o multiculturalismo e a liberdade de crena anlise da tutela

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o multiculturalismo e a liberdade de crena anlise da tutela
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O MULTICULTURALISMO E A LIBERDADE DE CRENÇA: ANÁLISE DA
TUTELA PENAL E A PONDERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS NA CIRCUNCISÃO DE JUDEUS
Jeovane VIEIRA JÚNIOR, (Discente do curso de Direito UNITRI,
[email protected])
Thiago Ribeiro IBRAHIM, (Discente do curso de Direito UNITRI,
[email protected])
Mariana Mendonça RODRIGUES, (Discente do curso de Direito UNITRI,
[email protected])
Bruna Gabriela Tavres e AZEVEDO, (Discente do curso de Direito UNITRI,
[email protected])
Rafhaella Cardoso LANGONI, (Professora de Direito UNITRI,
[email protected]) )
RESUMO: A construção de um país multicultural se deu ao longo do
descobrimento e do processo de colonização do Brasil. Uma estrutura
composta por diferentes etnias e, sobretudo credos, se formou no decorrer dos
anos, constituindo a sociedade na qual estamos inseridos. Os atos normativos
vigentes garantem os direitos fundamentais individuais da pessoa humana,
protegendo a todos em seus dispositivos, independentemente de sua origem
ou cultura. A garantia constitucional à liberdade de crença dá respaldo às
práticas religiosas, que em vários momentos devido a sua diversidade, podem
apresentar choque de princípio com os demais direitos fundamentais
penalmente tutelados, como a vida ou a integridade física. Bens jurídicos
essenciais, protegidos de modo eficaz e legítimo através dos Direitos
Constitucional e Penal, que invocam ao princípio da adequação social como
meta critério na resolução de aparentes conflitos. A tutela penal de bens
jurídicos essenciais, sobretudo no que tange a liberdade de crença, é
recorrente em debates e congressos jurídicos. Objetiva-se identificar e
acompanhar o surgimento e o histórico de práticas religiosas conflitantes com
os bens jurídicos tutelados pelo Estado. Apurar sua evolução aos dias atuais e
a adequação pela própria sociedade em questão.
Palavras chaves: Multiculturalismo; Direito penal; Direitos fundamentais.
1. Introdução
O surgimento de uma sociedade multicultural, no Brasil, se inicia antes
mesmo de seu descobrimento. Segundo Gomes (2003, p.420) “Uma verdadeira
Babel de línguas e um caleidoscópio de culturas prevaleciam no vasto território
que haveria de se tornar o Brasil” (GOMES, 2003, p.420). Iniciada a expansão
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marítima portuguesa, em princípios do século XV, com a prevalência da
finalidade de se traçar novas rotas comerciais, constitui-se um dos episódios
dessa expansão, o descobrimento em 1500, da terra que inicialmente foi
chamada de Monte Pascoal, Terra de Vera Cruz, Santa Cruz e posteriormente
Brasil. Ainda, segundo Gomes, os primeiros anos de convívio foram intensos,
disputados, estreitos e informais. Além dos portugueses, os navios franceses
navegavam pela costa brasileira, e ademais de serem os principais
compradores de pau-brasil, comercializavam com os tupinambás. Não havia
para os europeus constrangimento por usar os índios como parceiros, a fim de,
arrancar-lhes lucro fácil, rápido e alto. Com o passar dos anos a prevalência de
forças imperou para os originários do “Velho Mundo”, mas especificamente os
portugueses, forçando os índios ao trabalho escravo, alienado e reduzindo-os a
aldeias.
Dando continuidade à construção do Brasil multicultural, além das
invasões e dominação holandesas no nordeste brasileiro na primeira metade
do século XVII, entre os séculos XVI e XIX imperou o comércio internacional de
escravos trazidos da costa africana. Segundo Boris Fausto (2006):
Os africanos foram trazidos do chamado "continente negro"
para o Brasil em um fluxo de intensidade variável. Os cálculos
sobre o número de pessoas transportadas como escravos
variam muito. Estima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos
portos brasileiros 4 milhões de escravos, na sua grande
maioria jovens do sexo masculino. (FAUSTO, 2006, p.24)
Com o crescimento da produtividade cafeeira no Oeste paulista, mesmo
após a aprovação em 1888 do projeto enviado ao Congresso pela Princesa
Isabel, com o fim imediato da escravidão, principal mão de obra desta cultura e
com o processo sólido de industrialização iniciado na década de 1880
especialmente no Rio e em São Paulo. Inicia-se a transição para o trabalho
livre do que antes era realizado pelo trabalho escravo, contribuindo com a
imigração para o Brasil, de povos em busca de melhores oportunidades. Como
já ocorria desde 1824 no sul do país com a chegada dos primeiros alemães.
Ao longo desses dois séculos, o Brasil tem recebido imigrantes
europeus, japoneses, chineses, coreanos, sírios, judeus e com menor
3
dimensão como os arménios, eslavos e demais povos, que por diversos
motivos se mudaram para este pais, se tornando peça fundamental na
composição de uma sociedade heterogênea e multicultural.
É inegável que através deste contexto histórico de composição do povo
brasileiro, não se faça necessário analisar, entender, avaliar e buscar mensurar
de que maneira esta infinidade de povos, com culturas e comportamentos tão
distintos, influenciaram no processo de criação das leis no que tange a garantia
aos Direitos Fundamentais com foco na preservação de um dos pilares de
expressão cultural, a liberdade de crença.
2. As Religiões no Brasil atual
Desde os primórdios, a experiência religiosa é uma das marcas mais
distintivas da humanidade, junto à capacidade de produzir cultura. Os registros
de dezenas de milhares de anos já retratavam a fé em deuses e cultos. O
Brasil em função da miscigenação cultural como resultado de vários processos
migratórios, se tornou palco para diversas religiões, sejam estas das fés cristã,
judaica, islâmica, afro-brasileira, budista, espiritualista e outras.
Segundo os dados do IBGE1 no Censo 20102 sobre religião, os Cristãos
são 86,8% do Brasil, compostos por 64,4% de Católicos e 22,2% de
Evangélicos. Já os Espíritas representam 2,0% da população, que ainda se
constitui por 3,0% que se declaram de outras religiões, 8,0% sem religião e
0,1% que não sabem ou não declararam.
A parcela que se declara de outras religiões é retratada pela sua
heterogenia. Na análise do ranking dos grupos de religiões que compõem este
critério, a maior expressividade vem dos Testemunhas de
Jeová com
1.393.208 integrantes. Seguidos pela Umbanda e Candomblé que juntas
possuem 574.694 adeptos. As demais religiões de maior dimensão mundial
também têm seus representantes no Brasil, o Hinduísmo aqui é o menor grupo
1
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e estatística.
Dados constantes do: BRASIL. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo
2010.
Disponível
em:
<ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Defici
encia/tab1_4.pdf> Acesso em 08/06/2014
2
4
com 5.675 integrantes, o Islamismo possui 35.167, o Judaísmo 107.329 e o
Budismo com 243.966 adeptos3.
Em um país que desde 1891 através da Constituição Republicana
deixou de ser um Estado Confessional e se tornou um Estado Laico, é de
fundamental importância que se pesquise a respeito de qual amparo legal é
dado a esta sociedade multicultural, seja no que tange ao respaldo pelos
Direitos Fundamentais ou pelo tutelado no âmbito do Direito Penal. Como a
aplicabilidade da lei se dá nos dias de hoje, novos direcionamentos e
tendências jurisprudenciais devem ser observados e analisados para que a
problemática relacionada à liberdade de crença em uma sociedade multicultural
possa
ser
acompanhada
e
compreendida
com
vistas
aos
amparos
Constitucional e Penal.
Uma vez que o Brasil é composto por uma infinidade de credos e
práticas religiosas, que apenas refletem o seu processo histórico de
composição, se torna imenso o rol de questões religiosas para os quais os
traços de humanidade trazem implicação. A circuncisão dos judeus representa
apenas alguns, entre os mais diversos comportamentos sociais dos indivíduos
ou dos grupos religiosos que podem ser abordados. O que impera e qual a
tratativa do Estado para questões como a supracitada? A garantia
constitucional à liberdade de crença confrontada com outros bens jurídicos
também tutelados pelo Estado como o direito a vida e ao corpo, que é
indisponível dizendo respeito à própria integridade física do individuo compõem
um dos aspectos de maior relevância desta problemática para a qual se
objetiva apresentar os embasamentos, os potenciais conflitos, as tomadas de
decisão e bem como a repercussão nesta mesma sociedade multicultural na
qual se está inserido.
3. A Circuncisão dos Judeus
Uma das tradições judaicas mais conhecidas ao redor do mundo é o Brit
Milá, ou seja, a circuncisão de todo menino judeu. No dicionário Mitología
3
Informações extraídas de: BRASIL. Censo: o perfil religioso do país. Disponível em:<
http://oglobo.globo.com/infograficos/censo-religiao/>. Acesso em 08/06/2014
5
Universal a palabra Circuncisão está definida como: “Ceremonia religiosa entre
los judios y los mahometanos que consiste en cortar el prepucio de los niños
que deben profesar un u otra de éstas religiones” (NOEL, 1991, p.318). A
origem desse ritual remonta a Idade da Pedra e ao patriarca Avraham, que por
ordem divina circuncidou a si mesmo aos 99 anos de idade e também a todos
de sua casa. Ainda de acordo com o contexto histórico, o primeiro filho de
Avraham, Yishmael, fez o Brit Milá aos 13 anos, e considera-se sua aceitação
limitada a razão, devido ao fato de que estava capacitado a compreender este
mandamento (DURANT, 1954, p.328-339). Por outro lado, Yitschac, foi
circuncidado com apenas oito dias, um bebê ainda sem o desenvolvimento
intelectual, pois nasceu um ano após ter sido ordenado a Avraham a realização
do Brit Milá. A fundamentação bíblica dessa tradição encontra-se No livro do
Gênesis, capítulo 17, versículo 10-14.
Esta é a minha aliança que devereis observar [...]: todo varão
entre vós deverá ser circuncidado. Circuncidareis a carne do
prepúcio: esse será o sinal da aliança entre mim e vós. No
oitavo dia do nascimento serão circuncidados todos os
meninos de cada geração, mesmo os filhos dos escravos [...].
O incircunciso, porém, aquele que não circuncidar a carne de
seu prepúcio, seja eliminado do povo, porque violou minha
aliança (GÊNESIS, 17, 10-14).4
Segundo a Lei Judaica, a Halachá, todo judeu deverá circuncidar seu
filho ao oitavo dia subsequente ao seu nascimento, momento no qual a
faculdade da razão não está ainda desenvolvida na criança e de forma que ela
estará comprometida e ligada a D’us (Deus) o mais cedo possível. A Torá
aponta o pai como responsável para circuncidar seu filho, e sendo este capaz
de realiza-la, não lhe é permitido que delegue a função a outra pessoa. Porém
a maioria dos pais não está qualificada para executar tal ato, de modo que
geralmente é realizado por um homem temente a D’us (Deus) e conforme as
leis da Torá, versado na prática da circuncisão e cumpridor dos preceitos
judaicos, conhecido como um Mohel (MESQUITA, 1992, p.318). Cabe a ele a
decisão quanto a aptidão física da criança a ser ou não circuncidada no tempo
prescrito, levando em conta questões como estar abaixo do peso mínimo
4
GÊNESIS. In: Bíblia Apologética de Estudo. Jundiaí: ICP, 2010
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exigido, estar com icterícia ou algum outro problema, sendo nestes casos o Brit
Milá adiado e deverá ser realizado na primeira oportunidade.
A circuncisão consiste na excisão do prepúcio, que é a parte da pele
que recobre o órgão masculino e se prolonga revestindo a glande, não sendo
composto de grandes vasos sanguíneos, de modo que sua retirada não gera
hemorragias, com exceção a falta de perícia ou utilização inadequada de
instrumentação cirúrgica.
Durante o ritual de circuncisão a pessoa que segura a criança
juntamente com o Mohel é o Sandek (o padrinho), sendo este, alguém que
possui grande estima pela família ou pela comunidade. A criança é trazida para
o aposento do Brit Milá por um casal de noivos ou casados que cumprem o
papel de Kvater (padrinhos), no qual a mulher retira a criança dos braços da
mãe e a entrega ao homem que a leva para o aposento colocando-a sobre a
cadeira reservada ao Profeta Eliyáhu. O pai coloca o bebê em uma almofada
no colo do padrinho e o Mohel remove as roupas expõe a genital e instrui
ao Sandek sobre como segurar as pernas da criança.
Para o ato em si, o Mohel segura o prepúcio entre o indicador e o
polegar da mão esquerda, exercendo tração suficiente para afastá-lo da glande
e colocado um escudo em uma posição logo à frente da glande. Pega-se o
bisturi, ou a faca, e em um só movimento excisa o prepúcio, este primeiro ritual
é chamado de Riturch. Seguido pelo Periá, momento no qual o Mohel segura
entre a unha do dedão e o dedo indicador de cada mão o revestimento interno
do prepúcio, que ainda cobre a glande e rasga-o até que possa desdobrar por
sobre a glande, deixando-a exposta. O Mohel geralmente mantém sua unha
devidamente preparada para esta finalidade (BALANCINI, 1987).
Até o início do século XX a Metzitzá, a terceira parte do ritual, era
executada pelo Mohel colocando um pouco de vinho na boca e exercendo
sucção aplicando seus lábios à parte envolvida na operação e expelindo em
seguida a mistura de sangue e vinho em um recipiente especial. Este ato era
repetido várias vezes e completava a operação. Na modernidade usam-se os
remédios para o controle do sangramento, como os adstringentes e
antissépticos. por meio de pequenos pedaços circulares de gaze com aberturas
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no centro, nos quais a glande é colocada, e atados a parte inferior do órgão.
Coloca-se uma fralda e a operação está terminada. Outros dois homens
poderão cumprir papeis de honras especiais, um de segurar a criança
enquanto o outro recita a benção e a prece especial, e em seguida o nome
judaico da criança é anunciado a todos.
Atualmente, em algumas cerimônias do Brit Milá a criança recebe uma
pequena anestesia, porém, classicamente é feita sem esta utilização. A
circuncisão geralmente não gera traumas, são raros os acidentes, pois, é
executada por pessoas que aprenderam através de outros a técnica necessária
e desenvolveram a perícia na prática e a criança rapidamente se recupera
(SANABRIA, 1986). Os homens adultos que desejem se converter ao judaísmo
deverão executar a circuncisão imediatamente à aceitação na comunidade
judaica. Essa circuncisão se torna um processo mais complexo de forma que o
Mohel deverá ser um cirurgião autorizado, ou um cirurgião, que realizará a
circuncisão, deve estar acompanhado pelo Mohel.
Para os casos de homens já circuncidados, tira-se uma gota de sangue
da pele do pênis fazendo-se uma referencia simbólica a circuncisão, ato
chamado já cultura judaica de Hatafat Dam Brit. Tanto para o pai, quanto para
o Mohel, para o Sandak e a todos os envolvidos, o dia do Brit Milá é visto como
uma festa, um momento no qual o menino se identifica como judeu logo no
início de sua vida, permanecendo ligado à sua fonte por toda ela. Segundo a
Bíblia, a circuncisão estabelece a identificação visível, selada na carne, entre
os filhos de Abraão e Deus Todo-Poderoso e Único(LAURINI, 1974, p.53).
O judaísmo defende este ritual como um sinal de pacto perpétuo, não
podendo nunca ser abolido. De modo que, quando em diversas situações
outros povos buscaram obrigar aos judeus a não seguir esta prática,
desencadeou-se uma resistência a esta abolição, elevando o Brit Milá a um
evento de grande significado e importância no que tange ao "ser judeu". A
retirada do prepúcio praticada por razões religiosas representa um ritual
sagrado, um pacto perpétuo de aliança, significando um ato de fé superior à
lógica dado o fato de ser realizado sem a consciência da criança.
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4. A Liberdade De Crença Como Direito Fundamental
Tanto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no
Bill of Rights (Declaração dos Direitos dos Cidadãos) de 1776, quanto na
Declaração Universal de Direito Humanos, no Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos da ONU, e ainda, no Pacto de São José da Costa Rica, da
OEA, são unânimes em proteger a liberdade religiosa, tendo garantido o direito
de conservar sua religião ou crença, ou de mudá-la, bem como de professá-la
coletiva ou individualmente, seja no ambiente privado ou público. Sobre a
liberdade de pensamento, conceito intrinsicamente relacionado a exteriorização
da crença religiosa dos indivíduos, Karam (2009, p.3) alega que “Tendo esse
âmbito de liberdade, o indivíduo não pode ser forçado a ser comportar de uma
ou outra forma, nem pode ser forçado a mudar seu comportamento ou suas
opiniões sobre o que quer que seja”(KARAM, 2009, p.3)
Na história do Brasil, a Constituição Política do Império de 1824
assegurava em seu Art. 5º:
A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a
Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão
permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas
para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.
(BRASIL, 1824)
A partir de 1891 através da primeira Constituição da República
estabeleceu-se a separação entre a Igreja e o Estado buscando uma natureza
laica. A criação paralelamente da certidão de nascimento, do casamento civil e
do atestado de óbito afastava os membros do clero católico destas funções
públicas. Apresentava-se deste modo o surgimento da liberdade religiosa no
país e autorizando o indivíduo a escolher ou não uma religião, como previa o
artigo 72 do referido Texto Constitucional (BRASIL, 1988).
Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à
liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes: (...)
9
§ 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem
exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para
esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do
direito comum. (...)
§ 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem
terá relações de dependência ou aliança com o Governo da
União ou dos Estados. (BRASIL, 1891)
O Constituinte em 1988 reconheceu que o Estado deve-se preocupar em
proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa. Na
vigente Constituição Federal consagra-se no Inciso VI, do Art. 5º, “é inviolável a
liberdade de crença, sendo garantido o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”
(BRASIL, 1988). Pese o destaque e a proteção assegurados, ademais os
dispositivos constitucionais: Art. 5º, VII; Art. 19, I; Art. 150, VI, “b”; Art. 210; Art.
213 e Art. 226,§ 2º, disciplinam a respeito da liberdade religiosa, no Brasil.
Ainda, no que tange ao inciso VI do artigo 5º, deve-se ressalvar, sem
maiores dificuldades de interpretação, que essa proteção aos locais de culto e
suas liturgias terá limites para não destoar do sistema constitucional e tão
pouco infirmar sanção decorrente da prática de ato ilegal na liturgia religiosa,
de modo que a lei penal não afronta a inviolabilidade do livre exercício do culto
religioso quando expressa proteção aos bens jurídicos essenciais tutelados
pelo Estado.
5. O Bem Jurídico penalmente tutelado
O Direito Penal tem como função indispensável a proteção de bens
jurídicos essenciais, protegendo de modo legítimo e eficaz os bens jurídicos
fundamentais do indivíduo e da sociedade. De acordo com Prado (1997, p.18)
“o bem jurídico em sentido amplo é tudo aquilo que tem valor para o seu
humano”. Para Toledo (1994, p.15) “Bem em um sentido mais amplo, é tudo
aquilo que nos apresenta como digno, útil, necessário valioso [...] Os bens são,
pois, coisas reais, ou objeto ideal dotado de valor”. Segundo Roxin (2006, p.1819),
Podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais
dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre,
que garanta a todos os direitos humanos e civis de cada um na
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sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que
se baseia nestes objetivos.
Conceitos complementados pelas ideias de Teles (2004, p.46) “são bens
jurídicos a vida, a liberdade, a propriedade, o casamento, a família, a honra, a
saúde, enfim, todos os valores importantes para a sociedade” e de Toledo
(1994, p.16) “bens jurídicos são valores éticos sociais que o Direito seleciona,
com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob a sua proteção para que
não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”.
Através da busca por conferir meios pacíficos para o desenvolvimento
social, cria-se tipos penais incriminadores, prevendo a aplicabilidade de
sanções penais a aqueles que, por seus atos, causem lesão ou exponham a
risco concreto de lesão os bens jurídicos penalmente tutelados. O mais antigo
rito da religião judaica, símbolo exterior que liga o menino a sua fé, pode ser
interpretado como o exercício ilegal da medicina? Caracteriza-se como lesão
corporal?
A liberdade de religião é hoje garantida em todos os regimes
democráticos, sendo o fundamento da convivência moderna. O que deve ser
analisado na contextualização de uma sociedade pluricultural é a demanda de
sensibilidade em face aos diferentes valores das subculturas autônomas ao
ponderar princípios jurídicos, como a liberdade religiosa e a integridade física.
Poder-se-ia postergar a realização da circuncisão a uma livre escolha na
vida adulta, de modo que não haveria prejuízo físico. Esta mesma
argumentação também se faz valer para o batismo das crianças e uma série de
medidas educativas dos pais que poderiam ser consideradas irreversíveis, não
fisicamente, mas, psicologicamente. Entretanto, da mesma maneira que uma
criança não batizada, ainda não é considerada cristã, o judeu não circuncidado,
segundo as suas próprias crenças, não é considerado judeu.
As visões individuais sobre a veracidade de suas crenças não
representam valores universais. Proibições relacionadas às práticas de sua fé
ofenderiam
a
dignidade
humana
defendida
por
Constituições,
não
considerando deste modo a dignidade humana dos pais que alicerçam seus
atos em uma sociedade secular, na qual encontram em seus ritos tradicionais,
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elementos de continuidade histórica. Evidentemente que toda a razão secular
não deve ser imposta como juíza de verdades e ofensoras aos direitos
fundamentais individuais. Porém ao se impedir ou criminalizar o rito do Brit
Milá, em face da integridade física da criança, impedir-se-ia sua introdução à
cultura religiosa que lhe confere identidade, pertencimento e coesão social.
Logo, todos os demais ritos de iniciação ou passagem, componentes
fundamentais de diversas culturas, também deveriam ser observados sob uma
nova ótica e repensados, como no caso dos povos indígenas que incluem
duras e sangrentas provas de coragem. Tais proibições não contribuiriam para
salvar direitos individuais, mais findariam com a identidade do respetivo povo.
No que tange ao tipo penal descrito no caput do artigo 282, do Código
Penal em vigor, “Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico,
dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites”.
Reprime-se a prática profissional por pessoa sem a devida habilitação médica
e diplomação correspondente, como ocorre no caso do Mohel ao realizar o Brit
Milah. Para a caracterização do crime de exercício ilegal da medicina, também
se faz necessária a habitualidade na prática, sendo insuficiente qualquer ato
isolado que corresponda à atividade profissional. Sem a comprovação da
habitualidade, não se falaria em delito. Ainda, sobre tipo subjetivo, o dolo do
crime previsto no art. 282 é a vontade de exercer ilegalmente a profissão
médica ou de exceder os limites que para ela são prefixados na lei, mesmo que
gratuitamente. A finalidade do lucro qualifica o crime, aplicando-se a multa,
além da pena aflitiva.
Ainda a respeito do caso da circuncisão o Conselho Regional de
Medicina do Estado de São Paulo, através do Parecer de número 1.362-08/82
dispõe que: “A circuncisão é ato médico e como tal é reconhecido pela
Organização Mundial de Saúde, não devendo ser praticado por outro
profissional que não é médico.” 5
5
Conforme: BRASIL. CREMESP. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
Disponível
em:
<http://www.cremesp.com/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=3624&tipo=PARECER&org
ao=Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o%20Paulo
&numero=1362&situacao=&data=00-00-1982>. Acesso em 09/09/2014.
12
Por sua inconteste relevância e complexidade, objetiva-se ademais dos
temas anteriormente elencados, avaliar o conteúdo proposto sob o prisma do
princípio da adequação social em face aos Direitos Fundamentais, no que
tange à liberdade de crença com ponderação do bem jurídico em questão pela
tutela penal.
5.1 O princípio da adequação social: ponderação da tutela penal
Condutas formalmente típicas, ou seja, que encontram-se descritas,
subsumidas num tipo penal, quando socialmente aceitas e que não atentem
contra a Constituição Federal, são materialmente atípicas, pois estão em
consonância com a ordem social, ou seja, amparadas pela aceitação social.
A partir de Hans Welzel este instrumento de interpretação das leis em
modo geral, que vai além do Direito penal, preconiza que não se pode reputar
criminosa uma conduta tolerada pela uma sociedade, seja pelos costumes,
folclore ou cultura, ainda que se enquadre em uma descrição penal.
Evidentemente que este não é um princípio estático, da mesma forma
que a própria sociedade também não é, de forma que condutas que no
passado foram entendidas como atípicas poderão deixar de ser toleradas, da
mesma forma que condutas compreendidas como típicas com o passar dos
anos poderão ser introjetadas a esta sociedade.
A circuncisão dos judeus é uma das condutas típicas consideradas
através do princípio da adequação social. Apesar de sempre provocar
acaloradas discussões concernentes à liberdade religiosa versus a integridade
corporal, esta prática secular não é notada como criminosa pela população na
qual está inserida.
6. Conclusão
Conclui-se que, os aspectos legais respaldados através dos Conselhos
Regionais de Medicina, não deixam dúvidas quanto à prática do Brit Milá, qual
seja, a circuncisão do judeu em seu oitavo dia de vida, ser praticado por Mohel
possuidor de habilitação médica.
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Ao analisar a relação existente entre o disposto no Inciso VI, Art. 5º da
Constituição Federal de 1988, a ‘Liberdade de Crença’ e se há violações
respaldadas por este dispositivo, realizando a ponderação com vistas à tutela
penal através do Decreto-Lei N. 2.848/40 – Código Penal, e qual sua eficiência.
Conclui-se que os atos relacionados à liberdade de crença e aos locais de culto
e suas liturgias ao se ponderar quanto a utilização do princípio da adequação
social e seus reflexos na realidade, se tornam aceitos pela sociedade.
Observa-se que a conquista na modernidade da garantia da autonomia
cultural no Estado pluricultural, tolerando as diferentes culturas e religiões e
reconhecendo-as como sujeitos coletivos de direitos humanos e assegurandolhes as garantias constitucionais estabelecidas na Carta Magna que servem
para a concepção de um Estado que defende a coesão social, buscada pelos
indivíduos também em suas religiões.
7. Referências Bibliográficas
BALANCIN, E. et all. Guia aos mapas da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1987
BRASIL. Censo: o perfil religioso do país. Disponível em:<
http://oglobo.globo.com/infograficos/censo-religiao/>. Acesso em 08/06/2014
BRASIL. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010.
Disponível em:
<ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais
_Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf> Acesso em 08/06/2014
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em
09/09/2014
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Disponível em:
<http://www.cremesp.com/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=3624&tipo=
PARECER&orgao=Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Esta
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Acesso em 09/09/2014.
BRASIL. Poder Legislativo. Constituição da Republica dos Estados Unidos
do Brasil. 1891. Disponível em:
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14
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1988. Disponível em:
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