Salvador como fato de cultura: Representações da cidade da Bahia
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Salvador como fato de cultura: Representações da cidade da Bahia
Salvador como fato de cultura: Representações da cidade da Bahia nas imagens e linguagens de Lina Bo Bardi e Caetano Veloso Luiz Carlos de Laurentiz Faculdade de Arquitetura, Urbanismo e Design – UFU [email protected] Salvador como fato de cultura: representações da cidade da Bahia nas imagens e linguagens de Lina Bo Bardi e Caetano Veloso Resumo Na produção cultural brasileira, arquitetura e música têm se destacado nacional e internacionalmente; e nesse universo a arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi e o compositor e cantor baiano Caetano Veloso se tornaram personalidades incomuns. Por ser o compositor originário e uma espécie de embaixador da Bahia e dadas as experiências em ações culturais desenvolvidas pela arquiteta na cidade da Bahia/Salvador entre 1958 e 1964 e entre 1986 e 1990, esta foi tomada como fato de cultura e ponto de partida para este estudo, que objetiva estabelecer afinidades e diferenças entre Lina e Caetano para as representações da cidade com base nas imagens e linguagens dela e dele. Trabalhamos aqui com a noção de representação a partir do conceito de mapeamento cognitivo, de F. Jameson. Para tanto, o assunto se apóia em procedimentos metodológicos fundamentados na leitura: do pensamento de Caetano — manifesto em sua música, suas letras e suas declarações — e de Lina — presente em suas intervenções arquitetônicas e sua produção cultural; bem como do pensamento de teóricos da cultura e da arquitetura. Esta investigação parte do pressuposto de que não há mapas verdadeiros para mostrar que as imagens de uma cidade podem ser representadas por mapas mentais que os citadinos têm na memória; assim como revelar que, embora Salvador/Bahia e suas urbanidades estejam no mapa e sejam vividas e representadas pela cultura, ainda era necessária uma tradução do posicionamento dos indivíduos como seres coletivos numa suposta confusão espacial, numa época de globalização, que revalorizasse esse espaço. Noutros termos, um mapeamento cognitivo das leituras, imagens e singularidades da cidade do Salvador representativo de uma difícil “colagem dialética”. Palavras-chave: 1. Linguagem e cultura. 2. Arquitetura. 3. Música e sociedade. 4. Cultura – Salvador. Salvador as facto of culture: Representations of the city of Bahia in the images and languages of Lina Bo Bardi and Caetano Veloso Abstract In the production of Brazilian culture, architecture and music have been known nationally and internationally, and that the universe Italian-Brazilian architect Lina Bo Bardi and the Bahian composer and singer Caetano Veloso became unusual personalities. Because the original composer and a sort of ambassador of Bahia and given the experience in cultural activities developed by the architect in the city of Bahia / Salvador between 1958 and 1964 and between 1986 and 1990, this was taken as a matter of culture and point of departure for this study, which aims to establish similarities and differences between Lina and Caetano to the representations of the city based on the images and language of her and him. We work here with the notion of representation based on the concept of cognitive mapping of F. Jameson. Therefore, the matter rests on the methodological procedures based on reading the thought of Caetano - manifest in his music, his lyrics and his statements - and Lina - present in its architectural interventions and its cultural production, and the thought of theorists culture and architecture. This research assumes that there is no true maps to show the images of a city can be represented by mental maps that the city has in memory, so as to reveal that, although Salvador / Bahia and their issues should be on the map and are experienced and represented by the culture, was still a need for translation of the positioning of individuals and collective beings supposed confusion in space, in an era of globalization, to revalue this space. In other words, a cognitive mapping of the readings, images and singularities of the city of Salvador is representative of a hard "glue dialectic." Keywords: 1. Language and culture. 2. Architecture. 3. Music and society. 4. Culture - Salvador. SALVADOR COMO FATO DE CULTURA: Representações da cidade da Bahia nas imagens e linguagens de Lina Bo Bardi e Caetano Veloso A mim me bastava que um prefeito desse um jeito na cidade da Bahia. — C A E T A N O V E L O S O , 1 9 82 Tenho que dizer a verdade: a cidade está pavorosa. — L I N A B O B A R D I , 1 9 86 ESSA FRASE DE CAETANO VELOSO foi registrada no disco Cores nomes, de 1982, e a verdade, segundo a própria Lina Bo Bardi, foi dita ao prefeito Mário Kertész, em 1986, quando a prefeitura de Salvador (B A ) a convidou para traçar uma série de intervenções na paisagem urbana e na área cultural desse município. De 1986 a 1990, a “loba romana”1 e seus arquitetos discípulos — Marcelo Carvalho Ferraz e Marcelo Suzuki — projetaram (mas nem tudo executaram): o plano de recuperação do Centro Histórico da Cidade do Salvador (C H C S ), o Parque Histórico do Pelourinho e exercícios arquitetônicos experimentalistas, dentre os quais: o Belvedere da Sé, o projeto-piloto ladeira da Misericórdia, o projeto Barroquinha, o conjunto do Benin na Bahia, a Fundação Pierre Verger e a Casa do Olodum. Lina e os jovens discípulos, ao projetarem as arquiteturas afrobaianas2, aplicaram o conceito de arte total, pois cuidaram de tudo: continente e conteúdo criados em design, comunicação visual, cenografia; numa palavra, arquitetura e urbanismo celebrando a desprovincianização da cultura baiana. A trajetória artística de Caetano Veloso em disco, por sua vez, contribui para referenciar e reverenciar a Bahia da prancheta da arquiteta Lina, que, como radar, bem soube captar, em meio às belezas perenes e ao tom pavoroso com que se referiu a Salvador, as mudanças que ocorriam na cidade da Bahia/Salvador. Sem dúvida, Caetano tem sido um dos maiores embaixadores da cultura baiana mundo afora, e se ele é doce e mel, também é crítico e cáustico em seus pensamentos cantados e respondidos sobre a dor e a delícia de ser/estar na Bahia. O jovem compositor e cantor e a “senhora Dona Lina”3 tem um passado em comum: ela viveu e trabalhou na capital baiana durante sete anos (1958–64); nessa época, criou o Museu de Arte Moderna da Bahia (MA M B ), de início no Teatro Castro Alves, depois transferido para o Solar do Unhão. Simões o considera como “mais que um museu, [pois para] lá se dirigiam esforços para a criação de um movimento cultural vinculado à realidade popular da Bahia e engajado na vida contemporânea” (1986 apud W O L F , 1986: 23), a avant-garde na Bahia. Também nessa época 1 No texto “Pelourinho, Pelourin, Pelouro, Pelô” (S A L O M Ã O , 1 9 93 : 35), encontramos o epíteto “loba romana” para Lina Bo Bardi: arquiteta nascida em Roma, que, nos anos de 1 9 4 0, vem para o Brasil. Lina e Waly Salomão foram amigos e trabalharam juntos na Fundação Gregório de Mattos (F G M ), entre 1 9 8 6 e 1 9 9 0: ela, como arquiteta “oficial” da Prefeitura da cidade da Bahia/Salvador para o plano projetual de recuperações do C H C S ; ele, como presidente da F G M , após a saída do artista da canção popular brasileira Gilberto Gil. Aliás, esse epíteto intitula letra inédita de Gilberto Gil; dentre tantos versos — como uma declaração de amor e admiração: “Oh! Romana loba/Romana mulher” —, o poeta registra “Tu sabes que és/Mãe dessa cidade que tens aos teus pés/A te adorar/E eu serei talvez/Um daqueles teus amantes mais fiéis/Que sabe amar” (ver G I L , 1 99 6: 2 9 0 ). A data da letra da música é anterior ao retorno de Lina (1 98 6 ) à cidade da Bahia/Salvador. 2 Um dos principais projetos de intervenção político-cultural da F G M na capital soteropolitana no período abordado, o Projeto Bahia/Benin objetivou estreitar laços comunicativos com a África negra, “[...] especialmente com a costa ocidental africana, que foram cortados no século transato pelo imperialismo britânico”. E como consta a participação da arquiteta no projeto Bahia/Benin e em projetos arquitetônicos que destacaremos ao longo desta pesquisa, tomamos a liberdade de assim nos expressarmos; afinal, “[...] a África Negra está inscrita na Bahia, do plano simbólico ao código genético. É uma das vertentes que compõem e definem a biopsicologia do baiano” (G I L ; R I S É R I O , 1 9 88 : 239). 3 Era comum no cotidiano de Lina essa respeitabilidade social que recebia das pessoas; daí o tratamento de “dona Lina”, com que os bem mais jovens — Caetano, Waly Salomão, Maria Bethânia e outros — sempre, carinhosa e respeitosamente, chamavam-na. Outro fato que podemos escrever é este: quando Lina chegou à capital soteropolitana para trabalhar em 1 9 5 8 , tinha 48 anos, e na cidade da Bahia, até então, os ares de modernidade estavam recentes, e possivelmente os hábitos em educação “à moda antiga” estavam mais enraizados. despontou o jovem artista interdisciplinar Caetano Veloso, já como observador atento e admirador confesso do trabalho da arquiteta: “Esta mulher foi fundamental na minha formação. No início dos anos 60, na Bahia, ela contribuiu decisivamente para a civilização da minha geração” (V E L O S O apud S I M Õ E S , 1986: 23). Longe da industrialização e de concretos e neoconcretos4, a cidade do Salvador vivia então um processo muito rico no teatro, no cinema, na música e na dança, do qual Lina era uma das mais ativas participantes. Mas tudo se interrompeu com o golpe militar de 1964. A idéia desta conversa — relacionar as trajetórias e influências da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1917–92) e do compositor e cantor baiano Caetano Veloso (1942), no que se refere à cidade da Bahia/Salvador — nasceu de nossa curiosidade, persistente pelo espaço na arquitetura do século que se encerrou aliado à música: esferas culturais de igual importância para uma leitura dessa cidade. No quadro da produção cultural brasileira, essas duas artes — arquitetura e música — têm se destacado nacional e internacionalmente. E, sem dúvida, a arquiteta e o compositor são personalidades incomuns na nossa esfera cultural. Pelos pensamentos e trabalhos, os dois já foram associados, por alguns ensaístas atentos que captaram e registraram tal ligação. Esse é o caso de Luis Antônio Jorge, para quem são “[...] muitas as semelhanças de atitude e provoc(ação) entre Lina e Caetano. Penso se podemos sintetizá-las nesta questão: ambos são educadores do país, dos nossos sentidos, da nossa ação social, cultural e artística” (1997: s. p.). Nessa ótica, o universo comum escolhido para este estudo é a cidade da Bahia/Salvador, e o motivo dessa escolha geográfico-urbano-cultural, ser o compositor Caetano Veloso originário e uma espécie de embaixador da Bahia. Há um passado comum entre Lina e uma geração artística surgida no começo dos anos de 1960 na Bahia. Aqui se destacam o cineasta Glauber Rocha e os responsáveis pelo movimento tropicalista, dentre os quais: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e mesmo Maria Bethânia — nem tão tropicalista assim, mas reconhecida como da turma “doce bárbara baiana” que invadiu as demais regiões brasileiras na segunda metade dessa década. A cidade da Bahia/Salvador é, então, ponto de partida na relação entre Lina e Caetano, a partir do qual buscaremos afinidades e diferenças entre os dois. Além disso, o universo baiano — como sabemos —, é rico de estudos socioculturais que lhe dão uma originalidade marcante e ainda fértil, digna de pesquisas mais aprofundadas. Na Bahia, a convivência entre tradições culturais (étnicas, religiosas e patrimoniais) permanece em movimento e estado frêmito pelas “redefinições espaço-temporais, que conformam e confirmam sua face metropolitana” (R U B I M , 1998: 61–9 Após alguns anos de sua primeira estada em Salvador (1958–64), Lina volta à cidade, em 1986, a pedido da prefeitura, para fazer intervenções na paisagem urbana soteropolitana e na área cultural do município O Brasil então estava democraticamente festivo, pró-eleições diretas para a Presidência da República. Nesse momento, a capital baiana não ficava atrás de outras capitais do país, pois a oposição estava no poder local e a grande meta administrativa do governo municipal era trabalhar Salvador “como fato de cultura, no sentido antropológico, todos os atos técnicos e mágicos nos quais se inscreve, se instaura a criatividade do povo da Bahia” (R I S É R I O apud W OL F , 1986: 19). Embora Salvador/Bahia e suas tantas urbanidades presentes, apreciadas, trabalhadas e criticadas por “línguas urbanas cosmopolitas” — como as de Lina e Caetano — estivessem no mapa, fosse vivida e representada pela sua cultura, ainda eram necessárias intervenções na cidade. Tomando as palavras de Jameson, era preciso fazer um mapeamento cognitivo da cidade que realizasse a façanha de “[...] chegar a uma nova modalidade, que ainda não somos capazes de imaginar, de representá-la, de tal modo que nós possamos começar novamente a entender o nosso posicionamento como sujeitos individuais e 4 Referimos à polêmica artística entre a cidade de São Paulo (concretos) e a cidade do Rio de Janeiro (neoconcretos). No corpus da pesquisa, no capítulo “Lina Bo Bardi na Bahia”, abordamos algumas estéticas artísticas derivadas do moderno e localizadas em outras capitais brasileiras. Tal abordagem comparativa contribui para nosso estudo de caso: a Bahia e a modernidade tardia. coletivos e recuperar nossa capacidade de agir e lutar, que está hoje neutralizada pela nossa confusão espacial e social.” (19 9 6: 79). De nossa parte, buscamos ser ensaístas desse mapeamento cognitivo, conceito do qual nos apropriamos e que desenvolvemos partindo de produtos, imagens e linguagens extraídas de versos de canções de Caetano Veloso e do universo arquitetônico-urbanístico de Lina Bo Bardi. Assim, expomos leituras, imagens e singularidades da cidade do Salvador (B A ) — representativas de uma difícil “colagem dialética”. Quanto aos procedimentos metodológicos adotados para se desenvolver esse mapeamento, a investigação e a elaboração desta tese, alguns esclarecimentos se fazem necessários. De início, optamos por delimitar o corpus da pesquisa mediante uma seleção das principais obras arquitetônicas projetadas e realizadas por Lina Bo Bardi na capital baiana e das principais composições de Caetano Veloso que se referissem explícita ou implicitamente à Bahia. Como Lina e Caetano se aventuraram na arte de escrever, nossa análise inclui, também, seus textos publicados em revistas e livros; e ainda entrevistas de ambos na mídia impressa — muitas encontradas em periódicos e diários de décadas atrás. E como nosso trabalho abrange um período relativamente longo para dar conta do seu “presente histórico”, recorremos a entrevistas com personalidades e estudiosos que o vivenciaram e/ou analisaram-no. Nesse sentido, cabe registrar que priorizamos, para efeito de análise, os anos nos quais Lina “viveu” na cidade da Bahia/Salvador: 1958 a 1964, 1986 a 1990. A tese original foi dividida em quatro capítulos. O primeiro trata do mapeamento cognitivo da cidade da Bahia, que nos propomos a desenvolver com base na arquitetura e na música. O segundo destaca a presença e influência de Lina Bo Bardi e de seu trabalho na cidade da Bahia — cidade, patrimônio e cultura como missão —, nas suas duas passagens pela capital. O terceiro se volta ao compositor Caetano Veloso — estética, cidade e cultura como dimensão. No quarto e último capítulo, formalizamos nossa busca com vistas à compreensão de uma sensibilidade comum e contrastante entre Lina e Caetano — afinidades e diferenças, experimentadas e traduzidas na e para a cidade da Bahia. Como conclusão daquela tese, nossa maior expressão em sua escrita foi deixar o registro narrativo e compositivo de como chegamos ao desenho — difícil — do mapeamento cognitivo com representações da cidade da Bahia/Salvador nos produtos, nas imagens e nas linguagens de Lina Bo Bardi e Caetano Veloso. E... Sei que fiz uma poesia deste processo todo, fiz uma imensa poética. Que eu fiz dos primeiros aos últimos versos. — V I LA NOVA ARTI GAS , 1985 O Q U E P R E TE N D E M O S vislumbrar neste derradeiro item da pesquisa sobre afinidades e diferenças entre o compositor e cantor Caetano Veloso e a arquiteta Lina Bo Bardi está sintonizado com o rumo teórico que vislumbramos para o tema: o espaço — a cidade da Bahia e seu mapeamento cognitivo em nossos planos e práticas de estudo. Tal sintonia se depreende, por exemplo, ao cotejarmos o pensamento de Fredric Jameson, pedra de toque da pesquisa, com as palavras de Paulo Mendes da Rocha, quando este compara a arquiteta com o compositor (leitura que talvez tenha sido ponto de partida para nossa investigação). Comecemos pelo segundo autor: “A obra de Lina está [...] impregnada de um profundo humanismo, que fala, literalmente, sobre a questão americana, da Europa, do mundo e da nossa situação no mundo. É um discurso sobre o destino do gênero humano como algo que pode ser resolvido por decisões nossas. Caetano Veloso tem um discurso bem nessa direção, uma lírica e uma poética sobre o existir americano, sobre o existir brasileiro, como uma necessidade de invenção nossa. (R O C H A , 1 99 2: 94). Passemos ao pensamento de Jameson, que se ocupa da reflexão sobre uma concepção espacial na contemporaneidade e nos dá o toque e o mote para redefinirmos este estudo. De seu Pósmodernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio (1996), recolhemos importante passagem que contribui para novas e pretendidas formas de participar do jogo interativo saber–fazer–saber, que corresponde a “uma estética de mapeamento cognitivo” (J A ME S O N , 1996: 76). O princípio que nos guiou no desenvolvimento da pesquisa foram a identificação e análise de como esses artistas/autores — Lina e Caetano — percebiam a área espacial-social-cultural de Salvador. Se a leitura dos espaços no/do conjunto arquitetônico recuperado pela arquiteta no Centro Histórico da Cidade do Salvador (C H C S ) vale como marco demarcatório para exploração teórica, é de Jameson que retiramos a idéia de que “a concepção de espaço aqui desenvolvida sugere que um modelo de cultura política apropriado a nossa própria situação terá necessariamente que levantar os problemas do espaço como sua questão organizativa fundamental” (J A M E S O N , 1996: 76). Entre Lina e Caetano (poderia ser Gilberto Gil)5, temos uma linguagem referencial comum: Salvador/Bahia. Se a arquiteta participou de dois movimentos/projetos culturais na/para a capital baiana nos anos de 1950/60, e nos anos de 1980, aos dois compositores, sobretudo na segunda época, também couberam contribuições importantes: enquanto o santo-amarense Caetano foi conselheiro da Fundação Gregório de Mattos (F G M ), Gil chegou a presidi-la na gestão do prefeito Mário Kertész. Em resumo analítico, a partir desse parágrafo, apresentamos a pauta final de nosso estudo com o enfoque duplo: o compositor popular e a arquiteta moderna; depois, enfocaremos a versão tríplice: Lina Bo Bardi, Caetano Veloso e a cidade da Bahia/Salvador — isto é, como a arquiteta ítalobrasileira via a cidade e como o compositor santo-amarense vê a capital baiana —, e, por fim, que elos eles têm em comum e no que se diferenciam quanto à percepção da capital baiana. Assim, do fato ao foco, mais uma vez, repetimos: Caetano Veloso não é apenas compositor de canções populares nem Lina Bo Bardi é apenas arquiteta: ambos são artistas e criadores interdisciplinares; sabemos, também, que ambos, através de suas múltiplas artes, difundem a cultura brasileira. Como reconhecemos que Lina e Caetano são pensadores de um projeto Brasil, adotamos a referência gramsciana de intelectual orgânico para ela e para ele. Há um elo comum entre os dois, e neste estudo adotamos a paridade que enfoca, assim como engloba, os seguintes assuntos: o conteúdo denominador, tenso e ambíguo, do que poderíamos chamar de popular e a etapa histórica denominada de moderna. Esses artistas são perfis preocupados com a alma popular e contrários à erudição reinante no universo dos letrados. Cada um a seu modo, os dois escreveram e defenderam uma idéia de arte moderna com base em idéias sobre vanguardas que habitam seus pensamentos. Sobre a cidade da Bahia — ou simplesmente Salvador —, conclusivamente para Lina e Caetano, essa cidade-estado é um assunto forte, jamais esquecido, e cujas experiências enquanto vivências estabelecidas pelos dois na capital baiana atravessam o arco da conversa sobre o encanto e o espanto. Dentre os produtos da Bahia que muito encantaram a arquiteta, o mais vigoroso se chama “tradição cultural”; Lina sempre desprezou a forma como a classe dos mais ou menos bem eruditos denomina a experiência cultural popular baiana de folclore. Caetano, por sua vez, reconhece que tem em Salvador, desde o princípio, quando completou a maioridade, sua “entrada no grande mundo das cidades” (R I S É R I O , 1995: 7). Por conseguinte, com o passar dos anos, em sua produção artística, suas leituras urbanas são diversas sobre a capital baiana; e um 5 Conhecíamos o repertório fonográfico de Gilberto Gil, inclusive aquele com letras sobre o universo baiano; mas, à medida que nos envolvemos com a pesquisa abordando Lina na Bahia nos anos de 1 9 8 0 , descobrimos a função participativa de Gil na presidência da F G M , assim como um passado comum entre ele e Lina. desenho híbrido traz o que a cidade tem de província e metrópole, de cidadania e do avesso dessa política do cotidiano praticada pelos soteropolitanos e, enfim, os tons estéticos: pelo lado do sim, um dever ao belo; pelo outro lado, um direito ao feio como estratégia para se pensar na cidade. Contudo, como esta conversa enquanto tese deve acabar, escreveremos sobre o nosso mapeamento cognitivo. Pelo elenco das línguas urbanas extraídas do universo espacial da arquiteta e das imagens dos versos do compositor, sobre a cidade da Bahia/Salvador, a representação dessa cartografia se encontra como anúncio narrativo e descritivo de como nós, na condição de pesquisador e escrevente desse desenho, chegamos, enfim, à Bahia. Se a criação artística pretende reorganizar o mundo de modo significativo, embora o apresente como amontoado de fragmentos; se se supõe um referencial para essa reorganização a fim de escolher os fragmentos e o modo de se dispô-los em um arranjo que seja dizível (M O U R A , s. d: s. p.), de nossa parte pensamos no mapa da cidade da Bahia/Salvador como desenho que seja resultado teórico de uma deriva — imaginária — que atravessa o leito urbano. Nesse contexto, como imagem textual, recortamos a cidade; a megacidade foi percorrida pelas letras de canções de Caetano Veloso e pelo conjunto arquitetônico e urbanístico de Lina Bo Bardi. Em apelo formalista, acreditamos que, nesse recorte citadino, pela ciência como estudo fundamental e pela arte como veio narrativo, tenhamos feito uma leitura do meio ambiente, movimentando histórias e pontuando fantasias, cujo resultado esteja mais próximo da “primitiva forma de mapeamento” (E S T E V E S J R ., 1997: 207). A execução de tal deriva foi como esse jogo deve ser: rápido, veloz, apressado, lúdico, criativo e crítico. Nessa perspectiva, infiltramos-nos em aspectos urbanos territorializados e desterritorializados; em lugares e não-lugares imageticamente percebidos pela nossa experiência sinestésica nesta pesquisa sobre o tema abundante: o que é a cidade e qual é ou quais são a(s) imagen(s) da cidade dentro da mesma cidade. Vimos o que é visível e não visível em tipos arquitetônicos identificados, anônimos, enterrados, porém marcados como lugar: monumentos artísticos e artes urbanas; presença da memória ocupando lugares, pontos culturais e turísticos, lugares naturais, coisas e coisas encontradas e, por fim, a parceria da convivência com a “televivência”, do aspecto físico ao mais abstrato dos gestos denominados representação. Todo o filtro resultou num feixe de luz que, ao mesmo tempo, contribuiu para uma cartografia derivada de características como alteração constante, renovação, identificação de necessidades e lugares, bem como da negação como crítica. Pela inter-relação dos autores que escolhemos — Lynch, Jameson, Debord, Esteves, Freire, Certeau, dentre outros —, o que sabemos paira na opinião teórica de que não há mapas verdadeiros. E a isso acrescentamos que os verdadeiros mapeadores cognitivos dessa carta são os próprios usuários da cidade: pelas suas experiências nela/com ela. São eles, assim como somos nós e são os “artistas” Lina e Caetano, que, pela subjetividade representacional a ser codificada — práxis como as pré-instalações artísticas originadas no dadaísmo e no surrealismo e a deriva da Internacional Situacionista —, poderão interferir e mudar o significado da cidade pelas leituras expostas. A elas, as tais “narrações cotidianas”, acrescentamos as investigações encontradas no universo cidade da Bahia/Salvador, que passamos em revista com os cartógrafos Lina Bo Bardi e Caetano Veloso. Como perfil cartográfico, nosso mapeamento cognitivo final quis se aproximar, cada vez mais, de uma linguagem simbólica do espaço; por isso, nossas pontuações sobre a escritura do próprio mapeamento revelam imagens narrativas inspiradas no mapa de 1653 Carte de Tendre, atribuído a Madeleine de Scudéry. Mas, inegavelmente, como acontece com as grandes cidades contemporâneas, capitalistas, redescobrimos, de novo pela ótica de Lina e Caetano, afinidades e diferenças na cidade da Bahia/Salvador: alguns espaços urbanos, não tão homogêneos assim, que geram uma “guerra dos lugares” (A R A N T E S , 1994). Em síntese, nestas considerações finais, anunciamos as legendas extraídas dos universos da linguagem de Lina e Caetano, apontadas em nosso mapeamento cognitivo. Portanto, como procedimento inicial, enumeramos as representações em narrativas e símbolos advindos de nossa compreensão do que pesquisamos sobre a arquiteta ítalo-brasileira; depois, concluímos com as passagens do compositor baiano sobre a capital da Bahia. Para demarcar a cidade que chamaremos de “cidade da Bahia bobardiana”, no nosso elenco, há de constar: 1) ao C H C S , a nomenclatura por nós dada é “pré-existência histórico-ambiental”;6 2) para as obras plenamente restauradas por Lina Bo Bardi e sua equipe arquitetônica, tais como o projeto-piloto ladeira da Misericórdia, o conjunto do Benin na Bahia, o Museu de Arte Moderna da Bahia no Unhão, pensamos na expressão “presente histórico”;7 3) quanto ao belvedere da Sé, tornou-se o “belvedere do Apagamento”;8 4) no projeto do complexo arquitetônico e urbanístico da Barroquinha, para nós está, em essência, a “alma popular”; 5) a casa do Olodum, pensamos como “casa da Indiferença”;9 6) aos projetos pontuados no plano geral das intervenções do C H C S — Fundação Pierre Verger, casa de Cuba na Bahia, casa do Togo na Bahia — e que não foram, de fato, construídos mas apenas sinalizados em projeto urbanístico, adotamos a denominação de “casas-embaixadas do Esquecimento”10, 7) para os projetos de centros de convivências apenas idealizados por Lina e equipe — o forte São Pedro, em pleno centro não histórico da cidade alta de Salvador, e o projeto de revitalização nomeado provisoriamente de cais do Ouro, na cidade baixa —, em nosso mapeamento chamamos de “cidadelas Invisíveis”; 8) os mirantes da Baía (Sé, Aflitos, Santo Antônio, palácio arquiepiscopal), que acompanhamos em notícias de jornal soteropolitano11, são “mirantes pela Memória”; 9) o teatro Castro Alves, no Campo Grande — começo de tudo na primeira passagem de Lina pela capital baiana —, a partir de 1958 tornou-se, como o MA M B , um espaço da liberdade que, em nosso mapa, recebe como legenda a “nova pedagogia”. Quanto ao perfil cartográfico da cidade da Bahia/Salvador em Caetano Veloso, retiramos a legenda da representação citadina das letras de canções do cantor e compositor. Dessa síntese, destacamos: 1) “Gênesis”12, para o mar da baía de Todos os Santos e para o oceano Atlântico; 2) “saudosismo”13, para o que denominamos território das águas: a praia de Itapoã, lagoa de Abaeté, praia de Amaralina e para aqueles lugares que, na presença da sua memória, são ocupados; 3) “tempo de estio”14, para o porto da Barra; 4) “memória urbana”, para as citações de aspectos urbanos (ruas, ladeiras, bairros, praças, largos, adros, passeios públicos e outros) das cidades alta e baixa na mesma cidade da Bahia; 4) “monumento”, para as obras arquitetônicas de Salvador identificadas e não identificadas citadas pelo compositor; dependendo do edifício, usamos as referências “não moderno” ou “moderno”; 6 A expressão não é criação nossa, é citação do conceito aplicado às cidades européias no pós-guerra por Ernest Natan Rogers (1 9 0 9 – 69 ); segundo Montaner, “frente à crise dos princípios mais universalistas e simplificadores da arquitetura moderna, mas respondendo à necessidade da continuidade das obras dos mestres, Rogers propôs a incorporação do legado do passado como um novo grau de modernidade” (2 0 0 1 : 108). E mais, para Montaner, a teoria das “pré-existências ambientais” expressa: “a cidade existente é reivindicada como o novo ponto de partida, como meio e fim, e a arquitetura é a peça integradora que deve permitir refazer a cidade a partir da realidade existente, superando as soluções estereotipadas e universais do estilo internacional” (2 0 0 1 : 108). 7 Esse conceito é defendido pela arquiteta em suas soluções arquitetônicas: ao recuperar uma obra, ela interpõe a linguagem da modernidade ao passado tradicional da própria obra. 8 O projeto original do belvedere da Sé foi demolido para dar lugar à atual construção da praça da Sé. Curiosamente, o autor do projeto deixou à vista dos passantes os sinais em ruínas da catedral da Sé, que se encontravam enterrados. Mas lançamos uma pergunta: por que as fundações do projeto bobardiano não foram, também, deixadas à mostra como os fragmentos da igreja? Afinal, são muitas cidades enterradas numa só cidade. 9 Usamos a palavra indiferença para o imóvel, a casa do Olodum, pela nova reforma de interiores ali executada, no pavimento térreo, apagando o recado tectônico da arquiteta, num gesto de insensibilidade, embora outras partes internas contenham o que foi projetado. 10 Mantivemos a informação sobre a casa de Fernando Pessoa no rodapé porque não sabemos, ao certo, da participação de Lina no projeto. Em depoimento, Maurício Chagas nos disse o Gabinete Português de Leitura queria expandir a casa cultural no centro histórico. Logo, não colocamos essa “casa” em nosso mapeamento. 11 Ver Gusmão (1 9 8 7 ) . 12 Título de letra de canção gravada pelo grupo de artistas baianos Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia, denominado de Doces Bárbaros. Gravação de 1 9 76 . Seis anos depois, Caetano Veloso a gravou-a no Cores nomes. 13 Canção gravada por Caetano e o grupo Os Mutantes em compacto duplo de 1 9 68 . 14 Outro título de canção gravado no registro fonográfico Muito (dentro da estrela azulada), em 19 7 8. 5) “as estátuas”, para os monumentos escultóricos e outras artes urbanas; 6) quando escrevemos “a cidade” no mapa de Caetano, expressamos o centro histórico da cidade: o Pelourinho; que também poderá receber outras alcunhas: “Haiti”, “Cuba seja aqui”, “o cu do mundo”, “tudo é perigoso/ tudo é divino maravilhoso”, e, por fim, “tradição15, 7) “Graça divina” é o nome dado à igreja do senhor do Bonfim; para os terreiros de candomblé, adotamos a palavra-chave “batmacumba”16; 8) quanto às outras igrejas de santos que a Bahia tem e são citadas em letras de Caetano, em nosso mapeamento cognitivo adotamos a expressão “oração aos deuses com deus”; 9) “festa” é o substantivo escolhido para cobrir o calendário de festas cívicas, religiosas e profanas dessa cidade-estado, pelo levantamento de alguns pontos culturais e turísticos da capital da Bahia; 10) para apresentarmos os comportamentos estéticos dos afro-descendentes identificados na cidade do Salvador, usamos a expressão “beleza pura”; 11) pelo cinema cantado, em Caetano, nada mais do que “cinema transcendental”17, 12) “carnavália”, pelos seus muitos carnavais baianos; 13) palimpsesto, para o protótipo múltiplo que é uma cidade só, e “caetanave” para os não-lugares e as “televivências” encontradas nessa cidade da Bahia; 14) às obras restauradas por Lina em sua segunda passagem — anos de 1980 —, convenientemente denominamos, pelas letras de Caetano Veloso, “transafricanas”, como palavra advinda de “A verdadeira baiana”. Enfim, Lina Bo Bardi e Caetano Veloso: arquitetura, letras e canções — base de um mapeamento cognitivo, ao mesmo tempo, singular e representativo da cidade da Bahia. Bibliografia BO BARDI, Lina. Curriculum Literário. In: FERRAZ, Marcelo C. (Coord.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Empresa das Artes, 1993. p.9-12. ______. Cinco anos entre “os brancos”. In: FERRAZ, Marcelo C. (Coord.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Empresa das Artes, 1993. p.161-163. ______. Centro Histórico da Bahia. In: FERRAZ, Marcelo C. (Coord.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Empresa das Artes, 1993. p.270-273. ______. Projeto Barroquinha. In: FERRAZ, Marcelo C. (Coord.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Empresa das Artes, 1993. p.276-281. ______. Casa do Benin na Bahia. In: FERRAZ, Marcelo C. (coord.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Empresa das Artes, 1993. p.282-287. ______. Casa do Olodum. In: FERRAZ, Marcelo C. (coord.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Empresa das Artes, 1993. p.290-291. ______. Ladeira da Misericórdia. In: FERRAZ, Marcelo C. 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(Sem encarte, 1CD512089-2).