UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA A CONSTRUÇÃO
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA A CONSTRUÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E CULTURA MARCIA RITA DOS SANTOS SALES A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA FEMINILIDADE EM PROPAGANDAS DE COSMÉTICOS SALVADOR 2014 MARCIA RITA DOS SANTOS SALES A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA FEMINILIDADE EM PROPAGANDAS DE COSMÉTICOS Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação em Língua e Cultura, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, como requisito para obtenção do grau de mestra em Lingística. Orientadora: Profa. Dra. Lícia Maria Bahia Heine Salvador 2014 A Maura e Edvaldo, meus pais, pelo amor que me encoraja. Aos meus irmãos, pela companhia que me alegra. AGRADECIMENTOS A Deus, por me protejer e abençoar todos os dias, me permitindo realizar pequenos e grandes sonhos. A minha orientadora, Prof.ª Lícia Heine, por ter acreditado em mim, pelo seu comprometimento, pelo entusiasmo e dedicação com que realiza seu trabalho e que tanto me inspira. Sou grata, principalmente, por compreender os meus atrasos, as minhas faltas. À Prof.ª Palmira Heine, pela disponibilidade em me ajudar desde os primeiros passos, na escolha do tema deste trabalho, sempre prestativa e dedicada. A Adielson Ramos de Cristo, por me ajudar com o seu conhecimento e também por me ouvir em momentos de apeensão e dúvidas. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da Universidade Federal da Bahia, pela competência e dedicação. Aos meus pais, pela doação, apoio e incentivo em todos os momentos. Pelo orgulho que demonstram a cada pequena conquista. Aos meus irmãos que sempre me apoiaram na realização dos meus projetos. A Dr. Roque, pela dedicação e profissionalismo com que conduz seu trabalho, que tanto me fortaleceu durante esse processo. Sua amizade e companhia foram muito importantes para mim. A Dr. Karibé, pelo amparo, pela força, pelo compromisso e amizade sinceros. Aos meus colegas de mestrado, por compartilharem suas experiências acadêmicas e profissionais. A Mariana e Carol, pela compreensão e companhia, dividindo o espaço que nos abriga. Aos meus colegas de trabalho, pela compreesão e incentivo. “Entre a mulher e nós interpõe-se um fantasma: o de sua imagem, da imagem que fazemos dela e da qual ela se reveste. Não podemos sequer tocá-la como carne que se ignora a si mesma, porque entre nós e ela, desliza esta visão dócil e servil de um corpo que se entrega. E com a mulher acontece o mesmo: não se sente nem se imagina, a não ser como objeto, como ‘outro’. Nunca é dona de si. Seu ser se divide entre o que é realmente e a imagem que faz de si. Uma imagem que lhe foi impressa por família, classe, escola, amigas, religião e amante. Sua feminidade nunca se expressa, porque se manifesta por meio de formas inventadas pelo homem. [...]” Octavio Paz, 1992. SALES, Marcia Rita dos Santos. A construção discursiva da feminilidade em propagandas de cosméticos. 104 f. il. 2014. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. RESUMO Orientada à luz da Análise de discurso desenvolvida por Pêcheux, a proposta desse trabalho é analisar a construção discursiva da feminilidade, historicamente marcada e determinada por posicionamentos ideológicos na propaganda de cosméticos. Nas sociedades modernas, é justamente esse setor de produtos um forte revelador de padrões estéticos impostos pela formação social capitalista. Influenciadas por tais posicionamentos evidenciados pela mídia, as mulheres são instadas a consumir produtos que lhes assegurem o corpo esguio, magro, a pele rejuvenescida e bem cuidada, o cabelo em tons e cortes modernos que lembrem as modelos e atrizes bem sucedidas deseus comerciais. A análise aqui faz pensar o discurso sobre a mulher nas propagandas de cosméticos, observando a relação entre língua e ideologia. Uma relação atestada pelo fato de que a língua(gem) não é transparente e, portanto, também os sentidos não o são. Isso porque, como o sujeito não é dono do seu dizer, faz-se mister considerar que o interdiscurso determina os sentidos de uma formação discursiva. Assim, será adotado o procedimento de ir e vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise, a fim de perceber como os sentidos sobre a feminilidade são constituídos nas propagandas que serão analisadas. Palavras-Chave: Propaganda; discurso; feminilidade. SALES, Marcia Rita dos Santos. A construção discursiva da feminilidade em propagandas de cosméticos. 104 f. il. 2014. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. ABSTRACT Oriented in light of the analysis of discourse developed by Pecheux, the purpose of this paper is to analyze the discursive construction of femininity, which is historically marked and determined by ideological positions in advertising cosmetics. In modern societies, it is precisely such sector of products that strongly reveals aesthetic standards imposed by the capitalist social formation. Influenced by such ideological positions evidenced by the media, women are encouraged to consume products which ensure the slender and slim body, rejuvenated and well-cared skin and modern hair colors and cuts that remind the successful models and actresses present in commercials. The analysis here in discuss the discourse on women in advertisements for cosmetics, taking into consideration the relationship between language and ideology. A relationship that is attested by the fact that language is not transparent and, therefore, neither are the senses. That's because, as the subject is not the master of her discourse, it is important to consider that interdiscourse determines the directions of a discursive formation. Thus, the procedure to be adopted shall be the constant turn-taking between theory, corpus consultation and analysis in order to understand how the meanings about femininity are made in the advertisements to be analyzed. Keywords:Advertising; discourse; femininity. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Anúncio em jornal em 1878. …………………………………………………….40 Figura 2 - Anúncio de máquina de costura, 1860……………………………………………41 Figura 3 - Anúncio ao Collete de Ouro, 1860…………………………………………….42 Figura 4 – Propaganda da década de 1930…………………………………………………..43 Figura 5 – Propaganda da década de 1950…………………………………………………..44 Figura 6 – Propaganda da Bombril na década de 1980……………………………………...46 Figura 7 – Propaganda de elixir da década de 1880…………………………………………59 Figura 8 – Propaganda de eletrodomésticos, final do século XIX…………………………...60 Figura 9 – Propaganda de maquiagem da década de 1960…………………………………. 62 Figura 10 – Propaganda de maquiagem da década de 1980…………………………………64 Figura 11 – Propaganda da década de 1990………………………………………………….65 Figura 12 – Propaganda NIVEA – My Silhouet-gel redutor………………………………….72 Figura 13 – Propaganda O Boticário – maquiagem, veiculada em outdoor…………………77 Figura 14 – Propaganda O Boticário - maquiagem, versão para revista…………………….78 Figura 15 – Propaganda Nivea, loção hidratante para o corpo……………………………….81 Figura 16 – Propaganda Natura/ Linha de maquiagem-1ª página……………………………86 Figura 17 – Propaganda Natura/ Linha de maquiagem-2ª página…………………………....87 Figura 18 – Propaganda Natura/ Linha de maquiagem-3ª página……………………………87 Figura 19 – Propaganda Natura/ Linha de maquiagem-4ª página……………………………88 Figura 20 – Propaganda Dove firmming, loção corporal e sabonete firmadores da pele……..92 Figura 21 – Propagada NIVEA, produtos disversos…………………………………………..96 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO…………………………………………………………………….11 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE DE DISCURSO…………………….16 2.1 ORIGEM, CONCEITUAÇÃO E FILIAÇÕES……………………………………...16 2.2 MICEL PÊCHEUX…………………………………………………………………. 20 2. 3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA ANÁLISE DE DISCURSO PECHEUTIANA...25 2.3.1 Discuso e ideologia………………………………………………………………….25 2.3.2 Sujeito e sentido…………………………………………………………………….28 2.3.3 Esquecimentos……………………………………………………………………....31 2.3.4 Condições de produção, interdiscurso e formação discursiva…………………...32 3 UM BREVE OLHAR SOBRE A PROPAGANDA……………………………….37 3.1 A PROPAGANDA NO BRASIL……………………………………………………38 4 OS COSMÉTICOS – O QUE SÃO, COMO SURGIRAM, SEU PODER DE TRANSFORMAR…………………………………………………………………..48 5 A MULHER, SEU ESPAÇO: DE CASA À PROPAGANDA DE COSMÉTICOS……………………………………………………………………...58 5.1 COMO ERA NO PRINCÍPIO……………………………………………………….58 5.2 A MULHER, SEU CORPO, SUA BELEZA………………………………………...66 6 A QUESTÃO DA FEMINILIDADE………………………………………………69 6.1 COPO DESEJÁVEL…………………………………………………………………71 6.1.1 nivea my silhouety – silhueta perfeita, curvas de arrasar………………………...72 6.2 PARA GARANTIR O “GATO”, O “PRÍNCIPE”…………………………………..76 6.2.1 Maquiagem O Boticário – Para que varinha de condão………………………....77 6.2.2 Para conquistar – Hidratante corporal Nivea……………………………………81 6.3 A “MULHER DE VERDADE”, A “REAL BELEZA”……………………………..85 6.3.1 Maquiagem Natura Única, para “gente bonita de verdade”……………………86 6.3.2 Dove firming – Mulheres com curvas “de verdade”……………………………..92 6.3.3 Beleza é…Nivea……………………………………………………………………96 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………….101 REFERÊNCIAS…………………………………………………………………104 11 1 INTRODUÇÃO Considerando a importância de textos veiculados pela mídia, em especial a propaganda, com seu poder de manipulação, é mister observar a presença de um discurso resultante do entrelaçamento de diferentes formações discursivas, historicamente marcado. Já que o sujeito constitui-se por diversas ideologias, seu discurso, consequentemente, será marcado por uma heterogeneidade. Ele vai além da materialidade linguística, e permite a inserção daquilo que lhe é exterior. Nessa conjectura, destaca-se o poder do discurso midiático na construção de identidades sociais, determinando papeis, lugares e a participação dos sujeitos na vida social. Organizada de forma diferente das demais mensagens, a publicidade impõe, nas linhas e entrelinhas, valores, mitos, ideais e outras elaborações simbólicas, utilizando os recursos próprios da língua que lhe serve de veículo, sejam eles fonéticos, léxico-semânticos ou morfossintáticos (CARVALHO, 1998, p. 13). A mulher, mais especificamente, o papel social que lhe foi atribuído, sempre mereceu questionamentos ao longo do tempo, visto que, pautado numa sociedade que sempre privilegiou o masculino, sofreu e ainda sofre distorções. Ser mulher significava, desde ser a cuidadora do lar, da família, limitando-se ao espaço de suas casas, até a sua saída de casa, quando acessa outros espaços sociais e tem o seu corpo desvelado pelos meios de comunicação. É a partir daí que o corpo feminino passa a ser oferecido pela publicidade. Serviços e produtos diversos valem-se constantemente da imagem feminina, numa série de exigências que perpassam pela moda e pela estética. A indústria de cosméticos é um dos setores que mais exploram esse artifício. Esse trabalho pretende justamente analisar a construção discursiva da feminilidade, historicamente marcada e capaz de determinar posicionamentos ideológicos na propaganda de cosméticos. Nas sociedades modernas, é justamente esse setor de produtos um forte revelador de padrões estéticos impostos pelo grupo social. Influenciadas pela mídia, as mulheres precisam consumir produtos que lhes assegurem o corpo esguio, magro, a pele rejuvenescida e bem cuidada, o cabelo em tons e cortes modernos e que lembrem as modelos e atrizes bem sucedidas de seus comerciais. As propagandas de cosméticos como qualquer outro objeto utilizado pela mídia, estão impregnadas de ideologias e, por isso, são capazes de revelar os anseios, padrões, sejam eles estéticos, morais e de comportamento. 12 A proposta de análise, nesse trabalho, faz pensar os sentidos dos discursos nas propagandas de cosméticos dimensionados no tempo e no espaço das práticas do homem, considerando o discurso sócio-histórico, observando a relação ente língua e ideologia. Segundo Orlandi (2009), o trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana e concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Esse trabalho será orientado à luz da Análise de Discurso de linha francesa desenvolvida por Michel Pêcheux, segundo o qual o discurso é o efeito de sentidos entre interlocutores. Concluindo-se que o sentido, no texto publicitário, a propaganda, se dá a partir das relações entre os interlocutores e as condições de produção e assim a propaganda constrói seu discurso levando em consideração a sua exterioridade. O que é possível de seduzir o consumidor, seu público alvo. Relacionando a linguagem a sua exterioridade, Pêcheux (1975) propõe o interdiscurso, definindo-o como memória discursiva. “[...] o saber discursivo que torna possível todo o dizer [...]”, nas palavras de Orlandi (2009, p. 31): De acordo com esse conceito, as pessoas são filiadas a um saber discursivo que não se aprende, mas que produz seus efeitos por intermédio da ideologia e do inconsciente. O interdiscurso é articulado ao complexo de formações ideológicas representadas no discurso pelas formações discursivas: algo significa antes, em outro lugar e independentemente. A partir da observação das formações ideológicas que compõem o discurso nas propagandas, será analisada a representação discursiva da feminilidade, considerando a mulher em sua inscrição histórico-social. A criação de peças publicitárias que dão enfoque à imagem da mulher explora suas necessidades, trabalha a partir de seus desejos de perfeição estética, de agradar o parceiro, de estar na moda etc. São exigências fundamentadas em padrões culturalmente impostos, carregados de ideologias, perpetuados ao longo da história. Para nortear a pesquisa aqui apresentada, propõe-se o quetionamento sobre como se dá a construção do discurso sobre a feminilidade, nas propagandas de cosméticos. Levando em consideração o sentido de feminilidade como o conjunto de características que vão além dos aspectos físicos e morais e alcança outras capacidades que valorizam a figura feminina para além de objeto. Mais especificamente, nessa pesquisa, analisa-se, a partir da propaganda de cosméticos diversos, nacionais, as formações discursivas e ideológicas que aí interagem e que 13 constroem a feminilidade, levando em conta os elementos multissemióticos do texto publicitário. Na tentativa de identificar padrões, culturalmente impostos, e as ideologias perpetuadas ao longo da história, no discurso sobre a mulher, foram analisadas seis propagandas de cosméticos: 1. Gel redutor de gordura e modelador da silhueta, da marca Nivea; 2. Maquiagem da marca O Boticário; 3. Loção hidratante para o corpo, da marca Nivea; 4. Maquiagens da linha Unica da marca Natura; 5. Loção firmadora da pele, da marca Dove; 6. Produtos diversos, da marca Nivea. O estudo proposto neste trabalho, analisar propagandas, nasce da experiência particular, na observação atenta dos textos midiáticos e do fascínio que estes despertam como objeto cultural e artístico. Surge, também, do trabalho com esse gênero textual em sala de aula, da necessidade de uma percepção crítica maior dos discursos veiculados por ele, capazes de vender, não apenas produtos, mas também valores e imagens. O recorte do tipo de propaganda parte da inquietação diante da imagem feminina criada pela publicidade no processo sócio-histórico que constrói a cultura. Essa imagem feminina vem recoberta de uma série de exigências, principalmente estéticas, capazes de influenciar e gerar mudanças de comportamento. Para a seleção das propagandas que constituem o corpus foram considerados, em sua composição, elementos significativos quanto a presença de posicionamentos ideologicos. Assim são consideradas palavras e imagens que encaminhem a publicidade de produtos cosméticos para um ponto comum, a identificação de dizeres e sentidos sobre a mulher e sobre feminilidade. Não é fácil fazer uma abordagem sobre a constituição dos vínculos sociais nas comunidades modernas sob a influência da mídia. Portanto, se justifica analisar, estudar, descrever os mecanismos que regulam o simbólico, que criam e manipulam signos, sob a condição de não se cair na armadilha das falsas aparências. O estudo da linguagem, tomando sua importância no ato social de comunicação, é de grande relevância na formação de uma sociedade. Com base nesta consideração, este trabalho visa contribuir para a discussão sobre o papel e a imagem atribuída à mulher, bem como o uso de sua imagem pela publicidade. Esta pesquisa pode também ensejar uma real compreensão dos fenômenos de comunicação de massa, num país em desenvolvimento, onde a propaganda é forte instrumento de consumo. Esta análise faz refletir sobre o sentido de feminilidade, construída pelo quarto poder, a mídia, através da propaganda. Faz pensar as diferenças entre a mulher real e a exposta pela 14 propaganda, muitas vezes inalcançável e que gera distorções e exigências que anulam sua essência. Para a análise do corpus proposta nessa pesquisa, é necessário frisar, recorre-se a uma sequência gradativa, que vai da superfície linguística compreendida como a materialidade do discurso, sua forma empírica, afetada, segundo Pêcheux, pelos esquecimentos 1 e 2. Passa pela análise do objeto discursivo, ou seja, o objeto dessuperficializado linguisticamente, que, segundo Pêcheux (2010), refere-se à língua, em sua existência material, caracterizada pela estrutura não linear dos mecanismos sintáticos e que já desconsidera o esquecimento nº 2, ou seja, considera outras possibilidades do dizer. Chega-se ao processo discursivo, o discurso da análise proposta pela teoria pechetiana, afetado pela ideologia e o inconsciente. Segundo Orlandi (2009, p. 67), “[...] construímos, a partir do material bruto, um objeto discursivo em que analisamos o que é dito nesse discurso e o que é dito em outros, em outras condições, afetados por diferentes memórias discursivas”. Pretende-se, então, detectar a relação do discurso com as formações discursivas, e, considerando que a análise do discurso Pechetiana visa compreender como um objeto simbólico produz sentido, será adotado o procedimento de ir e vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise, a fim de perceber as formações discursivas explícitas ou implícitas nas propagandas analisadas, capazes de construir a imagem feminina. Este trabalho foi organizado em cinco capítulos. O primeiro capítulo, “Considerações sobre a Análise de Discurso”, apresenta, de maneira suscinta, a origem dos estudos do Discurso e da Análise de Discurso como disciplina. Faz uma explanação sobre Michel Pêcheux e os pressupostos de sua teoria, a qual dá embasamento a esta pesquisa. No segundo capítulo, “Um olhar sobre a propaganda”, mostra-se, a princípio, a diferenciação entre os termos propaganda e publicidade, comumente confundidos em seu uso cotidiano. Em seguida, explicita-se o percurso histórico da propaganda; o modo como foi desenvolvida, especialmente no Brasil, e sua consolidação. Mostra também, a partir da referência aos hábitos de consumo, o tipo de produtos e serviços que se valiam dos “reclames”, como eram chamadas as propagandas. O terceiro capítulo, “Os cosméticos – o que são, como surgiram, seu poder de transformar”, apresenta a origem do termo e a classificação que se dá a esses produtos, de acordo com os objetivos de sua utilização. Seguem-se algumas considerações sobre os objetivos da indústria cosmética aliada à propaganda. Faz-se uma exposição da evolução dos cosméticos na história, considerando o seu uso, os objetivos e costumes em várias culturas e seu valor atribuído pela mulher, que desde muito tempo, credita aos cosméticos o poder de 15 embelezar. Por fim, o capítulo discute o uso da imagem da mulher utilizada pela propaganda de cosmético, que promete juventude e perfeição estética. O quarto capítulo, “A mulher, seu espaço: de casa à propaganda de cosméticos”, procura mostrar a maneira como a mulher é representada socialmente e a maneira como a mídia se utiliza dos papeis atribuídos a ela ao longo do tempo. Traz um esboço da utilização da figura feminina pela propaganda, analisando desde as primeiras peças publictárias, na década de 70 do século XIX, até o final do século XX. Ao final, reflete sobre a super exposição do corpo da mulher na publicidade, hoje, questionando o modo como ela é representada. Essa representação apenas reflete seu papel como objeto sexual, desprezando sua singularidade e esssência. Enfim, o quinto capítulo, “A questão da feminilidade” traz a análise do corpus, apresentando as imagens de cada propaganda, em um total de seis peças publicitárias. Esses anúncios foram agrupados de acordo com caractéristicas que dizem respeito principalmente à constituição do discurso e o sentido pretendido, para enfatizar a necessidade de aquisição do produto. Assim, a análise de cada grupo de propagandas é intitulada de acordo com os recursos e dizeres simbólicos comuns a esses anúncios. Primeiro faz-se uma descrição, considerando os recursos multissemióticos que compõem a propaganda, depois chega-se à análise e aplicação dos pressupostos teóricos. Vale ressaltar, ainda, que os termos “propaganda’ e “publicidade” são utilizados como sinônimos, nesse trabalho. Além desses termos, outros, como “anúncio” e “peça publicitária” serão adotados para designar esse objeto cultural, de que se utiliza essa pesquisa. 16 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE DE DISCURSO 2.1 ORIGEM, CONCEITUAÇÃO E FILIAÇÕES DA AD A gênese da Análise de Discurso pode ser compreendida a partir do estudo do desenvolvimento da Linguística. O interesse em estudar o objeto de que se ocupa essa disciplina, lembra Orlandi (2009), já havia sido apresentada em diferentes épocas e sob diferentes perspectivas, mesmo que de forma não sistemática. O estudo da língua e seu funcionamento para a produção de sentido, que é o objeto de estudo da AD, já começa a ser investigado no século XIX. Tomando o texto em sua materialidade linguística, M. Bréal propõe seu estudo com a semântica histórica. Em seguida os formalistas russos, no século XX, já propunham uma análise que não era a análise de conteúdo e depois, outras teorias se ocuparam em estudar a língua e seu uso. A Análise de Discurso, procurou definir o seu campo de atuação, analisar textos impressos. A princípio a AD se apoiando sobre conceitos e métodos da linguística. Contudo, não é suficiente apenas a Linguística. Para marcar a sua especificidade no interior dos estudos da linguagem e, a AD considerou outras dimensões como a ideologia e o discurso. A Análise de discurso, tal como será tratada nesse trabalho, nasceu na França, em 1960. Veja-se, sobre isso, o que diz Mussalin: É sob o horizonte comum do marxismo e de um movimento de crescimento da Linguística – que se encontra em franco desenvolvimento e ocupa o lugar de ciência piloto – que nasce o projeto da Análise do Dscurso (doravante AD). O projeto da AD se inscreve num objetivo político, e a Linguística oferece meios para abordar a política (MUSSALIM, 2012, p. 114). O conceito de discurso, como objeto de investigação científica de que se ocupa essa disciplina, se distancia das acepções decorrentes de seu uso no cotidiano. Diferente do uso que se faz, por exemplo, quando se refere às palavras proferidas com eloquência por um político ou um professor, a palavra discurso é tomada pela AD, em geral, referindo-se “a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas”. Para Cleudemar Fernandes (2008, p. 13): “discurso implica uma exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente linguística”. O discurso, então, não é a linguagem como materialidade simbólica. O discurso considera as posições e ideologia dos sujeitos envolvidos, seus lugares sociohistóricos. A 17 linguagem é a forma através da qual o discurso se materializa, como bem se atesta na seguinte citação: O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando. Na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, contitutivo do homem e da sua história (ORLANDI, 2009, p. 15). A partir do exposto, pode-se dizer que os estudos da AD consideram a linguagem como intermediária entre o homem e sua realidade natural e social. Trabalha-se com o discurso como objeto sociohistórico “em que o linguístico intervém como pressuposto”. Um breve esboço histórico esclarece o surgimento da AD como disciplina, como se estuda hoje. Os anos 50 serão decisivos para a constituição de uma análise do discurso como disciplina. De um lado, surge o trabalho de Harris (Discourse analysis, 1952), que mostra a possibilidade de ultrapassar as análises confinadas meramente à frase, ao estender procedimentos da linguística distribucional americana aos enunciados (chamados discursos) e, de outro lado, os trabalhos de R. Jakobson e E. Benveniste sobre a enunciação (BRANDÃO, 2004, p. 13). Os trabalhos de Harris, de um lado, e os de Jakobson e Benveniste, de outro, mostram uma diferença de perspectiva nos estudos em Análise de discurso. Segundo Orlandi (apud Brandão, 2004), essas duas direções vão marcar duas maneiras diferentes de pensar a teoria do discurso: uma que a entende como uma extensão da linguística (que corresponde à pespectiva americana) e outra que considera o enveredar para a vertente do discurso o sintoma de uma crise interna da linguística, principalmente na área da semântica (que corresponderia à perspectiva europeia). Nos estudos de Harris se procede a uma análise do texto do mesmo modo como se analisam unidades menores e, apesar de ser considerada “o marco inicial” nos studos da AD, sua obra não leva em consideração elementos sociohistóricos na produção de sentidos. Este autor Caracteriza sua prática teórica no interior do que chamamos isomorfismo: estende o mesmo metódo de análise de unidades menores (morfemas, frases) para unidades maiores (texto) e procede a uma análise linguística do texto como o faz na instância da frase, perdndo dele aquilo que ele tem de específico (ORLANDI, 2009, p. 18). 18 Portanto, ele não leva em conta a totalidade do texto com suas especificidades. Não há uma análise do significado fora do linguístico. Numa outra perspectiva, Benveniste “dá relevo ao papel do sujeito falante no processo de enunciação e procura mostrar como acontece a inscrição desse sujeito nos enunciados que ele emite” (BRANDÃO, 2004. p. 14). Nesse trabalho, que Orlandi aponta como uma tendência europeia, há uma aproximação com o trabalho empreendido pela Análise de discurso que reflete sobre a inscrição sociohistórica dos sujeitos. A análise de discurso se filia, teoricamente, a três campos disciplinares: a Linguísica, o Marxismo e a Psicanálise. Da Linguística, a AD se beneficia do foto de que esta “constitui-se pela afirmação da não-transparência da linguagem: ela tem seu objeto próprio, a língua, e esta tem sua ordem própria” (Orlandi, 2009, p. 19). Isso é fundamental para a AD, já que ela “procura mostrar que a relação linguagem/pensamento/mundo não é unívoca, não é uma relação direta que se faz termo-a-termo, isto é, não se passa diretamente de um a outro” (Orlandi, 2009, p. 19). Quanto ao Marxismo, “a Análise de discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o de que há um real da história de tal forma que o homem faz história mas esta também não lhe é transparente”. A contribuição da Psicanálise se dá com “o deslocamento da noção de homem para a de sujeito. Este, por sua vez, se constitui na relação com o simbólico, na história”. Para Orlandi (2009), a AD é herdeira dessas três regiões de conhecimento, mas não o é de modo servil e interroga a Linguística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele ( ORLANDI, 2009, p. 20). A constituição da Análise de discurso está centrada particularmente nas propostas de Pêcheux, Bakhtin e Foucalt. Cada um, com suas diferentes formulações teóricas e metodológicas contribuíram para esse campo do saber. Como observa Gregolin (2012), esses autores, com suas singularidades, toma o sentido de discurso no interior do seu projeto de constituição, na França, desde o final dos anos 1960. Em princípio, adotou-se o discurso político como objeto privilegiado, uma tentativa que se identificava com o marxismo e a psicanálise. 19 Portanto, os diálogos entre Pêcheux, Foucault e Bakhtin envolveram diferentes respostas à articulação entre teorias linguísticas , teorias do sujeito e teorias da história e da sociedade. Observando os distanciamentos e as aproximações entre esas diferentes formulações, perceberemos que o solo epstemológico da AD foi fertilizado pela interpretação cada um desses autores fez daquilo que Pêcheux chamou de “tríplice aliança”, em torno de Saussure, Marx e Freud (GREGOLIN, 2012, p. 35). É necessário lembrar que Bakhtin se distancia de Pêcheux e Focault quanto ao tempo e espaço de sua produção, por essa razão, “ele participa da AD como um ‘outro’, uma leitura, uma interpretação. “ Essas distâncias temporais e espaciais explicam, em certa medida, as recusas expressas por Pêcheux em relação a Bakhtin”. As divergências entre esses dois autores dizem respeito a seus posicionamentos quanto à linguística, à teoria do social e da história. Por outro lado, uma revisão teórico-metodológica “aproxima a AD pecheutiana de Foucault, Bakhtin e De Certeau, leva à análise do real da língua e do real da história, integrados na produção ‘em espiral’ de configurações do corpus” (Gregolin, 2012). As convergências e divergências entre os projetos da AD de Foucault, Pêcheux e Bakhtin “ não propõe, evidentemente, que seja possível decidir ‘quem estava com a razão’, porque as verdades científicas são relativas. A própria verdade, como afirma Foucaul, é uma construção histórica”. Compreende-se, então, que cada um dos trabalhos desenvolvidos por esses autores levem em conta seu momento histórico. Tanto Pêcheux, quanto Foucault ou Bakhtin, na singularidade de suas propostas, tem muito frequentemente orientdo as pesquisas em AD, no Brasil. Agora não mais restrito ao discurso político, mas abrangendo o discurso publicitário, pedagógico, jornalístico e outros. Mussalin (2003) considera que surgiram diferentes “Análises do Discurso”. […] têm-se duas “Análises do Discurso” diferentes: a Análise do Discurso de origem francesa, que privilegia o contato com a História, e a Análise do Discurso anglo-saxã, área bastante produtiva no Brasil, que privilegia o contato com a Sociologia. […] O que diferencia a Análise do Discurso de Origem francesa da Análise do Discurso anglo-saxã, ou comumente chamada de americana, é que esta última considera a intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos pilares que a sustenta, enquanto a Análise do Discurso francesa não considera como determinante essa intenção do sujeito; considera que esses sujeitos são condicionados por uma determinada ideologia que predetermina o que poderão ou não dizer em determinadas conjunturas histórico-sociais. (MUSSALIM, 2012, p.125) Essa pesquisa, analisando o discurso da propaganda de cosméticos, toma como orientação teórica em Análise de discurso, entre os três autores referidos acima, o trabalho 20 desenvolvido por Michel Pêcheux. Para isso, vale uma explicitação dos postulados da AD pecheutiana, bem como algumas informações sobre esse teórico. 2.2 MICHEL PÊCHEUX Expoente maior do grupo que fundou a Escola Francesa de Análise de Discurso, Michel Pêcheux nasceu em 1938, em Tours e morreu em 1983, em Paris. Os estudos de Pêcheux foram fortemente influenciados por Louis Althuser, com quem estudou Filosofia na École normale supérieure. Além da aproximação desse estudioso com Althuser ser, notadamente, sua inscrição no marxismo, mais especificamente, ambos rompem com uma concepção de ideologia como reflexo da instância econômica e com a concepção de linguagem como instrumento de comunicação e língua como sistema paralisado em uma sintaxe defasada. Quando trabalhou no Laboratório de psicologia no Centre National de la Recherche Scientifique, em 1966, Michel Pêcheux encontrou Michel Ploon e Paul Henry, dois intelectuais igualmente importantes para o surgimento da Análise de Discurso e com quem compartilhou muitas ideias e escritos. O trabalho que Pêcheux apresenta o insere no domínio da Psicologia social, é justamente na crítica que faz a esta e à análise de conteúdo que está a sua aproximação maior com Michel Ploon e Paul Henhy. Objetivando transformar a prática das ciências sociais, Pêcheux reflete sobre a história da epstemologia e a filosofia do conhecimento empírico. Focalizando o sentido, que é o ponto nodal no qual a Lingüística intersecta a Filosofia e as Ciências Sociais, Pêcheux reorganiza este campo de conhecimento. Pelo confronto do político com o simbólico, a Análise de Discurso que ele propõe levanta questões para a Lingüística, interrogando-a pela historicidade que ela exclui, e, do mesmo modo ela interroga as Ciências Sociais questionando a transparência da linguagem sobre a qual elas se sustentam (ORLANDI, 2005, p. 10). É a partir disso que Pêcheux propõe a não transparência da linguagem em sua materialidade, no campo das Ciências Sociais. Ele critica o fato de esta ainda estar presa a uma ideologia defasada. Retornando a Pêcheux em sua trajetória intelectual, e, mais especificamente a sua aproximação com Althusser, pode se dizer que é a partir do pensamento deste filósofo que 21 Pêcheux constrói os fundamentos teóricos a AD. Sobre essa relação, Maldidier (2003, p. 18), assim declara: “Althusser é, para Michel Pêcheux, aquele que faz brotar a fagulha teórica, o que faz nascer os projetos de longo curso”. É no marxismo, mais especificmente, sobre o materialismo histórico, que está a formação do campo conceptual da Análise do dscurso. Pêcheux retoma as ideias de Althusser, e ressignifica conceitos como os de sujeito, ideologia, aparelhos ideológicos de estado, luta de classes. As reflexões desses dois estudiosos convergem para o que se designa como teoria materialista do discurso. Michel Pêcheux publicou seu primeiro artigo em 1966, sob o pseudônimo de Thomas Hebert, na Les Cahiers Pour l‟Analyse, intitulado “Reflexões sobre a situação teórica das ciências sociais, especialmente da psicologia social”. Neste momento, ele já começa a fundar a noção de discurso e traz reflexões mais voltadas para questões epstemológicas. Neste momento ele se refere abertamente ao materialismo histórico e à psicanálise e contesta o fato de as ciências sociais desconsiderarem sua relação com a política. O momento crucial na trajetória de Michel Pêcheux é quando ele publica a obra “Análise Automática do Discurso”, em 1969. Nesta obra, Pêcheux empreende discussões sobre as bases da linguística e sua importância para o discurso, bem como sobre o processo discursivo. É o momento em que este autor lança questões fundamentais de sua teoria do discurso. Baseado nos estudos realizados por Canguilhem e Althusser Pêcheux traz uma abordagem distinta ao pensar a Ciência da Linguagem. As discussões sobre língua e linguagem divergiam do formalismo hermético, questionando a negação da exterioridade. A linguagem não é mais concebida como apenas um sistema de regras formais, ela é pensada em sua prática, atribuindo valor ao trabalho com o simbólico, com a divisão política dos sentidos, visto que o sentido é movente e instável. Em AAD, o sujeito é trazido para o centro de discussão. Não qualquer sujeito, mas um sujeito específico para a análise de discurso, o sujeito do inconsciente, da linguagem, interpelado pela ideologia. É a contribuição do materialismo, que inclui a relação da ideologia e o inconsciente. Pêcheux mostra que “língua e discurso tem materialidades distintas” (Zandwais, 2009, p. 22). Em 1975 com publicação do livro “Semântica e Discurso”, Michel Pêcheux mostra um estágio mais maduro e fortalecido da sua teoria. Ele enumera algumas das evidências que fundam a semântica e propõe um novo olhar sobre esta. Sobre isso, expõe Denise Maldidier: 22 Seu trajeto nos leva de Aristóteles à semântica moderna, passando por Port Royal e Leibniz, indo de Candillac a Kant, depois à fenomenologia moderna. Mosra como à oposição clássica entre necessário e contingente vem se superpor um novo par, o de objetivo e subjetivo. […] Todo o procedimento de Michel Pêcheux […] consiste em colocar na luz o funcionamento dicotômico do pensamento filosófico (MALDIDIER, 2003, p. 46). Pela leitura que faz do filósofo logicista Frege, Pêcheux analisa o funcionamento do pré-construído e a articulação de enunciados. No capítulo sobre discurso e ideologia, Michel Pêcheux, baseando-se na leitura de “Ideologia e aparelhos ideológicos de estado”, trata da interpelação a partir do projeto de Althusser e aprofunda a questão sobre o sujeito de discurso. Sobre esse aspecto, ele assim comenta: Todo o nosso trabalho encontra aqui sua determinação pela qual a questão da constituição do sentido se junta à da constituição do sujeito, e não de um modo marginal (por exemplo no caso particular dos ‘rituais’ ideológicos da leitura e da escrita), mas no interior da própria ‘tese central’, na figura da interpelação (PÊCHEUX, 2009, p. 140). É nesse ponto que a teoria do discurso pechetiana encontra apoio para a sua questão central, a evidência do sentido e do sujeito. Ainda em “Sêmantica e discurso”, Pêcheux traz a expressão “forma-seujeito”, se referindo ao funcionamento imaginário do sujeito. Também o conceito de interdiscurso, já inscrito anteriormente em AAD, aparece como “o todo complexo com dominante” das formações discursivas relacionados às formações ideológicas. A expressão “formação discursiva”, utilizada a princípio por Michel Foucault em Arqueologia do saber, também é aprofundada nesta obra de Michel Pêcheux. Portanto, na obra em questão, Pêcheux ordena conceitos de sua teoria do discurso, enquanto um campo outro do saber. Ocupando-se dos estudos da linguagem, o que o difere de Althusser, trabalha com o discurso como o lugar da constituição do sujeito e do sentido mediados pela materialidade da língua. Diferente do exposto sobre algumas obras de Michel Pêcheux, apresentadas aqui numa ordem cronológica, o seu projeto de elaboração da AD, configura-se em três épocas que se definem pela elaboração e revisão dos conceitos-chave de sua teoria. Designadas por AD1, AD2 e AD3, refletem as mudanças no pensamento desse estudioso. Na primeira época da Análise de discurso, AD1, surge a noção de maquinaria discursiva, que, como esclarece Fernandes (2008, p. 87), “pode ser compreendida como um 23 conjunto de discursos produzidos em um dado momento. Esses discursos […] eram considerados como homogêneos e fechados em si”. A proposta de Pêcheux, nessa fase, é influenciada pelo estruturalismo saussuriano, ele pensa a língua como a base dos processos discursivos, levando em conta o sujeito e a história. De acordo com Gregolim: Na concepção do objeto discurso cruzam-se Saussure (relido por Pêcheux), Marx (relido por Althusser) e Freud (relido por Lacan). As teses althusserianas sobre os aparelhos ideológicos e o assujeitamento propõem um sujeto atravessado pela ideologia e pelo inconsciente (um sujeito que não é onte nem origem do dizer; que reproduz o já- dito, o já-lá, o préconstruído)(GREGOLIM, 2007, p. 67). A AD2 é marcada pelo movimento em direção à heterogeneidade. Nesse momento, Michel Pêcheux apresenta a noção de formação discursiva, reinterpretada do conceito de Faucault. Essa noção, sgundo Fernandes (2008, p. 88), “começa a fazer explodir a noção de maquinaria estrutural fechada uma vez que o dispositivo da formação discursiva está em relação paradoxal com seu exterior”. É nessa época que Pêcheux formula a teoria dos esquecimentos nº1 e nº2 ; publica, em 1975, o grande livro Les Varités de la police, em que propõe uma teoria materialista do discurso; retoma a tese da interpelação ideológica, acentuando o caráter contraditório do assujeitamento e a transformação das relações de produção pelos aparelhos ideológicos. Na terceira época, AD3, Michel Pêcheux questiona o trabalho que realiza e abre problemáticas sobre o discurso, a interpretação, a estrutura e o acontecimento. Sobre esse momento, vê-se a citação: a noção de maquinaria discursiva estrutural é levada ao limite e estabelece-se o primado teórico do outro sobre o mesmo; a ideia de homogeneidade atribuída à noção de condições de produção do discurso é definitivamente abandonada; a ideia de estabilidade é banida em função do reconhecimento da desestabilização das garantias sócio-históricas; há o reconhecimento da não neutralidade da sintaxe; a noção de enunciação passa a ser abordada e as reflexões sobre a heterogeneidade enunciativa levam à discussão sobre o discurso-outro (FERNANDES, 2008, p. 89). Vê-se na obra de Pêcheux um distanciamento de posições dogmáticas anteriores sob a influência de Althusser. Começa uma aproximação com o pensamento foucaultiano e são colocadas interrogações “até mesmo sobre a possibilidade de redefinição de uma política da Análise do Discurso” como atesta Fernandes (2008, p. 89). 24 Após a morte de Michel Pêcheux, em 1983, suas indagações e reformulaçãoes permitram uma continuidade às formulações teóricas da Análise de discurso. Para Maldidier: Por causa de Michel Pêcheux, o discurso, no campo francês, não se confunde com sua evidência empírica; ele representa uma forma de resistência intelectual à tentação pragmática. Este pensamento continua a trabalhar em certas pesquisas sobre o discurso. Para além da Linguística, ele permitiu a abertura de novas pistas na história, em sociologia, em psicologia, por todo lugar onde se tem a ver com textos, onde se produz o encontro da língua com o sujeito (MALDIDIER, 2003, p. 96). Assim, o que se segue, a partir dos úlimos escritos de Pêcheux, são, não apenas reformulações no próprio campo da AD, mas também outros deslocamentos teóricos, tanto na França, quanto no Brasil. As bases teóricas pecheutianas foram problematizadas, a exemplo dos historiadores e linguístas analistas de discurso. Existe, de acordo com Piovezani e Sargentini, uma diferença no percurso do pensamento de Pêcheux e seu grupo no Brasil e na França: Se, no Brasil, o nome de Pêcheux é quase onipresente, visto que se trata de fonte de postulados fundamentais, de inspiração para avanços na teoria e ainda de legitimação institucional, na França, há atualmente um silenciamento das contribuições fundamentais de Pêcheux oriundas dos primeiros tempos de formulação e de reformulações da Análise de Discurso (PIOVEZANI, SARGENTINI, 2011, p. 12). Segundo Fernandes (2008), no Brasil a Análise de discurso passou a ter lugar a partir da década de 1980, com o fim da ditadura militar e a abertura política, “porque a natureza política observada desde suas bases, […] a constatação de que por trás das palavras pronunciadas outras são ditas, necessitariam de condições de produção historicamente favoráveis à sua implementação” (FERNANDES, 2008, p. 90) . A obra de Pêcheux é reconhecida no Brasil e a partir de então produzem-se muitos desenvolvimentos, o que fortalece o reconhecimento da AD como instituição. A recepção da teoria Pecheutiana vai desde sua aplicação até os deslocamentos e avanços metodológicos, resultado do trabalho de alguns pesquisadores. Há, entre os brasileiros, uma predileção pelos postulados formulados por Pêcheux no período em que o materialismo althusseriano é presente. Nos trabalhos que se desenvolvem no Brasil a partir dos legados de Michel Pêcheux, é presente o princípio de que o discurso é resultado da relação entre língua e história. 25 2.3. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA ANÁLISE DE DISCURSO PECHEUTIANA Pode-se dizer que Michel Pêcheux, juntamente com Jean Dubois, é o fundador da Análise de Discurso na França, em 1969. Esta teoria surgiu num momento em que a França experimentava o pulular das ideias liberais. A AD, como já foi explicitado anteriormente, se constitui sobre os pilares de três áreas do saber: Linguística, Marxismo e Psicanálise, o que promove deslocamentos e elaborações nas noções de língua, ideologia e inconsciente. Pêcheux elabora seus conceitos sob a influência das ideias de Foucault e Althusser. De Althusser, a influência mais direta se faz a partir de seu trabalho sobre os aparelhos ideológicos de Estado na conceituação do termo “formação ideológica”. E será da Arqueologia do saber que Pêcheux extrairá a expressão “formação discursiva”, da qual a AD se apropriará, submetendo-a a um trabalho específico (BRANDÃO, 2004, p. 18). Na base da Análise de discurso proposta por Pêcheux está o conceito de ideologia, influenciado pela teoria althusseriana. É justamente esse enfoque ideológico que particulariza o trabalho desse autor e que esclarece sua concepção de discurso, sujeito e sentido, centrais para o trabalho da AD. A noção de ideologia é resignificada pela AD considerando o trabalho com a linguagem. Como se esclarece a seguir: A ideologia, por sua vez, nesse modo de a conceber, não é vista como conjunto de representações, como visão de mundo ou como ocultação da realidade. Não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto prática significante a ideologia aparece como efeito da relação necessária do sujeito com a língua e com a história para que haja sentido (ORLANDI, 2009, p. 48). A partir dessas observações, uma explanação dos pressupostos teóricos pecheutianos para a análise em AD dará melhor clareza à análise realizada nesse trabalho de pesquisa, ora apresentada. 2.3.1. Discurso e ideologia Nas palavras de Pêcheux (2010, 85), o termo discurso “implica que não se trata necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B mas, de modo mais geral, de um ‘efeito de sentidos’ entre os pontos A e B”. Esta noção de discurso é imprescindível tanto para a compreensão da singularidade da AD proposta por Pêcheux, quanto para se entender a 26 noção de sujeito e sentido. Pêcheux considera que o discurso existe por meio do sujeito e que este é interpelado pela ideologia. Segundo Orlandi, para quem o discurso é “efeito de sentidos entre locutores”: [...] não se trata de transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade etc. (ORLANDI, 2009, p. 21). São considerações que a autora faz, pensando a disposição dos elementos pelo esquema de comunicação, constituído de emissor, receptor, código, referente e mensagem o qual descreve o processo de comunicação de forma linear. Trata-se do esquema de comunicação proposto por Jakobson, e reformulado por Pêcheux, que vai além e não considera a linguagem apenas como simples transmissão de informação entre sujeitos. Pêcheux propõe o discurso como efeito de sentidos entre sujeitos, que ocupam lugares determinados no sistema de produção. A concepção de discurso da AD pecheutiana leva em conta fatores exteriores à lingüística. A esse respeito, observa-se o que reflete Cleudemar Fernandes: Para falarmos em discurso, precisamos considerar os elementos que têm existência no social, as ideologias, a história. Com isso, podemos afirmar que os discursos não são fixos, estão sempre se movendo e sofrem transformações, acompanham as transformações sociais e políticas de toda natureza que integram a vida humana (FERNANDES, 2008, P. 14). Outro ponto a salientar nessas considerações é que discurso não deve ser confundido com a noção de fala, proposta na dicotomia Saussuriana língua/fala. “O discurso não corresponde à noção de fala, pois não se trata de opô-lo à língua como sendo esta um sistema, onde tudo se mantém, [...]” (ORLANDI, 2009, p. 22). Em AD, a língua não é vista como sendo fechada em si mesma, nem o discurso é visto totalmente sem condicionantes lingüísticos ou determinado historicamente. Para Pêcheux, confundir discurso e fala é um equívoco e sobre isso esclarece: O discurso seria então a realização em atos verbais da liberdade subjetiva que ‘escapa ao sistema’ (da língua). Contra esta interpretação reafirmamos 27 que a teoria do discurso e os procedimentos que ela engaja não poderiam se identificar com uma ‘linguística da fala’ (PÊCHEUX, 2010, p. 178). O discurso se realiza por meio da materialidade linguística, mas é exterior à língua. Ele reside justamente no social, portanto há que se considerar o sujeito, a posição sociohistórica que ele ocupa, sua inscrição ideológica. “É preciso sair do especificamente linguístico, dirigir-se a outros espaços, para procurar descobrir, descortinar, o que está entre a língua e a fala, fora delas” (FERNANDES, 2008, 17). A ideologia, como se observa, faz parte dos estudos da AD, alíás, “é a ideologia que faz com que haja sujeitos” e por isso, vale explicitar a maneira como esta é resignificada por Pêcheux, a partir de Althusser, em suas formulações teóricas. Althusser trabalha a ideologia a partir das discursões sobre as lutas de classe, para ele, a ideologia é a relação imaginária transformada em práticas, reproduzindo as relações de produção vigentes. Quando discorre sobre os aparelhos ideológicos de Estado, Althusser atribui a estes a regulação das regras e das práticas materiais, e como sua função, reproduzir e perpetuar as condições de produção. Não há uma preocupacão de Althusser com a Linguística, ao estudar a ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado. É nesse ponto que Pêcheux se destaca, quando ressalta a necessidade de articular a Linguística com o materialismo histórico. Para Pêcheux (2009, p. 81), “[...] a língua se apresenta como a base comum de processos discursivos diferenciados, que estão compreendidos nela na medida em que [...] os processos ideológicos simulam os processos científicos.” Pêcheux trabalha a questão da língua a partir das discussões de Althusser sobre as lutas de classe. Para esse autor, as classes não são indiferentes à língua, uma vez que se utilizam desta em sua luta política. Os sujeitos estabelecem seus discursos através da linguagem e pelo viés da ideologia e segundo Orlandi (2009, 45), “re-significar a noção de ideologia a partir da consideração da linguagem” é um dos pontos fortes da Análise de discurso. Esta autora acrescenta ainda: “o fato mesmo da interpretação, ou melhor, o fato de que não há sentido sem interpretação, atesta a presença da ideologia”. Segundo Althusser, “A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”. A partir dessa tese, Pêcheux propõe examinar como esta leva à problemática de uma teoria materialista dos processos discursivos, articulada à das condições ideológicas de reprodução/transformação das relações de produção. 28 2.3.2 Sujeito e sentido O sujeito de Pêcheux funciona pela ideologia e pelo inconsciente, não é um sujeito reconhecível a priori, assim como acontece com a noção de sentidos. Segundo Pêcheux, [...] as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às posições ideológicas [...] (PÊCHEUX, 2009, p. 146-147). Portanto, o sujeito, na perspectiva da AD pecheutiana, não é considerado em sua individualidade, mas como um ser social, em um espaço coletivo e ideológico. De acordo com Orlandi, o sujeito só tem acesso a parte do que diz, uma vez que é atravessado pela linguagem e pela história, sob o modo do imaginário, e acrescenta: [...] ele é sujeito de e sujeito à. Ele é sujeito à língua e à história, pois para se constituir, para (se) produzir sentidos ele é afetado por elas. Ele é assim determinado, pois se não sofrer aos efeitos do simbólico, ou seja, se ele não se submeter à língua e à história, ele não se constitui, ele não fala, não produz sentidos (ORLANDI, 2009, p. 49). Fala-se também, quanto ao sujeito da AD, que ele “é pensado como ‘posição’”. Para ser sujeito do que diz, o indivíduo deve ocupar um lugar que é a sua posição sócio- ideológica. “ [...] os sujeitos são intercambiáveis. Quando falo a partir da posição de “mãe”, por exemplo, o que digo deriva seu sentido, em relação à formação discursiva em que estou inscrevendo minhas palavras [...]” (ORLANDI, 2009, p. 49). O sujeito se submete à língua, ele é um sujeito assujeitado, ele é ao mesmo tempo livre e submisso. Isso quer dizer que, na sua relação com os sentidos, esse sujeito é determinado pela exterioridade, já que a compreensão dos sentidos depende de sua historicidade. Por isso, como explica Orlandi(2009), “embora a subjetividade repouse na possibilidade de mecanismos linguísticos específicos, não se pode explicá-la estritamente por eles”. Outro aspecto importante sobre a noção de sujeito adotada por Pêcheux é a consideração de que este sujeito é afetado pelo incosciente. Como ressalta Indursky: O sujeito que o fundador da Teoria da Análise do Discurso convoca é um sujeito que não está na origem do dizer, pois é duplamente afetado. Pessoalmente e socialmente. Na constituição de sua psiquê, este sujeito é dotado de inconsciente. E, em sua constituição social, ele é interpelado pela 29 ideologia. É a partir deste laço entre inconsciente e ideologia que o sujeito da análise de discurso se constitui ( INDURSKY, 2008, p. 10-11). O sujeito não se dá conta de sua interpelação pela ideologia, o que o leva à ilusão de ser a origem do que diz e de que domina o que diz. Essa ilusão constitui o que Pêcheux chama de esquecimento. O esquecimento nº 1 “é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia”. O sujeito, por esse esquecimento, pensa ser a origem do seu dizer, quando na verdade este é determinado pelo modo como esse sujeito se inscreve historicamente. O esquecimento nº 2 “ é da ordem da enunciação: ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra, e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer sempre podia ser outro” (ORLANDI, 2009, p. 35). O sujeito, na perspectiva da teoria desenvolvida por Pêcheux, é afetado pelo inconsciente. Trata-se de um sujeito que se constitue pela relação entre inconsciente, linguagem e ideologia. Pêcheux vale-se de conceitos de Althusser, Freud e Lacan para explicar o que vem a ser sujeito do discurso. De Althusser depreende-se, na constituição do sujeito em Pêcheux, o conceito de interpelação, segundo o qual a ideologia age de tal forma que transforma os indivíduos em sujeitos. Lacan, fazendo uma releitura do inconsciente de Freud, diz que o sujeito é afetado pelo que ele denomina de “o grande outro”. Ele considera que a existência do “eu” não pode ser desvencilhada da existência do “Outro” que o interpela, assim o inconsciente se estrutura como uma linguagem que interfere no discurso do sujeito empírico. Na citação seguinte, esse autor argumenta: O que é um sujeito? Será alguma coisa que se confunde, pura e simplesmente, com a realidade individual que está diante de seus olhos quando vocês dizem o sujeito? Ou será que, a partir do momento em que vocês o fazem falar, isso implica necessariamente uma outra coisa? Quero dizer, será que a fala é como que uma emanação que paira acima dele, ou será que ela desenvolve, que impõe por si só, uma estrutura? [...] Quando há um sujeito falante, não há como reduzir a um outro, simplesmente, a questão de suas relações como alguém que fala, mas há sempre um terceiro, o grande Outro, que é constitutivo da posição do sujeito enquanto alguém que fala (LACAN, 1999, p. 186). É a partir do inconsciente que o sujeito é interpelado pelo Outro. Na concepção de Pêcheux, o sujeito não é totalmente livre, dono de suas vontades, ele é marcado pelo consciente e inconsciente. Diferente da noção de sujeito fundado na razão, que é senhor do que diz, o que se postula na teoria pecheutiniana é a ideia de um sujeito descentrado pelo inconsciente, que não controla o seu dizer. Mas esse sujeito tem a ilusão de ser a origem do 30 que diz e de controlar o seu pensamento, a isso Pêcheux denominou de esquecimentos, o esquecimento nº1 e o esquecimento nº2, exposto anteriormente. Assim, a compreensão de sujeito, esclarece o processo de produção de sentidos, que “não está na essência das palavras mas na discursividade”. Os sentido das palavras são produzidos a partir dos sujeitos, sua posição sociohistórica e ideológica. As palavras não têm sentido em si mesmas, em sua literalidade, elas “ falam com outras palavras”, como se esclarece na seguinte citação: O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe “em si mesmo” ( isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas ( isto é, reproduzidas) (PECHÊUX, 2009, p. 148.). É preciso referir as palavras às suas condições de produção e sua inscrição em uma formação discursiva. Esses conceitos são tomados por Pêcheux em sua proposta de análise e merecem ser esclarecidas, como se verá mais adiante. Ainda com relação ao sujeito, Pêcheux reflete sobre a identificação do sujeito do discurso com os saberes de uma formação discursiva, o modo como se relaciona com a formasujeito e com a ideologia. São três as tomadas de posição, como são denominadas por Pêcheux. A primeira modalidade mostra uma identificação plena do sujeito com a formação discursiva de modo que “a ‘tomada de posição’ do sujeito realiza seu assujeitamento sob a forma do ‘livremente consentido’”. A segunda modalidade mostra uma contra-identificação com a formação discursiva imposta ao sujeito. O sujeito toma uma posição, se distancia, questiona, contesta. “O sujeito da enunciação ‘se volta’ contra o ‘sujeito universal’”, ele “luta contra a evidência ideológica”. A terceira modalidade toma a forma de uma desidentificação com a formação ideológica em que está inscrito. O sujeito se desidentifica a ponto de se identificar com outra FD. “O funcionamento dessa ‘terceira modalidade’ constitui um trabalho (transformaçãodeslocamento) da forma-sujeito e não sua pura e simples anulação”. A tomada de posição não é, de modo algum, concebível como um ‘ato originário’ do sujeito-falante: ela deve, ao contrário, ser compreendida como o efeito, na forma-sujeito, da 31 determinação do interdiscurso como discurso-transverso’, são conclusões de Pêchux (2009), quando discorre sobre a forma-sujeito do discurso. A forma-sujeito do discurso refere-se à existência do indivíduo em sua prática social, situado historicamente. Trata-se de uma expressão introduzida por Althusser e designa o sujeito como “agente das práticas sociais”. Pêcheux diz que: a forma-sujeito do discurso na qual coexistem, indissociavelmente, interpelação, identificação e produção de sentido, realiza o non-sens da produção do sujeito como causa de si sob a forma da evidência primeira. Estamos lidando com uma determinação que se apaga no efeito necessário que ela produz sob a forma da relação entre sujeito, centro e sentido, […] (PÊCHEUX, 2009, p. 243). Desse modo, vê-se que o sujeito é interpelado socioideologicamente, ele é marcado pelos já-ditos. Mas esse sujeito também é marcado pelo esquecimento, ele tem a ilusão de ser a origem do que diz, “se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina”. 2.3.3 Esquecimentos Há dois tipos de esquecimentos que são inerentes aos discursos. O esquecimento nº 2 dá ao sujeito a ilusão da impressão da realidade do pensamento. É a partir desse esquecimento que o sujeito acredita que o que ele diz só pode ser dito daquela maneira e não outra, com aquelas palavras e não outras. Esse esquecimento, segundo Orlandi (2009, p. 35), “nos faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo”. Nas palavras de Pêcheux é: O esquecimento pelo qual todo sujeito-falante ‘seleciona’ no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrase – um enunciado, forma ou sequência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia formulá-lo na formação discursiva considerada (PÊCEUX, 2009, p. 161). Trata-se de um esquecimento semi-consciente, também chamado de esquecimento enunciativo. Por outro lado, o esquecimento nº 1, também chamado de esquecimento ideológico, é da instância do inconscente. O sujeito, por esse esqueciento, tem a ilusão de ser a origem do 32 que diz. Os sentidos são apenas retomados pelo sujeito, não se originam neste. Esse esquecimento Dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. […] remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que – como vimos – esse exterior determina a formação discursiva em questão (PÊCHEUX, 2009, p. 162). É pelo esquecimento que sujeitos e sentidos se significam, “estão sempre em movimento, significando sempre de muitas e variadas maneiras”. Orlandi (2009, p. 36). Pêcheux (2009) coloca que a oposição entre os esquecimentos nº 1 e nº 2 está relacionada à oposição empírica, em que o sujeito se encontra, que é marcada pela identificação imaginária em que o outro (com o minúsculo) é um outro eu, e o processo de interpelaçãoassujeitamento, que diz respeito ao que Lacan chama metaforicamente de “Outro” com O maiúsculo. 2.3.4 Condições de produção, interdiscurso e Formação discursiva Pêcheux considera que não é possível analisar um discurso como se analisa um texto, ou seja, como uma sequência da língua fechada sobre si mesma, para ele é preciso referir o discurso ao “conjunto de discursos possíveis” a partir de suas condições de produção. Essas condições de produção do discurso compreendem a relação de forças existentes entre os protagonistas do discurso, as relações de sentido nas quais é produzido e a antecipação do que o outro vai pensar. Um discurso está sempre situado no interior da relação de forças, o que o sujeito diz, enuncia, promete ou denuncia é determinado pelo lugar que ele ocupa. Como reflete Orlandi (2009), “Como nossa sociedade é constituída por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses diferentes lugares, que se fazem valer na ‘comunicação’”. As palavras significam de acordo com o lugar do sujeito, quando um médico fala ao paciente, o lugar que ele ocupa, de conhecedor da ciência que pratica, lhe autoriza dizer o que diz, do modo como diz. A relação de sentidos no discurso diz respeito a relação que um sentido tem com outros sentidos já produzidos. Um dizer sempre se relaciona com outros dizeres. Como adverte Pêcheux: 33 Em outros termos, o processo discursivo não tem, de direito, início: o discurso se conjuga sempre sobre um discursivo prévio, ao qual ele atribui o papel de matéria-prima, e o orador sabe que quando evoca tal acontecimento, que já foi objeto de discurso, ressuscita no espírito dos ouvintes o discurso no qual este acontecimento era alegado, com as ‘deformações’ que a situação presente introduz e da qual pode tirar partido (PÊCHEUX, 2010, p. 76). Pode-se dizer, com isso, que o sujeito imagina, tenta prever o que seu ouvinte espera em seu discurso. De certa forma, esse sujeito falante se coloca no lugar do outro, sujeito ouvinte. É o mecanismo da antecipação que, segundo Orlandi (2009, p.39), “regula a argumentação, de tal forma que o sujeito dirá de um modo, ou de outro, segundo o efeito que pensa produzir em seu ouvinte”. A seguir, um esboço das formações imaginárias suposto em todo processo discursivo: Expressão que designa as formações imaginárias I (A) I (B) I (B) I (A) Signficação da expressão Imagem do lugar de A para sujeito colocado em A Imagem do lugar de B para sujeito colocado em A Imagem do lugar de B para sujeito colocado m B Imagem do lugar de A para sujeito colocado em B o o o o Questão implícita cuja “resposta” subentende a formação imaginária correspondete “Quem sou eu para lhe falar assim?” “Quem é ele para que eu lhe fale assim?” “Quem sou eu para que ele me fale asssim?” “Quem é ele para que me fale assim?” A partir desse esquema, vê-se como os protagonistas do discurso podem intervir quanto às condições de produção do discurso. Vale lembrar, trata-se do ponto de vista do sujeito sobre uma posição imaginária e não física. A relação do discurso com as condições de produção envolve tudo o que já foi dito ao longo da história, tudo o que já foi dito, em outro momento, pode ser acionado pela memória. É pela memória que se formula o dizível, como ressalta Orlandi (2009) há um pré-construído na base de todo dizer. A noção de memória é basilar no estudo do discurso proposto por Pêcheux e se refere não a uma memória individual, psicológica, mas a uma memória coletiva na qual se inscrevem os sujeitos. Memória pode ser compreendida, como o que Pêcheux denominou interdiscurso, definindo-o como “ o todo complexo com dominante”. Nas observações de Orlandi (2009, p. 33): 34 o interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular, se apague na memória para que, passando para o ‘anonimato’, possa fazer sentido em ‘minhas’ palavras. Assim, o sentido das palavras não existe em si mesmo, depende da posição ideológica do sujeito no processo socio-histórico. Disso compreendem-se outros mecanismos na análise de discurso aqui tratada, são a formação discursiva e a formação ideológica. Sobre a formação ideológica, assim se posiciona Pêcheux: Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento (este aspecto da luta nos aparelhos) suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras (PÊCHEUX, 2010, p. 163). A partir disso, colocando a questão da ideologia e discurso, Pêcheux (2010) afirma que se deve conceber o discurso como um dos aspectos materiais do que chamamos materialidade ideológica. Os sentidos se manifestam pois, a partir da posição do sujeito e sua inscrição em uma formação ideológica, são determinados ideologicamente. As formações ideológicas estão ligadas às formações discursivas, estas inscrevem-se naquelas. Para Orlandi (2009), a noção de formação discursiva dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento do discurso, além de permitir compreender o processo de produção de sentidos e sua relação com a ideologia. Segundo Pêcheux (2010, p. 164), as formações discursivas “determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura […]”. Assim, o sentido que as palavras adquirem “dependem de relações constitíuidas nas/pelas formações discursivas”. As formações discursivas não são homogêneas, ao contrário, elas são marcadas pela heterogeneidade, são constituídas por diferentes discursos, já que há diferentes posições dos sujeitos, sobre determinados assuntos. Uma formação discursiva explicita sujeitos e dizeres sociohistoricamente organizados, mas não se limita a apenas um momento social e histórico, ela possibilita efeitos de sentidos em novos contextos, a partir de elementos que tiveram 35 existência em outros momentos e lugares. Pêcheux afirma que as formações discursivas intervêm nas formações ideológicas enquanto componentes, e sublinha, ainda que: uma formação discursiva existe historicamente no interior de determinadas relações de classes; pode fornecer elementos que se integram em novas formações discursivas, construindo-se no interior de novas relações ideológicas, que colocam em jogo novas formações ideológicas (PÊCHEUX, 2010, p. 165). Não há uma formação discursiva que não seja associada a outra, isso porque pelo primado do interdiscurso, todo discurso provém de um já-dito, de um pré-construído. Por isso pode-se pensar a relação do interdiscurso com o intradiscurso, ou seja, entre o dizível, que está na constituição do discurso com o que é formulado, dito em dado momento. Convém tratar aqui do discurso-transverso, cujo funcionamento, diz Pêcheux (2009, p. 153 ), “remete àquilo que, classicamente, é designado por metonímia, enquanto relação da parte com o todo, da causa com o efeito, do sintoma com o que ele designa etc.”. O discurso-transverso está em relação direta com a ‘articulação’, pois esta resulta da linearização do discurso-transverso no eixo do intradiscurso. Pensando o dizível como memória, vale ressaltar a presença da paráfrase no conjunto de presspostos teóricos pêcheutianos. Para Pêcheux (2010, p.166), “a produção de sentido é estritamente indissociável da relação de paráfrase entre sequências tais que a família parafrástica destas sequências constitui o que se poderia chamar a matriz do sentido”. Pode-se compreender, com isso, que o efeito de sentido é resultado da relação no interior da família parafrástica, como diz Orlandi (2009, 38), “não há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo”. Eni propõe uma relação comparativa entre paráfrase e polissemia. Para a autora, na polissemia há uma ruptura do processo de significação, há um deslocamento de sentidos. A polissemia permite uma continuidade de discursos, possibilita novos sentidos, já que “ela joga com o equívoco”. Orlandi (2009), considera que o funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre esses dois processos, como se vê na seguinte citação: São duas forças que trabalham continuamente o dizer, de tal modo que todo discurso se faz nessa tensão: entre o mesmo e o diferente . Se toda vez que falamos, ao tomar a palavra, produzimos uma mexida na rede de filiação dos sentidos, no entento, falamos com palavras já ditas. E é nesse jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o já dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, (se) significam (ORLANDI, 2009, p. 36. 36 Assim, por um lado, a paráfrase permite a produção de discursos a partir de um já-dito, assegurando a historicidade. Por outro lado, a polissemia intervém com o diferente, possibilita a simultaneidade de sentidos e de sujeitos. 37 3 UM BREVE OLHAR SOBRE A PROPAGANDA A princípio, vale explicitar uma diferenciação entre os termos propaganda e publicidade, já que estes são muito frequentemente confundidos. De acordo com Monnerat (2003), o termo publicidade é derivado de público, do latim publicus, indicando a qualidade do que é público. Já o termo “propaganda”, do latim propagare (técnica do jardineiro de cravar no solo os rebentos novos das plantas, com o intuito de reproduzir novas plantas que posteriormente terão vida própria), foi retirado do nome Congregatio de propaganda fide, congregação criada em 1622, em Roma, pelo Papa Urbano VIII com o objetivo de propagar a fé, persuadir os pagãos e levá-los à Igreja Católica. Segundo Sandmann (1997, p. 14), em português, “ publicidade é usado para a venda de produtos e serviços e propaganda tanto para a propagação de idéias como no sentido de publicidade”. Assim, propaganda se apresenta como um termo abrangente e pode ser utilizado em todos os sentidos. Para este trabalho, adota-se o termo propaganda, que aparece no título e no texto em geral, em sentido mais amplo. O termo publicidade que também é utilizado nessa análise, surge como sinônimo de propaganda, assim como também os termos anúncio e peça publicitária. Diz-se que a propaganda é uma atividade humana tão antiga quanto os registros de que algo acontece ou aconteceu. Há muitos relatos que procuram explicar o surgimento da propaganda. Citando Martins (1999, p. 35), alguém já até tentou dar um ar científico à origem da propaganda dizendo que quando o homem das cavernas pendurava uma pele de animal na entrada de sua caverna, esse ser pré-histórico já estava fazendo sua divulgação aos interessados no produto. A partir de diversos fatos históricos mundiais comprova-se a intenção de propagar, seja uma ideia, pessoas, serviços, produtos. A raiz propagand_ do latim, remete ao sentido de algo que precisa ser espalhado. Os romanos pintavam as paredes para anunciar lutas de gladiadores, os fenícios pintavam grandes rochas ao longo das rotas movimentadas para promover seus artigos. Mensagens comerciais e campanhas políticas foram encontradas em ruínas da antiga Arábia. Egípcios usavam papiros para criar mensagens de venda e cartazes, enquanto o conhecido volante de hoje (flayer), pode ser encontrado na antiga Grécia e Roma. Outra antiga forma de propaganda era a marca que os comerciantes colocavam em seus produtos, 38 tais como potes. À medida que sua reputação se espalhava de boca em boca, os compradores começavam a procurar por uma marca em particular. Apesar de não haver uma total comprovação, a palavra propaganda originou-se depois que a Igreja criou uma congregação religiosa para propagar a fé, como afirma Sampaio (1999, p. 19). Trata-se da Congregatio de propaganda fide, foi criada em 1622, pelo Papa Urbano VIII, a fim de difundir a religião e produzir material litúrgico que se contrapunha à ideologia luterana. O momento de transição na história da propaganda mundial ocorreu em meados do século XV, quando Johan Gutemberg inventou a imprensa. Os anunciantes não precisavam mais produzir cópias extra de um anúncio à mão. Com a superprodução e subdemanda, tornou-se necessário estimular o mercado, por isso a técnica publicitária mudou da simples informação para a persuasão. A primeira propaganda impressa em língua inglesa apareceu em 1478. Em 1622, a propaganda recebeu um grande incentivo com o lançamento do primeiro jornal inglês , The Weekly News. Benjamin Franklin é conhecido como o precursor da propaganda americana, porque sua Gazette, publicada em 1729, teve grande repercussão na época. As agências de propaganda foram criadas a partir da segunda metade do século XIX, por fabricantes e corretores que trabalhavam para jornais e recebiam comissão pela venda de espaço de propaganda para várias empresas. Pouco a pouco, formaram agências e aproximaram-se mais dos anunciantes. As agências passaram a oferecer mais propaganda e serviços de marketing para seus clientes. A publicidade tal como se conhece hoje iniciou-se em 1871, com a fundação da JW Thompson, primeira agência americana. Nessa época, já era organizada como uma indústria e já tinha agências de propaganda e publicitários. Mas é somente no século XIX que a propaganda começa a se expandir, com o nível da tecnologia e as técnicas de produção em massa. Por conta da superprodução e subdemanda, tornou-se necessário estimular o mercado e assim, a técnica publicitária mudou da simples informação para a persuasão. A propaganda, em seu contexto social e institucional, tal como se vê hoje, foi definida no final do século passado. 3.1 A PROPAGANDA NO BRASIL 39 A “propaganda” sobre a terra promissora, elaborada por Caminha, certamente valeuse de formas de demonstração igualmente utilizadas pelas agências publicitárias que hoje fazem “mágicas” em prol do consumo. Pode-se dizer que, no Brasil, tudo começa com a Carta de Caminha ao Rei de Portugal. Marília Graf (2003) relata que a propaganda surgiu, no Brasil, no momento em que D. João VI, fugido de Portugal, decreta a abertura dos portos, e em 1808, libera a importação de qualquer mercadoria transportada por navios portugueses ou estrangeiros em paz com a Coroa, o que favoreceu, principalmente, a importação de produtos ingleses. Social e culturalmente, o Império molda um comportamento, baseado no europeu, que é seguido por todo o país, durante o século XIX e parte do XX. D. João trouxe para o Brasil a modernidade Europeia, influenciando o país, por meio de criação da Escola Médico-cirúrgica da Bahia, da Escola Cirúrgicada, Anatômica e Médica do Rio de Janeiro, da Academia Real de Belas Artes, da Imprensa Régia, do Teatro Real de São João, do Banco do Brasil e de várias outras instituições (GRAF, 2003, p.17). Com o lançamento do primeiro jornal, Gazeta do Rio de Janeiro, que dá início a imprensa brasileira, surge a propaganda. Isso ocorre num contexto em que o dinheiro de papel é colocado no mercado, em substituição às moedas, tornando-se rapidamente popular. A primeira propaganda de que se tem notícia foi de um imóvel. “Os anúncios dessa época são todos do tipo ‘classificados’ em que a linguagem reproduz a fala cotidiana e a dos vendedores ambulantes”(GRAF, 2003, p. 17). Eram textos curtos, sem ilustrações, que ofereciam serviços caseiros, eram também anúncios de compra e venda de casas e de escravos. Em 1821, surge O Diário do Rio de Janeiro, um jornal de anúncios classificados, demonstrando a importância da propaganda, então chamada de reclame. Entre 1822 e 1831, período do primeiro reinado, o Brasil caracteriou-se pela força da elite de proprietários rurais com uma estrutura socioeconômica baseada na escravidão, latifúndios e monocultura. Nesse contexto surge uma enorme quantidade de propagandas oferecendo escravas como amas-de-leite para amamentação dos filhos brancos da elite, uma vez que apenas as mães sem poder aquisitivo é que amamentavam seus filhos. 40 Figura 1 - Anúncios de jornal em 1878. Fonte: 100 ANOS DE PROPAGANDA, 1980. Esses anúncios continuaram com características de clasificado vendendo imóveis, produtos e escravos. Através dessas propagandas, vendiam-se também os hábitos europeus, interferindo nos costumes comportamentais e políticos. No período de regência, alterações na constituição causam revoluções populares. Os jonais se aliam a partidos políticos para discutir a situação do país e exigir mudanças. Em jornais da época como O Republico, A Malagueta e A Aurora Fluminense, as propagandas permanecem como classificados, agora são anúncios de produtos importados europeus, escravos e imóveis. Sobre os produtos e hábitos de consume da época, Graf (2003, p. 25) assim comenta: “Do ponto de vista do consumo, é na Regência que o hábito de fumar transforma-se em moda. Os brasileiros, ao contrário dos ingleses, preferem os charutos para se diferenciarem dos escravos que fumavam cachimbo” Com o auge da economia cafeeira que facilitou a consolidação do Estado Monárquico, controlado pela aristócracia rural e escravagista, a propaganda se desenvolve variando de forma e de estilo. Mais argumentativa, acompanha todas as mudanças sociais, culturais e econômicas do Brasil. 41 No final do século, o incentivo à imigração gerado pela falta de mão-de-obra para o cultivo do café, muda o cotidiano, trazeno novos hábitos de viver, pensar e consumir. Os imigrantes […] que saíam do meio urbano e com algum dinheiro, sonhavam em montar, aqui no Brasil, indústrias e serviços na busca do enriquecimento rápido. Durante o império, o maior exemplo desses imigrants é Hermann Hering, que montou em Blumenau, a primeira malharia nacional, em 1880 (GRAF, 2003, p. 28). Com a chegada do comércio externo norte-amerino, em 1851, são publicados reclames da principal importadora americana, no Rio de Janeiro. São propagandas de tecidos, móveis, gelo, bonecas, brinquedos, borracha e fogões de cozinha. Figura 2 - Anúncio de máquina de costura, 1860. Fonte: http://uk.pinterest.com/cunhalima/memoria-graficabrasileira Nesta época os anúncios sobre amamentação mudam de teor, as amas-de-leite são brancas e sadias, seguindo o cientificismo europeu sobre o aleitamento materno. O crescimento do comércio ipulsiona o crescimento da propaganda, com o objetivo de incentivar o consumo, agora não apenas de produtos e serviços nacionais , mas principalmente importados. Segundo Graf (2003, p. 31), eram “produtos de consumo semiduráveis (como bicicletas e roupas), duráveis (como pianos), supérfluos, jóias e etc. destinados aos consumidores endinheirados da Corte e das zonas rurais vizinhas”. Nessa sociedade, onde o Império só aceitava indvíduos brancos, surge a necessidade de parecer branco. Com isso, aparecem anúncios de produtos que prometiam embranquecimento como a “Água dos Amarantes”, que prometia fazer desaparecer a cor trigueira em cinco dias (Graf, 2003). 42 Os primeiros painéis de rua, panfletos e bulas de remédio começaram a aparecer em 1860. As ilustrações, começaram a surgir em 1875, com os jornais Mequetrefe e O Mosquito, já com peças ilustradas com desenhos, litogravuras e logotipos ( 100 anos de propaganda, 19(80) p. 3). Figura 3 - Anúncio Ao Collete de Ouro, 1860. Fonte: http://uk.pinterest.com/cunhalima/memoria-graficabrasileira De acordo com Marcondes (2002, p. 16), “da literatura e do jornalismo a publicidade importou o texto; do desenho e da pintura, trouxe as ilustrações”. Assim, as propagandas nasciam da junção de vários elementos. Em 1900 surgiu a “Revista da Semana” no Rio de Janeiro, com ela, vieram anúncios mais coloridos, impressos por técnicas novas. Nesta mesma época, surgem também as sátiras políticas na propaganda, que vai se prolongar por toda a década. Sobre as agências de publicidade no Brasil, sabe-se que a primeira teria surgido em São Paulo, em 1913, a revista “Eclética”. De acordo com Severino, Gomes e Vicentini (2011), a primeira agência de propaganda norte-americana chegou ao Brasil, em 1930 e trouxe a publicidade com fotos aos anúncios brasileiros. A propaganda incorpora os avanços e as conquistas da sociedade, e os coloca a serviço da comunicação comercial. A evolução das técnicas e dos recursos da fotografia produz um impacto enorme na sociedade. O jornalismo incorpora rapidamente esses avanços e, em pouquíssimo tempo, tem sua própria forma de abordagem fotográfica, o fotojornalismo.” (MARCONDES, 2001, p. 24) Apesar de um período tumultuado, de 1930 a 1945, a publicidade floresceu com o surto industrial dos anos 30. Neste mesmo período, surgiu a expressão “a propaganda é a alma 43 do negócio”, por causa de uma visível profissionalização dos que faziam a propaganda. Várias revelações começam a surgir: o rádio, revistas para todos os gostos e os slogans criativos. Figura 4 – Propaganda da década de 1930 fonte: www.fredcunhanews.com Segundo o livro 100 anos de propaganda, publicado pela Abril Cultural (1980), “os pioneiros da propaganda Brasileira foram poetas famosos, como Olavo Bilac, e artistas plásticos, como Julião Machado, que passou a desenhar para a publicidade”. O estilo artnouveu, tão em voga, começa a aparecer em revistas semanais e ilustradas, em 1900. O século XX é marcado por conquistas revolucionárias para o sistema de comunicação brasileiro. No dia 18 de setembro de 1950 nasceu, em São Paulo, a primeira TV do Brasil: a TV Tupi, que revolucionária a publicidade brasileira de uma forma que nunca havíamos visto. Na época não havia vts, então as imagens iam para o ar ao vivo, e a maioria das propagandas eram feitas por mulheres, já que o público mais atingido eram as mulheres. Começou a acontecer uma disputa maior em relação ao mercado e as publicidades passaram a ser mais elaboradas (SEVERINO, GOMES e VICENTINI, 2011, p. 4) . A propaganda passa a ser muito mais informativa, incorporando muitas inovações, com textos mais longos. “Era um tempo de grandes mudanças […]. Com o surto da industrialização, começa a competição pelo consumo, os clientes se multiplicam, as agências proliferam e a pesquisa estatística determina os veículos” (Loyola, 2012, p. 1) artigo textos e tradução na redação publicitária . A necessidade de se regulamentar o exercício da propaganda no Brasil foi prova do desenvolvimento do mercado publicitário. Na década de 40 começam os primeiros esforços para disciplinar eticamente a propaganda, surgem: o decreto Lei que consolida a propaganda 44 de médicos, cirurgiões-dentistas, parteiras, massagistas, casas de saúde e estabelecimentos congêneres; o conselho Nacional de Imprensa (CNI) e a Associação Brasileira de Propaganda (ABA). Em 1951, surge a Escola Superior de Propaganda, em São Paulo, tendo no seu quadro de professores, somente profissionais com uma vasta experiência de mercado. Calcula-se que mais de 80% dos seus alunos foram absorvidos pelo mercado publicitário e que muitos deles fizeram parte do altos escalões da publicidade. Durante toda a década de 50, acontece a consolidação da comunicação de massa, a partir do pós-guerra. Figura 5 – Propaganda da década de 50. Fonte: h2oinfo.blogspot.com. Se a televisão daria o tom dos anos 50, o Rádio foi a tônica dos anos 30. Veja-se na citação a tragetória do rádio e da TV. A primeira licença para a instalação de uma emissora de rádio no Brasil, data de1920. No entanto, a primeira estação regular, a Rádio Educadora, que depois se transformaria em Rádio Tamoio, só vai surgir em 1927. Mas, em 1938 já haviam, na cidade de São Paulo, dez emissoras de rádio e mais 24 no interior. A Televisão, tem a data de 1932 como a primeira experiência de transmissão realizada no Brasil. Foi uma transmissão rudimentar feita por Roquete Pinto que enviou imagens do centro do Rio de Janeiro para diversos 45 bairros. No entanto, a primeira emissora de televisão brasileira e de toda a América Latina, foi a TV Tupi (Canal 4), resultado da visão inovadora de Assis Chateubriand e inaugurada em 1950 em São Paulo. O mesmo ano em que os Estados Unidos autorizava o funcionamento da TV em cores no seu país (LOYOLA, 2012, p. 114). Com tantas mudanças na sociedade brasileira, as propagandas seguem a mesma tendência. Por causa dessas mudanças, os homens são venerados pela publicidade da época e passam a aparecer em vários anúncios. As mulheres ficavam em casa ou saiam para fazer compras, mas estavam sempre atualizadas do que acontecia. A linguagem publicitária passa, então, a incorporar as liberdades e a sensação de progresso que toda a sociedade nacional está respirando. O tom ufanista e a tônica da modernização se fazem presentes em praticamente todas as mensagens que a propaganda emite nessa época. A publicidade começa a ter na sociedade o papel que exerce tão bem hoje: de espelho no qual todos nos olhamos e onde temos uma referência aceita e comum de quem somos, o que andamos fazendo de bom, o que é moderno e o que não devemos perder de jeito nenhum, sob o risco de ficarmos por fora dos avanços da história ( MARCONDES, 2001, p. 38). A propaganda passou por uma fase de ouro quanto à originalidade e imaginação, no final do ano de 1970 e parte dos anos de 1980. O Brasil ganhou vários prêmios em festivais publicitários internacionais. O Conar - Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária, que defende até hoje os consumidores de propagandas ruins ou enganosas, foi oficializado em 1980. Ainda nessa década, a publicidade perdeu toda a força que havia obtido. “Os anunciantes não possuíam verbas para investir em propaganda por causa da inflação. O setor não soube criar alternativas para sair da decadência, por isso as agências perderam o alto poder que conquistaram na ditadura militar” (SEVERINO, GOMES e VICENTINI, 2011, p. 5) A conquista mais importante, nos anos 1990, foi a consolidação da internet. Nesse ano houve turbulências no setor, por conta de medidas econômicas e políticas. A retomada do crescimento não demorou muito, veja-se no esboço a seguir. Com a presidência de Fernando Collor de Melo e com o congelamento dos preços, as agências começaram a ter vários problemas financeiros, tiveram que diminuir o quadro de funcionários e o seu desempenho foi péssimo com pouca verba para o setor. Em 1994, Fernando Henrique Cardoso cria um novo plano econômico para o Brasil e uma nova moeda: o real. Assim acontece a retomada dos investimentos em propaganda e inicia-se a fase mais importante do setor. Desde então, o Brasil é considerado a terceira potência mundial em criação publicitária, pelos elogios que recebe dos 46 países de Primeiro Mundo e pela quantidade de prêmios que conquistou em festivais internacionais (SEVERINO, GOMES e VICENTINI, 2011, p. 6) Algumas propagandas brasileiras ganharam prêmios internacionais. O mais premiado internacionalmente e que é visto como o case mais importante da história da publicidade brasileira é o Primeiro Soutien. Outro marco da propaganda brasileira é a campanha da Bombril, foi a primeira empresa a investir uma verba muito alta na publicidade, e mesmo com altos índices de rejeição, o seu garoto propaganda deu tão certo que até hoje é conhecido como garoto Bombril. Figura 6 – Propaganda da Bombril na década de 80. Fonte: centauroalado.blogspot.com Atualmente, a publicidade leva em conta os estudos de mercado e, segundo Severino, Gomes e Vicentino (….), grande parte das mensagens publicitárias é sugestiva e a propaganda ocupou o lugar da publicidade combativa. De acordo com esses autores, alguns sociólogos dividiram em três épocas o longo caminho percorrido pela publicidade. Na era primária, limitava-se a informar o público sobre os produtos existentes, ao mesmo tempo em que os identificava através de uma marca. Isto sem argumentação ou incitação à compra. Na era secundária, as técnicas de sondagem desvendavam os gostos dos consumidores e iam orientar a publicidade, que se tornou sugestiva. Na era terciária, baseando-se nos estudos de mercado, na psicologia social, na sociologia e na psicanálise, a publicidade atua sobre as motivações inconscientes do público, obrigando-o a tomar atitudes e levando-o a determinadas ações (SEVERINO, GOMES E VICENTINO, 2011, P. 7). 47 Na publicidade contemporânea nota-se muito mais a promoção de estilos de vida do que a venda de produtos. Os recursos utilizados evoluiram junto com a necessidade de promover o objeto de consumo, para além de suas qualidades próprias. Hoje, a função da propaganda é, antes de mais nada, instigar desejos e perpetuar crenças e ideologias. 48 4 OS COSMÉTICOS – O QUE SÃO, COMO SURGIRAM E SEU “PODER DE TRANSFORMAR” Os termos cosmético e cosmética tem origem do grego kosmétikos e do latim cosmetorium, ou de Cosmus, perfumista romano famoso do século I, que fabricava vários preparados, entre eles o cosmianum, ungüento antirrugas de grande fama. Segundo a Câmara Técnica de Cosméticos (Catec), a definição de cosméticos no Brasil está de acordo com a Resolução RDC nº 211, de 14 de julho de 2005: produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes são preparações constituídas por substâncias naturais ou sintéticas, de uso externo nas diversas partes do corpo humano, pele, sistema capilar, unhas, lábios, órgãos genitais externos, dentes e membranas mucosas da cavidade oral, com o objetivo exclusivo ou principal de limpá-los, perfumá-los, alterar sua aparência e ou corrigir odores corporais e ou protegê-los ou mantê-los em bom estado. Vale ressaltar que trata-se de uma definição adotada tanto pelo Mercosul, quanto pela União Europeia. Nessa mesma Resolução, os produtos cosméticos são classificados em dois tipos: Produtos Grau 1: são produtos de higiene pessoal cosméticos e perfumes cuja formulação cumpre com a definição adotada no item 1 do Anexo I desta Resolução e que se caracterizam por possuírem propriedades básicas ou elementares, cuja comprovação não seja inicialmente necessária e não requeiram informações detalhadas quanto ao seu modo de usar e suas restrições de uso, devido às características intrínsecas do produto: Produtos Grau 2: são produtos de higiene pessoal cosméticos e perfumes cuja formulação cumpre com a definição adotada no item 1 do Anexo I desta Resolução e que possuem indicações específicas, cujas características exigem comprovação de segurança e/ou eficácia, bem como informações e cuidados, modo e restrições de uso. A compreensão desse conceito leva a crer que esses produtos quase que se limitam, ou ao menos deveriam, a, basicamente, limpar, higienizar e conservar. Acontece que, como assinala Santos (2009), é assombroso todo o imaginário que excede o valor de uso de qualquer cosmético. Os cosméticos, hoje, transitam entre a simples função de cuidar e o imaginário de rejuvenescer. Além disso, há a sedução das invenções cosméticas e constantes formulações da química, bioquímica, da medicina que permitem maior conhecimento do corpo. No nosso tempo, ganhou-se consciência de que o corpo petence a cada um de nós, mas é preciso mantê-lo, preservá-lo e regenerá-lo constantemente. O corpo é uma espécie de vitrina ou decoração que requer a utilização de produtos de maquiagem, de higiene e limpeza. O corpo exige também prevenção anti-envelhecimeto, a pele precisa de cuidados redobrados durante 49 o verão, no inverno há quem frequente solários e em situações particulares, recorre-se à cirurgia estética para corrigir aspectos que nos desconfortam. Cuidados, cuidados a toda hora!(SANTOS, 2009, p. 8). Numa sociedade em que se incorporou a cultura do narcisismo, vê-se o corpo como algo a ser glorificado, impondo-se a ele sacrifícios em busca da perfeição estética. A indústria cosmética, apoiada na publicidade, vem legitimar esse valor na sociedade, apostando, principalmente, no fascínio que as imagens são capazes de produzir no imaginário. “Um cosmético, está dito e redito, vende sempre um sonho (beleza, juventude, bem-estar físico, estatuto, auto estima..) havendo, na comunicação publicitária pouca preocupação em motivar os consumidores para as reais funções e aplicações destes produtos” (SANTOS 2009, p.67). De acordo com o SEBRAE (2007), o uso de cosméticos remonta há, pelo menos, 30 mil anos. Pintar o corpo para fins ornamentais e religiosos era um hábito desde os povos primitivos. Segundo o Conselho Regional de Química – IV Região, esses povos usavam para isso terra, cascas de árvores, seiva de folhas esmagadas e orvalho. Na Antiguidade, placas de argila encontradas em escavações arqueológicas na Mesopotâmia trazem instruções sobre asseio corporal, já mostrando a importância dada à higiene. Os primeiros registros do uso de cosméticos estão no Egito, apesar de muitos desses produtos terem se originado na Ásia. De acordo com o Conselho Regional de Química (CRC– IV região), “Os antigos egípcios […] usavam extratos vegetais, como a henna. Eles tinham caixas de toalete para guardar seus cosméticos, e enterravam os faraós junto com seus cremes e poções de beleza”. Isso demonstra o quão arraigados são os valores que sustentam a cultura do culto à beleza e fomentam a indústria cosmética. Durante o Império Romano, um médico grego chamado Galeno de Pérgamo (129 a 199 d.C.) desenvolveu um precursor dos modernos cremes para a pele a partir da mistura de cera de abelha, óleo de oliva e água de rosas. Galeno deu o nome de Unguentum Refrigerans a seu produto, na verdade um cold cream. O creme se funde em contato com a pele, liberando a fase interna aquosa, o que produz uma sensação refrescante. A mesma fórmula ainda é utilizada atualmente nas emulsões de água em óleo(CRQ, 2011). Interessante notar que se trata de um cosmético que parece ter sido aperfeiçoado ao longo do tempo. É encontrado nas prateleiras, hoje, para o consumo, em uma sociedade tão vaidosa quanto a do Império Romano. O que pode diferenciar essas duas épocas pode ser justamente a liberdade de uso desses produtos, uma vez que, como descreve o Conselho Regional de Química (CRQ-IV região), os cosméticos foram proibidos na Idade Média, um 50 período em que o rigor religioso do cristianismo reprimiu o culto à higiene e a exaltação da beleza, ensinando que os males do corpo só poderiam ser curados com a intervenção divina. Por conta de tanta repressão, no que se denominou de Idade das Trevas, na Europa, o uso de cosméticos desapareceu completamente. As Cruzadas devolveram a este período alguns costumes do culto à beleza. Os cruzados traziam do oriente cosméticos e perfumes. Além disso, no início do período medieval a ocupação árabe na Península Ibérica fez com que certos hábitos de higiene fossem mantidos em cidades como Córdoba, Sevilha e Granada por questões religiosas: casas de banho, redes de esgoto e a limpeza pública continuaram a existir em alguns lugares por conta da religião dos muçulmanos (CRQ-IV Região, 2011). Com o descobrimento da América e o Renascimento, no século XV, inícia-se uma nova era, a Idade Moderna. “O Humanismo, que coloca o homem como centro do universo, e o retorno aos valores da antiguidade clássica preconizado pelo Renascimento, trazem de volta a busca pela beleza […]. A religiosidade perdia força, e os pintores mostravam as mulheres saudáveis e belas”. Uma das maiores e mais importantes obras de arte, A Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, aparece sem sobrancelhas, face ampla e alva, com tez suave e delicada. Personagens bíblicos são retratados mostrando a beleza em sua plenitude Para clarear a pele, as mulheres europeias, inclusive a Rainha Elizabeth I, da Inglaterra, usavam uma grande variedade de produtos, incluindo tinta branca à base de chumbo, no rosto. Um estilo que foi popularizado e conhecido como Máscara da Juventude. Mais tarde, o arsênico passa a ser empregado como pó facial em substituição ao chumbo. Nesse momento, Itália e França despontam como grandes centros produtores de cosméticos, que são usados apenas pela aristocracia europeia por conta do alto preço. Também nessa época torna-se popular o uso dos cabelos louros, considerados angelicais, e o perfume ganha força, porque os europeus são aconselhados pelos médicos a tomar apenas um ou dois banhos por ano. Para o clareamento dos cabelos, era utilizada uma mistura de enxofre negro com alume e mel, e expostos ao sol. Os perfumes são criados para mascarar o forte odor corporal. A perfumaria ganha força na França e adquire grande importância para a economia francesa desde o reinado de Luiz XIV (1638-1715) utilizando ingredientes naturais. Sobre esse, que é um dos cosméticos mais comuns e acessíveis, segundo o Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), acrescenta-se: O grande salto dos perfumes só aconteceu quando o italiano Giovanni Maria Farina, em 1725, estabeleceu-se em Colônia, na Alemanha, e criou a mais 51 antiga perfumaria do mundo. Lá desenvolveu o perfume que chamou de Eau de Cologne em homenagem à cidade que o acolhera. O perfume de Farina se tornou o preferido das casas reais europeias do século XVIII, foi copiado mundo afora, e a denominação água de colônia virou sinônimo de perfume a partir daí (CRF- SP, 2013, p. 13). A indústria de cosméticos é impulsionada pelas inovações técnicas do setor químico. Em Paris, por exemplo, lojas vendiam cosméticos, depilatórios, pomadas, azeites, águas aromáticas, sabonetes e outros artigos de beleza. Mas uma nova onda de restrições ao embelezamento iria acontecer na Europa. Na Inglaterra do século XVI, o Puritanismo, liderado por Oliver Cromwell (1599-1658), provocou um período de obscurantismo, durante o qual o uso de cosméticos e perfumes foi banido. Em 1770, o parlamento inglês, para restringir o uso de cosméticos, editou um ato que estabelecia o seguinte: Qualquer mulher que... se imponha, seduza e atraia ao matrimônio qualquer um dos súditos de Sua Majestade por utilizar pinturas, perfumes, cosméticos, produtos de limpeza, dentes artificiais, cabelos falsos, espartilho de ferro, sapatos de saltos altos, enchimento nos quadris, irá incorrer nas penalidades previstas pela Lei contra a bruxaria e o casamento será considerado nulo e sem validade ( CRQ-IV REGIÃO, 2011). No final do século XVIII, o uso de cosméticos ficou fora de moda. No século XIX, já na Idade Contemporânea, ocorreu o seu retorno, quando cosmético não mais era associado à bruxaria e os produtos desse gênero eram vistos com os seus reais propósitos. Desde então, as mulheres passaram a manipular seus produtos com ingredientes naturais, em suas próprias casas até o surgimento dos industrializados. Donas de casa, então, começaram a fabricá-los em suas próprias residências e entre os ingredientes utilizados incluíam-se sopas, limonadas, leite, água de rosas, creme de pepino, e outros elementos que constituíam receitas exclusivas de cada família. As indústrias de cosméticos surgiram no início do século XX, em função da necessidade de as mulheres comprarem produtos prontos, pois muitas delas já trabalhavam fora de casa (SEBRAE, 2007, p. 8). E, mais recentemente, percebe-se que é justamene essa a razão de um crescimento acelerado no consumo de cosméticos. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos – ABHIPEC, o segmento de beleza vem crescendo incessantemente no Brasil. Essa ascensão é consequência do aumento do seu público-alvo. 52 Somos um país com mais mulheres e essas mulheres estão se tornando mais independentes devido sua inserção no mercado de trabalho. Essa ‘nova’ mulher que se insere na sociedade de forma tão contundente deverá ser a locomotiva que puxará o crescimento deste setor na próxima década (ABHIPEC, 2014). Voltando ao percurso histórico, a liberação da mulher foi o fator fundamental para o sucesso dos cosméticos prontos e, no século XIX, os principais marcos da preparação de bases para cremes incluem a introdução da lanolina purificada por Liebreich e da vaselina por Cheseborough em 1870. Indústrias começaram a fabricar as matérias-primas para a produção de cosméticos e produtos de higiene nos Estados Unidos, como a Colgate, na França, Japão, Inglaterra e Alemanha. Paralelamente a esse progresso tecnológico, os conhecimentos científicos contribuíram decisivamente para o desenvolvimento de numerosas fórmulas de preparações mais eficientes e seguras. Os salões de beleza ganham popularidade, mas, fato muito curioso, muitas mulheres preferem entrar pela porta dos fundos para não sugerir que precisem de ajuda para parecer mais jovens. Vê-se que a angustia de egos destruídos por não atender aos padrões pré-estabelecidos não é de hoje. A ânsia de recuperar o “paraíso perdido”e um corpo modelado faz parte do sonho da humanidade. Como frisa Santos (2009, p. 26), “as rugas e outros sinais de envelhecimento podem afetar a auto-estima. Numa sociedade obcecada pelo culto da beleza e da juvende, serão poucos os que não se importam de ver aparecer e multiplicar os sinais da idade”. Um dos ítens mais desejados pelo público feminino, a maquiagem, passa a acompanhar de perto as cores da alta costura, nas últimas décadas do século XX. Os consumidores tornam-se cada vez mais exigentes: querem ressaltar sua beleza natural com fórmulas mais leves e obter resultados mais rápidos. É um momento em que, segundo Lipovetsky (2009), em toda parte, impõe-se a lógica da diversificação e da estilização dos modelos. Iniciativa e independência do fabricante na elaboração das mercadorias, variação regular e rápida das formas, multiplicação dos modelos e séries – esses três grandes princípios inaugurados pela Alta costura não são mais apanágio do luxo do vestuário, são o próprio núcleo das indústrias de consumo. A ordem burocrático-estética comanda a economiado consumo agora reorganizada pela sedução e pelo desuso acelerado. A indústria leve é uma indústria estruturada com a moda (LIPOVETSKY, 2009, p. 184). Outro cosmético que ganha grande importância nessa época é o protetor solar, para prevenir os danos provocados pelo excesso de sol. Novas fórmulas vão se desenvolvendo e o 53 produto vai se tornando cada vez mais eficiente. Os resultados e benefícios dos cremes e loções, que antes levavam um mês, passaram a aparecer em até 24 horas. Com novas formulações, os cosméticos que apenas cobriam as imperfeições, passaram também a controlar rugas e esconder as marcas do tempo. Em 1990 surgem cremes específicos, e caros, para a celulite e é também o tempo dos auto-bronzeadores. Assim, pode-se inferir que uma maior consciência do corpo despertou também para a necessidade de sua preservação e regeneração. Isso impulsionou o auto-cuidado, aumentando o consumo de produtos de higiene e consolidando linhas de cosméticos. Sobre isso, seguem as considerações de Santos (2009). […] nos anos de 1990, o corpo, além de ser sinônimo de performance, passou a ser um espelho da vida pessoal, profissional e social, ou seja, passou a ser encarado como uma vitrina destinada a comunicar a nossa imagem aos outros. É um corpo higiênico, sedutor, mercadoria, símbolo de sucesso e saúde (SANTOS, 2009, p. 16). De acordo com o Conselho Regional de Química, em 1995, a nanotecnologia, uma das maiores revoluções do século XX, entra pela primeira vez na fórmula dos cosméticos. A Lancôme lança um creme facial com nanocápsulas de vitamina E para combater o envelhecimento, com uma fórmula desenvolvida e patenteada pela Universidade de Paris. A partir de então, as maiores empresas mundiais de cosméticos começam a investir em pesquisa e desenvolvimento de diversas linhas de produtos que utilizam a nanotecnologia. Um nanocosmético pode ser definido como sendo uma formulação cosmética que veicula ativos ou outros ingredientes nanoestruturados com propriedades superiores em sua performance em comparação com produtos convencionais. […]. Os nanocosméticos têm várias vantagens sobre os cosméticos convencionais, como melhor penetração nas camadas mais internas da pele onde os ativos são mais necessários, e uma distribuição mais homogênea das substâncias. Por exemplo, formulações de protetores solares com TiO2 nanoparticulado prometem tornar esses produtos mais eficientes ( CRQ – IV Região, 2011) A imagem utilizada pela publicidade de cosméticos já vinculou a beleza e perfeição estética a sucesso e poder. “Celebridades, esportistas, atrizes e modelos lançam suas próprias linhas de cosméticos para ousar em relação a cores e tons de maquiagens” CRQ (2011). É muito comum ver linhas de cosméticos assinadas por celebridades, no mercado, hoje. É o caso de marcas como Chakira, Carolina Herrera, Gabriela Sabatine, Juliana Paes, Antônio Banderas e muitos outros. Não é raro, apreciando aqui especialmente as propagandas de cosméticos para mulheres, que uma 54 simples tintura de cabelo ou um creme para as mãos sejam anunciados por garotas propagandas jovens, famosas, bem sucedidas. Sobre essa questão, observa-se na citação seguinte: Os anúncios e campanhas publicitárias dirigidas ao público feminino são centrados no sucesso, na vaidade e na aparência. […] o testemuno de mulheres belas e famosas dá credibilidade ao produto e desperta o desejo de identificação da mulher-consumidora com a estrela insinuante que ela gostaria de ser (CARVALHO, 1998, p. 24-25). Nos anos 90, uma outra tendência foi o fortalecimento de linhas de cosméticos feitos com ingredientes naturais. Castanha do pará, guaraná e andiroba, ganham espaço na preferência dos consumidores por produtos como cremes, xampus e perfumaria. “Mais uma vez o trabalho dos químicos é importante para obtenção dos extratos puros das plantas, de proteínas a baixo custo e criação de novos sistemas de transferência de ativos” CRQ –IV Região (2011). Com o envelhecimento da população, no século XXI, a tendência de as pessoas quererem parecer mais jovens faz com que os cremes anti-idade ganhem importância. Sobre esse fato, Santos (2007, p.57) faz uma constatação: “[…] é impressionante o arsenal de técnicas anti-idade proposto pelos industriais da cosmética, a que se juntam os especialistas da cirurgia, os dermatologistas, […]”. De acordo com a Associação Brasileira de Cosmetologia – ABC ( 2013), as enzimas são um fenômeno da atualidade na produção de cremes para renovar a pele, substituindo os alfahidroxiácidos. Além disso conta-se, hoje, com outros procedimentos como as cirurgias cosméticas e outros tratamentos como implantes de colágeno e injeções de botox para reduzir rugas e marcas de expressão. Sobre a oferta de tratamentos que apregoam efeitos anti-idade, anti-rugas, Santos (2009) alerta quanto a linguagem usada na publicidade desses produtos, citando: O panorama é animador em termos de dinâmica de mercado, se bem que se retome aqui um conjunto de perguntas que há muito aguaram resposta: como impedir a exploração da credulidade face aos produtos milagrosos, àqueles que são medicamentos, mas não estão reconhecidos enquanto tal? aos alimentos que prometem saúde ou os cosméticos que prometem a juventude irrecuperável? Convém nunca esquecer que quem vende cosméticos, também vende sonhos (SANTOS, 2009, p. 20). À maquiagem, um dos produtos mais associados ao paradgma do culto da forma, e ao poder de sedução, é dado o estatuto de transformadora da beleza. Não é à toa que muitos programas de TV investem em quadros como “o antes e depois” da maquiagem, produzindo verdadeiras obras de arte por profissionais que ganham cada vez mais fama, no mercado da moda. De aordo com a ABIHPEC (2013 ), o uso de matéria-prima mineral na maquiagem ganhou 55 força com o aprofundamento das pesquisas e a exploração das propriedades presentes nas argilas, nos óxidos, dióxidos, micas, malaquitas, no magnésio e até em pedras semipreciosas, como a ametista, a safira e a turmalina. Antes da consolidação da indústria cosmética, as mulheres colocavam a saúde em risco a cada aplicação de cosméticos e artigos de maquiagem artesanais. Felizmente, a produção de cosméticos e maquiagens evoluiu muito desde o uso desses recursos nocivos à saúde. Porém, apesar de décadas de estudos e testes de segurança nas indústrias, a maquiagem ainda é um produto químico aplicado diretamente no rosto e, como tal, merece cuidados. As mulheres que não dispensam a maquiagem devem ficar atentas a alguns detalhes para que esse ritual de beleza não prejudique a saúde (PORTAL UNIMED, CARTILHA DE MAQUIAGEM, 2013). Assim, a indústria e a tecnologia, apesar dos avanços, ainda não são capazes de oferecer produtos totalmente sem riscos à saúde da pele. Portanto a maquiagem e todos os outros produtos cosméticos aos quais, principalmente o público feminino, recorre em busca da beleza, da juventude e perfeição estética representam um sacríficio, pois é um risco à saúde. O uso de esmaltes e batons em seus variados tons e de cremes e xampus com longa duração pode ter consequências desagradáveis. Segundo o Jornal da UNICAMP (2013), pesquisadores do laboratório Innovare de Biomarcadores, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da UNICAMP apontaram para a existência de cosméticos com substâncias alérgenas ou até potencialmente cancerígenas. Todas essas consideraçãoes são válidas no estudo ora proposto. Se o consumo de cosmético é cada vez maior, apesar dos riscos, há um discurso cada vez mais elaborado, capaz de seduzir o consumidor-mulher. É justamente o discurso da mídia, expandindo-se cada vez mais, se utiliza do recurso da sedução, apela mais pelos artifícios e magia de que sugere e menos pela realidade. Sobre essa sedução, Giles Lipovetsky, em “O império do efêmero”, assim se refere: A sedução funciona cada vez menos pela solicitude, pela atenção calorosa, pela gratificação, e cada vez mais pelo lúdico, pela teatralidade hollywoodiana, pela gratuidade superlativa […]. Acreditou-se demasiadamente que a essência da publicidade residia em seu poder de destilar calor comunicativo, que conseguia conquistar-nos por sua instância material cheia de cuidados por nós (LIPOVETSKY, 2009, p. 217-218). As imposições culturais quanto ao ideal de beleza encontram ecos na indústria de cosméticos e em sua publicidade. É uma convergência capaz de moldar hábitos e faz inverter valores. O que conduz a um indivíduo muito mais preocupado em exibir signos exteriores do que em realizar seu ego. Para Palacoios (…), “A busca pela compreensão, ou pelo conhecimento da 56 interioridade do corpo, constitui-se em um processo interminável. Todas as ções destinadas a conhecer, a fortalecer e a embelezar o corpo carregam em si próprias uma parte de impotência e de risco”. O consumo de cosméticos nas sociedades atuais parecem ter levado produtos como xampu, hidratantes corporais, cremes faciais, maquiagens a um estatuto de gêneros de primeira necessidade. Palacios (2012) constata que em se tratando especificamente de produtos cosméticos, há uma intenção por parte do discurso publicitário, não apenas de difundir, mas também isntituí-lo como um padrão de uso. O uso de cosméticos, especialmente pelo consumidor mulher, tem sido obrigatório, visto sua divulgação comparada à própria necessidade de alimentação. Essa indução à compra e consumo diário de cosméticos leva a indústria do setor a dados sempre favoráveis. O Brasil, segundo a Abihpec, é o terceiro maior mercado consumidor no mundo. “A indústria de comésticos não conhece o regime layoff, férias coletivas ou capacidade ociosa. Enquanto a maioria da indústria se esforça para terminar o ano no azul, uma fábrica de cosméticos na capital paulista cresceu 27% só no primeiro semestre” (ABHIPEC, 2014). O discurso publicitário, a partir de recursos imagéticos e verbais, reproduz padrões socioculturais presentificados na prática diária de cuidados com o corpo. Esse discurso revela que, por traz da orientação de cuidados com a saúde e bem-estar, institui-se a preocupação estética, levando ao incremento e sofisticação, cada vez maior, desses produtos. O diretor técnico da Grendha Professional Care, Celso Martins Junior, confirma: "Investimos em máquinas novas, em muito equipamento de laboratório e a proposta desse investimento era, de fato, aumentar a nossa capacidade de produtividade e impulsionar o crescimento das marcas que contemplam toda a nossa empresa". Há um imperativo da beleza no Brasil, atestado, também, por esse crescimento acelerado do setor, que tanto investe em capacidade de produção. Esse imperativo está atrelado à exaltação da sensualidade. Ou seja, a beleza tão pretendida passa pela modelação do corpo, e o que se vê nos comerciais são imagens associadas ao erótico, busca-se o corpo sexualmente desejável. O filósofo francês Gilles Lipovetsky, falando sobre luxo e consumo, refere-se ao Brasil como “vitrine do status sensual” e considera que a questão da sensualidade está muito arraigada na cultura brasileira. Há uma valorização da aparência no Brasil. Na citação seguinte, este filósofo declara: Faço muitas conferências sobre a beleza e, no Brasil, as mulheres vêm me falar que, com 40 anos, estão velhas. A exigência de parecer jovem se tornou algo importante. Antes o importante era mostrar que era rico, agora é parecer jovial. Nos EUA e na Europa as mulheres já gastam mais com hidratação, ou com botox e cirurgias estéticas, do que com produtos de maquiagem. No Brasil você vê mulheres com cabelo branco (risos)? A cultura brasileira ensina que as mulheres 57 precisam esconder a idade tingindo os cabelos. Alguns estudiosos dizem que esse fenômeno é uma tirania e não vai durar; vamos ter de aceitar nossa idade. Não acredito nisso, essa é a cultura moderna. Não acredito que vamos recuar com a cultura da juventude. Penso que um dia teremos técnicas muito mais avançadas para nos manter sempre jovens (LIPOVETSKY, 2012). Junte-se a isso uma projeção para 2020 de que o dinheiro movimentado pelo setor de cosméticos e cuidados pessoais no Brasil vai mais que dobrar, e é possível pesar no poder de dominação sociocultural e ideológico. A cultura do culto ao corpo vai além da necessidade da impressionar pela beleza, ela se estende à concepção da beleza e da juventude como garantia de felicidade. 58 5 A MULHER, SEU ESPAÇO: DE CASA À PROPAGANDA DE COSMÉTICOS 5.1 COMO ERA NO PRINCÍPIO A maneira como a mulher é representada na mídia e em outros espaços sociais, hoje, é resultado das relações socioculturais historicamente perpetuadas. O discurso sobre a mulher contemporânea, tendo em vista a discussão ora proposta, tem sido construído e utilizado pela mídia a partir da realidade. É um discurso determinado ideologicamente, fruto das transformações ocorridas na sociedade. Para a análise desenvolvida nesse trabalho é importante considerar que as diferenças sexuais sempre foram valorizadas ao longo dos séculos pelos mais diferentes povos em todo o mundo. A figura feminina, em algumas culturas, como a ocidental, sempre foi associada ao pecado e à corrupção do homem. A mulher foi também associada à ideia de fragilidade e posta em situação de total dependência da figura masculina, dando origem a uma cultura patriarcalista e machista. Com o ritual do matrimônio, a mulher ganhou ainda o papel de mãe, e, interessante notar, na cerimônia do casamento, ela “passa das mãos do pai para as do noivo”. Nesse contexto, não era de se esperar que características como inteligência, criatividade, coragem fossem definidoras da mulher e que simbolizassem seu papel. Mas, o estilo de vida de milhares de mulheres no mundo todo tem sido afetado por mudanças no universo feminino. Além disso, a postura dessa figura feminina perante a sociedade e seus posicionamentos em relação a assuntos como maternidade, trabalho, sexo, fidelidade fizeram com que esta saísse da obscuridade de uma sociedade patriarcal e buscasse alcançar seus objetivos. Vale ressaltar, a imagem da mulher, refererida nesse trabalho, não quer dizer necessariamente a imagem física veiculada pelo anúncio. Trata-se da imagem da mulher construída pelos sujeitos sociais explicitada simbolicamente através de recursos da publicidade. Edson Gastaldo, discutindo publicidade e sociedade numa perspectiva antropológica, conclui: A par de sua inegável influência no campo social – ainda que devidamente relativisada – o discurso publiciário também é por sua vez influenciado pela sociedade a que se destina. Além de fornecer a “matéria-prima” cultural de que é feito o mundo representado nos anúncios, o campo social também influencia o campo discursivo publicitário sob a forma de “resultados”, […] (GASTALDO, 2013, p. 76). 59 Quando surgiram as primeiras peças publicitárias ilustradas, em 1875, eram produzidas em litogravura. Dos produtos anunciados, eram os fortificantes e elixires que dialogavam com as donas de casa, prometendo-lhes vigor e bem-estar. Figura 7 – Propaganda de elixir da década de 1880. Fonte: divando.pop.com.br. Exibindo fotografias de mulheres ou não, a propaganda dirige-se à figura feminina como dona-de-casa, mãe, cuidadora dos filhos, submissa ao marido e feliz com os afazeres de limpeza e organização. No final do século XIX e início do século XX, A figura feminina já começa a ser reproduzida nos cartazes anunciando serviços e produtos. Porém, ainda envolta em discursos que lhe aproximavam muito mais da vida doméstica do que da necessidade do cuidado de si e da aparência. A mulher era mostrada utilizando novos eletrodomésticos, como aspirador de pó, geladeira e a televisão em cores. Isso enfatizava a função e o benefício que esses aparelhos traziam para a vida das donas-de-casa. O mercado e, claro, a publicidade vê a mulher como a consumidora oficial. Como destaca Carvalho, 1998, p. 23. A sociedade de consumo identifica e reforça o papel feminino que vem se desenvolvendo historicamente a partir da organização patriarcal da sociedade: o de sustentáculo interno da estrutura familiar. Nesse sentido, a mulher desempenha a função de protetora/provedora das necessidades da família e da casa, constituindo a própria imagem da domesticidade ( de domus, “casa”). 60 Assim, a publicidade influencia hábitos, quando concentra na mulher a imgem de consumidora. Baseando-se mais no sonho e no que está no íntimo das pessoas, a indústria da publicidade dirige à mulher um discurso que a trata como dona-de-casa, pois essa era a ideia que ela fazia de si mesma. Na década de 50, marcada pela construção de uma economia moderna e pela urbanização, alguns padrões culturais foram modificados. Com a chegada de novas tecnologias, vindas do exterior, tudo passou a ser elétrico: o ferro que substituiu o ferro à carvão, o fogão que substituiu o fogo a lenha, o chuveiro, o liquidificador, a batedeira, a máquina de lavar roupa. Com isso, as tarefas domésticas foram facilitadas e as mulheres tiveram mais tempo para outros afazeres, cuidar da estética ou até mesmo trabalhar fora de casa. Figura 8 – Propaganda de eletrodomésticos, final do século XIX. Fonte: www.propagandashistoricas.com.br A mulher, então, chega ao mercado de trabalho. Os anúncios de produtos de beleza são mais frequêntes e exibiam atrizes e moças jovens e lindas, enfatizando o efeito do produto e a busca da beleza perfeita. Com mais oportunidades de emprego, a mulher buscou qualificação e precisou de maior escolaridade. O status social da mulher começa a mudar, o cuidado de si passa a ser uma preocupação. A busca pela beleza é estimulada pela TV. Sobre a beleza nessa época, veja-se a citação. 61 Dois estilos de beleza feminina marcaram a década de 50 em todo o mundo: o das ingênuas chiques, que se caracterizava pela naturalidade e jovialidade, encarnado no cinema por Grace Kelly e Audrey Hepburn, e fatal, como das pin-ups americanas, loiras e com seios fartos. Entretanto, os grandes símbolos mundiais de beleza na década de 50 foram Marilyn Monroe e Brigitte Bardot, que eram a mistura dos dois estilos (DUBY; PERROT, 1990, p.110). Entre os cosméticos mais anunciados na década de 50, destacam-se os produtos de maquiagem. A mulher exposta nas propagandas retratavam a moda daquela época, usando vestidos rodados, estampas florais, poá, casacos de pele, sapatos de boneca, acessórios de pérolas, cabelos presos em coques ou penteados, e claro, maquiagem sempre. Além de ser excelente dona de casa, mãe, esposa, a mulher deveria estar sempre impecavelmente linda e maquiada, ser um exemplo de beleza. Com a ascensão dos meios de comunicação de massa interligando as pessoas, temas como diferenças sexuais entre homens e mulheres, casamento, a mulher no mercado de trabalho e modelos de comportamento passam a ser discutidos. A partir daí, começam a aparecer os movimentos femininos. A imagem da mulher começa a mudar em consequência das ideias feministas, reforçadas com a ajuda da TV, do cinema, do rádio e das revistas femininas. Com esses meios de comunicação inseridos na sociedade, impondo estilos de vida e explorando a sexualidade, as mulheres mais ousadas começaram a fumar, ler coisas supostamente proibidas, investir no futuro profissional, discordar dos pais e maridos e a contestar secreta ou abertamente a moral sexual (DEL PRIORE, 1997). O discurso publicitário, apontando novas tendências quanto ao papel social da mulher e refletindo sua emancipação, muda sua elaboração visual e verbal. Cosméticos mais modernos são apresentados em peças mais ousadas. A figura feminina é exposta de modo a insinuar mais sensualidade. Em propagandas de produtos como cremes e maquiagem, imagens de atrizes de sucesso como Elizabeth Taylor surgem como exemplo de charme e beleza. 62 Figura 9 – Propaganda de maquiagem da década de 1960. Fonte: www.viverbarato.com A escolha da garota propaganda deve corresponder, para a publicidade, ao ideal de glamour e beleza almejado pelo sujeito consumidor, a mulher. Vale ressaltar que esse formato em que se retrata a mulher na publicidade enfatiza também desejo e erotismo, o que reforça uma posição passiva diante do olhar masculino. Para Bourdieu (1999), “... elas existem primeiro pelo e para, o olhar dos outros, ou seja, enquanto objetos receptivos, atraentes e disponíveis.” Sobre esse aspecto, Boris e Cesídio destacam. A representação do corpo feminino pode ter mudado em alguns aspectos desde a época do sistema patriarcal até os dias de hoje, mas o fato de o corpo da mulher ainda ser considerado um mero objeto de desejo do homem ainda é pertinente em alguns momentos, pois, algumas vezes, a mulher precisa da aprovação do homem para se sentir satisfeita, e a mídia se aproveita para favorecer o consumo, por exemplo, através de um elogio, tomando como ideal o tipo de corpo preferido pelos homens, o tipo de roupa que a torne mais sensual, o modelo de mãe e de esposa atenciosa e presente à família e de profissional inteligente e bem-sucedida (BORIS; CESÍDIO, 2007). Os cosméticos voltam às prateleiras, e o cuidado estético marca a década de 50. O glamour é tema de grande importância entre as mulheres da época, elas se preocupavam em marcar a silhueta e ressaltar os traços do olhar com maquiagens. A maquiagem estava na moda e valorizava o olhar, o que levou a uma infinidade de lançamentos de produtos para os olhos, um verdadeiro arsenal composto por sombras, rímel, lápis para os olhos e sobrancelhas, além do indispensável delineador. A maquiagem realçava a intensidade dos lábios e a palidez da pele, que devia ser perfeita. Grandes empresas, como a Revlon, Helena Rubinstein, Elizabeth Arden e Estée Lauder, gastavam muito em publicidade, era a explosão dos cosméticos. Na Europa, surgiram a 63 Biotherm, em 1952 e a Clarins, em 1954, lançando produtos feitos a base de plantas, que se tornaria uma tendência a partir daí. (GARCIA, 2010) Os anos 60, acima de tudo, viveram uma explosão de juventude em todos os aspectos. Era a vez dos jovens, que influenciados pelas idéias de liberdade "On the Road" (título do livro do beatnik Jack Keurouac, de 1957) da chamada geração beat, começavam a se opor à sociedade de consumo vigente. O movimento, que nos 50 vivia recluso em bares nos EUA, passou a caminhar pelas ruas nos anos 60 e influenciaria novas mudanças de comportamento jovem, como a contracultura e o pacifismo do final da década. Nesse momento, as ideias de liberdade influenciaram novas mudanças de comportamento jovem. A sociedade de consumo vigente começa a ganhar outra cara. As conquistas decorrentes do movimento feminista refletem na comunicação publicitária, que tende a se adaptar cada vez mais ao novos modelos de comportamento feminino. Produtos eram criados especificamente para jovens que, como sinal de liberdade, criavam sua própria moda. Os cosméticos que se destacam são, ainda, os produtos de maquiagem, como se vê na citação. A maquiagem era essencial e feita especialmente para o público jovem. O foco estava nos olhos, sempre muito marcados. Os batons eram clarinhos ou mesmo brancos e os produtos preferidos deviam ser práticos e fáceis de usar. Nessa área, Mary Quant inovou ao criar novos modelos de embalagens, com caixas e estojos pretos, que vinham com lápis, pó, batom e pincel. Ela usou nomes divertidos para seus produtos, como o "Come Clean Cleanser", sempre com o logotipo de margarida, sua marca registrada (GARCIA, 2010). Na década de 70, houve um aumento significativo na participação da mulher como profissional no mercado de trabalho. Isso porque ela também passou a ferquentar todos os níveis de ensino. Apesar dessas conquistas, a utilização da imagem da mulher pela publicidade revelava uma insistência em seu papel como dona-de-casa ou símbolo sexual. Nos anos 80, houve avanços técnicos na publicidade, um dinamismo maior na utilização de recursos visuais e o surgimento de produtos evidenciando a liberação da figura feminina. 64 Figura 10 – Propaganda de maquiagem da década de 1980. Fonte: ateliedefigurinos.blogspot.com As propagandas divulgavam uma mulher que, mesmo com todos os afazeres domésticos e o trabalho fora do lar, se sentia feliz em receber elogios e sorrisos dos filhos e maridos. Pode-se ver que não há nenhuma inovação na apresentação da mulher nesse período. Diante dessas mudanças do corpo da mulher, vale ressaltar que ainda há, na sociedade brasileira, traços pertinentes à cultura conservadora - o patriarcado - na qual o homem é o chefe, cercado pela família, exercendo sua autoridade preponderante e a mulher cumprindo a função de dona-de-casa e de mãe, apesar de ter havido uma maior conscientização dela com relação à sua independência (BORIS; CESÍDIO, 2007) Apesar de nessas décadas a práticas do consumo dos produtos cosméticos terem se intensificado, a preocupação com a aparência dividia a atenção feminina com o papel de mãe e dona-de-casa. Mas as práticas de beleza, com o uso de cosméticos, principalmente, marcarão o final do século XX. A obsessão com a perfeição estética e a conservação da juventude passam a ser preocupação primeira, potencializada pela cultura de consumo. Acrescenta-se a isso uma maior liberdade sexual, impondo o erotismo e culto ao corpo escultural. O corpo da mulher passa a ser explorado, mais que nunca, como objeto sexual, no discurso da mídia. […] o corpo da mulher passou a atrair interesses econômicos de grandes empresas, que investem na moda e nas propagandas publicitárias, passando a 65 ser exigido como uma marca de feminilidade. Foi a partir, principalmente, das décadas de 1950 e de 1960, que as estratégias do mercado, como forma de atrair os consumidores, se basearam na insaciabilidade do desejo de consumir, ou seja, os indivíduos passaram a consumir bens independentemente de seu valor de uso, […]. Sendo a cultura um espaço de desenvolvimento e de socialização do indivíduo, expressa um conjunto de valores, de símbolos, de atitudes, de modos de sentir e de ser, de comportamentos e de formas de organizar os processos que caracterizam o mundo interno e as relações interpessoais. Ela determina o modo de viver do ser humano (BORIS; CESÍDIO, 2007). Em busca de prazer, o corpo feminino sofreu limites impostos por uma sociedade patriarcal. Depois, além de esse corpo produzir força de trabalho, foi se adequando aos interesses capitalistas. No final do século XX, novos padrões de comportamento começam a ser ditados. A mídia, principalmente através da propaganda, utiliza o corpo feminino para vender produtos e também para fazê-las consumir. Figura 11 – Propaganda da década de 1990. Fonte: www.fredcunhanews.com O final do século XX é marcado pelo surgimento de novas mídias, pela invenção do sistema de TV a cabo e crescimento das audiências. Na relação do campo publicitário com a representação da mulher houve uma transformação. As empresas começaram a focar seus produtos na mulher, pois sua entrada no mercado de trabalho possibilitou maior participação no poder econômico. Assim, as propagandas foram se adequando aos novos papéis femininos. Nos anos 90, novas tendências na representação do feminino começam a ser mostradas pela publicidade. Há um investimento no espetáculo, a sedução e a surpresa passam a ser mais 66 utilizados pela publicidade. Nessa década, a mulher passa a ser vista em várias funções além de apenas como dona-de-casa. No entanto, de acordo com Garboggini, “os apelos tradicionais continuam ao lado de novas abordagens dos diversos tipos de funções femininas solicitadas na publicidade nos períodos anteriores” (GARBOGGINI, 2003, p.155). A publicidade enquanto expressão simbólica reproduz no seu discurso uma imagem de mulher como a sociedade lhe define, considerando uma série de transformações histórico-sociais. Os anúncios publicitários buscam refletir as conquistas femininas como liberdade pessoal, profissional e financeira. As mulheres romperam barreiras, com a liberdade conquistada pelo movimento feminista. Elas assumiram cargos importantes e mostraram que sua capacidade pode ser equiparada às dos homens. Mas será que na busca de alcançar postos de controle de situação, elas conseguem manter o contato com a família e com sua própria sensibilidade e feminilidade? 5.2 A mulher da propaganda – será ela mesma? Ao longo dos anos, as conquistas femininas, são evidenciadas em anúncios publicitários. A propaganda serve, assim de testemunha de um processo de transformação da subjetividade feminina. Mas o resultado disso é uma submissão a padrões estéticos impostos pela ditadura da beleza e do consumismo. Para Boris e Cesídio: O corpo, nos dias atuais, é pouco dotado de espontaneidade, de naturalidade e de erotismo, pois foi condicionado, ou seja, regulado pelos interesses da sociedade capitalista, que somente visa ao consumo e ao lucro. […] O corpo da mulher passou a atrair interesses econômicos de grandes empresas, que investem na moda e nas propagandas publicitárias, passando a ser exigido como uma marca de feminilidade (BORIS; CESÍDIO, 2007). As mulheres querem uma silhueta perfeita, um corpo escultural, um rosto lindo. Elas se preocupam em emagrecer e por isso lotam as academias e se submetem a dietas e procedimentos cirúrgicos sacrificantes. Se preocupam em cuidar da pele e dos cabelos. Tudo isso seguindo um ideal de beleza que lhes é imposto pela modernização da sociedade e dos novos papéis assumidos pela nova mulher. As características femininas postas em evidência, hoje, valorizam mais os aspectos físicos e seu poder de sedução. Não apenas sob o olhar e avaliação masculina, mas também para si mesma, na exigência de se moldar ao que culturalmente se aceita como belo. Por isso, 67 a questão da feminilidade, tomando-a como sua singularidade e essência, tende a ser suprimida. Atualmente a imagem exerce poder sobre todas as coisas, a publicidade se apropriando disso, exalta o corpo modificado pelos cosméticos, dietas e cirurgias plásticas. E sobre isso Everardo Rocha discorre: Da análise da mulher construída dentro dos anúncios emerge a imagem de uma individualidade em que o corpo – e não o espaço interno – é o que importa. O corpo é termo marcado como expressão do ser e como objeto de uso. Mas não é apenas isto: o corpo feminino que a publicidade revela é fragmentado. Sofre um processo em que a unidade se perde e as partes prevalecem sobre o todo. A mulher dentro dos anúncios existe, sobretudo, aos pedaços – seio, pé, perna, pele, rosto, unha, mão, nádega, olho, lábio, cílio, coxa e o que mais se puder destacar como um quebra cabeças invertido cujas peças desencaixam, escondendo a figura que nunca se forma. Esta imagem do corpo, corpo aos pedaços, não pode sustentar o indivíduo como totalidade (ROCHA, 2001, p, 38). Essa mulher aos pedaços de que trata o autor não se dá conta do discurso social, construído, não apenas pela publicidade, mas também pela religião, a política. Sem questionar, ela vai se moldando, sem perceber a manipulação por tras da oferta de felicidade. Sim, o discurso construído pela propaganda apelo pela emoção e quando promete a possibilidade de transformação estética, promete também sucesso e felicidade, poder de conquista, realização profissional. Estamos constantemente sendo submetidos a uma avalanche de produtos que pouco, ou quase nada, significariam para nós não fosse a auréola que a publicidade lhe confere. Valendo-se do poder das palavras, ela garante a esses objetos um status especial, mitificando-os: um relógio pode tornar-se uma jóia; um carro, um símbolo de prestígio etc. ( MONNERAT, 2003, p. 40). Outro aspecto quanto à preocupação com o corpo, na sociedade atual, é a conservação da juventue. É difícil para as mulheres admitirem que estejam envelhecendo. Elas querem parecer mais jovens, por isso gastam muito dinheiro com produtos “milagrosos” e submetemse a cirurgias plásticas, etc. Cada descoberta nova, pela ciência, de produtos antienvelhecimento faz com que as mulheres alimentem o sonho De acabar com as rugas e outros sinais senis. Na busca de uma pele jovem, valem as dores, o investimento financeiro e as cicatrizes a que se arriscam. Sobre esse tipo de cosmético, assim argumenta Edna Araújo: As argumentações científicas sobre os efeitos de uma técnica ou de um produto/marca torna convincente seu poder de ação proposto. Nesse sentido, 68 marcas de produtos cosméticos como: Boticário, Avon, Natura, L’Oréal, Nivea, Clarins, Channel, Revlon, Vichy, Racco e tantas outras também disputam o mercado, a credibilidade e o das consumidoras, através de linhas de produtos voltados para o rejuvenescimento e enbelezamento da pele. Todos os produtos enfatizam seus aspectos rejuvenescedores, firmadores, anti-idade, anti-sinais, iluminadores, reparadores e renovadores da pele. Ou seja: as propostas anunciadas não apenas prometem como reafirmam a necessidade de beleza e jovialidade feminina. No entanto, as mulheres que fazem as propagandas ainda são jovens suficientes para não apresentarem os chamados sinais de decrepitudes associados ao envelhecimento (ARAÚJO, 2008, p. 107). A partir de um mundo fantasioso, a publicidade faz crer que é possível ser jovem e bela. Bastam algumas aplicações do creme e, como mágica, a juventude tão desejada, é alcançada. Essas necessidades e comportamento atestam os sentidos de feminilidade reproduzidos pela propaganda tão dferentes daqueles em que se considera a mulher em sua totalidade e essência. “ Sobra da imagem da mulher um corpo, ou melhor, pedaços, restos, fragmentos que, sem alternativa, delegam a palavra aos produtos” (Rocha, 2001, p. 39). Assim, a mulher da propaganda parece se transfigurar em uma mercadoria, apenas, dando “vida” aos produtos. Seu papel é o de fazer vender os cremes mágicos, realizadores de sonhos e desejos, em nome do lucro. A mulher por traz da dona-de-casa dedicada, assume o primeiro plano na elaboração das peças publicitárias, para satisfazer o olhar machista, agora também, da mulher. 69 6 A QUESTÃO DA FEMINILIDADE Explorar o lado feminino, ter feminilidade, ser mais feminina são alguns imperativos que se ouve quando as mulheres precisam mostrar um lado mais ousado, sensual, elegante, charmoso, sensível, delicado. É comum que as pessoas exijam das mulheres certos atributos que a caracterizariam como mulher no cenário cultural e social. Mas, o que é mesmo a feminilidade, o ser feminina? É partindo desse questionamento que a observação e análise do simbólico, materializado nas propagandas de cosméticos aqui expostas, são realizadas. Sob a ótica psicanalítica, o tema da feminilidade, que teve um longo percurso na obra freudiana, é tratado a partir da concepção falocêntrica que trata a sexualidade feminina através de um paradigma universal. Partindo desse paradgma, Freud adota o modelo da sexualidade masculina, tratando tudo o que foge a esse modelo de forma negativizada. A construção do discurso sobre feminilidade, na modernidade, partiu sempre de uma posição masculina, considerando o contexto histórico e social. Segundo Angela de Almeida (2012), sempre se delineou uma diferença de essência entre o masculino e o feminino e, consequentemente, as distribuições sociais entre os diferentes sexos baseavam-se nas disposições naturais de cada um, que possuíam naturezas diferentes. Segundo essa autora: “Quase todos os grandes teóricos da época, entre eles, Rousseau, Hegel e Kant, estavam de acordo com essa leitura sobre a natureza diferencial entre masculino e feminino e com as consequências disso sobre a legitimidade de suas inserções sociais” (Almeida, 2012, p. 30). No final do século XIX e início do século XX, surge um novo olhar, mais atento, sobre a condição da mulher na sociedade. Há um questionamento sobre o que estava acontecendo com as mulheres naquele momento de transição. Sobre a imagem da mulher perpetuada até então, há a seguinte citação: A cultura europeia, destes idos, produzia um discurso que visava promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos, funções, predicados e restrições denominado feminilidade. Assim, era definida a natureza das mulheres. As virtudes próprias da feminilidade pautavam-se no recato, na docilidade, na afetividade mais desenvolvida, na receptividade passiva em relação aos desejos e necessidades dos homens e, mais tarde, dos filhos. A figura da mulher estava construída em torno do atributo da maternidade, isto é, o erotismo propriamente feminino deveria passar pelo labirinto enigmático da maternidade. Por outro lado, num evidente paradoxo, uma ideia bastante corrente, naquele momento, apontava que a natureza feminina precisaria ser domada pela sociedade e pela educação para que as mulheres pudessem cumprir o destino ao qual estariam, naturalmente, designadas serem esposas e mães. Dessa forma, aos pais, maridos e 70 educadores, parecia mais conveniente que a mulher se mantivesse inocente sexualmente e maleável socialmente (ALMEIDA, 2012, p. 30). Nessas circunstâncias, vê-se que a mulher era subjugada, e a concepção de feminilidade era forjada pelo discurso masculino. Mas a insatisfação das mulheres com este modelo de “feminilidade” é o que dá origem a um outro momento do trabalho de Freud sobre esse tema, com seus estudos sobre a histeria. “Diante da coerção a seu corpo, sua sexualidade e sua vida, de modo geral, as mulheres encontraram, nos sintomas histéricos, uma forma de dramatizar sua insatisfação e seu protesto” (Almeida, 2012, p. 31). Nesse trabalho ele destaca as qualidades intelectuais e morais das mulheres. Freud foi um dos primeiros a perceber, ou melhor, a escutar a crise ainda inominada que suas pacientes vinham atravessando. A recusa das histéricas em aceitar esta “feminilidade” como modelo de subjetivação e de sexuação o levou a passar grande parte de sua existência imerso em pesquisas que lhe possibilitassem desvendar o mistério da constituição da feminilidade (ALMEIDA, 2012, p. 31). O conceito de feminilidade traz, a partir de uma produção mais recente, a valorização do que é singular em oposição ao universal. É uma marca que distingue o modelo falocêntrico do que vem sendo trabalhado por outros autores. Para estes, o conceito de feminilidade está centrado na ideia de singularidade. Para Nunes (2002, p. 56): “... a noção de feminilidade pode ajudar […] a criar espaços para a diversidade, a alteridade e a singularidade, tarefa da qual nós analistas não devemos nos furtar”. A noção de feminilidade pensada para a análise proposta nesse trabalho de pesquisa se aproxima dos conceitos mais contemporâneos, fundados não apenas na singularidade, mas também na igualdade. Se expressa em qualidades que vão além dos aspectos físicos e morais e alcança outras capacidades que valorizam a figura feminina para além de objeto. Leva-se em consideração, principalmente, o fato de os discursos sobre a feminilidade serem, hoje, antes de mais nada, influenciados socioculturalmente, pois não dá para dizer o que é ser “feminino” ou “masculino” senão a partir do que se aprende na família, na escola e na mídia. As propagandas analisadas aqui mostram, mais particularmente, como se constrói a feminilidade nos discursos veiculados em suportes diversos através da publicidade. Por trás da oferta de produtos cosméticos, hoje ainda mais consumidos que há pouco tempo atrás, esses discursos prometem tudo aquilo de que o público feminino julga necessitar, 71 influenciado por uma ditadura, que mais oprime do que lhe valoriza. Seja pela oferta de beleza, poder de sedução, sensualidade, fama, longevidade, correção estética, a propaganda vale-se de recursos visuais fortemente elaborados, seu discurso leva em conta o imaginário feminino diante de uma sociedade de consumo cada vez mais excludente e exigente quanto à manutenção da beleza e da juventude. Cabe assim, numa tentativa de se identificar a ideologia por trás do simbólico, observar as peças publicitárias ora apresentadas, como mais um elemento cultural revelador de valores. 6.1. CORPO DESEJÁVEL Se há uma escravização moderna, pode-se dizer que esta tem a ver com a submissão a que o ser humano vem sendo exposto quanto ao uso do corpo como objeto de sedução. Seduzir, na sociedade hodierna, passou a ser um instrumento de “sobrevivência”. Nunca se buscou tanto o poder da sedução como nos dias de hoje, esse atributo, antes recoberto de tabus. Para alcançar o corpo com curvas, uma silhueta esbelta e menbros bem torneados, ditados pelo modelo de corpo sensual, recorre-se a meios diversos e cada vez mais sofisticados. O corpo passa a ser compreendido como instrumento de poder e expressão de si. Torna-se mercadoria e assim, um meio de se criar vínculos e distinções sociais. Após a Segunda Guerra Mundial novos hábitos levam a uma exposição maior do corpo. Somados a isso, o cinema e a difusão da mídia de massa impulsionaram uma nova cultura em que o corpo ganha centralidade. Após a Segunda Guerra Mundial, o desejo de moda expandiu-se com força, tornou-se um fenômeno geral, que diz respeito a todas as camadas da sociedade [...] os signos efêmeros e estéticos da moda deixaram de aparecer, nas classes populares, como um fenômeno inacessível reservado aos outros: tornaram-se uma exigência de massa, um cenário de vida decorrente de uma sociedade que sacraliza a mudança, o prazer, as novidades (LIPOVETSKY, 2009, p. 115). A corrida às academias de ginástica, a busca por cirurgias plásticas talvez não tenham tanta credibilidade quanto o uso de cosméticos na luta pela perfeição, afinal eles contam com a publicidade bem elaborada de seus produtos, como nas análises que se seguem. 72 6.1.1 NINEA My silhouet - Silhueta perfeita, curvas de arrasar Figura 12 – Propaganda Nívea – My Silhouet. Fonte: Revista Corpo a corpo, 2008 Nessa peça publicitária, veiculada na revista Corpo a corpo do mês de outubro, de 2008, edição 240, o sujeito, a marca Nívea, valendo-se de elementos multissemióticos, orienta para um discurso marcado pela ideologia da perfeição estética feminina. O produto oferecido, gel-creme redutor e remodelador, My silhouette, é apresentado em uma embalagem com formato de tubo que simula uma curva, na sua extremidade superior. O que pode ser relacionado ao texto verbal que intitula a propaganda: “Que tal você com curvas de arrasar?”. O que parece ser vendido, por trás desse jogo de ideias que se vale da linguagem tanto verbal, quanto não-verbal, é a possibilidade de ter um corpo com curvas, sem excesso de gordura, esteticamente perfeito, o corpo sensualizado, desejável, capaz de seduzir. O sujeito consumidor, interpelado pela ideologia, é afetado pelo efeito de sentido de que a possibilidade de reduzir medidas é acessível, basta adquirir o produto. Sobre esse sujeito, o sujeito da AD 73 preconizada por Pêcheux, diz Orlandi (2009, p. 46): “O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer”. E considerando ainda o sujeito, Pêcheux (2009) fala de “tomadas de posição” referindo-se ao modo como esse sujeito se identifica com a ideologia inscrita em uma formação discursiva. Em uma primeira tomada de posição, há uma identificação do sujeito com a ideologia presente no discurso, no caso em análise, há uma adesão à FD da perfeição estética, creditando a isso a felicidade e bem-estar. Mas o sujeito pode também, questionar a ideologia dessa FD se afastando do discurso que atribui à beleza e perfeição estética condição para a felicidade e aceitação por parte do outro, há, nesse caso, uma contra-identificação, ele não se identifica plenamente, discorda, duvida e pode transformar a FD. Quando o sujeito se identifica com outra ideologia, há uma desidentificação com a FD, no caso da peça aqui analisada, o sujeito não se identificaria com a ideologia de que a mulher precisa ser bonita, sensual, com curvas e com silhueta perfeita para ter feminilidade, para conquistar um parceiro ou para ser feliz. Há ainda outros elementos que compõem a materialidade dessa peça publicitária. A silhueta com curvas desejáveis, prometida pelo uso do produto é ilustrada pela imagem da mulher no rótulo. Ainda no rótulo, quando se lê: “reduz até 3 cm, a partir de 4 semanas de uso” e a imagem da fita métrica que surge ao lado do produto dão credibilidade e reforçam valores perpetuados historicamente. O que mais chama a atenção aqui é a imagem de mulher vendida pela propaganda. Que medidas são essas, anunciadas pelo produto? Quem deseja essa mulher com medidas tais? Para quem essa mulher se exibe? Certamente recorre-se a uma memória que retoma discursos legitimados pela história, que erotizam a mulher e lhe atribui a condição de objeto de desejo do homem. Tratando ainda da descrição da peça, abaixo das imagens, o verbo comprar, no imperativo, seguido do site da empresa www.NIVEA.com.br é escrito em branco com o nome da marca em maiúscula em fonte menor do que a do restante do texto verbal, mas que chama a conhecer mais sobre o produto, além de tornar mais fácil sua aquisição. Depois das descrições até então realizadas, que é uma análise da superfície linguístca, passemos à análise da discursividade, objetivando explicitar o modo de produção de sentidos nessa propaganda. Partindo da ideologia presente nesse discurso, já referida acima, a do corpo feminino como objeto de desejo, materializada na linguagem já explicitada, pode-se dizer que a FD em que se inscreve esse discurso é a busca da perfeição estética. 74 O sujeito discursivo é afetado por dizeres outros, tais como “é preciso ser bela para ser admirada”, “a beleza é fundamental”, “os cuidados femininos devem priorizar o corpo e a conservação da juventude”. A posição sujeito na propaganda de cosméticos que promete rejuvenescimento e beleza é determinada pelo interdiscurso, ou seja, o que é dito nessa peça publicitária, materializada pelo uso tanto da linguagem verbal, quanto pela seleção de imagens e outros elementos, é resultado da inscrição desse sujeito na história, é um sujeito que se identifica com um já-dito sobre a mulher. Esse já-dito lhe atribui feminilidade levando em conta apenas seus atributos físicos. O interdiscurso mobiliza dizeres, mesmo há muito esquecidos, nesse caso, dizeres sobre a mulher resultantes do tratamento a esta dispensado, desde momentos longínquos da história. Sobre o interdiscurso, diz Orlandi (2009, p.31): “é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos”. Há um retorno à memória, uma memória discursiva, o saber que resulta de experiências passadas, de culturas que limitavam o papel da mulher à reprodução, ao cuidado com casa e filhos, desprezando traços como sua capacidade intelectual. A FD tratada aqui permite inferir que, se o sujeito se inscreve em uma FI que valoriza os traços físicos da mulher, exaltando a beleza e juventude, os sentidos que constituem o discurso, sustentam que para ser feliz é preciso ser bela e jovem. As condições de produção que são, segundo Pêcheux (2009), as circunstâncias de um discurso são extremamente relevantes nessa análise. Em sentido amplo, as condições em que esse discurso é produzido, compreendem a formação social e padrões culturais em que se localizam os sujeitos, principalmente, o sujeito leitor-consumidor do produto anunciado, com sua forma de se relacionar com as mercadorias e serviços que circulam por meio da mídia, cada vez mais sedutora com seu poder de manipulação e convencimento. O sujeito consumidor, afetado pela memória, por fatos que se referem a práticas, muitas vezes sofríveis, como o uso do espartilho, para obter uma silhueta “perfeita”, credita ao produto a possibilidade de obter os efeitos de que necessita. É um sujeito que inconscientemente se filia a um sentido de feminilidade. Esse discurso sobe a beleza é atravessado por outro, o discurso capitalista, materializado por elementos como o endereço eletrônico introduzido pelo comando ”compre”, na propaganda, e além do sentido evidente, da literalidade desse verbo no imperativo, há uma simultaneidade de movimentos distintos de sentido no mesmo objeto simbólico, como diz Orlandi (2009), há polissemia. Nesse jogo polissêmico, um sentido possível é o de ter para ser. Para ser bonita, para ser aceita é preciso ter/usar My silhouette. A posição sujeito anunciante desse discurso objetiva o lucro e, através do enunciado “Compre: www.NIVEA.com.br”, retoma um já-dito, 75 repete sentidos, o que podemos chamar de paráfrase. A mídia se utiliza desse processo parafrástico, uma vez que reproduz um dizer a partir de interesses mercadológicos, mesmo com variações de palavras. “A paráfrase apresenta assim o retorno aos mesmos espaços do dizer” (Orlandi, 2009, p. 36). Retomando os elementos que compõem a propaganda em análise, há ainda outro texto verbal que merece destaque. Quando se diz “reduz até 3 cm, a partir de 4 semanas”, pode se depreender mais um fator no funcionamento das condições de produção, que constituem esse discurso, são as formações imaginárias, evidenciadas nesse dizer sob o mecanismo da antecipação, já que o sujeito anunciante, sabedor do imediatismo do sujeito consumidor, se antecipa, determinando o curto prazo do efeito almejado com o uso do cosmético. Outro mecanismo presente nesse dizer é a relação de forças, o lugar a partir do qual fala o sujeito/empresa NIVEA, lhe permite dizer desse modo, estabelecendo prazos para o efeito do produto, porque sabe de seu poder de mercado. A marca NIVEA existe desde 1911 e se diz “uma das marcas de cuidado com a pele mais confiáveis do mundo”, há três anos de seu lançamento, já estava disponível em todos os continentes. Segundo informações do site oficial, todo ano, cerca de 100.000 consumidores do mundo inteiro fornecem comentários sobre os produtos NIVEA. Logo, existe uma autoridade junto aos consumidores, as projeções feitas a esse sujeito anunciante lhe conferem uma posição sujeito, diferente do lugar empírico que ele ocupa. O sujeito anunciante diz o que diz e do modo que diz, na propaganda, refletido uma FI mercadológica em que se inscreve essa posição. Trata-se do sujeito-empresa que visa o lucro. O sentido das palavras nesse dizer “Reduz até 3 cm a partir de 4 semanas” é resultado dessa posição sujeito que produz uma imagem do sujeito interlocutor como sendo capaz de se submeter ao uso de quaisquer produtos ou técnicas para corrigir imperfeições estéticas. Nesse jogo imaginário, essa previsão sobre o tempo de efeito do produto ganha veracidade, por que a imagem que o sujeito anunciante faz do sujeito interlocutor, a mulher, dentro de uma conjuntura sócio-histórica, é daquela que pensa tornar-se feminina, quando conquista um corpo esbelto, escultural, sem excessos, com curvas, o corpo “perfeito” da propaganda, portanto o produto lhe é adequado. Essa análise leva a crer em um conceito de feminilidade como sendo a capacidade de sedução através do corpo, claro, um corpo que atenda ao modelo estabelecido culturalmente. O que é ter uma silhueta perfeita? Que curvas são capazes de arrasar? Quantos centímetros há que se reduzir para obter uma silhueta perfeita? O padrão de corpo desejável, diferente daquele valorizado em outra época, quando ser saudável e bela era ser “cheinha”, impõe, hoje, 76 a magreza, a cintura bem definida, pernas torneadas e glúteos empinados, nem que para isso valham cirurgias plásticas sacrificantes, over traines em academias, numa corrida ansiosa pela aceitação do outro, pela admiração da “concorrência”, pela exposição na mídia. O ser feminino que encanta pelo talento, pela sinceridade e honestidade de caráter, pela inteligência, pela criatividade, pela graça do olhar ou do sorriso não está em primeiro plano nesse discurso. Em sua singularidade, originalidade, a mulher não é exposta nessa publicidade, exceto pela aparente liberdade no figurino utilizado pela garota propaganda, que traduz certa ousadia, conquistada mais recentemente. É preciso que ela se transforme com a ajuda, é claro, do cosmético oferecido. 6.2 PARA GARANTIR “O GATO”, O “PRÍNCIPE” A crença no príncipe encantado, que salva a princesa de madrastras e bruxas temíveis, não fazem parte apenas do ambiente das personagens de contos de fadas. Essa crença também faz parte do imaginário feminino e se traduz na necessidade de um parceiro, um marido, um companheiro. Muitas mulheres ainda acreditam, mesmo sabendo de todas as dificuldades, que construir uma história a dois é a melhor opção. O estigma da solteirona sempre reforçou essa crença, já que uma mulher com mais de 30 anos e sem marido era vista pela sociedade como fracassada. Com a modernidade, conquistas impulsionadas pelo discurso feminista têm sido comumente ilustradas na publicidade. A figura da mulher independente, solteira e menos preocupada em casar-se faz parte do jogo de linguagem nos anúncios de produtos para esse público. Hoje, a mulher pode sentir-se bem não com apenas um “príncipe”, mas com vários e ao mesmo tempo. O que interessa ressaltar nessas considerações é o fato de a mulher submeter-se a certos comportamentos para se fazer adequada ou merecedora de um parceiro, marido, companheiro. Antes, pautada no papel de dona de casa e mãe que se atribuiu à mulher, a sociedade exigia-lhe habilidades ligadas aos afazeres domésticos, principalmente. Ela tinha que mostrar-se bem prendada, maternal, boa esposa, além é claro de possuir atributos físicos favoráveis à procriação. A mulher sempre esteve sob a pressão do poder de conquista. E hoje, numa atualização dos padrões de comportamento, considerando sua emancipação e conquistas, ela 77 ainda precisa submeter-se a práticas, muitas vezes, dolorosas, para agradar, para conquistar, para ser vista e desejada. O desejo é, por sinal, uma marca da emancipação feminina. E a ele estão relacionadas muito mais características físicas, uma vez que os padrões exigidos para uma boa mulher, esposa, companheira estão ligados a valores de relacionamentos mais modernos. Numa época de relações cada vez mais descartáveis, em que se busca mais o prazer em detrimento de sentimentos mais duradouros, o corpo é visto como um insrumento de poder, desde que seja belo, magro, jovem e sexy. Vale, para conquistar um parceiro, empinar o bumbum com exercícios na academia de ginástica ou com silicone, rejuvenescer com procedimentos cirúrgicos, e, claro, usar aquela maquiagem que realça o semblante, o perfume que enlouquece, os cremes que garantem transformação. Assim, a maquiagem é oferecida pela propaganda não apenas para realçar traços faciais, mas para lhe garantir encantar os homens, o xampu que não apenas lava, mas principalmente faz os cabelos paraecerem os da Diva famosa que o anuncia, o perfume que dá poderes mágicos. Enfim o “milagre” prometido pelas campanhas publicitárias fazem crer na realização de sonhos, típicos dos contos de fadas. 6.2.1 Maquiagem O BOTICÁRIO. Para que varinha de condão? FIGURA 13 – Propaganda O Boticário veiculada em outdoor. Fonte: www.ccsp.com.br 78 Figura 14 – Propaganda O Boticário, versão para revista. Fonte: www.ccsp.com.br A análise será da propaganda da marca O Boticário, de 2005, da campanha “contos de fada”, produzida pela agência AlmapBBDO, veiculada em revistas e outdoors. No caso das imagens reproduzidas aqui, trata-se de um diálogo com a história da Cinderela que pode ser identificado seja pela presença dos sapatinhos de cristal ou pelo dizer, “Gabriela vivia sonhando com seu príncipe encantado. Mas, depois que ela passou a usar O Boticário, foram os príncipes que perderam o sono”. Tanto a imagem quanto o texto verbal revelam um intertexto com o conhecido conto sobre a garota castigada pela madrasta má e pouco apreciável fisicamente, que se transforma em uma bela princesa capaz de encantar e conquistar o príncipe. Na versão para revista, o texto verbal é “Para que varinha de condão, quando se tem maquiagem O Boticário”. A logomarca, retângulo verde com o nome O Boticário, e o slogan “Você pode ser o que quiser” compõem também o anúncio. O que mais chama a atenção é a imagem da mulher, em primeiro plano, maquiada e com um olhar sedutor em vez do semblante de inocência característico das mocinhas dos contos de fadas, sempre envoltas da fantasia típica desse gênero de texto. Trata-se de uma 79 versão moderna da mocinha castigada, suja de cinzas e cansada dos afazeres domésticos a que era obrigada, mas transformada magicamente em exemplo de beleza do reino. A garota propaganda usa maquiagem O Boticário, o que seria, hoje, o motivo da transformação dessa mulher em um exemplo de beleza, capaz de conquistar não apenas um príncipe, mas vários. E é esse poder de conquistar um parceiro, pela beleza, é claro, o artifício de que se vale a propaganda para vender o cosmético “mágico”. O discurso sobre a mulher, na propaganda desse ramo da indústria e comércio, atribui a ela, a sua beleza, a seus atributos físicos o poder da conquista. Para psicanalistas, na história de Cinderela há muito mais do que uma simples trama romântica. É um conto que surgiu em várias civilizações diferentes e tem origem atemporal, por isso, a trajetória da protagonista pode traduzir uma espécie de arquétipo fundamental, traduzindo o anseio natural da psique humana em ser reconhecida especial e levada a uma existência superior. Por isso pode-se dizer que Cinderela é uma personagem muito representativa da mulher mostrada pela propaganda, o desejo de se sentir superior é uma marca própria do ser feminino, para a publicidade de produtos dirigidos a esse público. Gestos do interdiscurso são retomados por essa publicidade de maquiagem, em dizeres histórico e socialmente marcados. Os sentidos convocados pelo dizer: “Para que varinha de condão se você tem maquiagem O Boticário” pode pressupor que é imprescindível, para a conquista de um “príncipe”, ser bela, ser encantadora, ser sedutora o que, no mundo fantástico dos contos de fadas, era possível com ajuda da varinha de condão e que no mundo real e moderno corresponde à submissão a métodos muitas vezes sofríveis, para alcançar a beleza ideal. Tudo o que já foi dito sobre a feminilidade, sobre o comportamento feminino diante da conquista de um parceiro, sobre a necessidade de um marido está significando nesse texto. Há discursos, há muito tempo impostos, sobre o papel da mulher e sua felicidade, presentes nesse enunciado verbal da propaganda. São memórias trazidas por elementos simbólicos utilizados na elaboração dessa peça publicitária que permitem identificar elementos do interdiscurso. Pensando ainda os sentidos a partir da historicidade marcada na propaganda, chama à atenção a garota sonhadora, à espera do príncipe, revelando uma posição ideológica sobre o casamento, indispensável à mulher, como modo de vida. Afinal, a mulher arruma-se, enfeitase, maquia-se para o outro, apenas? O propósito de ficar bonita é um artifício de conquista amorosa? Por isso uma FI da mulher como objeto de desejo. Segundo Pêcheux (2010, p. 163), “falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento suscetível de intervir, 80 com uma força em confronto com outras forças, na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento”. Outro elemento que compõe o simbólico nessa propaganda é a imagem dos sapatinhos de cristal, eles se multiplicaram. O sentido produzido por essa imagem revela uma ideologia mais recentemente experienciada pela mulher moderna. Essa mulher sente-se confortável, vaidosa e feliz em conquistar vários parceiros, o que pode traduzir sua emancipação quanto ao casamento e menor submissão a um parceiro. Nos dias que correm, as razões que levavam mulheres a ter necessidade de casar não se sustentam. Nas universidades, o número de moças é superior ao de rapazes. Em poucas décadas, elas ganharão mais que eles. Resta acompanhar o que irá acontecer com as mulheres, agora livres sexualmente, nem sempre tão interessadas em ter filhos e independentes economicamente (GIKOVATE, . Assim, há um posicionamento social do sujeito enunciador, marcando ideologicamente o sentido do que se diz. São esses aspectos sociais e ideológicos somados ao contexto mais imediato, os elementos lingüísticos utilizados em sua elaboração, que compõem as condições de produção desse discurso da propaganda. Há algo que se mantém no discurso dessa peça publicitária. É o processo da paráfrase, ou seja, “há um retorno aos mesmos espaços do dizer”. As propagandas de cosméticos que dirigem à mulher a promessa de beleza e longevidade produzem dizeres a partir de outros dizeres já cristalizados, repetindo sentidos, daí, diz Orlandi (2009), que a paráfrase é a matriz do sentido, pois não há sentido sem repetição, sem sustentação no saber discursivo. Nos enunciados “para que varinha de condão quando se tem maquiagem O Boticário” e “ depois que ela passou a usar O Boticário...” repete-se o dizer já típico do sujeito anunciante assegurando resultados e eficácia garantidos. Sabedor dos anseios do sujeito consumidor, o discurso publicitário conta com dizeres que atribuem ao produto anunciado o poder de transformação rápida, os benefícios desejados, enfim, a felicidade. Também a polissemia é outro processo presente no que se refere à produção de sentidos aqui analisados. No dizer “Para que varinha de condão quando se tem maquiagem O Boticário”, o termo varinha de condão, próprio dos contos de fadas, pode ter implícitos sentidos que serão determinados pelo sujeito, possível consumidor. Diante desse objeto simbólico e de outros, verbais ou não-verbais, que compõem o anúncio, e, afetado por uma ideologia, esse sujeito pode lhe atribuir diferentes sentidos. A varinha de condão pode 81 significar simpatias, orações e outros elementos da crendice popular a que recorrem as mulheres, no intuito de fazer o “príncipe” se encantar por elas. Voltando à observação do slogan da marca “você pode ser o que quiser”, e lembrando que os sentidos estão na relação com a exterioridade, nas condições em que são produzidos, além da superfície lingüística do texto, há uma forte contradição trabalhando aí. Ao mesmo tempo em que se pretende um discurso aparentemente moderno, mais emancipado, em concordância com a luta feminista, que combate imposições de comportamento, este dizer acompanha a logomarca (retângulo verde com o nome da empresa), o que pode sugerir a necessidade de usar o produto para ser o que se quer, limitando esse ser a um rosto com maquiagem, modelado, que segue um padrão de estética imposta pela moda. Há um direcionamento ideológico para o sentido pretendido, ser o que se quer é, para o mercado capitalista, consumir o produto anunciado e se transformar no que ditam os padrões culturais. Nesse caso, a mulher bela, objeto de desejo do sexo masculino, “o príncipe”. O ser feminino dessa propaganda, a mulher, consumidora dos produtos de maquiagem O Boticário não seria um sujeito totalmente livre, independente e inteligente, que, sem recorrer ao uso de cosméticos para ficar bonita, sabe que pode conquistar um parceiro por seus atributos intelectuais, pela sua naturalidade e simplicidade. 6.2.2 Para conquistar – hidratante corporal NIVEA Figura 15 – Propaganda Nivea, loção hidratante para o corpo, veiculada pela Revista Claudia, 2008. 82 Nessa propaganda, a marca Nivea anuncia a linha de hidratantes Nivea Body. A campanha foi idealizada pela agência Africa e engloba anúncios de página simples e dupla em revistas femininas como Claudia, Marie Claire, Caras e Boa Forma. O anuncio traz, como garota-propaganda, a top Gisele Bündchen, usando uma camiseta branca básica, com a assinatura da peça, “I love my body”, em cor azul, sendo o verbo love simbolizado por um coração. Do lado esquerdo inferior, uma imagem de embalagens do produto à venda e acima desta imagem, o texto verbal: “Use Nivea Body. Porque o amor é cego, mas o gato não”. A escolha da garota propaganda, modelo utilizada pelo sujeito-empresa anunciante, vale algumas considerações iniciais, dada a importância do uso de elementos imagéticos pela mídia em geral e em especial a propaganda publicitária de produtos e serviços. Sabe-se que o jogo de sedução pelo visual passa por um estudo que vai além do linguístico strictu sensu e entra no campo da psicologia. Segundo Romonet (2002), é a partir do conhecimento do ser humano, de seus limites, desejos, de suas necessidades, de seus automatismos, de seus mecanismos psíquicos, que as ações da mídia são criadas e endereçadas. A imagem da modelo Gisele Bündchen, considerada a modelo mais bonita do mundo, também a modeloícone mais sexy do mundo é, para o sujeito anunciante, capaz de atestar o valor de certas características femininas, valorizadas socialmente e perpetuadas ao longo do tempo. A ideologia vigente nessa propagada, a de que a mulher é objeto de admiração e desejo, de que ela é objeto sexual, permite sua relação com uma Formação Discursiva determinada pela necessidade de conquistar um parceiro por seu corpo escultural, obedecendo a padrões estabelecidos pela moda das passarelas. Pensando que a FD “permite compreender o processo de produção de sentidos”, junto com a FI, possibilitarão perceber a constituição dos sentidos nessa peça publicitária. Pensando os sentidos aqui presentes, remontemos também ao sujeito da AD pechetiana, o indivíduo interpelado em sujeito pela ideologia que pressupõe determinada FD, sendo esta última o lugar da constituição dos sentidos. O sujeito mulher consumidora se identifica com o discurso presente nessa propaganda, porque se inspira e deseja um corpo magro, sem excessos, o corpo da modelo, tão mostrado pela mídia e atestado como o corpo ideal pela cultura da qual faz parte. Ela se identifica e quer agradar o “gato” que não é cego. Utilizando-se do dito popular “o amor é cego”, o sujeito-empresa anunciante joga com a linguagem e a crença que seu público-alvo tem de que o corpo é atrativo de um parceiro. A mulher considera que o “gato”, que enxerga perfeitamente e é atento observador, será seduzido principalmente por seus atributos físicos e hoje, mais do que nunca, investe na 83 aparência. Para pensarmos as condições de produção nessa propaganda, retomemos o conceito de discurso, segundo Pêcheux (2010): não se trata necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B, mas, de maneira mais geral, de um ‘efeito de sentidos’ entre os pontos A e B. O efeito de sentidos se dá considerando os lugares ocupados pelos sujeitos na estrutura de uma formação social. Daí pensar o sentido de feminilidade no discurso dessa peça publicitária, levando em conta o lugar que o sujeito mulher consumidora e o sujeito anunciante ocupam histórico e socialmente determinados. É a partir do lugar que ocupam que decorre a imagem que eles fazem de si mesmos e do outro, que são, no processo discursivo, as formações imaginárias. A partir disso, as condições de produção do discurso podem ser compreendidas. Uma vez que se identifica o lugar do sujeito consumidor, também se identifica seu contexto sócio-histórico e ideológico e por isso, o sentido ser um e não outro. A mulher a quem se dirige essa publicidade é marcada historicamente pelo machismo e submissão a um papel sexual, ela se vê como fonte de satisfação do desejo masculino, e por isso o cuidado com o corpo não é para a satisfação própria, mas tomando, mais uma vez, a materialidade da propaganda aqui já descrita, para o “gato” que não é cego. É essa imagem da mulher que prevalece, quando o sujeito anunciante pensa o dizer nessa propaganda, afinal, por que a modelo Gisele Bündchen e não outra? Por que essa modelo faz pose sensual? Esse sujeito anunciante, representativo do Quarto poder, a mídia, exerce sobre o consumidor certo poder, historicamente perpetuado que lhe garante credibilidade. A imagem que o consumidor faz do sujeito anunciante está baseada na autoridade que este conquistou socialmente. O dizer é produzido na propaganda através da materialidade simbólica, qual seja, a imagem espetacular da mulher mais sexy, esbanjando sensualidade, que credita a um simples hidratante corporal, o poder de conquista. E sobre esse espetáculo, tão claro não apenas nessa propaganda, mas na mídia em geral, ressalta Debord. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares – informação ou propagada, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha (DEBORD, 1997, p. 14). Nas palavras de Pêcheux (2010, p. 82), “Todo processo discursivo supõe a existência dessas formações imaginárias”, e acrescenta que , além das formações imaginárias, o 84 ‘contexto’ e a ‘situação’ na qual aparece o discurso como pertencendo igualmente às condições de produção. Num sentido estrito, fazem parte das condições de produção desse discurso, as circunstâncias e elementos descritos acima quanto a escolha da modelo, o texto verbal, o suporte de veiculação da propaganda, a logomarca do produto, o semblante e pose da garota-propaganda, o momento cultural de culto ao corpo. Pensadas em sentido mais abrangente, as condições de produção incluem a forma como o papel da mulher se constituiu histórico e socialmente, a maneira como a história foi impondo modelos de beleza e como esses foram assimilados e perpetuados, a ideologia da perfeição estética feminina facilitada pelo consumo de produtos cosméticos e a ideologia da beleza como atributo imprescindível para a conquista do parceiro. Tudo isso tem efeito nessa peça publicitária. É a memória discursiva, tratada nesse trabalho como sinônimo de interdiscurso, trabalhando nesse discurso, são já ditos contribuindo para a construção dos sentidos. Assim, é possível compreender o efeito metafórico de “gato” nesse discurso. Considerando ideologia e inconsciente, compreendem-se os efeitos de sentido produzidos pelos elementos simbólicos da propaganda que decorrem de deslizes, equívocos. A noção de feminilidade presente no discurso do anúncio do Nivea Body é perceptível pelos efeitos e articulações que envolvem os sujeitos e sua historicidade, a língua e a ideologia. Segundo Orlandi (2009), o efeito metafórico, o deslize – próprio da ordem do simbólico – é lugar da interpretação, da ideologia, da historicidade. É pela historicidade, principalmente, que passa a análise da noção de feminilidade nessas duas propagandas. Com um discurso marcado pela necessidade de se ter um “príncipe”, um “gato”, a ideologia que subjaz nesses anúncios é a do casamento, é a de que a mulher é feita para casar, ter um marido, um companheiro. É revisitando a história que se pode encontrar, no papel atribuído à mulher, a raiz dessa necessidade em que se baseia o desejo de conquistar um parceiro. Tudo isso justificaria um outro aspecto marcante nessas duas peças publicitárias, a sedução. Se o passado histórico atesta uma FI da necessidade do casamento, por outro lado, é o presente que reitera a exibição do corpo em gestos sensuais, seja pelo olhar com retoques de maquiagem, no caso da garota-propaganda de O Boticário, seja pela pose sensual da Top model escolhida pela Nivea para divulgar seu hidratante corporal. O poder da conquista atribuído à mulher na atualidade é creditado ao corpo sensual, aos artifícios que garantem beleza e correção estética. Se antes, a mulher precisava ser bem 85 prendada quanto aos afazeres domésticos e cuidados com marido e filhos para ser considerada ideal para casar, hoje, ela precisa, principalmente, atender aos padrões estéticos, inclusive para manter o casamento. E a publicidade, atualizada, atende à essa transformação. “Os produtos cosméticos, as marcas de perfume em particular, recorrem sistematicamente a publicidades refinadas, sofisticadas, colocando em cena criaturas sublimes, perfis e maquiagens de sonho” (LIPOVETSKY, 2009, p. 23). A mulher apresentada nesse discurso é aquela capaz de conquistar tanto pela sedução do corpo, pela beleza, pela graça da aparência física, mas esquecida em sua essência. Não há qualquer referência a qualidades mais duradouras, aquelas que, ao contrário dos aspectos físicos, não necessitam de cremes rejuvenescedores, perduram com o tempo, dependem dele para se tornar melhor. 6.3 A “MULHER DE VERDADE”, A “REAL BELEZA” – ROMPENDO COM A IDEOLOGIA DA PERFEIÇÃO ESTÉTICA? Seguindo uma lógica de mercado, a cultura da mídia, ao elaborar discursos sobre a mulher, objetiva viabilizar a venda de produtos e serviços. Assim, a publicidade busca reproduzir experiências sociais com as quais seu público consumidor interage. As imagens utilizadas na propaganda são veículos de sentidos que tormam claras as contradições da cultura contemporânea principalmente no que diz respeito à questão das representações de gênero. Pode- se perceber que as campanhas criadas atualmente tem buscado associar novos conceitos aos benefícios propostos pelos produtos, em seus anúncios. Isso porque se acredita em uma identificação da mulher com representações do feminino que contemplem as diferenças e diversidades. O padrão de beleza e de sensualidade feminina tem sofrido questionamentos. Valores socioculturais tem sido contestados como consequência de uma consciência mais humanista. Para acompanhar as novas tendências, o cenário publicitário tem mostrado uma tentativa de inovar seu discurso, alinhando-o a um pensamento politicamente correto. Dando espaço a outra imagem da mulher, a mídia propõe quebrar estereótipos, apresentando uma figura feminina diferente das comumente vistas na propaganda. São 86 mulheres comuns, em situações do cotidiano, vestidas e produzidas fora do padrão ditado pela magresa e apelo sexual. Esse discurso se caracteriza, principalmente, pela desaprovação de atitudes e comportamentos que discriminem grupos socais minoritários. Nas propagandas que se seguem, pode-se observar uma reflexão dessa filosofia do politicamente correto que tem se tornado constante. A criação de peças publicitárias tem seguido uma orientação que possibilite a inclusão simbólica de minorias sociais. Mas será que os parâmetros de beleza tão valorizados socialmente ainda não ecoam nas estratégias discursivas. Veja-se nas propagandas que seguem. 6.3.1 Maquiagem NATURA UNICA, para “gente bonita de verdade” Figura 16 – Propaganda Natura/ Linha de maquiagem. Fonte: Revista Claudia, 2003 1ª página 87 Figura 17 – Propaganda Natura/ Linha de maquiagem. Fonte: Revista Claudia, 2003 2ª página Figura 18 – Propaganda Natura/ Linha de maquiagem. Fonte: Revista Claudia, 2003 3ª página 88 Figura 19 – Propaganda Natura/ Linha de maquiagem. Fonte: Revista Claudia, 2003 3ª página A propaganda, maquiagem Natura, publicada na revista Claudia, em maio de 2003, edição nº 5, com o slogan “bem estar bem”, tematiza sobre “mulheres de verdade” abordando o fato de que apesar de serem bonitas e bem sucedidas (esta peça publicitária traz imagens da famosa jornalista Marília Gabriela, da atriz e cantora Thalma de Fretas e da, não tão famosa, consultora de produtos da marca, Mônica Batoni), elas tem em comum o anseio de perfeição estética. A mulher é representada nesse discurso sob a imagem de mulher moderna e bem resolvida, independente e engajada socialmente. Uma mulher que, diferente daquela frequentemente mostrada nesse tipo de propaganda, cuida de si, não apenas para agradar o outro, mas para agradar a si mesma. Há a presença de um discurso transverso, o discurso de que a beleza é fundamental. Exibida em sete páginas, esta peça publicitária traz em destaque, na primeira página, como uma capa, a fotografia de batons de diferentes tons e dispostos no espaço como se estivessem disponíveis para serem usados e, abaixo da imagem, o seguinte texto, “Não é porque a Natura está lançando sua nova linha de maquiagem que vai deixar de mostrar mulheres de verdade”. O sujeito anunciante adota um discurso que se difere do já conhecido nesse tipo de publicidade, que escolhe modelos maquiadas para impressionar o consumidor. 89 Na segunda página, em primeiro plano, à esquerda, há a imagem da famosa jornalista Marília Gabriela, segurando o rosto com as duas mãos e sorrindo discretamente, com ar de satisfação e felicidade. Ao lado, a imagem de produtos de maquiagem, pó compacto, delineador para olhos, conjunto duo de sombras, seguida do dizer: “como a Marília Gabriela, que adoraria ter as sobrancelhas da Thalma de Freitas”. No canto superior direito, outra imagem, agora bem menor, da jornalista num momento de leitura, em um ambiente que parece ser a sua própria casa, seguida de uma declaração sua: “Gosto de cuidar do meu bemestar físico para me sentir segura. Primeiro para mim, para dentro, depois para fora, para os outros.” Logo abaixo, a indicação da autora como “Marília Gabriela, jornalista e Gente Bonita de Verdade”. No canto esquerdo, acima, a logomarca e o slogan: “bem estar bem”. Mais abaixo, pequeno texto com a descrição e benefícios de um dos produtos de maquiagem expostos: “Com o Duo de Sombras Natura Unica, seu olhar ganha mais vida e expressão. Graças à sua exclusiva tecnologia, que utiliza partículas micronizadas, o Duo de Sombras Textura Ultra Fina tem fácil aplicação e proporciona um toque sedoso, com suavidade, durabilidade e resistência à água.” Na terceira página, com os elementos dispostos da mesma maneira, a foto agora é da atriz e cantora Thalma de Freitas, tocando seu queixo suavemente, com os dedos da mão direita, como que destacando, numa expressão de leveza e tranquilidade. Os produtos de maquiagem agora são: base firmadora para o rosto e blush, abaixo dessa imagem diz-se: “A Thalma de Freitas, que sonha ter o queixo da Mônica Batoni.” A pequena imagem da atriz no canto superior esquerdo está associada à transcrição de sua fala:” o conhecimento é o maior bem que uma pessoa pode ter. Porque se ela sabe das coisas, pode se cuidar, se proteger. Eu acho que o melhor jeito de ajudar não é dando o peixe, mas ensinando a pescar.”,“ Thalma de Freitas, atriz e Gente Feliz de Verdade”. E ainda, e o que é mais importante, a apresentação do produto propriamente dito: “Aplique a Base Compacta Natura Unica e realce os traços do seu rosto. Com o efeito aveludado de um pó, a Base Compacta Protetora cobre pequenas imperfeições e uniformiza o tom da sua pele. As HidroSphere, microesferas de colágeno de origem marinha, exclusivas da linha, garantem a hidratação, e o FPS 15 auxilia na prevenção do envelhecimento precoce.” Em mais uma página, a última, surge a imagem da consultora de produtos Natura, Mônica Batoni, e ao lado, a foto de batons, acima do seguinte texto: “E a Mônica Batoni, que faria de tudo pelos lábios de Marília Gabriela.” Disposto como nas páginas anteriores, o que diz Mônica: “Assim que as pessoas descobrem como é bom se cuidar, elas passam a gostar mais de si mesmas. Participar desse processo é muito gratificante.” “Monica Batoni, 90 Consultora Natura e Gente Bonita de Verdade.” Quanto aos batons expostos, descreve: “Um toque de Batom Extremo Conforto Natura Unica protege e valoriza seus lábios. O Batom Extremo Conforto FPS 15 possui uma inovadora textura ultrafina, que forma um filme natural e desliza nos seus lábios. Ele é macio, fácil de aplicar e mantém a cor, o brilho e a hidratação por muito mais tempo.” Há nessa propaganda um entrecruzamento de diferentes discursos. Os sentidos produzidos a partir da análise de sua materialidade simbólica retomam gestos do interdiscurso. Nota-se, a princípio, o discurso da beleza como característica imprescindível à mulher, o que remete à ideologia de que para ser feliz é preciso ser esteticamente perfeita. Mesmo a mulher publicamente reconhecida, profissional e bem sucedida como Marília Gabriela, Thalma de Freitas e Mônica Betoni, aparecem nesse anuncio subordinadas à beleza e à fragilidade. Elas também não estão totalmente satisfeitas com seu corpo, com seus traços peculiares. Marília Gabriela “adoraria ter a sobrancelha da Thalma de Freitas, que por sua vez, “sonha ter o queixo da Mônica Batoni”, que “faria de tudo pelos lábios da Marília Gabriela”. Buscando uma aderência do sujeito-mulher, público alvo dessa peça publicitária, a FD gera o discurso de que toda mulher deve buscar através de algum cosmético a possibilidade de corrigir imperfeições, modelar o corpo e restaurar traços, do rosto, com os quais não está satisfeita. Com os seguintes dizeres: “Com o Duo de Sombras Natura Unica seu olhar ganha mais vida e expressão”; “Aplique a Base Compacta Natura Unica e realce o traço do seu rosto... Cobre pequenas imperfeições e uniformiza o tom de sua pele”; “Um toque de Batom Extremo Conforto Natura Unica protege e valoriza seus lábios”. O sujeito anunciante vende aquilo de que necessita o sujeito consumidor para alcançar a perfeição estética. E é essa FI, a da perfeição estética, a base do dizer dessa propaganda. Há um discurso limitante e perverso sobre a feminilidade, materializado nos elementos lingüísticos utilizados na sua elaboração, que atribuem à mulher não apenas o lugar de objeto de desejo, mas também faz crer que para se sentir bem e para ser feliz é preciso ser bonita, mas não ter “defeitos”. Considerando as condições de produção em sentido amplo, ou seja, o contexto sóciohistórico e ideológico, como diz Orlandi (2009), o sujeito anunciante supõe que o público feminino, consumidor dos produtos cosméticos de beleza anunciados, encontrará nesse modelo de mulher tanto a sua realidade (mulheres que trabalham, que buscam independência financeira, que alcançaram sucesso no que fazem, que se cuidam e tem algo que gostariam de mudar ou melhorar em sua aparência para se sentirem melhor), quanto a realização de seus 91 desejos (a correção de traços com os quais não estão satisfeitas e que lhe garantiria beleza, perfeição estética). Essa posição do sujeito decorre do que Pêcheux formula sobre os protagonistas do discurso e que faz parte das condições de produção e implica o mecanismo imaginário. Tratase da imagem do sujeito locutor ( quem sou eu para lhe falar assim?), da posição sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim?) e do objeto do discurso ( do que estou lhe falando? Do que ele me fala?). E, no caso do discurso aqui tratado, pode-se perceber que o sujeito publicitário vale-se de uma imagem feminina não mais associada àquela socialmente definida há um tempo atrás como a cuidadora do lar, dos filhos, que deve se cuidar para agradar ao marido. Em aderência a um modelo cultural mais recente, fruto da luta pela emancipação da mulher, a imagem feminina, evocada nessa peça publicitária é a da mulher que tem uma posição profissional, que é independente, inteligente, com ideias próprias, exemplos de sucesso e que acima de tudo preza pela auto-estima, mas, ainda, associada à beleza e perfeição estética. Os produtos de maquiagem são oferecidos a elas para corrigir seja o queixo, a sobrancelha ou os lábios. Percebe-se uma relação paradoxal nos sentidos produzidos nesse discurso. Os elementos simbólicos constituintes do dizer dessa propaganda, descritos nessa análise, provam que, mesmo destacando características como inteligência, perspicácia e independência, para construir o sentido de feminilidade, esse discurso é atravessado por outro discurso. Este discurso outro é justamente o que interessa ao mercado e, por isso mantém uma relação com padrões de beleza marcados historicamente, e que impõem à mulher o ideal de sedução e de conquista pela beleza. Afinal, qual é essa “mulher de verdade” que a Natura faz questão de mostrar ao longo dessa propaganda? Pode-se depreender, através do interdiscurso, que a expressão “mulher de verdade”, no discurso analisado nos remete, pela memória, ao sentido de que as mulheres mostradas são reais, pois são conhecidas do público, sabe-se de suas rotinas e necessidades cotidianas. Não são modelos selecionadas apenas por sua beleza física, como fazem outras propagandas do gênero, a fim de que o sujeito se filie Ao seu dizer. Outro sentido ainda é o de essas mulheres serem famosas e cheias de sucesso, mas ainda assim não se sentirem completas quanto à beleza, elas têm as mesmas insatisfações que as não famosas, e por isso, junto à Marília Gabriela e Thalma de Freitas, ambas artistas e frequentemente mostradas pela mídia televisava, a marca anunciante escolheu uma outra mulher, anônima, “apenas” uma consultora de cosméticos, fazendo crer que estão todas em nível de igualdade quanto à busca pelo bem estar e beleza, são “de verdade”, porque são 92 iguais a todas as outras (à potencial leitora-consumidora da maquiagem que tem uma “solução” para as imperfeições no rosto). Os discursos que se cruzam aqui demonstram como os sentidos de feminilidade se relacionam, mesmo representando o passado e o presente. Há, um retorno à memória e uma resignificação de sentidos. “Todo dizer, na realidade, se encontra na confluência dos dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação) (Orlandi, 2009). Voltando ao slogan da marca, considerando sua função e importância na elaboração desse gênero de texto, constata-se que o dizer “bem estar bem” remete a um sentido de que a aquisição do produto e seu uso pressupõem bem estar. Reforça o que seria o compromisso do sujeito empresa, não apenas com o leitor-consumidor, mas também com o planeta. Vale ressaltar que a logomarca que aparece sobre o slogan sugere uma folha ao vento e que esta empresa de produtos cosméticos se filia a um discurso ecologicamente correto. Segundo a Natura, para desenvolver seus produtos, ela mobiliza uma rede de pessoas capazes de integrar conhecimento científico e o uso sustentável da rica biodiversidade botânica brasileira. O discurso mercadológico, evidente nos sentidos apreendidos tanto no uso da linguagem verbal quanto não-verbal que compõem a propaganda, é articulado a outro discurso, o discurso ecológico. Assim pode-se afirmar a presença do discurso transverso, ou seja, há a articulação de um pré-construído em outro discurso. Sobre o discurso transverso 6.3.2 DOVE firming. Mulheres com curvas “de verdade” Figura 20 – Propaganda Dove firmming, loção corporal e sabonete firmadores. Fonte: Revista Marie Claire, 2005. 93 Veiculada na revista Marie Claire, em agosto de 2005, a propaganda do sabonete e loção firmadora Dove, é parte de uma campanha da marca, intitulada “Real Beleza”. Foi criada pela agência Ogilvy em 2004 e se baseou em uma pesquisa de comportamento, realizada em 10 países com três mil mulheres, que mostrou: somente 2% das mulheres pesquisadas se achavam bonitas; 75% definiam sua beleza como sendo mediana; e 50% entendiam que seu peso estava acima do ideal. Segundo declarações Marcella Puglia, gerente de marca da Unilever , no próprio site da empresa, esta campanha pela real beleza está alinhada com a nova filosofia da marca que defende a diversidade. Para ela, Sentir-se bonita é o principal e todas as mulheres podem se sentir assim, se cuidando e criando seu próprio estilo de beleza. Marcella considera que hoje em dia a definição de beleza é bastante limitada e isso gera frustração, levando as mulheres a se sentirem impotentes em atingir o padrão de beleza estabelecido Essa imagem traz a fotografia de mulheres sorridentes e em momento de descontração, vestidas à vontade, apenas com lingerie. Ao lado da fotografia, um texto verbal: “Deixar modelos tamanho 36 mais firmes não teria sido nenhum desafio”. “Sistema firmador Dove. Testado em curvas de verdade”. No canto inferior esquerdo, a fotografia dos produtos anunciados, uma caixa de sabonete e um pote de loção, ambos contendo em seus rótulos a indicação de colágeno em sua fórmula. Abaixo da fotografia e em fonte menor o seguinte dizer: “Sabonete mais loção com colágeno garantem 90% de eficácia firmadora”, com asterisco indicativo de texto esclarecedor, que aparece em letras bem pequenas: “pesquisa realizada com 573 mulheres”. Compondo ainda o anúncio, no canto inferior direito, há a divulgação do endereço eletrônico, “www. campanhapelarealbeleza.com.br”. As mulheres que aparecem na fotografia estão distantes das modelos magérrimas, típicas das campanhas publicitárias. Elas certamente usam tamanhos maiores que 36 e correspondem a “mulheres reais”, bonitas, mas com quilos a mais e silhuetas não tão enxutas como era de se esperar em anúncios do gênero. Numa tentativa de inovar, apresentando mulheres estigmatizadas socialmente, o sujeito publicitário aposta na diversidade como uma inovação de mercado. “A campanha fez com que a marca obtivesse um crescimento histórico de aproximadamente 700% nas vendas mundiais nos dois anos seguintes”. Há uma interdiscursividade no dizer dessa peça publicitária, através da materialidade da linguagem verbal e imagética, capaz de causar um efeito social positivo, uma vez que parece reavaliar conceitos que beneficiam grupos estereotipados. Há gestos do interdiscurso presentes aí, os questionamentos recentemente impulsionados pelas conquistas da mulher 94 moderna com relação a padrões de beleza impostos socioculturalmente, um olhar mais realista quanto aos “milagres” oferecidos pela indústria cosmética, estão significando nesse dizer. Na imagem da mulher com “curvas de verdade”, tão de bem com a vida, o sujeito consumidor, provavelmente entre as 50% das entrevistadas que consideram seu peso acima do ideal, vê a possibilidade de ser feliz, em sua realidade. Para ela é a abertura para um novo contexto menos preconceituoso. A FD em que se inscreve esse discurso dialoga com a da Natura. O sujeito discursivo, tanto o sujeito anunciante quanto o sujeito consumidor, se filiam a dizeres recentes sobre a mulher, que refletem uma emancipação social muito significativa no que diz respeito a padrões de comportamento. Essa FD pertence a uma FI feminista e de defesa do politicamente correto. A imagem de mulheres acima do peso, utilizada nessa peça, dialoga com a imagem de mulheres com corpos esbeltos, mais comumente utilizadas em propagandas desse tipo, propondo questionamentos. Isso demonstra a adesão, por parte do sujeito discursivo, a novos conceitos socioculturais que promovem grupos até então estigmatizados. A posição que o sujeito assume nesse discurso permite compreender o sentido que a imagem e as palavras utilizadas adquirem, ou seja, é a partir da FD a qual o sujeito se filia que se pode reconhecer a FI materializada na linguagem. Com base no que afirma Pêcheux em uma de suas teses: As palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas (no sentido definido mais acima) nas quais essas posições se inscrevem (PÊCHEUX, 2009). Assim, a expressão “curvas de verdade” utilizada pelo sujeito anunciante, nessa peça, assume um sentido específico, no interior desse discurso, por causa da relação que tem com outros dizeres tanto verbais como em: “Deixar modelos 36 mais firmes não teria sido nenhum desafio”, quanto com a imagem de mulheres mais “cheinhas” que ilustra a propaganda. A expressão “curvas de verdade”, evidencia a visão equivocada de quem acredita que modelos magérrimas, como exigem os comerciais que exploram o corpo feminino, tem curvas. Somente naquelas mulheres de manequim acima do 36 é que se pode realmente ver curvas. O pré-construído desse dizer revela a adesão do sujeito a um discurso politicamente correto, um discurso distante de qualquer preconceito quanto aos padrões estéticos femininos, um discurso que lhe aproxima do sujeito-mulher consumidora, aquela que diz se considerar 95 acima do peso ideal, segundo pesquisa, e que provavelmente encontrará no sabonete e loção firmadora Dove uma possibilidade de se aproximar dos padrões estéticos mais aceitáveis. O sujeito anunciante dessa propaganda, apesar das marcas visíveis de um discurso politicamente correto, sem preconceitos, toma como modelo de pele firme ideal, exatamente aquelas mulheres de manequim 36, o que evidencia uma contradição. Esse sujeito, filiado também a uma FD mercadológica, joga com a linguagem, deixando marcas de uma ideologia dominante quando se trata da estética feminina. Vinculado a uma FI da perfeição estética tendo a magreza como padrão, é esse padrão que o influencia a vender uma loção firmadora, é esse padrão que a consumidora insatisfeita deseja. De onde se depreende que a ideia de feminilidade, mesmo nessa propaganda, está vinculada à beleza física. Considerando as condições de produção desse discurso, vê-se, por parte do sujeito anunciante, a preocupação com um discurso que favoreça a mulher “fora dos padrões”. Vivese um momento social de questionamentos de valores e crenças, o tratamento dispensado a grupos minoritários vem sendo revisado de modo a se criar uma consciência que desencoraje a discriminação e o preconceito. Também as conquistas femininas que refletem principalmente em maior liberdade de expressão são condições determinantes dos efeitos de sentido nesse discurso. A emancipação de papeis sociais assumidos pela mulher, antes submissa à figura masculina, e uma nova ideologia de afirmação do feminino na sociedade hoje, como reparação de uma história de opressão, fazem parte das condições de produção dos sentidos nesse discurso. A posição dos sujeitos também intervém na produção do discurso, isto é, o sujeito, do ponto de vista do seu interlocutor e não em sua realidade empírica. Tratam-se das formações imaginárias que resultam da antecipação que o sujeito faz a seu interlocutor prevendo o sentido que seu discurso produz. Acrescentando que As diversas formações resultam, elas mesmas, de processos discursivos anteriores (provenientes de outras condições de produção) que deixaram de funcionar, mas que deram nascimento a “tomadas de posição” implícitas que asseguram a possibilidade do processo discursivo em foco (PÊCHEUX, 2010). Com isso, é correto dizer que o sujeito anunciante, a marca de cosméticos Dove, está ciente dos estigmas que limitam e oprimem grande parte das mulheres na sociedade e da necessidade de repensar valores culturalmente impostos quanto à estética feminina. Ele se antecipa a esse sujeito mulher e se colocando como um aliado, leva a uma reflexão que possibilite uma ruptura desses estigmas e de preconceitos. 96 Vale ressaltar a contradição já mencionada acima, entre essa posição do sujeito e outra materializada no texto verbal que explicita um padrão social de beleza como parâmetro. Como se vê, o manequim 36 é o ideal para esse sujeito, vinculado a uma FD que privilegia a magreza, o corpo enxuto como padrão ideal de beleza. Compreende-se, então que mesmo se utilizando de uma estratégia politicamente correta, o discurso sobre a feminilidade nessa propaganda não leva em conta, como quer parecer, a mulher real ou a sua real feminilidade. 6.3.3 Beleza é... NIVEA Figura 21 – Propagada NIVEA, produtos disversos. Fonte: www.portaldapropaganda.com. Mais uma propaganda da marca Nivea, peça que faz parte de uma campanha sob o mote “Beleza é...”, foi criada pela TBWA da Alemanha e lançada em agosto de 2007. A campanha chega ao Brasil com adaptação da agência Africa. Segundo declaração da diretora de marketing da empresa, o objetivo é dar liberdade para que cada mulher faça sua própria definição de beleza. É uma peça diferente de todas as outras analisadas aqui, pois não há a exposição do produto anunciado. 97 O anuncio chama a atenção pela sutileza de sua elaboração, não se sabe qual é o sujeito anunciante até se visualizar a logomarca da empresa. A ausência do produto e da descrição de suas características e benefícios suprime o tom apelativo do qual se vale o discurso publicitário na busca do convencimento. Em vez disso, o imperativo é um convite à liberdade e originalidade, seja pela disposição do sujeito modelo na imagem, uma mulher despojada, com semblante de satisfação e bem-estar inspirando ousadia e originalidade, mas ao mesmo tempo graça, beleza e sensualidade através, principalmente, do olhar, traço mais destacado na garota-propaganda. A publicidade tem se moldado às transformações do indivíduo contemporâneo, como atesta Lipovetsky (2009, p. 220), quando diz: “Numa era de prazer e de expressão de si, é preciso menos repetição cansativa e estereótipos, mais fantasia e originalidade. A publicidade soube adaptar-se muito depressa a essas transformações culturais”. No jogo simbólico pictórico utilizado pelo sujeito anunciante há a predominância de um discurso que atribui poder à mulher. Há um apelo emocional, uma chamada à reflexão sobre a figura feminina contemporânea, mais dona de si, independente e que tem “brilho próprio”. Trata-se de um discurso elaborado para estabelecer uma imagem positiva do produto. Considerando o jogo imaginário, as posições ideológicas e o processo sócio-histórico em que se produz o dizer dessa propaganda é que se lhe pode atribuir sentido. Pensando os efeitos de sentido nesse discurso, pode-se dizer que um sentido mais imediato seria o de bem-estar e felicidade associados à beleza, referida aí de modo implícito. Esse efeito de sentido só é possível, se o sujeito interlocutor estiver envolvido no contexto em que a marca do produto é consumida. Além de saber que a logomarca é de uma empresa de produtos cosméticos, é preciso saber, também, de sua representatividade e credibilidade no mercado. Ela só significa a partir do contexto sócio-histórico e ideológico, dos sujeitos envolvidos, das condições de produção e da memória discursiva recuperando os já-ditos do interdiscurso. Os sentidos são constituídos nessa propaganda levando em conta a filiação do sujeito em uma Formação Discursiva da ditadura da beleza. Não há como escapar à ideologia da perfeição estética, mesmo sob a tentativa de “humanizar” a comunicação com o sujeito consumidora, materializada numa linguagem mais afetiva e que, segundo Maria Laura Santos, diretora de Marketing da Nivea, “Explora a beleza de forma holística, em todas as suas dimensões – não só como a pessoa se vê, mas também como é e se sente”. A imagem utilizada nessa peça mostra uma situação do cotidiano, um grupo de mulheres, certamente em um evento para este público, demonstrando sensação de bem-estar e 98 descontração. A lata de bebida, a jaqueta, o sorriso compartilhado das modelos são elementos que podem representar modernidade e liberdade que ilustram o conceito de beleza “de forma mais holística”, como pretende o sujeito anunciante. O sujeito consumidor, interpelado ideologicamente, pode identificar-se, ou não, com esse conceito de beleza, que leva em conta seus valores e sensações. E, sabedor de um novo perfil de consumidor, mais questionador e zeloso pelo bem-estar, o sujeito empresa anunciante, com o manifesto “Beleza é...”, tenta se aproximar do cotidiano desse sujeito, respeitando-o. Se “As palavras falam com outras palavras”, o conceito de beleza, no dizer verbal “Beleza é ter brilho próprio”, é parte de um discurso que se delineia na relação com outros discursos. Um dos efeitos de sentido que esse discurso produz é o de que a beleza é imprescindível, toda mulher tem que ser bonita. Através de pesquisa realizada com mulheres de vários países, com idade entre 20 e 70 anos, o sujeito empresa objetivou dar liberdade para que cada mulher fizesse sua própria definição de beleza. Sabendo-se disso, outro sentido presente aí é o de que a beleza vai além da aparência física, beleza é ter atitude, amor próprio, beleza é ser original, numa relação com o discurso dos protestos feministas atuais. São sentidos determinados ideologicamente, ancorados em uma FD que lhe permite dizer assim, considerando as novas orientações publicitárias que “faz eco às metamorfoses do indivíduo contemporâneo, menos preocupado em exibir signos exteriores de riqueza do que em realizar seu Ego” (LIPOVETSKY, 2009, p. 220 ). Como se salienta na citação: O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro. Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem (ORLANDI, 2009, p. 43). As posições dos sujeitos envolvidos nesse discurso, o sujeito anunciante Nivea e o sujeito mulher consumidora dos produtos, permitem compreender os sentidos assumidos pela materialidade simbólica que compõe o discurso nessa peça publicitária. Isso quer dizer que para ser sujeito do que diz, o anunciante, empresa Nivea, assume uma posição de autoridade no que produz. Trata-se de um sujeito reconhecido pela eficiência e credibilidade que seus produtos alcançaram no mercado, é também um sujeito detentor de poder, porque aos produtos que fabrica, os cosméticos, é atribuída a possibilidade de transformação estética e de rejuvenescimento. Quanto à posição do sujeito consumidor, é resultante justamente dos 99 anseios gerados pelos padrões estéticos sócio-culturalmente perpetuados, fazendo-lhe crédulo dos “milagres” oferecidos pelos cremes hidratantes, rejuvenescedores, firmadores, redutores de medidas etc. O discurso que tem sido disseminado com as crescentes conquistas da mulher na sociedade enfatizam suas características mais essenciais. Afinal, que mulher é essa para a qual beleza é ter brilho próprio? Por que essa propagada lhe diz assim? Traços como força, coragem, inteligência lembram e atestam a capacidade que a mulher tem de assumir novos papeis, antes limitados aos de dona de casa, mãe e objeto de desejo do homem. Este último, por muito tempo, foi responsável por fazer da beleza a qualidade mais valorizada e pela qual valem sacrifícios. Buscando uma identificação do consumidor mulher, o sujeito anunciante do discurso na publicidade atualiza o que diz, a mulher mostrada em seus comerciais, agora, busca brilho próprio, cuidado, alegria, amor...É esta a mulher imaginada pelo sujeito publicitário para que este lhe diga o que diz, do modo que diz. É a partir das formações imaginárias, mecanismo próprio de todo processo discursivo, que a posição dos sujeitos intervém na produção de sentidos. A imagem que o sujeito empresa faz do sujeito consumidor, a mulher, considera esta em seu momento de questionamento de valores e por isso, menos passiva diante do discurso da necessidade de perfeição estética. Então, o anuncio que elabora oferece muito mais que beleza física, oferece bem-estar, porque leva em conta seus anseios mais essenciais. Vale ressaltar que, apesar de não expor um produto, a Nivea continua produzindo cosméticos rejuvenescedores e embelezadores do corpo, portanto muito longe de apenas levar em consideração o brilho natural feminino, sem retoques artificiais. Trata-se de um discurso que considera a feminilidade ainda em sentido limitado, mesmo que tente se aproximar de aspectos de sua essência. Nas três peças que compõem esse bloco de análise o que há de comum é o fato de adotarem um discurso que tenta se distanciar do já conhecido nesse ramo de produtos, o da valorização de padrões estabelecidos que limita a liberdade feminina, excluindo pela imposição de perfeição estética. Para a produção de sentidos nesses anúncios deve-se considerar uma FD da valorização da beleza interior, que não está limitada aos aspectos físicos. É um discurso que pertence a uma FI do feminismo moderno, que dissemina uma imagem de mulher mais livre da ditadura da beleza e menos passiva diante dos discursos opressores da mídia. No entanto, na materialidade discursiva dessas propagandas, há marcas reveladoras do discurso do qual tentam se diferenciar na conquista de um público consumidor, agora mais 100 consciente e questionador. Como exposto na análise, a “mulher de verdade” da natura ainda não está totalmente livre da ditadura de perfeição estética, uma vez que, através da maquiagem anunciada procura corrigir imperfeições e transformar o próprio corpo. “A real beleza” da Dove, apesar de mostrar modelos de diversos manequins, ainda valoriza a magreza. A Nivea, em seu manifesto inovador, não deixa de mostrar que “beleza é...” estar esteticamente dentro de padrões culturais socialmente impostos. Na materialidade simbólica verbal e não-verbal, em que se expressa o discurso dessas peças publicitárias, há elementos que mantém uma regularidade e por isso o sentido parece já estar lá, óbvio. Mas se a linguagem é o lugar onde o sentido se constrói, é a partir da posição do sujeito e das brechas dessa linguagem que é possível perceber/interpretar produzindo outros sentidos. Quando as peças publicitárias em questão mostram mulheres em situações cotidianas, quando utilizam temas e títulos em defesa de uma um conceito de beleza mais libertador, podem, a princípio fazer crer num discurso que considera a feminilidade em sentido mais positivo. Mas, porque há a presença da ideologia constituindo o sujeito-leitor, que está inscrito historicamente e considerando ainda o efeito que vem pela memória, o interdiscurso, é que se pode extrair outro sentido ressoando por traz da materialidade apenas. É a partir da FD mercadológica que o sentido de beleza nesses anúncios se evidencia, sob a imagem da mulher esbelta que toma refrigerante, da pela realçada por maquiagem e pelo manequim 36 tão lembrado. 101 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensando-se que, se além da economia e da tecnologia há o simbólico, construindo um sistema de valores para constituir vínculos sociais nas comunidades modernas sob a influência das mídias, o discurso de informação presente nas propagandas assinalam posições ideológicas integrantes de outros discursos que o antecedem e o sucedem. Assim, materializado em textos que se utilizam de recursos visuais fortemente elaborados, com dizeres impregnados de ideologia, esse discurso constrói a identidade da mulher, estabelecendo padrões de comportamento, que muitas vezes contraria a própria essência feminina. O discurso presente na propaganda de cosméticos leva em conta o imaginário feminino diante de uma sociedade de consumo cada vez mais excludente e exigente quanto à manutenção da beleza e da juventude. Esse discurso considera, ainda, a necessidade de a mulher conquistar um parceiro, tendo que, para isso, atender a um padrão de corpo perfeito e envolto em erotismo e sensualidade. Neste trabalho, pode-se concluir que, apesar de todas as conquistas das mulheres, não apenas no campo profissional, mas também na vida amorosa, ela ainda é vista como objeto de consumo. A publicidade reforça essa visão sobre o que é a feminilidade, produzindo um discurso impregnado de já ditos que, historicamente sempre revelaram o machismo e sexismo presente na sociedade. Como o corpo passou a ser idolatrado na cultura de consumo, a preocupação quanto à manutenção da juventude e a necessidade de atender ao padrão de corpo perfeito, é cada vez mais comum. E é a adesão das mulheres a esses novos valores, que mais contribui para o vertiginoso crescimento do mercado de cosméticos e da indústria da propaganda voltada a esse público. Assim, as mulheres são induzidas a consumir e a viver de acordo com o que é transmitido como ideal e desejável para elas pela mídia, o que influencia seu comportamento e seu modo de ser-no-mundo (BORIS; CESÍDIO, 2007, p. 474). As propagandas analisadas no quinto capítulo desse trabalho mostram a forma apelativa como o discurso sobre a feminilidade é elaborado. Apontando para formações discursivas da ditadura da beleza, remete à formação ideológica do corpo não apenas como objeto de desejo sexual masculino, mas também como instrumento de competição com outras 102 mulheres. Apesar de tentar uma abordagem mais democrática sobre os padrões estéticos e o comportamento feminino, as características postas em evidência na propaganda, através de elementos simbólicos impregnados de significados na cultura moderna, ressaltam muito mais os atributos físicos da mulher. Isso faz pensar que ser mulher e estar no mundo é menos um ato criativo e produtivo, e mais um ato de consumo. Assim, a liberdade individual feminina, que se transformou em um dos marcos da pós-modernidade é contraditória, de certa forma, quando se pensa nessas formas de comportamento pré-formatadas. Então não há uma liberdade de mostrar-se a sua maneira. No contexto midiático e do consumo, isso é uma ilusão, vendida pela publicidade. Pode-se perceber também que, ao influenciar na transformação do corpo como forma de valorização da beleza, o discurso das propagandas analisadas revelam uma ideologia presente nessas atitudes, legitimadas socio-historicamente. Evidencia-se, também, uma relação de poder no discurso publicitário, uma vez que o sentido de feminilidade está pautado em uma formação discursiva mercadológica. À publicidade não interessam os traços que particularizem a figura feminina, para a propaganda, interessa a mulher coisificada, pois é seu corpo, sensualizado e perfeito esteticamente, que faz vender. Ao lado disse, cabe discorrer, há a tentativa de se adequar a novos discursos, mais politicamente corretos ou mais atualizados quanto à posição da mulher contemporânea. As propagandas apresentadas e analisadas nesse trabalho trazem em sua constituição linguística, seja através do verbal ou imagético, traços de uma nova mulher. As imagens analisadas, especialmente nas peças publicitárias das marca Dove e Natura, transmitem uma visão do feminino aliado ao bem-estar, alegria de viver, desprendimento e originalidade. É possível perceber uma preocupação em ressaltar e destacar nas imagens aquelas características até então ridicularizadas pela mídia. Seja na proposta de mostrar mulheres felizes de verdade ou uma beleza real, essas marcas tentam uma representação do feminino de forma mais democrática. É possível se depreender outra formação discursiva, a da necessidade de conquistar um parceiro, gerada por uma formação ideológica que impõe o casamento como uma necessidade, uma salvação. Reflexo de uma época em que o casamento era do máximo interesse das mulheres porque só assim poderiam ter uma vida sexual socialmente aceitável. Com as conquistas e emancipação da mulher, a ênfase a seu papel de cuidadora do lar e da família, como sendo essencial para atrair um marido, deu lugar à sensualidade e aos atributos físicos. A exibição do corpo feminino em anúncios publicitários dispostos ao olhar masculino, mantem a mesma ideologia do machismo e sexismo que, outrora, a mantinha presa 103 às atividades domésticas. A diferença é que agora, atendendo a novos paradigmas, ressalta sua independência e liberdade sexual. Com isso, o que se pode perceber é que, nas sociedades atuais, ainda se permite que a publicidade trate a mulher como desprovida de valores, sem sentimentos, sem pureza, sem inteligência, quando destaca apenas seus atributos físicos. Mas, buscando um apelo diferenciado, percebe-se também um discurso de valorização das diferenças corporais e de auto-aceitação da forma física, mesmo que sutilmente marcado por padrõe estéticos e coerção à compra de produtos. Os resultados das análises mostram que a construção do sentido de feminilidade no discurso das peças publicitárias que vendem cosméticos tendem a desprezar a singularidade da mulher, pensando essa singularidade como a expressão de sua essência, sem a imposição de papeis culturalmente determinados. Quando ousa inovar mostrando gestos, sentimentos e atitudes genuínos da mulher, ainda se prende a padrões de corpo-beleza disseminados pela sociedade de consumo. Considerando que toda pesquisa possui limitações, fica em aberto a possibilidade de futuros olhares sobre esse estudo. Por se tratar de um tema profícuo, muitas discussões podem ser desenvolvidas. Além do discurso sobre a mulher, a linguagem publicitária com seu poder de manipulação pode render ricos trabalhos. 104 REFERÊNCIAS ALMEIDA, A. M. M. de. Feminilidade: caminho de subjetivação. Estudos de Psicanálise Belo Horizonte-MG n. 38 p. 29–44, dez. 2012. Disponível em: <http://www.cbp.org.br/n38a04.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2014. 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