O Noivado do Sepulcro-análise

Transcrição

O Noivado do Sepulcro-análise
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Análise de “O Noivado do Sepulcro”, de Soares de Passos
Gustavo Ramos de Souza
“O Noivado do Sepulcro”
(Soares de Passos)
Balada
Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
“Ó nunca, nunca!” de saudade infinita,
Responde um eco suspirando além... –
“Ó nunca, nunca!” repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.
Cobrem-lhe as formas divinais, airosas.
Longas roupagens de nevado cor;
Singela c'roa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
“Não, não perdeste meu amor jurado:
Vês este peito? reina a morte aqui...
É já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas ainda pulsa com amor por ti.
Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor:
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?
Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre os ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
“Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar,
Por que atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?
Saudosa ao longe vês no céu a lua?” –
“Ó vejo sim... recordação fatal” –
Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.
Amor! engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem dentre os vivos se lembrara ainda
Do pobre morto que na terra jaz?
Abandonado neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!
Ai quão pesada me tem sido!”e em meio
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
“Talvez que rindo dos protestos nossos,
Gozes com outro d'infernal prazer;
E o olvido cobrirá meus ossos
Na fria terra sem vingança ter!” –
Ó vem! se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso do teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!
E ao som dos pios co cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
Análise Interpretativa
Antônio Augusto Soares de Passos, ou simplesmente Soares de Passos, faz parte da segunda geração do
romantismo português, o ultra-romantismo, que foi influenciado, decisivamente, pela poesia pessimista e
sentimental do britânico Lord Byron. “O Noivado do Sepulcro”, poema mais célebre de Soares de Passos,
exemplifica, de acordo com Massaud Moisés, “à perfeição a psicologia que informava o Ultra-Romantismo”.
(MOISÉS, 1974, p. 281)
O poema, composto por dezenove quadras em versos decassílabos, conta, grosso modo, a história de um amor que
supera a morte, a partir de um casal de esqueletos, e a estrutura rítmica segue o esquema: A, B, A, B. As principais
características do ultra-romantismo encontram-se em “O Noivado do Sepulcro”.
O ambiente fantasmagórico, mágico, “negro”, funéreo, o exagerado tom melodramático que beira a pieguice, o
amor etéreo, idealizado, acima de todas as convenções sociais, e até mesmo, “espirituais”, haja vista o noivado
“além-túmulo”, a relação de amor e morte, não raro dotado de excessiva teatralidade, o ímpeto desmedido,
irracional, o anseio pelo infinito, a alienação, o clima noturno, os ideais transcendentais, tudo isto está presente
neste poema de Soares de Passos.
Na primeira estrofe, percebe-se o valor da morte como o remédio apaziguador do espírito, como a cura da alma, ou
seja, a valorização do ideal, em detrimento do mundo terreno, efêmero, corrompido pela sociedade burguesa e suas
convenções mesquinhas. Na segunda estrofe, insere-se o elemento fantástico a partir do fantasma que se levanta de
seu sepulcro.
O décimo verso, presente na terceira estrofe, apresenta uma contradição bem ao gosto dos poetas românticos:
“Campeia a lua com sinistra luz”. A importância do significado da noite no pensamento romântico é fato conhecido.
Em oposição às “luzes” do iluminismo, o romantismo faz questão de colocar a “noite”, isto é, o obscuro, o
irracional, como princípio de sua filosofia. De acordo com Albert Béguin, “De la múltiple y contradictoria herencia
del siglo XVIII, el romántico recoge de preferencia las afirmaciones irracionalistas o las tradiciones místicas”.
(BÉGUIN, 1993, p. 25) Por isso, a “sinistra luz” não se refere, unicamente, ao luar de uma noite macabra, mas
também, e, sobretudo, ao pensamento extremamente racionalista do iluminismo.
Na sexta, sétima e oitava estrofes, o discurso do eu - lírico é substituído pela personagem principal do poema, que é
o homem que, mesmo morto, continua a amar sua “namorada”, acreditando, porém, que ela não mais o ama. “Por
que atraiçoas, desleal, mentida,/ O amor eterno que te ouvi jurar?” As lamentações só cessam quando ele ouve o
eco da voz de sua amada, dizendo-lhe que nunca quebrara a promessa de amor eterno.
O trigésimo sétimo e o trigésimo oitavo versos, “Talvez que rindo dos protestos nossos,/ Gozes com outro
d’infernal prazer;”, revela o ciúme injustificado do amante em relação à sua amada e apresenta o ato sexual, ou
seja, a consumação carnal do amor idealizado, como algo impuro, devasso, em suma, “infernal”; por outro lado, a
expressão “protestos nossos” demonstra o espírito de revolta do romantismo, neste caso, lutar contra as convenções
sociais em nome de um amor que ultrapassa qualquer fronteira. Fica, portanto, subentendido que o casal enfrentou,
durante a vida, dificuldades frente à sociedade, e o amante quer que sua amada honre o seu juramento de fidelidade
depois de tantas agruras.
Nas estrofes 13 e 14, a mulher confirma a promessa de amor feita a ele, à luz do luar. A promessa de amor eterno do
casal está presente nos versos 59 e 60: “Foi à luz dela que jurei ser tua/ Durante a vida, e na mansão final.”
As quatro últimas estrofes narram o encontro do casal num só sepulcro, celebrando, por fim, a promessa de união
eterna: “(...) uma tumba funeral vazia. (...). Dois esqueletos, um ao outro unido,/ Foram achados num sepulcro só.”
Em suma, nem a morte foi capaz de vencer o amor. Nada poderia ser mais tipicamente romântico.
De acordo com Massaud Moisés:
“Hoje a balada e a tendência literária em que se inscreve, cheiram a coisas peremptas ou amarradas a uma tábua de
valores superados. Todavia, há que ter em conta a psicose ultra-romântica quando se pretende rastrear as origens de
alguns “ismos” modernos, como o Existencialismo ou, de certo modo, o Surrealismo.” (MOISÉS, 1974, p. 282)
Referências
BÉGUIN, Albert. El Alma Romántica y el Sueño: Ensayo sobre el romanticismo alemán y la poesía francesa. Trad.:
Mario Monteforte Toledo. Madrid: Fondo de Cultura Economica, 1993.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. 6ª edição, São Paulo: Cultrix, 1974.
Postado por Gustavo Ramos de Souza às 20:11
Extraído da internet:
http://reproduction-inderdite.blogspot.com.br/2009/12/analise-de-o-noivado-do-sepulcro-de.html

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