Quem é filósofo e quem não é?

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Quem é filósofo e quem não é?
Disciplina - Filosofia -
Quem é filósofo e quem não é?
Filosofia & Ciências
Enviado por: Visitante
Postado em:11/05/2009
Cada filósofo tem de pensar com as cabeças de seus antecessores, para poder compreender o
status quaestionis – o estado em que a questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro
abstratismo bocó, opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso.Saiba mais...
Quem é filósofo e quem não é Cada filósofo tem de pensar com as cabeças de seus antecessores,
para poder compreender o status quaestionis – o estado em que a questão chegou a ele. Fora
disso, toda discussão é puro abstratismo bocó, opinionismo gratuito, amadorismo presunçoso. À
medida que se espalha a consciência da debacle total das nossas universidades públicas e
privadas, cresce o número de brasileiros que, valentemente, buscam estudar em casa e adquirir por
esforço próprio aquilo que já compraram de um governo ladrão – ou de ladrões empresários de
ensino – e jamais receberam. Quase dez anos atrás a Fundação Odebrecht – no mais, uma
instituição admirável – me perguntou o que eu achava de uma campanha para cobrar do governo
um ensino de melhor qualidade. Respondi que era inútil. De vigaristas nada se pede nem se exige.
O melhor a fazer com o sistema de ensino era ignorá-lo. Se queriam prestar ao público um bom
serviço, acrescentei, que tratassem de ajudar os autodidatas, aquela parcela heróica da nossa
população que, de Machado de Assis a Mário Ferreira dos Santos, criou o melhor da nossa cultura
superior. O meio de ajudá-los era colocar ao seu alcance os recursos essenciais para a
auto-educação, que é, no fim das contas, a única educação que existe. Cheguei a conceber, para
isso, uma coleção de livros e DVDs que davam, para cada domínio especializado do conhecimento,
não só os elementos introdutórios indispensáveis, mas as fontes para o prosseguimento dos
estudos até um nível que superava de muito o que qualquer universidade brasileira poderia não só
oferecer, mas até mesmo imaginar. Minha sugestão foi gentilmente engavetada, e, com ou sem
campanha de cobrança, o ensino nacional continuou declinando até tornar-se aquilo que é hoje:
abuso intelectual de menores, exploração da boa-fé popular, crime organizado ou desorganizado.
Na mesma medida, o número de cartas desesperadas que me chegam pedindo ajuda pedagógica
multiplicou-se por dez, por cem e por mil, transcendendo minha capacidade de resposta,
forçando-me a inventar coisas como o programa True Outspeak, o Seminário de Filosofia Online e
outros projetos em andamento. E ainda não dou conta da demanda. As cartas continuam vindo, e o
pedido que mais se repete é o de uma bibliografia filosófica essencial. É pedido impossível. O
primeiro passo nessa ordem de estudos não é receber uma lista de livros, mas formá-la por iniciativa
própria, na base de tentativa e erro, até que o estudante desenvolva uma espécie de instinto seletivo
capaz de orientá-lo no labirinto das bibliotecas filosóficas. O que posso fazer, isto sim, é fornecer um
critério básico para você aprender a discernir à primeira vista, entre os autores que falam em nome
da filosofia, quais merecem atenção e quais seria melhor esquecer. Tive a sorte de adquirir esse
critério pelo exemplo vivo do meu professor, Pe. Stanislavs Ladusãns. Quando ele atacava um novo
problema filosófico – novo para os alunos, não para ele –, a primeira coisa que fazia era analisá-lo
segundo os métodos e pontos de vista dos filósofos que tinham tratado do assunto, em ordem
cronológica, incorporando o espírito de cada um e falando como se fosse um discípulo fiel, sem
contestar ou criticar nada. Feito isso com duas dúzias de filósofos, as contradições e dificuldades
apareciam por si mesmas, sem a menor intenção polêmica. Em seguida ele colocava em ordem
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essas dificuldades, analisando cada uma e por fim articulando, com os elementos mais sólidos
fornecidos pelos vários pensadores estudados, a solução que lhe parecia a melhor. A coisa era uma
delícia, para dizer o mínimo. Num relance, compreendíamos o sentido vivo daquilo que Aristóteles
pretendera ao afirmar que o exame dialético tem de começar pelo recenseamento das “opiniões dos
sábios” e tentar articular esse material como se fosse uma teoria única. Cada filósofo tem de pensar
com as cabeças de seus antecessores, para poder compreender o status quaestionis – o estado em
que a questão chegou a ele. Fora disso, toda discussão é puro abstratismo bocó, opinionismo
gratuito, amadorismo presunçoso. A conclusão imediata era a seguinte: a filosofia é uma tradição e
a filosofia é uma técnica. Chega-se ao domíno da técnica pela absorção ativa da tradição e
absorve-se a tradição praticando a técnica segundo as várias etapas do seu desenvolvimento
histórico. Note-se a imensa diferença que existe entre adquirir pura informação, por mais erudita que
seja, sobre as idéias de um filósofo, e levá-las à prática fielmente, como se fossem nossas, no
exame de problemas pelos quais sentimos um interesse genuíno e urgente. A primeira alternativa
mata os filósofos e os enterra num sepulcro elegante. A segunda os revive e os incorpora à nossa
consciência como se fossem papéis que representamos pessoalmente no grande teatro do
conhecimento. É a diferença entre museologia e tradição. Num museu pode-se conservar muitas
peças estranhas, relíquias de um passado incompreensível. Tradição vem do latim traditio, que
significa “trazer”, “entregar”. Tradição significa tornar o passado presente através da revivescência
das experiências interiores que lhe deram sentido. A tradição filosófica é a história das lutas pela
claridade do conhecimento, mas como o conhecimento é intrinsecamente temporal e histórico, não
se pode avançar nessa luta senão revivenciando as batalhas anteriores e trazendo-as para os
conflitos da atualidade. Muitas pessoas, levadas por um amor exagerado à sua independência de
opiniões (como se qualquer porcaria saída das suas cabeças fosse um tesouro), têm medo de
deixar-se influenciar pelos filósofos, e começam a discutir com eles desde a primeira linha, isto
quando já não entram na leitura armadas de uma impenetrável carapaça de prevenções. Com o Pe.
Ladusãns aprendíamos que, no conjunto, as influências se melhoram umas às outras e até as más
se tornam boas. Incorporadas à rede dialética, mesmo as cretinices filosóficas mais imperdoáveis
em aparência acabam se revelando úteis, como erros naturais que a inteligência tem de percorrer se
quer chegar a uma verdade densa, viva, e não apenas acertar a esmo generalidades vazias.
Algumas regras práticas decorrem dessas observações: 1. Quando você se defrontar com um
filósofo, em pessoa ou por escrito, verifique se ele se sente à vontade para raciocinar junto com os
filósofos do passado, mesmo aqueles dos quais “discorda”. A flexibilidade para incorporar
mentalmente os capítulos anteriores da evolução filosófica é a marca do filósofo genuíno, herdeiro
de Sócrates, Platão e Aristóteles. Quem não tem isso, mesmo que emita aqui e ali uma opinião
valiosa, não é um membro do grêmio: é um amador, na melhor das hipóteses um palpiteiro de
talento. Muitos se deixam aprisionar nesse estado atrofiado da inteligência por preguiça de estudar.
Outros, porque na juventude aderiram a tal ou qual corrente de pensamento e se tornaram
incapazes de absorver em profundidade todas as outras, até o ponto em que já nada podem
compreender nem mesmo da sua própria. Uma dessas doenças, ou ambas, eis tudo o que você
pode adquirir numa universidade brasileira. 2. Não estude filosofia por autores, mas por problemas.
Escolha os problemas que verdadeiramente lhe interessam, que lhe parecem vitais para a sua
orientação na vida, e vasculhe os dicionários e guias bibliográficos de filosofia em busca dos textos
clássicos que trataram do assunto. A formulação do problema vai mudar muitas vezes no curso da
pesquisa, mas isso é bom. Quando tiver selecionado uma quantidade razoável de textos
pertinentes, leia-os em ordem cronológica, buscando reconstituir mentalmente a história das
discussões a respeito. Se houver lacunas, volte à pesquisa e acrescente novos títulos à sua lista,
até compor um desenvolvimento histórico suficientemente contínuo. Depois classifique as várias
opiniões segundo seus pontos de concordância e discordância, procurando sempre averiguar onde
uma discordância aparente esconde um acordo profundo quanto às categorias essenciais em
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discussão. Feito isso, monte tudo de novo, já não em ordem histórica, mas lógica, como se fosse
uma hipótese filosófica única, ainda que insatisfatória e repleta de contradições internas. Então você
estará equipado para examinar o problema tal como ele aparece na sua experiência pessoal e,
confrontando-o com o legado da tradição, dar, se possível, sua própria contribuição original ao
debate. É assim que se faz, é assim que se estuda filosofia. O mais é amadorismo, beletrismo,
propaganda política, vaidade organizada, exploração do consumidor ou gasto ilícito de verbas
públicas. Fonte:
http://www.midiasemmascara.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=183:quem-e-fi
losofo-e-quem-nao-e&catid=3:educacao&Itemid=13
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