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XX/2014 p/ Despacho/Decisão *** Sentença/Despacho/Decisão/A Ordinátorio Autos nº. XXXXXXX-68.2014.XXX.6119 Vistos.1. Cert dão de folha XXX: considerando (i) se tratar de processo com du rés presas, bem como (ii) a proximidade da data da audiência (iii) a notória dificuldade de disponibilidade de intérprete solicite-se por correio eletrônico a(o) MM(a). Juiz(a) Dir tor(a) desta Subseção Judiciária, excepcionalmente, as prov dências necessárias para que o intérprete seja conduzido a es Juízo, no dia e hora designados para a realização da audiênci e posteriormente de volta a sua residência.2. Folhas XXX/XX trata-se de requerimento formulado pela Defensoria Pública União, postulando a substituição da prisão preventiva de XXX XXXXXXXXX XXXXXXX pela prisão domiciliar, nos termos do arti 318, IV do Código de Processo Penal, tendo em vista o seu esta de gravidez avançada.Em resumo, alega que a custodiada preenc o único requisito estipulado pelo artigo 318, IV do CPP, confor documento comprovando que ela está na XXª semana de gestaçã o que seria suficiente para a concessão da prisão domiciliar. mais, afirma que as condições da penitenciária onde a denuncia se encontra não são adequadas para um ideal acompanhamento méd co pré, peri e pós-natal, sendo necessária a concessão da pris domiciliar para garantir a dignidade da acusada e a intransce dência da pena, visto que o recém-nascido seria prejudicado p algo que não cometeu.O Ministério Público Federal se manifest em desacordo com o atendimento do pedido, conforme razões aduz das às fls. 170/172.Em breve leitura, é o que consta.2.1. DECIDO requerimento formulado não merece acolhimento.Vejamos.Primeir mente, saliento que permanecem inalterados os pressupostos q fundamentaram a decretação da prisão preventiva, nos termos decisão proferida às fls. 28/31 do auto de prisão em flagrante, a quais me reporto no que se refere à presença do fumus comissi d licti e do periculum libertatis.Noutro giro, ao contrário do q alega a defesa, não basta que a gestante conte com os XXXX mes de gravidez para que, incondicionalmente, tenha direito à pris domiciliar. A substituição da prisão preventiva pela domicilia na dicção legal (“poderá o juiz”), não prescinde da análise d circunstâncias do caso concreto. Nesse sentido é a lição XXXXXXXXX XXXXXXXX XXXXX [...] Muito bem.No caso concreto trat -se de estrangeira sem qualquer vínculo com o Brasil nem compr vante de ocupação lícita, que foi justamente surpreendida pouc instantes antes de se evadir do país levando consigo farta qua tidade de entorpecente.O cotejo O cotejo destas circunstânci (quantidade, natureza da droga, transnacionalidade e ausência ocupação lícita), ainda que em juízo perfunctório, evidencia possível participação de organização criminosa, a demonstrar risco à ordem pública, em caso de se conceder a pretendida pr são domiciliar.Além disso, repare-se que a própria defesa n comprovou qual o “domicílio” onde a denunciada poderia cumpr a medida e ser encontrada para responder aos ulteriores atos processo.Em resumo: cuida-se de estrangeira, sem qualquer end reço fixo onde eventualmente pudesse s ser encontrada no Brasi nem prisão domiciliar. No mais, afirma que as condições da p nitenciária onde a denunciada se encontra XXXXXX-68.2014.4.0 nosotras Nosotras Ana Luiza Voltolini No será necesario que la gaviota haya regresado con la muerte en las alas Y que todas las playas se abismen bajo el cuerpo, Basta que alguna noche el cielo nos comprenda y lejos, Lejos las alas nos sonrían la amenaza de partir para siempre. Nora Zapata Prill Prólogo 11 Natureza morta Capítulo 1 19 A menina dos olhos 21 Presente de aniversário 22 Presente de dia das mães 26 QR982 com destino a Georgia 27 Escolta com destino a Santana Capítulo 2 37 Quando Ícaro voar 39 Ícaro 41 Éramos cinco 42 Agora seremos dois Capítulo 3 45 Embaraço 47 Onze de novembro 49 Entre fronteiras 53 Dentro do ovo Epílogo 63 Portas cor de céu Advertência Os nomes das personagens foram alterados para preservar a identidade das mulheres. Os nomes escolhidos no lugar são homenagens a três das cinco mulheres que derrubaram a ditadura militar na Bolívia em 1978. Entre elas, Domitila Barrios de Chungara, que lutou durante muito tempo da sua vida pelos direitos das mulheres. Nosotras Natureza morta O que hoje é o Parque da Juventude em 1992 foi palco de um dos mais violentos e controversos massacres já ocorridos em uma penitenciária brasileira. Décadas depois, a imagem do Complexo do Carandiru, maior presídio da América Latina, sendo demolido permanece na memória de quem assistiu ao evento pela televisão. Talvez por isso muita gente ainda se espante quando descobre que a Penitenciária Feminina da Capital continua funcionando logo ali, ao lado do parque. 11 Nosotras Mesmo com autorização da Secretaria de Administração Penitenciária, a SAP, é preciso avisar antes de fazer uma visita à PFC. Enviado um ofício no dia anterior, basta descer na estação Carandiru, linha azul do metrô, andar cento e vinte metros até a entrada do parque, atravessar as pistas de skate, as quadras de basquete, ultrapassar portões, andar mais trezentos metros até a penitenciária, passar por duas portas de ferro, guardar seus pertences em um armário, apresentar o R.G. Depois ter o resto dos seus pertences revistados, ter seu corpo revistado e, então, aguardar autorização para ingressar. A primeira agente com a qual tenho contato mal conversa comigo. Entrego meu documento e ela me olha na foto, não nos olhos. Enquanto confere meu nome no ofício, ouve uma música do Coldplay. A letra pode soar sutilmente inapropriada se você tem uma opinião crítica em relação ao sistema prisional: Lights will guide you home/and ignite your bones/and I will try to fix you. Ao som de Fix You, sou liberada da primeira sala. Tradução livre: Luzes te guiarão para casa/e irão inflamar seus ossos/e eu tentarei te consertar. 1 12 Nosotras Agora é preciso passar por alguns pavilhões e pela administração até chegar às salas de aula, onde a equipe do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, atende mulheres estrangeiras em conflito com a lei, trabalho este realizado em São Paulo há mais de dez anos. Meu caminho é guiado por muros brancos recém pintados, telas virgens emolduradas por arame farpado. Algumas lacunas ao longo dos muros revelam os pavilhões trancados por portas e mais portas, pesadas e grossas, quase todas azuis. Ao alto, pequenas janelas forradas de roupas e lençois. Ouvi uma vez que o diretor de uma penitenciária masculina no sul do Brasil pintou as celas do castigo de rosa a fim de humilhar os homens indisciplinados. Me pergunto porquê usar a cor azul nas portas da feminina. Existe, de fato, certa aura de tranquilidade durante os procedimentos de segurança de abertura das portas, tamanha é a insólita naturalidade com a qual se anda ali. Não sei se é costume ou se o azul tem alguma influência nisso. 13 Nosotras Os jardins bem cuidados parecem apenas uma tentativa de esconder a realidade da prisão. A beleza cultivada todos os dias por meio do trabalho das mulheres que ali habitam é facilmente assimilada, mas os corpos dentro de uniformes bege permanecem invisíveis atrás das flores. Esses corpos ausentes e uniformizados habitam um repositório de inconveniências, ao qual se chama de prisão. A desculpa para trancafiá-las ali, perene como as margaridas cultivadas, é a ressocialização. O que significa ressocializar uma mulher entre muros erguidos por homens, em um espaço construído para homens? O mundo ideal ocupou o imaginário de diversas autoras e autores ao longo do século. As chamadas utopias estão ilustradas em todos os lugares: nas músicas, na literatura, nos filmes... Jean-Michel Besnier, cientista político, profetizou em seu livro Demain les posthumans que no ano de 2030 o ser humano seria tão avançado que poderia finalmente habitar o “admirável mundo novo”. Jean-Michel tinha certa razão. No admirável mundo novo de Aldous Huxley, bebês da casta Delta 14 Nosotras (inferior a todas as outras) eram condicionados por meio de choques elétricos a terem medo de livros e flores. Estamos em 2015, quinze anos adiantados da previsão de Besnier e temos bebês que crescem em penitenciárias, condicionados por arame farpado eletrocutado, a temerem as cores e as estrelas, porque não as conhecem. Ao contrário das utopias, as distopias do mundo são realidade. Hoje, o Brasil é o terceiro país com maior população em situação de prisão do mundo. A Penitenciária Feminina da Capital detém seiscentas e vinte e oito mulheres, concentrando a maior parte das estrangeiras em situação de prisão no território brasileiro. Nessa conta, quarenta e seis são bolivianas. Dentre elas, quarenta e quatro estão presas por tráfico de drogas. Todas são identificadas pelos seus números de matrícula, suas sentenças e seus crimes, mas sobretudo são mulheres. Antes de virarem estatística eram, e continuam sendo mães, filhas, esposas, vizinhas, amigas. Existem razões pelas quais essas mulheres assumiram riscos e se deslocaram da Bolívia até o Brasil. 15 Nosotras Foi para descobrir esses motivos que me desloquei até a Penitenciária Feminina da Capital. Estas são as histórias de três delas e de como elas poderiam ser as histórias de muitas outras, incluindo a mim. Estas são as nossas histórias. Histórias de Nosotras. 16 Nosotras Angelica 1 A menina dos olhos Quando era pequena Angelica costumava ir com Carlos, seu pai, a todos os lugares. Se não estava na escola, era muito provável que estivesse com ele, acompanhando-o sempre curiosa em todos os compromissos. Foi num deles que Angelica, anos depois, conheceria o que chamam de tráfico de drogas. 19 Nosotras Conforme o tempo foi passando, pouca coisa mudou na vida de Angelica e de sua família. Aos 25 anos ela cursava biomedicina na cidade de Santa Cruz, na Bolívia, e continuava sendo a menina dos olhos do pai. Moravam com ela: pai, mãe, irmão e Luana, sua filha. Aquela deveria ser a última viagem E foi Apesar da união familiar, as dificuldades financeiras preocupavam principalmente Carlos, que estava desempregado há meses. A filha era a única que ajudava como podia, mas a maior parte das despesas ainda ficava a cargo dele. Quando as dívidas se acumularam e a situação se tornou insustentável, Carlos optou por um trabalho que lhe traria dinheiro rápido: o comércio de drogas. Ele procurou por uma conhecida que agenciava pessoas para o transporte de cocaína e depois disso foi rápido. Logo tudo estava arranjado: a passagem, as malas e a droga. 20 Nosotras Angelica A viagem em si não demorou muito e em questão de semanas ele estava em casa, de volta à Bolívia. O dinheiro, no entanto, foi embora tão rápido quanto chegou. Logo as dívidas voltaram a fazer volume na caixa de correio da família Gomez. Presente de aniversário A ideia de fazer uma segunda viagem surgiu não apenas com a necessidade de dinheiro, mas também com a aproximação do aniversário de Luana. Angelica queria comemorar um ano da filha com uma festa e Carlos sabia que o dinheiro não daria. Ele procurou outra pessoa que o ajudaria a viajar novamente e, sem pensar muito, partiu. Apesar de saber dos riscos ao recorrer de novo ao tráfico, a esperança de que aquela seria a última vez se manifestava nos planos compartilhados com a família. “Faltava pouco para ele conseguir um emprego honesto.”, contou Angelica. Aquela deveria ser a última viagem. E foi. Ao partir, os olhos do pai já não viam mais sua menina. O aniversário de Luana passou sem festa e o contato entre ele e a filha só foi retomado meses 21 Nosotras mais tarde, no dia nove de maio. Aniversário de Angelica. Um telefonema a despertou na manhã de um sábado ensolarado de outono. Ouvir um animado “feliz aniversário” do pai após meses sem notícia foi uma surpresa e tanto. A felicidade transbordava em sua voz quase tão alta quanto sua preocupação. Tanta que ela quase se esqueceu de fazer a pergunta que martelou em sua cabeça durante todo aquele tempo: ¿Dónde estás? O som dessas palavras saiu fraco, não só por causa da má qualidade da ligação, mas pelo medo da resposta, que se sobrepôs à alegria. Pior foi quando terminou a frase e foi respondida com silêncio, pois a ligação caiu. Passaram-se dias e mais dias sem notícias até que, no fim do mês, o telefone tocou novamente. Presente de dia das mães O dia das mães na Bolívia é comemorado no dia vinte e sete de maio, mesmo dia em que a Batalha de La Coronilla é celebrada. Neste dia, em 1812, Manuela Gandarillas liderou um grupo de mulhe- 22 Nosotras Angelica res de Cochabamba contra o exército espanhol. Aquele domingo de 2014 em particular, primeiro dia das mães de Angelica, deveria ser calmo e feliz, na medida do possível, mas se revelou determinante para o desenrolar desta história. Carlos parecia doente no telefone. Informou que tinha o braço quebrado e se queixou de dores. Então contou à filha o que ela suspeitava desde a primeira ligação: estava preso. O que ele pode contar em poucos minutos foi que havia sido pego em um país próximo à Turquia e que precisava de duzentos dólares por semana para evitar que o machucassem de novo. Depois disso, as informações a respeito dele foram cada vez mais escassas. Angelica, a mãe e o irmão conseguiram juntar a quantia necessária para uma semana, mas sabiam que não seria o suficiente. Além das preocupações que estavam a 13.110 quilômetros de Santa Cruz, Angelica também tinha uma que estava bem perto, alguns centímetros abaixo do seu coração apertado. Mesmo separada do marido, pai de Luana e de 23 Nosotras quem viria a ser Joshua em alguns meses, apenas ele sabia da sua gravidez. Na Bolívia é ainda mais difícil arranjar trabalho quando se está grávida e esse foi o estopim para que ela tomasse uma decisão que mudaria sua vida. Com o pai preso, Angelica se viu responsável pela família, pois seu irmão e sua mãe também não tinham fontes de renda. Por estar sempre ao lado de Carlos, ela sabia onde ir e o que fazer para conseguir ajuda. Ainda com um bebê a caminho e seu marido relutando a aceitar que ela seguisse os passos do pai, Angelica não via outra escolha. Por isso foi com o irmão encontrar Catarina, a mulher que agenciou Carlos em sua primeira viagem, a que deu certo. Chegando lá, a decisão ainda não estava tomada. O irmão de Angelica foi o primeiro a se manifestar. Disse que iria no lugar da irmã, pois não queria colocar mãe e bebê em perigo. Catarina, que já conhecia filha e pai, insistiu para que fosse Angelica quem fizesse a viagem, garantindo que, caso algo desse errado, a buscaria onde fosse. A preocupação escorria dos olhos de irmão e irmã, mas era 24 Nosotras Angelica tarde demais para mudar de ideia. No dia três de junho de 2014 tudo já estava mais ou menos preparado. Passaportes, passagens e o coração pronto para embarcar. Ou melhor, os corações. O de Angelica e o de Joshua. Os planos eram bem mais simples do que ela esperava. Ela e outra mulher, que também levaria droga, iriam de ônibus até Corumbá, onde pegariam as malas com um homem chamado Fernando. Ele saberia identificá-las. Depois era só embarcar pelo aeroporto de Guarulhos no voo QR982 até a Geórgia, mesmo país em que Carlos estava preso. Seria questão de dias para Angelica estar perto do pai. Com o dinheiro ela conseguiria ajudá-lo e ainda sobraria um pouco para pagar o aluguel atrasado. Mal podia esperar para reunir a família outra vez. Também tinha o filho que estava chegando. Mais um Gomez. Sua mãe ficava cada vez mais 25 Passaportes, passagens e o coração pronto para embarcar Nosotras doente desde que isso tudo começou, seria bom que a vida voltasse logo ao normal. QR982 com destino a Georgia Era 4 de junho e metade do combinado estava cumprido. Agora era por conta de Angelica e Sandra. As duas nem se preocuparam em abrir as malas que receberam de Fernando. Nem sabiam quanta droga tinha lá, pois também não se atreveram a fazer muitas perguntas. De qualquer forma, Fernando não tinha cara de que fosse responder. No aeroporto, as duas fizeram o check-in sem problemas, mas não tiveram a mesma sorte na fila do embarque. Quase chegando a vez de Angelica, dois funcionários da companhia aérea cochichavam no ouvido da atendente. Ela olhou desconfiada para Angelica e indicou sua vez dobrando o dedo indicador em direção ao peito. Preocupação escorria de Angelica novamente, dessa vez por todos os poros do seu corpo. Ela deixou a bagagem sobre a cesta de plástico e empurrou pela esteira automática. Silêncio. Angelica passou pelo detector de metais suando frio e se 26 Nosotras Angelica virou para pegar a mala, que ainda não tinha saído do raio-x. Na tela, via-se o esqueleto da bolsa e nos cantos manchas alaranjadas. Não era um bom sinal. Elas indicavam presença de material orgânico. Mais silêncio. Os dois funcionários que há pouco conversavam com a funcionária voltaram, dessa vez acompanhados de um policial. Escolta com destino a Santana Um mil duzentos e setenta e seis gramas de cocaína embalados em pequenos sacos plásticos num fundo falso de mala. Parecer do juiz como descrito no processo: “Não basta alegar que o Estado não desempenha a contenta as atividades que lhe competem, entre as quais assegurar existência digna aos cidadãos como forma de justificar o cometimento de infrações.” Julgamento do juiz, que nunca se encontrou com Angelica: “Sua conduta social é reprovável, uma vez que aceitou realizar o transporte, mesmo já ciente de que 27 Nosotras estava grávida e dos riscos que sua ação causaria para seu filho ainda não nascido, cabendo frisar, ainda, que, ao ser interrogada, afirmou que possui outra de tenra idade em seu país de origem.” Conclusão do juiz: seis anos, um mês e quinze dias de reclusão “6 (seis) anos, 1 (um) mês e 15 (quinze) dias de reclusão”. Chegando na Penitenciária Feminina da Capital, em Santana, a única pessoa com quem podia contar era Sandra, a quem carinhosamente passou a chamar de tia. O contato com a família se limitava às cartas que recebia do marido. Angelica estava separada dele quando morava na Bolívia, mas o filho que teriam uniu o casal. Ela sustentava a filha com a ajuda de Carlos, já que o pai de Luana e de Joshua nunca pagou pensão. Sempre foi ela quem se 28 Nosotras Angelica sacrificou pela família. Entre as poucas cartas que recebeu do marido depois de ser presa, Angelica lia em todas palavras que a machucavam muito mais do que as lidas em sua sentença, talvez mais do que a própria sentença e seus dois mil duzentos e trinta e cinco dias a cumprir ali dentro. Cinqüenta e três mil seiscentas e quarenta horas. Três milhões duzentos e dezoito mil e quatrocentos minutos. Nenhum segundo deles passado sem dor ou sem se lembrar das palavras do marido. Como uma música que ficaria grudada na cabeça por seis anos: Você é culpada/ Eu não queria ter te conhecido/ Você não pensa nos seus filhos/ Você é a pior mulher do mundo. Cinco meses depois bastante coisa mudou na vida de Angelica. Ela conheceu Isabela, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania - ITTC, que visitava a PFC todas as semanas. Ela acompanhou sua gravidez até o momento de entregar Joshua. Angelica não sabia, mas apesar da lei possibilitar 29 Nosotras que crianças permaneçam com as mães dentro da prisão até os sete anos, a penitenciária onde ela está exige que as crianças sejam entregues aos seis meses de idade. Quando soube disso, todos os seus esforços passaram a ser dedicados a sair da prisão e cuidar do seu filho. A única alternativa era que alguém da família fosse buscar Joshua, mas Angelica sabia que ninguém teria dinheiro para vir até o Brasil buscá-lo. Ela estava sozinha. Se não conseguisse sair, em seis meses seu bebê seria entregue a um abrigo, e sem ninguém para buscá-lo, em alguns anos poderia ser adotado por outra família. O pedido de prisão domiciliar foi entregue com a ajuda da Defensoria Pública da União e de Isabela. O juiz, no entanto, negou-lhe o direito, alegando que Angelica era uma “ameaça à ordem pública” e que estaria colocando o próprio filho em risco, pois poderia ser cooptada pela “organização criminosa” novamente. Sem muitas esperanças restantes e sem muito mais a perder, Angelica recorreu ao Consulado da Bolívia, que nunca fez nada por ela e dificilmente ajuda 30 Nosotras Angelica em casos desse tipo, mas qualquer coisa que não a fizesse perder Joshua serviria. Para ela, quando uma mulher vira mãe, se coloca em segundo plano. “Eu estou presa, não ele”, repetia. Ainda sem resposta, o dia do parto se aproximava. Angelica queria parto normal, mas a obrigaram fazer uma cesariana. Uma das motivações que levou o juiz a negar o pedido de prisão domiciliar foi o fato de que Angelica possuía atendimento médico disponível dentro da prisão. Ele provavelmente nunca entrou lá. Suas contrações começaram cinco dias antes da data marcada para a cesariana, portanto ela teve que esperar. O anseio vinha com medo. Passou tanto tempo temendo perder o filho dali seis meses que só então pensou na possibilidade de perdê-lo ali mesmo, antes de poder conhecê-lo. Numa quente tarde de dezembro, a escolta finalmente chegou à penitenciária e levou Angelica até o Hospital Vila Penteado. Considerando que há alguns anos, nesse mesmo hospital, mulheres presas eram algemadas pelas mãos e pelos pés na hora do parto, é possível afirmar que correu tudo bem, 31 Nosotras embora o pesadelo estivesse apenas começando. Correu tudo bem, embora o pesadelo estivesse apenas começando Quando Angelica voltou do hospital, três dias depois, foi direto para o Pavilhão Materno, onde todas as mães habitam junto a seus filhos e suas filhas. O prédio, cinza e com pouca iluminação não possui pediatria e muito menos medicação adequada. Sempre que há um problema com a mãe, lhe é oferecido paracetamol. Sempre que há problema com o bebê, é culpa do dentinho que está nascendo. Angelica se sentiu mais sozinha do que nunca agora que estava com Joshua nos braços. Ela não falava português muito bem ainda, estava longe da “tia” e das amigas bolivianas que tinha feito. Também não tinha roupinhas, mais fraldas e outros itens de higiene como as outras mães que recebiam visitas da família. De quarentena após dar à luz, Angeli- 32 Nosotras Angelica ca e Joshua poderiam ter enfrentado inúmeras dificuldades, que a princípio pareciam inevitáveis. Mas com a maternidade, Angelica descobriu a força e a sororidade entre mulheres. As outras mãezinhas, como ela se refere às companheiras, ajudaram em tudo, materialmente e psicologicamente. Quando alguma criança passava mal e as agentes não davam atenção, todas as mães se rebelavam juntas, mesmo que a resposta fosse sempre a mesma: “é dor de dente”. Joshua ainda mamava e começava a engatinhar quando completou seis meses de idade. Passou rápido demais. Angelica chorava muito com as outras mães, mas um milagre (se é que pode se chamar assim) aconteceu. O consulado boliviano finalmente respondeu seus pedidos e resolveu ajudá-la, pagando uma passagem para que a mãe dela, avó de Joshua, pudesse vir buscá-lo. Com muita dificuldade e ainda doente, a mãe de Angelica veio para o Brasil. Entregar o filho para a avó foi tão difícil quanto entregá-lo para qualquer outra pessoa, mas pelo menos Angelica saberia onde ele estava, com a certeza de que o veria de novo. 33 Nosotras Maria, a avó, ficou em São Paulo na casa do marido de Angelica, que havia se mudado da Bolívia há alguns meses, começando uma nova vida longe de Luana, Angelica e agora Joshua. A casa dele ficava em São Paulo, a poucos quilômetros de distância da “nova casa” de Angelica. Apesar disso, desde que foi presa, a primeira e última vez que Angelica falou com o marido foi para vê-lo tirar Joshua dela. Depois de todas as cartas acusando a esposa de ser uma má mãe, ele abriu mão da guarda do filho para Maria cuidar da criança. Ele nunca mais entrou em contato com a família. Até hoje. Sem Joshua, a vida continua entre muros. Angelica atualmente trabalha dentro da prisão fazendo pequenos detalhes de peças de roupa. Ela se comunica com a família por cartas, inclusive com o pai, ainda preso na Geórgia, mas é sempre por intermédio da mãe, pois ele não sabe de tudo o que a filha fez por ele. Daqui cinco anos, quando Angelica e Carlos saírem das prisões, ela contará toda a história. Por enquan- 34 Nosotras Angelica to se mantém forte, sempre pensando na família e na falta que a mãe, o irmão, o pai, o filho e a filha fazem. Mas tem fé, “essa sentença é de homem, a última palavra é de Deus.” 35 Nosotras Aurora 2 quando Ícaro voar Da entrada da penitenciária até chegar na sala de aula onde ocorrem os atendimentos do ITTC, seria possível apenas andar em linha reta, pois não é longe. O problema são as burocracias de segurança, portas e mais portas, conversas com a diretora, pedidos das mulheres que estão trabalhando, visitas 37 Nosotras ao pavilhão materno, passar por portas que levam a salas vazias, desativadas. E ainda nem chegamos perto das celas. Essa parte vemos apenas de longe. Só uma janela por cela e algumas roupas penduradas. Quando finalmente chegamos, a agente já tem uma lista das mulheres que deve chamar. Aurora é o décimo primeiro nome. Quando ela chega, vai primeiro conversar com Isabela, da equipe do Projeto Estrangeiras. Elas conversam sobre fazer um pedido de prisão domiciliar, já que Aurora está grávida e tem o direito de cuidar do filho fora da cadeia. Alguns minutos depois, Aurora senta na minha frente e me olha calada, quase com medo. “Ela disse que você queria conversar comigo”. Normalmente os atendimentos demoram, pois as mulheres têm bastante coisa para contar sobre a rotina lá de dentro. Elas também costumam escrever cartas para as famílias, e quando são respondidas parece que algo se renova dentro delas. Recebem desenhos pintados a giz de cera e fotos de filhas, filhos, gatinhos de estimação e amigas, que fazem a saudade apertar um pouco menos, ou a coragem para esperar mais um pouco aumentar. 38 Nosotras Aurora Naquele dia não tinha nada para Aurora. Mas nem a correspondência seria capaz de mudar seu semblante tão sereno e ao mesmo tempo tão triste. Perguntei se ela estava bem e ela respondeu “si”. Então perguntei o que a trouxe ali, qual era a história dela. E evitando olhar nos meus olhos, como criança que fica com vergonha de falar com estranhas, ela começa a me contar. Ícaro Na mitologia grega, Ícaro, filho de Dédalo, é preso com o pai no labirinto de Creta. Impedidos de sair dali por terra e por mar, vinte e quatro horas por dia vigiados pelos guardas do Rei Minos, a única solução encontrada para fugirem foi o céu. Não foi pelo céu que Aurora chegou ao Brasil. Diferentemente da maioria das estrangeiras presas em São Paulo, que vêm de avião e são pegas no 39 Não foi pelo céu que Aurora chegou ao Brasil Nosotras aeroporto, Aurora foi presa numa segunda-feira dentro de um ônibus que vinha de Santa Cruz, na Bolívia, com destino à capital paulista. Quando se está com a droga presa ao corpo, o medo de ser pega acompanha, junto à cocaína, cada passo dado. Foi em Corumbá que os policiais pararam o ônibus em que Aurora estava. Foram direto nela, como se soubessem exatamente onde e o que procurar. Talvez soubessem mesmo. É normal que a polícia receba denúncias anônimas, geralmente vindas da própria organização criminosa, a fim de desviar as atenções e passar a fronteira com mais droga. No último final de semana que passou na Bolívia, ela estava em casa apenas com o marido, mas a família, na verdade, é bem maior. Seus cuidados se dividiam entre quem morava com ela, Mirian, Carla, Georgia e Carlos, as filhas e o filho, Rogério, o marido, e também quem precisava de cuidados e não tinha mais ninguém, como o pai Manuel, que tem câncer de próstata. Pelo menos essa era a família na qual Aurora pen- 40 Nosotras Aurora sou ao, cansada de não arranjar emprego na Bolívia, decidir transportar drogas. Uma leve inclinada de cabeça para a esquerda combinou com os dois ombros erguidos quando disse isso, como se estivesse se justificando e dizendo em silêncio “era o que dava para fazer”. Pediu ajuda para uma amiga que estava conseguindo algum dinheiro nessas viagens e logo tudo já estava arrumado para a próxima segunda-feira. Éramos cinco Era fevereiro e fazia muito sol. Antes de entrar no ônibus, Aurora recebeu dois quilos de cocaína para levar embaixo da blusa. Quando os policiais a revistaram, ela suava de nervoso e de calor, por causa do plástico colado ao seu corpo. Não se lembrou em qual cidade a viagem foi interrompida, mas se lembra bem das três semanas que passou na Penitenciária de Pirajuí antes de ir para a Penitenciária Feminina da Capital. Aurora passou muitos dias mal e não tinha atendimento médico lá. Só um mês depois, já em São Paulo, conseguiu uma consulta e fez um exame de sangue. Quase não acreditou quando o resultado 41 Nosotras chegou. A família já era grande e quase parecia não caber na casa alugada onde moravam. Agora seriam seis. Agora seremos dois A família já era grande. Agora seriam seis A única vez que o rosto de Aurora sorriu e perdeu o medo foi quando falou do filho. Já estava de cinco meses e precisava encontrar um bom nome. As amigas feitas dentro da prisão ajudaram a escolher: Ícaro. Falei que era muito bonito, ela também gostou. Mas Aurora vai pedir para Mirian, sua mais velha, escolher outro, pois ela quer que seja composto, como os das irmãs e irmãos. Apesar do perfil calado, os olhos triste de Aurora gritam a saudade que ela sente da família. Bem no fundo deles também há esperança, principalmente por causa do filho. 42 Nosotras Aurora Ela continua aguardando o pedido de prisão domiciliar. Quer que Ícaro voe para longe da cadeia. 43 Nosotras domitila 3 embaraço A entrada do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania é um portão plúmbeo trancado por dois cadeados bem grandes. Durante o dia, ambos ficam abertos e só se abre o trinco para entrar. As grades empoeiradas pelo movimento da rua rangem ao serem empurradas, de modo que o barulho anuncia quem chega e aflige quem ouve. 45 Nosotras Foi numa tarde de quarta-feira que ouvi aquele barulho pela vigésima vez no dia. Sem muita surpresa, pensei que seria alguém que chegava do almoço. Meu espanto foi notar que quatro mulheres entravam timidamente e cochichavam em espanhol. No meio do grupo, uma risada de criança. Um menino bonito e grande se aninhava no colo da mãe, que vestia jeans e uma camiseta listrada com o rosto de uma cantora pop adolescente estampado. Olhei de longe e quase não reconheci Domitila e Jeremy. Alguma coisa tinha mudado na cor das maçãs do rosto, no brilho dos olhos, antes fosco e pastel como tudo na prisão. Domitila continuava tímida, como da primeira vez que a vi, falando baixinho. Jeremy havia crescido bastante para um bebê de apenas cinco meses. Havia, no entanto, uma mudança radiante e comum entre mãe e filho: sorriam. Ela se lembrou de quando fui visitá-la na prisão e tentei entrevistá-la. Dessa vez disse que me contaria sua história, mas antes disso queria falar do futuro, que se desdobrava quase sem planejar e tão 46 Nosotras domitila logo se encontrava com o presente. Será que a mãe sabia que ela estava livre? “Quer dizer, prisão domiciliar é tipo estar livre, né?” “Ah, não pode sair do abrigo?” “Não pode trabalhar?“ “Não, não pode. Precisa aguentar, tá acabando”, avisei. Por tantas vezes Domitila ouviu que “precisava aguentar”, poucas vezes essas palavras foram ditas com brandura. “Dia onze de novembro vai faltar um ano pra acabar a sentença”. As datas são sempre importantes quando o xis no fim do calendário significa a liberdade. Setembro já estava chegando, mas o céu ainda era de dezembro do ano passado: cinza. 47 Será que a mãe sabia que ela estava livre? Nosotras Já fazia mais de um ano que Domitila estava presa quando numa sexta-feira nublada de primavera uma das agentes a surpreendeu enquanto ela dava banho em Jeremy. “Você tem endereço aqui no Brasil?” “Não…” “É porque você vai embora. “Mas eu não conheço ninguém” “Vou colocar a rua da Casa de Acolhida então. Assina aqui.” Depois de atravessar infinitas portas azuis até a escolta, ela passou pela Polícia Federal. Só depois disso foi para o abrigo. Assim que chegou, às 22h, foi guiada até sua cama. O quarto seria compartilhado com outra mulher, que já dormia quando Domitila chegou. À primeira vista, trocar grades por portas feitas de madeira é como “sair de um ovo”, mas continua difícil se acostumar com outras pessoas. Kathy, a angolana que dorme na cama ao lado têm duas filhas, 48 Nosotras domitila uma de sete anos e a outra de dois meses. Gritam, choram, falam muito alto. E falam em inglês. A saída foi se juntar às outras bolivianas que vivem no mesmo abrigo. É bom se sentir um pouco mais em casa. As mesmas amigas que fez na Casa de Acolhida a acompanhavam na visita ao ITTC. Quando Jeremy chorava, elas, que eram três bolivianas e uma equatoriana, brincavam com o bebê e o acalmavam. Enquanto isso, Domitila finalmente me contaria sua história. Entre fronteiras Quando conheci Domitila, seu filho Jeremy havia acabado de tomar duas vacinas. As pernas, inchadas entre as dobrinhas de bebê recém nascido, não se ajeitavam no colo da mãe e ele desabava a chorar. Chorou tanto que não consegui conversar com a mãe naquele dia. “Na próxima semana eu volto…” Nem precisei voltar. Lá estavam mãe e filho diante dos meus olhos incrédulos. Destino certeiro que a trouxe até mim. Dessa vez Jeremy chorava, mas era só fome. Domitila virou o filho, levantou a blu- 49 Nosotras sa distorcendo o rosto perfeito da cantora pop e aproximou Jeremy do seio para que ele mamasse. Assim começou a história. Há alguns anos, Domitila ia para a escola todos os dias. Não para estudar, isso ela havia deixado de fazer há muito tempo, no ensino fundamental. Mas todos os dias ela acordava, vestia seu uniforme e limpava os banheiros de um pequeno colégio no Chile. A vida que tinha lá era difícil. As crianças a chamavam de “índia”, não gostavam da ideia de uma boliviana trabalhando no país delas. Era assim também com outras duas bolivianas que dividiam casa com Domitila. A casa era simples, porém cara, como tudo no Chile. A ideia de ir para lá era ganhar dinheiro e ajudar a mãe e o marido, que ficaram em Cochabamba cuidando dos seus três meninos, mas Domitila logo percebeu que não conseguiria juntar muito dinheiro. As dívidas continuavam acumulando zeros no fim do mês. A gota d’água caiu como um balde cheio de gelo na 50 Nosotras domitila nuca de Domitila ao saber que a mãe estava doente. De volta à Bolívia a vida ficou ainda mais difícil com os filhos para criar e a mãe para cuidar. O trabalho que arranjou como ajudante de cozinha pagava ainda pior que o de faxineira. Sem saber o que fazer com as insistentes ligações do banco, Domitila viu numa prima, de quem era muito próxima, uma chance de quitar as dívidas. Ela e Carmen haviam crescido juntas e continuaram próximas mesmo nesse ano que Domitila morou fora. Apesar da proximidade, ela pouco falava sobre como ganhava dinheiro, até o dia onze de novembro de dois mil e quatorze. Decidiram que Domitila e a tia, mãe de Carmen, partiriam às 4h da manhã num ônibus em direção ao Brasil. Levavam cocaína em suas bagagens, mas naquele ponto ainda não sabiam qual era droga, nem quiseram abrir as malas. Tudo o que sabiam era que chegando aqui entregariam as malas a alguém, que as recepcionaria, e enfim receberiam o dinheiro. Ao perceber que a fronteira se aproximava, Domitila não quis mais. Colocou a mão em sua barriga e 51 Nosotras pensou na família que estava ficando maior. Grávida de cinco meses, os filhos eram o motivo pelo qual precisava fazer aquilo, mas naquele momento também eram o motivo pelo qual não queria continuar. Enquanto a tia dizia, “aguenta” e que tudo daria certo, o ônibus fez uma parada fora do cronograma na estrada que passa por Presidente Prudente. Tia e sobrinha estranharam mas tão rápido quanto disse “vai dar tudo certo”, deu tudo errado. Dois policiais subiram no ônibus com armas na mão, encarando todos e todas em seus olhos assustados. Se aproximaram apressados, pisando duro, pararam na frente de Domitila e gritaram: “Cadê a outra?” Não tinha outra, não tinha mais ninguém com elas. Nesse momento a consciência que de estavam realmente sozinhas pesou toneladas a mais que o único quilo de cocaína em sua bolsa. Mesmo insistindo que havia mais alguém com elas, os policiais levaram apenas Domitila e a tia para a delegacia. Elas não puderam conversar enquanto 52 Nosotras domitila estavam lá, muito menos se despedir. Quando a colocaram sozinha na escolta para a Penitenciária Feminina de Tupi Paulista sabia que nunca mais veria Carmen. A partir daquela hora seria só ela e o filho. Dentro do ovo Chegando em Tupi, Domitila começou a passar mal com frequência. Os enjôos matinais, que já estava acostumada a ter, pioraram, a comida era ruim e a solidão apertava os nós dentro da garganta. Não adiantava pedir ajuda, ninguém lá falava espanhol. Muito menos se esforçavam no portunhol. Das mil e oitenta mulheres presas em Tupi, apenas cinco eram bolivianas. Quando Domitila conseguia alguma atenção das agentes, engolia o choro e pedia atendimento médico. As funcionárias, no entanto, pensavam que suas dores eram de droga engolida. Domitila dizia que estava “embarazada”, mas ninguém sabia o que isso significava. A droga que ela engoliu? Quis traficar, agora aguenta. Não cessando as dores, finalmente a levaram para fazer exames. A médica dizia “você está grávida” e Domitila respondia “No, yo estoy embarazada”. 53 Nosotras Demorou até que as duas entendessem que falavam a mesma coisa. “Você está grávida” “No, yo estoy embarazada” Depois de meses presa, cada vez mais triste, Domitila conseguiu ligar para o marido em Cochabamba. Ouvir sua voz deveria ter sido um alívio no meio daquele caos, mas, na verdade, as coisas só pioraram. Desde que ela fora presa, ele estava desempregado e não ajudava mais em casa. A mãe tinha piorado e já não podia mais cuidar dos filhos e por isso os tinha mandado para um abrigo. Ela e o marido nunca mais se falaram depois daquela ligação. Quatro meses passaram arrastando as horas. Num dos dias, eram todos iguais, Domitila acordou às 6h da manhã com dores de contração. Chamou uma agente e as duas foram escoltadas para o hospital. Chegando lá, foram para um quarto onde uma mulher, também vinda de Tupi, tinha acabado de ter seu filho. Domitila 54 Nosotras domitila pensou que logo seria ela ali. Chegar ali, no entanto, foi mais difícil do que ela poderia imaginar. 7:00 Eram 7h da manhã. Domitila e a gente esperavam o médico chegar para fazer o parto. Enquanto isso as contrações aumentavam. 7:30 Chegaram mais três guardas no quarto. Todos estavam armados, para o caso de Domitila tentar fugir enquanto o bebê não nascesse. Vigiavam cada respiração mais forte, cada espasmo de dor, cada gota de suor que caía de sua testa. Entre uma contração e outra expressam seu apoio à Domitila: Você não vale nada/Você achou que seria fácil?/Agora tem que aguentar/Você está em outro país/Ninguém mandou vir pra cá. 7:45 Uma enfermeira finalmente entrou no quarto. 55 Nosotras Abriu espaço entre os guardas e parou na frente de Domitila. Mediu sua temperatura com a mão, agachou para ficar da altura da cadeira e perguntou onde estava o dinheiro da droga. A dor era tanta que Domitila nem conseguiu responder, mas nem que estivesse bem saberia o que dizer. A enfermeira continuou: “Você vai ter que pagar essa cirurgia. Cadê o dinheiro que você ganhou? Sem resposta, levantou, virou as costas e foi embora dizendo “Estrangeira só vem dar trabalho”. 8:00 Um médico entrou no quarto onde estava Domitila, que começou a sangrar na cadeira em que estava sentada havia uma hora. Estavam presentes a agente carcerária, os três guardas e a brasileira que tinha acabado de dar à luz e dormia, alheia ao show de horrores que acontecia ali. Esse novo médico, na verdade, tinha entrado no quarto errado. Logo saiu, mas não pode evitar o comentário: “Essas presas têm que sofrer mesmo”. 56 Nosotras domitila 8:30 Domitila ainda sangrava. Olhava ao redor e sentia medo do ódio que via nos olhares das outras pessoas. Lentamente focava na tranquilidade da nova mãe ali deitada, provavelmente sonhando com sua criança. Depois passava a olhar para a agente, que fitava o chão com tédio. Encarava os três guardas, todos com a mesma cara, a mesma pose. E então começava de novo: a mãe, a agente, os guardas. A mãe, a agente, os guardas. A mãe, a agente, os guardas. A mãe. A agente. Os guardas. A mãe... 9:00 “Por que ninguém me ligou antes? Senhora, desde que hora você está sangrando?” “Por que não me ligaram antes?” Novamente, a dor era tanta que Domitila não conseguia responder. Agora ela estava numa mesa de cirurgia e não via mais a mãe, a agente e nenhum dos guardas. Deitada, via apenas um médico preparando a anestesia. 57 Nosotras “De onde você é?” Mais baixo que o normal, Domitila respondeu: “Cochabamba” “Eu já estive lá. É muito bonito!” Por conta das complicações que teve antes do parto, Domitila ficou no hospital por três dias, no mesmo quarto onde ficou esperando ser atendida. Viu a mãe, acordada finalmente, com seu bebê indo embora. Durante as setenta e duas horas, a mesma guarda ficou no sofá ao lado da cama, apenas olhando, ora para Domitila, ora para a porta, provavelmente desejando estar em qualquer outro lugar. Domitila não é muito de conversar, mas também não foi esforço algum para que a agente não trocasse uma palavra com ela. O silêncio durou até ela voltar para Tupi. Ainda sentia muita dor, mas o único remédio que davam era paracetamol. “Aguenta, vai passar”, diziam. “Tá pensando que tá na Bolívia?” Apesar disso, Domitila não estava mais sozinha. 58 Nosotras domitila Jeremy era um bom menino e uma pontinha de felicidade dentro da prisão. O problema de Tupi era que o bebê tinha que ficar na cela junto dela e das outras mulheres, que faziam muito barulho. A comida também não era lá essas coisas, muitas vezes ela passava o dia comendo pão e bebendo café. Um mês e duas semanas depois que Jeremy nasceu, ela decidiu conversar com a assistente social da prisão para pedir transferência. Ficou sabendo que existia uma penitenciária em São Paulo com um pavilhão só para mães. E que havia outras bolivianas lá. A funcionária disse que faria o pedido, mas que seria muito difícil conseguir escolta para ela e Jeremy. Depois de tanto tempo, difícil era um conceito relativo no vocabulário de Domitila. Mais cinco meses e duas semanas de espera até chegar a resposta. Sem ter ninguém para se despedir, ela e Jeremy pegaram o bonde para a capital sem pensar duas vezes. Chegando na Penitenciária Feminina da Capital, a vida mudou um pouco. Domitila continuava aca- 59 Nosotras nhada, mas aos poucos começou a conversar com as outras mães. No pavilhão materno, pelo menos, as mulheres se ajudavam e não faziam tanto barulho. Ainda na primeira semana, logo quando mãe e bebê começavam a se acostumar com os novos ares, Domitila foi chamada para conversar com a diretora. Como faziam as crianças da escola que trabalhava no Chile, em tempos tão distantes, ela foi até a sala da administração, do outro lado do presídio, o medo aumentando a cada passo. Abriu a porta e viu a diretora sentada atrás de sua mesa. Notou que havia uma mulher sentada na frente dela, mas como estava de costas não conseguia dizer quem era. Alguns segundos depois, notou algo de familiar nela. Talvez no jeito de sentar, nos cabelos negros ou na postura introvertida. Carmen se virou e as duas começaram a chorar. Pensaram que nunca mais se veriam de novo. Domitila descobriu que a tia tinha ido para a PFC desde o começo, quando foram presas em Presidente Prudente. O reencontro, entretanto, não se prolongou. Durou apenas aqueles cinco minutos na sala 60 Nosotras domitila da diretora. Isso porque Domitila deveria permanecer com Jeremy na ala das mães, sem poder sair de lá, enquanto a tia ficava nos pavilhões das estrangeiras, seguindo a rotina à qual se acostumara desde que chegou, meses antes da sobrinha. A mãe reconhece que a Penitenciária da capital foi melhor para o filho. Agora que está maiorzinho, tinha outras coisas para comer que Tupi não fornecia, como papinha, leite em pó, bolacha. Mesmo não sendo o indicado para bebês da idade dele, já é melhor que nada. Ainda tinha fralda, sabonete, lencinho… Melhor que aquilo só saindo de lá. “A cadeia não tem futuro.” Tia e sobrinha se cruzaram pela segunda e última vez na fatídica sexta-feira cinza, quando Domitila saía às pressas com Jeremy no colo, meio sem entender o que estava acontecendo. Apenas se despediram, dessa vez sem choro. Domitila abraçou a tia e disse baixinho: “Aguenta, vai dar tudo certo”. E torceu para que dessa vez desse mesmo. 61 Nosotras portas cor de céu Ao passo que saio da prisão em direção à rua, deixo a distância fazer com que os muros cor de nuvem e as portas cor de céu pareçam menores. A ilusão do ínfimo me faz perceber porque as burocracias e as barreiras me incomodam tanto. O abrir e fechar de portas, tão pesadas e tão grandes, nunca significa entrar ou sair de lugar algum. Se flutua da prisão para a prisão, vagando num labirinto enorme, porém vazio de significado. 63 Nosotras Não há luzes capazes de guiar as habitantes daquele lugar para casa, como dizia a música que me recepcionava na entrada. Aquelas mulheres também não precisam ser consertadas. Já do lado de fora, onde o céu professa a noite, ouvir o som duro da porta de ferro batendo atrás de mim me impede de continuar andando por um segundo. Com a sutileza de um alfinete que perfura lentamente o dedo, o ruído grosseiro martela em minha cabeça uma espécie de auto reconhecimento de privilégios. Parar por um segundo para olhar da calçada a nuvem emoldurada de laranja é um deles. Contemplar o céu, flanar, e refletir o funcionamento das coisas também. Além disso, existe um grande perigo em pensar na outra pessoa, quando ela própria não se questiona. O desejo de transformação social é um fluxo naturalmente intenso, mas é preciso colocar-se no lugar. O exercício do reconhecimento pessoal se estende no campo profissional. Até porque o jornalismo ensina que é impossível dissociar os dois. 64 Nosotras Como mulher, diariamente sujeita a tantas violências, carregando no peito incontáveis lutas e disputas de espaço históricas, é fácil se identificar com essas histórias de abusos e silêncios, imposições e acatamentos. Porém, como mulher branca que frequenta espaços de elite, como a universidade, é difícil dizer que as entendo. Seria desonesto qualquer princípio de julgamento das escolhas de alguém de uma realidade tão distante da minha. No âmbito da profissão, é preciso admitir as limitações de jornalista. Talvez por uma questão de autoafirmação, muitas pessoas acreditam no poder de transformação direta do jornalismo. Precisamos reconhecer: este livro dificilmente mudará a realidade que tenta transpor em palavras. No entanto, não deixa de ser um mecanismo de registro para que outras pessoas a conheçam; e de denúncia a quem pode, de fato, mudar o curso dessas e de outras trajetórias. Outras e outros jornalistas também já escreveram sobre as violências do cárcere. Nessa tentativa, denunciam a falta de atendimento médico, a negligência no tratamento das mães, a ausência do Estado. 65 Nosotras Mas chegam com perguntas que lhes deem as manchetes: “Vocês usam mesmo miolo de pão no lugar de absorventes?”, “Você deu à luz sozinha na cela de castigo?” Outros relatos não têm vez nas reportagens, porque os formatos da grande mídia não permitem. O problema é que esse recorte apelativo não chega nem perto da realidade, tão ruim quanto as histórias de capa. As violações dentro do sistema prisional se dão justamente no que é considerado normal. Principalmente quando se fala sobre mulheres, ainda por cima migrantes. Não receber medicação adequada. Esperar horas até poder parir, ainda que se esteja dentro de um hospital. Ser vigiada enquanto dá à luz. Estar presa e estar sozinha. Ser julgada pela lei e pelas pessoas. Ser punida por ser uma mãe ruim, por não fazer escolhas que um juiz de classe média branco faria. Ser má porque teve filhos e não consegue criá-los, ser pior porque arrumou um meio considerado ilegal para criá-los. É preciso fôlego para encarar isso tudo. É preciso respirar fundo e continuar caminhando prisão 66 Nosotras afora. A importância de se colocar no lugar, como jornalista e como mulher, está no próximo passo, no dia seguinte, ao escolher que tipo de profissional se quer ser. Não escolhi a história pela manchete. Texto pelo texto, visibilidade pela visibilidade. Escrever com esse âmago é ultrapassar portas azuis de ferro que levam ao mesmo lugar, nunca para fora. Lacan dizia que “o que se conta não é apenas a finalidade da fala, mas o conteúdo do que se fala”. Por isso nós, jornalistas, nos munimos de cadernos, canetas, câmeras e gravadores para garantir a total credibilidade dos fatos, a objetividade mais possível, a imparcialidade mais tangível. No entanto, quando entrei na penitenciária, fui obrigada a deixar para trás os instrumentos que aprendemos a usar para registrar entrevistas e tive meus bloquinhos revistados, assim como meu próprio corpo. Nesse momento entendi que cada lacuna gerada pelo distanciamento seria um silêncio. E calar é consentir. O que escrever? Quando seria a hora de assumir 67 Nosotras meu papel de jornalista? Onde escrever e para quem falar? Como traduzir histórias de vida em palavras no papel? Por que fingir ser objetiva quando cada palavra ouvida e cada movimento observado carregava uma subjetividade assustadora? Quando respondi a essas perguntas, assumi dupla função: a de mediadora de histórias e delatora de violências. Optei pelas formas não-tradicionais e descobri algumas coisas ao longo do caminho. Para contar as três histórias contidas aqui eu precisaria decorá-las, já que não pude registrá-las por completo. Decorar, no entanto, não foi entendido como uma movimentação mecânica, mas como sua origem define: o ato de colocar no coração. Nosotras são relatos de nós: do coração delas para o meu coração. Do coração deste livro para o coração de quem o lê. As histórias de Angelica, Aurora e Domitila continuarão, seja no Brasil, na Bolívia ou em qualquer outro lugar que a vida as levar. Essas mulheres que conheci nunca mais serão as mesmas depois da prisão. Enquanto eu, nunca mais serei a mesma depois 68 Nosotras delas. De você, que chegou até aqui, nesta linha, espero apenas que tenha decorado alguma coisa disso tudo. 69 Hoje, o Brasil é o terceiro país com maior população em situação de prisão do mundo. A Penitenciária Feminina da Capital detém seiscentas e vinte e oito mulheres, concentrando a maior parte das estrangeiras em situação de prisão no território brasileiro. Nessa conta, quarenta e seis são bolivianas. Dentre elas, quarenta e quatro estão presas por tráfico de drogas. Todas são identificadas pelos seus números de matrícula, suas sentenças e seus crimes, mas sobretudo são mulheres. Antes de virarem estatística eram, e continuam sendo mães, filhas, esposas, vizinhas, amigas. Existem razões pelas quais essas mulheres assumiram riscos e se deslocaram da Bolívia até o Brasil. Foi para descobrir esses motivos que me desloquei até a Penitenciária Feminina da Capital.