4 a perversa utopia
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4 a perversa utopia
OLHARES PLURAIS - Artigos 49 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir A PERVERSA UTOPIA DO FURO DA DISCIPLINA Alexandre Sá1 Deison Fernando Frederico2 Artigo submetido em: out./2015 e aceito em: fev./2016 RESUMO A partir dos conceitos de sociedade disciplinar e sociedade de controle, os autores promovem uma pesquisa sobre a lógica de dominação nos dias de hoje e suas estratégias de funcionamento. Fazendo uso de um conjunto de outros teóricos,, pretendem rever e revisitar rev o legado de Michel Foucault e a atualidade do seu pensamento. Palavras-chave: sociedade disciplinar, biopolítica, capitalismo. L'UTOPIE PERVERS DANS LE TROU DE LA DISCIPLINE RÉSUMÉ En utilisant les concepts de société disciplinaire et société de contrôle, les auteurs promeuvent une recherche sur la logique de domination aujourd’hui e ses stratégies de fonctionnement. En employant plusieurs théoriques, souhaitent réaliser une petite révision évision de l’héritage l’ de Michel Foucault e de l’actualité de son pensée. Mots-clés:: société disciplinaire, biopolitique, capitalisme. “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e retirar, tem como função maior ‘adestrar’: ouu sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; reduzi procura ligá-las para multiplicá-las las e utilizá-las utilizá num todo.” Michel Foucault 1 Vive ive e trabalha no Rio de Janeiro. É psicanalista e pós-doutor pós doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense. É doutor e mestre em Linguagens Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Licenciado em História da Arte pela UERJ. É diretor do Instituto de Artes da UERJ e professor do PPGARTES- UERJ; coordenador e professor do curso de Artes Visuais da Unigranrio. É editor-chefe editor da revista Concinnitas (do Instituto de Artes da UERJ). Foi consultor de projetos artísticos da Escola de Artes A Visuais do Parque Lage e atualmente é professor nesta mesma instituição. Integra o programa de Formações Clínicas do Campo Lacaniano-RJ, RJ, o Fórum do Campo Lacaniano e o International of Foruns (IF). Email: [email protected]. Site: alexandresa.org. alexandre 2 Vive ive e trabalha no Rio de Janeiro. É psicólogo pela Universidade Regional de Blumenau. Especialista em saúde da família (modalidade residência) pela Universidade do Planalto Catarinense. Especialista em terapia comunitária pela Universidade Federal Feder do Ceará. Mestre em saúde coletiva pela Universidade Federal Fluminense. Email: [email protected]. [email protected] OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 50 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir “Nossa capacidade de afirmar o que é contingente e incoerente em e nós mesmos pode permitir que afirmemos outros que podem ou não podem ‘espelhar’ nossa própria constituição. Afinal de contas, sempre existe a operação tática do espelho do reconhecimento recíproco, visto que posso, de algum modo, ver que o outro é como euu e ver que o outro está fazendo o mesmo reconhecimento da nossa semelhança. Há muita luz no espaço hegeliano, e os espelhos têm a feliz coincidência de também agir como janelas.” Judith Butler “E me alertava: veja o musgo, que é o modo do muro ser planta. Quem o rega, quem o aduba? Nada, ninguém. Há coisas que só paradas é que crescem” Mia Couto Sabe-se se que é no final do XVIII que Jeremy Bentham concebe pela primeira vez o conceito de panóptico, elemento fundamental para que Foucault percebesse a gradativa instauração do poder disciplinar e sua lógica de vigilância. Vigilância esta que se dará em diversas instâncias: na medicina, no poder soberano e na institucionalização do domínio e no desejo recorrente de classificação do comportamento comportamento e consequentemente, do seu controle. A ideia de normalidade, e seu duplo, a anormalidade também são elementos fundamentais para esta lógica de comando que por sua vez, atendem a um conjunto de demandas econômicas, sociais e políticas que atravessarão o século XIX e atingirão seu ápice no começo do século XX. A sociedade disciplinar e a alocação de seus pontos de força em zonas específicas e claramente determinadas como a escola, a igreja, o hospital, o quartel e a prisão é uma marca fundamental no pensamento amento de Foucault que ao longo dos anos tem sido propagada como uma estrutura de pensamento bem marcada e precisa. Por outro lado, Gilles Deleuze, em Pós-scriptum m sobre as sociedades de controle (DELEUZE, 2000. p. 219) defende que há um certo deslizamento deslizamento operacional entre a sociedade disciplinar foucaultiana e aquilo que compreendeu como sendo a sociedade de controle; que estaria mais próxima das revoluções metodológicas e funcionais da segunda metade do século XX. A grande diferença entre os dois conceitos conceitos é uma torsão da lógica de vigilância que agora não estaria mais localizada em um espaço físico determinado, mas que se revelaria presente de forma onisciente, onipotente e onipresente. Deleuze crê que a desconstrução da sociedade disciplinar é paralela paral à crise pela qual as instituições apontadas por Foucault passaram, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. Haveria, segundo ele, uma inevitável condenação a tais espaços que, estariam por si só fadados ao fracasso, já que então, não caberia mais mais uma forma de sustentação simbólica que fosse capaz de manter as estruturas fundamentais de tais instituições. Tais impossibilidades eram nitidamente detectáveis através da quantidade absoluta de reformas OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 51 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir políticas apontadas pelo governo. Uma outra diferença diferença entre tais conceitos seria a atual intermitência dos ciclos e a instauração absoluta da lógica do capital dentro destes eixos e obviamente, interferindo de maneira contundente no seu funcionamento. (DELEUZE, 2000, p. 222) Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador deformado universal. l. E ainda: Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante de um par massa-indivíduo. massa Os indivíduos tornaram-se se ‘dividuais’ divisíveis, e as massa tornaram-se massas se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” É importante destacar que tais sintomas terminam sendo fundamentais para que a passagem para a sociedade de controle se consolide: a absoluta continuidade de seu modus operandi e a cifra como elemento de modulação. Ou seja, a lógica de um presente absoluto e intransponível que se estabelece a partir de um fluxo ininterrupto, eliminando suas etapas e seus respectivos processos de transposição e transformação, além da presença inquestionável e avassaladora ra do capital como elemento determinante. Deleuze aponta que o pensamento de Michel Foucault se encaminhara para uma percepção da inevitável expansão e desdobramento da lógica disciplinar, mas insiste que embora sejam movimentos contíguos, terminam sendo distintos e com suas respectivas peculiaridades. A sociedade de controle não mais trabalharia dentro de uma lógica binária e além disso, deslocaria a ideia de molde (de comportamento e do corpo individual), para uma lógica da modulação. Como por exemplo em uma empresa que exigiria a formação contínua de seus funcionários em um eterno processo de atualização e especialização. Aqui também merece atenção a diferença semântica entre o molde e modulação. Se na sociedade disciplinar, as regras de comportamento serviam serviam como molde, ou melhor, como modelo a ser atingido e como prática a ser adotada, evitando fortemente qualquer possibilidade de contestação, na sociedade de controle o que entra em vigência é a necessidade de brando domínio do comportamento humano. Se na sociedade disciplinar, os espaços de clausura serviam para adestrar e catequizar os comportamentos discordantes e OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 52 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir dissonantes, na sociedade de controle, o hábito e as condutas tendem a ser gradativamente modulados para que haja uma pasteurização da diferença, diferença, através eventualmente, de uma defesa da pluralidade e da diversidade. Em certo sentido, trata-se trata se de uma situação de potencialização da disciplina que agora expandida, invade todas as esferas do viver e, obviamente, todas as fases do humano. O sujeito ito é então, representado por um conjunto de números, da mesma maneira que este conjunto de números (sejam eles de identificação ou mesmo de sustentação de sua potência financeira) determinariam as características do indivíduo dentro desta lógica do controle. le. O controle se dá de maneira extremamente natural, homeopática e eventualmente conseguindo justificar a si mesmo através da defesa do “bem-estar “bem estar público” e do sujeito (já “assujeitado”). A lógica do capital também estaria presente como eixo fundador do processo de modulação, através da transposição da individualidade para a lógica do número, da senha, da cifra e da dívida. Ou seja, apesar das infinitas respostas à suposta necessidade da presença de tal método, o que sustenta e justifica o controle do corpo corpo individual numa esfera de subsolo é o mercado e seu desejo de dominação, atualização constante e organização. Embora a defesa e a divisão de tais conceitos seja justa, é importante lembrar que caso fosse possível fraturar a esfera temporal que as envolve, envolve, há algo inevitável que se estabelece como comum entre as duas esferas. A sociedade de controle e a sociedade disciplinar são antes e acima de qualquer coisa, banhadas por uma lógica de dominação e normatização do corpo, do gesto, da produção e da vitalidade vitalidade que são fundamentais para a sustentabilidade da perversidade do sistema que as erige. As duas estarão e serão sempre amalgamadas, e a divisão que se faz entre elas se sustenta pela necessidade de ajuste das relações dentro de uma esfera histórica. Embora haja infinitas particularidades e diferenciações conceituais consideráveis, o que pode ser extraído enquanto método é sempre (e sempre será) a fagocitose da individualidade/subjetividade de modo a atender um processo econômico, político, urbanístico e arquitetônico norteador de cada momento. O que Deleuze faz é atualizar a lógica de dominação já identificada por Foucault. E neste caso cabe explicitar que a sociedade de controle é um conjunto de ações e ideologias que trazem de maneira dissimulada toda tod a estrutura disciplinar, demolindo a fisicalidade do espaço, entendo-o entendo o agora de forma virtual e completamente expandida; tendo também o mercado como objetivo último e primeiro. (FOUCAULT, 2000. p. 118) Não é a primeira vez, certamente que o corpo é objeto obje de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 53 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir Muitas coisas entretanto são novas nessas técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo, modo como se fosse uma unidade indissociável mas de trabalhá-lo trabalhá lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo mantê lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos, atitudes, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna; a coação coação que se mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do exercício. Foucault já notava que o desdobramento lógico da sociedade disciplinar era a expansão dos seus domínios e a ligeira alteração de sua coerência, coerência, além da potencialização de seus devires. Por certo a escola, a família, o quartel, o hospício, a universidade e o hospital mantém ainda hoje suas lógicas de vigilância que, em virtude de todo o aparato tecnológico, mercadológico e de marketing (em sua pujantíssima produção) conseguiram se transvestir com algum pseudônimo de vento e conforto que por sua vez, também se espalharam pelos mais diversos espaços sociais, de convívio, de afeto e inclusive, de fabricação de alguma experiência estética. A continuidade continuidade amigável entre a disciplina e o controle fez e faz uso de maneira recorrente do bem--estar social e da democracia do diálogo. Os exemplos são infinitos, recorrentes e já sabidos: A patologização da normalidade dos sentimentos cotidianos, na ânsia de suprimir suprimir os desgostos e a angústia inevitável da vida através de uma não menos potente indústria medicamentosa, patrocinando um sem-número sem de médicos em suas viagens e congressos ao exterior. O império dos psicofármacos para déficit de atenção e dos moduladores moduladores de comportamento e humor. A escola em seus habilíssimos especialistas em educação treinados de maneira afiada a manter a ordem e a disciplina dentro do espaço do ensino que não comporta aqueles que fogem e escapam à regra e que de maneira justa, não toleram oleram uma prática e uma teoria claramente obsoletas. A lógica de produção do saber que invade às universidades e que avalia seus docentes e pesquisadores através de um método eventualmente quantitativo e não qualitativo, com suas infinitas tabelas e pontuações pontu obtusas (tendo como prêmio algum retorno financeiro imprescindível à sustentação digna). Ou ainda, o sistema de arte e sua pasteurização paulatina da crítica e da curadoria que também, por sua vez, parece mais próxima e confortável à produção e manutenção manut de uma estrutura mercadológica e que ainda sem se dar conta (espera-se), (espera se), evita e nega a real construção de um saber histórico que sirva às futuras gerações. Por certo, tais poéticas (ligeiramente perversas) surgem também em decorrência de um legado moderno de inserção do transitório como uma categoria do belo. Baudelaire já havia apontado que estaríamos na modernidade diante de um processo de construção ideológica onde o belo (anteriormente entendido como uma potência de eternização e duração) se OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 54 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir dividiria idiria em dois eixos: o eterno/o imutável e o efêmero/o evanescente. O que talvez não imaginasse é a posterior supremacia do não-estabelecimento não estabelecimento e o desejo brutal de uma presença do presente que vagarosamente se constitui como uma constância absoluta que desconhece esconhece o amanhã. A ideia de continuidade e mesmo a de futuro, esta palavra que já parece ligeiramente inadequada, inclusive porque não temos mais nenhuma certeza que chegaremos em casa com as nossas duas pernas, se desenha aos poucos e tão lentamente como mo uma peça de museu histórico. Surge então um paradoxo em ritornelo: o futuro parece então algo do passado, como se os dois tempos conseguissem se encontrar em uma esfera longínqua de comunhão e apagamento. Restaria um presente eternamente presente, também també já afastado de um eterno retorno nietzschiano onde a particularidade do instante brotaria em cada repetição. Sendo assim, talvez tenhamos chegado a um paradigma curioso em que somos flâneurs de flâneurs de nós mesmos e onde o deslizamento e a deambulação deambulaçã são marcas indeléveis, como nos filmes conhecidos de zumbis em sua errância sem desejo. A fábrica ainda continua a fabricar seus produtos (objetos, filhos e operários), agora de forma mais “natural” e paradoxalmente repleta de justificativas tão precisas que o convencimento da necessidade de sua existência parece indiscutível. Se Hélio Oiticica já havia afirmado que o museu é o mundo, talvez também seja importante perguntar em que medida, a fábrica hoje também não é o mundo3. Um mundo-fábrica mundo ou uma gaiola-mundo mundo que fabrica seus sujeitos, submissos a uma pressuposta presentidade do presente. Lacan, no seminário XVI, discorre sobre a homologia entre a mais-valia mais de Marx e o mais-de-gozar. gozar. Se, em Marx, há algo do trabalho que não pode e não interessa ser quantificado antificado em termos financeiros, ou seja, se há algo do trabalho do operário que jamais será capturado e operacionalizado por seu pagamento, há para Lacan, algo dentro da lógica de gozo que sempre escapará e cairá como um projétil inalcançável: o próprio objeto a. Se há algo de perda no trabalho do operário, que em certo sentido ainda somos nós, também há algo de inacessível no gozo, no prazer e na juissance que justificará a busca, mas que jamais se revelará presente. A falta do objeto do gozo, ou melhor, o objeto que traz em si a falta é um dos principais definidores do século XX. Viver, então, seria este moto-contínuo moto em busca daquilo que jamais se presentificará. presentificará. Neste seminário de 1968, ministrado posteriormente às revoluções de maio na França, Lacan também defende que o grande Outro é o mercado, já que é ele que determina, acomoda e conforma o nosso comportamento. Em termos bastante superficiais, na fábrica ca do mundo, o mercado é o chefe. 3 Outra pergunta ingênua e paradoxalmente necessária: O museu é uma fábrica de memória? OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 55 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir Desta maneira, sendo inelutável a presença do chefe sem nome e sem face como determinador do nosso comportamento e considerando que seu olhar vigilante (talvez dentro de um outro tipo de panóptico não mais físico) é responsável responsável por esculpir nosso processo de ação, reação e construção simbólica, a possibilidade de escape e de fuga seriam bastante raras. Gilles Lipovetsky pergunta em seu livro, A Era do Vazio: “Quem vai se salvar dessa maré?”. maré E Foucault, discorrendo sobre uma uma nova forma de disciplina que ele chama de biopolítica, defende: Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica é – diferentemente da disciplina, que se dirige ao corpo – a vida dos homens, ou ainda se vocês preferirem, ela se dirige não ao homem-corpo, corpo, mas ao vivo, ao homem ser vivo; no limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie. homem espécie. Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas multiplicidade na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, produção, a doença, etc...(FOUCAULT, 2000. P. 204) A biopolítica para Foucault é um processo de regulamentação da população, como se fosse um novo corpo, um corpo múltiplo, um corpo numerável, uma multidão. A população torna-se se um problema científico, político, biológico e obviamente, um problema de poder. (Foucault, p. 206). A biopolítica então envolveria todas estas esferas através de um conjunto de estratégias que visariam regulamentar e higienizar a esfera pública, visando a “proteção” dos indivíduos e a manutenção da ordem e do bem-estar. bem O que é estranho nho dentro desta lógica é a dissimulação do desejo de domínio e ainda, a manutenção da vigilância dos corpos que por sua vez, não teriam mais escolha diante do seu funcionamento. A conduta seria regulada através de uma percepção da população como um contingente contingente econômico. Slavoj Zizek em Problema no paraíso, do fim da história ao fim do capitalismo, capitalismo indica que a potencialização destes regimes de vigilância e de condicionamento claramente econômicos, aliados a atual lógica de revolução para a derrubada dos dos antigos mestres e dos antigos poderes, terminou por erigir uma outra forma de conduta, filha e fruto do capitalismo tardio: Hoje em dia a figura da autoridade preponderante não é mais o Mestre patriarcal. Nem mesmo o totalitarismo é um discurso do Mestre; Mestre; mas a trágica experiência de muitas revoluções em que a derrubada do antigo Mestre terminou num terror muito mais brutal não deveria de forma alguma nos conduzir a advogar um retorno à autoridade paternal simbólica como único modo de escapar do impasse autodestrutivo self multiforme narcisista característico do capitalismo tardio. (ZIZEK, 2015, p. 22) OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 56 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir Em termos muito superficiais, o discurso do mestre é um dos quatro discursos formulados por Lacan e que é representado da seguinte maneira: Na posição ção do agente, temos S1, concebido aqui como mestre, ou seja, aquele que detém o saber. Por outro lado, este saber não lhe é próprio (e nem mesmo absoluto), pois depende diretamente do Outro, que nesta formulação é representado representado pelo escravo. O saber do senhor hor depende do saber do escravo e por esta razão, paradoxalmente, está escravizado a ele, que por sua vez, oculta e revela o objeto de produção de gozo; que nesta estrutura é representado pelo objeto a. Por outro lado, o mestre para ser mestre, precisa ocultar ocu a sua divisão subjetiva, a sua verdade. O mestre depende do escravo que oculta a sua partição inevitável, o seu furo, a sua fragilidade e a sua fragmentação, enquanto o escravo também oculta o objeto de seu gozo. Segundo Zizek, não temos mais a figura figura do mestre, já que nem mesmo o totalitarismo se coloca enquanto tal. A falta deste elemento estruturante de domínio que anteriormente podia ser localizado na figura do soberano, do presidente ou mesmo de um sistema específico, terminou por provocar um vazio vazio que reverbera e retumba uma lógica narcisista que segundo ele, é inevitavelmente autodestrutiva. Ou seja, o escravo (nós), em virtude do cansaço de tantas revoluções e questionamentos ao poder instituído terminou vencendo-o, vencendo mesmo que pressupostamente. O que nos surge como legado é uma nostalgia do mestre, uma inestimável saudade do eixo de dominação que talvez fosse capaz de nos eliminar desta engrenagem egotrip e rapidamente consumível. O que brota é um vazio encenado no lugar do dominante que agora não mais pode ser localizado em algo ou alguém. E como este oco nos provoca alguma ansiedade, é possível perceber com cada vez mais frequência uma demanda de ordem e subjugo advinda dos mais diversos lugares e dos mais distintos grupos, como se fosse uma melancolia melancolia do algoz; que podemos perceber nos movimentos políticos de extrema direita, nos neopentecostais, nos movimentos neofascistas, neonazistas e na própria esquerda que se revela perdida diante da impossibilidade de encontrar seu inimigo, que como sabemos, sabemos, dorme conosco e somos nós mesmos. OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 57 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir Em certo sentido, “a atual tendência do capitalismo de suspender a democracia” (ZIZEK, 2015, p. 27) tem conseguido vagarosamente a sua vitória, através de um sistema que vela a sua potência disciplinar, como se o próprio próprio capitalismo tardio viesse a ser um dos espaços físicos onde a disciplina se instaura. Além disso, não é justo esquecer uma tendência clara de dominação biológica através de uma falácia da regulamentação dos corpos que justificaria tais políticas de ação, regulação, saneamento, higienização e gentrificação. Nesta busca obsessiva do algoz (motivada por algum saudosismo) e pela lógica silenciosa de um sistema de dominação, procuramos sempre uma forma de contestar a lógica dominante. Em certo sentido, contestar é a palavra de ordem, venha de onde vier. O problema é que o quê nos interessa é muito mais o ato da contestação do que especificamente seus efeitos e seu legado. Neste sentido, tudo parece bastante pertinente, pois fomos disciplinados de maneira potente a afirmar muito mais o processo do fazer do que especificamente pensar sobre as estratégias necessárias para que obtenhamos um resultado efetivo. A atitude hegemônica atual é a da ‘resistência’, como testemunham as poéticas das dispersas minorias, minorias sexuais, étnicas, os modos de vida das ‘multitudes’ (gays, ( doentes mentais, prisioneiros...) ‘resistindo’ a um misterioso Poder Central (capitalizado). Dos gays e lésbicas aos sobreviventes da direita todos resistem – nesse caso, porque não chegar à conclusão conclusão lógica de que o discurso da <<resistência>> é hoje a norma que, enquanto tal, se tornou o principal obstáculo à emergência de um discurso que realmente interrogaria as relações dominantes? (ZIZEK, 2006, p. 60) CONSIDERAÇÕES FINAIS Em tempos de cólera e de angústia, como os que vivemos hoje (seja este hoje qual for e venha de onde vier), talvez seja importante percebermos que a lógica de contestação é dominante. Mas em que medida tal lógica também não pode ser um elemento de dominação? dominaçã Como pensar as relações de aderência e afastamento entre o dominante e a dominação? Ou seja, como reconhecermos o dispositivo político e comportamental que incute a dominação dentro de uma lógica dominante e que pressupostamente defende a democracia do pensamento? Será que atualmente, o sistema, o capital e toda o espetáculo que norteiam as relações humanas não teriam conseguido atingir o seu objetivo primeiro e maior de dissimular seu processo de pasteurização da crítica? Ou ainda, será que o devir-resistência devir da contemporaneidade é um simulacro de um impedimento estetizado e esvaziado do pensar? Como a academia em todos os seus estudos, textos, revistas, aulas, pontuações e currículos conseguiriam reverter um fluxo midiático de revolução ensimesmada e encarnada e como OLHARES PLURAIS – Revista Eletrônica Multidisciplinar, Vol. 1, Nº. 14, Ano 2016 ISSN 2176-9249 OLHARES PLURAIS - Artigos 58 Dossiê Especial: 40 anos de Vigiar e Punir personagem de produção? Haveria alguma possibilidade do saber escapar à disciplina da fábrica do dizer? REFERÊNCIAS BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra. 1996 BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência ética. Belo Horizonte. Autêntica editora. 2015. DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo. Editora 34. 2000. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo, Martins Fontes. 2000. ______. Vigiar e Punir. Petrópolis. Editora Vozes. Vozes 1997 LACAN, Jacques. Seminário XVI. De um Outro ao Outro. Rio de Janeiro. Jorge Zahar editor. 2000. COUTO, Mia. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. 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