medalhão oportunista, tarado pelo poder; esse farsante soturno que malandramente
usa a máscara da igualdade para ampliar seu mandonismo. Hoje, esse papel fica mais
duro de ser desempenhado, pois a pressão por transparência e igualdade exige menos
hipocrisia (esse apanágio do populismo lulista) e mais coerência (que exige administrar
honestamente mais do que "cuidar" como pai ou mãe do povo). É ofensivo rir de um
poderoso? Pode-se fazer uma lei impedindo gargalhar de uma besta quadrada que
aspira ao poder? Nas ditaduras, o sujeito morre; nas democracias, vive-se disso. Dessa
relativização por meio do riso que - como a morte - iguala definitivamente, mostrando
que se hoje estamos no poder, amanhã dele sairemos.
ROBERTO DaMATTA é antropólogo.
adicionada no sistema em: 25/08/2010 12:00

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