o multiculturalismo e a liberdade de crena anlise da tutela
Transcrição
o multiculturalismo e a liberdade de crena anlise da tutela
1 O MULTICULTURALISMO E A LIBERDADE DE CRENÇA: ANÁLISE DA TUTELA PENAL E A PONDERAÇÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CIRCUNCISÃO DE JUDEUS Jeovane VIEIRA JÚNIOR, (Discente do curso de Direito UNITRI, [email protected]) Thiago Ribeiro IBRAHIM, (Discente do curso de Direito UNITRI, [email protected]) Mariana Mendonça RODRIGUES, (Discente do curso de Direito UNITRI, [email protected]) Bruna Gabriela Tavres e AZEVEDO, (Discente do curso de Direito UNITRI, [email protected]) Rafhaella Cardoso LANGONI, (Professora de Direito UNITRI, [email protected]) ) RESUMO: A construção de um país multicultural se deu ao longo do descobrimento e do processo de colonização do Brasil. Uma estrutura composta por diferentes etnias e, sobretudo credos, se formou no decorrer dos anos, constituindo a sociedade na qual estamos inseridos. Os atos normativos vigentes garantem os direitos fundamentais individuais da pessoa humana, protegendo a todos em seus dispositivos, independentemente de sua origem ou cultura. A garantia constitucional à liberdade de crença dá respaldo às práticas religiosas, que em vários momentos devido a sua diversidade, podem apresentar choque de princípio com os demais direitos fundamentais penalmente tutelados, como a vida ou a integridade física. Bens jurídicos essenciais, protegidos de modo eficaz e legítimo através dos Direitos Constitucional e Penal, que invocam ao princípio da adequação social como meta critério na resolução de aparentes conflitos. A tutela penal de bens jurídicos essenciais, sobretudo no que tange a liberdade de crença, é recorrente em debates e congressos jurídicos. Objetiva-se identificar e acompanhar o surgimento e o histórico de práticas religiosas conflitantes com os bens jurídicos tutelados pelo Estado. Apurar sua evolução aos dias atuais e a adequação pela própria sociedade em questão. Palavras chaves: Multiculturalismo; Direito penal; Direitos fundamentais. 1. Introdução O surgimento de uma sociedade multicultural, no Brasil, se inicia antes mesmo de seu descobrimento. Segundo Gomes (2003, p.420) “Uma verdadeira Babel de línguas e um caleidoscópio de culturas prevaleciam no vasto território que haveria de se tornar o Brasil” (GOMES, 2003, p.420). Iniciada a expansão 2 marítima portuguesa, em princípios do século XV, com a prevalência da finalidade de se traçar novas rotas comerciais, constitui-se um dos episódios dessa expansão, o descobrimento em 1500, da terra que inicialmente foi chamada de Monte Pascoal, Terra de Vera Cruz, Santa Cruz e posteriormente Brasil. Ainda, segundo Gomes, os primeiros anos de convívio foram intensos, disputados, estreitos e informais. Além dos portugueses, os navios franceses navegavam pela costa brasileira, e ademais de serem os principais compradores de pau-brasil, comercializavam com os tupinambás. Não havia para os europeus constrangimento por usar os índios como parceiros, a fim de, arrancar-lhes lucro fácil, rápido e alto. Com o passar dos anos a prevalência de forças imperou para os originários do “Velho Mundo”, mas especificamente os portugueses, forçando os índios ao trabalho escravo, alienado e reduzindo-os a aldeias. Dando continuidade à construção do Brasil multicultural, além das invasões e dominação holandesas no nordeste brasileiro na primeira metade do século XVII, entre os séculos XVI e XIX imperou o comércio internacional de escravos trazidos da costa africana. Segundo Boris Fausto (2006): Os africanos foram trazidos do chamado "continente negro" para o Brasil em um fluxo de intensidade variável. Os cálculos sobre o número de pessoas transportadas como escravos variam muito. Estima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos, na sua grande maioria jovens do sexo masculino. (FAUSTO, 2006, p.24) Com o crescimento da produtividade cafeeira no Oeste paulista, mesmo após a aprovação em 1888 do projeto enviado ao Congresso pela Princesa Isabel, com o fim imediato da escravidão, principal mão de obra desta cultura e com o processo sólido de industrialização iniciado na década de 1880 especialmente no Rio e em São Paulo. Inicia-se a transição para o trabalho livre do que antes era realizado pelo trabalho escravo, contribuindo com a imigração para o Brasil, de povos em busca de melhores oportunidades. Como já ocorria desde 1824 no sul do país com a chegada dos primeiros alemães. Ao longo desses dois séculos, o Brasil tem recebido imigrantes europeus, japoneses, chineses, coreanos, sírios, judeus e com menor 3 dimensão como os arménios, eslavos e demais povos, que por diversos motivos se mudaram para este pais, se tornando peça fundamental na composição de uma sociedade heterogênea e multicultural. É inegável que através deste contexto histórico de composição do povo brasileiro, não se faça necessário analisar, entender, avaliar e buscar mensurar de que maneira esta infinidade de povos, com culturas e comportamentos tão distintos, influenciaram no processo de criação das leis no que tange a garantia aos Direitos Fundamentais com foco na preservação de um dos pilares de expressão cultural, a liberdade de crença. 2. As Religiões no Brasil atual Desde os primórdios, a experiência religiosa é uma das marcas mais distintivas da humanidade, junto à capacidade de produzir cultura. Os registros de dezenas de milhares de anos já retratavam a fé em deuses e cultos. O Brasil em função da miscigenação cultural como resultado de vários processos migratórios, se tornou palco para diversas religiões, sejam estas das fés cristã, judaica, islâmica, afro-brasileira, budista, espiritualista e outras. Segundo os dados do IBGE1 no Censo 20102 sobre religião, os Cristãos são 86,8% do Brasil, compostos por 64,4% de Católicos e 22,2% de Evangélicos. Já os Espíritas representam 2,0% da população, que ainda se constitui por 3,0% que se declaram de outras religiões, 8,0% sem religião e 0,1% que não sabem ou não declararam. A parcela que se declara de outras religiões é retratada pela sua heterogenia. Na análise do ranking dos grupos de religiões que compõem este critério, a maior expressividade vem dos Testemunhas de Jeová com 1.393.208 integrantes. Seguidos pela Umbanda e Candomblé que juntas possuem 574.694 adeptos. As demais religiões de maior dimensão mundial também têm seus representantes no Brasil, o Hinduísmo aqui é o menor grupo 1 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e estatística. Dados constantes do: BRASIL. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Defici encia/tab1_4.pdf> Acesso em 08/06/2014 2 4 com 5.675 integrantes, o Islamismo possui 35.167, o Judaísmo 107.329 e o Budismo com 243.966 adeptos3. Em um país que desde 1891 através da Constituição Republicana deixou de ser um Estado Confessional e se tornou um Estado Laico, é de fundamental importância que se pesquise a respeito de qual amparo legal é dado a esta sociedade multicultural, seja no que tange ao respaldo pelos Direitos Fundamentais ou pelo tutelado no âmbito do Direito Penal. Como a aplicabilidade da lei se dá nos dias de hoje, novos direcionamentos e tendências jurisprudenciais devem ser observados e analisados para que a problemática relacionada à liberdade de crença em uma sociedade multicultural possa ser acompanhada e compreendida com vistas aos amparos Constitucional e Penal. Uma vez que o Brasil é composto por uma infinidade de credos e práticas religiosas, que apenas refletem o seu processo histórico de composição, se torna imenso o rol de questões religiosas para os quais os traços de humanidade trazem implicação. A circuncisão dos judeus representa apenas alguns, entre os mais diversos comportamentos sociais dos indivíduos ou dos grupos religiosos que podem ser abordados. O que impera e qual a tratativa do Estado para questões como a supracitada? A garantia constitucional à liberdade de crença confrontada com outros bens jurídicos também tutelados pelo Estado como o direito a vida e ao corpo, que é indisponível dizendo respeito à própria integridade física do individuo compõem um dos aspectos de maior relevância desta problemática para a qual se objetiva apresentar os embasamentos, os potenciais conflitos, as tomadas de decisão e bem como a repercussão nesta mesma sociedade multicultural na qual se está inserido. 3. A Circuncisão dos Judeus Uma das tradições judaicas mais conhecidas ao redor do mundo é o Brit Milá, ou seja, a circuncisão de todo menino judeu. No dicionário Mitología 3 Informações extraídas de: BRASIL. Censo: o perfil religioso do país. Disponível em:< http://oglobo.globo.com/infograficos/censo-religiao/>. Acesso em 08/06/2014 5 Universal a palabra Circuncisão está definida como: “Ceremonia religiosa entre los judios y los mahometanos que consiste en cortar el prepucio de los niños que deben profesar un u otra de éstas religiones” (NOEL, 1991, p.318). A origem desse ritual remonta a Idade da Pedra e ao patriarca Avraham, que por ordem divina circuncidou a si mesmo aos 99 anos de idade e também a todos de sua casa. Ainda de acordo com o contexto histórico, o primeiro filho de Avraham, Yishmael, fez o Brit Milá aos 13 anos, e considera-se sua aceitação limitada a razão, devido ao fato de que estava capacitado a compreender este mandamento (DURANT, 1954, p.328-339). Por outro lado, Yitschac, foi circuncidado com apenas oito dias, um bebê ainda sem o desenvolvimento intelectual, pois nasceu um ano após ter sido ordenado a Avraham a realização do Brit Milá. A fundamentação bíblica dessa tradição encontra-se No livro do Gênesis, capítulo 17, versículo 10-14. Esta é a minha aliança que devereis observar [...]: todo varão entre vós deverá ser circuncidado. Circuncidareis a carne do prepúcio: esse será o sinal da aliança entre mim e vós. No oitavo dia do nascimento serão circuncidados todos os meninos de cada geração, mesmo os filhos dos escravos [...]. O incircunciso, porém, aquele que não circuncidar a carne de seu prepúcio, seja eliminado do povo, porque violou minha aliança (GÊNESIS, 17, 10-14).4 Segundo a Lei Judaica, a Halachá, todo judeu deverá circuncidar seu filho ao oitavo dia subsequente ao seu nascimento, momento no qual a faculdade da razão não está ainda desenvolvida na criança e de forma que ela estará comprometida e ligada a D’us (Deus) o mais cedo possível. A Torá aponta o pai como responsável para circuncidar seu filho, e sendo este capaz de realiza-la, não lhe é permitido que delegue a função a outra pessoa. Porém a maioria dos pais não está qualificada para executar tal ato, de modo que geralmente é realizado por um homem temente a D’us (Deus) e conforme as leis da Torá, versado na prática da circuncisão e cumpridor dos preceitos judaicos, conhecido como um Mohel (MESQUITA, 1992, p.318). Cabe a ele a decisão quanto a aptidão física da criança a ser ou não circuncidada no tempo prescrito, levando em conta questões como estar abaixo do peso mínimo 4 GÊNESIS. In: Bíblia Apologética de Estudo. Jundiaí: ICP, 2010 6 exigido, estar com icterícia ou algum outro problema, sendo nestes casos o Brit Milá adiado e deverá ser realizado na primeira oportunidade. A circuncisão consiste na excisão do prepúcio, que é a parte da pele que recobre o órgão masculino e se prolonga revestindo a glande, não sendo composto de grandes vasos sanguíneos, de modo que sua retirada não gera hemorragias, com exceção a falta de perícia ou utilização inadequada de instrumentação cirúrgica. Durante o ritual de circuncisão a pessoa que segura a criança juntamente com o Mohel é o Sandek (o padrinho), sendo este, alguém que possui grande estima pela família ou pela comunidade. A criança é trazida para o aposento do Brit Milá por um casal de noivos ou casados que cumprem o papel de Kvater (padrinhos), no qual a mulher retira a criança dos braços da mãe e a entrega ao homem que a leva para o aposento colocando-a sobre a cadeira reservada ao Profeta Eliyáhu. O pai coloca o bebê em uma almofada no colo do padrinho e o Mohel remove as roupas expõe a genital e instrui ao Sandek sobre como segurar as pernas da criança. Para o ato em si, o Mohel segura o prepúcio entre o indicador e o polegar da mão esquerda, exercendo tração suficiente para afastá-lo da glande e colocado um escudo em uma posição logo à frente da glande. Pega-se o bisturi, ou a faca, e em um só movimento excisa o prepúcio, este primeiro ritual é chamado de Riturch. Seguido pelo Periá, momento no qual o Mohel segura entre a unha do dedão e o dedo indicador de cada mão o revestimento interno do prepúcio, que ainda cobre a glande e rasga-o até que possa desdobrar por sobre a glande, deixando-a exposta. O Mohel geralmente mantém sua unha devidamente preparada para esta finalidade (BALANCINI, 1987). Até o início do século XX a Metzitzá, a terceira parte do ritual, era executada pelo Mohel colocando um pouco de vinho na boca e exercendo sucção aplicando seus lábios à parte envolvida na operação e expelindo em seguida a mistura de sangue e vinho em um recipiente especial. Este ato era repetido várias vezes e completava a operação. Na modernidade usam-se os remédios para o controle do sangramento, como os adstringentes e antissépticos. por meio de pequenos pedaços circulares de gaze com aberturas 7 no centro, nos quais a glande é colocada, e atados a parte inferior do órgão. Coloca-se uma fralda e a operação está terminada. Outros dois homens poderão cumprir papeis de honras especiais, um de segurar a criança enquanto o outro recita a benção e a prece especial, e em seguida o nome judaico da criança é anunciado a todos. Atualmente, em algumas cerimônias do Brit Milá a criança recebe uma pequena anestesia, porém, classicamente é feita sem esta utilização. A circuncisão geralmente não gera traumas, são raros os acidentes, pois, é executada por pessoas que aprenderam através de outros a técnica necessária e desenvolveram a perícia na prática e a criança rapidamente se recupera (SANABRIA, 1986). Os homens adultos que desejem se converter ao judaísmo deverão executar a circuncisão imediatamente à aceitação na comunidade judaica. Essa circuncisão se torna um processo mais complexo de forma que o Mohel deverá ser um cirurgião autorizado, ou um cirurgião, que realizará a circuncisão, deve estar acompanhado pelo Mohel. Para os casos de homens já circuncidados, tira-se uma gota de sangue da pele do pênis fazendo-se uma referencia simbólica a circuncisão, ato chamado já cultura judaica de Hatafat Dam Brit. Tanto para o pai, quanto para o Mohel, para o Sandak e a todos os envolvidos, o dia do Brit Milá é visto como uma festa, um momento no qual o menino se identifica como judeu logo no início de sua vida, permanecendo ligado à sua fonte por toda ela. Segundo a Bíblia, a circuncisão estabelece a identificação visível, selada na carne, entre os filhos de Abraão e Deus Todo-Poderoso e Único(LAURINI, 1974, p.53). O judaísmo defende este ritual como um sinal de pacto perpétuo, não podendo nunca ser abolido. De modo que, quando em diversas situações outros povos buscaram obrigar aos judeus a não seguir esta prática, desencadeou-se uma resistência a esta abolição, elevando o Brit Milá a um evento de grande significado e importância no que tange ao "ser judeu". A retirada do prepúcio praticada por razões religiosas representa um ritual sagrado, um pacto perpétuo de aliança, significando um ato de fé superior à lógica dado o fato de ser realizado sem a consciência da criança. 8 4. A Liberdade De Crença Como Direito Fundamental Tanto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, no Bill of Rights (Declaração dos Direitos dos Cidadãos) de 1776, quanto na Declaração Universal de Direito Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, e ainda, no Pacto de São José da Costa Rica, da OEA, são unânimes em proteger a liberdade religiosa, tendo garantido o direito de conservar sua religião ou crença, ou de mudá-la, bem como de professá-la coletiva ou individualmente, seja no ambiente privado ou público. Sobre a liberdade de pensamento, conceito intrinsicamente relacionado a exteriorização da crença religiosa dos indivíduos, Karam (2009, p.3) alega que “Tendo esse âmbito de liberdade, o indivíduo não pode ser forçado a ser comportar de uma ou outra forma, nem pode ser forçado a mudar seu comportamento ou suas opiniões sobre o que quer que seja”(KARAM, 2009, p.3) Na história do Brasil, a Constituição Política do Império de 1824 assegurava em seu Art. 5º: A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo. (BRASIL, 1824) A partir de 1891 através da primeira Constituição da República estabeleceu-se a separação entre a Igreja e o Estado buscando uma natureza laica. A criação paralelamente da certidão de nascimento, do casamento civil e do atestado de óbito afastava os membros do clero católico destas funções públicas. Apresentava-se deste modo o surgimento da liberdade religiosa no país e autorizando o indivíduo a escolher ou não uma religião, como previa o artigo 72 do referido Texto Constitucional (BRASIL, 1988). Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) 9 § 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. (...) § 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados. (BRASIL, 1891) O Constituinte em 1988 reconheceu que o Estado deve-se preocupar em proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa. Na vigente Constituição Federal consagra-se no Inciso VI, do Art. 5º, “é inviolável a liberdade de crença, sendo garantido o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL, 1988). Pese o destaque e a proteção assegurados, ademais os dispositivos constitucionais: Art. 5º, VII; Art. 19, I; Art. 150, VI, “b”; Art. 210; Art. 213 e Art. 226,§ 2º, disciplinam a respeito da liberdade religiosa, no Brasil. Ainda, no que tange ao inciso VI do artigo 5º, deve-se ressalvar, sem maiores dificuldades de interpretação, que essa proteção aos locais de culto e suas liturgias terá limites para não destoar do sistema constitucional e tão pouco infirmar sanção decorrente da prática de ato ilegal na liturgia religiosa, de modo que a lei penal não afronta a inviolabilidade do livre exercício do culto religioso quando expressa proteção aos bens jurídicos essenciais tutelados pelo Estado. 5. O Bem Jurídico penalmente tutelado O Direito Penal tem como função indispensável a proteção de bens jurídicos essenciais, protegendo de modo legítimo e eficaz os bens jurídicos fundamentais do indivíduo e da sociedade. De acordo com Prado (1997, p.18) “o bem jurídico em sentido amplo é tudo aquilo que tem valor para o seu humano”. Para Toledo (1994, p.15) “Bem em um sentido mais amplo, é tudo aquilo que nos apresenta como digno, útil, necessário valioso [...] Os bens são, pois, coisas reais, ou objeto ideal dotado de valor”. Segundo Roxin (2006, p.1819), Podem-se definir os bens jurídicos como circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta a todos os direitos humanos e civis de cada um na 10 sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos. Conceitos complementados pelas ideias de Teles (2004, p.46) “são bens jurídicos a vida, a liberdade, a propriedade, o casamento, a família, a honra, a saúde, enfim, todos os valores importantes para a sociedade” e de Toledo (1994, p.16) “bens jurídicos são valores éticos sociais que o Direito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob a sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas”. Através da busca por conferir meios pacíficos para o desenvolvimento social, cria-se tipos penais incriminadores, prevendo a aplicabilidade de sanções penais a aqueles que, por seus atos, causem lesão ou exponham a risco concreto de lesão os bens jurídicos penalmente tutelados. O mais antigo rito da religião judaica, símbolo exterior que liga o menino a sua fé, pode ser interpretado como o exercício ilegal da medicina? Caracteriza-se como lesão corporal? A liberdade de religião é hoje garantida em todos os regimes democráticos, sendo o fundamento da convivência moderna. O que deve ser analisado na contextualização de uma sociedade pluricultural é a demanda de sensibilidade em face aos diferentes valores das subculturas autônomas ao ponderar princípios jurídicos, como a liberdade religiosa e a integridade física. Poder-se-ia postergar a realização da circuncisão a uma livre escolha na vida adulta, de modo que não haveria prejuízo físico. Esta mesma argumentação também se faz valer para o batismo das crianças e uma série de medidas educativas dos pais que poderiam ser consideradas irreversíveis, não fisicamente, mas, psicologicamente. Entretanto, da mesma maneira que uma criança não batizada, ainda não é considerada cristã, o judeu não circuncidado, segundo as suas próprias crenças, não é considerado judeu. As visões individuais sobre a veracidade de suas crenças não representam valores universais. Proibições relacionadas às práticas de sua fé ofenderiam a dignidade humana defendida por Constituições, não considerando deste modo a dignidade humana dos pais que alicerçam seus atos em uma sociedade secular, na qual encontram em seus ritos tradicionais, 11 elementos de continuidade histórica. Evidentemente que toda a razão secular não deve ser imposta como juíza de verdades e ofensoras aos direitos fundamentais individuais. Porém ao se impedir ou criminalizar o rito do Brit Milá, em face da integridade física da criança, impedir-se-ia sua introdução à cultura religiosa que lhe confere identidade, pertencimento e coesão social. Logo, todos os demais ritos de iniciação ou passagem, componentes fundamentais de diversas culturas, também deveriam ser observados sob uma nova ótica e repensados, como no caso dos povos indígenas que incluem duras e sangrentas provas de coragem. Tais proibições não contribuiriam para salvar direitos individuais, mais findariam com a identidade do respetivo povo. No que tange ao tipo penal descrito no caput do artigo 282, do Código Penal em vigor, “Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites”. Reprime-se a prática profissional por pessoa sem a devida habilitação médica e diplomação correspondente, como ocorre no caso do Mohel ao realizar o Brit Milah. Para a caracterização do crime de exercício ilegal da medicina, também se faz necessária a habitualidade na prática, sendo insuficiente qualquer ato isolado que corresponda à atividade profissional. Sem a comprovação da habitualidade, não se falaria em delito. Ainda, sobre tipo subjetivo, o dolo do crime previsto no art. 282 é a vontade de exercer ilegalmente a profissão médica ou de exceder os limites que para ela são prefixados na lei, mesmo que gratuitamente. A finalidade do lucro qualifica o crime, aplicando-se a multa, além da pena aflitiva. Ainda a respeito do caso da circuncisão o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, através do Parecer de número 1.362-08/82 dispõe que: “A circuncisão é ato médico e como tal é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde, não devendo ser praticado por outro profissional que não é médico.” 5 5 Conforme: BRASIL. CREMESP. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.cremesp.com/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=3624&tipo=PARECER&org ao=Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o%20Paulo &numero=1362&situacao=&data=00-00-1982>. Acesso em 09/09/2014. 12 Por sua inconteste relevância e complexidade, objetiva-se ademais dos temas anteriormente elencados, avaliar o conteúdo proposto sob o prisma do princípio da adequação social em face aos Direitos Fundamentais, no que tange à liberdade de crença com ponderação do bem jurídico em questão pela tutela penal. 5.1 O princípio da adequação social: ponderação da tutela penal Condutas formalmente típicas, ou seja, que encontram-se descritas, subsumidas num tipo penal, quando socialmente aceitas e que não atentem contra a Constituição Federal, são materialmente atípicas, pois estão em consonância com a ordem social, ou seja, amparadas pela aceitação social. A partir de Hans Welzel este instrumento de interpretação das leis em modo geral, que vai além do Direito penal, preconiza que não se pode reputar criminosa uma conduta tolerada pela uma sociedade, seja pelos costumes, folclore ou cultura, ainda que se enquadre em uma descrição penal. Evidentemente que este não é um princípio estático, da mesma forma que a própria sociedade também não é, de forma que condutas que no passado foram entendidas como atípicas poderão deixar de ser toleradas, da mesma forma que condutas compreendidas como típicas com o passar dos anos poderão ser introjetadas a esta sociedade. A circuncisão dos judeus é uma das condutas típicas consideradas através do princípio da adequação social. Apesar de sempre provocar acaloradas discussões concernentes à liberdade religiosa versus a integridade corporal, esta prática secular não é notada como criminosa pela população na qual está inserida. 6. Conclusão Conclui-se que, os aspectos legais respaldados através dos Conselhos Regionais de Medicina, não deixam dúvidas quanto à prática do Brit Milá, qual seja, a circuncisão do judeu em seu oitavo dia de vida, ser praticado por Mohel possuidor de habilitação médica. 13 Ao analisar a relação existente entre o disposto no Inciso VI, Art. 5º da Constituição Federal de 1988, a ‘Liberdade de Crença’ e se há violações respaldadas por este dispositivo, realizando a ponderação com vistas à tutela penal através do Decreto-Lei N. 2.848/40 – Código Penal, e qual sua eficiência. Conclui-se que os atos relacionados à liberdade de crença e aos locais de culto e suas liturgias ao se ponderar quanto a utilização do princípio da adequação social e seus reflexos na realidade, se tornam aceitos pela sociedade. Observa-se que a conquista na modernidade da garantia da autonomia cultural no Estado pluricultural, tolerando as diferentes culturas e religiões e reconhecendo-as como sujeitos coletivos de direitos humanos e assegurandolhes as garantias constitucionais estabelecidas na Carta Magna que servem para a concepção de um Estado que defende a coesão social, buscada pelos indivíduos também em suas religiões. 7. Referências Bibliográficas BALANCIN, E. et all. Guia aos mapas da Bíblia. São Paulo: Paulus, 1987 BRASIL. Censo: o perfil religioso do país. Disponível em:< http://oglobo.globo.com/infograficos/censo-religiao/>. Acesso em 08/06/2014 BRASIL. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo 2010. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais _Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf> Acesso em 08/06/2014 BRASIL. Poder Legislativo. Código Penal. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em 09/09/2014 BRASIL. CREMESP. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.cremesp.com/?siteAcao=Pareceres&dif=s&ficha=1&id=3624&tipo= PARECER&orgao=Conselho%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Esta do%20de%20S%E3o%20Paulo&numero=1362&situacao=&data=00-00-1982>. Acesso em 09/09/2014. BRASIL. Poder Legislativo. Constituição da Republica dos Estados Unidos do Brasil. 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm>. Acesso em 08/06/2014 14 BRASIL. Poder Legislativo. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 08/06/2014 BRASIL. Poder Legislativo. Constituição Política do Império. 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 08/06/2014 Durant W. The Story of Civilization: Part I: Our Oriental Heritage. New York: Simon and Schuster, 1954 FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: edUSP, 2006 GÊNESIS. In: Bíblia Apologética de Estudo. Jundiaí: ICP, 2010 GOMES, Mércio Pereira. O caminho brasileiro para a cidadania indígena. In.: PINSKY, Jaime (Org.). História da cidadania. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2003. 420 p. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais _Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf> Acesso em 08/06/2014 KARAM, Maria Lúcia. Proibições, crenças e liberdade: o direito à vida, a eutanásia e o aborto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009 LAURINI, Heládio Correia, et al. A Circuncisão - o mito e o rito. Documentário, Rio de Janeiro, 1974, 1ª ed., p.53. MESQUITA, Antônio Neves de. Povos e Nações do Mundo Antigo,Hagnos, 1992 NOEL JFM. Diccionario de Mitologia Universal. Edicomunicación SA . Tomo I:318,1991 PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. Org. e Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006 SANABRIA, A. Compendio de Historia Universal de la Medicina y la Medicina Venezolana. Coleccion Ciencias medicas LII. Universidad Central de Venezuela. Ediciones de la Biblioteca-EBUC. 1986. 15 TELES, Ney Moura. Direito penal: parte geral. V. 4. São Paulo: Atual, 2004. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1999.
Documentos relacionados
Leia as primeiras páginas do livro
dos extintos sexuais e também por motivos profiláticos. Sobre isso discutiremos na terceira parte deste trabalho. É difícil determinarmos pelas informações que temos na Bíblia qual o verdadeiro ob...
Leia maisBritMilah - Judaismokaraita
ao Egito, a Judá e a Edom, aos filhos de Amom e a Moabe, e a todos os que cortam os cantos da sua cabeleira e habitam no deserto; pois todas as nações são incircuncisas, e toda a casa de Israel é i...
Leia mais