originar narcissister para (i)legitimar a carne

Transcrição

originar narcissister para (i)legitimar a carne
Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014
ISSN 2316-8102
ORIGINAR NARCISSISTER PARA
(I)LEGITIMAR A CARNE
Tales Frey
Mannequin de Narcissister
É claro que eu não uso máscara durante todos os dias do curso da
minha vida e isso é uma escolha; pode-se, inclusive, descobrir o meu
nome verdadeiro. No entanto, eu não sou a Narcissister sem a
máscara e não havendo alguém para usar a máscara, a Narcissister
1
não existe.
Compreendemos que o ritual e a performance conduzem as pessoas para
uma “segunda realidade”2, separada da vida comum, sendo assim, com sua
máscara, a pessoa que se veste de Narcissister vive essa “segunda realidade” e,
1
NARCISSISTER. Conversa obtida através de troca de e-mail no dia 03 de março de 2014.
SCHECHNER, Richard. apud. LIGIÉRO, Zeca (org). Performance e Antropologia de Richard Schechner, Rio de
Janeiro: Mauad, 2012, p. 50.
2
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1
então, ela é a própria Narcissister e não uma pessoa caracterizada de uma
personagem chamada Narcissister. Essa é a característica performática do seu
trabalho, que, de forma alguma, pode ser comparado com a lógica teatral,
porque, inclusive, quem assina a obra é a Narcissister e não uma outra pessoa
que é autora de uma personagem. Ela é (e não finge ser) a personagem.
A única identidade que conheço é a encoberta pelo rosto artificial: a
Narcissister. Sobre a que existia antes do advento da faceta que mistura boneca
e humano, que dá lugar à existência de um novo sujeito, não tenho nenhum
conhecimento, embora Narcissister, num jogo duplo (esquizofrênico),
misturando as duas identidades, tenha me explicado (em primeira pessoa) a sua
existência, mas sem se apresentar com nome ou quaisquer indícios que me
levassem a tal descoberta.
É, portanto, num limbo de performer/personagem que Narcissister
assenta a sua produção para fazer aflorar os discursos a partir da sua
materialidade carnal (i)legítima. “Quanto mais as formas são irreais, menos
claramente elas se subordinam à verdade animal, à verdade fisiológica do corpo
humano”3. A partir dessa afirmação de George Bataille, podemos pensar acerca
da necessidade humana de negar a sua natural condição de ter uma matéria
pouco
durável,
transitória,
deteriorável.
Nas
humoradas
concepções
performáticas de Narcissister – artista-personagem norte-americana que produz
vídeos, fotografias, espetáculos ao vivo, entre outras expressões artísticas –
vemos principalmente elementos da colagem (bi e tridimensional) em trabalhos
que reúnem diretamente um magistral teor que aborda essa temática
juntamente com as neuroses contemporâneas em um corpo construído,
composto por bonecos/manequins e corpo humano, mesclado de plástico e
outras parafernálias além da sua própria pele e carne, erigindo, com isso, uma
caricatura que tão bem representa a inerente realidade que nos cerca, baseada
em corpos supostamente “perfeitos” comumente submetidos às rigorosas
dietas, aos intensos treinamentos de musculação, às invasivas cirurgias
plásticas, entre outras formas de obter uma autoimagem que possa satisfazer
3
BATAILLE, George. O Erotismo, Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 94.
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2
uma atroz exigência do mundo contemporâneo em prol de um perfil corpóreo
inumano que nos represente como almejamos nos ver em nossos espelhos.
Narcissister, Narcissister is you, 2010
Como uma espécie de celebridade e sex symbol, Narcissister cria paródias
corporais a partir de catálogos e editoriais de moda, de revistas eróticas e de
imagens que exercem fascínio sobre os sujeitos atuais, que buscam em todos
esses corpos fantasmagóricos os referenciais apropriados para a estruturação
dos seus. Essa ideia pode ser absolutamente confirmada no vídeo
Winter/Spring Collection (2013), feito em parceria com A.L. Steiner4.
Em quase toda (ou absolutamente em toda) sua trajetória, Narcissister
constrói um conjunto de corpos que, naturalmente, devolve nosso olhar, por
exemplo, para uma fotografia de uma colagem escultural de Man Ray intitulada
Cabide (1920/1921) ou para as composições Untitled #250 e Untitled #255
(ambas de 1992) de Cindy Sherman. Em suas composições, a artista traz o Mito
do Narciso para a contemporaneidade, contextualizando o atual universo
feminino em sua concretização de um corpo irreal, mas que bem alude às
mulheres que se reconstroem tal e qual às imagens que elas veem tratadas em
Photoshop antes de estamparem revistas e catálogos de moda. Essas mulheres
reais adquirem, por vezes, aspectos tão falsos, tão fora da realidade, que elas,
muitas vezes, parecem ser de cera ou de plástico como parte do corpo de
Narcissister.
4
Vídeo disponível no site da Revista Artforum em: http://artforum.com/video/id=41112&mode=large&page_id=0
(Consulta realizada em: 11/02/2014).
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3
Frames de Winter/Spring Collection, 2013. Vídeo de Narcissister em parceria com A.L.
Steiner
Pessoas sem braço, sem umbigo, com duas axilas, magras de forma tão
absurda que só mortas (ou moribundas) atingiriam tanta discrepância em
relação a um plano real são exemplos de corpos vistos em muitas campanhas
publicitárias que nos circundam. Profissionais que usam o recurso de certos
programas de edição de imagem (como o Photoshop) deixam, por vezes, vazar
certas figuras que nos alertam não só para a mentira evidente, mas também
para a “verdade” que pode e deve ser sempre alvo de desconfiança. Nos ilusórios
corpos “perfeitos” podem existir imperfeições mundanas por detrás das
descomunais dissimulações e essas “deficiências” é que são perfeitas de
verdade e que precisam ser aceitas como são, porque são coerentes, reais,
humanas. Talvez uma das críticas que Narcissister esteja fazendo nas suas
irônicas e bem-humoradas composições seja justamente essa com relação ao
que absorvemos da mídia ao considerarmos como lógicos os ilógicos ideias de
beleza presentes na mídia.
Sob seu corpo ornado/reconstruído pelo auxílio de órgãos artificiais,
percebemos o que o antropólogo francês David Le Breton denominou como
“extremo contemporâneo”, expressão que aborda o corpo cada vez mais
próximo de ser um corpo reconstruído (corpo-máquina muitas vezes) contra um
corpo pleno. Vemos, no sujeito que pratica tal tipo de transformação, a busca
pelo total controle de si e do seu próprio corpo e, ao mesmo tempo, um
narcisismo exacerbado próximo de uma vontade de potência niilista.
É válido lembrar que a relação entre o humano e a máquina ocupou lugar
de relevo nas análises da Bauhaus sobre a arte e a tecnologia, assim como nas
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4
abordagens dos performers ligados ao construtivismo russo ou ao futurismo
italiano. Os figurinos da oficina de teatro da Bauhaus eram desenhados de modo
que a figura humana se metamorfoseasse num objeto mecânico, sendo esta
uma redefinição da silhueta humana bastante trabalhada, inclusive, pelo
performer Stelarc, o qual, dentro das suas propostas performáticas realizadas
desde as últimas décadas do século XX até hoje, “retira o potencial do humano e
apresenta o corpo como obsoleto, como uma estrutura ultrapassada”5. Stelarc
procura expandir, por meio da tecnologia e da robótica, “as capacidades
sensoriais, operacionais, funcionais, perceptivas e motoras do ser humano”6. A
respeito desse corpo pertencente ao que Stelarc chama de “pós-evolucionismo”,
o corpo ciborgue, compreendido em uma dita pós-humanidade, Le Breton
afirma:
O corpo é obsoleto, despojado de valor, tornado insípido e suscetível
de todos os emparelhamentos tecnológicos ou de todas as
experiências extremas para ampliar suas possibilidades, suprimi-lo ou
7
converte-lo em simples suporte.
“A era darwiniana está se extinguindo”8 e Narcissister, performer que
surgiu já quase na segunda década do século XXI, mostra-se completamente
consciente dessa afirmativa, porque, sem dúvidas, em suas concepções, vemos
o quanto “o corpo antigo tornou-se anacrônico”9.
Ultra carregada de erotismo, Narcissister evidencia que o corpo em si já
representa o pecado original, “a mácula de uma humanidade da qual alguns
lamentam que ela não seja de imediato de proveniência tecnológica. O corpo é
um membro supranumerário, seria necessário suprimi-lo”10. Narcissister, como
uma metáfora estereotipada da atual sociedade escrava da aparência, revela a
enorme disposição para melhorar a sua própria matéria-prima, sendo um corpo
tomado como um suporte a ser aperfeiçoado, tal e qual os ornamentos que lhe
atribuem a aparência desejada.
5
PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo Como Suporte da Arte, São Paulo: Senac, 2005, p. 95.
Ibidem, p. 96.
7
LE BRETON. David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade, Campinas: Papirus, 2007, p. 52.
8
Ibidem.
9
Ibidem.
10
Ibidem, p. 15.
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5
Narcissister, Self-Gratifier. Fotografia de Kristy Leibowitz
Em Self-Gratifier, Narcissister pedala uma bicicleta ergométrica
totalmente adaptada para que possamos ver um objeto a lhe proporcionar um
ardente prazer, infligindo-lhe inclusive a dor associada ao deleite em chicotadas
constantes vindas de uma roda situada atrás do seu corpo e que é acionada
pelos pedais, ou seja, de acordo com a sua própria vontade. Trajada com roupas
e acessórios usados em academias de ginástica, ela desvirtua o exercício feito
em prol da saúde e do bem-estar para o seu bel-prazer, subvertendo a bicicleta
ergométrica para lhe conferir um novo significado que retoma a indústria do
sexo e gozo sem a necessidade de um parceiro. Com esse trabalho, Narcissister
exibe a mulher autônoma e capaz de satisfazer seu próprio desejo, destronando
uma lógica falocêntrica, pois apesar de usar um objeto que lhe propicia o deleite,
é sem um parceiro do sexo masculino que ela se realiza.
Há um deboche com relação à conduta sexista em grande parte das suas
produções, quando ela, ao mesmo tempo que se coloca como uma espécie de
mulher-objeto, escrava do artifício e em busca da beleza, autossatisfação e
atratividade na caça pelo olhar de desejo de quem a observa, zomba desse
estereótipo que tenta a todo e qualquer custo agradar o anseio do outro.
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Narcissister, Man/Woman. Fotografia de Tony Stamolis
Ao som de "Photograph" da banda de rock Def Leppard, no vídeo
Man/Woman, a artista, apoiada no puro sarcasmo no que diz respeito à conduta
heteronormativa, apresenta-se travestida como um tipo de homem ogro a
masturbar-se enquanto contempla um corpo feminino numa revista erótica. Na
revista, há um pôster de Narcissister (mulher) estampada, provocante em seu
biquíni cor-de-rosa, luvas de renda branca, cabelos loiros encaracolados e unhas
postiças. Gradativamente, de homem, ela vai assumindo a forma feminina tal e
qual constava na revista, como se a imaginação dele pudesse tornar real a
imagem antes bidimensional. Por um lado, vemos uma transa entre os dois
personagens, na qual Narcissister é quem termina por comandar e abusar do
sexo oposto, mas, por outro, vemos o processo de transformação do homem que
assume uma nova identidade sob o gênero feminino, matando, assim, o sexo
masculino que antes ali estava. Por fim, a transa transforma-se em uma
masturbação de Narcissister a contemplar a sua própria imagem estampada no
pôster da revista até que, ao atingir o orgasmo, ela abandona o ambiente
segurando um skate.
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Narcissister, Hot Lunch. Fotografia de Tony Stamolis
Pessoas vestidas com a máscara de Narcissister para o projeto Narcissister is you
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Talvez o alcance do discurso impresso nessas composições visuais dessa
artista esteja muito além da crítica à sociedade patriarcal, pois o que vemos é
uma exposição do completo hedonismo associado ao narcisismo, sendo, então,
algo que transcende um corpo hétero/homossexual. Talvez a artista nem queira,
também, versar sobre a forma como a mulher é ainda submetida à condição de
objeto de consumo ou provar que ela pode se satisfazer sozinha. Talvez, o
sentido esteja para além disso e queira tratar mesmo da maneira egocêntrica
em que todos(as) nós nos encontramos ao buscarmos, de forma exagerada, a
nossa própria satisfação acima de qualquer coisa.
Narcissister, Still Life Collage, 2009
Em residência artística organizada pela Art in General Gallery e pela
HDLU/Croatian Association of Artists in Zagreb, Narcissister elaborou Still Life
Collage (2009), uma série fotográfica de colagens/natureza morta, misturando
objetos icônicos que compõem a sua exterioridade com outros achados no
mercado das pulgas em Zagreb, capital da Croácia. Nessa série, percebo estreita
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relação com uma composição visual intitulada ARTificial (2008), a qual realizei
em parceria com Fernanda Dias de Moraes. Juntos, moldamos uma colagem de
membros recortados de revistas de moda sobre o real rosto infantil feminino,
compondo, dessa forma, uma face artificial que mesclava um rosto
bidimensional adulto de papel sobre a inocente faceta tridimensional de uma
criança. As palavras “Wild” (escrita no indumento) e “ARTificial” (em uma placa)
compõem a dualidade presente na imagem gerada a partir da ação.
Em Still Life Collage (2009), vemos as partes removíveis do corpo de
Narcissister dissolvidas em recortes de revistas, perucas, óculos, laços de fitas
de cetim, laços de acrílico, colares vintage, partes de manequins de loja, cigarros,
telefones antigos e/ou detonados, vasos etc.
Os trabalhos de Narcissister contêm a presença absoluta do humor, o
forte apelo sexual, mas, sobretudo, uma visão crítica (mas não apenas) de como
a sociedade de consumo é caracterizada pelo comportamento narcisista e
hedonista, avaliando de que maneira o consumo é uma forma simplificada de
conquistar a autorrealização. Sua produção funciona como uma alegoria da
nossa atual sociedade, a qual é inspirada pelo prazer e pela conquista da própria
satisfação. Narcissister demonstra como o corpo é um “vetor eficaz” e, nesse
sentido, um suporte concreto e sensível para refletirmos o nosso amor próprio,
pois, com ele, podemos esclarecer diretamente as nossas capacidades e
sentidos. Dentro de uma lógica capitalista, emerge o sujeito interessado em
saciar unicamente o seu próprio prazer através do consumo e, então, o seu
corpo, principal veículo da sua manifestação individual, pode ser moldado
conforme o padrão cultural de beleza ditado na contemporaneidade.
Com Every Woman, Ass Vag, Mannequin, além dos trabalhos já
mencionados, ela cria uma analogia aos corpos obcecados pela magreza, aos
body builders mais radicais, às exageradas recorrências às cirurgias plásticas, às
chamadas “síndromes dismorfofóbicas” (bulimia, anorexia e vigorexia), entre
outros tantos comportamentos hoje tidos como corriqueiros, mas que, outrora,
muitos deles foram tidos como patológicos.
A produção de Narcissister lança, nomeadamente, o questionamento em
detrimento de uma resposta absoluta, fazendo valer a afirmação de Le Breton
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quando diz que “é pelo seu corpo que você é julgado e classificado”11, mas,
especialmente, é o conjunto de palavras do fotógrafo Phillip Toledano que bem
se encaixa nas múltiplas indagações que advêm das suas criações:
Acredito que estamos na vanguarda de um período da evolução
humana induzida. Um ponto de virada na história em que estamos
começando a definir não só o nosso próprio conceito de beleza, mas
da própria fisicalidade. Beleza sempre foi uma moeda, e agora que
finalmente temos os meios tecnológicos para cunhar a nossa, quais
escolhas que fazemos? A beleza é confirmada pela cultura
contemporânea? Pela história? Ou é definida pela mão do cirurgião?
Quando nos refazemos, estamos revelando nosso verdadeiro caráter
12
ou estamos arrancando nossa própria identidade?
Narcissister, Boobs (à esquerda) e Ass Vag (à direita), registro de Tony Stamolis
***
TALES FREY: Qual é a sua principal investigação artística, quando você
opta por criar, com humor e erotismo, um novo tipo de beleza sobre o seu corpo?
NARCISSISTER: A investigação vem de muitas fontes. Quando ouço
uma música que me inspira ou que tem uma mensagem que quero subverter.
Quando fico inspirada por uma ideia de fantasia. Quando fico entusiasmada
para desenvolver e moldar uma ideia para um trabalho. Impressionantes
acontecimentos na minha vida pessoal me inspiram ou obrigam-me a fazer um
11
12
Ibidem, p. 31.
TOLEDANO, Phillip. A New Kind of Beauty, Verona: Dewi Lewis Publishing, 2011, s/ página.
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11
determinado trabalho. Inspiração é algo misterioso. As pessoas vão me
perguntar como tive uma ideia e, na maioria das vezes, não posso relacioná-las
com uma fonte. As ideias simplesmente vêm a mim. E eu sou grata por isso!
TALES FREY: Evidentemente, vejo todo o seu trabalho como uma clara
noção que envolve o narcisismo exacerbado do sujeito contemporâneo em uma
grande multidão de objetos de consumo.
NARCISSISTER: Sim, esta é uma interpretação superficialmente clara
do meu trabalho. Há outras camadas pessoais, mais profundas e de mais
significado também.
TALES FREY: Quando e como é que você começou esse projeto como
Narcissister?
NARCISSISTER: Comecei o projeto em 2008. Na época estava
interessada em ir a shows burlescos aqui em Nova York. Percebi que tanto com a
minha dança profissional como com as artes visuais, eu poderia fazer algo
semelhante, mas com mais valor artístico e com maior conteúdo político. Eu
sabia, desde o início, que não gostaria de realizar os trabalhos sendo eu mesma;
queria cobrir o meu rosto e criar um outro.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FREY, Tales. “Originar Narcissister para (I)legitimar a Carne”. eRevista
Performatus, Inhumas, ano 2, n. 9, mar. 2014. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
© 2014 eRevista Performatus e o autor
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