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XX/2014 p/ Despacho/Decisão *** Sentença/Despacho/Decisão/A
Ordinátorio Autos nº. XXXXXXX-68.2014.XXX.6119 Vistos.1. Cert
dão de folha XXX: considerando (i) se tratar de processo com du
rés presas, bem como (ii) a proximidade da data da audiência
(iii) a notória dificuldade de disponibilidade de intérprete
solicite-se por correio eletrônico a(o) MM(a). Juiz(a) Dir
tor(a) desta Subseção Judiciária, excepcionalmente, as prov
dências necessárias para que o intérprete seja conduzido a es
Juízo, no dia e hora designados para a realização da audiênci
e posteriormente de volta a sua residência.2. Folhas XXX/XX
trata-se de requerimento formulado pela Defensoria Pública
União, postulando a substituição da prisão preventiva de XXX
XXXXXXXXX XXXXXXX pela prisão domiciliar, nos termos do arti
318, IV do Código de Processo Penal, tendo em vista o seu esta
de gravidez avançada.Em resumo, alega que a custodiada preenc
o único requisito estipulado pelo artigo 318, IV do CPP, confor
documento comprovando que ela está na XXª semana de gestaçã
o que seria suficiente para a concessão da prisão domiciliar.
mais, afirma que as condições da penitenciária onde a denuncia
se encontra não são adequadas para um ideal acompanhamento méd
co pré, peri e pós-natal, sendo necessária a concessão da pris
domiciliar para garantir a dignidade da acusada e a intransce
dência da pena, visto que o recém-nascido seria prejudicado p
algo que não cometeu.O Ministério Público Federal se manifest
em desacordo com o atendimento do pedido, conforme razões aduz
das às fls. 170/172.Em breve leitura, é o que consta.2.1. DECIDO
requerimento formulado não merece acolhimento.Vejamos.Primeir
mente, saliento que permanecem inalterados os pressupostos q
fundamentaram a decretação da prisão preventiva, nos termos
decisão proferida às fls. 28/31 do auto de prisão em flagrante, a
quais me reporto no que se refere à presença do fumus comissi d
licti e do periculum libertatis.Noutro giro, ao contrário do q
alega a defesa, não basta que a gestante conte com os XXXX mes
de gravidez para que, incondicionalmente, tenha direito à pris
domiciliar. A substituição da prisão preventiva pela domicilia
na dicção legal (“poderá o juiz”), não prescinde da análise d
circunstâncias do caso concreto. Nesse sentido é a lição
XXXXXXXXX XXXXXXXX XXXXX [...] Muito bem.No caso concreto trat
-se de estrangeira sem qualquer vínculo com o Brasil nem compr
vante de ocupação lícita, que foi justamente surpreendida pouc
instantes antes de se evadir do país levando consigo farta qua
tidade de entorpecente.O cotejo O cotejo destas circunstânci
(quantidade, natureza da droga, transnacionalidade e ausência
ocupação lícita), ainda que em juízo perfunctório, evidencia
possível participação de organização criminosa, a demonstrar
risco à ordem pública, em caso de se conceder a pretendida pr
são domiciliar.Além disso, repare-se que a própria defesa n
comprovou qual o “domicílio” onde a denunciada poderia cumpr
a medida e ser encontrada para responder aos ulteriores atos
processo.Em resumo: cuida-se de estrangeira, sem qualquer end
reço fixo onde eventualmente pudesse s ser encontrada no Brasi
nem prisão domiciliar. No mais, afirma que as condições da p
nitenciária onde a denunciada se encontra XXXXXX-68.2014.4.0
nosotras
Nosotras
Ana Luiza Voltolini
No será necesario que la gaviota haya regresado con la
muerte en las alas
Y que todas las playas se abismen bajo el cuerpo,
Basta que alguna noche el cielo nos comprenda y lejos,
Lejos las alas nos sonrían la amenaza de partir para
siempre.
Nora Zapata Prill
Prólogo
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Natureza morta
Capítulo 1
19
A menina dos olhos
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Presente de aniversário
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Presente de dia das mães
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QR982 com destino a Georgia
27
Escolta com destino a Santana
Capítulo 2
37
Quando Ícaro voar
39
Ícaro
41
Éramos cinco
42
Agora seremos dois
Capítulo 3
45
Embaraço
47
Onze de novembro
49
Entre fronteiras
53
Dentro do ovo
Epílogo
63
Portas cor de céu
Advertência
Os nomes das personagens foram alterados para
preservar a identidade das mulheres. Os nomes
escolhidos no lugar são homenagens a três das
cinco mulheres que derrubaram a ditadura militar
na Bolívia em 1978. Entre elas, Domitila Barrios de
Chungara, que lutou durante muito tempo da sua
vida pelos direitos das mulheres.
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Natureza morta
O que hoje é o Parque da Juventude em 1992 foi
palco de um dos mais violentos e controversos massacres já ocorridos em uma penitenciária brasileira.
Décadas depois, a imagem do Complexo do Carandiru, maior presídio da América Latina, sendo demolido permanece na memória de quem assistiu ao
evento pela televisão. Talvez por isso muita gente
ainda se espante quando descobre que a Penitenciária Feminina da Capital continua funcionando logo
ali, ao lado do parque.
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Mesmo com autorização da Secretaria de Administração Penitenciária, a SAP, é preciso avisar antes
de fazer uma visita à PFC. Enviado um ofício no dia
anterior, basta descer na estação Carandiru, linha
azul do metrô, andar cento e vinte metros até a
entrada do parque, atravessar as pistas de skate,
as quadras de basquete, ultrapassar portões, andar
mais trezentos metros até a penitenciária, passar
por duas portas de ferro, guardar seus pertences
em um armário, apresentar o R.G. Depois ter o resto
dos seus pertences revistados, ter seu corpo revistado e, então, aguardar autorização para ingressar.
A primeira agente com a qual tenho contato mal
conversa comigo. Entrego meu documento e ela me
olha na foto, não nos olhos. Enquanto confere meu
nome no ofício, ouve uma música do Coldplay. A
letra pode soar sutilmente inapropriada se você
tem uma opinião crítica em relação ao sistema prisional: Lights will guide you home/and ignite your
bones/and I will try to fix you.
Ao som de Fix You, sou liberada da primeira sala.
Tradução livre: Luzes te guiarão para casa/e irão inflamar seus ossos/e
eu tentarei te consertar.
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Nosotras
Agora é preciso passar por alguns pavilhões e pela
administração até chegar às salas de aula, onde a
equipe do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania,
atende mulheres estrangeiras em conflito com a lei,
trabalho este realizado em São Paulo há mais de
dez anos.
Meu caminho é guiado por muros brancos recém
pintados, telas virgens emolduradas por arame farpado. Algumas lacunas ao longo dos muros revelam os pavilhões trancados por portas e mais portas, pesadas e grossas, quase todas azuis. Ao alto,
pequenas janelas forradas de roupas e lençois.
Ouvi uma vez que o diretor de uma penitenciária
masculina no sul do Brasil pintou as celas do castigo de rosa a fim de humilhar os homens indisciplinados. Me pergunto porquê usar a cor azul nas
portas da feminina.
Existe, de fato, certa aura de tranquilidade durante os procedimentos de segurança de abertura das
portas, tamanha é a insólita naturalidade com a
qual se anda ali. Não sei se é costume ou se o azul
tem alguma influência nisso.
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Nosotras
Os jardins bem cuidados parecem apenas uma tentativa de esconder a realidade da prisão. A beleza
cultivada todos os dias por meio do trabalho das
mulheres que ali habitam é facilmente assimilada,
mas os corpos dentro de uniformes bege permanecem invisíveis atrás das flores.
Esses corpos ausentes e uniformizados habitam
um repositório de inconveniências, ao qual se chama de prisão. A desculpa para trancafiá-las ali, perene como as margaridas cultivadas, é a ressocialização. O que significa ressocializar uma mulher
entre muros erguidos por homens, em um espaço
construído para homens?
O mundo ideal ocupou o imaginário de diversas
autoras e autores ao longo do século. As chamadas utopias estão ilustradas em todos os lugares:
nas músicas, na literatura, nos filmes... Jean-Michel
Besnier, cientista político, profetizou em seu livro
Demain les posthumans que no ano de 2030 o ser
humano seria tão avançado que poderia finalmente
habitar o “admirável mundo novo”.
Jean-Michel tinha certa razão. No admirável mundo novo de Aldous Huxley, bebês da casta Delta
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Nosotras
(inferior a todas as outras) eram condicionados por
meio de choques elétricos a terem medo de livros
e flores. Estamos em 2015, quinze anos adiantados
da previsão de Besnier e temos bebês que crescem
em penitenciárias, condicionados por arame farpado eletrocutado, a temerem as cores e as estrelas,
porque não as conhecem.
Ao contrário das utopias, as distopias do mundo
são realidade. Hoje, o Brasil é o terceiro país com
maior população em situação de prisão do mundo.
A Penitenciária Feminina da Capital detém seiscentas e vinte e oito mulheres, concentrando a maior
parte das estrangeiras em situação de prisão no território brasileiro.
Nessa conta, quarenta e seis são bolivianas. Dentre
elas, quarenta e quatro estão presas por tráfico de
drogas. Todas são identificadas pelos seus números
de matrícula, suas sentenças e seus crimes, mas sobretudo são mulheres. Antes de virarem estatística
eram, e continuam sendo mães, filhas, esposas, vizinhas, amigas.
Existem razões pelas quais essas mulheres assumiram riscos e se deslocaram da Bolívia até o Brasil.
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Nosotras
Foi para descobrir esses motivos que me desloquei
até a Penitenciária Feminina da Capital.
Estas são as histórias de três delas e de como elas
poderiam ser as histórias de muitas outras, incluindo a mim. Estas são as nossas histórias. Histórias
de Nosotras.
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Nosotras
Angelica
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A menina
dos olhos
Quando era pequena Angelica costumava ir com
Carlos, seu pai, a todos os lugares. Se não estava na escola, era muito provável que estivesse com
ele, acompanhando-o sempre curiosa em todos os
compromissos. Foi num deles que Angelica, anos
depois, conheceria o que chamam de tráfico de drogas.
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Nosotras
Conforme o tempo foi passando,
pouca coisa mudou na vida de Angelica e de sua família. Aos 25 anos
ela cursava biomedicina na cidade de
Santa Cruz, na Bolívia, e continuava
sendo a menina dos olhos do pai.
Moravam com ela: pai, mãe, irmão e
Luana, sua filha.
Aquela deveria
ser a última
viagem
E foi
Apesar da união familiar, as dificuldades financeiras preocupavam principalmente Carlos, que estava desempregado há meses. A filha era a única
que ajudava como podia, mas a maior
parte das despesas ainda ficava a
cargo dele.
Quando as dívidas se acumularam e
a situação se tornou insustentável,
Carlos optou por um trabalho que
lhe traria dinheiro rápido: o comércio
de drogas. Ele procurou por uma conhecida que agenciava pessoas para o
transporte de cocaína e depois disso
foi rápido. Logo tudo estava arranjado: a passagem, as malas e a droga.
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Nosotras
Angelica
A viagem em si não demorou muito e em questão
de semanas ele estava em casa, de volta à Bolívia.
O dinheiro, no entanto, foi embora tão rápido quanto chegou. Logo as dívidas voltaram a fazer volume
na caixa de correio da família Gomez.
Presente de aniversário
A ideia de fazer uma segunda viagem surgiu não
apenas com a necessidade de dinheiro, mas também com a aproximação do aniversário de Luana.
Angelica queria comemorar um ano da filha com
uma festa e Carlos sabia que o dinheiro não daria.
Ele procurou outra pessoa que o ajudaria a viajar
novamente e, sem pensar muito, partiu. Apesar de
saber dos riscos ao recorrer de novo ao tráfico, a
esperança de que aquela seria a última vez se manifestava nos planos compartilhados com a família. “Faltava pouco para ele conseguir um emprego
honesto.”, contou Angelica. Aquela deveria ser a
última viagem. E foi.
Ao partir, os olhos do pai já não viam mais sua
menina. O aniversário de Luana passou sem festa e
o contato entre ele e a filha só foi retomado meses
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Nosotras
mais tarde, no dia nove de maio. Aniversário de
Angelica.
Um telefonema a despertou na manhã de um sábado ensolarado de outono. Ouvir um animado “feliz
aniversário” do pai após meses sem notícia foi uma
surpresa e tanto. A felicidade transbordava em sua
voz quase tão alta quanto sua preocupação. Tanta
que ela quase se esqueceu de fazer a pergunta que
martelou em sua cabeça durante todo aquele tempo: ¿Dónde estás?
O som dessas palavras saiu fraco, não só por causa da má qualidade da ligação, mas pelo medo da
resposta, que se sobrepôs à alegria. Pior foi quando
terminou a frase e foi respondida com silêncio, pois
a ligação caiu.
Passaram-se dias e mais dias sem notícias até que,
no fim do mês, o telefone tocou novamente.
Presente de dia das mães
O dia das mães na Bolívia é comemorado no dia
vinte e sete de maio, mesmo dia em que a Batalha
de La Coronilla é celebrada. Neste dia, em 1812,
Manuela Gandarillas liderou um grupo de mulhe-
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Nosotras
Angelica
res de Cochabamba contra o exército espanhol.
Aquele domingo de 2014 em particular, primeiro
dia das mães de Angelica, deveria ser calmo e feliz,
na medida do possível, mas se revelou determinante para o desenrolar desta história.
Carlos parecia doente no telefone. Informou que tinha o braço quebrado e se queixou de dores. Então
contou à filha o que ela suspeitava desde a primeira
ligação: estava preso.
O que ele pode contar em poucos minutos foi que
havia sido pego em um país próximo à Turquia e
que precisava de duzentos dólares por semana para
evitar que o machucassem de novo. Depois disso,
as informações a respeito dele foram cada vez mais
escassas. Angelica, a mãe e o irmão conseguiram
juntar a quantia necessária para uma semana, mas
sabiam que não seria o suficiente.
Além das preocupações que estavam a 13.110 quilômetros de Santa Cruz, Angelica também tinha uma
que estava bem perto, alguns centímetros abaixo
do seu coração apertado.
Mesmo separada do marido, pai de Luana e de
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quem viria a ser Joshua em alguns meses, apenas
ele sabia da sua gravidez. Na Bolívia é ainda mais
difícil arranjar trabalho quando se está grávida e
esse foi o estopim para que ela tomasse uma decisão que mudaria sua vida.
Com o pai preso, Angelica se viu responsável pela
família, pois seu irmão e sua mãe também não tinham fontes de renda. Por estar sempre ao lado de
Carlos, ela sabia onde ir e o que fazer para conseguir ajuda.
Ainda com um bebê a caminho e seu marido relutando a aceitar que ela seguisse os passos do pai,
Angelica não via outra escolha. Por isso foi com o
irmão encontrar Catarina, a mulher que agenciou
Carlos em sua primeira viagem, a que deu certo.
Chegando lá, a decisão ainda não estava tomada. O
irmão de Angelica foi o primeiro a se manifestar.
Disse que iria no lugar da irmã, pois não queria
colocar mãe e bebê em perigo. Catarina, que já conhecia filha e pai, insistiu para que fosse Angelica
quem fizesse a viagem, garantindo que, caso algo
desse errado, a buscaria onde fosse. A preocupação escorria dos olhos de irmão e irmã, mas era
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Nosotras
Angelica
tarde demais para mudar de ideia.
No dia três de junho de 2014 tudo
já estava mais ou menos preparado.
Passaportes, passagens e o coração
pronto para embarcar. Ou melhor, os
corações. O de Angelica e o de Joshua.
Os planos eram bem mais simples do
que ela esperava. Ela e outra mulher,
que também levaria droga, iriam de
ônibus até Corumbá, onde pegariam
as malas com um homem chamado
Fernando. Ele saberia identificá-las.
Depois era só embarcar pelo aeroporto de Guarulhos no voo QR982 até a
Geórgia, mesmo país em que Carlos
estava preso.
Seria questão de dias para Angelica
estar perto do pai. Com o dinheiro ela
conseguiria ajudá-lo e ainda sobraria
um pouco para pagar o aluguel atrasado. Mal podia esperar para reunir
a família outra vez. Também tinha o
filho que estava chegando. Mais um
Gomez. Sua mãe ficava cada vez mais
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Passaportes,
passagens e o
coração pronto
para embarcar
Nosotras
doente desde que isso tudo começou, seria bom
que a vida voltasse logo ao normal.
QR982 com destino a Georgia
Era 4 de junho e metade do combinado estava cumprido. Agora era por conta de Angelica e Sandra.
As duas nem se preocuparam em abrir as malas
que receberam de Fernando. Nem sabiam quanta
droga tinha lá, pois também não se atreveram a fazer muitas perguntas. De qualquer forma, Fernando não tinha cara de que fosse responder.
No aeroporto, as duas fizeram o check-in sem problemas, mas não tiveram a mesma sorte na fila do
embarque. Quase chegando a vez de Angelica, dois
funcionários da companhia aérea cochichavam no
ouvido da atendente. Ela olhou desconfiada para
Angelica e indicou sua vez dobrando o dedo indicador em direção ao peito. Preocupação escorria de
Angelica novamente, dessa vez por todos os poros
do seu corpo.
Ela deixou a bagagem sobre a cesta de plástico e
empurrou pela esteira automática. Silêncio. Angelica passou pelo detector de metais suando frio e se
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Nosotras
Angelica
virou para pegar a mala, que ainda não tinha saído
do raio-x. Na tela, via-se o esqueleto da bolsa e nos
cantos manchas alaranjadas. Não era um bom sinal. Elas indicavam presença de material orgânico.
Mais silêncio. Os dois funcionários que há pouco
conversavam com a funcionária voltaram, dessa vez
acompanhados de um policial.
Escolta com destino a Santana
Um mil duzentos e setenta e seis gramas de cocaína
embalados em pequenos sacos plásticos num fundo falso de mala.
Parecer do juiz como descrito no processo:
“Não basta alegar que o Estado não desempenha
a contenta as atividades que lhe competem, entre
as quais assegurar existência digna aos cidadãos
como forma de justificar o cometimento de infrações.”
Julgamento do juiz, que nunca se encontrou com
Angelica:
“Sua conduta social é reprovável, uma vez que aceitou realizar o transporte, mesmo já ciente de que
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Nosotras
estava grávida e dos riscos que sua
ação causaria para seu filho ainda
não nascido, cabendo frisar, ainda,
que, ao ser interrogada, afirmou que
possui outra de tenra idade em seu
país de origem.”
Conclusão do juiz:
seis anos,
um mês
e quinze dias
de reclusão
“6 (seis) anos, 1 (um) mês e 15 (quinze) dias de reclusão”.
Chegando na Penitenciária Feminina
da Capital, em Santana, a única pessoa com quem podia contar era Sandra, a quem carinhosamente passou
a chamar de tia. O contato com a família se limitava às cartas que recebia
do marido.
Angelica estava separada dele quando morava na Bolívia, mas o filho que
teriam uniu o casal. Ela sustentava a
filha com a ajuda de Carlos, já que o
pai de Luana e de Joshua nunca pagou pensão. Sempre foi ela quem se
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Nosotras
Angelica
sacrificou pela família. Entre as poucas cartas que
recebeu do marido depois de ser presa, Angelica lia
em todas palavras que a machucavam muito mais
do que as lidas em sua sentença, talvez mais do que
a própria sentença e seus dois mil duzentos e trinta
e cinco dias a cumprir ali dentro.
Cinqüenta e três mil seiscentas e quarenta horas.
Três milhões duzentos e dezoito mil e quatrocentos
minutos.
Nenhum segundo deles passado sem dor ou sem se
lembrar das palavras do marido. Como uma música
que ficaria grudada na cabeça por seis anos:
Você é culpada/ Eu não queria ter te conhecido/
Você não pensa nos seus filhos/ Você é a pior mulher do mundo.
Cinco meses depois bastante coisa mudou na vida
de Angelica. Ela conheceu Isabela, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania - ITTC, que visitava a PFC
todas as semanas. Ela acompanhou sua gravidez
até o momento de entregar Joshua.
Angelica não sabia, mas apesar da lei possibilitar
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Nosotras
que crianças permaneçam com as mães dentro da
prisão até os sete anos, a penitenciária onde ela
está exige que as crianças sejam entregues aos seis
meses de idade. Quando soube disso, todos os
seus esforços passaram a ser dedicados a sair da
prisão e cuidar do seu filho.
A única alternativa era que alguém da família fosse
buscar Joshua, mas Angelica sabia que ninguém teria dinheiro para vir até o Brasil buscá-lo. Ela estava
sozinha. Se não conseguisse sair, em seis meses
seu bebê seria entregue a um abrigo, e sem ninguém para buscá-lo, em alguns anos poderia ser
adotado por outra família.
O pedido de prisão domiciliar foi entregue com a
ajuda da Defensoria Pública da União e de Isabela.
O juiz, no entanto, negou-lhe o direito, alegando
que Angelica era uma “ameaça à ordem pública” e
que estaria colocando o próprio filho em risco, pois
poderia ser cooptada pela “organização criminosa”
novamente.
Sem muitas esperanças restantes e sem muito mais
a perder, Angelica recorreu ao Consulado da Bolívia, que nunca fez nada por ela e dificilmente ajuda
30
Nosotras
Angelica
em casos desse tipo, mas qualquer coisa que não
a fizesse perder Joshua serviria. Para ela, quando
uma mulher vira mãe, se coloca em segundo plano.
“Eu estou presa, não ele”, repetia.
Ainda sem resposta, o dia do parto se aproximava.
Angelica queria parto normal, mas a obrigaram fazer uma cesariana. Uma das motivações que levou o
juiz a negar o pedido de prisão domiciliar foi o fato
de que Angelica possuía atendimento médico disponível dentro da prisão. Ele provavelmente nunca
entrou lá.
Suas contrações começaram cinco dias antes da
data marcada para a cesariana, portanto ela teve
que esperar. O anseio vinha com medo. Passou
tanto tempo temendo perder o filho dali seis meses
que só então pensou na possibilidade de perdê-lo
ali mesmo, antes de poder conhecê-lo.
Numa quente tarde de dezembro, a escolta finalmente chegou à penitenciária e levou Angelica até
o Hospital Vila Penteado. Considerando que há alguns anos, nesse mesmo hospital, mulheres presas
eram algemadas pelas mãos e pelos pés na hora
do parto, é possível afirmar que correu tudo bem,
31
Nosotras
embora o pesadelo estivesse apenas
começando.
Correu tudo bem,
embora o
pesadelo
estivesse
apenas
começando
Quando Angelica voltou do hospital,
três dias depois, foi direto para o Pavilhão Materno, onde todas as mães
habitam junto a seus filhos e suas filhas. O prédio, cinza e com pouca iluminação não possui pediatria e muito
menos medicação adequada. Sempre
que há um problema com a mãe, lhe
é oferecido paracetamol. Sempre que
há problema com o bebê, é culpa do
dentinho que está nascendo.
Angelica se sentiu mais sozinha do
que nunca agora que estava com
Joshua nos braços. Ela não falava português muito bem ainda, estava longe da “tia” e das amigas bolivianas
que tinha feito. Também não tinha
roupinhas, mais fraldas e outros itens
de higiene como as outras mães que
recebiam visitas da família.
De quarentena após dar à luz, Angeli-
32
Nosotras
Angelica
ca e Joshua poderiam ter enfrentado inúmeras dificuldades, que a princípio pareciam inevitáveis. Mas
com a maternidade, Angelica descobriu a força e a
sororidade entre mulheres. As outras mãezinhas,
como ela se refere às companheiras, ajudaram em
tudo, materialmente e psicologicamente. Quando
alguma criança passava mal e as agentes não davam atenção, todas as mães se rebelavam juntas,
mesmo que a resposta fosse sempre a mesma: “é
dor de dente”.
Joshua ainda mamava e começava a engatinhar
quando completou seis meses de idade. Passou rápido demais. Angelica chorava muito com as outras
mães, mas um milagre (se é que pode se chamar
assim) aconteceu. O consulado boliviano finalmente respondeu seus pedidos e resolveu ajudá-la, pagando uma passagem para que a mãe dela, avó de
Joshua, pudesse vir buscá-lo.
Com muita dificuldade e ainda doente, a mãe de
Angelica veio para o Brasil. Entregar o filho para a
avó foi tão difícil quanto entregá-lo para qualquer
outra pessoa, mas pelo menos Angelica saberia
onde ele estava, com a certeza de que o veria de
novo.
33
Nosotras
Maria, a avó, ficou em São Paulo na casa do marido
de Angelica, que havia se mudado da Bolívia há
alguns meses, começando uma nova vida longe de
Luana, Angelica e agora Joshua.
A casa dele ficava em São Paulo, a poucos quilômetros de distância da “nova casa” de Angelica. Apesar disso, desde que foi presa, a primeira e última
vez que Angelica falou com o marido foi para vê-lo
tirar Joshua dela.
Depois de todas as cartas acusando a esposa de ser
uma má mãe, ele abriu mão da guarda do filho para
Maria cuidar da criança. Ele nunca mais entrou em
contato com a família. Até hoje.
Sem Joshua, a vida continua entre muros. Angelica
atualmente trabalha dentro da prisão fazendo pequenos detalhes de peças de roupa. Ela se comunica com a família por cartas, inclusive com o pai,
ainda preso na Geórgia, mas é sempre por intermédio da mãe, pois ele não sabe de tudo o que a filha
fez por ele.
Daqui cinco anos, quando Angelica e Carlos saírem
das prisões, ela contará toda a história. Por enquan-
34
Nosotras
Angelica
to se mantém forte, sempre pensando na família e
na falta que a mãe, o irmão, o pai, o filho e a filha
fazem. Mas tem fé, “essa sentença é de homem, a
última palavra é de Deus.”
35
Nosotras
Aurora
2
quando
Ícaro voar
Da entrada da penitenciária até chegar na sala de
aula onde ocorrem os atendimentos do ITTC, seria
possível apenas andar em linha reta, pois não é longe. O problema são as burocracias de segurança,
portas e mais portas, conversas com a diretora, pedidos das mulheres que estão trabalhando, visitas
37
Nosotras
ao pavilhão materno, passar por portas que levam
a salas vazias, desativadas. E ainda nem chegamos
perto das celas. Essa parte vemos apenas de longe.
Só uma janela por cela e algumas roupas penduradas.
Quando finalmente chegamos, a agente já tem uma
lista das mulheres que deve chamar. Aurora é o
décimo primeiro nome. Quando ela chega, vai primeiro conversar com Isabela, da equipe do Projeto
Estrangeiras. Elas conversam sobre fazer um pedido de prisão domiciliar, já que Aurora está grávida
e tem o direito de cuidar do filho fora da cadeia.
Alguns minutos depois, Aurora senta na minha
frente e me olha calada, quase com medo. “Ela
disse que você queria conversar comigo”. Normalmente os atendimentos demoram, pois as mulheres
têm bastante coisa para contar sobre a rotina lá
de dentro. Elas também costumam escrever cartas
para as famílias, e quando são respondidas parece
que algo se renova dentro delas. Recebem desenhos pintados a giz de cera e fotos de filhas, filhos,
gatinhos de estimação e amigas, que fazem a saudade apertar um pouco menos, ou a coragem para
esperar mais um pouco aumentar.
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Nosotras
Aurora
Naquele dia não tinha nada para Aurora. Mas nem a correspondência seria capaz de mudar seu semblante tão
sereno e ao mesmo tempo tão triste.
Perguntei se ela estava bem e ela respondeu “si”. Então perguntei o que a
trouxe ali, qual era a história dela. E
evitando olhar nos meus olhos, como
criança que fica com vergonha de falar com estranhas, ela começa a me
contar.
Ícaro
Na mitologia grega, Ícaro, filho de
Dédalo, é preso com o pai no labirinto de Creta. Impedidos de sair dali
por terra e por mar, vinte e quatro horas por dia vigiados pelos guardas do
Rei Minos, a única solução encontrada para fugirem foi o céu.
Não foi pelo céu que Aurora chegou
ao Brasil. Diferentemente da maioria
das estrangeiras presas em São Paulo, que vêm de avião e são pegas no
39
Não foi pelo céu
que Aurora
chegou ao Brasil
Nosotras
aeroporto, Aurora foi presa numa segunda-feira
dentro de um ônibus que vinha de Santa Cruz, na
Bolívia, com destino à capital paulista.
Quando se está com a droga presa ao corpo, o
medo de ser pega acompanha, junto à cocaína,
cada passo dado.
Foi em Corumbá que os policiais pararam o ônibus em que Aurora estava. Foram direto nela, como
se soubessem exatamente onde e o que procurar.
Talvez soubessem mesmo. É normal que a polícia
receba denúncias anônimas, geralmente vindas da
própria organização criminosa, a fim de desviar as
atenções e passar a fronteira com mais droga.
No último final de semana que passou na Bolívia,
ela estava em casa apenas com o marido, mas a
família, na verdade, é bem maior. Seus cuidados
se dividiam entre quem morava com ela, Mirian,
Carla, Georgia e Carlos, as filhas e o filho, Rogério,
o marido, e também quem precisava de cuidados e
não tinha mais ninguém, como o pai Manuel, que
tem câncer de próstata.
Pelo menos essa era a família na qual Aurora pen-
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Nosotras
Aurora
sou ao, cansada de não arranjar emprego na Bolívia, decidir transportar drogas. Uma leve inclinada
de cabeça para a esquerda combinou com os dois
ombros erguidos quando disse isso, como se estivesse se justificando e dizendo em silêncio “era o
que dava para fazer”. Pediu ajuda para uma amiga que estava conseguindo algum dinheiro nessas
viagens e logo tudo já estava arrumado para a próxima segunda-feira.
Éramos cinco
Era fevereiro e fazia muito sol. Antes de entrar no
ônibus, Aurora recebeu dois quilos de cocaína para
levar embaixo da blusa. Quando os policiais a revistaram, ela suava de nervoso e de calor, por causa do plástico colado ao seu corpo. Não se lembrou
em qual cidade a viagem foi interrompida, mas se
lembra bem das três semanas que passou na Penitenciária de Pirajuí antes de ir para a Penitenciária
Feminina da Capital.
Aurora passou muitos dias mal e não tinha atendimento médico lá. Só um mês depois, já em São
Paulo, conseguiu uma consulta e fez um exame de
sangue. Quase não acreditou quando o resultado
41
Nosotras
chegou.
A família já era grande e quase parecia não caber na casa alugada onde
moravam. Agora seriam seis.
Agora seremos dois
A família já
era grande.
Agora seriam
seis
A única vez que o rosto de Aurora
sorriu e perdeu o medo foi quando falou do filho. Já estava de cinco meses
e precisava encontrar um bom nome.
As amigas feitas dentro da prisão
ajudaram a escolher: Ícaro. Falei que
era muito bonito, ela também gostou.
Mas Aurora vai pedir para Mirian,
sua mais velha, escolher outro, pois
ela quer que seja composto, como os
das irmãs e irmãos.
Apesar do perfil calado, os olhos triste de Aurora gritam a saudade que ela
sente da família. Bem no fundo deles
também há esperança, principalmente por causa do filho.
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Nosotras
Aurora
Ela continua aguardando o pedido de prisão domiciliar. Quer que Ícaro voe para longe da cadeia.
43
Nosotras
domitila
3
embaraço
A entrada do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania
é um portão plúmbeo trancado por dois cadeados
bem grandes. Durante o dia, ambos ficam abertos
e só se abre o trinco para entrar. As grades empoeiradas pelo movimento da rua rangem ao serem
empurradas, de modo que o barulho anuncia quem
chega e aflige quem ouve.
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Nosotras
Foi numa tarde de quarta-feira que ouvi aquele barulho pela vigésima vez no dia. Sem muita surpresa,
pensei que seria alguém que chegava do almoço.
Meu espanto foi notar que quatro mulheres entravam timidamente e cochichavam em espanhol. No
meio do grupo, uma risada de criança. Um menino
bonito e grande se aninhava no colo da mãe, que
vestia jeans e uma camiseta listrada com o rosto de
uma cantora pop adolescente estampado.
Olhei de longe e quase não reconheci Domitila e
Jeremy. Alguma coisa tinha mudado na cor das maçãs do rosto, no brilho dos olhos, antes fosco e
pastel como tudo na prisão.
Domitila continuava tímida, como da primeira vez
que a vi, falando baixinho. Jeremy havia crescido
bastante para um bebê de apenas cinco meses. Havia, no entanto, uma mudança radiante e comum
entre mãe e filho: sorriam.
Ela se lembrou de quando fui visitá-la na prisão e
tentei entrevistá-la. Dessa vez disse que me contaria sua história, mas antes disso queria falar do
futuro, que se desdobrava quase sem planejar e tão
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Nosotras
domitila
logo se encontrava com o presente.
Será que a mãe sabia que ela estava
livre?
“Quer dizer, prisão domiciliar é tipo
estar livre, né?”
“Ah, não pode sair do abrigo?”
“Não pode trabalhar?“
“Não, não pode. Precisa aguentar, tá
acabando”, avisei.
Por tantas vezes Domitila ouviu que
“precisava aguentar”, poucas vezes
essas palavras foram ditas com brandura.
“Dia onze de novembro vai faltar
um ano pra acabar a sentença”.
As datas são sempre importantes
quando o xis no fim do calendário
significa a liberdade. Setembro já estava chegando, mas o céu ainda era
de dezembro do ano passado: cinza.
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Será que a mãe
sabia que ela
estava livre?
Nosotras
Já fazia mais de um ano que Domitila estava presa quando numa sexta-feira nublada de primavera
uma das agentes a surpreendeu enquanto ela dava
banho em Jeremy.
“Você tem endereço aqui no Brasil?”
“Não…”
“É porque você vai embora.
“Mas eu não conheço ninguém”
“Vou colocar a rua da Casa de Acolhida então. Assina aqui.”
Depois de atravessar infinitas portas azuis até a
escolta, ela passou pela Polícia Federal. Só depois
disso foi para o abrigo. Assim que chegou, às 22h,
foi guiada até sua cama. O quarto seria compartilhado com outra mulher, que já dormia quando
Domitila chegou.
À primeira vista, trocar grades por portas feitas de
madeira é como “sair de um ovo”, mas continua difícil se acostumar com outras pessoas. Kathy, a angolana que dorme na cama ao lado têm duas filhas,
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Nosotras
domitila
uma de sete anos e a outra de dois meses. Gritam,
choram, falam muito alto. E falam em inglês.
A saída foi se juntar às outras bolivianas que vivem no mesmo abrigo. É bom se sentir um pouco
mais em casa. As mesmas amigas que fez na Casa
de Acolhida a acompanhavam na visita ao ITTC.
Quando Jeremy chorava, elas, que eram três bolivianas e uma equatoriana, brincavam com o bebê e
o acalmavam. Enquanto isso, Domitila finalmente
me contaria sua história.
Entre fronteiras
Quando conheci Domitila, seu filho Jeremy havia
acabado de tomar duas vacinas. As pernas, inchadas entre as dobrinhas de bebê recém nascido,
não se ajeitavam no colo da mãe e ele desabava a
chorar. Chorou tanto que não consegui conversar
com a mãe naquele dia. “Na próxima semana eu
volto…”
Nem precisei voltar. Lá estavam mãe e filho diante dos meus olhos incrédulos. Destino certeiro que
a trouxe até mim. Dessa vez Jeremy chorava, mas
era só fome. Domitila virou o filho, levantou a blu-
49
Nosotras
sa distorcendo o rosto perfeito da cantora pop e
aproximou Jeremy do seio para que ele mamasse.
Assim começou a história.
Há alguns anos, Domitila ia para a escola todos os
dias. Não para estudar, isso ela havia deixado de
fazer há muito tempo, no ensino fundamental. Mas
todos os dias ela acordava, vestia seu uniforme e
limpava os banheiros de um pequeno colégio no
Chile.
A vida que tinha lá era difícil. As crianças a chamavam de “índia”, não gostavam da ideia de uma boliviana trabalhando no país delas. Era assim também
com outras duas bolivianas que dividiam casa com
Domitila.
A casa era simples, porém cara, como tudo no Chile. A ideia de ir para lá era ganhar dinheiro e ajudar
a mãe e o marido, que ficaram em Cochabamba cuidando dos seus três meninos, mas Domitila logo
percebeu que não conseguiria juntar muito dinheiro. As dívidas continuavam acumulando zeros no
fim do mês.
A gota d’água caiu como um balde cheio de gelo na
50
Nosotras
domitila
nuca de Domitila ao saber que a mãe estava doente. De volta à Bolívia a vida ficou ainda mais difícil
com os filhos para criar e a mãe para cuidar.
O trabalho que arranjou como ajudante de cozinha
pagava ainda pior que o de faxineira. Sem saber o
que fazer com as insistentes ligações do banco, Domitila viu numa prima, de quem era muito próxima,
uma chance de quitar as dívidas. Ela e Carmen haviam crescido juntas e continuaram próximas mesmo nesse ano que Domitila morou fora. Apesar da
proximidade, ela pouco falava sobre como ganhava
dinheiro, até o dia onze de novembro de dois mil
e quatorze.
Decidiram que Domitila e a tia, mãe de Carmen,
partiriam às 4h da manhã num ônibus em direção
ao Brasil. Levavam cocaína em suas bagagens, mas
naquele ponto ainda não sabiam qual era droga,
nem quiseram abrir as malas. Tudo o que sabiam
era que chegando aqui entregariam as malas a alguém, que as recepcionaria, e enfim receberiam o
dinheiro.
Ao perceber que a fronteira se aproximava, Domitila não quis mais. Colocou a mão em sua barriga e
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Nosotras
pensou na família que estava ficando maior. Grávida de cinco meses, os filhos eram o motivo pelo
qual precisava fazer aquilo, mas naquele momento
também eram o motivo pelo qual não queria continuar.
Enquanto a tia dizia, “aguenta” e que tudo daria
certo, o ônibus fez uma parada fora do cronograma
na estrada que passa por Presidente Prudente. Tia
e sobrinha estranharam mas tão rápido quanto disse “vai dar tudo certo”, deu tudo errado.
Dois policiais subiram no ônibus com armas na
mão, encarando todos e todas em seus olhos assustados. Se aproximaram apressados, pisando duro,
pararam na frente de Domitila e gritaram: “Cadê a
outra?”
Não tinha outra, não tinha mais ninguém com elas.
Nesse momento a consciência que de estavam realmente sozinhas pesou toneladas a mais que o único
quilo de cocaína em sua bolsa.
Mesmo insistindo que havia mais alguém com elas,
os policiais levaram apenas Domitila e a tia para
a delegacia. Elas não puderam conversar enquanto
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Nosotras
domitila
estavam lá, muito menos se despedir. Quando a colocaram sozinha na escolta para a Penitenciária Feminina de Tupi Paulista sabia que nunca mais veria
Carmen. A partir daquela hora seria só ela e o filho.
Dentro do ovo
Chegando em Tupi, Domitila começou a passar mal
com frequência. Os enjôos matinais, que já estava
acostumada a ter, pioraram, a comida era ruim e a
solidão apertava os nós dentro da garganta.
Não adiantava pedir ajuda, ninguém lá falava espanhol. Muito menos se esforçavam no portunhol.
Das mil e oitenta mulheres presas em Tupi, apenas
cinco eram bolivianas. Quando Domitila conseguia alguma atenção das agentes, engolia o choro
e pedia atendimento médico. As funcionárias, no
entanto, pensavam que suas dores eram de droga
engolida. Domitila dizia que estava “embarazada”,
mas ninguém sabia o que isso significava. A droga
que ela engoliu? Quis traficar, agora aguenta.
Não cessando as dores, finalmente a levaram para
fazer exames. A médica dizia “você está grávida”
e Domitila respondia “No, yo estoy embarazada”.
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Nosotras
Demorou até que as duas entendessem que falavam a mesma coisa.
“Você está
grávida”
“No, yo estoy
embarazada”
Depois de meses presa, cada vez
mais triste, Domitila conseguiu ligar
para o marido em Cochabamba. Ouvir sua voz deveria ter sido um alívio
no meio daquele caos, mas, na verdade, as coisas só pioraram. Desde que
ela fora presa, ele estava desempregado e não ajudava mais em casa. A
mãe tinha piorado e já não podia mais
cuidar dos filhos e por isso os tinha
mandado para um abrigo. Ela e o marido nunca mais se falaram depois daquela ligação.
Quatro meses passaram arrastando
as horas. Num dos dias, eram todos
iguais, Domitila acordou às 6h da
manhã com dores de contração. Chamou uma agente e as duas foram escoltadas para o hospital. Chegando
lá, foram para um quarto onde uma
mulher, também vinda de Tupi, tinha
acabado de ter seu filho. Domitila
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Nosotras
domitila
pensou que logo seria ela ali. Chegar ali, no entanto, foi mais difícil do que ela poderia imaginar.
7:00
Eram 7h da manhã. Domitila e a gente esperavam o
médico chegar para fazer o parto. Enquanto isso as
contrações aumentavam.
7:30
Chegaram mais três guardas no quarto. Todos estavam armados, para o caso de Domitila tentar fugir
enquanto o bebê não nascesse. Vigiavam cada respiração mais forte, cada espasmo de dor, cada gota
de suor que caía de sua testa. Entre uma contração
e outra expressam seu apoio à Domitila: Você não
vale nada/Você achou que seria fácil?/Agora tem
que aguentar/Você está em outro país/Ninguém
mandou vir pra cá.
7:45
Uma enfermeira finalmente entrou no quarto.
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Nosotras
Abriu espaço entre os guardas e parou na frente
de Domitila. Mediu sua temperatura com a mão,
agachou para ficar da altura da cadeira e perguntou
onde estava o dinheiro da droga. A dor era tanta
que Domitila nem conseguiu responder, mas nem
que estivesse bem saberia o que dizer. A enfermeira continuou: “Você vai ter que pagar essa cirurgia.
Cadê o dinheiro que você ganhou?
Sem resposta, levantou, virou as costas e foi embora dizendo “Estrangeira só vem dar trabalho”.
8:00
Um médico entrou no quarto onde estava Domitila,
que começou a sangrar na cadeira em que estava
sentada havia uma hora. Estavam presentes a agente carcerária, os três guardas e a brasileira que tinha
acabado de dar à luz e dormia, alheia ao show de
horrores que acontecia ali.
Esse novo médico, na verdade, tinha entrado no
quarto errado. Logo saiu, mas não pode evitar o
comentário: “Essas presas têm que sofrer mesmo”.
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Nosotras
domitila
8:30
Domitila ainda sangrava. Olhava ao redor e sentia
medo do ódio que via nos olhares das outras pessoas. Lentamente focava na tranquilidade da nova
mãe ali deitada, provavelmente sonhando com sua
criança. Depois passava a olhar para a agente, que
fitava o chão com tédio. Encarava os três guardas,
todos com a mesma cara, a mesma pose. E então
começava de novo: a mãe, a agente, os guardas.
A mãe, a agente, os guardas. A mãe, a agente, os
guardas. A mãe. A agente. Os guardas. A mãe...
9:00
“Por que ninguém me ligou antes? Senhora, desde
que hora você está sangrando?” “Por que não me
ligaram antes?”
Novamente, a dor era tanta que Domitila não conseguia responder. Agora ela estava numa mesa de
cirurgia e não via mais a mãe, a agente e nenhum
dos guardas. Deitada, via apenas um médico preparando a anestesia.
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Nosotras
“De onde você é?”
Mais baixo que o normal, Domitila respondeu:
“Cochabamba”
“Eu já estive lá. É muito bonito!”
Por conta das complicações que teve antes do parto, Domitila ficou no hospital por três dias, no
mesmo quarto onde ficou esperando ser atendida. Viu a mãe, acordada finalmente, com seu bebê
indo embora.
Durante as setenta e duas horas, a mesma guarda
ficou no sofá ao lado da cama, apenas olhando,
ora para Domitila, ora para a porta, provavelmente
desejando estar em qualquer outro lugar. Domitila não é muito de conversar, mas também não foi
esforço algum para que a agente não trocasse uma
palavra com ela.
O silêncio durou até ela voltar para Tupi. Ainda sentia muita dor, mas o único remédio que davam era
paracetamol. “Aguenta, vai passar”, diziam. “Tá
pensando que tá na Bolívia?”
Apesar disso, Domitila não estava mais sozinha.
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Nosotras
domitila
Jeremy era um bom menino e uma pontinha de felicidade dentro da prisão. O problema de Tupi era
que o bebê tinha que ficar na cela junto dela e das
outras mulheres, que faziam muito barulho. A comida também não era lá essas coisas, muitas vezes
ela passava o dia comendo pão e bebendo café.
Um mês e duas semanas depois que Jeremy nasceu, ela decidiu conversar com a assistente social
da prisão para pedir transferência. Ficou sabendo
que existia uma penitenciária em São Paulo com
um pavilhão só para mães. E que havia outras bolivianas lá.
A funcionária disse que faria o pedido, mas que seria muito difícil conseguir escolta para ela e Jeremy.
Depois de tanto tempo, difícil era um conceito relativo no vocabulário de Domitila.
Mais cinco meses e duas semanas de espera até
chegar a resposta. Sem ter ninguém para se despedir, ela e Jeremy pegaram o bonde para a capital
sem pensar duas vezes.
Chegando na Penitenciária Feminina da Capital, a
vida mudou um pouco. Domitila continuava aca-
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Nosotras
nhada, mas aos poucos começou a conversar com
as outras mães. No pavilhão materno, pelo menos,
as mulheres se ajudavam e não faziam tanto barulho.
Ainda na primeira semana, logo quando mãe e bebê
começavam a se acostumar com os novos ares, Domitila foi chamada para conversar com a diretora.
Como faziam as crianças da escola que trabalhava no Chile, em tempos tão distantes, ela foi até a
sala da administração, do outro lado do presídio, o
medo aumentando a cada passo.
Abriu a porta e viu a diretora sentada atrás de sua
mesa. Notou que havia uma mulher sentada na frente dela, mas como estava de costas não conseguia
dizer quem era. Alguns segundos depois, notou
algo de familiar nela. Talvez no jeito de sentar, nos
cabelos negros ou na postura introvertida. Carmen
se virou e as duas começaram a chorar.
Pensaram que nunca mais se veriam de novo. Domitila descobriu que a tia tinha ido para a PFC desde o começo, quando foram presas em Presidente
Prudente. O reencontro, entretanto, não se prolongou. Durou apenas aqueles cinco minutos na sala
60
Nosotras
domitila
da diretora. Isso porque Domitila deveria permanecer com Jeremy na ala das mães, sem poder sair
de lá, enquanto a tia ficava nos pavilhões das estrangeiras, seguindo a rotina à qual se acostumara
desde que chegou, meses antes da sobrinha.
A mãe reconhece que a Penitenciária da capital foi
melhor para o filho. Agora que está maiorzinho,
tinha outras coisas para comer que Tupi não fornecia, como papinha, leite em pó, bolacha. Mesmo
não sendo o indicado para bebês da idade dele, já
é melhor que nada. Ainda tinha fralda, sabonete,
lencinho… Melhor que aquilo só saindo de lá.
“A cadeia não tem futuro.”
Tia e sobrinha se cruzaram pela segunda e última
vez na fatídica sexta-feira cinza, quando Domitila
saía às pressas com Jeremy no colo, meio sem entender o que estava acontecendo. Apenas se despediram, dessa vez sem choro. Domitila abraçou a
tia e disse baixinho: “Aguenta, vai dar tudo certo”.
E torceu para que dessa vez desse mesmo.
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Nosotras
portas cor de céu
Ao passo que saio da prisão em direção à rua, deixo
a distância fazer com que os muros cor de nuvem e
as portas cor de céu pareçam menores. A ilusão do
ínfimo me faz perceber porque as burocracias e as
barreiras me incomodam tanto. O abrir e fechar de
portas, tão pesadas e tão grandes, nunca significa
entrar ou sair de lugar algum. Se flutua da prisão
para a prisão, vagando num labirinto enorme, porém vazio de significado.
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Nosotras
Não há luzes capazes de guiar as habitantes daquele lugar para casa, como dizia a música que me recepcionava na entrada. Aquelas mulheres também
não precisam ser consertadas.
Já do lado de fora, onde o céu professa a noite,
ouvir o som duro da porta de ferro batendo atrás
de mim me impede de continuar andando por um
segundo. Com a sutileza de um alfinete que perfura lentamente o dedo, o ruído grosseiro martela em
minha cabeça uma espécie de auto reconhecimento de privilégios.
Parar por um segundo para olhar da calçada a nuvem emoldurada de laranja é um deles. Contemplar
o céu, flanar, e refletir o funcionamento das coisas
também.
Além disso, existe um grande perigo em pensar na
outra pessoa, quando ela própria não se questiona. O desejo de transformação social é um fluxo
naturalmente intenso, mas é preciso colocar-se no
lugar. O exercício do reconhecimento pessoal se
estende no campo profissional. Até porque o jornalismo ensina que é impossível dissociar os dois.
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Nosotras
Como mulher, diariamente sujeita a tantas violências, carregando no peito incontáveis lutas e disputas de espaço históricas, é fácil se identificar com
essas histórias de abusos e silêncios, imposições e
acatamentos. Porém, como mulher branca que frequenta espaços de elite, como a universidade, é difícil dizer que as entendo. Seria desonesto qualquer
princípio de julgamento das escolhas de alguém de
uma realidade tão distante da minha.
No âmbito da profissão, é preciso admitir as limitações de jornalista. Talvez por uma questão de autoafirmação, muitas pessoas acreditam no poder
de transformação direta do jornalismo.
Precisamos reconhecer: este livro dificilmente mudará a realidade que tenta transpor em palavras.
No entanto, não deixa de ser um mecanismo de
registro para que outras pessoas a conheçam; e de
denúncia a quem pode, de fato, mudar o curso dessas e de outras trajetórias.
Outras e outros jornalistas também já escreveram
sobre as violências do cárcere. Nessa tentativa, denunciam a falta de atendimento médico, a negligência no tratamento das mães, a ausência do Estado.
65
Nosotras
Mas chegam com perguntas que lhes deem as manchetes: “Vocês usam mesmo miolo de pão no lugar
de absorventes?”, “Você deu à luz sozinha na cela
de castigo?”
Outros relatos não têm vez nas reportagens, porque
os formatos da grande mídia não permitem. O problema é que esse recorte apelativo não chega nem
perto da realidade, tão ruim quanto as histórias de
capa.
As violações dentro do sistema prisional se dão
justamente no que é considerado normal. Principalmente quando se fala sobre mulheres, ainda por
cima migrantes. Não receber medicação adequada.
Esperar horas até poder parir, ainda que se esteja
dentro de um hospital. Ser vigiada enquanto dá à
luz. Estar presa e estar sozinha. Ser julgada pela lei
e pelas pessoas. Ser punida por ser uma mãe ruim,
por não fazer escolhas que um juiz de classe média
branco faria. Ser má porque teve filhos e não consegue criá-los, ser pior porque arrumou um meio
considerado ilegal para criá-los.
É preciso fôlego para encarar isso tudo. É preciso respirar fundo e continuar caminhando prisão
66
Nosotras
afora. A importância de se colocar no lugar, como
jornalista e como mulher, está no próximo passo,
no dia seguinte, ao escolher que tipo de profissional se quer ser.
Não escolhi a história pela manchete. Texto pelo
texto, visibilidade pela visibilidade. Escrever com
esse âmago é ultrapassar portas azuis de ferro que
levam ao mesmo lugar, nunca para fora.
Lacan dizia que “o que se conta não é apenas a
finalidade da fala, mas o conteúdo do que se fala”.
Por isso nós, jornalistas, nos munimos de cadernos, canetas, câmeras e gravadores para garantir
a total credibilidade dos fatos, a objetividade mais
possível, a imparcialidade mais tangível.
No entanto, quando entrei na penitenciária, fui
obrigada a deixar para trás os instrumentos que
aprendemos a usar para registrar entrevistas e tive
meus bloquinhos revistados, assim como meu próprio corpo. Nesse momento entendi que cada lacuna gerada pelo distanciamento seria um silêncio. E
calar é consentir.
O que escrever? Quando seria a hora de assumir
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Nosotras
meu papel de jornalista? Onde escrever e para
quem falar? Como traduzir histórias de vida em palavras no papel? Por que fingir ser objetiva quando
cada palavra ouvida e cada movimento observado
carregava uma subjetividade assustadora?
Quando respondi a essas perguntas, assumi dupla
função: a de mediadora de histórias e delatora de
violências. Optei pelas formas não-tradicionais e
descobri algumas coisas ao longo do caminho.
Para contar as três histórias contidas aqui eu precisaria decorá-las, já que não pude registrá-las por
completo. Decorar, no entanto, não foi entendido
como uma movimentação mecânica, mas como sua
origem define: o ato de colocar no coração.
Nosotras são relatos de nós: do coração delas para
o meu coração. Do coração deste livro para o coração de quem o lê.
As histórias de Angelica, Aurora e Domitila continuarão, seja no Brasil, na Bolívia ou em qualquer
outro lugar que a vida as levar. Essas mulheres que
conheci nunca mais serão as mesmas depois da prisão. Enquanto eu, nunca mais serei a mesma depois
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Nosotras
delas. De você, que chegou até aqui, nesta linha,
espero apenas que tenha decorado alguma coisa
disso tudo.
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Hoje, o Brasil é o terceiro
país com maior população em
situação de prisão do mundo.
A
Penitenciária
Feminina
da
Capital detém seiscentas e vinte
e oito mulheres, concentrando a
maior parte das estrangeiras em
situação de prisão no território
brasileiro.
Nessa conta, quarenta e seis
são bolivianas. Dentre elas,
quarenta e quatro estão presas
por tráfico de drogas. Todas são
identificadas pelos seus números
de matrícula, suas sentenças
e seus crimes, mas sobretudo
são mulheres. Antes de virarem
estatística eram, e continuam
sendo
mães,
filhas,
esposas,
vizinhas, amigas.
Existem
razões
pelas
quais
essas mulheres assumiram riscos
e se deslocaram da Bolívia até
o Brasil. Foi para descobrir
esses motivos que me desloquei
até a Penitenciária Feminina da
Capital.