kevin é presidente de um país faz-de

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kevin é presidente de um país faz-de
PÚBLICO, DOMINGO 9 AGOSTO 2015
KEVIN É
PRESIDENTE
DE UM PAÍS
FAZ-DE-CONTA
E QUER SER
LEVADO A SÉRIO
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São olhados de lado pelas pessoas sérias, e é fácil tomá-los por loucos ou
excêntricos. Criam países em casa ou na Internet, mas muitos deles só querem
tornar o mundo real um pouco menos aborrecido.ALEXANDRE MARTINS
COMO CRIAR UM PAÍS
SEM SAIR DE CASA
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FOTOGRAFIAS: CORTESIA KEVIN BAUGH
O actor Jack Black visitou a
República de Molossia em Julho,
para aprender com Sua Excelência,
o Presidente Kevin Baugh — Black
está a preparar um filme sobre
micronações, que ainda não tem
data de estreia. A vida na micronação
é um parque de diversões para os
filhos de Baugh, todos membros
dos Rangers de Molossia, e para a
primeira-dama, que acompanha o
Presidente nas suas visitas à capital
dos vizinhos EUA
Q
uem não se lembra daquela
vez em que o Ducado de Grand
Fenwick, uma minúscula nação
perdida na imensidão dos Alpes
franceses, declarou guerra aos
poderosos Estados Unidos da
América com um ridículo exército de 20 e poucos homens,
armados com arcos e flechas,
e saiu vencedor? Os historiadores continuam a ignorar este feito, mas quem
viu a comédia O Rato Que Ruge, de 1959, ou
leu o livro que lhe deu título, nunca esquecerá o dia em que as nações mais pequenas
do mundo vergaram as grandes potências e
forçaram-nas a seguir o caminho da paz. Mais
de meio século depois, muitas outras nações
imaginárias como o Ducado de Grand Fenwick continuam a tentar construir o seu próprio
mundo, longe da realidade das Nações Unidas
e da monotonia de quem insiste em levar-se
a sério, mas muito perto do absurdo ou da
pura diversão.
São conhecidas como micronações, apesar
de o termo servir para definir quase tudo menos uma equipa de futebol. Há micronações
no quarto, na sala, numa propriedade relativamente grande, ou sem as restrições de
espaço que a Web permite. As que se levam
a sério — ou as que dizem levar-se a sério —
acabam por ter os seus 15 minutos de fama,
como é o caso da República Livre de Liberland, autoproclamada em Abril passado pelo
checo Vit Jedlicka, um jovem político de 31
anos fascinado com os ideais libertários.
Jedlicka, membro do Partido dos Cidadãos
Livres, foi entrevistado por rádios, jornais e
estações de televisão europeus e norte-americanos, fascinados com a sua ideia de reclamar soberania sobre um pedaço de terra na
fronteira entre a Sérvia e a Croácia, aproveitando-se de uma disputa que está por resolver
desde o fim da II Guerra Mundial. Em poucas
semanas, a autoproclamada República Livre
de Liberland foi inundada com dezenas de
milhares de pedidos de cidadania, de todos os
cantos do mundo, de pessoas que partilham
os ideais libertários de Vit Jedlicka: impostos
e intervenção do Estado reduzidos ao mínimo; respeito total pela propriedade privada; e
uma tolerância sem limites em relação à vida
íntima e às crenças de cada pessoa — desde
que “não tenham um passado comunista, neonazi, ou qualquer outro extremismo”, como
se pode ler no site oficial.
O problema é que a autoproclamada “República Livre de Liberland” foi concebida na
cabeça de Vit Jedlicka mas quer nascer num
local pouco hospitaleiro. Apesar da exposição mediática do seu fundador, o Governo
da Croácia já disse que a ideia não passa de
uma piada — e até ordenou a detenção de
Jedlicka por duas vezes, obrigando-o a pagar
uma multa por atravessar a fronteira de forma
ilegal; a Sérvia referiu-se a Liberland como
um “assunto fútil”; e o Governo da República Checa, pátria de Vit Jedlicka, disse que as
acções do seu compatriota são “inadequadas
e potencialmente nocivas”. Talvez por isso, o
Egipto viu-se obrigado a assumir uma posição
pública, depois de as notícias sobre Liberland e as entrevistas ao seu fundador terem
captado o interesse de milhares de egípcios
nas redes sociais. “Muitos jovens são manipulados, e há associações criminosas que se
apoderam do seu dinheiro. Aconselhamos
cautela, e apelamos aos jovens que peçam
informações nos nossos consulados”, disse o
porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do país, Badr Abdel Atty, num alerta
contra possíveis “fraudes”.
Ao contrário da República Livre de Liberland, há inúmeras micronações que têm no-
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ção dos seus limites, como a República de Molossia, autoproclamada pelo norte-americano
Kevin Baugh no seu terreno, no deserto do
Nevada, e que passam mais despercebidas.
Mas a troca acaba por compensar: apesar de
os seus líderes não serem ouvidos pela CNN,
pelo The New York Times ou pelo The Guardian, estas micronações são infinitamente
mais divertidas.
Tal como na versão cinematográfica do Ducado de Fenwick, cujos destinos eram liderados pela duquesa Gloriana XII (Peter Sellers),
pelo primeiro-ministro Rupert Muntjoy (Peter
Sellers) e pelo chefe das forças armadas Tully
Bascome (Peter Sellers), também a República
de Molossia, fundada e liderada por Sua Excelência, o Presidente Kevin Baugh, está em
guerra. A diferença é que esta micronação de
faz-de-conta envolveu-se num conflito armado com um país que já não existe: a República
Democrática Alemã.
Sentado na cadeira do poder, e vestido à
melhor maneira de um ditador militar sulamericano saído de décadas passadas, Sua
Excelência — como insiste em assinar a correspondência trocada com a Revista 2 — conta
a história: “A Alemanha de Leste ainda existe, na forma de uma pequena ilha na costa
de Cuba, que foi oferecida por Fidel Castro
nos anos 70. Tecnicamente, essa ilha ainda é
território da Alemanha de Leste, apesar de
não ser habitada. Por isso, declarei-lhe guerra em 1983, quando era primeiro-ministro
de Vuldstein, a anterior designação da República de Molossia. Nunca mais me lembrei
da declaração de guerra, mas encontrei-a há
alguns anos, nos meus ficheiros. Foi então
que descobri que a Alemanha de Leste ainda
existe — na forma dessa ilha — e que a nossa
guerra está em curso, e assim vai continuar,
provavelmente para sempre.”
A ilha a que Kevin Baugh se refere chamase Ernst Thälmann, e foi assim nomeada por
Fidel Castro em memória do líder do Partido
Comunista alemão durante a república de Weimar, entre o fim da Grande Guerra e a ascensão ao poder dos nazis de Adolf Hitler. Preso
em 1933, Thälmann passou 11 anos na solitária
e foi executado em 1944. A ilha com o seu
nome não é — nem nunca foi — território da
Alemanha de Leste; Castro apenas lhe mudou
o nome, durante uma visita a Cuba do então
líder da RDA, Erich Honecker. Adiante — se há
coisa que a República de Molossia não tem, é
um Ministério para os Assuntos Sérios.
Kevin Baugh é um norte-americano de 52
anos, nascido em Dayton, no estado do Nevada, e trabalha “no departamento de recursos humanos de uma grande empresa”, que
insiste em não querer identificar.
A
ideia de criar a sua própria nação
surgiu há quase 40 anos, em 1977
— para quem tem a matemática
enferrujada, ou simplesmente
não queira perder tempo a voltar
atrás no texto, Kevin tinha apenas 14 anos de idade. Mas, afinal,
as memórias do Presidente (e “ditador benévolo”, segundo a sua
própria definição) levam-nos de
volta aos primeiros parágrafos.
“Eu e o meu amigo James [Spielman] vimos
um filme antigo com o Peter Sellers, O Rato
Que Ruge, e pensei que seria divertido criar a
nossa própria nação. Fizemos uma bandeira,
a nossa própria moeda e as nossas leis. Mais
tarde, ele desistiu, mas eu continuei com a
ideia, e quando comprei um terreno no Norte do Nevada mudei o nome da propriedade
para República de Molossia, hasteei a bandeira e comecei a construir a nação.” Loucura?
Delírio? Nada disso, diz Kevin Baugh — para
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ele, Molossia “foi sempre um símbolo de soberania pessoal, criatividade, imaginação, e
um pouco de sátira”. O seu lema resume bem
a ideia de que “o humor é algo muito sério”,
uma frase atribuída ao escritor, jornalista,
cartoonista e etc. James Thurber, e replicada
por milhões de outros seres humanos, antes
e depois do aparecimento do Twitter: “Nós
divertimo-nos em Molossia, mas Molossia não
é uma brincadeira.”
Hoje em dia, a República de Molossia é um
terreno de 5000 metros quadrados, cercado
por todos os lados pela localidade norte-americana de Dayton e pelos restantes Estados
Unidos da América. Tem bandeira e moeda próprias (a valora), e a capital chama-se
Baughston (qualquer relação com o nome do
“ditador benévolo” Baugh não é pura coincidência).
Quase nada falta à República de Molossia
— se esquecermos os pormenores do reconhecimento internacional e/ou a capacidade
de fazer negócios com países a sério. Caminho-de-ferro? Molossia tem: é uma réplica
Sua Excelência, o Presidente Grande
Almirante Coronel Doutor Kevin Baugh,
Presidente de Molossia, Protector da
Nação e Guardião do Povo, é também
o chefe do estado-maior da Armada,
constituída por três barcos insufláveis.
Na conversa com a Revista 2, Baugh
manifestou o desejo de visitar Portugal,
mas comprometeu-se a nunca usar o
seu poderio naval para violar a Zona
Económica Exclusiva do país
São tantas as
micronações,
que a Lonely
Planet lançou um
guia e Hollywood
prepara um
filme, com Jack
Black no papel de
um Presidente
inspirado em
Molossia
em miniatura, com uma estação a condizer,
que Kevin Baugh opera sempre que é necessário. Cemitério? “Check.” Uma praça central
gigantesca? Molossia tem, só que não é nem
central, nem gigantesca: é constituída por
uma pequena fonte e dois bancos de jardim,
enquadrados pela bandeira e por um canhão
que não faz mal a ninguém vai para séculos.
E, mais importante do que tudo o resto, tem
um povo.
“Temos 28 cidadãos, incluindo os nossos
cães”, diz à Revista 2 Kevin Baugh. “Seis seres humanos e cinco cidadãos cães vivem em
Molossia, e os restantes vivem fora do país,
nos EUA, como expatriados.” Quem estiver
interessado em juntar-se a Kevin, à sua mulher — a primeira-dama de Molossia — e aos
seus filhos, o melhor é pensar em alternativas:
“Desculpem, mas não estamos a aceitar novos
cidadãos. O nosso país é pequeno de mais.”
Mas as visitas são bem-vindas. O importante é deixar uma “pequena contribuição” no
posto fronteiriço — controlado por um boneco chamado Fred — e respeitar a lei: nada de
lâmpadas incandescentes e sacos de plástico,
“porque são maus para o ambiente”; armas e
tabaco; missionários e vendedores; cebolas e
morsas; e “tudo o que vier do Texas, excepto
a cantora Kelly Clarkson”.
A vida na República de Molossia — ou na vivenda da família Baugh, como diriam os mais
circunspectos observadores internacionais
— é igual a tantas outras em repúblicas de fazde-conta fundadas em terrenos particulares:
como não há dinheiro para empregados, é Sua
Excelência quem mete as mãos à obra e varre
a praça, poda as árvores e atende o telefone.
Os três filhos mais pequenos — todos membros dos Rangers de Molossia, os escuteiros lá
do sítio — beneficiam das vantagens de viverem numa micronação que é um gigantesco
parque de diversão e de educação.
O Ministério para a Exploração Aérea e Espacial da República de Molossia lançou em
2002 o seu primeiro foguetão (um modelo
Tidal Wave, que ainda se pode comprar no
eBay por cerca de 40 euros), e desde então
já inaugurou o Observatório Nacional (um
telescópio) e um Monumento Espacial (um
pequeno foguetão espetado em varas de alumínio), ex-líbris do Cosmódromo Alphonse
Simms e Campo de Broomball.
Quando não está a cuidar da república com
vassouras e aspiradores, nem a responder a
perguntas de jornalistas portugueses, Kevin
Baugh passa horas no deserto do Nevada a
lançar e a apanhar pequenos foguetões, que
descem de pára-quedas muito mais devagar
do que o entusiasmo dos seus filhos.
Mas, afinal, como se financia um banco,
uma estação de correios, uma sociedade de
geografia e um instituto de vulcanologia, entre muitas outras actividades de faz-de-conta?
“A maioria das receitas de Molossia são enviadas por cidadãos convidados a trabalhar nos
EUA. Também fazemos algum dinheiro com
a venda de artigos turísticos. Desde o início
do ano já recebemos 30 turistas. Pode não
parecer muito, mas é um verdadeiro feito,
se tivermos em conta o tamanho e a localização da nossa nação, no deserto do Nevada”,
explica Baugh.
Da conversa com Sua Excelência, o Presidente de Molossia — ou, para sermos mais
correctos, Sua Excelência, o Presidente Grande Almirante Coronel Doutor Kevin Baugh,
Presidente de Molossia, Protector da Nação
e Guardião do Povo, como se pode ler no seu
site —, ficou uma promessa a Portugal. A inquietação justifica-se porque Molossia tem
uma armada (três barcos insufláveis), de que
Kevin Baugh é, de forma pouco surpreendente, chefe do estado-maior, e Portugal tem uma
CORTESIA ERIC LIS
das maiores zonas económicas exclusivas do
mundo.
“Envio calorosas felicitações do povo de
Molossia à nação e ao povo de Portugal. Um
sítio belíssimo, que espero visitar um dia.
Prometemos não violar as vossas águas territoriais.”
S
ão tantas as micronações espalhadas por esse mundo fora, que
o gigante dos guias turísticos, a
Lonely Planet, lançou um livro,
e Hollywood tem um filme na calha, com o originalíssimo título
provisório Micronações, em que o
actor Jack Black vai desempenhar
um papel inspirado no Presidente
de Molossia.
“Sim, o Jack Black, o [actor, realizador e
argumentista] Jared Hess e vários produtores
vieram cá fazer pesquisa para o filme, que é
inspirado em Molossia. Ele garantiu-me que
eu e a primeira-dama vamos ter um pequeno
papel no filme, por isso vamos chegar em breve ao cinema!” Embrulha, Vit Jedlicka e os 15
minutos de fama da tua Liberland.
Mas antes do filme, o livro: Micronations:
The Lonely Planet Guide to Home-Made Nations
foi publicado em 2006, por obra e graça dos
australianos John Ryan, George Dunford e
Simon Sellers.
Ryan, nascido em Melbourne há 44 anos
e formado em História da Arte e em Estudos
Cinematográficos, teve a ideia quando era
editor do site da Lonely Planet, influenciado
pela história de uma micronação australiana
chamada Província de Hutt River, fundada
em 1970.
“No início, apreciei o humor e a excentricidade do Príncipe Leonard [chefe de Estado
da micronação actualmente conhecida como
Principado de Hutt River], e a sua luta contra
o governo sobre as taxas aplicadas ao trigo.
À medida que fui crescendo, fui-me interessando cada vez mais pelos conceitos de soberania e Estado-nação, a partir do caso de
Hutt River. Eu sabia que aquilo não era realmente um país, mas não conseguia perceber
porquê. Então, comecei a encontrar cada vez
mais micronações em todo o mundo. Era um
movimento”, recorda o co-autor do guia da
Lonely Planet em conversa com a Revista 2.
(Sim, também há micronações em Portugal
— como o Reino Unido de Portugal e Algarves
—, mas nenhuma tem uma armada de barcos
insufláveis, nem opiniões públicas sobre a
cantora Kelly Clarkson.)
O primeiro obstáculo que John Ryan encontrou quando pensou em escrever um guia
sobre micronações foi, provavelmente, o mesmo com que muitos leitores se depararam
quando começaram a ler este texto: “Pensei
que era uma boa ideia, mas a maioria das
reacções foram de indiferença e mesmo de
confusão.”
Até que a ideia chegou ao colo de Roz Hopkins, que editara o sucesso The Travel Book na
Lonely Planet. “Ela percebeu a ideia imediatamente”, conta o autor do guia sobre micronações. “O único problema é que só me deu
quatro meses para escrever o livro. Por isso,
convidei dois amigos que partilham comigo o
interesse sobre micronações e o absurdo. Pesquisei e escolhi as nações, defini a estrutura do
livro e os três partilhámos a escrita. Foi mesmo
à justa, mas cumprimos o prazo.”
E qual será a mais fascinante das micronações, segundo a opinião de um especialista
certificado e autor publicado? A resposta surge sem hesitações, e poderia servir para fechar o círculo, se este texto acabasse aqui. “A
micronação mais deliciosa que eu encontrei
foi a República de Molossia, de Kevin Baugh.
Para mim, é o exemplo perfeito da natureza
bem-humorada e do espírito livre do melhor
que as micronações têm para oferecer. Ele é
muito divertido, mas está realmente a criar
o mundo em que quer viver. Por vezes, as
micronações resvalam para projectos de eremitas armados, com comportamentos libertários extremistas. Molossia — e muitas outras
micronações experimentais — é o oposto. No
geral, os líderes de micronações estão apenas
a divertir-se, mesmo que tenham sido espicaçados por algo que consideram ser uma
injustiça”, considera John Ryan.
O
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Eric Lis criou o Império Aericano em
criança, mas continua a alimentar o
seu mundo quase três décadas depois,
já como psiquiatra e investigador na
Universidade McGill, no Canadá. As
micronações foram também o tema
da mais famosa partida de 1 de Abril do
jornal britânico The Guardian — em 1977,
um suplemento sobre o arquipélago
imaginário San Serriffe ganhou vida
própria e ainda hoje é recordado
fenómeno das micronações
modernas levou um empurrão
estratosférico em meados da década de 1990, cortesia da Internet. Mas a ideia de construir um
país de faz-de-conta com alicerces no sentido de humor — seja
com território, apenas virtual,
ou imaginário — é muito mais
antiga do que a expressão “à
distância de um clique”. Em 1977, mais precisamente no dia 1 de Abril, o jornal britânico
The Guardian publicou um suplemento de
sete páginas sobre o arquipélago imaginário
de San Serriffe, constituído por duas ilhas em
forma de ponto e vírgula; e as repercussões
foram “muito além dos sonhos mais delirantes”, disse-nos um dos jornalistas que participaram na brincadeira.
Tim Radford, jornalista do Guardian durante 32 anos, onde foi editor das secções de
Artes, de Literatura e de Ciência, distinguido por quatro vezes como melhor jornalista
de Ciência britânico, recorda “o episódio de
San Serriffe como um dos momentos mais
felizes e privilegiados de uma longa carreira
no jornalismo”.
“A ideia inicial era que a ilha tivesse origens
espanholas, localizada no Atlântico, mas, depois de um terrível desastre aéreo nas ilhas
Canárias, a localização foi mudada à última
hora para o Índico, e os nomes dos colonizadores foram alterados para nomes portugueses.” Calma, caixa de comentários: “San
Serriffe não foi uma piada sobre Espanha ou
Portugal, mas sim sobre a Grã-Bretanha e os
britânicos”, explica o jornalista.
“A relação colonial portuguesa existia nas
nossas cabeças. Precisávamos de uma ideia
geral, um contexto simples para que os detalhes pudessem fazer sentido, e naquela época
todos nós tínhamos idade suficiente para nos
lembramos de Goa e Macau como territórios
portugueses”, justifica.
Resultado? Um dos correspondentes do
Guardian foi à BBC na qualidade de cônsul
britânico em San Serriffe desmentir “a lamentável cobertura jornalística” sobre o arquipélago; e poucas horas depois de o suplemento
ter chegado às bancas, o jornal recebeu uma
carta de um grupo auto-intitulado Frente de
Libertação de San Serriffe, conta o jornalista,
reformado há dez anos. “Os nossos leitores
entraram na brincadeira. Nas semanas seguintes, recebemos cartas de candidaturas à Universidade de San Serriffe, agentes de viagens
telefonaram-nos a perguntar se aquilo era
mesmo uma piada, e depois diziam com voz
pesarosa: ‘É pena, podíamos vender muitos
pacotes de viagens.’ Por essa altura, o Ministério da Administração Interna queria deportar
dois americanos, e um deles pediu para ser
deportado para San Serriffe. A deportação
foi adiada porque o Ministério dos Negócios
Estrangeiros teve de confirmar que não existia
nenhum sítio com aquele nome.”
Dez anos depois, do outro lado do Atlântico, no Canadá, um miúdo que frequentava a
escola primária teve também a ideia de criar
o seu próprio mundo. Mas a imaginação de
Eric Lis não ficou fechada num pequeno país
— preferiu pensar em grande, e assim nasceu
o Império Aericano (Aerican Empire no original, um trocadilho com “império americano”
e o primeiro nome do seu criador).
Mais dez anos passados, em 1997, e o Império Aericano aproveitava a boleia da Internet
para alargar os seus domínios.
Influenciado pelo humor dos Monty Python
e pelos filmes de Mel Brooks e do trio formado
por John Abrahms e os irmãos Zucker (Airplane, de 1980, ou Top Secret, de 1984), Eric foi
tornando o seu império cada vez mais “silly”,
chegando a reclamar soberania sobre uma
porção de território na Lua.
“Sem dúvida que houve períodos em que
tivemos mais elementos ficcionais. No final
da década de 1980 e na década de 1990, por
exemplo, assumimos a soberania de centenas
de planetas e tínhamos descrições detalhadas
de muitas raças sensíveis que habitavam neles.
Mas o coração do Império Aericano sempre
foi muito real para nós”, conta à Revista 2 Eric
Lis, agora na pele de psiquiatra com consultório próprio em Montréal, e investigador no
Centro Médico da Universidade McGill. Mais: o
homem que alimenta desde criança uma vida
paralela num império imaginário que nunca
saiu da Internet é director dos Laboratórios
de Percepções Psiquiátricas sobre Tecnologias
Emergentes, numa universidade que deu 12
Prémios Nobel ao mundo real, cinco deles na
categoria Psicologia ou Medicina.
Então, terá sido o psiquiatra uma criação
do miúdo com sonhos do tamanho de um
império? “É uma pergunta difícil. Fundei o
Império quando era muito jovem, na prática
fez sempre parte da minha vida. Diria que as
minhas experiências ensinaram-me a ter uma
mente aberta em relação ao que é e ao que
não é possível. Para além disso, como passei
a maior parte da minha vida a colaborar com
pessoas de diferentes culturas, com crenças
diferentes, percebi a riqueza do mundo em
que vivemos, e isso contribuiu sem dúvida
para o meu interesse sobre psicologia e, mais
tarde, sobre a psiquiatria”, reflecte Eric Lis.
Na Universidade McGill, o imperador Eric
estuda “a forma como as pessoas entendem,
usam e temem os avanços tecnológicos, em
particular as tecnologias de comunicação e
as redes sociais”, uma área de interesse que
admite ter resultado da sua própria experiência de “como a Internet teve um papel tão
importante” na sua vida — a tal ponto que o
seu laboratório está a preparar a realização
de estudos “sobre saúde mental e traços de
personalidade dos micronacionalistas”.
Eric tem noção de que algumas pessoas
olham para ele — e para o seu império de
faz-de-conta — e não conseguem ver para
além do excêntrico. Para ele, isso nunca foi
nem nunca será um problema: “A maioria
das pessoas tem uma visão muito redutora
do que faz sentido e do que não faz sentido,
e imagino que isso torna o mundo delas mais
aborrecido do que o meu. Contesto a ideia
de que uma coisa engraçada não pode ser
também séria, importante ou com significado. O maior problema deste mundo é que as
pessoas que estão no poder tendem a não ter
a capacidade para se rirem delas próprias e
das suas crenças.”
E se, ainda assim, alguém continuar a pensar que o imperador de faz-de-conta é doido,
o psiquiatra defende-o: “Tenho um emprego,
que adoro. Tenho amigos e família, que gostam
de mim e que me respeitam, e tenho mantido
relações amorosas duradouras. Segundo todas
as classificações de distúrbios psiquiátricos,
ninguém que cumpra todos estes requisitos
tem um problema de saúde mental.”
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