Será o YouTube o novo “cinema de atracções”

Transcrição

Será o YouTube o novo “cinema de atracções”
Será o YouTube o novo “cinema de atracções”?
A partilha de vídeos em linha entre o princípio e o fim da história
do cinema
Tiago Baptista
Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema
Instituto de História Contemporânea, FCSH-UNL
Email: [email protected]
Palavras-chave: YouTube, atracções, recepção, história, cânones
Resumo em Inglês
The popularity of video sharing platforms such as Youtube has generated a great amount
of curiosity not only in the media, but also in the academy. Even before the platform’s
fifth anniversary, the first Youtube Reader had been published (Snickers and Vonderau,
2009). Emerging from the rich area of spectatorship theories, most studies tried to
understand how the platform changed the traditional film viewing experience. But
Youtube hasn’t exclusively been acknowledged as a novelty: some scholars have
suggested that the specific viewing experiences it allows relates to early film history,
and explicitly to the «cinema of attractions» conceptualized by Tom Gunning in 1984
(Gunning 1990). Rizzo (2008) has stated that Youtube is a «new cinema of attractions»,
promoting by its technical features the creation of films that, just like the early movies
discussed by Gunning, «address the audience directly, are exhibitionist and are
frequently sensational and shocking». Like Rizzo, Broeren (2009) also indicated the
presence of early films in Youtube listings as evidence of the platform’s stimulation of
the same reception conditions described by the «cinema of attractions» concept. In this
paper I intend to analyze one important consequence of this hypothesis whose
significance, in my perspective, hasn’t yet been properly developed: namely, how this
particular mode of reception, together with the instantaneous and simultaneous
availability of films from all historical periods, challenges not only traditional film
canons, but also the way viewers relate to the very notion of film history itself.
0. Introdução
A popularidade de plataformas de partilha de vídeos e do YouTube em particular
motivou a curiosidade não só jornalística, mas também académica. O primeiro reader
do YouTube foi publicado ainda antes do quinto aniversário daquela plataforma 1. A
maior parte dos estudos tem origem na área da teoria da recepção e do espectador e
tenta perceber de que modo a plataforma mudou a maneira como tradicionalmente
víamos cinema. Mas o YouTube não foi estudado apenas enquanto novidade. Alguns
autores sugeriram que as experiências de visionamento específicas que ele permite se
relacionam com a história do cinema dos primeiros tempos, e em particular com o
“cinema de atracções” conceptualizado por Tom Gunning em 1984. A argumentação
que defende esta relação desdobra-se em dois pontos centrais. Em primeiro lugar, o
YouTube promoveria a produção, o carregamento (upload) e a partilha de filmes cujas
características formais se assemelham às do “cinema de atracções”. Em segundo lugar,
mais do que um conjunto de características formais, o “cinema das atracções” e o
YouTube instalariam um modo de recepção idêntico, designado por Frank Kessler como
“modo de exibição atractivo” (attractional mode of display) (Kessler 2009). A partir
daqui, seria possível desenhar duas conclusões genéricas: o YouTube relaciona-se não
só com o cinema de atracções, mas representa ainda, em si mesmo, um novo tipo de
atracção (Teresa Rizzo falaria mesmo de “atracções YouTube”, (Rizzo 2008)); não é o
tipo de filmes categorizado como “cinema de atracções” que é comum ao cinema dos
primeiros tempos e ao YouTube, mas sim o mesmo modo de recepção, a posição onde
ele instala o espectador e a prioridade dada ao acto de ver que são, mais do que comuns,
transversais a vários tipos de imagens em movimento e a diferentes media (do cinema à
televisão, da Internet ao vídeo). Neste texto, argumentarei que o YouTube contribuiu
para trazer à superfície o “modo de exibição atractivo”, tornado subterrâneo (mas não
eliminado completamente) pelo “modo de exibição de integração narrativa”, e tentarei
desenvolver algumas das consequências políticas deste “regresso” – nomeadamente no
que diz respeito ao questionamento das ideias de cânone cinematográfico, de arquivo
fílmico, e de história do cinema.
1. Do “cinema de atracções” ao “modo de exibição atractivo”
O conceito de “cinema de atracções” foi sugerido por Tom Gunning em 1984 como
forma de repensar as interpretações então dominantes sobre a história do cinema e a sua
relação com a narrativa2. Concentrando-se nos primeiros anos dessa mesma história,
Gunning desmontou o entendimento essencialista e teleológico do cinema como uma
arte narrativa que se desenvolveu passo a passo desde o seu aparecimento. Esta
perspectiva via o cinema dos primeiros tempos como um período de ensaios falhados
nessa história pré-definida até à pela “maturação” da linguagem narrativa – por este
motivo, o período era habitualmente referido como do “cinema primitivo”. Os filmes
que ainda não demonstravam um exercício competente das técnicas narrativas seriam,
assim, obras de realizadores que estavam no caminho certo, mas que ainda não tinham
conseguido compreender e dominar a verdadeira natureza do cinema. Gunning
questionou a inevitabilidade desta “progressão” do cinema em direcção à narrativa – ao
cinema tal como conhecemos hoje – ao sugerir que os filmes do período entre 1896 e
1906 possuíam um conjunto de características que os autonomizava do cinema
narrativo. O “cinema de atracções” seria, deste modo, um modo de agenciamento dos
1 SNICKERS, Pelle e VONDERAU, Patrick (eds.), The Youtube Reader (Estocolmo: National Library of
Sweden, 2009).
2 GUNNING, Tom, «The cinema of attractions: early film, its spectator and the avant-garde», in Thomas
Elsaesser (ed.), Early Cinema. Space, Frame, Narrative (Londres: BFI, 1990 [1984]), 56-62.
materiais fílmicos concorrente daquele proposto pelo cinema narrativo, e a hegemonia
do segundo sobre o primeiro não seria o resultado de uma inevitabilidade histórica, mas
sim o desfecho de uma relação de forças entre duas maneiras diferentes de conceber o
cinema.
O conceito de “cinema de atracções” surgiu e foi definido, portanto, de modo relacional
e opositivo face ao cinema narrativo. Ao contrário dele, o cinema de atracções,
argumenta Gunning, está mais interessado em mostrar do que em contar. Trata-se de
um cinema que insiste nos efeitos de espectáculo, de choque, e na produção de
sensações fortes no espectador. O cinema de atracções foi caracterizado como
fundamentalmente exibicionista, no sentido em que, para produzir os seus efeitos, ele
interpela directamente o espectador, reconhecendo activa e insistentemente a sua
posição física durante o tempo da projecção cinematográfica. Não está, deste modo,
interessado em construir as relações de contiguidade espacial e continuidade temporal, a
causalidade e a psicologia das personagens típicas do cinema narrativo. Ao contrário do
cinema de atracções, o cinema narrativo esconde as marcas da sua presença de modo a
que o espectador possa concentrar-se no universo diegético que lhe é proposto – e para
cuja construção trabalha discretamente todo o agenciamento do material fílmico. O
cinema de atracções, por seu lado, abraça as condições da sua própria visibilidade como
précondição elementar da sua existência. Como escreveu André Gaudreault (que
trabalhou com Gunning no desenvolvimento do conceito), “a atracção está lá, diante do
espectador, para ser vista. Estritamente falando, ela apenas existe para exibir a sua
própria visibilidade” (citado em Rizzo 2008).
O cinema de atracções é identificável através de um conjunto de técnicas e temas
distintivos. Em relação às primeiras distingue-se, em primeiro lugar, pela frontalidade
da representação dos actores e pelo facto de estes, em diversas ocasiões, interpelarem
directamente o espectador (olhando para a câmara, ou dirigindo-lhe caretas e apartes).
Os filmes são normalmente breves e a atracção manifesta-se num único plano. Podem
existir atracções em filmes multiplano, mas nesses casos é habitual que cada plano
continue a reunir uma única atracção (como nos filmes de Méliès), ou então que cada
plano contribua para construir uma atracção principal (nos filmes onde já são visíveis os
rudimentos da continuidade, como por exemplo sucede nos chase-films). O cinema de
atracções também se manifesta na predilecção pelas trucagens, pelas proezas físicas
(sobre homens-força, por exemplo), lutas de animais, paisagens ou manifestações da
força da natureza (filmes sobre cataratas e tempestades), locais e povos exóticos (ou
exotizados), danças etnográficas, e por temas eróticos (como os inúmeros filmes “pelo
buraco da fechadura”) e pornográficos.
O termo usado por Gunning ecoa a “montagem de atracções” teorizada por Sergei M.
Eisenstein – um tipo de montagem que privilegiava o efeito de choque produzido pela
justaposição de duas imagens (dois planos) conflituantes. Esta noção de montagem
situa-se nos antípodas da “montagem invisível” usada pelo cinema narrativo que, por
seu lado, procura tornar a transição entre os dois planos a mais discreta possível. Ao
procurar um efeito de choque, Eisenstein esperava pelo contrário aprofundar o fosso que
separava as duas imagens para obrigar o espectador a pensar a relação que podia existir
entre elas. Ao fazê-lo, a montagem de atracções estava a chamar a atenção sobre si
mesma, isto é, sobre a posição do espectador em relação à materialidade do acto
cinematográfico diante de si. Não é de espantar, então, que Gunning tenha associado o
conceito de cinema de atracções também ao cinema das vanguardas cinematográficas. O
que está em causa no conceito de cinema de atracções não é um conjunto definido de
características formais, nem sequer uma periodização em particular, mas sim a posição
do espectador criada por um modo de exibição específico. Seguindo esta argumentação,
Frank Kessler defendeu que seria mais exacto falar de um modo de exibição atractivo
(attractional mode of display), do que de um cinema de atracções 3. Se o modo de
exibição atractivo se caracteriza pelo reconhecimento da exterioridade do espectador em
relação ao filme, o modo de exibição de integração narrativa caracteriza-se pela
subtracção do espectador ao espaço físico onde decorre a projecção e pela sua absorção
pelo mundo diegético proposto pelo filme.
Enquanto modo de exibição, o cinema de atracções não está ligado a nenhum género em
particular e percorre, igualmente, tanto a ficção como a não-ficção. Para Gunning, à luz
do cinema de atracções, a distinção fundadora entre os filmes de Méliès (o cinema de
ficção) e os dos irmãos Lumière (o início da não-ficção) não é operativa. Ambos
procedem afinal da mesma maneira, revelando-se mais preocupados em mostrar do que
em contar isto é, em organizar os seus filmes de modo a produzir um espectador autoconsciente da sua posição enquanto espectador de imagens em movimento. A análise
das primeiras sessões Lumière permitiu a Gunning reforçar esta interpretação 4. As
descrições tradicionais daquelas sessões relatam o pânico dos primeiros espectadores
das sessões Lumière, supostamente aterrorizados face à perspectiva de serem colhidos
pelo comboio que viam deslocar-se na sua direcção, desde o ecrã. Reconstituindo as
condições de exibição, as práticas de projecção e socorrendo-se de descrições mais
detalhadas, Gunning concluiu que esse pânico deve ser antes entendido como a
excitação de assistir a uma enorme novidade: a novidade da reprodução mecânica do
movimento. Segundo Gunning, o que motivou a tremenda comoção das primeiras
plateias não foi uma crença ingénua na realidade das imagens projectadas, mas sim o
fascínio pela natureza reproduzida dessa mesma realidade. A reacção das primeiras
plateias não foi de terror, mas sim de “auto-consciência (e prazer) indisfarçados face às
capacidades ilusionistas do cinema.” (Gunning 1997: 129) A “estética das atracções” é
indissociável, pois, tanto da curiosidade induzida pelo acto de ver como do prazer que
satisfaz (ou recompensa) essa curiosidade, aspectos que justificam a centralidade da
visualidade neste modo de exibição. A atracção não existe senão para ser vista e para
proporcionar prazer ao espectador que a vê, e esta relação é impossível sem que o
espectador esteja dela plenamente consciente. O prazer é indissociável do conhecimento
exacto do processo que o gera.
É neste sentido que Gunning afirmou que a reacção das primeiras plateias de cinema
significava “um encontro com a modernidade” (Gunning 1997: 129). Com efeito, o
modo de exibição atractivo ultrapassa o cinema e foi típico da modernidade urbana e,
em particular, da cultura de espectáculo do final do século XIX e início do século XX.
Neste período, o cinema era apenas uma entre muitas outras atracções que disputavam a
atenção do transeunte para logo a satisfazer através de uma sensação forte. O cinema
existia nas feiras, competindo com acrobatas e danças exóticas, e nos teatros de
variedades, entre ilusionistas e números musicais. Mesmo antes de Eisenstein ter
teorizado o termo, em 1923, vários contemporâneos caracterizaram os primeiros
espectáculos cinematográficos como “atracções”. André Gaudreault identificou a
utilização do termo desde 1896, em textos críticos sobre as primeiras sessões e em
textos mais teóricos5. E o próprio cinema era uma atracção nos primeiros anos da sua
3 KESSLER, Frank, «The Cinema of Attractions as Dispositif», in Wanda Strauven (ed.), The Cinema of
Attractions Reloaded (Amesterdão: Amsterdam University Press, 2006), 57-69.
4 GUNNING, Tom, «As Aesthetic of Astonishment: Early Film and the (In)Credulous Spectator», in
Linda Williams (ed.), Viewing Positions: Ways of Seeing Film (New Brunswick: Rutgers University Press,
1997), 114-133.
5 GAUDREAULT, André, Cinema delle origini o della «cinematografia-attrazione» (Milão: Editrice Il
história. As sessões eram anunciadas mencionando o nome do aparelho ou do seu
fabricante, mas não dos filmes individuais que compunham a sessão (e muito menos dos
seus autores). O projector e o projeccionista colocavam-se na plateia, entre os
espectadores. A presença e a proximidade do aparelho, habilmente enfatuadas pelos
comentários do projeccionista, faziam do projector o protagonista da sessão, ou pelo
menos davam-lhe a oportunidade de disputar esse lugar com as imagens projectadas no
ecrã.
As peculiaridades do contexto de exibição do cinema dos primeiros tempos
sobreviveram à hegemonia do cinema narrativo e foram apenas interrompidas pela
transição para o cinema sonoro. Até aí, as salas de cinema eram locais barulhentos e
semi-iluminados, condições que reforçavam uma recepção tumultuosa do cinema de
atracções. O contexto de exibição adequava-se a um modo de exibição atractivo, isto é,
apostado em captar a atenção dos espectadores ao mesmo tempo que os recordava da
sua posição enquanto tal. Dito de outro modo, nem os filmes nem as salas de cinema
dos primeiros tempos permitiam aos espectadores esquecerem quem eram nem onde
estavam, mas essa era justamente a premissa essencial do seu entretenimento. A
hegemonia do cinema narrativo, pelo contrário, vai ser acompanhada de uma disciplina
do público cada vez mais severa de modo a garantir o estado de concentração necessário
à absorção no universo diegético do filme. A duração dos filmes e a continuidade
construída pela montagem requeriam uma atenção continuada, para o que contribuía a
manutenção do silêncio do público e a escuridão das salas.
Se o cinema narrativo se tornou dominante, isso não quer dizer que o modo de exibição
atractivo tenha sido eliminado. Segundo Gunning, o cinema de atracções tornou-se
subterrâneo, mas não desapareceu após a hegemonia do cinema narrativo 6. Ele é ainda
perceptível, enquanto modo de exibição, no seio de diferentes géneros narrativos (como
o musical ou o filme de acção). No entanto, o seu reaparecimento é mais notório no
“cinema de efeitos” da Nova Hollywood, desde meados dos anos setenta, facilitado pelo
desenvolvimento paralelo dos blockbusters e dos multiplexes. Mas, segundo alguns
autores, o modo de exibição atractivo fez o seu reaparecimento mais fulgurante noutro
medium: a partilha de vídeos na Internet.
2. Do espectador ao utilizador: as atracções e o YouTube
Nos últimos três anos, pelo menos dois autores admitiram a utilidade do conceito de
“cinema de atracções” para pensar o YouTube, a plataforma de partilha de vídeos na
Internet mais popular. (Existem outras, mas o YouTube é a mais utilizada e aquela cujo
modelo de funcionamento determinou a arquitectura de todas as outras). A ideia surgiu
pouco depois de o próprio conceito de Tom Gunning ter sido objecto de um balanço no
volume The Cinema of Attractions Reloaded7. O volume dava conta da fortuna crítica
do conceito e a teorização de Frank Kessler sobre o “modo de exibição atractivo” abria
a porta à aplicação do conceito a outros media para além do cinema. Em 2008, Teresa
Rizzo sugeriu que o YouTube representava não só uma manifestação contemporânea do
cinema de atracções, levado ao seu limite, mas também um tipo de atracção novo,
Castoro, 2004), 36-38.
6 GUNNING, Tom, «The cinema of attractions: early film, its spectator and the avant-garde», in Thomas
Elsaesser (ed.), Early Cinema. Space, Frame, Narrative (Londres: BFI, 1990 [1984]), 56-62.
7 STRAUVEN, Wanda (ed.), The Cinema of Attractions Reloaded (Amesterdão: Amsterdam University
Press, 2006).
específico do YouTube8. Embora a autora não distinga sempre de forma muito clara
entre a análise formalista do cinema de atracções presente no YouTube e o modo de
exibição atractivo proporcionado por aquele meio, os argumentos de Rizzo tocam em
três pontos cruciais: primeiro, a identificação do mesmo modo de exibição (atractivo,
embora Rizzo não use esta expressão, o que gera alguma confusão no seu texto);
segundo, as semelhanças entre os filmes do YouTube e os filmes do cinema (de
atracções) dos primeiros tempos; e terceiro, a teorização de uma superação do conceito
no contexto do YouTube. Antes de continuar, porém, é necessário esclarecer que, ao
contrário do que é habitual na bibliografia sobre o YouTube, não uso os termos
“vídeos”, “clips” ou “excertos” para referir as imagens em movimento ali existentes.
Dada a multiplicidade de origens dessas imagens, mas também a sua autonomia, creio
que é mais exacto referir-me a elas como “filmes”, e é isso que farei ao longo do resto
deste artigo.
Tal como o cinema de atracções, os filmes disponíveis no YouTube baseiam-se, segundo
Rizzo, no espectáculo, no choque e na sensação, em suma, na interpelação directa do
público9. São, como os filmes dos primeiros tempos, filmes exibicionistas no sentido em
que o espectador é reconhecido e convidado a olhar. Tal como o cinema de atracções, o
YouTube baseia-se, defende a mesma autora, em “actos de exibição” (acts of display)
que tornam explícita a subalternização das imagens ao olhar do espectador. A sua
análise do tipo de filmes existentes no YouTube revela semelhanças nos géneros e nas
técnicas usadas. Em relação aos primeiros, repetem-se os filmes inspirados em gags
cómicos, trucagens, danças eróticas, sobre animais, canções, locais exóticos; e em
relação às segundas, repete-se a utilização da câmara fixa, do plano único, da
frontalidade e da definição de um espaço cénico elementar. A brevidade é um aspecto
central da comparação porque a própria arquitectura da plataforma limita o
carregamento de filmes com duração superior a 10 minutos (embora pareçam poder
existir excepções a este limite), e porque na maior parte dos casos a duração dos filmes
é muito inferior a esse limite. Ou seja, apesar de a brevidade não ser uma imposição
tecnológica absoluta, o YouTube parece de algum modo estimular a partilha de filmes
de duração muito inferior a 10 minutos.
Estas características formais remetem claramente para o modo de exibição atractivo. Os
filmes no YouTube funcionam da mesma maneira que as atracções do cinema dos
primeiros tempos: solicitam avidamente a atenção visual do espectador e fazem da
satisfação dessa curiosidade uma fonte de prazer. Por sua vez, este prazer radica, tal
como no cinema das atracções, na explicitação da visualidade como pedra de toque de
todo o processo: estas imagens foram criadas para serem vistas.
Rizzo sugere, no entanto, que o YouTube leva a “estética da atracção” ao limite,
ultrapassando-a mesmo. Segundo a autora, ao contrário do cinema de atracções, o
YouTube é um medium exclusivamente dedicado à produção de atracções: “a atracção é
o único objectivo do carregamento de filmes” (Rizzo 2008). Rizzo sugere o termo
“hiper-atracção”, ou “atracção YouTube” para designar a especificidade do modo de
exibição atractivo neste meio: ao contrário do que acontece noutros meios, o YouTube
não admite senão atracções e um modo de exibição atractivo. A presença de excertos de
filmes de ficção demonstra bem este ponto. Esses excertos, mesmo quando provêm de
filmes e media que estimulam o modo de exibição de integração narrativa, passam a
funcionar no YouTube exclusivamente como atracções. Não porque isolem atracções
8 RIZZO, Teresa, «Youtube: the new cinema of attractions», Scan: Journal of media arts culture, vol. 5,
n.º 5 (Maio 2008).
9 Ibidem.
pontuais naqueles filmes (aquelas que, como sugeria Gunning, podiam subsistir
subterraneamente no cinema de integração narrativa), mas sim porque o YouTube teria a
capacidade de transformar todas as imagens em movimento em atracções. O conceito de
remediação, citado por Rizzo, é especialmente útil para perceber este efeito 10. A
remediação define-se como “o processo de reutilizar ou retrabalhar material de um
medium num medium diferente” (Rizzo 2008) e que, inevitavelmente, produz novos
sentidos para o mesmo material. Como Rizzo não centra a sua análise da comparação
entre o cinema de atracções e o YouTube na questão do modo de exibição, não explora
todas as consequências da aplicação do conceito de remediação. Mais do que a
transformação do sentido original das imagens, o que a sua remediação através do
YouTube produz é a alteração do seu modo de exibição que, fosse qual fosse o de
partida, passa invariavelmente a ser atractivo. Como sublinhou Joost Broeren noutro
texto sobre a relação entre o cinema de atracções e a partilha de vídeo em linha (mas
que segue a terminologia porposta por Frank Kessler), “a própria estrutura do YouTube
reflecte o modo de exibição atractivo.” (Broeren 2009) Dito de outro modo, “o próprio
medium produz este modo de exibição” (ibidem), sujeitando-lhe todos os filmes ali
disponibilizados, quer tenham sido criados para serem mostrados no YouTube, quer
tenham origem noutros media (televisão, vídeo ou cinema).
Mas há outro aspecto através do qual o YouTube leva o modo de exibição atractivo ao
seu limite. Esse aspecto é a natureza dialógica do YouTube, isto é, a possibilidade de
partilhar, comentar e até mesmo criar novos filmes como respostas a outros
preexistentes (video-responses). Rizzo e Broeren insistem particularmente neste ponto,
bem como a generalidade dos artigos analítico-celebratórios contidos em The YouTube
Reader, seguramente o reader publicado mais depressa após o aparecimento do
respectivo objecto de estudo. Da mesma maneira que o YouTube impõe aos seus
conteúdos o modo de exibição atractivo, a Internet impõe ao YouTube a interactividade.
A interactividade não é uma característica específica do YouTube, mas sim da Internet –
é esta, em rigor, e não o YouTube, o medium que sustenta a partilha de vídeos em linha.
Segundo Rizzo e Broeren, a interactividade reforça o modo de exibição atractivo do
YouTube porque centra toda a experiência do utilizador nos actos de exibição. O
YouTube não tem outro propósito senão disponibilizar atracções aos seus utilizadores,
isto é, proporcionar-lhes uma experiência ancorada no prazer associado à satisfação da
sua curiosidade visual. Mas o YouTube leva a experiência da atracção muito mais longe.
Como interpretar, aliás, o efeito de adição que a experiência do Youtube parece
provocar em muitos utilizadores senão como prova disto mesmo? É importante recordar
um facto sempre esquecido: ao contrário das atracções cinematográficas, as atracções do
YouTube são gratuitas. Mas a explicação fundamental para o efeito de adição daquelas
imagens é, justamente, a já indicada natureza dialógica da plataforma. O YouTube
transforma os espectadores de atracções em utilizadores. Dito de outro modo, as
atracções do YouTube não são apenas vistas, elas podem ser igualmente partilhadas,
comentadas e até mesmo criadas pelos espectadores, transformados assim em
utilizadores. Esta transformação não significa a passagem de um estado de passividade
para um de actividade (muito haveria que criticar, aliás, na suposta oposição entre a
passividade do espectador e a actividade do utilizador). A transformação assinala, isso
sim, a diluição das fronteiras entre o público, o exibidor e o realizador das atracções 11. A
10 O conceito de remediação foi originalmente avançado por J. D. Bolter e R. Grusin em Remediaton:
Understanding New Media (Cambridge: The MIT Press, 1999).
11 BROEREN, Joost, «Digital attractions: reloading early cinema in online video collections», in Pelle
Snickers e Patrick Vonderau (eds.), The Youtube Reader (Estocolmo: National Library of Sweden, 2009),
interactividade do YouTube não possibilita apenas a confusão entre aquelas posições:
ela estimula-a directamente sempre que convida o utilizador a estabelecer relações entre
os filmes visionados, seja através de comentários ou da sua categorização (aplicação de
tags), ou ainda através do carregamento de filmes que podem ter sido criados
especificamente como respostas a outros filmes já existentes. Para além de encorajar a
transformação dos espectadores em utilizadores interventivos (que comentam,
reorganizam e classificam os filmes visionados), o YouTube transforma-os ainda em
criadores e em artistas (de novos filmes, ou de filmes “remediados” para o YouTube). O
potencial político deste ponto é evidente e deve-se, vale a pena sublinhá-lo, a um
medium estruturalmente orientado para o modo de exibição atractivo. O fim dos papéis
definidos para os vários intervenientes do processo de exibição – ou pelo menos a
confusão entre eles – reconfigura a posição tradicional do espectador de imagens em
movimento e dá-lhe a oportunidade de se relacionar, como um igual, não só com os seus
criadores tradicionais, mas também com aqueles que tradicionalmente tinham o
monopólio da maneira como eram apresentadas ao público: os exibidores. O YouTube
permite (e até certo ponto obriga) que qualquer pessoa seja simultaneamente realizador
e espectador, produtor e exibidor12.
Mas esta reconfiguração tem ainda outra consequência política importante. A
reconfiguração da posição do espectador em relação às imagens em movimento e o
modo (fácil, imediato e total) como o YouTube lhe faculta o acesso a essas mesmas
imagens tem implicações nas ideias de cânone e até mesmo na ideia de história do
cinema. O cinema pode ter sobrevivido à remediação operada pelo YouTube, mas a
história do cinema talvez tenha ficado pelo caminho neste processo.
3. O “arquivo celestial”
Uma reflexão sobre o YouTube que se detenha na conclusão de que a partilha de
imagens em movimento em linha se faz nos termos do modo de exibição atractivo
estaria forçosamente incompleta. É preciso analisar as consequências da popularidade
do YouTube. Mais precisamente, é fundamental analisar as consequências políticas da
vulgarização do modo de exibição atractivo. Já vimos de que forma nos relacionamos,
enquanto espectadores e enquanto utilizadores, com as atracções; e já vimos o tremendo
poder de remediação do YouTube, isto é, a sua força como instrumento transformador
de todas as imagens em movimento, independentemente do medium e do modo de
exibição que as gerou, em atracções. Resta perceber, ainda, de que forma a hegemonia
crescente deste modo de exibição – graças não só, mas também à popularidade
galopante do YouTube – aniquila outras formas de relacionamento com as imagens em
movimento. Para colocar a questão em termos rancierianos, trata-se de perceber até que
ponto a redistribuição da partilha do sensível instalada pelo YouTube pode reduzir a
diversidade dos regimes de visibilidade das imagens em movimento, e do cinema em
particular. Trata-se, dito de outro modo, de avaliar todas as consequências políticas, não
só os ganhos mas também as perdas, do modo de exibição atractivo disseminado pelo
YouTube.
Num artigo incluído no já citado The YouTube Reader, Rick Prelinger analisa o modo
como o YouTube afectou a relação do público com os arquivos fílmicos tradicionais 13. O
163-164.
12 Ibidem.
13 PRELINGER, Rick, «The Appearance of Archives», in Pelle Snickers e Patrick Vonderau (eds.), The
facto de muitos vídeos e filmes de várias épocas e de vários países estarem acessíveis no
YouTube – na íntegra (seccionados em vários pequenos excertos) ou apenas
parcialmente – levou muitos utilizadores a pensar nele como o maior arquivo do mundo,
isto é, o local onde estão reunidas todas as imagens em movimento jamais produzidas.
Mais do que isso, o YouTube moldou as expectativas dos utilizadores em relação aos
arquivos tradicionais. Segundo Prelinger, o YouTube é visto como “o arquivo
multimédia padrão do mundo” (the world’s default media archive) (Prelinger 2009:
272). Prelinger defende esta ideia com quatro argumentos. Primeiro, o YouTube sugere
uma ilusão de totalidade. Todas as pesquisas (de filmes, actores, programas de televisão,
grupos musicais ou canções) devolvem alguns resultados. Ignorando as questões dos
direitos de autor, o YouTube é capaz de surpreender os utilizadores com imagens
impossíveis de comprar, alugar, ou de ver qualquer outra forma. Segundo, uma vez que
qualquer pessoa pode carregar um filme (feito por si ou pelo seu realizador favorito), o
YouTube destruiu a “mística dos arquivos como recipientes rarefeitos e impenetráveis
de obras de arte cinematográficas” (Prelinger 2009: 270). Qualquer vídeo caseiro pode
agora conviver lado a lado com os “clássicos” da história do cinema. Terceiro, enquanto
os arquivos tradicionais oferecem acesso às obras mais originais e em melhor qualidade,
mas mediante um acesso difícil e escrutinado, o YouTube oferece acesso total e
instantâneo sem outra limitação para além da baixa qualidade dos filmes. Como mais
pessoas têm agora acesso a muitas imagens em movimento através do YouTube do que
através dos arquivos tradicionais, o paradigma de acesso (ou a expectativa do que ele
deve ser) alterou-se. Os arquivos tradicionais têm agora o ónus de explicar por que
motivos “obstaculizam” algo que, no YouTube, é tão fácil, tão rápido e sem custos. As
questões de conservação, preservação e restauro, bem como as questões associadas à
gestão dos direitos de autor, estão simplesmente ausentes da experiência quotidiana do
utilizador do YouTube. E quarto, as ferramentas de redes sociais providenciadas pelo
YouTube transformaram o acesso aos arquivos num processo “inerentemente social, que
ultrapassou o paradigma clássico do investigador solitário que leva a cabo estudos
privados” (Prelinger 2009: 272). Por outro lado, a facilidade de partilhar um filme do
YouTube e o ritmo de circulação das imagens, juntamente com a facilidade de comentar
e parodiar (por exemplo) um vídeo pré-existente, transformam o YouTube “num
assistente valioso da manutenção da sociedade civil” (ibidem). Alguns autores levaram
este ponto mais longe, defendendo que o YouTube promove “uma nova estética de
responsabilização política” (a new political aesthetic of accountability)14.
Gunnar Iversen previu que o YouTube nunca se transformará num “arquivo celestial”, o
arquivo capaz de armazenar a disponibilizar o acesso a todas as imagens em movimento
jamais produzidas15. No entanto, a questão não é exactamente essa, nem sequer a da
idealização subjacente à possibilidade de um “arquivo celestial”. O desenlace das
discussões em torno da “propriedade intelectual” e a supremacia (anunciada) do digital
sobre a película cinematográfica decidirão o futuro do YouTube como lugar
concentracionário da memória audiovisual do planeta. O que importa desde já, porque já
afecta a nossa actualidade, é a forma como, ao reconfigurar as expectativas em relação
ao que um arquivo deve ser, o YouTube oblitera igualmente as noções de cânone e de
Youtube Reader (Estocolmo: National Library of Sweden, 2009), 268-274.
14 HEDIGER, Vinzenz, «YouTube and the Aesthetics of Political Accountability», in Pelle Snickers e
Patrick Vonderau (eds.), The Youtube Reader (Estocolmo: National Library of Sweden, 2009), 261.
15 IVERSEN, Gunnar, «An Ocean of Sound and Image: YouTube in the Context of Supermodernity», in
Pelle Snickers e Patrick Vonderau (eds.), The Youtube Reader (Estocolmo: National Library of Sweden,
2009), 354.
história. Estas duas perdas são as principais consequências políticas, respectivamente,
da interactividade e do modo de exibição atractivo vulgarizados pelo YouTube.
A utilização do YouTube pode começar na caixa de pesquisa, ou num dos vários filmes
cujo visionamento é proposto pela própria plataforma. As hiperligações para os filmes
enviadas por correio electrónico ou publicadas num sítio, blogue ou rede social tornam
desnecessário visitar a página inicial do YouTube para começar a visionar. A pesquisa de
um filme em particular pode revelar-se um ponto de entrada secundário. Mesmo que o
primeiro visionamento tenha sido motivado por uma pesquisa específica, os
visionamentos seguintes são seleccionados na maior parte dos casos através das
sugestões automáticas geradas pelo próprio YouTube, que propõe hiperligações directas
a filmes, listas de reprodução e a categorias pré-organizadas (os mais vistos, os mais
partilhados, os mais adicionados aos favoritos, etc., etc., …) A multiplicação de pontos
de acesso torna arbitrárias as razões da primeira entrada; o que conta são as escolhas
uma vez no interior do sítio. A liberdade destas escolhas deve ser, naturalmente, objecto
de debate. A decisão sobre que filme ver a seguir cabe sempre ao utilizador, que pode
recusar as sugestões de visionamento do YouTube e escolher o quer ver através da caixa
de pesquisa. Ou será que, pelo contrário, a liberdade do utilizador não passa de uma
ilusão, sendo afinal inteiramente condicionada pelas sugestões e categorizações de
novos visionamentos propostas pela plataforma? Claro que o utilizador pode contribuir
para moldar, até certo ponto, esses resultados. Eles têm um valor “estatístico” e
quantitativo (são determinados pelo número total de visionamentos), mas também têm
um valor qualitativo: algumas categorias podem ser definidas pelos utilizadores (as
tags). No entanto, a falta de informação sobre os critérios que organizam esta pesquisa
instala, como no caso do motor de busca Google – o actual proprietário do YouTube – a
dúvida sobre a transparência dos resultados.
No YouTube, a existência de múltiplos pontos de acesso implica a ausência de uma
organização sistemática da informação 16. Ao contrário do que sucede num arquivo
tradicional, não existe uma classificação nem uma hierarquização centralizada dos
objectos. Todos os filmes existem em pé de igualdade, todos pode ser acedidos por
igual, nenhum é valorizado ou hierarquizado em relação a outro. Ou melhor, as relações
entre os filmes dependem de mecanismos que são ocultados ao utilizador, criando assim
a ilusão de que não existem ou que resultam de processos inteiramente transparentes. O
YouTube elimina, por isso, a distinção entre o que é relevante e o que é irrelevante. O
que é o mesmo que dizer que o YouTube destrói a possibilidade de qualquer cânone
cinematográfico. Nenhum filme é mais importante do que outro; todos co-existem no
mesmo plano de valorização – todos os filmes estão lá para serem vistos e comparados
em função da sua eficácia enquanto atracções. Disso, e de nada mais, dependerá o seu
“sucesso” no YouTube, quantificado no critério único do número de visionamentos.
Nenhum panteão resiste ao escrutínio permanente que a interactividade do YouTube
instala.
Por seu lado, o modo de exibição atractivo que o YouTube impõe produz uma ausência
generalizada de contextos17. E esta ausência de contextos está directamente relacionada
com a questão do fim dos cânones Os resumos disponibilizados são meramente
descritivos ou, em alternativa, expõem apenas as razões pessoais pelas quais um
utilizador decidiu carregar aquelas imagens. No que diz respeito aos excertos de obras
16 IVERSEN, Gunnar, «An Ocean of Sound and Image: YouTube in the Context of Supermodernity», in
Pelle Snickers e Patrick Vonderau (eds.), The Youtube Reader (Estocolmo: National Library of Sweden,
2009), 355.
17 Ibidem, 351.
cinematográficas, é muitas vezes difícil identificar o filme a que pertencem
originalmente. É praticamente impossível, por exemplo, saber a que filmes pertencem
muitos dos quase 2.000 resultados da pesquisa “Fred [Astaire] & Ginger [Rogers]”. Os
títulos dos excertos, as legendas, as categorias e as listas de reprodução apenas
contribuem, por mais paradoxal que isso possa parecer, para tornar o contexto de
produção destas imagens ainda mais obscuro. Só uma pesquisa complementar ou um
conhecimento prévio pode determinar se os títulos dos filmes, por exemplo, se referem
aos títulos dos filmes originais, das canções ou números de dança interpretados, ou
reflectem meramente um comentário pessoal do utilizador que os carregou. É também
impossível verificar se determinado filme corresponde a uma interpretação real de Fred
Astaire e Ginger Rogers ou se se trata de uma homenagem, imitação ou paródia feita
por outras pessoas. A única forma de determinar isso é através do visionamento de todos
os filmes. As sugestões de visionamento adicional, por fim, parecem igualmente
apostadas em sabotar qualquer hipótese de contextualização das imagens – após o
visionamento do filme “Swing Time – Rogers and Astaire” (um excerto do filme
homónimo), por exemplo, o YouTube sugeriu-me o visionamento dos filmes “How to
swing a golf club like Tiger Wood” e “Fred & Ginger: Too Hot to Handle” (um número
do filme ROBERTA). A experiência de navegação no YouTube, seguindo as propostas de
visionamento da plataforma, aproxima-se, deste modo, das associações praticadas pelos
surrealistas. A ausência de contexto é crucial para uma associação livre baseada
unicamente no valor de atracção de cada filme, mas é catalisada pela própria surpresa
gerada por associações absolutamente inesperadas, tal como sucedia nas sessões de
cinema dos primeiros tempos, compostas por vários filmes. Mais do que uma ausência
de contextos, o que está em causa é, portanto, uma operação sistemática de
descontextualização das imagens em movimento, condição para a sua experiência
enquanto atracções. A principal consequência desta operação é a perda da historicidade
das imagens. As atracções do YouTube existem na mais pura actualidade. As relações
que os utilizadores são encorajados a estabelecer entre elas, ou que lhes são sugeridas,
não acrescentam nenhum conhecimento sobre as imagens; apenas estimulam a
continuação de uma experiência de visionamento incessante. Este efeito é evidente
quando se trata de imagens pertencentes a obras cinematográficas antes classificadas
como “clássicas”, ou pelo menos tidas como exemplificativas de determinado momento,
estilo ou autor da história do cinema. No YouTube, elas existem e podem ser visionadas
independentemente da sua própria história, ou melhor, como se essa história nem sequer
existisse. Paralelamente à interactividade, o modo de exibição atractivo encarrega-se de
eliminar qualquer outra chave de entendimento daquelas imagens que não seja o prazer
instantâneo associado ao visionamento de uma atracção.
Ora a eliminação da historicidade é a característica-chave dos não-lugares tal como os
definiu o antropólogo Marc Augé (trabalhando sobre um conceito primeiro avançado
por Michel de Certeau)18. Segundo Marc Augé, “se um lugar se pode definir como
identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode definir-se nem como
identitário, nem como relacional, nem como histórico, definirá um não-lugar.” (Augé
2005: 67). Augé concentra a sua análise nos lugares transitórios, por onde apenas
passamos, sem verdadeiramente habitá-los: “as vias aéreas, ferroviárias, as autoestradas
e os habitáculos móveis ditos “meios de transporte” (aviões, comboios, autocarros), os
aeroportos, as gares e as estações aeroespaciais, as grandes cadeias de hotéis, os parques
18 Foi Gunnar Iversen quem testou o interesse deste conceito vindo da antropologia para perceber o
modo como o YouTube faz tábua rasa da história. Ver, IVERSEN, Gunnar, «An Ocean of Sound and
Image: YouTube in the Context of Supermodernity», in Pelle Snickers e Patrick Vonderau (eds.), The
Youtube Reader (Estocolmo: National Library of Sweden, 2009), 347-357.
de recreio, e as grandes superfícies da distribuição” (Augé 2005: 68). Para ele, “o
espaço do viajante seria assim o arquétipo do não-lugar.” (ibidem: 74). Mas o que é
verdadeiramente constitutivo do não-lugar não é apenas a sua tipologia física, mas
sobretudo a experiência que ele proporciona a quem o frequenta. Os não-lugares,
segundo Augé, “mediatizam todo um conjunto de relações de si próprio consigo e com
os outros que só indirectamente têm a ver com os seus fins: do mesmo modo que os
lugares antropológicos criam social orgânico, os não-lugares criam contratualidade
solitária.” (ibidem: 80). É na definição destas relações que os não-lugares proporcionam
que reconhecemos a experiência do YouTube: “o espaço do não-lugar não cria nem
identidade singular, nem relação, mas solidão e semelhança. Não deixa espaço também
à história, eventualmente transformada em elemento de espectáculo (…). Nele reinam a
actualidade e a urgência do momento presente.” (ibidem: 87) A passagem que compara
o viajante, o frequentador dos não-lugares por excelência, a um espectador ecoa, de
modo ainda mais claro, a experiência do sujeito constituído pelo modo de exibição
atractivo típico do YouTube: “(…) há espaços em que o indivíduo experimenta como
espectador sem que a natureza do espectáculo para ele conte realmente. Como se a
posição do espectador constituísse o essencial do espectáculo, como se, em última
análise, o espectador em posição de espectador fosse para si próprio o seu próprio
espectáculo.” (ibidem: 73; sublinhado meu). Tal como o não-lugar, o YouTube
caracteriza-se pela mesma evacuação da história (assim o exige a descontextualização
necessária à criação de atracções), da identidade (o indivíduo não passa de um utilizador
cujas escolhas e preferências a plataforma processa anonimamente), e das relações
interpessoais (apesar da interactividade intrínseca à utilização do YouTube, a sua
experiência é sempre solitária e produtora de solidão individual).
Como lidar, então, com as consequências políticas do YouTube? Politicamente, o fim
dos cânones é algo que, sob todos os pontos de vista e em si mesmo, não pode deixar de
ser considerado senão como positivo. A existência de um cânone implica
necessariamente uma mediação que o YouTube parece abolir. Depois dele, já não é
possível a imposição do conhecimento de um panteão cinematográfico como factor de
distinção social. A hostilidade do YouTube a todo o movimento de hierarquização e a
igualdade a que a plataforma sujeita todos os seus utilizadores são as melhores garantias
da democratização da fruição cinematográfica. Os mediadores tradicionais dos cânones
cinematográficos – as universidades, as escolas técnicas e os arquivos fílmicos – vêem
assim o papel extraordinariamente posto em causa. Como argumentar o ensino de uns
realizadores em detrimento de outros, e como defender a preservação ou a programação
de um movimento em favor de outro diante de público cujas expectativas em relação à
imagem em movimento foram formadas pelo YouTube? O alvo da crítica não é a
constituição dos cânones hegemónicos, mas sim a própria ideia de cânone. Por que
motivo, perguntam diariamente os espectadores das cinematecas e os alunos de cinema,
haveria o trabalho de alguns realizadores de ser valorizado em relação ao de todos os
outros, ou até mesmo do trabalho que os próprios espectadores/alunos carregaram no
YouTube no dia anterior?
O problema coloca-se exactamente da mesma maneira no que diz respeito à ideia de
história. A história do cinema transforma-se num conceito impossível de entender a
partir do momento em que todos os filmes estão disponíveis para todos os utilizadores
ao mesmo tempo, e onde quer que se encontrem. Já vimos como estas premissas são
falsas, mas o que importa é que elas extravasaram o contexto do YouTube para se
tornarem no horizonte de recepção hegemónico de todas as imagens em movimento. O
YouTube tem o mérito inquestionável de permitir uma combinatória infinita de todas os
filmes ali armazenados. A liberdade de associações assim permitida significa o fim de
qualquer narrativa historiográfica, normalizadora e institucional. Para mais, a ausência
de um cânone e a resistência a qualquer tentativa de hierarquização impedem a
construção de qualquer forma de cultura cinematográfica partilhada. Por mais paradoxal
que isso possa parecer, a cultura de partilha promovida ruidosamente pelo YouTube
impossibilita uma experiência colectiva do cinema. Não porque a experiência do
utilizador é solitária e porque os não-lugares, como defende Augé, produzem solidão,
mas sim porque o YouTube elimina a simultaneidade que, até há alguns anos atrás, era o
cimento de uma cultura experimentada colectivamente. Há trinta anos, a limitada oferta
cinematográfica nos cinemas e até na televisão e no titubeante mercado de cinema
doméstico (em vídeo) significavam que, com grande probabilidade, um número muito
significativo de pessoas via os mesmos filmes no mesmo intervalo temporal.
Actualmente, a televisão por cabo, o video-on-demand, a própria possibilidade da
gravação da emissão televisiva e a avalancha de imagens disponibilizadas na Internet
(no YouTube e em todos os sítios de partilha ilegal de filmes) significam que é
praticamente impossível encontrar uma maioria da população que partilhe as mesmas
memórias audiovisuais no mesmo intervalo temporal. Benedict Anderson assinalou a
importância da imprensa na construção de um imaginário de pertença nacional 19. A
leitura quotidiana dos jornais seria a “oração matinal diária” realizada individualmente
no recato do lar, mas através da qual cada indivíduo sabia estar ligado a todos os outros
que, naquele mesmo instante, ele imaginava entregues exactamente à mesma tarefa 20.
Não foi o cinema, nem a televisão, nem sequer o cinema doméstico que obliterou a
possibilidade de uma comunidade imaginada. Foi, num momento histórico muito mais
recente, a explosão interactiva da Internet e da televisão por cabo.
Sem uma cultura partilhada a ideia de história torna-se inoperativa: se nada é
apreendido senão individualmente, a relevância do colectivo torna-se difícil de entender.
Através da eliminação das ideias de cânone e de história, o YouTube parece anunciar
uma nova era de liberdade individual, não coarctada por quaisquer mediações
interpessoais, simbólicas, ou culturais. É nesse momento que surge, em toda a sua força,
o perigo de se ficar refém de um regime de visibilidade hegemónico, mas que parece
impossível de apreender enquanto tal. O modo de exibição atractivo e a interactividade
são instituídos pelo YouTube – e por muitos outros media contemporâneos – como
avanços democráticos, maneira de desmontar preventivamente quaisquer críticas que
lhes venham a ser dirigidas (actualmente, parece ser impossível criticar o YouTube sem
se ser acusado de criticar também a democratização do acesso às imagens em
movimento). Como é próprio de todas as construções ideológicas, a força hegemónica
do regime de visibilidade associado ao YouTube consiste na própria negação da sua
natureza ideológica e do seu carácter construído. Ele está no lugar das suas alternativas,
mas a sua força reside, mais do que na subordinação dessas alternativas, na eliminação
da própria ideia de alternativa. Se o deixarmos, o YouTube pode nem precisar de se dar
ao trabalho de reivindicar para si a precipitação do fim da história do cinema ou, mais
apocalipticamente ainda, o fim de outros regimes de visibilidade das imagens em
movimento para além do modo de exibição atractivo.
19 ANDERSON, Benedict, Imagined Communities. Reflections on the Origins and Spread of
Nationalism (Londres: Verso, 2003 [1983]).
20 Ibidem, 35.
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