4 a perversa utopia

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4 a perversa utopia
OLHARES PLURAIS - Artigos
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Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir
A PERVERSA UTOPIA DO FURO DA DISCIPLINA
Alexandre Sá1
Deison Fernando Frederico2
Artigo submetido em: out./2015 e aceito em: fev./2016
RESUMO
A partir dos conceitos de sociedade disciplinar e sociedade de controle, os autores promovem
uma pesquisa sobre a lógica de dominação nos dias de hoje e suas estratégias de
funcionamento. Fazendo uso de um conjunto de outros teóricos,, pretendem rever e revisitar
rev
o
legado de Michel Foucault e a atualidade do seu pensamento.
Palavras-chave: sociedade disciplinar, biopolítica, capitalismo.
L'UTOPIE PERVERS DANS LE TROU DE LA DISCIPLINE
RÉSUMÉ
En utilisant les concepts de société disciplinaire et société de contrôle, les auteurs promeuvent
une recherche sur la logique de domination aujourd’hui e ses stratégies de fonctionnement. En
employant plusieurs théoriques, souhaitent réaliser une petite révision
évision de l’héritage
l’
de Michel
Foucault e de l’actualité de son pensée.
Mots-clés:: société disciplinaire, biopolitique, capitalisme.
“O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e retirar,
tem como função maior ‘adestrar’: ouu sem dúvida adestrar para retirar e se
apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las;
reduzi
procura
ligá-las para multiplicá-las
las e utilizá-las
utilizá
num todo.”
Michel Foucault
1
Vive
ive e trabalha no Rio de Janeiro. É psicanalista e pós-doutor
pós doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela
Universidade Federal Fluminense. É doutor e mestre em Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes da
UFRJ. Licenciado em História da Arte pela UERJ. É diretor do Instituto de Artes da UERJ e professor do
PPGARTES- UERJ; coordenador e professor do curso de Artes Visuais da Unigranrio. É editor-chefe
editor
da revista
Concinnitas (do Instituto de Artes da UERJ). Foi consultor de projetos artísticos da Escola de Artes
A
Visuais do
Parque Lage e atualmente é professor nesta mesma instituição. Integra o programa de Formações Clínicas do
Campo Lacaniano-RJ,
RJ, o Fórum do Campo Lacaniano e o International of Foruns (IF). Email:
[email protected]. Site: alexandresa.org.
alexandre
2
Vive
ive e trabalha no Rio de Janeiro. É psicólogo pela Universidade Regional de Blumenau. Especialista em
saúde da família (modalidade residência) pela Universidade do Planalto Catarinense. Especialista em terapia
comunitária pela Universidade Federal
Feder do Ceará. Mestre em saúde coletiva pela Universidade Federal
Fluminense. Email: [email protected].
[email protected]
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“Nossa capacidade de afirmar o que é contingente e incoerente em
e nós mesmos
pode permitir que afirmemos outros que podem ou não podem ‘espelhar’ nossa
própria constituição. Afinal de contas, sempre existe a operação tática do espelho
do reconhecimento recíproco, visto que posso, de algum modo, ver que o outro é
como euu e ver que o outro está fazendo o mesmo reconhecimento da nossa
semelhança. Há muita luz no espaço hegeliano, e os espelhos têm a feliz
coincidência de também agir como janelas.”
Judith Butler
“E me alertava: veja o musgo, que é o modo do muro ser planta. Quem o rega,
quem o aduba? Nada, ninguém. Há coisas que só paradas é que crescem”
Mia Couto
Sabe-se
se que é no final do XVIII que Jeremy Bentham concebe pela primeira vez o
conceito de panóptico, elemento fundamental para que Foucault percebesse a gradativa
instauração do poder disciplinar e sua lógica de vigilância. Vigilância esta que se dará em
diversas instâncias: na medicina, no poder soberano e na institucionalização do domínio e no
desejo recorrente de classificação do comportamento
comportamento e consequentemente, do seu controle. A
ideia de normalidade, e seu duplo, a anormalidade também são elementos fundamentais para
esta lógica de comando que por sua vez, atendem a um conjunto de demandas econômicas,
sociais e políticas que atravessarão o século XIX e atingirão seu ápice no começo do século
XX. A sociedade disciplinar e a alocação de seus pontos de força em zonas específicas e
claramente determinadas como a escola, a igreja, o hospital, o quartel e a prisão é uma marca
fundamental no pensamento
amento de Foucault que ao longo dos anos tem sido propagada como
uma estrutura de pensamento bem marcada e precisa.
Por outro lado, Gilles Deleuze, em Pós-scriptum
m sobre as sociedades de controle
(DELEUZE, 2000. p. 219) defende que há um certo deslizamento
deslizamento operacional entre a
sociedade disciplinar foucaultiana e aquilo que compreendeu como sendo a sociedade de
controle; que estaria mais próxima das revoluções metodológicas e funcionais da segunda
metade do século XX. A grande diferença entre os dois conceitos
conceitos é uma torsão da lógica de
vigilância que agora não estaria mais localizada em um espaço físico determinado, mas que se
revelaria presente de forma onisciente, onipotente e onipresente.
Deleuze crê que a desconstrução da sociedade disciplinar é paralela
paral à crise pela qual as
instituições apontadas por Foucault passaram, principalmente depois da Segunda Guerra
Mundial. Haveria, segundo ele, uma inevitável condenação a tais espaços que, estariam por si
só fadados ao fracasso, já que então, não caberia mais
mais uma forma de sustentação simbólica
que fosse capaz de manter as estruturas fundamentais de tais instituições. Tais
impossibilidades eram nitidamente detectáveis através da quantidade absoluta de reformas
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políticas apontadas pelo governo. Uma outra diferença
diferença entre tais conceitos seria a atual
intermitência dos ciclos e a instauração absoluta da lógica do capital dentro destes eixos e
obviamente, interferindo de maneira contundente no seu funcionamento. (DELEUZE, 2000,
p. 222)
Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna da
caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a
empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma
mesma modulação, como que de um deformador
deformado universal.
l.
E ainda:
Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e
nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades
disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da
integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de
cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante de
um par massa-indivíduo.
massa
Os indivíduos tornaram-se
se ‘dividuais’ divisíveis, e as
massa tornaram-se
massas
se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’”
É importante destacar que tais sintomas terminam sendo fundamentais para que a
passagem para a sociedade de controle se consolide: a absoluta continuidade de seu modus
operandi e a cifra como elemento de modulação. Ou seja, a lógica de um presente absoluto e
intransponível que se estabelece a partir de um fluxo ininterrupto, eliminando suas etapas e
seus respectivos processos de transposição e transformação, além da presença inquestionável
e avassaladora
ra do capital como elemento determinante.
Deleuze aponta que o pensamento de Michel Foucault se encaminhara para uma
percepção da inevitável expansão e desdobramento da lógica disciplinar, mas insiste que
embora sejam movimentos contíguos, terminam sendo distintos e com suas respectivas
peculiaridades. A sociedade de controle não mais trabalharia dentro de uma lógica binária e
além disso, deslocaria a ideia de molde (de comportamento e do corpo individual), para uma
lógica da modulação. Como por exemplo em uma empresa que exigiria a formação contínua
de seus funcionários em um eterno processo de atualização e especialização.
Aqui também merece atenção a diferença semântica entre o molde e modulação. Se na
sociedade disciplinar, as regras de comportamento serviam
serviam como molde, ou melhor, como
modelo a ser atingido e como prática a ser adotada, evitando fortemente qualquer
possibilidade de contestação, na sociedade de controle o que entra em vigência é a
necessidade de brando domínio do comportamento humano. Se na sociedade disciplinar, os
espaços de clausura serviam para adestrar e catequizar os comportamentos discordantes e
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dissonantes, na sociedade de controle, o hábito e as condutas tendem a ser gradativamente
modulados para que haja uma pasteurização da diferença,
diferença, através eventualmente, de uma
defesa da pluralidade e da diversidade. Em certo sentido, trata-se
trata se de uma situação de
potencialização da disciplina que agora expandida, invade todas as esferas do viver e,
obviamente, todas as fases do humano.
O sujeito
ito é então, representado por um conjunto de números, da mesma maneira que
este conjunto de números (sejam eles de identificação ou mesmo de sustentação de sua
potência financeira) determinariam as características do indivíduo dentro desta lógica do
controle.
le. O controle se dá de maneira extremamente natural, homeopática e eventualmente
conseguindo justificar a si mesmo através da defesa do “bem-estar
“bem estar público” e do sujeito (já
“assujeitado”). A lógica do capital também estaria presente como eixo fundador do processo
de modulação, através da transposição da individualidade para a lógica do número, da senha,
da cifra e da dívida. Ou seja, apesar das infinitas respostas à suposta necessidade da presença
de tal método, o que sustenta e justifica o controle do corpo
corpo individual numa esfera de subsolo
é o mercado e seu desejo de dominação, atualização constante e organização.
Embora a defesa e a divisão de tais conceitos seja justa, é importante lembrar que caso
fosse possível fraturar a esfera temporal que as envolve,
envolve, há algo inevitável que se estabelece
como comum entre as duas esferas. A sociedade de controle e a sociedade disciplinar são
antes e acima de qualquer coisa, banhadas por uma lógica de dominação e normatização do
corpo, do gesto, da produção e da vitalidade
vitalidade que são fundamentais para a sustentabilidade da
perversidade do sistema que as erige. As duas estarão e serão sempre amalgamadas, e a
divisão que se faz entre elas se sustenta pela necessidade de ajuste das relações dentro de uma
esfera histórica.
Embora haja infinitas particularidades e diferenciações conceituais consideráveis, o
que pode ser extraído enquanto método é sempre (e sempre será) a fagocitose da
individualidade/subjetividade de modo a atender um processo econômico, político,
urbanístico e arquitetônico norteador de cada momento. O que Deleuze faz é atualizar a lógica
de dominação já identificada por Foucault. E neste caso cabe explicitar que a sociedade de
controle é um conjunto de ações e ideologias que trazem de maneira dissimulada toda
tod a
estrutura disciplinar, demolindo a fisicalidade do espaço, entendo-o
entendo o agora de forma virtual e
completamente expandida; tendo também o mercado como objetivo último e primeiro.
(FOUCAULT, 2000. p. 118)
Não é a primeira vez, certamente que o corpo é objeto
obje de investimentos tão
imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de
poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações.
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Muitas coisas entretanto são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do
controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo,
modo como se fosse
uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo
trabalhá lo detalhadamente; de exercer sobre ele
uma coerção sem folga, de mantê-lo
mantê lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos,
gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em
seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do
comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos
movimentos, sua organização interna; a coação
coação que se mais sobre as forças que
sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício.
Foucault já notava que o desdobramento lógico da sociedade disciplinar era
a
expansão dos seus domínios e a ligeira alteração de sua coerência,
coerência, além da potencialização de
seus devires. Por certo a escola, a família, o quartel, o hospício, a universidade e o hospital
mantém ainda hoje suas lógicas de vigilância que, em virtude de todo o aparato tecnológico,
mercadológico e de marketing (em sua pujantíssima produção) conseguiram se transvestir
com algum pseudônimo de vento e conforto que por sua vez, também se espalharam pelos
mais diversos espaços sociais, de convívio, de afeto e inclusive, de fabricação de alguma
experiência estética. A continuidade
continuidade amigável entre a disciplina e o controle fez e faz uso de
maneira recorrente do bem--estar social e da democracia do diálogo.
Os exemplos são infinitos, recorrentes e já sabidos: A patologização da normalidade
dos sentimentos cotidianos, na ânsia de suprimir
suprimir os desgostos e a angústia inevitável da vida
através de uma não menos potente indústria medicamentosa, patrocinando um sem-número
sem
de
médicos em suas viagens e congressos ao exterior. O império dos psicofármacos para déficit
de atenção e dos moduladores
moduladores de comportamento e humor. A escola em seus habilíssimos
especialistas em educação treinados de maneira afiada a manter a ordem e a disciplina dentro
do espaço do ensino que não comporta aqueles que fogem e escapam à regra e que de maneira
justa, não toleram
oleram uma prática e uma teoria claramente obsoletas. A lógica de produção do
saber que invade às universidades e que avalia seus docentes e pesquisadores através de um
método eventualmente quantitativo e não qualitativo, com suas infinitas tabelas e pontuações
pontu
obtusas (tendo como prêmio algum retorno financeiro imprescindível à sustentação digna).
Ou ainda, o sistema de arte e sua pasteurização paulatina da crítica e da curadoria que
também, por sua vez, parece mais próxima e confortável à produção e manutenção
manut
de uma
estrutura mercadológica e que ainda sem se dar conta (espera-se),
(espera se), evita e nega a real
construção de um saber histórico que sirva às futuras gerações.
Por certo, tais poéticas (ligeiramente perversas) surgem também em decorrência de um
legado moderno de inserção do transitório como uma categoria do belo. Baudelaire já havia
apontado que estaríamos na modernidade diante de um processo de construção ideológica
onde o belo (anteriormente entendido como uma potência de eternização e duração) se
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dividiria
idiria em dois eixos: o eterno/o imutável e o efêmero/o evanescente. O que talvez não
imaginasse é a posterior supremacia do não-estabelecimento
não estabelecimento e o desejo brutal de uma
presença do presente que vagarosamente se constitui como uma constância absoluta que
desconhece
esconhece o amanhã. A ideia de continuidade e mesmo a de futuro, esta palavra que já
parece ligeiramente inadequada, inclusive porque não temos mais nenhuma certeza que
chegaremos em casa com as nossas duas pernas, se desenha aos poucos e tão lentamente
como
mo uma peça de museu histórico. Surge então um paradoxo em ritornelo: o futuro parece
então algo do passado, como se os dois tempos conseguissem se encontrar em uma esfera
longínqua de comunhão e apagamento. Restaria um presente eternamente presente, também
també já
afastado de um eterno retorno nietzschiano onde a particularidade do instante brotaria em
cada repetição.
Sendo assim, talvez tenhamos chegado a um paradigma curioso em que somos
flâneurs de flâneurs de nós mesmos e onde o deslizamento e a deambulação
deambulaçã são marcas
indeléveis, como nos filmes conhecidos de zumbis em sua errância sem desejo. A fábrica
ainda continua a fabricar seus produtos (objetos, filhos e operários), agora de forma mais
“natural” e paradoxalmente repleta de justificativas tão precisas que o convencimento da
necessidade de sua existência parece indiscutível. Se Hélio Oiticica já havia afirmado que o
museu é o mundo, talvez também seja importante perguntar em que medida, a fábrica hoje
também não é o mundo3. Um mundo-fábrica
mundo
ou uma gaiola-mundo
mundo que fabrica seus sujeitos,
submissos a uma pressuposta presentidade do presente.
Lacan, no seminário XVI, discorre sobre a homologia entre a mais-valia
mais
de Marx e o
mais-de-gozar.
gozar. Se, em Marx, há algo do trabalho que não pode e não interessa ser
quantificado
antificado em termos financeiros, ou seja, se há algo do trabalho do operário que jamais
será capturado e operacionalizado por seu pagamento, há para Lacan, algo dentro da lógica de
gozo que sempre escapará e cairá como um projétil inalcançável: o próprio objeto a. Se há
algo de perda no trabalho do operário, que em certo sentido ainda somos nós, também há algo
de inacessível no gozo, no prazer e na juissance que justificará a busca, mas que jamais se
revelará presente. A falta do objeto do gozo, ou melhor, o objeto que traz em si a falta é um
dos principais definidores do século XX. Viver, então, seria este moto-contínuo
moto
em busca
daquilo que jamais se presentificará.
presentificará. Neste seminário de 1968, ministrado posteriormente às
revoluções de maio na França, Lacan também defende que o grande Outro é o mercado, já
que é ele que determina, acomoda e conforma o nosso comportamento. Em termos bastante
superficiais, na fábrica
ca do mundo, o mercado é o chefe.
3
Outra pergunta ingênua e paradoxalmente necessária: O museu é uma fábrica de memória?
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Desta maneira, sendo inelutável a presença do chefe sem nome e sem face como
determinador do nosso comportamento e considerando que seu olhar vigilante (talvez dentro
de um outro tipo de panóptico não mais físico) é responsável
responsável por esculpir nosso processo de
ação, reação e construção simbólica, a possibilidade de escape e de fuga seriam bastante raras.
Gilles Lipovetsky pergunta em seu livro, A Era do Vazio: “Quem vai se salvar dessa maré?”.
maré
E Foucault, discorrendo sobre uma
uma nova forma de disciplina que ele chama de biopolítica,
defende:
Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica é – diferentemente da
disciplina, que se dirige ao corpo – a vida dos homens, ou ainda se vocês preferirem,
ela se dirige não ao homem-corpo,
corpo, mas ao vivo, ao homem ser vivo; no limite, se
vocês quiserem, ao homem-espécie.
homem espécie. Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina
tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode
e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados,
eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à
multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas
multiplicidade
na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos
de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a
morte, a produção,
produção, a doença, etc...(FOUCAULT, 2000. P. 204)
A biopolítica para Foucault é um processo de regulamentação da população, como se
fosse um novo corpo, um corpo múltiplo, um corpo numerável, uma multidão. A população
torna-se
se um problema científico, político, biológico e obviamente, um problema de poder.
(Foucault, p. 206). A biopolítica então envolveria todas estas esferas através de um conjunto
de estratégias que visariam regulamentar e higienizar a esfera pública, visando a “proteção”
dos indivíduos e a manutenção da ordem e do bem-estar.
bem
O que é estranho
nho dentro desta lógica
é a dissimulação do desejo de domínio e ainda, a manutenção da vigilância dos corpos que por
sua vez, não teriam mais escolha diante do seu funcionamento. A conduta seria regulada
através de uma percepção da população como um contingente
contingente econômico.
Slavoj Zizek em Problema no paraíso, do fim da história ao fim do capitalismo,
capitalismo indica
que a potencialização destes regimes de vigilância e de condicionamento claramente
econômicos, aliados a atual lógica de revolução para a derrubada dos
dos antigos mestres e dos
antigos poderes, terminou por erigir uma outra forma de conduta, filha e fruto do capitalismo
tardio:
Hoje em dia a figura da autoridade preponderante não é mais o Mestre patriarcal.
Nem mesmo o totalitarismo é um discurso do Mestre;
Mestre; mas a trágica experiência de
muitas revoluções em que a derrubada do antigo Mestre terminou num terror muito
mais brutal não deveria de forma alguma nos conduzir a advogar um retorno à
autoridade paternal simbólica como único modo de escapar do impasse
autodestrutivo self multiforme narcisista característico do capitalismo tardio.
(ZIZEK, 2015, p. 22)
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Em termos muito superficiais, o discurso do mestre é um dos quatro discursos
formulados por Lacan e que é representado da seguinte maneira:
Na posição
ção do agente, temos S1, concebido aqui como mestre, ou seja, aquele que
detém o saber. Por outro lado, este saber não lhe é próprio (e nem mesmo absoluto), pois
depende diretamente do Outro, que nesta formulação é representado
representado pelo escravo. O saber do
senhor
hor depende do saber do escravo e por esta razão, paradoxalmente, está escravizado a ele,
que por sua vez, oculta e revela o objeto de produção de gozo; que nesta estrutura é
representado pelo objeto a. Por outro lado, o mestre para ser mestre, precisa ocultar
ocu
a sua
divisão subjetiva, a sua verdade. O mestre depende do escravo que oculta a sua partição
inevitável, o seu furo, a sua fragilidade e a sua fragmentação, enquanto o escravo também
oculta o objeto de seu gozo.
Segundo Zizek, não temos mais a figura
figura do mestre, já que nem mesmo o totalitarismo
se coloca enquanto tal. A falta deste elemento estruturante de domínio que anteriormente
podia ser localizado na figura do soberano, do presidente ou mesmo de um sistema específico,
terminou por provocar um vazio
vazio que reverbera e retumba uma lógica narcisista que segundo
ele, é inevitavelmente autodestrutiva. Ou seja, o escravo (nós), em virtude do cansaço de
tantas revoluções e questionamentos ao poder instituído terminou vencendo-o,
vencendo mesmo que
pressupostamente. O que nos surge como legado é uma nostalgia do mestre, uma inestimável
saudade do eixo de dominação que talvez fosse capaz de nos eliminar desta engrenagem
egotrip e rapidamente consumível.
O que brota é um vazio encenado no lugar do dominante que agora não mais pode ser
localizado em algo ou alguém. E como este oco nos provoca alguma ansiedade, é possível
perceber com cada vez mais frequência uma demanda de ordem e subjugo advinda dos mais
diversos lugares e dos mais distintos grupos, como se fosse uma melancolia
melancolia do algoz; que
podemos perceber nos movimentos políticos de extrema direita, nos neopentecostais, nos
movimentos neofascistas, neonazistas e na própria esquerda que se revela perdida diante da
impossibilidade de encontrar seu inimigo, que como sabemos,
sabemos, dorme conosco e somos nós
mesmos.
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Em certo sentido, “a atual tendência do capitalismo de suspender a democracia”
(ZIZEK, 2015, p. 27) tem conseguido vagarosamente a sua vitória, através de um sistema que
vela a sua potência disciplinar, como se o próprio
próprio capitalismo tardio viesse a ser um dos
espaços físicos onde a disciplina se instaura. Além disso, não é justo esquecer uma tendência
clara de dominação biológica através de uma falácia da regulamentação dos corpos que
justificaria tais políticas de ação, regulação, saneamento, higienização e gentrificação.
Nesta busca obsessiva do algoz (motivada por algum saudosismo) e pela lógica
silenciosa de um sistema de dominação, procuramos sempre uma forma de contestar a lógica
dominante. Em certo sentido, contestar é a palavra de ordem, venha de onde vier. O problema
é que o quê nos interessa é muito mais o ato da contestação do que especificamente seus
efeitos e seu legado. Neste sentido, tudo parece bastante pertinente, pois fomos disciplinados
de maneira potente a afirmar muito mais o processo do fazer do que especificamente pensar
sobre as estratégias necessárias para que obtenhamos um resultado efetivo.
A atitude hegemônica atual é a da ‘resistência’, como testemunham as poéticas das
dispersas minorias,
minorias sexuais, étnicas, os modos de vida das ‘multitudes’ (gays,
(
doentes mentais, prisioneiros...) ‘resistindo’ a um misterioso Poder Central
(capitalizado). Dos gays e lésbicas aos sobreviventes da direita todos resistem –
nesse caso, porque não chegar à conclusão
conclusão lógica de que o discurso da
<<resistência>> é hoje a norma que, enquanto tal, se tornou o principal obstáculo à
emergência de um discurso que realmente interrogaria as relações dominantes?
(ZIZEK, 2006, p. 60)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos de cólera e de angústia, como os que vivemos hoje (seja este hoje qual for
e venha de onde vier), talvez seja importante percebermos que a lógica de contestação é
dominante. Mas em que medida tal lógica também não pode ser um elemento de dominação?
dominaçã
Como pensar as relações de aderência e afastamento entre o dominante e a dominação? Ou
seja, como reconhecermos o dispositivo político e comportamental que incute a dominação
dentro de uma lógica dominante e que pressupostamente defende a democracia do
pensamento? Será que atualmente, o sistema, o capital e toda o espetáculo que norteiam as
relações humanas não teriam conseguido atingir o seu objetivo primeiro e maior de dissimular
seu processo de pasteurização da crítica? Ou ainda, será que o devir-resistência
devir
da
contemporaneidade é um simulacro de um impedimento estetizado e esvaziado do pensar?
Como a academia em todos os seus estudos, textos, revistas, aulas, pontuações e currículos
conseguiriam reverter um fluxo midiático de revolução ensimesmada e encarnada
e
como
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personagem de produção? Haveria alguma possibilidade do saber escapar à disciplina da
fábrica do dizer?
REFERÊNCIAS
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BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte. Autêntica
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