Untitled - Insight Comunicação

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Untitled - Insight Comunicação
OPERA
Álbum de família/1977
Mario Henrique Simonsen
Textos de Mario Henrique Simonsen (1935-1997) cedidos por Iluska Simonsen/
Texts by Mario Henrique Simonsen (1935-1997) conceded by Iluska Simonsen
Concepção do projeto e edição/Project conception and publication
Coriolano Gatto e Luiz Cesar Faro
(Insight Engenharia de Comunicação)
Produção/Production
Vera de Souza
Assessoria/Editorial adviser
Kristina Michahelles
Designer
Paula Barrenne
Tradução/Translation
Hugo Moss
Produção gráfica/Graphic production
Ruy Saraiva
Revisão em português/Portuguese revision
José Neves de Oliveira e Rubens Sylvio Costa
Revisão em inglês/English revision
Marina Herrmann
Estagiária/Intern
Paola Goulart
Foto de capa/Cover photograph
Carlos Namba/Abril Imagens/1979
Os libretos no idioma original estão nos seguintes sites/
The libretti in their original language can be found at these sites:
http://www.operamanager.com
http://www.kareol.es
http://www.opera-guide.ch
Em português: http://www.saocarlos.pt
Este projeto tem o patrocínio da VALE S.A.
Novembro de 2011
OPERA
APRESENTAÇÃO
C
ada um dos 126 mil profissionais que fazem
parte da Vale em todo o mundo trabalha diariamente com uma mesma missão: transfor-
mar recursos minerais em riqueza e desenvolvimento
sustentável, garantindo novas oportunidades de desenvolvimento e promovendo a construção de um legado
econômico, social e ambiental para as futuras gerações.
Como parte desse legado, a Vale valoriza o patrimônio artístico e histórico e as manifestações culturais das
comunidades das quais faz parte. Por essa razão, apoia
projetos de preservação e criação de bens culturais.
Como exemplos do nosso comprometimento com
a cultura, orgulhamo-nos de ser mantenedores da Orquestra Sinfônica Brasileira e de apoiar projetos como
o Vale Música, que transforma a vida de crianças e
adolescentes no Pará e no Espírito Santo. Dentro desse
mesmo espírito, estamos também muito orgulhosos de
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OPERA
patrocinar o projeto Óperas por Simonsen, que registra inéditas introduções criadas por Mario Henrique
Simonsen para as três óperas mais emblemáticas da
História: Don Giovanni, de Mozart; Tristão e Isolda,
de Wagner; e Otello, de Verdi.
Com conteúdo inédito e teor didático, esta envolvente obra é um achado histórico que enriquece a sensibilidade dos ouvintes. Esperamos que seja também
uma ferramenta para a divulgação da música clássica
junto a públicos que ainda a desconhecem, proporcionando o desenvolvimento de novas plateias que se enriquecerão com o poder transformador da música.
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OPERA
A EVOLUÇÃO DA ESTÉTICA LÍRICA
Ó
pera é teatro cantado, definição que tanto
se aplica à mais antiga obra conhecida no
gênero, Eurídice, de Peri, estreada em 1600,
quanto às óperas contemporâneas de Philip Glass. A objeção natural dos inimigos da ópera é que se trata de uma
construção artificial, pois no mundo real as pessoas não
cantam, ou pelo menos não cantam todo o tempo. Sucede que pelo mesmo argumento poder-se-ia descartar a
poesia, pois no mundo real as pessoas não costumam falar de acordo com as regras de métrica e rima; qualquer
construção literária que vá além de um relato jornalístico; ou a pintura que transcende o campo da fotografia.
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De fato, o objetivo da Arte não é retratar o mundo real, função que cabe às ciências positivas. Mas um
mundo ideal, no qual nos sentíssemos mais felizes.
Curiosamente, a interação entre arte e ciência é muito mais profunda do que parece à primeira vista. Os
fundamentos científicos das convenções artísticas são
bem conhecidos, desde as escalas musicais descobertas
pela escola de Pitágoras* até as regras de perspectiva
descobertas durante a Renascença, sobretudo por Leonardo da Vinci, passando pelas estruturas matemáticas
da métrica e da rima. Menos conhecida é a recíproca,
a influência da arte sobre a ciência positiva. Na realidade essa influência é descomunal, retratando-se nas
hipóteses que lastreiam o conhecimento científico. Essas hipóteses devem ser compatíveis com a evidência
* Nota do Editor: Pitágoras (VI a.C.) foi o primeiro a estabelecer uma
escala de sons adequados ao uso musical, formando uma série de 12 notas
baseada em intervalos de quintas. Essa escala com intervalos acusticamente perfeitos vigorou até o fim da Idade Média, obedecendo a regras rígidas
de composição e execução. Só depois do Renascimento os compositores
começaram a tentar ultrapassar os limites musicais impostos até aquela
época. Em 1691, Andreas Werckmeister propôs os ajustes matemáticos que
resultaram na chamada escala temperada, aperfeiçoada por Johann Sebastian Bach (O Cravo Bem-Temperado, contendo 24 prelúdios e fugas que
cobrem as 24 tonalidades maiores e menores).
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empírica, mas não é o bastante para construí-las. A
construção requer alguma inspiração adicional, usualmente baseada na percepção de que deve haver algo de
ideal no mundo real. Foi nesse veio que Maxwell, ao
condensar matematicamente as experiências de Faraday, descobriu as ondas eletromagnéticas. Na mesma
linha, Einstein produziu a maior revolução científica
do século XX com a Teoria da Relatividade.
Em suma, não apenas a arte imita a vida. A vida
também imita a arte.
Voltando à ópera, a validade estética do gênero depende de que a fusão da palavra à música comunique
algo mais do que a palavra isolada ou a música isolada
conseguem comunicar. Esse é o conceito wagneriano
do Gesamtkunstwerk, a obra de arte integral ou conjunta, o qual implica: a) um libreto de primeira categoria, para trazer a palavra à cena; b) uma música
perfeitamente adequada ao libreto.
O conceito do Gesamtkunstwerk impede que muitas óperas sejam erguidas à categoria de obras-primas,
seja por deficiências do libreto, seja pelas da música. Tomemos, por exemplo, L’Italiana in Algeri, de Rossini.
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A música é deliciosa, mas serve a um texto sem pé nem
cabeça. Trata-se, por isso, de uma obra-prima menor,
em que a música faz o possível e o impossível para
valorizar um libreto que pouco vale. Musicalmente,
o Barbeiro de Sevilha nada tem de melhor do que a
Italiana. Só que, agora, o texto, baseado na comédia
de Beaumarchais, é uma comédia sofisticada, o que
transforma o Barbeiro numa obra-prima. Já no Mac-
beth de Giuseppe Verdi o problema é o inverso: apesar
de algumas passagens admiráveis (como o dueto Fatal
mia donna e a cena do sonambulismo), Verdi ainda
não evoluíra o suficiente para traduzir em música uma
grande tragédia shakespeariana. Os méritos da ópera
são notáveis, sobretudo quando comparados às obras
anteriores do compositor. Trata-se, porém, de uma
obra-prima frustrada.
Do ponto de vista formal, a estética operística enfrentou duas grandes revoluções, a de Christoph Willibald Gluck e a de Richard Wagner. A reforma de Gluck,
em Orfeu e Eurídice (1762), tratou de sepultar a velha
ópera séria com intermináveis árias em que os castrati
exibiam seu virtuosismo vocal, e nas quais o grosso da
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ação se passava em recitativos sem maior expressividade musical. Era a ópera a serviço dos cantores, e não da
fusão da palavra à música como expressão dramática,
e que poderia ser substituída com vantagens por um
concerto de canto. Gluck, no entanto, continuou aceitando a divisão da ópera em números, recitativos, árias,
duetos, trios, finais etc. Wagner, inicialmente no Navio
Fantasma (1841), e definitivamente a partir de Ouro do
Reno (1854), simplesmente resolveu acabar com a segmentação de cada ato em números, em nome de uma
continuidade dramática que exigia a substituição da
tradicional melodia quadrada pela melodia contínua.
E propôs a estruturação musical do drama lírico a partir de uma trama polifônica de leitmotivs, motivos-guia
que evocavam sentimentos, personagens ou situações (a
técnica consiste no uso de um ou mais temas associados
a um determinado personagem ou a uma situação e que
se repetem em várias passagens da ópera).
O que qualifica Don Giovanni, Tristão e Isolda e
Otello como as três obras-primas supremas do teatro
lírico é que cada qual realizou o ideal do Gesamtkuns-
twerk por seus próprios meios.
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Comecemos por Don Giovanni, que muitos comentaristas consideram a ópera das óperas. Wolfgang
Amadeus Mozart aparentemente era prisioneiro das
convenções estéticas do século XVIII, as estruturas melódicas e harmônicas diatônicas (que, na tonalidade de
Dó maior, equivalem a só usar as notas brancas do piano) e a divisão da ópera em números, para não cansar
o fôlego do espectador. Só que o instinto de Mozart o
ensinava a obedecer a essas convenções no atacado, mas
delas se livrando sempre que necessário para ressaltar a
expressão dramática. Os artifícios usados, as incursões
cromáticas e a conexão de números por falta de resolução harmônica produzem a continuidade musical exigida por Wagner, sem nenhuma das teorias do século XX,
e serão analisados pormenorizadamente mais adiante.
O libreto de Lorenzo Da Ponte é uma excelente adaptação da lenda do conquistador de Sevilha, o Don Juan,
baseado nas obras-primas literárias de Tirso de Molina
e Molière, e que Mozart descreve em música personagens universais, como Don Giovanni e Leporello. A
ópera, classificada na partitura como dramma giocoso,
segue o determinismo de uma tragédia grega, permea12
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da por cenas de comédia, estupenda descrição de uma
humanidade que não evolui apenas por lágrimas nem
apenas por risos. E, no final, entra no domínio do sobrenatural, para apresentar a cena de maior densidade
trágica de toda a história do teatro lírico, o confronto
entre Don Giovanni e a Estátua do Comendador. Pairando, acima de tudo, a centelha divina da inspiração
de Mozart.
Tristão e Isolda, ópera composta cerca de 70 anos
depois de Don Giovanni, incorpora não apenas toda a
nova estética do romantismo, mas a teoria wagneriana
do Gesamtkunstwerk, e da ópera sinfônica construída
a partir dos leitmotivs. Wagner sempre fez questão de
escrever seus próprios libretos, o que naturalmente facilita a fusão da palavra à música. Muitos deles pecam
em gosto literário pela excessiva prolixidade, pelo abuso das hipérboles, além de jogos de palavras nem sempre na melhor veia poética. Mas, em Tristão, Wagner
acertou em cheio. O poema é extraordinário porque
parte de uma ideia genial: a transformação da tosca
lenda medieval num drama de estados de espírito:
Tristão e Isolda se envolvem num amor impossível, de
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acordo com os conceitos de honra do Cavaleiro. Isto
posto, a única saída é migrar do mundo real, o do Dia,
para o mundo do sonho, o da Noite; o mundo ao qual
só se chega, em termos reais, pela morte. Em suma,
Wagner transforma um romance medieval cheio de
peripécias e baixa voltagem psicológica no mais belo e
sofisticado pacto de morte da literatura.
Como peça teatral, o primeiro ato de Tristão e
Isolda é uma obra-prima de análise psicológica. Os
dois outros são bem menos densos dramaticamente,
com muita prolixidade de poesia ultrarromântica. Em
compensação, servem para o desenvolvimento de uma
extraordinária linguagem musical, inteiramente nova.
Essa linguagem se baseia na exploração sem precedentes dos recursos do cromatismo, a ponto de quase
destruir o conceito de tonalidade; no fantástico entrelaçamento de leitmotivs, evocando um inesgotável
caleidoscópio de sentimentos. Com um amálgama indispensável: Wagner, antes de ser um teórico e um erudito, era um formidável melodista. Sem o que a morte
de Isolda jamais seria a maravilha que é. Para apreciar
Tristão e Isolda em todas as suas minúcias, é impor14
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tante conhecer a teoria wagneriana do drama lírico.
Mas só essa teoria, sem uma inspiração extraordinária,
jamais construiria o Tristão.
Passemos a Otello, cuja estreia em 1887 ocorreu trinta anos depois da composição e vinte e dois anos após a
estreia em 1865 de Tristão e Isolda. De 1843 (Nabucco)
a 1871 (Aída), Verdi foi o compositor de óperas mais
bem-sucedido de seu tempo, atendo-se ao modelo da
ópera italiana, cujos predecessores imediatos haviam
sido Rossini, Bellini e Donizetti. Era um extraordinário melodista e, ao contrário de seus predecessores,
dotado de uma energia beethoveniana que se nota desde o Nabucco. Nas primeiras obras, muitas das quais
escritas às pressas para ganhar a vida, poucos cuidados
aplicavam à harmonia e à orquestração, concentrando
a ópera como um espetáculo para cantores. Aos poucos, porém, encontraram sua versão da obra de arte
integral. Rigoletto (1851) é uma obra-prima de fusão
da palavra à música e de invenção melódica, apesar dos
realejos orquestrais e de se inspirar num dramalhão
de Victor Hugo. O Trovador (1853) é uma catadupa de
energia melódica da mais alta inspiração, infelizmente
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a serviço de um libreto absurdo, que narra a vingança
de uma cigana pelo método confuso. A Traviata (1853)
fica um pouco atrás em voltagem musical, mas ganha
pelo bom gosto da peça de Alexandre Dumas Filho.
Nas óperas seguintes (à exceção das Vésperas Sici-
lianas, que marcam um declínio de inspiração), Verdi foi procurando novos caminhos e refinando as suas
habilidades como harmonizador e orquestrador. Em
Don Carlos (1867), Verdi começou a encontrar uma
nova linguagem musical, preocupada em explorar a
fundo os conflitos psicológicos. A ópera, além de excessivamente prolixa pelos padrões verdianos, tem seus
pontos fracos, inclusive a cena final, e por isso mesmo
custou a se firmar no repertório. Em Aída o compositor voltou aos padrões convencionais da grande ópera,
o que em certo sentido significava um retrocesso em
relação às formidáveis invenções de Don Carlos e que
só vieram a ser reconhecidas no século XX. Em compensação, Aída é um primor de beleza musical, alternando as cenas de pompa e circunstância com as de
intimidade psicológica.
Com Aída e o Réquiem em homenagem a Ales16
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sandro Manzoni (1873), Verdi se deu por aposentado.
Estava suficientemente rico, e resolveu se dedicar à sua
fazenda de Santa Ágata e à sua antiga paixão, a agricultura. Restara-lhe uma mágoa: ser considerado um
compositor da velha-guarda e que só conseguiu progredir nas últimas óperas imitando Wagner. Acusação
sem pé nem cabeça, pois a única ópera de Wagner então conhecida na Itália era Lohengrin, cuja arquitetura
musical não era muito diferente da de uma ópera italiana. Pois é bom não esquecer que Wagner era grande
admirador de Bellini e Donizetti.
Tirar Verdi da toca não foi tarefa fácil, e que só foi
conseguida pela extrema habilidade do seu editor Tito
Ricordi. Primeiro era preciso encontrar um grande libretista, capaz de provocá-lo. Arrigo Boito, que além
de extraordinário poeta era um compositor razoá­vel
(autor do Mefistofele e do Nerone), o provocador
ideal. Só que, primeiro, era necessário desfazer uma
antiga desavença entre os dois, uma tirada poética com
que Boito insultara Verdi no passado. Ricordi conseguiu essa reaproximação diplomática, e Verdi aceitou trabalhar com Boito na revisão de 1881 do Simon
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Boccanegra. O resultado foi a reabilitação de uma
obra-prima frustrada de 1857, mas isso era pouco para
Ricordi. A provocação só surtiu efeito em 1884, quando Boito apresentou a Verdi um projeto de libreto do
Othello, de Shakespeare. O velho compositor não se
comprometeu a levar adiante a ópera, mas também
não recusou a proposta. E pôs-se a trabalhar com todo
o entusiasmo de um jovem.
Esse trabalho produziu a obra-prima de Verdi,
Otello. Obra-prima impossível sem o libreto de Boito,
uma condensação genial da tragédia shakespeariana.
E para a qual Verdi encontrou uma linguagem musical inteiramente nova, mostrando que havia caminhos
para a ópera inteiramente diferentes dos descobertos
por Wagner.
Otello, de fato, é a antítese tanto de Tristão e Isolda
quanto de Rigoletto. Verdi rejeita o conceito de ópera
sinfônica, não só fugindo dos leitmotivs (à exceção de
uns poucos temas, como o do beijo, mas que nunca se
repetem por mais de três vezes na ópera), mas despindo-a da mais elementar concessão à orquestra, o prelúdio. A ação deve prosseguir com o máximo de intensi18
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dade dramática, o que exige extraordinária economia
de tempo, incompatível com as divagações wagnerianas. O velho modelo da ópera italiana, em que a trama
é narrada pelos cantores e na qual a orquestra pouco
faz além de suportar as vozes, também não serve, o
que significa sepultar as canções do Rigoletto ou do
Trovador. A solução é dividir o trabalho entre vozes
e orquestra, esta comentando o que a palavra não diz.
Não há tempo para optar entre estruturas diatônicas
ou cromáticas, e muito menos para modulações. O ouvinte deve enfrentar as explosões do drama, aceitando
mudanças abruptas de tonalidade. A tragédia, para ser
convincente, precisa ser compacta.
A boa música tem seus segredos, que nunca se revelam por completo numa primeira audição. É preciso
ouvi-la várias vezes para que esses segredos sejam desvendados. Ópera, por outro lado, não é música abstrata, mas fusão da palavra com a música. Por mais extraordinárias que sejam as melodias de Don Giovanni
ou as inovações harmônicas de Tristão e Isolda, é preciso ouvi-las no seu contexto dramático. Ou seja, sabendo o que os personagens estão dizendo a cada ins19
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tante. A tecnologia moderna oferece o meio pelo qual
o ouvinte, ainda que não versado em leitura musical,
pode apreciar essas obras-primas: escutando uma boa
gravação completa da ópera, e consultando o seu libreto, que geralmente acompanha as gravações. Após
algumas audições, o melômano estará versado na ópera. Se souber ler música, tanto melhor. Numa primeira
etapa acompanhe a gravação com uma redução de piano da partitura. E depois, se for o caso, leia a partitura
orquestral completa. O perigo, aí, é se apaixonar pela
ópera e querer ouvi-la todo dia, ou quase. A paixão
pela música, de fato, cria uma forma de dependência
psicológica. Só que essa dependência leva à felicidade,
e não à autodestruição.
‘DON GIOVANNI’, ‘TRISTÃO E ISOLDA’,
‘OTELLO’ E OS CAMINHOS DA ÓPERA
Don Giovanni, Tristão e Isolda e Otello são considerados os três pontos culminantes da ópera. Não
se trata, evidentemente, de um julgamento unânime.
Quem frequenta teatros líricos para ouvir dós de pei20
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to de tenores ou acrobacias de sopranos ligeiros, dificilmente encontrará qualquer recompensa nessas
obras-primas. O julgamento se baseia na concepção da
ópera como Gesamtkunstwerk, ou seja, como arte de
fusão da palavra à música, e como tal não pode ser
partilhado por quem só goste de trechos de ópera, ou
por quem costuma assistir a um espetáculo lírico sem
saber o que os cantores estão dizendo a cada instante.
O conceito de obra de arte integral projeta Mozart,
Wagner e Verdi como os três maiores compositores
operísticos de todos os tempos, deixando num honroso
segundo plano Rossini, Puccini e Richard Strauss, além
dos gênios de uma só grande ópera, como Beethoven,
Bizet e Debussy. Isto posto, idiossincrasias à parte, é
natural que se escolha uma ópera de Mozart, uma de
Wagner e uma de Verdi para compor o triângulo dos
pontos culminantes do gênero lírico.
A escolha não se define apenas pelos valores musicais. No caso de Mozart, não há como alegar que Don
Giovanni seja superior às Bodas de Fígaro ou à Flauta
Mágica. A partitura das Bodas chega a ser mais requintada do que a de Don Giovanni, e a da Flauta, embora
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bem mais simples, vem impregnada com uma dose inigualável de lirismo. Em Verdi, a voltagem do Otello se
contrapõe à perfeição do Falstaff. No caso wagneriano,
a escolha de Tristão e Isolda se insinua naturalmente
pela revolução harmônica do dueto do segundo ato,
resolvida apenas na morte de Isolda. Mas, em matéria
de inspiração, é difícil igualar o Parsifal.
A maneira de resolver essas dúvidas é lembrar que
ópera é música e drama. Don Giovanni se impõe sobre
as Bodas de Fígaro e sobre a Flauta Mágica simplesmente porque o conquistador de Sevilha é personagem
avassalador em comparação com o astuto Fígaro ou
com o venerável Sarastro. Da mesma maneira, Otello
se sobrepõe a Falstaff porque a tragédia do mouro de
Veneza se situa em um plano inacessível às trapalhadas
de Sir John. Quanto a Tristão e Isolda, trata-se de uma
das mais extraordinárias incursões na psicologia do
amor e do suicídio, a ponto de Freud ter identificado
na ópera as raízes da psicanálise.
O impacto dramático, após a filtragem musical,
acaba assim elegendo Don Giovanni, Tristão e Isolda
e Otello como os três pontos culminantes da ópera.
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OPERA
Num outro escrutínio, poder-se-ia escolher as três
maiores óperas místicas, nas quais se encaixariam a
Flauta Mágica e Parsifal, e que se completaria com o
Réquiem de Verdi.
AS OBRAS MAIS EMBLEMÁTICAS
Obras de arte suprema costumam mudar os próprios caminhos da expressão artística. É interessante
examinar em que medida isso ocorreu com a ópera,
após Don Giovanni, Tristão e Isolda e Otello.
Don Giovanni, segundo os relatos da época, foi recebido triunfalmente na sua estreia em Praga, e muito
aplaudido na sua repetição em Viena. O sucesso, no entanto, deveu-se quase que exclusivamente à beleza das
melodias mozartianas e às situações cômicas da ópera.
A apreciação do que havia de maior – a estrutura dramática e a perfeita fusão da palavra à música – ao que
tudo indica escapou aos críticos da época. Com efeito, Mozart, como sempre muito além de seu tempo,
não compusera uma ópera clássica, mas uma ciclópica
ópera romântica, cuja verdadeira grandeza só iria ser
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OPERA
reconhecida em meados do século XIX, em particular
graças ao livro do compositor francês Charles Gounod.
No meio tempo, não faltava quem considerasse
Don Giovanni um belíssimo feixe de melodias, mas
uma ópera pesada. O próprio Beethoven julgava imperdoável que Mozart transformasse um libertino em
herói de uma grande ópera. Não surpreende assim que
Don Giovanni pouca influência exercesse na mudança
dos caminhos do gênero lírico. Na Itália, a ópera do
século XIX progrediu inicialmente com a verve endiabrada das óperas cômicas de Rossini, em que não
faltava boa música, mas qualquer texto servia (o compositor se gabava de ser capaz de pôr em música até um
rol de lavadeira). Foi perdendo densidade dramática e
harmônica com Bellini e Donizetti, até que surgiu o
jovem Verdi, cheio de inspiração e energia, mas inicialmente sem o necessário polimento musical.
Na França, a ópera degenerou no grande espetáculo com muitos efeitos sem causa. O compositor preferido era Meyerbeer. Na Alemanha vingou a ópera
romântica, iniciada com Fidélio de Beethoven e sedimentada por Carl Maria von Weber, sinfonicamente
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bem cuidada, melodicamente inspirada, mas em geral
de baixa voltagem dramática, até que Wagner, depois
do Rienzi, resolveu virá-la de cabeça para baixo no
Navio Fantasma.
Tristão e Isolda teve um destino inteiramente diverso. Wagner só conseguiu estrear a sua obra-prima
oito anos depois de completar a sua composição, e
muitos anos se passaram até que a ópera fosse difundida e digerida nos principais centros musicais da Europa. Quando o ciclo se completou, o estrago foi monumental. Tristão e Isolda representava a música nova,
a revolução da harmonia, obrigando cada compositor
ou a se tornar imitador de Wagner ou a inventar alguma coisa inteiramente diferente.
Verdi, em Otello, mostrou que havia um novo modelo de ópera compatível com a ideia de ação contínua
no Gesamtkunstwerk, mas que era a antítese de Tristão
e Isolda: a) ópera vocal, e não sinfônica, a ponto de eliminar o tradicional prelúdio; b) intensa utilização da
orquestra para insinuar o que não é dito pela palavra,
e não para duplicá-la, conseguindo assim o máximo de
economia de meios; c) uso do cromatismo para des25
OPERA
crever explosões emocionais e não para criar levitação
aural; d) rejeição do leitmotiv.
A estreia de Otello em fevereiro de 1887 foi um
sucesso extraordinário, em parte pelos méritos da partitura, em parte pelo prestígio do compositor. Essa segunda parte não pode ser desprezada, pois as sutilezas
da partitura não se podem captar numa única audição.
O fato, porém, é que o modelo de Otello não chegou a criar escola. A única ópera composta dentro dos
mesmos padrões de economicidade, ou até maiores, é
Falstaff.
Ao se recusar à técnica do leitmotiv, Verdi assumiu
um compromisso implícito: o de esbanjar inspiração
melódica, jogando uma ideia musical em cima de outra
para manter a tensão dramática, quando muito mais
cômodo seria explorar cada invenção melódica às últimas consequências. Em Falstaff, essa técnica chega ao
paroxismo: as melodias são tantas que, numa primeira
audição, tem-se a impressão de ouvir uma ópera sem
melodias.
Verdi podia se dar a esse luxo quando compunha a
seu bel-prazer, como em Otello e em Falstaff. Só que
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OPERA
a fórmula não era palatável para outros compositores.
Seu principal sucessor na ópera italiana, Giaccomo
Puccini, decidiu usar amplamente a técnica do leitmo-
tiv, lastreada numa orquestração com o bom gosto de
Mozart e a riqueza de Wagner. O que distingue Puccini
de um simples imitador de Wagner é a sua adesão a
longas âncoras diatônicas, além das raízes melódicas
fincadas na canção italiana. Com menos inspiração
e bom gosto, seus contemporâneos Mascagni, Leoncavallo, Giordano, Cilea, e outros tantos, seguiram a
mesma fórmula de composição operística.
Na França, Debussy resolveu se transformar no
anti-Wagner, modificando a gramática do cromatismo
pela escala de seis notas, e projetando a palavra como
o veículo principal de comunicação em Pelléas et Mé-
lisande, uma tragédia de amor que pretende se opor
a Tristão e Isolda. Trata-se de uma grande realização
musical, mas que se ressente de duas debilidades. Primeiro, a energia de expressão. Segundo, vez por outra
Debussy se distrai, e se torna francamente wagneriano,
como em certos interlúdios que relembram inequivocamente Parsifal. O problema do impressionismo de
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Debussy é que ele escraviza o compositor à gramática
musical que resolveu construir. E, como se disse frequentemente, o impressionismo é música com luvas
de pelica.
Na Alemanha e na Áustria, a ópera se bifurcou.
De um lado, Richard Strauss aceitou ser um mero
discípulo de Wagner, inovando na técnica orquestral,
na estrutura melódica, mas seguindo os princípios do
cromatismo wagneriano e a técnica dos leitmotivs.
Suas duas primeiras grandes óperas, Salomé e Elec-
tra, levam a uma espécie de wagnerismo escatológico.
O Cavaleiro da Rosa (1911) é uma comédia preciosa,
ainda que prejudicada por certas cenas de mau gosto
literário e musical. Ariadne auf Naxos (1916) e A mu-
lher sem sombra (Die Frau ohne Schatten), de 1920,
contêm excelente música, mas pouca tensão dramática.
As últimas óperas se ressentem da fraqueza dos textos.
Em particular a última de todas, Capriccio (1942), foi
composta num momento em que o temor pelo regime
nazista fazia com que Strauss nada quisesse afirmar:
nem mesmo se, numa ópera, o principal é a música ou
a palavra, a questão levantada em Capriccio. Com es28
OPERA
sas restrições, evidentemente, era impossível compor
uma verdadeira obra-prima.
*
29
Original de Mario Henrique Simonsen sobre ópera
Mario Henrique Simonsen’s original on opera
ISBN 978-85-98831-16-9
9 788 598 831169

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