Dissertação de Mestrado - Laboratório de História das Relações

Transcrição

Dissertação de Mestrado - Laboratório de História das Relações
OFÍCIO CRIADOR:
INVENTO E PATENTE
DE MÁQUINA DE BENEFICIAR CAFÉ
NO BRASIL (1870-1910)
Luiz Cláudio M. Ribeiro
Dissertação de Mestrado em História
apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Antonio
Penalves Rocha.
OFÍCIO CRIADOR:
INVENTO E PATENTE DE MÁQUINA DE
BENEFICIAR CAFÉ
NO BRASIL (1870-1910)
Luiz Cláudio M. Ribeiro
FFLCH / USP
1995
dedicada a
Aracy Ribeiro Cabral e
Virginia M. Ribeiro (em memória)
OK.
AGRADECIMENTOS
Ao iniciar a pós-graduação em História Econômica entendi melhor por que
tantos colegas meus deixaram a carreira acadêmica a meio caminho: os parcos recursos
para fazer frente ao custo dos livros; as dificuldades em conciliar estudo e pesquisa com
as viagens semanais para as aulas na universidade e para o trabalho nos arquivos; o
pouco reconhecimento às carreiras das Ciências Humanas, no Brasil, etc., muita coisa
nos leva ao abandono dos projetos.
Neste momento de conclusão, penso nas dificuldades que precisei superar e
alegro-me por agradecer o apoio recebido a cada instante desses quatro anos.
O apoio institucional do CNPq tornou possível a freqüência às aulas e a
pesquisa nos primeiros dois anos e meio do curso. No último ano, a conclusão da
pesquisa e a preparação do texto deveram-se ao apoio que recebi da Capes através do
Núcleo de Gestão e Política de Ciência e Tecnologia da USP, que me acolheu como
pesquisador-bolsista.
Devo ao meu orientador, Antonio Penalves Rocha, a confiança e o incentivo
que recebi. Suas críticas francas e diretas e sua visão de mundo foram fundamentais para
que eu mantivesse meus pés no chão.
Durante a pesquisa no Rio de Janeiro e em São Paulo, principalmente, obtive
dos profissionais de documentação os melhores serviços. No Arquivo Nacional,
agradeço a Celina Coelho de Jesus, ao Sr. Elizeu, Maria Helena Lyra, a Carmen Moreno
e ainda a Silvia de Moura, Sátiro, Valéria e Mauro Lerner.
No Museu Paulista da USP, onde colaborei na identificação da Coleção Santos
Dumont, agradeço pela oportunidade da pesquisa ao Prof. Dr. Ulpiano Bezerra de
Menezes e à historiadora Solange Ferraz de Lima, com quem discuti o universo criador
de Dumont e a cultura material brasileira do século XIX.
No transcorrer do trabalho, as críticas e sugestões dos professores Geraldo
Beauclair (UFF/RJ), Vera Ferlini (USP/SP), Wilson Nascimento Barbosa (USP/SP) e
Hélio Nogueira da Cruz (USP/SP) muito me orientaram.
Nas horas de incertezas, tanto acadêmicas como pessoais, contei sempre com a
palavra amiga e sincera do professor Cezar Honorato. A ele e a Glória Tavares agradeço
ainda as acolhidas de meio de percurso que tornaram Niterói um lugar familiar para
mim.
No caminho entre Vitória, Rio e São Paulo, que tanto percorri nesses últimos
anos, recebi a solidariedade e o entusiasmo dos muitos amigos que tenho. Em São Paulo,
Gerlene Riegel Colares foi minha “hostess” costumaz; Vitor Tanezzi e Elizabeth Totini
apoiaram-me em todos os momentos. No Rio de Janeiro, Paula Ribeiro e Manfred
Broschart acolheram-me em sua casa, criando as condições necessárias para eu redigir
perto das fontes. Em Vitória, Maria Eliza Ribeiro e Orzeth Araújo acolheram-me quando
acabou a bolsa e começou o desemprego.
Além da amizade fraterna e da hospitalidade, Geraldo J. T. do Valle e Rosane
Biasotto ofereceram-me ajuda decisiva na crítica ao texto e na sua apresentação final.
Agradeço a eles, e também a Roberto Gonçalves Biasotto, pela ajuda que me prestaram
com os computadores.
Sei que não poderei dizer os nomes de todos os que me ajudaram a realizar este
trabalho. Que isso não seja traduzido por ingratidão. A cada momento recebi, como
numa maratona, uma palavra de conforto, um gesto de carinho, um grito de animação.
Na multidão que me empurrou para avante destaco as presenças amigas de Nilton
Augusto C. de Oliveira, Muniz Ferreira, Mânia Antarielle, Nilcéa e Rodrigo Riscado,
Sônia J. Bezerra, Hélio Ribeiro, Bernadeth Ribeiro e Ronaldo Santos, Terezinha Ribeiro
e Nilo P. Neto, Marcely Araújo, Tião Fonseca e Andréa Ramos, Margareth Salles, Lena
Krug, Diniz Pereira e Neide Moisés, Mara Vicente, e tantos outros. Obrigado pela ajuda!
Este trabalho, por certo imperfeito, é o melhor que posso apresentar.
Até aqui ele foi só meu. Agora é de todos nós!
OK.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 1
1. A VIDA NO EITO, 22
2. TRILHAS DO CAFÉ: DA TROPA DE BURRO AO VAPOR, 49
3. O BRASIL TOMA CAPRICHO: A CRIAÇÃO DAS LEIS DE
PATENTES, 87
4. BALÕES DE ENSAIO: AS LEIS DE PATENTES E A CRIAÇÃO
COMO OFÍCIO, 121
5. A EMPRESA DA CRIAÇÃO, 177
CONSIDERAÇÕES FINAIS, 212
ANEXO 1: LEI DE PATENTES DE 28 DE AGOSTO DE 1830, 218
ANEXO 2: LEI 3.129 DE 14 DE OUTUBRO DE 1882, 220
FONTES, 226
BIBLIOGRAFIA, 227
OK
INTRODUÇÃO
Os inventores terão a propriedade das suas descobertas ou das suas
produções. A lei lhes assegurará um privilégio exclusivo temporário, ou
lhes remunerará um ressarcimento pela perda que hajam de soffrer pela
vulgarisação. (Constituição Política do Império do Brasil, de 1824.)
Os inventos industriais pertencerão aos seus inventores, aos quaes ficará
garantido por lei um privilégio temporário, ou será concedido pelo
Congresso um prêmio razoável, quando haja conveniência de vulgarizar o
invento. (Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de
1891.)
A lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário
para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à
propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos
distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento
tecnológico e econômico do País. (Constituição do Brasil, de 1988)
A atual polêmica internacional em que o Brasil se envolve no campo dos
direitos de invenções industriais, que leva membros do Estado e parcela da
sociedade civil a tentar aprovar uma lei de patentes em conformidade com as
exigências de governos estrangeiros, recoloca na ordem do dia o “lugar”
designado ao Brasil na produção de ciência e tecnologia e, essencialmente, o grau
de seu desenvolvimento econômico-social no conjunto das nações soberanas.
Nesse sentido, este trabalho foi realizado visando a contribuir para
dinamizar uma reflexão acerca do papel da atividade inventiva na história da
tecnologia no Brasil, com ênfase na economia cafeeira do Sudeste, no período
entre 1870 e 1910.
Pretende-se aqui apresentar a todos que se deixem atrair pelo estudo de
invenções e patentes industriais uma das inúmeras possibilidades de interpretação
do processo econômico e social do Brasil no século XIX, a partir do exame do
valioso acervo de processos de privilégios industriais que oportunamente o
Arquivo Nacional abre à consulta do seu público.
Este estudo pautou-se nos métodos da História para localizar uma “matriz
tecnológica” no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX e início do
2
século XX, quando os interesses e valores da economia agroexportadora cafeeira
predominaram nas principais instituições nacionais.
Assim, a estrutura do complexo cafeeiro brasileiro e suas injunções a
partir das transformações de sua base produtiva no período colocam-se em
questão.
O café popularizou-se nas grandes cidades ilustradas da Europa graças à
abertura de lugares públicos especializados em saboreá-lo.
Sabe-se que essa bebida exótica entrou na Itália pelo porto de Veneza, em
torno de 1624. Na França, a novidade chegou pelo porto de Marselha, em 1659.
Em 1689 era aberto em Paris o célebre Café Procope, que se tornou ponto de
reunião de artistas, políticos, intelectuais e outras celebridades da época.
Londres sucumbiu ao sabor estimulante do café próximo a 1650, quando
este se tornou tão popular que ameaçou os bons costumes ingleses ao ponto de as
senhoras reclamarem ao rei Carlos II contra as idas de seus maridos aos cafés.
Segundo elas imaginavam, tratava-se de pretextos para que eles se afastassem dos
lares, desregrando-se moralmente.1
De forma análoga, o hábito de consumir café penetrou nos demais países
europeus. Crescia também o interesse dos homens de negócios em expandir o seu
consumo, visando aos lucros de sua comercialização.
As mudas importadas do Oriente foram aclimatadas no Jardim Botânico
de Amsterdã, em 1706, e depois repassadas ao Jardim das Plantas de Paris, em
1714. Daí, o café chegaria às Américas e às demais possessões holandesas, para
ser aclimatado e produzido.
No Brasil, a versão mais aceita sobre os primeiros grãos trazidos indica
ter partido do governo do estado do Maranhão e Grão-Pará a missão de,
furtivamente, espionar o plantio e roubar mudas e sementes de café da Guiana
Francesa, em 1727. Tal versão é reforçada pelo documento que Basílio de
3
Magalhães apresentou, com as instruções do capitão-general João da Maia da
Gama ao sargento-mor Francisco Palheta:
O dito cabo, que há de levar a carta [ao governador de
Caiena], poderá ser o capitão João da Mata, se embarcar
nesta ocasião ou o capitão reformado José Mendes e, a
qualquer deles que for, recomendará que por toda a costa de
Vicente Pinzón para lá examine toda fortificação ou
povoação que os franceses fizerem de novo de Caiena até o
rio de Vicente Pinzón, vendo e observando com cautela, com
pretexto de não saber a costa e querer tirar notícias para
seguir viagem a Caiena e levar as ditas cartas e em tudo
procederá com todo o cuidado e vigilância, "se acaso entrar
em quintal ou jardim ou roça aonde houver café, com
pretexto de provar alguma fruta, verá se pode esconder algum
par de grãos com todo o disfarce e com toda a cautela" e
recomendará ao dito cabo que volte com toda a brevidade e
"que não tome coisa nenhuma fiada aos franceses, nem trate
com eles negócio”.2
Por volta de 1750, o café já era colhido no norte do país, de onde
espalhou-se pelas demais capitanias.3 No Brasil, o café encontrou um método
próprio de aclimatação e de cultura, que transformou o país no maior fornecedor
mundial, em meados do século XIX.
A cultura do cafeeiro foi trazida para a cidade do Rio de Janeiro por volta
de 1770, desenvolvendo-se pelos arredores da cidade. Mudas e sementes foram
levadas da chácara de Barbonos, de Mata-porcos e da fazenda Mendanha, na
região de Campo Grande, para todo o Sudeste e para muitas províncias
nordestinas.4
No território fluminense, até meados do século XIX, as áreas do vale do
Paraíba do Sul5 eram ocupadas por indígenas ou posseiros com plantações e
criações variadas, geralmente destinadas ao consumo doméstico e aos mercados
locais. Aos poucos, essas propriedades foram sendo tomadas aos nativos pelos
fazendeiros, muitos dos quais oriundos da região de mineração, em fase de
refluxo econômico.
4
Em Valença, província fluminense,
Os fazendeiros interessados na expansão da cultura do café e
na apropriação das terras já cultivadas pelos posseiros (que
haviam derrubado a mata, plantado cafezais, construído
casas, moinhos, etc.) entravam com processos judiciais
procurando expulsar os 'intrusos'. Esses processos recebem
várias denominações como: 'Ação de medição de
demarcação', 'Medição e tombo de Sesmaria', 'Processo de
Aviventação de marcos'. Nos dois primeiros tipos de
processo, as sesmarias após serem doadas deveriam ser
confirmadas e para isso precisavam passar pelo processo de
medição e demarcação judicial. Feita a medição, o dono da
sesmaria constatava a presença de posseiros dentro de seus
limites. Requeria então ao juiz, por um processo denominado
'Execução' a expulsão dos posseiros. A 'Aviventação de
marcos' constava de uma nova medição para recolocar os
marcos desaparecidos. Porém, deveria repetir os limites da
medição anterior, o que nem sempre acontecia. Muitas vezes,
nesta segunda medição, os marcos eram colocados além dos
limites verdadeiros, invadindo terras de sitiantes ali
estabelecidos.6
Com a expulsão dos ocupantes nativos, a lavoura de café expandiu-se na
porção norte do vale do Paraíba fluminense, atingindo áreas extensas de Minas
Gerais. Lá, desde 1851, já se notavam lavouras plenamente implantadas na Zona
da Mata, nos municípios de Presídio do Rio Preto, Santo Antônio do Paraibuna,
Barbacena e Mar de Espanha; em Leopoldina, Ubá e Muriaé.7
À medida em que os cafezais eram implantados em grande escala na
província fluminense, na segunda metade do século XIX, grandes fazendeiros
fluminenses e mineiros ultrapassavam os limites do Paraíba, avançando para além
do seu vale. Daí alcançariam as terras férteis do sul capixaba.
A província do Espírito Santo era parcamente povoada, até meados do
século XIX. Lá o café chegara desde antes de 1811, quando foi plantado em
pequena escala nos quintais de Vitória, em substituição à mamona.8 Com a
implantação de fazendas cafeeiras escravistas na província, na segunda metade do
século XIX, foi criada uma infra-estrutura agrária voltada para a produção de café
destinado à exportação pelo porto do Rio de Janeiro.9
5
A expansão das lavouras de café fluminenses para a província capixaba
está manifesta no anúncio publicado no Jornal do Commércio, em 1873:
Escravo Fugido 200$000
Fugio no dia 21 de agosto passado, da fazenda de S.
Francisco do Rio Alegre, em Itapemirim, província do
Espírito Santo, pertencente ao Commendador Felício Augusto
de Lacerda, o escravo de nome Adão Pinheiro, crioulo, de côr
preta (...). Foi escravo de Manoel Pinheiro de Souza
Sobrinho, outr’ora morador em Valença; suppõe-se ter
seguido para esse lugar ou para Minas. Protesta-se contra
quem o tenha acoutado.
Receberá a gratificação acima quem o apprehender, e levá-lo
à sobredita fazenda, ou a seu senhor o commendador Felício
Augusto de Lacerda, no Paty do Alferes, ou na côrte, à rua da
Quitanda, n. 78...10
Na província de São Paulo, a lavoura cafeeira teve início nas fazendas ao
norte do vale do rio Paraíba, expandindo-se após atingir a região de Campinas.
Aos poucos, as antigas lavouras foram sendo substituídas por cafezais e outras
culturas.
Recorrendo a Oswaldo Truzzi pode-se entender a ocupação das terras da
região de São Carlos:
[...] difícil determinar com exatidão a época em que os
proprietários de terra resolveram organizar suas fazendas,
levando à nucleação de alguma atividade econômica na
região de São Carlos de forma a sobrepujar o mero
movimento de apropriação de terras com fins inteiramente
especulativos.
[...] um pouco antes de 1856, data da fundação de São
Carlos, nada mais havia na região além de fazendas
localizadas numa zona pioneira, tocadas ao braço escravo,
que lidavam com a criação de alguns bovinos e suínos, bem
como um incipiente cultivo de cana-de-açúcar. O núcleo mais
próximo era Araraquara, onde as primeiras casas já haviam
surgido quatro décadas antes, mas que muito pouco
progredira. Em São Carlos, o primeiro agregado de ranchos
6
de madeira cobertos de palha se distribuiu em torno da
capela erigida pelos proprietários da sesmaria do Pinhal.11
A expansão dos cafezais induziu e beneficiou-se das ferrovias construídas
na província paulista, principalmente a Mogiana e a Paulista, que levavam
equipamentos, mão-de-obra e víveres para o interior, e escoavam o café.
No Brasil, os fazendeiros de café, podendo dispor de extensões fabulosas
de terras, quer nos primórdios quer na época dos cafezais já consolidados,
optaram pelo método indígena — ou coivara — na preparação do campo.12 Esse
método era indicado para pequenas lavouras de subsistência, devido ao poderoso
impacto de devastação. Por isso não era indicado para áreas destinadas aos
cafezais, que demandavam grandes extensões de terras.
Porém, a historiografia econômica brasileira, desde a dedicada ao Brasilcolônia até aquela voltada para o século XIX, pouca atenção tem dado às técnicas
de plantio e preparo dos produtos agrícolas.
Na maioria das obras, as atividades agrícolas nacionais aparecem
reduzidas à descrição do plantio e colheita dos produtos, sem considerações sobre
a problemática tecnológica do preparo e beneficiamento que permeia suas
relações de produção.
Sobretudo quanto à produção do café, existem trabalhos importantes
enfatizando o papel desempenhado pelas ferrovias na penetração das lavouras no
Rio de Janeiro e, principalmente, em São Paulo.13 Outros, como o de Prado Jr.,
marcaram o problema da exaustão das terras do vale do rio Paraíba fluminense na
segunda metade do século XIX, e a importância da terra roxa na ocupação do
Oeste Paulista.14 Mas, desde Taunay15, poucos autores analisaram o papel
desempenhado pelas máquinas de beneficiar café.
De forma pioneira, Stanley Stein16 e Emília V. da Costa17 descreveram a
estrutura fundiária e econômica que se formou com o estabelecimento da
7
"civilização do café" no Brasil. Baseado numa suposta decadência da lavoura
cafeeira do Rio de Janeiro, o primeiro autor tratou a produção cafeeira sob uma
perspectiva local (Vassouras: a brazilian coffee county foi o título original de sua
obra). Costa tratou a questão de forma oposta, numa perspectiva de análise muito
mais abrangente sobre a cafeicultura em São Paulo.
Para ambos, a decadência fluminense é devida, sobretudo, ao
“esgotamento” das terras fluminenses, o que possibilitou o rompimento do
escravismo e do modelo monárquico do país.
A historiografia brasileira pouco tem avançado nessa perspectiva, que
destaca uma oposição entre a região cafeeira “tradicional” (fluminense) e a região
“dinâmica” (paulista). Sem considerar os aspectos estruturais mais gerais, tal
concepção teórica reforça a idéia de que houve um confronto em que a
cafeicultura paulista teria sido vitoriosa, eliminando do país os elementos do
atraso: a escravidão e a monarquia.18
Tendo como perspectiva a estrutura financeira do Segundo Reinado, Levy
alertou contra esse enfoque, não deixando de esclarecer que
Até mesmo o estereótipo da lavoura cafeeira escravista
decadente vem adquirindo nuances a partir de novas
pesquisas que ressaltam a expansão da produção de
Cantagalo, mesmo depois da Abolição, além do surgimento
em Itaperuna, Pádua e Cambuci, no norte fluminense, de
novas áreas de cultivo já baseadas no trabalho livre.19
Também Fragoso, em trabalho mais recente, chamou a atenção para o
perigo das interpretações generalizantes da decadência da cafeicultura
fluminense, alertando ter sido este um fenômeno regional “circunscrito a algumas
áreas” e não algo com que se possa generalizar para a antiga província.20
Silva21 e Beauclair22 buscaram investigar a “gênese industrial do Brasil”.
O segundo destaca que
8
a maneira como foi estudado o organismo “primário
exportador” (e suas relações com o “resto” do universo
brasileiro) [...] levou [...] os estudos atinentes à economia de
exportação a um grau de exclusividade tal a ponto de
encobrir a totalidade do aparelho produtivo, mostrando
apenas suas peças fundamentais.23
Em obra anterior, Beauclair já havia demonstrado o desenvolvimento de
diversas manufaturas de produtos naturais (velas, chapéus, cal de mariscos, etc.)
no Rio de Janeiro, e de uma “pré-indústria” nos ramos naval, metalúrgico e têxtil
que conjugava a mão-de-obra livre e escrava, ocupando-se, até 1860, apenas da
demanda interna. Entretanto, mesmo esse estudo não tratou da questão das
técnicas.24
A despeito do que foi publicado sob a perspectiva da oposição
decadência/modernização da cafeicultura,25 muito ainda resta a ser esclarecido.
Primeiro, qual o papel das demais províncias — após 1889, estados — cafeeiras, a
exemplo de Minas e Espírito Santo, como agentes históricos desse processo?
Segundo, de que forma os métodos agrícolas modernos utilizados na
cafeicultura escravista paulista diferenciaram-se daqueles postos em prática pelos
“atrasados”? Refletir sobre tais questões facilitaria o entendimento do problema
do esgotamento das terras cafeeiras para além da província fluminense.
Como a historiografia ainda resiste a aceitar uma convivência entre
existência da escravidão e avanço tecnológico,26 subestima-se, ao que parece, um
domínio relativo de conhecimentos científicos e modernização na indústria
mecânica articulados à cafeicultura no país, no século XIX.
No extremo, pode ocorrer uma aceitação de que, na lavoura do café, a
prática da derrubada e queimada das matas — que fatalmente conduz ao
“esgotamento” do solo — era a única possível, já que o país ainda não despertara
para as luzes científicas e industriais que irradiavam o mundo.
9
Essa compreensão sobre o processo econômico e social brasileiro
justificou, em parte, o modelo de devastação florestal que foi desencadeado nas
fazendas cafeeiras no período em questão neste trabalho. Quanto a essa temática,
produziu-se a respeito do Brasil da segunda metade do século XIX uma história
fortemente justificante que — com honrosas exceções — desconsiderou a
necessidade de buscar uma compreensão mais ampla sobre as técnicas e a
tecnologia relacionadas ao café brasileiro, capaz de relacionar os processos
agrícolas e industriais aqui utilizados com aqueles empregados em outras partes
do mundo.
Ao comentar a importância para o capitalismo dos métodos e processos
produtivos na passagem da manufatura para a maquinofatura, Marx destacou a
oportunidade do surgimento do que chamou “uma história crítica da tecnologia”:
Darwin interessou-se na história da tecnologia natural, na
formação dos órgãos das plantas e dos animais como
instrumentos de produção necessários à vida das plantas e
dos animais. Não merece igual atenção a história da
formação dos órgãos produtivos do homem social, que
constituem a base material de toda organização social?27
Marx reivindicava conhecer melhor o que em seu tempo empolgava as
multidões: a evolução do conhecimento científico até ser incorporado em objetos
concretos, num realismo que alterava a noção de espaço, tempo, velocidade...
Diante de si Marx via a ciência ser utilizada para produzir em massa,
multiplicar as forças, transformar as cidades num “mar de chaminés”, enquanto
trens de ferro desenhavam alegorias “fantasmagóricas” na paisagem dos campos.
A Europa finalmente dava o salto maior à frente das civilizações
humanas. A materialização da Ciência lhe possibilitava e justificava um domínio
irresistível sobre os demais povos do planeta. Em breve, passaria a organizar
10
exposições universais, espécies de vitrina do homem civilizado, de onde
emanavam para o mundo os valores transformadores da sociedade industrial.
Ao mesmo tempo, o Brasil contava com inúmeras associações e órgãos de
imprensa, a exemplo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (Sain) e seu
folhetim. Na época, O Auxiliador da Indústria Nacional já divulgava os métodos
e procedimentos mais adequados e modernos do ponto de vista econômico,
agrícola e tecnológico.
No meio rural, os maiores fazendeiros brasileiros eram, em grande parte,
homens acostumados às lides das campanhas políticas e do mundo dos negócios;
portanto, pertencentes ao que julgavam ser o mundo civilizado. Veja-se a
Campinas dos anos 1860, através da descrição de Zaluar:
Existem aqui duas escolas públicas de primeiras letras, uma
secundária e cinco particulares de instrução secundária,
sendo uma de cada sexo; representando o número total dos
alunos de todas essas aulas, do sexo masculino duzentos e
quarenta e do feminino cento e vinte educandas. Além dessas
casas de ensino a maior parte dos fazendeiros paga mestres
para educar seus filhos, e um bom número de jovens
campineiros freqüenta atualmente em São Paulo as aulas da
Faculdade de Direito [...] 28
O mesmo ambiente cultural também marcava Resende, quando os filhos
dos fazendeiros estudavam na Corte ou na Europa e
a elite intelectual, embora reduzida, buscava divulgar as
novas idéias trazidas de fora através da imprensa. José
Pereira Barreto, por exemplo, foi o introdutor em Resende do
Catecismo do agricultor, de Burlamaque, um dos mais
considerados manuais da agricultura da época. Sendo um dos
articulistas do jornal O Itatiaia, procurava estimular a leitura
de publicações especializadas que recebia dos Estados
Unidos, como o Agriculturalist e o Scientific American. Seu
irmão, Luís Pereira Barreto, formado em medicina e ciências
naturais na Bélgica, na década de 1860, foi o responsável
pela introdução do café tipo Bourbon no oeste paulista,
espécie desenvolvida por ele a partir de suas experiências.29
11
No entanto, considerando a derrubada das florestas nativas a única forma
que os fazendeiros conheciam para a implantar os cafezais, Costa afirmou que
a mata tropical, de sub-bosque denso, cheia de liames
intrincados, de árvores frondosas, precisava ser derrubada.
Esse era um trabalho rude e penoso, principalmente numa
época em que só se dispunha de machados e foices. Depois, o
preparo da terra, o plantio, as construções, as carpas, as
roças onde se cultivava o necessário para o sustento das
fazendas, o trato dos animais...
[...] as primeiras regiões onde se abriram fazendas eram de
pequena densidade demográfica... Impossível recorrer,
portanto, à mão-de-obra local. Os fazendeiros precisavam
trazer consigo os trabalhadores para as suas fazendas. Onde
buscá-los?
[...] A solução parecia clara e única: utilizar o escravo.30
O objetivo dos fazendeiros, ao ocuparem sesmarias há muito apropriadas
em estado natural, era obter maiores lucros, aproveitando-se do mercado
promissor que o café representava. Nesse caso, o utilização do escravo não era
somente a melhor alternativa, mas condição primordial de garantia para que o
fazendeiro obtivesse empréstimos para o estabelecimento das fazendas e para o
plantio dos novos cafezais. A terra era um bem secundário para o fazendeiro de
café, e seu valor estava exatamente na extensão de florestas nativas a derrubar.
Como mostrou Burlamaque, citando José Bonifácio de Andrada e Silva, a
devastação de florestas já era criticada desde o início do século XIX:
[...] se os senhores de terras [...] não tivessem uma multidão
demasiada de escravos, eles mesmos aproveitariam terras já
abertas e livres de matos que hoje jazem abandonadas como
maninhas. Nossas matas preciosas em madeiras de
construção civil e náutica não seriam destruídas pelo
machado assassino do negro e pelas chamas devastadoras da
ignorância. Os cumes das nossas serras, fontes perenes de
umidade e fertilidade para as terras baixas e de circulação
12
elétrica, não estariam escalvados e tostados pelos ardentes
raios do nosso clima. É, pois, evidente que se a agricultura se
fizer com os braços livres dos pequenos proprietários ou por
jornaleiros, por necessidade e interesse serão aproveitadas
essas terras [...] e, deste modo, se conservarão como herança
sagrada para a nossa posteridade as antigas matas virgens,
que pela sua frondosidade caracterizam o nosso belo país.31
Em 1860, Ribeyrolles anotou, perplexo, que
[os fazendeiros] [...] acreditarão que nada perdem,
entregando a floresta às chamas? [...] Devastando por tal
forma os lavradores roubam-se a si mesmos. Deveriam
compreender que há todo o interêsse em nada desperdiçar, e
renovar a terra que se esgota depressa [...] 32
A problemática do desenvolvimento científico e material aparece nos
trabalhos dos historiadores econômicos ingleses que analisaram a Revolução
Industrial, principalmente Hobsbawn33 e Landes34. No entanto, esses estudiosos
acentuam a premência por estudos mais aprofundados sobre o tema:
[...] hacia las últimas décadas del siglo XIX, el avance
tecnológico dentro de las antiguas industrias se producía en
un frente tan amplio que la tarea del historiador resulta
enormemente complicada. Y, a su vez, esto explica por qué
este tema ha sido tan descuidado.35
A importância dos trabalhos desses autores aumenta à medida que
destacam, no processo da Revolução Industrial, as circunstâncias da evolução de
setores básicos da produção industrial, como o de metalurgia, química, energia,
indústria de máquinas, etc., em relação às condições gerais de sua produção e de
seu desenvolvimento nas sociedades capitalistas.
A partir da historiografia econômica e das análises de Marx, Schumpeter
e Usher, o historiador Nathan Rosenberg estudou a formação da indústria de
13
máquinas nos Estados Unidos da América ainda escravista, concluindo que
naquele país, até os anos de 1820, as máquinas eram em geral toscas e produzidas
no local de trabalho pelo próprio usuário.
Para Rosenberg, o surgimento de fábricas de máquinas nos Estados
Unidos da América caracterizou o episódio maior da industrialização do país, na
medida em que as firmas surgidas devotaram-se à resolução de problemas
técnicos específicos, respondendo com a oferta de máquinas-ferramentas de uso
geral — tornos, fresas etc. —, entre 1840 e 1880.
Tal produção ter-se-ia iniciado primeiramente nas fábricas de panos, de
onde as firmas produtoras de máquinas percorreram outros ramos industriais —
máquina a vapor, turbinas, moinhos — até se especializarem em máquinas para
fabricar máquinas, impulsionando o desenvolvimento do complexo industrial
norte-americano.36
Em relação ao Brasil, analisar os discursos e as notícias publicadas na
imprensa diária do Rio de Janeiro e de São Paulo e em O Auxiliador da Indústria
Nacional, é deparar com uma intensa campanha pela mecanização das fazendas
promovida pela Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (Sain), nas décadas
de 1870 e 1880.37
Silva, que se voltou para uma investigação mais crítica da Sain, afirma
que, nela,
[...] sempre esteve presente a idéia de que, para concretizar o
progresso, era necessário racionalizar o trabalho social,
fonte de “riqueza”. ...Nessa racionalização das forças
produtivas... a utilização ...de maquinismo era fundamental.38
A farta documentação no Arquivo Nacional relacionada aos processos de
concessão de privilégios industriais a nacionais e estrangeiros, pessoas físicas e
empresas, vinculados ao negócio do beneficiamento do café, entre 1873 e 1910,
14
demonstrou ser de muita riqueza pelo detalhamento dos inventos. Esse acervo
poderá, sem dúvida, muito contribuir para que também se elucidem vários
aspectos da evolução material do Brasil.
E quais eram esses inventos?
Para melhor entendê-los, deve-se pensar no processamento industrial do
café. O processo de preparação do café para o consumo, no período desse estudo,
pode ser dividido em cinco fases: agrícola, preparatória, de beneficiamento,
industrial e comercial. Assim, na primeira fase estão as ferramentas agrícolas, as
esteiras de colheita, as peneiras e os carrinhos de transporte.
Na seguinte, os aparelhos lavadores, os classificadores, os despolpadores
e os secadores. A fase de beneficiamento inclui os descascadores, os ventiladores
e os separadores. A industrial, os brunidores e ensacadores; e, na fase comercial,
estão os torrefadores, os moinhos e as cafeteiras para a decocção do café.
Entretanto, muitas máquinas queimavam etapas, fazendo sozinhas várias
operações. O processo como um todo era chamado benefício ou beneficiamento
do café.39
Em condições ideais, todo o processo de preparação industrial do café
consistia na eliminação sucessiva das camadas que envolvem as sementes do
fruto, deixando-as em condição de serem torradas e moídas.
No período em questão inexistia ainda qualquer processo definido quanto
à forma de beneficiar o café. Em vista disso, havia uma polêmica entre os
cafeicultores e as agências importadoras sobre os preços pagos e sobre a aceitação
do produto no exterior.
Essas agências também criticavam o métodos brasileiros de benefício do
café, responsabilizando-os por deixá-lo com mau cheiro e péssimo paladar. Sua
maior queixa, do ponto de vista técnico, era a de que, na falta do secador
mecânico, o café era deixado exposto ao sol, no terreiro, para secar e ventilar, o
que não ocorria quando havia chuva ou muita umidade no ar, provocando a
15
fermentação do produto por tempo demasiado e, conseqüentemente, o seu
apodrecimento antes que a polpa pudesse ser retirada.
Tudo isso estaria levando o café brasileiro a ser visto como inferior nos
principais mercados, num momento em que produtores como Java, Ceilão, Costa
Rica e México já produziam café, em menores quantidades, mas de qualidade
superior, que era consumido nos principais centros europeus, enquanto o
brasileiro era reexportado para mercados menos exigentes.
Mais voltado para os cafeicultores, após constatar os avanços obtidos por
outros países na produção e na qualidade do café na Feira Universal da Filadélfia,
em 1876, o presidente da Sain, Dr. Nicolau J. Moreira, tentou alertá-los:
[...] se desmerecerem seus produtos, se não cultivarem e
beneficiarem o café, segundo as exigências do progresso,
muitos mercados se retrairão, e de outros seremos excluídos
pelas nações que se preparam para conosco competir.40
A preocupação crescia a cada exposição universal de que o Brasil
participava. Apesar dos prêmios e menções honrosas que alguns produtores
brasileiros levantavam, ficava evidente a evolução da qualidade do café produzido
em outros países, enquanto no Brasil acentuava-se a variedade de métodos de
benefício. Tal preocupação era também associada pelos contemporâneos ao
problema da mão-de-obra para a lavoura e à falta de um projeto definido para a
imigração.
Com vistas nessa problemática, este estudo utilizou como fontes
primárias os processos de concessão de privilégios industriais registrados na
Diretoria do Commércio do Ministério da Agricultura, Commércio e Obras
Públicas no Império e do Ministério da Agricultura, Indústria e Commércio na
República. Tais processos são formados pelos memoriais e projetos de máquinas
16
preparados pelos próprios inventores, e encaminhados por aquele ministério à
apreciação da Sain.
Os pareceres sobre a concessão de privilégio industrial emitidos pela
Seção de Máquinas e Aparelhos eram apreciados pela assembléia da Sain e
publicados em O Auxiliador da Indústria Nacional. Esse periódico foi analisado
de 1870 até 1892, ano de encerramento da publicação.41
Em O Auxiliador da Indústria Nacional atentou-se para os pareceres
sobre as petições e para o conteúdo técnico das invenções, a divulgação de
demonstrações realizadas com máquinas perante o público etc.
Dessa maneira, os processos de concessão de privilégios industriais para a
produção de invenções relativas ao trato do café surgem como um indício do
esforço brasileiro para a atualização tecnológica do país, seguindo a tendência
mundial das sociedades capitalistas no século XIX.42
O corte cronológico deveu-se ao fato imperativo de o Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro ter recolhido o acervo dos processos com datas-limite entre
1873 e 1910.
O período coincide com aquele em que, ao que parece, ocorreu um surto
de invenções e aperfeiçoamentos levados a termo por inventores nacionais ou
estrangeiros residentes visando a capacitar a produção do principal produto de
exportação do Brasil dentro de duas circunstâncias iminentes: a) o fim da
escravidão e a expansão do consumo mundial do café e, b) a concorrência de
outros países produtores.
Por isso, para uma melhor análise dos processos de privilégios industriais
e do conteúdo de O Auxiliador..., realizou-se também pesquisa nos periódicos
Jornal do Commércio e Correio Paulistano, ambos de grande circulação na
região cafeeira. O método para a pesquisa dos periódicos foi baseado na Tabela de
Números Fortuitos, apresentada na obra clássica de Cardoso e Brignoli.43
17
A pesquisa foi informatizada e os registros foram sistematizados segundo
o contexto de produção para consumo interno e externo do café, verificando os
pontos em que os inventos e aperfeiçoamentos se relacionavam.
Em seguida, foi feita uma classificação tipológica das invenções e
aperfeiçoamentos das máquinas de beneficiamento de café, isolando os grupos de
secadores, lavadores, despolpadores, ventiladores, brunidores, catadores, etc. Esse
procedimento permitiu analisar como as invenções e aperfeiçoamentos foram
atingindo, individualmente, um grau maior de complexidade, a partir da produção
de cada inventor.
Conceitualmente, quanto a uma definição apriorística do que se entende
por invenção, inovação e patente, a pesquisa foi orientada de acordo com a
proposição de Cruz e Tavares:
Invenção é a primeira idéia, esboço, plano de um novo
produto, processo ou sistema, o qual pode ou não ser
patenteado. Inovação é a primeira introdução de um novo
produto, processo ou sistema, na atividade econômica ou
social. Patente é um instrumento legal de defesa do autor de
um novo produto, processo ou sistema que lhe garante
exclusividade (temporária) de uso.44
Os memoriais dos autores e os dados levantados através dos periódicos
Jornal do Commércio e Correio Paulistano entre 1873 e 1910 foram reunidos
buscando-se em cada invento aquilo que caracterizou seu ineditismo para aqueles
que viveram a época, a parte mecânica que determinava ser uma invenção original
ou um aperfeiçoamento, diferenciando-o dos demais já patenteados. Essa análise
possibilitou entender de que forma as invenções e melhoramentos registrados no
Brasil assimilavam as inovações mecânicas em geral desenvolvidas no exterior e
aqui difundidas ou eram desenvolvidas internamente.
O primeiro capítulo trata do modo de estabelecimento da fazenda
cafeeira. Ao adquirir a terra, o fazendeiro visava de imediato à data em que a
18
primeira safra de café deveria estar no porto de embarque. Por isso, aprofundava a
exploração da mão-de-obra escrava e da livre — nacional ou imigrante — e
escolhia, em geral, a derrubada e a queimada da cobertura florestal a fim de
aproveitar-se da fertilidade nativa dos solos. Este método de insolação teria sido
fator de especial importância na ruína dos solos e na expansão da fronteira
cafeeira, provocando reflexos na oferta de café no mercado mundial.
A seção seguinte apresenta uma análise do processo de formação da infraestrutura de escoamento do café da fazenda até o porto de mar. Desde a vinda da
Corte portuguesa, o Estado buscou construir vias de transporte como forma de
incrementar o surgimento de atividades econômicas no território brasileiro. Com
tal política, o país foi dotado de leis que permitiram a incorporação das
tecnologias emergentes no setor de construção civil e, com a utilização industrial
da máquina a vapor, a implantação de uma malha ferroviária. Dentro desse
quadro, discute-se no segundo capítulo a maneira como a economia cafeeira do
Sudeste brasileiro beneficiou-se de meios modernos de comunicação e transporte
para expandir-se.
No terceiro capítulo são analisadas as leis de patentes de 1830 e de 1882 e
o papel relevante da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (Sain),
permeando os interesses de uma parcela da sociedade civil nos interesses do
Estado. Baseado nos pareceres da Secção de Machinas e Apparelhos da Sain, o
governo imperial — e também o do início da República — acatava as petições de
privilégios industriais dos inventores brasileiros e estrangeiros, assegurando-lhes
a proteção da lei. As leis de patentes permitiam àquela Secção uma atuação direta
na política de patenteamento, o que estimulou a formação de um setor produtor de
máquinas para o beneficiamento de café no Brasil.
O quarto capítulo aborda a produção de inventos e aperfeiçoamentos de
máquinas de beneficiar o café. A partir da ampliação da cafeicultura e da proteção
à propriedade industrial garantida pela Lei de Patentes de 1830, surgiu no Brasil
19
um grupo de inventores-empresários que se dedicaram a desenvolver e
aperfeiçoar equipamentos destinados à fazenda de café. Nesse grupo, indivíduos e
empresas destacaram-se como fabricantes que ofereceram as inovações às
fazendas de café, marcando a primeira fase dessa indústria no Brasil.
No último capítulo retomam-se as questões do capítulo anterior. Trata-se
ainda da ampliação do processo de patenteamento e fabricação de máquinas de
beneficiamento de café no Brasil, agora sob o amparo da segunda lei de patentes,
sancionada em 1882, que estreitou no país a relação entre atividade agrícola e
produção de tecnologia nos moldes do capitalismo dominante nas economias
centrais no período. A lei de 1882 viria permitir a consolidação do setor industrial
de máquinas de beneficiar café, garantindo o aumento da oferta do produto aos
mercados mundiais. Maior exportador do produto, o Brasil chegou a exportar
também a tecnologia da máquina de beneficiar café.
Finalmente, procurou-se manter a grafia original das fontes primárias
sempre que se julgou necessário citá-las na esperança de que, para além do
barulho infernal do machinismo de café, faça-se ouvir a voz dos homens.
20
NOTAS
1
Cf. Camargo, Rogério de & Telles Jr., Adalberto de Queiróz. O café no Brasil. Sua aclimação e industrialização.
Rio de Janeiro. Serv. de Informação Agrícola/MA, 1953. 2 vol. A respeito ver também Eulálio, Joaquim. O café na
Inglaterra. In: O café no segundo centenário de sua introdução no Brasil. Rio de Janeiro, DNC, 1934. pp. 137-141.
2
Magalhães, Basílio de. O café na história, no folclore e nas belas-artes. São Paulo, Cia. Ed. Nacional/MEC, 1980. 3a
ed. p. 31.
3
A título de gentileza, o governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de
Mendonça Furtado (1751-1755), em carta ao governador da capitania de Mato Grosso, em outubro de 1755, dizia:
“(...) Como suponho que o provimento de café estará já acabado, tomo a confiança de oferecer a V.Exa. novo
socorro, que o Desembargador Juiz de Fora entregará...”. Cf. Mendonça, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era
Pombalina. Correspondência inédita do governador e capitão-general do estado do Grão-Pará e Maranhão
Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1751-1759. São Paulo, IHGB, 1963. vol. 2. p. 806. 128a carta.
4
Cf. Dantas, Geremário. “O café na cidade do Rio de Janeiro”. In: O café no segundo centenário de sua introdução
no Brasil. Rio de Janeiro, DNC, 1934. pp. 137-141. vol. 1. pp-105-113.
5
Neste trabalho, tratarei o rio Paraíba do Sul pela maneira como é comumente tratado atualmente, ou seja, rio Paraíba.
6
Apud. Almeida, Gelson R. de. Hoje é dia de branco. O trabalho livre na província fluminense: Valença e Cantagalo,
1870-1888. Niterói, ICHF/UFF, 1994. pp. 40-41. Dissertação de mestrado (mimeo).
7
Cf. Magalhães, Hildebrando de. O café em Minas Gerais. Piracicaba, Typographia da Livraria Giraldes, 1933. p. 9.
8
Cf. Bittencourt, Gabriel. A formação econômica do Espírito Santo. Vitória, Departamento Estadual de
Cultura/Cátedra, 1987. p. 75.
9
A respeito da centralização da exportação do Espírito Santo pelo porto do Rio de Janeiro e sobre a construção do
porto de Vitória em relação ao desenvolvimento da economia do Espírito Santo, consultar o estudo pioneiro de
Siqueira, Penha. O desenvolvimento do porto de Vitória 1870-1940. Vitória, Codesa/Ufes, 1984.
10
Jornal do Commércio. 01.12.1873. p 3.
11
Truzzi, Oswaldo. Café e indústria. São Carlos: 1850-1950. São Carlos, UFSCar, 1986. pp. 10-11.
12
A coivara era tradicionalmente praticada por pequenas comunidades nômades. Para essa prática agrícola,
derrubavam-se as árvores e queimava-se uma área demarcada na floresta, geralmente próxima de água, iniciando o
plantio. Após algumas colheitas, a área era abandonada, recuperando-se naturalmente.
13
Matos, Odilon N. de. Café e ferrovias: a evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura
cafeeira.3a ed. São Paulo, Arquivo do Estado, 1981, traça um painel abrangente do avanço das ferrovias a partir dos
interesses dos produtores de café. Também Truzzi, O. op. cit. (n. 11) mostra o impacto da penetração das ferrovias
sobre os pequenos povoados do interior paulista. Sobre o tema, também consultar SILVA, Sérgio. Expansão
cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo, Alfa-Ômega, 1980. pp. 56-58.
14
Prado JR, C. História econômica do Brasil. São Paulo, Círculo do Livro, s/d, pp. 169-181.
15
Taunay, Affonso E. História do café no Brasil. Rio de Janeiro, DNC, 1945. 12 vol.
16
Stein, Stanley J. Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba. São Paulo, Brasiliense, s/d.
17
Costa, Emília V. da. Da senzala à colônia. 3a ed. São Paulo, Brasiliense, 1989.
18
Entre outros autores, esta distinção é claramente defendida por Lima, Sandra Lúcia Lopes. O Oeste paulista e a
República. São Paulo, Vértice, 1986.
19
Levy, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. Rio de Janeiro,
FEA/UFRJ, 1988. p. 141. Tese de titular (mimeo).
20
Fragoso, João Luís. “Economia brasileira no século XIX: mais do que uma plantation escravista-exportadora”. In:
Linhares, Maria Yedda L. (coord.). História geral do Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1990. p. 150.
21
Silva, J. L. Werneck. A Sain (1827-1904) na formação social brasileira – Isto é o que me parece. 2 vol. Rio de
Janeiro, ICHF/UFF, 1977. Dissertação de mestrado (mimeo).
22
Beauclair, Geraldo . A gênese industrial do Brasil. In: Cadernos do ICHF. n. 38, Niterói, ICHF/UFF, nov/1990.
(mimeo)
23
Beauclair, G. op. cit. p.1.
24
Beauclair, G. Raízes da indústria no Brasil. Rio de Janeiro, Studio F & S, 1992.
25
Refiro-me, em especial, à obra de Salles, Iraci Galvão. Trabalho, progresso e a sociedade civilizada. São Paulo,
Hucitec, 1986.
26
O que tem sido constatado pelas análises de: Beauclair, G. A gênese industrial do Brasil. In: Cadernos do ICHF. n.
38, Niterói, ICHF/UFF, nov/1990. (mimeo) e Raízes da indústria no Brasil. Rio de Janeiro, Studio F & S, 1992. A
respeito, ver também: Libby, Douglas C. Transformação e trabalho em um economia escravista. Minas Gerais no
século XIX. São Paulo, Brasiliense, 1988.
27
Marx, K. O Capital. Crítica da economia política. 6a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. p.425. Grifos
meus.
21
28
Cf. Lima, Sandra Lúcia L. O Oeste paulista e a República. São Paulo, Vértice, 1986. p. 27.
29
Whately, Maria Celina. O café em Resende no século XIX. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1987. pp. 34-35.
30
Costa, Emília V. da. Da senzala à colônia. 3a ed. São Paulo, Brasiliense, 1989. pp. 64-65. Grifos meus.
31
Costa, João Severiano Maciel da. et al. Memórias sobre a escravidão. Introd. de Graça Salgado. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional/Fundação Petrônio Portella, 1988. p. 165.
32
Cf. Machado, Humberto. Escravos, senhores e café. Niterói, Cromos, 1993. p. 45.
33
Hobsbawn, Eric J. A era das revoluções. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
34
Landes, David. Progreso tecnologico y revolucion industrial. Madrid, Tecnos, 1979.
35
Ib., p. 270.
36
Rosenberg, Nathan. Perspectives on technology. London, Cambridge Univ. Press, 1976. pp. 9-31.
37
Cf. Ribeiro, Luiz. Cláudio M. Segundo relatório de iniciação científica ao CNPq. Niterói, dez/1989.
38
Silva, J. L. W. da. op. cit. v. II, p. 75.
39
Cf. Camargo, R. de & Telles Jr., A. de. op. cit p. 496. “Compreende-se por ‘benefício’ a operação de descascar o
café já seco, quer em coco, quer em pergaminho. Quando o produto se encontra recolhido às tulhas, depois do
devido ‘descanso’ (cerca de 40 dias no mínimo) deve o lavrador aprestar-se para o seu benefício”.
40
O Auxiliador da Indústria Nacional. 1881. pp. 105-109.
41
A controvérsia a respeito de ter sido 1892 o último ano de circulação de O Auxiliador da Indústria Nacional é
tratada tanto por Carone, E. O Centro Industrial do Rio de Janeiro e a sua importante participação na economia
nacional (1827-1977). Rio de Janeiro, Cátedra, 1978, quanto por SILVA, J. L. W. da. op. cit.
42
Ribeiro, Luiz Cláudio M. op. cit.
43
Cardoso, Ciro & BRIGNOLI, Hector .Os métodos da História. 3a ed. Rio de Janeiro, Graal, 1983.
44
Cruz, Hélio N. da. e Tavares, Martus. As patentes brasileiras de 1830 a 1891. In: Estudos econômicos. São Paulo,
mai./ago., 1986. pp. 205-225.
OK
22
1
A VIDA NO EITO
O café como globetrotter endiabrado, foi assediando e conquistando a
simpatia dos povos: provocou desordens na Turquia, no século XV; no
século XVI, dava dor de cabeça aos doutôres de França, que ficaram no
dilema de aceitá-lo ou condená-lo. Essa "misteriosa bebida", porém, que
deu longevidade fecunda a Voltaire, que reuniu em seu redor Buffon,
Diderot, Rousseau, acabou "grilando" a França. Depois de uma série de
estrepolias e depois de ter conquistado os corações das principais
capitais européias, surgiu por êstes Brasis, trazido, lá pelo século XVII,
por Melo Palheta ou quem quer que seja; e assim êsse produto originário
da Etiópia, botanicamente classificado por Linneu com o nome de
"Coffea Arábica" vem ao Brasil para ficar. [...] Essa planta irrequieta
até no nome produziu um equívoco. Foi batizada como "Coffea Arábica"
não obstante a sua origem etíope.1
Muito já foi escrito sobre as origens do café nas florestas dos planaltos —
entre 1.200 e 2.000 metros — da Etiópia. Lá, a rubiácea teve crescimento em
meio à vegetação úmida, característica das regiões próximas à linha do Equador.
Nessas condições, o cafeeiro, integrado ao microclima das matas e alimentado
pelas camadas naturais de húmus, nunca era submetido a temperaturas inferiores a
cinco ou superiores a trinta graus centígrados, nem recebia excesso de radiação
solar em seu habitat nativo.2
Antes de chegar ao Brasil, a cultura do café já havia sido implantada nas
possessões holandesas de Ceilão e Java, em diversas possessões inglesas,
francesas, belgas e portuguesas da África. No mesmo período em que foi iniciada
sua plantação no Brasil, em meados do século XVIII, diversas colônias
espanholas também o fizeram, principalmente o México, Colômbia, Venezuela,
Costa Rica, Cuba e El Salvador. Entretanto, na maior parte dessas regiões,
procurou-se respeitar o método de cultivo que melhor se assemelhava às
condições naturais de desenvolvimento do cafeeiro.3
No Brasil, enquanto se organizava o Estado no período após a
independência, os bens em geral, os escravos e o ouro representavam a riqueza
dos homens e sua capacidade de endividar-se contraindo empréstimos. Nessa
23
época existiam no país terras férteis em abundância, mas elas não serviam como
garantia de empréstimos. Seu valor venal era nulo e “a fazenda nada mais
representava senão o trabalho escravo acumulado”4.
O preço do escravo mantinha-se sob o controle do traficante negreiro,
responsável pela abundância ou escassez da “mercadoria”. Portanto, a capacidade
produtiva de um fazendeiro dependia diretamente da população de suas senzalas.5
Mas, após a aprovação da Lei de Terras, de 1850, as terras não ocupadas
passaram do estatuto de devolutas para o de terras de propriedade estatal, só
podendo ser apropriadas através do ato da compra ou da comprovação de sua
posse até data anterior à lei. Esse foi o passo inicial para que a terra fosse, aos
poucos, tornando-se um bem de raiz, porquanto, naquele mesmo ano, o tráfico
atlântico de escravos sofria sérias restrições.
Utilizado em massa, o trabalhador escravo ainda prosseguiu como a
principal força de trabalho brasileira até a extinção dessa modalidade de mão-deobra. Após a proibição do comércio direto com a África, ainda muito se valeram
os fazendeiros de café do comércio ilegal para se abastecerem do “gado humano”.
Conscientes de que aquela forma de exploração do trabalho não perduraria,
lutavam por manter ao máximo o escravo até que sua força de trabalho se
anulasse.
Ao adquirir o escravo, o fazendeiro comprometia-se antecipadamente
com o traficante, ancorado na expectativa da renda a ser obtida com o trabalho
daquele sobre a terra. De simples bem, ou capital, o escravo adquiria a natureza
sui generis de “renda capitalizada”, como demonstrou José de Souza Martins, em
seu clássico trabalho.6
O fazendeiro relutava em desfazer-se do escravo porque a terra
representava, quando muito, apenas 20% do valor de sua fazenda,7 e o conjunto
dos demais equipamentos e instrumentos de trabalho não chegava a 10% das
aplicações.8 O grande montante dos investimentos era mesmo aplicado no
24
mercado humano. Isso dava ao escravo um posição destacada entre os bens da
fazenda: além de realizar trabalho, também servia como garantia para obtenção de
empréstimos para novas inversões em escravos e em novas fazendas.
No dizer de Martins,
O escravo tinha dupla função na economia da fazenda. De um
lado, sendo fonte de trabalho, era o fator privilegiado da
produção. Por esse motivo era também, de outro lado, a
condição para que o fazendeiro obtivesse dos capitalistas
(emprestadores de dinheiro), dos comissários (intermediários
na comercialização do café) ou dos bancos o capital
necessário seja ao custeio seja à expansão de suas fazendas
[...]. Tendo o fazendeiro imobilizado nas pessoas dos cativos
os seus capitais [...] subordinava-se uma segunda vez ao
capital comercial, mediante empréstimos, para poder pôr em
movimento os seus empreendimentos econômicos, inclusive
para promover a abertura de novas fazendas e adquirir
equipamentos de benefício.9
Nessas condições, o Estado forneceu o capital-crédito que sustentou a
aventura da usurpação das terras agricultáveis do Sudeste brasileiro. O sistema
financeiro, vinculado ao câmbio-ouro, baseava-se no financiamento do Estado
através das rendas públicas obtidas pelo movimento comercial. A sociedade
brasileira, para abastecer-se de produtos industrializados, tinha de importá-los,
pagando tarifas ao Estado; o Estado, para sustentar-se, tinha de estimular as
exportações para que crescesse sua receita. Dessa forma, engendrou-se na
sociedade político-econômica brasileira uma relação de dependência mútua entre
o Estado e os setores de exportação de produtos agrícolas.
“O Brasil é o café, e o café é ouro”, dizia-se.10 A expressão dessa
dependência dava-se, no mundo financeiro, pela emissão de títulos públicos
lastreados no ouro do Tesouro, cuja variação ocorria em relação ao câmbio da
libra, cotada em ouro. No caso do café, ao entregá-lo ao comissário, o fazendeiro
geralmente era pago com títulos. A circulação desses papéis, desde a compra no
25
mercado por empresários capitalistas até a chegada ao interior da fazenda, era a
moeda de troca no complexo cafeeiro.
O café, no final do século XIX, particularmente de 1874 — quando se
estabilizaram os preços em tendência de alta — até o assalto republicano, era o
principal produto de exportação brasileiro. De suas vendas dependia a maior
quantidade de ouro, cotado em libras inglesas, que entrava para os cofres
públicos.
Como, ao venderem as colheitas, os fazendeiros recebiam os títulos
expressos em mil-réis valorizados em relação à libra-ouro, quanto mais café
exportavam, mais libra-ouro entrava para o país, elevando a cotação do mil-réis.
Contudo, os fazendeiros repassavam os títulos que recebiam na preparação da
safra futura, comprando mais escravos para a ampliação da lavoura.
Os traficantes de escravos descontavam esses títulos contra o caixa do
Tesouro na entressafra, quando o mil-réis ficava mais desvalorizado devido à
escassez do ouro-lastro. Assim, embolsavam a diferença da cotação do mil-réis
entre o instante da compra e o da venda do título. Todo o mecanismo acabava por
concentrar lucro financeiro na esfera da circulação, favorecendo os setores
envolvidos com a economia cafeeira, particularmente os da Corte.
A produção agrícola de exportação e o câmbio-ouro eram, em última
instância, os pilares básicos do sistema financeiro do Segundo Reinado. Da
relação entre o volume da safra de café e sua cotação em libra-ouro, dependia o
establishment dos setores dominantes da sociedade brasileira daquele período.
Portanto, o Estado brasileiro, através da circulação monetária, financiava a
estrutura econômica da fazenda escravista, lastreando no Tesouro da nação o
pagamento dos lucros obtidos pelo traficante de escravos.11
Envolto nesse círculo vicioso, o fazendeiro — dependente do valor do
escravo-mercadoria e do valor de uso do escravo-trabalhador — só começaria a
vislumbrar no horizonte a possibilidade de substituir a mão-de-obra cativa à
26
medida que a terra e os demais bens nela existentes pudessem ser crescentemente
apropriados como capital.
Essa perspectiva surgiu quando a demanda da produção de café,
submetida comercialmente ao abastecimento das crescentes populações das
nações industrializadas e dos novos mercados mundiais, apontou para uma
tendência ao crescimento ad infinitum. Na análise do quadro econômico
internacional, observa-se que, enquanto até a década de 1860, o domínio
industrial e financeiro esteve exclusivamente com a Inglaterra, a partir da década
seguinte, outras nações, como a Alemanha, a Bélgica e os Estados Unidos,
começaram a aproximar-se do nível de desenvolvimento industrial inglês.12
Desse desenvolvimento resultou um crescimento da demanda por
produtos agrícolas, tanto para consumo interno naqueles países, como para as
transações comerciais com seus mercados cativos. O café brasileiro foi inserido
entre os produtos que serviam também como meio de troca para que produtos
industrializados entrassem no Brasil, motivando ainda mais a expansão das
lavouras e tornando mais visíveis as disparidades entre a crescente capacidade da
produção agrícola e a produtividade rotineira do beneficiamento do café.
Seguindo a tendência de aumento do consumo, a partir das décadas de
1860-1870, as áreas de plantio se expandiram e a exportação de café do Brasil
saltou de 2.666.835 sacos de 60 kg, em 1866, para 3.878.382 sacos, em 1875.
Continuada a expansão, dez anos depois, a exportação saltaria para
6.015.036 sacos. Deste montante, os Estados Unidos da América foram o país que
mais aumentou as encomendas, ano após ano.13
Garantidas as premissas do acesso às terras e aos mercados, as exigências
do grande comércio mundial poderiam ser satisfeitas com as condições
socioeconômicas internas — salvo alguns ajustes — existentes: terras férteis
disponíveis, sistema de comunicação e transportes em funcionamento e em
expansão, mão-de-obra escrava altamente produtiva e imigração européia —
27
preferida devido a os imigrantes europeus estarem ambientados à lógica da
produção em larga escala e ao fetiche representado pela propriedade particular e
pela liberdade no capitalismo.
Esses fatores possibilitariam encetar uma grande expansão da lavoura
cafeeira para os interiores capixaba, mineiro, paulista e fluminense, além de
algumas províncias nordestinas e sulinas, a partir da década de 1870, uma vez que
essas regiões já estavam integradas ao mercado de consumo capitalista, através
das redes de ferrovias, estradas e vias de navegação.14
No entanto, restavam ainda questões políticas e técnicas. Políticas, com
relação ao problema do crédito à lavoura e à subvenção do transporte do imigrante
europeu; técnicas, face ao suporte tecnológico a ser desenvolvido, de forma a
tornar compatível o aumento da produção com as exigências por um produto
qualificado, embarcado mais rapidamente, sob o signo do “vapor e da
velocidade”15.
Faltava, portanto, ser criada no Brasil uma infra-estrutura agrícola
modernizada, capaz de, sem desviar a mão-de-obra indispensável ao cafezal,
preparar o café para o comprador estrangeiro. Em outras palavras, faltavam
máquinas!
Quanto à questão política, crédito e imigração, o próprio aumento do
valor comercial do escravo implicou também um aumento da “renda capitalizada”
do fazendeiro, possibilitando-lhe maiores empréstimos bancários.16
Outras vantagens creditícias foram obtidas pelos cafeicultores: em 1873,
o crédito hipotecário com base nas plantações e nas instalações da fazenda, antes
restrito às propriedades rurais do Rio, Espírito Santo e Minas, foi também
estendido àquelas de São Paulo, Paraná e Santa Catarina.
Como o dispositivo não trouxe os efeitos desejados, visto que os
capitalistas e comissários não se interessavam pelas terras que lhes eram entregues
para saldar dívidas, outro dispositivo foi criado na lei, em 1885, permitindo que o
28
pagamento das hipotecas fosse feito com a rubiácea in natura, colhida ou
pendente no pé. Dessa maneira, puderam os cafeicultores encontrar outras formas
de obter créditos, independente da posse de escravos. Passou a valer o café. Então
trataram de produzi-lo!
Visto sob esse ângulo, desaparecem as nuances de dinamismo ou
tradicionalismo entre as regiões cafeeiras. Estava em jogo a consolidação de uma
base produtiva para o mercado capitalista, porém organizada sob qualquer forma
de sujeição do trabalhador ao trabalho não-assalariado, fosse escravo ou colono.
Enquanto seu preço oscilava, como mostra a tabela abaixo, o escravo foi
sendo reforçado como o principal meio de investimento de capitais. O retorno era
garantido: sendo cativo, o trabalhador escravo estava em condições sociais de ser
submetido até o extremo de suas energias físicas ao aumento da carga de trabalho
diária.
PREÇO MÉDIO DO ESCRAVO NO OESTE PAULISTA 1843/1887
PERÍODO
PREÇO EM MIL-RÉIS
1843-1847
550$000
1848-1852
649$500
1853-1857
1:177$500
1858-1862
1:840$000
1863-1867
1:817$000
1868-1872
1:792$500
1873-1877
2:076$862
1878-1882
882$912
1883-1887
926$795
Fonte: Apud. José de Souza Martins, Op. cit. p. 27
Descrições da época mostram que nas fazendas de café o cativo
trabalhava até dezoito horas por dia, ficando a seu encargo uma área cultivada
muitas vezes superior à praticada em culturas similares, em países com mão-deobra livre.17
Assim, a importância do setor exportador levou, crescentemente, a uma
concentração do contingente de negros cativos nas maiores províncias produtoras
29
de mercadorias agrícolas exportáveis, como é o caso da cana-de-açúcar e do
tabaco, na Bahia e em Pernambuco.
Na Bahia, por exemplo, o total de escravos, que somava 82.957 em 1875,
crescera 60% ao longo de uma década, chegando a 132.822 escravos em 1885. No
mesmo período, a população escravizada de Pernambuco pulou de 38.714 para
72.370, perfazendo um acréscimo de 87%.18
Na lavoura cafeeira, enquanto Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro
somavam, em 187,5 um total de 521.102 trabalhadores escravos,19 uma década
depois, este número já chegava a 728.112.20 No mesmo período, Minas Gerais
perderia 14.492 escravos. Entretanto, São Paulo ganharia outros 62.658 e o Rio de
Janeiro, também outros 109.173.21 Assim, o Sudeste reuniria 60,65% do total da
mão-de-obra escravizada no país em 1885.22
Apesar da variação do preço do escravo, sua concentração no Sudeste
aumentava, mantendo imobilizada enorme quantidade de capitais. Isso, porém,
fazia com que o impasse entre o movimento pela abolição e os interesses agrários
escravistas se estendesse23.
Nessas condições, mantendo o padrão usual de exploração do trabalhador
escravo, os fazendeiros não aceitavam adaptar-se às regras capitalistas baseadas
na igualdade entre os indivíduos e na contratação dos serviços em troca de salário.
Muito menos aceitavam usar métodos mais racionais de exploração do solo.
Os produtores tinham clareza de que o trabalhador estrangeiro era
exigente não apenas em relação a satisfazer seu sonho de enriquecer através do
trabalho na lavoura, mas também em relação à liberdade individual, razões que o
moviam a vir tentar “fazer a América”. Enquanto pudessem explorar as peças
cativas, não seria outra a opção dos fazendeiros.
Isso, porém, não significou que não se preparassem para conjugar o
trabalho escravo com a mão-de-obra livre. Curiosamente, enquanto a
historiografia indica que as grandes levas de europeus chegaram a partir de
30
meados da década de 188024, verifica-se que desde a década anterior muitos
fazendeiros já construíam casas de moradia para os colonos. Veja-se o exemplo de
uma fazenda em Rio Claro, posta à venda em 1878:
4.100 alqueires de terra [...], 370.000 pés de café (contados),
boa casa de morada, [...] senzalas para grande escravatura e
casa novas e bem construídas para duzentas famílias de
colonos...25
Não é demais lembrar que a ferrovia chegara ao município de Rio Claro
apenas dois anos antes!
Enquanto isso, o trabalhador nacional livre formava a maioria da
população “desocupada” do Sudeste mas, por ser considerado indolente e pouco
inteligente, não era aceito como “colono” pelos fazendeiros. Compreende-se
melhor por que os fazendeiros recusavam os livres quando se toma uma
perspectiva de análise que aceita que o trabalho livre não poderia ser
preponderante numa sociedade na qual as relações sociais eram historicamente
pautadas pelo escravismo e em que o escravo constituía “renda capitalizada”.26
Apesar da existência de numerosa população de brasileiros livres, eles
não tinham acesso nem à terra nem ao trabalho no setor de maior importância na
economia brasileira. Cabia-lhes funções secundárias à lavoura, como os trabalhos
de desmatamento e preparação das terras, a plantação e o tratamento das mudas de
café até que elas iniciassem o ciclo produtivo, quando repassavam a plantação ao
fazendeiro. Outras vezes, atuavam como empreiteiros dos desmatamentos,
retirando das florestas madeiras nobres e seus subprodutos, como o carvão vegetal
que abastecia as áreas urbanas:
em uma fazenda, distante desta côrte 4 horas de viagem pelo
caminho de ferro, dão-se mattas virgens para o fabrico de
carvão, de meias, as pessoas que quizerem se occupar neste
31
serviço, terão na fazenda moradia e conducção, e só pagarão
sua parte em dinheiro se fôr família dar-se-ha lugar para
fazer sitio...27
Para se ter uma idéia dessa população livre e pobre do Brasil — os
caipiras —, a estatística apresentada pelo Senador Godoy, referente ao ano de
1875, é particularmente interessante. Segundo suas estimativas, os “livres
desocupados” eram, tanto nas províncias de Minas Gerais, de São Paulo e do Rio
de Janeiro (58,50%) como nas do Ceará, da Bahia e de Pernambuco (56,15%), a
maioria da população.28
Já os escravos do Sudeste representavam 18,27% da mão-de-obra da
região, enquanto o conjunto Ceará, Bahia e Pernambuco representava 6,3%.
Enquanto isso, a mão-de-obra considerada “livre ocupada” era intermediária,
perfazendo 37,55% da população naquelas províncias nordestinas e 23,23% nas
províncias cafeeiras do Sudeste.29
Porém, para maior clareza das convivências e da dinâmica dos arranjos
sociais da cafeicultura no Sudeste brasileiro, é necessário tirar das sombras as
transformações infra-estruturais ocorridas no âmbito das fazendas produtoras.
A produção do café tinha, até o final da década de 1860, acontecido em
condições muito mais restritas do que as que se seguiriam. A consolidação do
produto nos grandes mercados estrangeiros sujeitava mais e mais sua produção,
induzindo a um aumento considerável das áreas cultivadas, dos meios de
produção, e das vias de transporte. Tal expansão deu-se de forma concomitante e
organizada: as melhores zonas florestais de São Paulo, atingindo e ultrapassando a
“terra roxa”; do Rio de Janeiro, médio e baixo vale do Paraíba; das zonas da Mata
e Sul mineiras, e dos vales dos rios Benevente, Novo e Itapemirim, no Espírito
Santo, foram tomadas e iniciadas na produção do café para os mercados mundiais.
32
A produção cafeeira em grande escala, no século XIX, caracterizava-se
por dois métodos de cultivo: sombreamento, praticado em muitos países
produtores, e insolação, praticado no Brasil.30
Considerando o uso racional do solo, a cultura sob o método de
sombreamento apresentava muitas vantagens sobre o método de insolação. No
primeiro procuravam-se reproduzir as condições originais do cafeeiro, plantandoo no meio das florestas. Para isso, desbastava-se a vegetação de sub-bosque e
abatiam-se as árvores incompatíveis com o crescimento do cafeeiro.31
Na Venezuela, por exemplo, plantavam-se bananeiras no meio das ruas e
outras espécies apropriadas, como o guamo e o bucare, nas elevações e planícies,
respectivamente. Essa técnica tinha por objetivo permitir a passagem de radiação
solar em torno de 50% a 70%, considerada ideal para conservar o húmus e as
propriedades físico-químicas naturais das florestas.32
Sobressaía, nesse caso, a maior longevidade da cultura, cujos cafeeiros
podiam ultrapassar produtivamente a idade de 50 anos, enquanto que no método
de insolação uma planta de 20 anos era considerada “velha”.33
Um artigo de uma autoridade venezuelana em cafeicultura, transcrito do
“Novo Mundo” para O Auxiliador da Indústria Nacional, em 1874, mostrava as
diferenças entre os dois métodos, dando pistas para que os fazendeiros brasileiros
buscassem a “terra roxa”:
As terras aluminosas e puramente argillosas nunca recebem
bem a árvore do café. Este exige terras ligeiras meio
mescladas de pedras e sem sáes. As terras rôxas um tanto
pedregosas e também as negras quando não muito argillosas
[...] são em geral muito próprias.
[...] No cafeeiro, as raízes se devem conservar sêccas ou com
muito pouca umidade e a terra deve estar disposta com
declive tal que as águas nunca se estanquem.34
33
E descrevia o microclima apropriado ao cafezal dos trópicos:
[...] A temperatura mais apropriada póde fixar-se entre os 12
e os 25 gráos centigrados. Todavia, póde viver bem em
temperaturas muito mais elevadas, sempre que as plantações
tenhão o abrigo de árvores grandes e ramosas [...] 35
Também tratava diretamente da questão crucial, o cultivo à sombra:
Occupemo-nos agora de uma questão muito delicada sobre
que os homens intelligentes que cultivão o café não estão de
acôrdo, bem que em Venezuela a opinião seja uniforme e sem
contradicção; a questão da sombra. Em Venezuela é
absolutamente indispensável que os cafeeiros fiquem
abrigados com árvores corpulentas [...]. Esta prática não é
seguida no Brasil nem na América Central, nem nas
Antilhas[...]. Em Venezuela, sem a sombra das árvores o
arbusto perece em poucos annos. A princípio os fazendeiros
não cobrião os cafeeiros, mas a experiência lhes foi
mostrando que precisavão fazê-lo para salvar suas
plantações de completa destruição...36
Pode-se relacionar entre as vantagens do sombreamento a resistência
natural contra as intempéries, a proteção à erosão dos solos, principalmente os de
tipo arenoso predominantes em São Paulo, a estabilidade do húmus natural, a
conservação dos microorganismos presentes nos solos, e a manutenção do pH do
solo próximo de neutro (pH=7).37
Além disso, a manutenção das matas nativas possibilitava o suprimento
de gás carbônico do ar e do solo e um teor de umidade ideal. Sem as matas, o gás
carbônico e a água presentes no solo reduziam-se a níveis drasticamente baixos.38
O conjunto desses fatores dava aos cafezais maior resistência às doenças e às
pragas.39
Na verdade, o método de insolação tanto esgotava o solo quanto expunha
a planta ao sol dos trópicos. Verificava-se nos pés de café da América Central,
34
quando expostos à insolação pela morte da árvore que os protegia, uma doença de
origem fisiológica conhecida por paloteo, derivada do excesso de sol associado à
carência de húmus. Camargo e Telles Jr. afirmam que o aspecto dessas plantas
doentes correspondia à descrição de um cafeeiro normal brasileiro, de idade
superior a vinte anos.40
Em conseqüência dessa prática agrícola foram comuns, a partir da década
de 1860 e 1870, os problemas enfrentados com as “pragas do cafeeiro”, que
passaram a dizimar as lavouras e não apenas nas áreas mais antigas como também
nas de ocupação mais recente. Por volta de 1870, os plantadores do vale do
Paraíba fluminense mostravam-se confusos com os problemas climáticos que suas
lavouras insoladas enfrentavam:
Nós, os lavradores desta parte da província (Barra Mansa)
estamos muito inquietos com a irregularidade da estação.
Depois de tão grande sêca as chuvas têm sido escassas, de
modo que não é mais possível termos abundância de cereais
para o anno próximo futuro.
A falta de águas accresce o frio desconhecido que tem feito
até o momento em que escrevo, em virtude do qual tem-se
perdido parte das flôres que cobrião os cafezaes mais
velhos.41
Os problemas eram também sentidos quanto aos ataques por pragas e
doenças desconhecidas, como ocorreu nos cafezais de Ubá e de outros municípios
da Zona da Mata mineira:
Uma nova doença [...] tem apparecido nestes últimos tempos
nos nossos cafezaes, tendo origens segundo parece, no valle
do rio do Collegio...
[...] Como se não bastasse também o apparecimento do
bicho, a larva dessa myriada de pequenas borboletas,
operando o seu ataque às folhas da arvore, surge agora outro
mal incontestavelmente peior, que sem motivo apparente, sem
35
attenção a quaesquer circunstancias de estação, de terreno
ou posição, bom ou mau trato ao cafezal, a arvore começa
por amarellecer as folhas (symptoma fatal de sua affecção), e
em poucos dias fenecem para tornarem-se completamente
sêccas.42
Verificado o agravamento do problema na década de 1880, o Museu
Nacional do Rio de Janeiro, instado a resolvê-lo, designou o cientista Emílio
Göeldi “para attender aos pontos até hoje mais cruelmente perseguidos pela
moléstia”, que atingira, principalmente, Cantagalo, Santa Maria Madalena e São
Fidélis.43
Antes disso, o Barão de Capanema já se havia incumbido da investigação,
relatando as causas “geognósticas e meteorológicas” que eram, a seu ver, ora
grandes estiagens, ora chuvas torrenciais, cujas águas “apenas desnudão a
superfície, sem que penetre no sólo senão pequena porção de água”, provocando o
“estado mórbido” do cafeeiro. Segundo seus estudos, o estado do solo era
responsável pela doença, o que foi constatado,
desarraigando vários indivíduos enfermos, a alguns dos
quaes faltava de todo a raiz central e em outros se mostrava
atrophiada, emquanto as raízes superficiaes nenhum indicio
de morbidez patenteárão.44
Na região paulista, em 1850, o fazendeiro Luiz Torquato Marques
d’Oliveira, de Casa Branca, localidade de terras férteis, na região vizinha à zona
de “terra rôxa”, convocou os fazendeiros a se cotizarem para que pudesse fazer
publicar “um novo systema de plantação de café”, em substituição ao método
usado, pois
[...] a primeira causa destruidora da uberdade dos terrenos é
a queima das madeiras, por que tira-lhes a folhagem e
36
madeiras brancas, que deixadas, tornam-se em estrume,
augmentam a força da terra para produzir o duplo. 45
Segundo ele, o sistema de queima das matas incrementava o crescimento
de capins, absorvendo muita mão-de-obra nas capinas e tornando os cafezais
efêmeros e pouco fecundos.
d’Oliveira dá uma visão sobre a situação das lavouras na região, entre
1850 e 1863, ano de sua publicação:
As colheitas foram diminuindo pela infecundidade do terreno,
redobraram-se as capinas, empenhaste-vos [os cafeicultores]
na compra de braços para plantar muito, e colhestes pouco:
estragastes o quádruplo dos terrenos precisos para colherdes
as arrobas que colheis...46
A cultura de sombreamento frente à de insolação trazia, entre todas as
vantagens econômicas, o menor custo da lavoura, a melhor qualidade da safras: o
sombreamento possibilitava cafés com menos defeitos e com maturação mais
uniforme na época da colheita, maior rendimento no benefício e em xícaras,
melhor padronização e classificação dos “lotes” e, por fim, uma maior resistência
às oscilações de preços no mercado internacional.47
A distinção básica entre os dois métodos ajuda a destacar melhor o caráter
itinerante — “que, no Brasil, vem provocando a marcha forçada para o sertão,
deixando, empós de si, os desertos de samambaia e sapê”48 — e as
especificidades do complexo cafeeiro brasileiro, no período deste estudo.
Na opinião de Camargo e Telles Jr.,
a causa primordial da existência da lavoura insolada [...] foi
a constatação das floradas excessivas, provocadas pela
insolação intensiva. A ambição dos lavradores de outrora fez
com que se estendessem as culturas ao sol, na errônea
37
convicção de que maiores seriam os seus lucros. E como a
qualidade nada representava naqueles bons tempos, bem
como, sobravam os mataréus das terras virgens para serem
derrubados, lograram, em parte, obter seu desiderato.49
Assim, pela lógica do sistema cafeicultor brasileiro, o meio mais rápido
de se obter safras maiores de café era pelo método de insolação. A única
vantagem desse método sobre o de sombreamento era a maior produtividade do
cafeeiro plantado na terra nova, nos primeiros dez a quinze anos, resultante da
camada de húmus remanescente no terreno. Porém, com as limpas e capinas, com
a erradicação do sistema de raízes das plantas nativas, da sombra das árvores, e
com a erosão, esse húmus logo acabava, deixando a terra improdutiva. Tal
processo de esgotamento do solo verificava-se indistintamente em todas as
províncias onde era praticada a insolação do cafezal.
Ao longo do tempo, porém, mesmo essa vantagem da insolação se
desvaneceu. Um estudo feito no Horto Florestal de Rio Claro, nos anos de 1920,
provou ser errônea a idéia, ainda mantida no Brasil, de que a safra do café
produzido em cultura à sombra era desigual e tardia em maturação. No estudo, em
que foram plantados cafés sob ambos os métodos, usando eucaliptos para o
sombreamento, chegou-se ao seguinte resultado na colheita de 1926:
VERDE
CEREJA
CÔCO
Café a Sombra
0,94%
21,06%
78,00%
Café ao Sol
2,25%
13,75%
84,00%
Fonte: Instituto de Café do Estado de São Paulo. Cultura do café a
sombra. Ed. Navarro. s/d. 26 p.
Os pesquisadores observaram que, com o método de insolação, o cafezal
era exposto a temperaturas mais baixas à noite e mais altas durante o dia. Essa
maior variação entre temperaturas extremas acelerava o amadurecimento do grão
38
do café, secando-o mais rapidamente antes que pudesse ser colhido no ponto ideal
para ser beneficiado — no estágio cereja. No cafezal sombreado, essas
temperaturas tendiam a uma variação menor entre os extremos e o estágio cereja
conservava-se por um período mais longo.
Na experiência foram plantados 414 alqueires de 50 litros de café (20.700
litros) ao sol e apenas 191 dos mesmos alqueires (9.550 litros) à sombra. Os
resultados colhidos foram significativos para demonstrar a rentabilidade relativa
do cafezal ao sol: enquanto nas primeiras safras o cafezal ao sol rendia pouco
mais, tendendo a diminuir após as safras seguintes, o cafezal à sombra tendia a
permanecer com produção constante pela maior parte da vida da árvore, ou seja,
mais de três vezes o tempo do cafeeiro insolado. A tendência inicial ficou
constatada pelos seguintes dados:
Cafezal ao Sol
38 saccas, ou 152 arrobas de chato graúdo
2.280 kgs.
22 saccas, ou 88 arrobas de chato meudo
1.320 kgs
10 saccas, ou 40 arrobas de chato meudinho
600 kgs
6 saccas, ou 24 arrobas de moka
360 kgs.
2 saccas, ou 8 arrobas de escolha
120 kgs
1 arroba de cabeça
15 kgs.
TOTAL
4.695 kgs
Cafezal à sombra
30 saccas, ou 120 arrobas, de chato graúdo
1.800 kgs.
8 saccas, ou 32 arrobas de chato meudo
480 kgs
3 saccas, ou 12 arrobas de moka
180 kgs.
escolha
14 kgs
cabeça
8 kgs
TOTAL
2 .482 kgs
`
Fonte: Instituto de Café do Estado de São Paulo Cultura do café à sombra. Ed. Navarro. s/d.,
26 p.
39
O resultado final mostrou que o café “à sombra” teve rentabilidade de
57,7 litros/arroba plantada, ou 165 arrobas e 7 quilos, enquanto o “ao sol” rendeu
66,1 litros/arroba plantada, ou 313 arrobas.50
Do ponto de vista da produtividade da terra a médio e longo prazo, as
desvantagens do método de insolação eram gritantes. A esse método estão
associadas uma taxa significativa de grãos de péssima qualidade; excessivas
floradas, provocando maturação em estágios diferentes e, conseqüentemente, uma
colheita muito desigual; colheita de frutos secos, antes da maturação, devido à
ação direta de raios ultravioleta e infravermelhos; além da colheita de frutos
fermentados prematuramente no galho.51
Tudo isso, associado aos métodos de colheita e benefício rudimentares,
contribuía para caracterizar o café brasileiro como “café dos pobres”, nas
principais praças norte-americanas.52
A desqualificação de parte do café produzido no Sudeste brasileiro
começava a partir da desigualdade das safras, outra das desvantagens da
insolação. Porém, a corrida para o plantio de café, principalmente em sua
expansão por São Paulo, motivada como foi pelos lucros imediatos obtidos no
grande comércio e pela abundância de terras nativas, não atentou de imediato para
o fenômeno.
Há indicações de que, na região de Campinas, a quantidade de dias
nublados e chuvosos foi maior nas últimas décadas do século dezenove53. O
fenômeno regional pode ter amenizado natural e circunstancialmente o
esgotamento dos solos na região: as nuvens produziram sombreamento e
diminuíram espontaneamente as temperaturas, enquanto as chuvas proviam à terra
a umidade necessária à lavoura.
O mesmo não se pode verificar para as demais regiões produtoras de café
do Sudeste, de altitudes e temperaturas variadas. A variedade das configurações
geológica e geográfica dessas regiões resultava numa safra global anual irregular,
40
desigual e de baixa qualidade. Graças a isso, o maior produtor inundava os
mercados mundiais com o pior produto!
PORCENTAGEM DA PRODUÇÃO BRASILEIRA NA
PRODUÇÃO MUNDIAL DE CAFÉ
1820/29
18,18%
1830/39
29,70%
1840/49
40,00%
1859/59
52,09%
1860/69
49,07%
1870/79
49,09%
1880/89
56,63%
Fonte: Martins, Ana Luiza. Império do café. A grande lavoura no
Brasil 1850 a 1890. 4a. ed. São Paulo, Atual, 1990, p.39.
Reputado a priori como inferior em qualidade, o grande volume de café
exportado pelo Brasil que inundava os mercados acabava absorvendo as demais
partidas de cafés inferiores de outros países, que recebiam a classificação genérica
de café “brasil”, “rio”, “santos”, etc., no mercado estrangeiro. Esses cafés eram
reexportados pelos negociantes internacionais dos grandes centros comerciais
para os mercados menos exigentes, dentro e fora da Europa. Enquanto isso, os
melhores cafés exportados pelo Brasil eram classificados como se tivessem outras
procedências, o que lhes assegurava melhor preço.54
Na Europa, a inferioridade do café brasileiro era associada à forma de
obtenção do produto, ao horror à escravidão dos negros e à exploração dos
imigrantes europeus praticada no Brasil.
Mais uma vez, o Senador Godoy, em 1882, estava entre aqueles que
chamavam a atenção do Parlamento brasileiro para a questão:
[...] A educação popular européia tem horror à escravidão, e
encara os povos onde ela existe como bárbaros, intolerantes,
capazes de todos os crimes, por suportar o mais hediondo
41
delles e portanto, infiéis à execução de quaisquer contratos.
O nosso próprio café é olhado como de procedência
criminosa, e por isso taxado com despotismo, como na
França, que cobra 6$254 por 15 kilogramas; e para ter
consumo em diversos países occulta-se-lhe a origem com
descrédito e prejuízo nosso. 55
As autoridades, nas exposições universais, esmeravam-se para divulgar
uma produção de excelência no Brasil, mas os demais pequenos produtores quase
sempre conquistavam os melhores prêmios, ainda que apresentassem poucas
amostras.
Na Exposição Internacional de Antuérpia, em 1885, por exemplo,
expuseram café 1.045 produtores, sendo 900 brasileiros (86,12%), que
apresentaram 1.247 (81,71%) de um total de 1.526 amostras de cafés.
Concorrendo com as “colonias francesas, Haiti, Libéria, Portugal, Paraguai,
Bélgica e França”, o Brasil só obteve 96 medalhas (54,54%) de um total de 176
distribuídas.56
Da parte dos negócios internacionais, as grandes firmas operadoras do
mercado de café rebatiam as acusações de práticas comerciais ilícitas com o
produto brasileiro que recebiam e reclamavam do produto. Relacionavam a baixa
qualidade do café com o método de colheita — que consideravam impróprio — e
com o sistema de benefício, feito em boa parte pelos métodos tradicionais.
Instruído o investigar a questão, o cônsul-geral brasileiro em Liverpool, o
visconde do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos, efetuou uma enquete entre
as principais firmas importadoras inglesas. Concluindo que os grandes
negociantes da Grã-Bretanha não omitiam os nomes dos portos de procedência
dos cafés brasileiros, Rio Branco acabou por pontuar uma gradual, porém
perceptível, mudança nos métodos de preparação do produto exportado pelo
42
Brasil. Ao afirmar que as exposições nacionais e internacionais contribuíam para
conscientizar o produtor nacional, o principal representante brasileiro foi taxativo:
[...] se as exposições têm demonstrado que podemos, e
efetivamente produzimos, café da melhor qualidade, não se
segue daí que a maior parte do que exportamos pertença à
categoria do que é escolhido para tais exposições.
Os nossos fazendeiros dão, em geral, mais importância à
quantidade do que à qualidade; e a exposição que em boa
hora acaba [...], terá tornado bem patente aos incrédulos a
diferença que há entre o café comum ou ordinário, que forma
a massa geral das nossas exportações, e os cafés de outras
procedências mais apreciadas na Europa.57
E ainda:
[...] Temos feito quanto ao beneficiamento do gênero,
notáveis progressos, mas sendo muito maior a quantidade do
comum ou inferior, é esta, para os consumidores, a que dá
nome ao café do Brasil. Por isto os retalhadores (não o
grande commércio), com o fim de satisfazer os seus clientes,
vão vendendo com o nome de Moka, Ceylão, Martinica, etc.,
as qualidades superiores do Brasil.
[...] Esta fraude ... dá-se sobretudo em França, nos outros
países do continente europeu, e, segundo me informam,
também nos Estados Unidos.58
Em seu relatório ao ministro da Agricultura, Commércio e Obras
Públicas, aquela autoridade, tentando manter-se imparcial, reproduziu as seguintes
opiniões que colheu das agências internacionais:
43
Os Srs. H. Clarke & Comp., corretores em Liverpool
responderam assim:
'Os cafés do Rio e Santos são apreciados como de qualidade
comum, mas quasi nenhuma entrada têm no consumo deste
país. São em geral reexportados para o continente. As
variedades do lavado, contudo, entram ocasionalmente no
consumo [...].59
Da empresa de Patry & Pasteur, Paranhos relatou:
Os cafés geralmente consumidos neste país são os de Ceilão e
Índia ingleza, colory plantation coffee, e em seguida, os de
Costa Rica, Guatemala, Nova Granada e outras qualidades
da América Central.
Os cafés brasileiros são sempre vendidos neste mercado com
o seu verdadeiro nome: Rio, Santos ou Bahia.
Os nossos consumidos não gostam do café brasileiro, de sorte
que é mui pouco usado aqui. A razão é o cheiro desagradável
do café brasileiro cru, é o mau gosto que tem depois de
tostado. Estes inconvenientes são sem dúvida devidos ao
modo como ele é preparado nas fazendas do Brasil. Os cafés
de Ceilão e Índia, que, como dissemos são os que
principalmente entram no consumo, não apresentam o cheiro
e o sabor desagradável do brasileiro, porque são mui
cuidadosamente lavados depois de despolpados.
[...] Se o Brasil puder mandar a este país cafés tão limpos,
tão frescos e bem preparados como o ordinário ou native de
Ceilão e da Índia, acreditamos que a sua barateza relativa
fará com que entrem francamente no consumo inglês.60
Dos comerciantes da empresa R. J. Rouse & C., Rio Branco recebeu a
seguinte resposta:
44
Os consumidores ingleses não gostam do café do Brasil,
porque em geral o gênero tem sabor peculiar: sabor de terra
ou de tijolo. O café do Rio está especialmente neste caso. O
sabor do de Santos é mais suave.
Quase todo, ou melhor, todo o café brasileiro importado em
Inglaterra é, conseqüentemente, reexportado.[...] 61
A resposta de James Cook & Comp. também `foi similar às dos demais.
Mas sua carta-resposta já apontava o desnível entre a qualidade do café
beneficiado em máquina daquele produzido no terreiro, no pilão e no carretão
tradicionais, em prática em muitas fazendas brasileiras:
[...] Os cafés de Ceilão, Jamaica e Índias Orientais, [...], e
muitos outros, como os de Costa Rica e Java são
decididamente superiores aos do Brasil. O Brasil fornece, é
certo, mais de metade da produção do mundo, mas o seu
produto, pelo lado da qualidade, figura em escala
inferior.Isto provêm de serem as mais belas qualidades de
café, como o de Ceilão, lavados, ou, por outras palavras, de
ser esse café, superior despolpado com água em uma
máquina, logo depois de colhido. A chamada cereja (cherry)
é assim separada, e o favo (berry) seca na pele pergamentosa.
No Brasil, talvez por falta d'água e escassez de trabalho,
deixa-se o café secar na casca (husk), o que lhe dá sabor
especial e mui forte, que nada pode fazer desaparecer. 62
Os mesmos importadores ingleses agora reconhecem a qualidade em uma
parcela do café brasileiro que compram, talvez aquela colhida de cafezais novos e
beneficiados em máquinas modernas. Demonstram conhecer bem o sistema de
produção brasileiro e o problema da colheita por derriça:
45
Do Rio e de Santos exporta-se para aqui certa quantidade de
café lavado, que sempre alcança preços elevados.[...]
A superioridade do café de Ceilão e das Índias Orientais
procede também de só serem colhidos os bagos quando bem
maduros, reservando-se os que não o são para segunda e
terceira colheita. No Brasil, consta-nos que em conseqüência
de escassez de braços, só se faz uma colheita, finda a qual os
arbustos são decotados. 63
Além do problema da qualidade, havia também o da quantidade de café
produzido anualmente. Pelo método de insolação, após um ano de boa colheita, o
cafeeiro baixava sua produção por dois ou três anos, antes de voltar ao patamar
anterior, até o limite de 15 a 18 anos, após o que a árvore definhava.
Levando-se em conta que a planta dava a primeira carga após o quarto
ano, pode-se inferir que em sua vida útil não produzia, mesmo em boas terras,
mais que cinco ou seis boas cargas de café. Isso forçava um deslocamento
contínuo das plantações, à medida que as terras dos cafezais antigos iam ficando
arruinadas e os cafeeiros, improdutivos, em plena idade vigorosa.
Tais peculiaridades foram bem observadas por J. J. Von Tchudi, Cônsul
da Confederação Helvética (atual Suíça), que, em missão de observação das
condições de vida de seus patrícios no Brasil, na década de 1860, relatou:
baseando-me em informações minuciosas que colhi em várias
Províncias, cheguei à conclusão que a produção média de um
arbusto de 6 a 10 anos é de 2 libras de café limpo; na idade
de 10 a 18 anos, 2 libra e um quarto. Na plantação de um
conhecido meu, seu cafezal, que contava 45.000 pés de 13
anos, deu quase 6.000 arrobas de café, ou seja 4,5 libras por
pé. No ano seguinte a colheita foi de apenas 700 arrobas, ou
meia libra por pé.64
Apesar disso, a situação favorecia diretamente os negociantes. Os
problemas de imprevisibilidade das safras futuras e a flutuação da demanda
46
aumentavam a margem de especulação dos agentes do mercado, alterando a
cotação internacional do café.
No exterior, os operadores do mercado de café acompanhavam passo a
passo as condições de produção das safras brasileiras, buscando obter
informações que favorecessem os melhores negócios. Mais uma vez, o Visconde
do Rio Branco, de sua privilegiada posição de cônsul-geral do Brasil na
Inglaterra, dá notícias de como funcionava o mercado:
[...] Apenas [o café] sahe do Rio, de Santos ou de outro porto
do Império algum carregamento, é isso assignalado pelos
corretores a sua clientella, e nas circulares que distribuem
dão miúda conta da colheita no Brazil, das vendas realizadas
em nossas praças, destino das expedições e depósitos no Rio e
Santos. Qualquer accidente, as chuvas torrenciaes que
ultimamente se derão no Rio, os desmoronamentos e
interrupções em nossas linhas férreas, tudo é noticiado logo
aos negociantes de café na Europa.65
Convém notar que, se, de um lado o esgotamento das terras, as pragas e a
irregularidade das chuvas provocavam a ruína dos menores fazendeiros e dos
menos capitalizados, de outro, não atingia tanto os grandes fazendeiros de café, os
quais, beneficiando-se das leis do crédito hipotecário e da “renda capitalizada” em
escravos, dispunham de estoques de terras nativas.
Isso pode ser demonstrado pela quebra da safra de café verificada em
1886, quando de há muito pragas e doenças devastavam as plantações, além de
outros fenômenos naturais:
o mercado de café em 1886 esteve muito animado,
principalmente pelo grande, se bem que gradual, augmento
nos preços, graças `a reducção da colheita que se esperava
do Rio e de Santos, de onde em vez de 8,000,000 de sacos não
se espera mais do que 6,250,000 sacos. Além disto, o
supprimento visível das outras procedências no mundo
mostra a deficiência de 1,250,000 sacos. Muitos dos
importadores crêm que mesmo os 6,250,000 do Rio e Santos
ficarão reduzidos a 4,500,000 por causa das grandes chuvas
47
de Setembro a Novembro, e recusão baixar os preços, de
modo que estes se têm ido elevando firmemente. Por outro
lado, os compradores mostrão-se um tanto scepticos e o
resultado é que no interior o stock em ser está quasi
esgotado.
[...] A variação nos preços no anno próximo passado é bem
indicada por estes algarismos: em Janeiro, o café n. 6 valia 7
½ cents.; em Abril 8 1/4; em Julho 8 3/4; em Outubro 11 7/8,
em Dezembro 13 3/4.” 66
Até este ponto pretendeu-se mostrar como, no Brasil, a economia cafeeira
foi orientada segundo um modelo de exploração intensiva da terra e do braço
escravo, que conduziria ambos à exaustão.
O desenvolvimento industrial que ocorreu na Europa e nos Estados
Unidos da América popularizou o consumo do café e aumentou a demanda do
mercado internacional na segunda metade do século XIX.
Para beneficiar-se do aumento do consumo mundial os fazendeiros
brasileiros optaram por um projeto de fazenda em que o escravo era parte
primordial não só como garantia de empréstimos antes do plantio mas também
como mão-de-obra de alta produtividade no cafezal.
As fazendas de café eram formadas graças à disponibilidade de terras
florestais nativas, por onde se deu a expansão da cafeicultura, sempre baseada no
método de insolação. Forçava-se o aumento da produção da lavoura nas primeiras
safras, abandonando-as e substituindo-as por novas plantações, à medida que as
terras se exauriam.
Das memórias de Antônio Lima, diretor da fazenda Guatapará, de
Martinho Prado Júnior, pioneiro da região de Ribeirão Preto, pode-se atestar a
continuação do uso do referido método de cultivo do café:
[...] dr. Martinho Prado Júnior [...] extasiou-se deante dos
imensos espigões, cobertos de mata virgem que se extendiam
48
a perder de vista. Constatou a excelência das terras, a
conveniente altitude, e comprou-as.67
Lima narrou suas lembranças de 1900 como se as cenas daquele momento
estivessem, 30 anos após, ainda diante de si:
[...] A derrubada e a queimada dessa enorme área de mata,
constituiu um dos espetáculos mais ousados e empolgantes.
Milhares de árvores seculares caindo com estrondo, sob os
golpes compassados de machados do nosso inegualável
cabôclo.
Semanas depois, uma fumaça espessa e negra denuncía a
gigantesca queimada. Logo, em seguida, já se agita um mar
de fogo, com enormes labaredas, tudo devorando debaixo de
fumaça sufocante. Grandes troncos de árvores se contorcem e
estalam sob um calor infernal [...]. Sôbre um imenso lençol
de cinzas, começa, então, o trabalho afanoso de alinhamento,
coveação e plantação das sementes de café[...]
É preciso projetar e executar melhoramentos definitivos
como: canais para a condução do café do cafezal; lavadores
e terreiros, donde deverá seguir, por gravidade, para as
tulhas, máquinas de beneficiar, depósitos, e, daí, diretamente
para os vagões da estrada de ferro [...]
A Fazenda Guatapará, que ao lado do seu cafezal, constituiu
em tempo [...], uma usina de acúcar, vastas plantações de
arroz, algodão, mandioca, etc., durante anos sucessivos
manteve grandes safras que culminaram com a produção de
320.000 arrobas em 1906 [...].68
E destacou que, poucos anos depois, tudo mudara:
Em 1912 [...] observava-se que o aspecto do cafezal, russo,
sem vegetação, cheio de varas sêcas, era desolador.69
NOTAS
49
1
Martins, Araguaia Feitosa. Mutirão cafeeiro. São Paulo, Brasiliense, 1962.
2
Cf. Camargo, R de. e Telles Jr., A. Q. O café no Brasil. Sua aclimação e industrialização. Rio de Janeiro, Serv. de
Informação Agrícola/MA, 1953. 2 vol.
3
Ibid.
4
Martins, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo, LECH, 1981. 2 ed. p. 24.
5
Ibid., p.25. A respeito da vida do Brasil nos primeiros anos após a independência, ler a interessante obra biográfica
de Caldeira, Jorge. Mauá – empresário do Império. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.
6
Martins, J. S. Op. cit., p. 26.
7
Em 1882, a Associação Comercial de Santos estimava que, do valor de uma fazenda de café, uns 20% poderiam
corresponder à avaliação da terra. Cf. Martins, J. S. Op. cit., p. 25.
8
Cf. Fragoso, João Luis. “O império escravista e a república dos plantadores”. In: Linhares, M. Yedda (org.). História
Geral do Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1990. p. 138.
9
Martins, J. S. Op. cit., p. 26.
10
Esta expressão popular continha a idéia de que a monocultura do café bastava ao Brasil, sendo, por isso, criticada
pelo Dr. Nicolau Moreira, da Sain. O Auxiliador... 1884, pp.27-31.
11
Os revezes e transformações ocorridas na vida política do Império refletiam-se no sistema financeiro, tornando-o
complexo e de difícil análise. Para um melhor entendimento da questão, ler: Stein, Stanley J. Op. cit.; Levy, M.
Bárbara. Op. cit.; Fragoso, João Luis. “O império...” In: Linhares, M. Yedda (org.), op.cit. e Fragoso, J. Luís.
Homens de grossa aventura. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1992; Machado, Humberto F. Op. cit.; Almeida,
Gelson R. de. Op. cit. e a obra biográfica de Caldeira, Jorge. Op. cit.
12
Cf. Kemp, Tom. Grã-Bretanha 1870-1914: um pioneiro sob pressão. In: A Revolução Industrial na Europa no
século XIX. Lisboa, Edições 70, 1987. Cap. VII.
13
O Auxiliador... 1891 . p. 93.
14
A política brasileira para os transportes no século XIX será abordada no próximo capítulo.
15
Emprestei essa alusão aos trens de ferro da obra de Hardman, Francisco F. Trem fantasma. A modernidade na selva.
São Paulo, Cia. das Letras, 1988.
16
Cf. Martins, J. S. Op. cit. p.27.
17
Viajando pelos cafezais brasileiros a serviço do governo de Java, Van Delden Laerne assim se referiu à
produtividade do escravo brasileiro: “Um escravo da zona cafeista no Brasil trabalhando 14, 16 até 18 horas diárias
tem que tratar: no Rio de uma plantação de 3 hectares; em Santos, de uma plantação de 2 ¾ hectares. Em Java uma
família composta na média de cinco pessoas não tem que tratar de mais de 450 a 500 árvores, portanto menos de ½
hectare. A quantidade de café colhida por um escravo pode avaliar-se na média em 10 a 45 kilos por dia; em Java a
média por pessoa não passa de 12 a 13 kilos quando muito”. O Auxiliador... 1886, pp. 232-233.
18
Para a apuração dos valores foram confrontadas as estatísticas apresentadas pelo senador Godoy para o ano de
1875, publicadas em O Auxiliador... 1882, p. 163, com a estatística publicada em O Auxiliador... 1886, p. 231, para
o ano de 1885.
19
Não foi incluído o número de escravos da província do Espírito Santo na estatística apresentada pelo Sem. Godoy
para 1875, em O Auxiliador... 1882, p. 163.
20
O Auxiliador... 1886, p. 231. Estão incluídos os 19.762 escravos do Espírito Santo.
21
O Auxiliador... 1886, p. 231.
22
O Auxiliador... 1886, p. 231.
23
É interessante notar que, enquanto o abolicionismo crescia, mantinha-se publicamente a oferta de escravos em idade
produtiva, a exemplo do anúncio: “Escravos Vassoura. Acaba de chegar a esta cidade um lote de escravos próprios
para a lavoura, todos moços de 12 a 18 annos; os Srs. fazendeiros que os pretenderem comprar dirijão-se a Carlos
Villalba Alvim, nestes dias mais próximos” (Jornal do Commércio, 02.07.1878, p. 4).
24
João Manoel Cardoso de Mello afirma que, entre 1885 e 1888, a lavoura cafeeira paulista recebeu perto de 260.000
imigrantes. Melo, J. M. C. de. O capitalismo tardio. São Paulo, Brasiliense, 1991, 8a ed., p. 87. Também Fragoso,
J. L. “O Império...”. In: Linhares, M. Yedda (org.), op.cit., p.150, afirma que, entre 1887 e 1900, a lavoura cafeeira
paulista recebeu 863.000 imigrantes. Com esses dados, pode-se inferir que o grosso da imigração deu-se a partir da
década de 1880.
25
Jornal do Commércio. 02.07.1878. p. 4.
26
Cf. Martins, J. S. Op. cit., p. 19.
27
Jornal do Commércio. 11.12.1873. p. 5.
28
O Auxiliador... 1882, p. 163 e 1886, p. 231.
50
29
O Auxiliador... 1882, p. 163 e 1886, p. 231. Entre os percentuais de “livres ocupados” do Sudeste, excetuam-se os
da província do Espírito Santo.
30
A respeito de toda a técnica referente ao plantio e cultura do cafeeiro ver: Camargo, R de. e Telles JR. Adalberto de
Q. Op. cit.
31
Camargo, R de. e Telles JR. Adalberto de Q. Op. cit., p. 329. afirmam que, nas florestas brasileiras, “o eucalipto
[...], certas leguminosas, entre as quais o jacaré, o guarucáia, o faveiro, o monjoleiro, a farinha sêca e outras muitas”
não se prestam ao sombreamento dos cafezais.
32
Ibid.
33
Exemplo típico desse fato é o que relata Mariano Monte Alegre, ex-presidente do Instituto de Café de Costa Rica,
ao observar que “alguma cousa vem contrariando a natureza no Brasil, porquanto as mais velhas culturas de café de
seu País, plantadas à sombra, ao mesmo tempo em que se plantaram ao sol os cafezais do Estado do Rio de Janeiro,
no Segundo Império, ainda sobrevivem e produzem econômicamente, estando, ainda longe de soar para elas a hora
dos indícios de decadência”. Cf. Camargo, R de. e Telles JR. Adalberto de Q. Op. cit., p. 331. vol. I.
34
O Auxiliador... 1874, pp. 148-154.
35
O Auxiliador... 1874, pp. 148-154.
36
O Auxiliador... 1874, pp. 148-154.
37
A respeito do zoneamento e da tipologia dos solos de São Paulo, consultar o Livro I, primeira parte, da obra de
Monbeig, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo, Hucitec, 1984.
38
Monbeig, P. Op. cit., principalmente o Livro I, Cap. III, Item C) “As consequências da intervenção humana”.
39
Ibid., p. 329.
40
Camargo, R. de. e Telles JR. Op. cit., p. 324.
41
O Auxiliador... 1873, p. 475.
42
O Auxiliador... 1873, p. 475-477.
43
O Auxiliador... 1886, pp. 242-244. O primeiro relatório das pesquisas preparado pelo cientista foi publicado em O
Auxiliador... 1887, pp. 269-271.
44
O Auxiliador... 1884, p. 107.
45
d’Oliveira, Luiz Torquato M. Novo methodo da plantação, fecundidade, durabilidade, estrumação e conservação
do café e extincção das formigas exposto em benefício da agricultura do Brasil e lugares cafeeiros. Rio de Janeiro,
Typographia Paula Brito, 1863, 30 p.
46
Ibid.
47
Ibid., p. 330.
48
Camargo, R de. e Telles JR. Adalberto de Q. Op. cit., p. 331. vol. I.
49
Ibid., p. 322.
50
Instituto de Café do Estado de São Paulo. (Seção de Publicidade). Cultura do café à sombra. Ed. Navarro de
Andrade. s/d, pp. 3-5.
51
Camargo, R de. e Telles JR. A. de Q. Op. cit., p. 331. vol. I, pp. 327-328.
52
Relatando sua viagem aos Estados Unidos da América por ocasião da Exposição de Filadélfia, em 1876, o Dr.
Nicolau Moreira, da Sain, escreveu que “... na União-Americana grande parte do café brasileiro superior era
vendido sob diversas denominações, sendo conhecido geralmente como produto do Brasil o café ordinário que
aparecia no mercado; - café dos pobres - tal era o nome que se lhe dava” (O Auxiliador ... 1881, p. 79. Grifo do
autor).
53
Camargo, R. de. e Telles JR, A. de Q. Op. cit., p. 323, demonstram que, nas últimas décadas do século XIX,
Campinas apresentou média anual de 210 dias nublados, sendo 116 chuvosos e 94 dias encobertos, reduzindo as
deformações causadas aos cafezais pela insolação.
54
Sobre a polêmica, o Visconde de Rio Branco escreveu ao ministro da Agricultura, Commércio e Obras Públicas que
“[...] No Brasil, o público geral acredita, pois isto há sido muito repetido ultimamente, que os cafés brasileiros são
vendidos debaixo de outros nomes em primeira mão, nos grandes mercados europeus, atribuindo-se-lhes outras
procedências. É um engano, que cumpre retificar, embora muitos lavradores e todos os intermediários do nosso
comércio de exportação saibam perfeitamente que tal crença não tem fundamento.[...]” (O Auxiliador... 1882, pp.
203-233). A respeito da polêmica, são vários os artigos publicados em O Auxiliador... no transcurso da década de
1880.
55
O Auxiliador... 1882, pp. 159-164.
56
O Auxiliador... 1886, p. 79.
57
O Auxiliador... 1882, pp. 203-233.
51
58
O Auxiliador... 1882, pp. 203-233.
59
O Auxiliador... 1882, pp. 203-210 e 225-230.
60
O Auxiliador... 1882, pp. 203-210 e 225-230.
61
O Auxiliador... 1882, pp. 203-210 e 225-230. Grifo meu.
62
O Auxiliador... 1882, pp. 203-210 e 225-230. Grifo meu.
63
O Auxiliador... 1882, pp. 203-210 e 225-230. Grifo meu.
64
Von Tchudi, J. J. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. s/l, Martins, s/d, p. 37.
65
O Auxiliador... 1882, pp. 203-233.
66
O Auxiliador... 1887, pp. 140-141.
67
Lima, Antonio Alves de. “Uma grande Lavoura de Café no Estado de São Paulo”. In: O café no segundo centenário
de sua introdução no Brasil. Rio de Janeiro, Depto Nac. do Café, 1934. Vol. 1o pp. 365-367. Para mais
informações sobre a fazenda Guatapará, consultar as imagens reproduzidas em Martins, José de Souza. O
cativeiro...
68
Ibid.
69
Ibid.
OK
49
2
TRILHAS DO CAFÉ:
DA TROPA DE BURRO AO VAPOR
Ter telégrafos e locomotivas, lavrando a terra e exportando
os seus produtos como há 100 anos atrás, é fazer, pelo
menos, um papel ridículo perante o mundo civilizado, que
hoje ouve cada uma das nossas palavras, vê cada um de
nossos atos, e sente cada uma de nossas pulsações, sob a
1
ação mágica da eletricidade!
Até o fim do século XVIII, o maciço do movimento comercial no Sudeste
brasileiro dava-se entre o Rio de Janeiro e Vila Rica (Ouro Preto). Nesse tempo, a
tropa de burros era composta por até 50 animais, que carregavam em média 12
arrobas (180 quilos) cada, ao preço de 1$000 (um mil-réis) por arroba, serra
acima, e $800 (oitocentos réis), no retorno. O custo do transporte entre as regiões
ficava entre 480$000 e 600$000 (quatrocentos e oitenta e seiscentos mil-réis). O
tempo da viagem variava de acordo com as chuvas, que aumentavam as
dificuldades de trânsito nos terrenos acidentados, e provocavam a perda das
mercadorias e dos animais.2
Com a instalação da Corte portuguesa, em 1808, as iniciativas de
construir novas estradas e melhorar as existentes se intensificaram visando a
melhorar o abastecimento do Rio de Janeiro. Por essa época, a fixação de
inúmeras fazendas nos arredores da Corte intensificou as trocas comerciais,
aumentando a necessidade de meios de comunicação. Ao mesmo tempo, a atração
pelos negócios relacionados com o extrativismo do ouro diminuiu, reorientando o
investimento de esforços e capitais na ocupação da região do vale dos rios Piraí e
Paraíba, entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Várias fazendas de
agricultura e pecuária foram fundadas nas terras indígenas, a partir de vilarejos
50
remotos que funcionavam como rancho das tropas de animais de transporte. Com
a intensificação da produção e do comércio, essas localidades tornaram-se vilas e
posteriormente cidades.3
Lorena (SP), por exemplo, foi fundada em 1705, em local de passagem de
tropas. Em 1788 tornou-se vila, mas em 1817 era ainda um sítio pobre, sem
importância, apesar dos arredores férteis e do tráfego entre São Paulo e Minas
Gerais. Era um povoado de umas quarenta casas, na região do qual predominava o
plantio do tabaco, conforme registrou a missão austríaca que por lá passou
naquele ano.4
Na direção ao Rio de Janeiro, localizava-se Santo Antônio da Cachoeira
(atual Cachoeira Paulista), criada em 1780. Para alcançá-la, em 1817, a expedição
de Spix, Martius e Thomas Ender utilizou os serviços de travessia de balsa de que
a cidade já dispunha para transpor o rio.5 Na mesma situação, estava Areias, cuja
fundação ocorreu em fins do século XVIII, beneficiando-se da proximidade do
Paraíba e da necessidade de rancho para as tropas que viajavam pela estrada de
São Paulo. Nesse trecho, o comboio dos austríacos cruzou com a tropa do bispo
de Nova Cordova, que viajava escoltado por tropas portuguesas entre Montevidéu
e o Rio. 6
Também Resende, já no curso fluminense do Paraíba, tornou-se vila no
mesmo processo. Criada como Campo Alegre por volta de 1740, teve por
fundadores mineiros procedentes de Aiurioca que,
com o fim do ouro das Gerais [...] foram se deslocando para
a Paraíba Nova e aí construíam suas choças “... cobertas de
uricana ou de bicas de palmito”, e plantavam milho, feijão e
frutas trazidas de Minas para seu sustento. 7
Ao ter sua capela construída em louvor a Nossa Senhora da Conceição, o
vilarejo ficou conhecido por Arraial de Nossa Senhora da Conceição de Campo
51
Alegre da Paraíba Nova. À época em que se tornou Vila de Resende, em 1801,
seu território abrangia também Barra Mansa e São João do Príncipe. Naquele ano,
Resende possuía já
mais de 500 fogões, algumas fábricas de anil, cerca de quatro
mil fregueses, um colégio particular, lavoura de cana e
cavalos de tração. 8
É atribuído a “um certo” Padre Antônio Couto da Fonseca, da Fazenda do
Medanha, no Rio de Janeiro, o primeiro plantio de “alguns mil pés” de café. Os
moradores das serras próximas levavam até lá o toucinho, que era vendido no Rio
de Janeiro. Nas viagens de retorno a seus lugares levavam frutos e mudas de
café.9
Para Eduardo Silva,
Em 1802 [...] as mudas e sementes do bom padre Couto, que
os roceiros recolhiam em torna-viagem, já haviam se
transformado em cafezais dignos de figurar em escrituras de
compra e venda de terras. Devem ter chegado (..) no mínimo
cinco anos antes, por volta de 1797. Eram os inícios do café,
da escravidão, em Resende, centro pioneiro do Vale do
Paraíba fluminense.10
Afastando-se do rio Paraíba, de encontro ao rio Piraí, havia outros
lugarejos que serviam de entreposto e descanso das tropas, como São Bom Jesus
do Bananal, Nossa Senhora da Piedade do Rio Claro e São João Marcos, que
futuramente se transformariam em vilas prósperas, graças à intensificação
agrícola e comercial.
As aquarelas pintadas por Ender em 1817 mostram os tipos humanos e as
instalações das fazendas da região, onde o rio Piraí era transposto por ponte
estrutural de madeira para facilitar o tráfego.11
52
Essas vilas e cidades serviram de pólos de distribuição de mudas de café,
intensificando o povoamento entre as províncias.12 Mais para a região paulista,
Saint-Hilaire registrou que, em Lorena, já em 1822, o que mais se cultivava era o
café. Dessa cidade para o norte, o viajante anotou:
Quanto mais me aproximo da Capitania do Rio de Janeiro
mais consideráveis se tornam as plantações. Várias existem
também muito importantes perto da vila de Resende.
Proprietários desta redondeza possuem 40, 50, 60 e até 100
mil pés de café. Pelo preço do gênero devem estes fazendeiros
ganhar somas enormes. Perguntei... em que empregavam o
dinheiro. “O sr. pode ver... que não é construindo boas casas
e mobiliando-as. Comem arroz e feijão. Vestuário também
lhes custa pouco, nada gastam com a educação dos filhos que
se entorpecem na ignorância, são inteiramente alheios aos
prazeres da convivência mas é o café que lhes traz dinheiro.
Não se pode colher café senão com os negros; é pois
comprando negros que gastam todas as rendas e o aumento
da fortuna se presta muito mais para lhes satisfazer a vaidade
do que para lhes aumentar o conforto”. 13
Com o decorrer da primeira metade do século XIX, a implantação das
fazendas de víveres — para abastecer a Corte e as minas de ferro de Minas Gerais
— e de café para exportação demandaram meios de transporte e caminhos mais
adequados para cargas de maior porte, impossíveis de serem transportados em
tropa de burros.
O que ocorreu nesse período foi o que Beauclair chamou de “uma
verdadeira aplicação das artes dos caminhos”, tendo sido entregues a engenheiros
experientes os novos projetos, que deveriam levar em conta não só a topografia,
os melhores cursos e a canalização das águas de chuvas, mas também o
alargamento e a pavimentação das estradas, visando à passagem não só de animais
de carga, como também dos “carros para grandes pesos”, tracionados por juntas
de animais. Essas estradas requeriam, naturalmente, a construção de pontes e
obras de escoramento e arrimo.14
53
A partir da década de 1830, quando cresciam as plantações de café, foram
surgindo projetos vultosos de obras de construção de estradas partindo da Corte e
ramificando “serra acima”.
A maior delas foi a que ligava o porto fluvial de Iguassu (no fundo da
baía da Guanabara) aos municípios de Valença e Vassouras, seguindo para Minas
Gerais. Em 1836 iniciou-se também a construção da estrada da Serra da Estrela,
que ligaria a Corte a Petrópolis, e a estrada União e Indústria. As obras dessa
estrada foram concedidas a Irineu Evangelista de Souza, prevendo inicialmente a
construção de uma “estrada carroçável” da vila de Paraíba do Sul até Porto Novo
do Cunha. Daí partiriam “dois ramais, um para Mar de Espanha, com destino a
Ouro Preto, e o outro para o rio das Velhas, donde se faria um esgalho para São
João del Rei”15.
Entretanto, foi construído o trecho de Petrópolis a Juiz de Fora,
inaugurado em 1861.16 A obra exigiu um penoso trabalho de corte de grandes
rochedos e produção de pedras em tamanhos regulares, feito por profissionais
especializados, obrigando ainda a construção de inúmeras pontes de alvenaria.17
Em 1837, o Governo nomeou uma comissão para promover
melhoramentos na péssima, porém importantíssima, estrada geral de Mambucaba.
Essa estrada ligava os municípios portuários de Parati e Angra dos Reis ao porto
de Mambucaba, na baía de Angra dos Reis.
Desse importante porto de escoamento de ouro, a estrada subia aos
municípios de Areias e Lorena, em São Paulo. Alves Motta Sobrinho afirma que,
via Mambucaba, com destino ao porto carioca, chegaram a
passar, num ano, mais de 20.000 animais carregados de
produtos que o Rio de Janeiro consumia e exportava para o
exterior, onerando os fazendeiros em manutenção de tropas e
camaradas do serviço de transporte: carreiros, domadores,
peões e arrieiros.18
54
A Estrada de Paraybuna, por sua vez, ligava a Corte a Ouro Preto.
Considerando sua construção e funcionamento fundamentais para a região,
Beauclair afirmou que
seus trabalhos incluíam numerosíssimos aterros, pontes e
canais de irrigação. Coberta de saibro em numerosos lugares
críticos, ao cortar alguns morros, exigia altos muros de
contenção (alguns chegando a 20 metros de altura).19
E continua, referindo-se à mão-de-obra empregada: “A gama de trabalhadores era
extremamente variada (feitores, pedreiros, ferreiros, carpinteiros, trabalhadores
comuns, africanos libertos e escravos)”.20
O quadro evolutivo da construção de estradas de rodagem no Brasil no
início e meados do XIX não se encerrava na zona cafeeira do vale do Paraíba.
Desde há muito, outros caminhos de uso municipal ou provincial foram surgindo,
alguns para atender a interesses mais amplos, outros para favorecer e fortalecer
interesses específicos.
Nesse particular, os autores que estudaram o assunto através de fontes
como os relatórios dos presidentes das províncias, atas das câmaras municipais e
periódicos da época afirmam a pressão que os grupos locais faziam por
construção e melhoria dos meios de transportes.
Deve-se, porém, registrar que, no transcorrer da primeira metade do XIX,
toda uma rede de estradas foi construída comunicando o Rio de Janeiro com as
regiões fronteiriças de Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo. Por ela
propagou-se a lavoura do café, beneficiando-se dos portos de embarque dos rios e
do litoral brasileiro.21
Da mesma forma que as estradas, a navegação costeira e fluvial constituía
importante fator no conjunto das iniciativas de promover o progresso do país no
século XIX. Buscava-se integrar de forma articulada os caminhos terrestres com
55
os portos, de mar ou rios. Para isso contava o Brasil com alguns grandes rios
navegáveis, que facilitavam a navegação e propiciavam o surgimento de
atividades econômicas em seus vales.
Tal foi o caso da cultura do café no vale do Rio Paraíba, em cuja bacia
ficava a própria Corte. O café ultrapassou-o inclusive em direção a oeste,
chegando às regiões de Minas e ao interior extremo de São Paulo, e ao norte, para
o Espírito Santo.
O aproveitamento do potencial de transporte e navegabilidade do rio
Paraíba, e também do rio Piraí, em solo fluminense, e sua articulação com
estradas e portos de mar foi essencial para o desenvolvimento econômico na
região dessas bacias. Naquele momento, as circunstâncias históricas que
ocasionaram o surgimento das lavouras do café em seus cursos foram favorecidas
economicamente pelas facilidades de escoamento para o principal porto de
exportação do país, o do Rio de Janeiro.
Na primeira metade do século XIX, o transporte da produção — não
apenas o café — das regiões paulista, mineira e fluminense do vale do Paraíba
eram escoados, principalmente, por tropas de animais até a baía de Angra dos
Reis, onde eram embarcados nos portos de Jurumirim, Ariró, Mambucaba e
outros.
Interessava aos comissários e fazendeiros locais encurtar as distâncias e
diminuir os riscos das viagens. Por isso ao interesse do governo juntavam-se
iniciativas de particulares como o fazendeiro e juiz de paz de Resende, Domingos
Gomes Jardim. Dirigindo-se à Câmara Municipal, em 1830, Gomes Jardim
propôs-se construir uma estrada entre Resende e Ariró:
[...] temos pois o incômodo de fazer as nossas exportações a
quarenta léguas [mais de 240 km] , havendo um porto de
embarque qual é o da Vila da Ilha Grande [...], que em
direitura só dista desta vila doze a treze léguas...
[aproximadamente 78 km].22
56
No plano apresentado, a obra seria administrada e executada por Gomes
Jardim, empregando 20 escravos, carros e bois de sua propriedade.23 Iniciando-se
em 1831, projetava partir de Resende, passando por São José do Barreiro,
atravessar a Serra da Bocaina até atingir Mambucaba. Segundo Whately, estariam
servidos pela estrada, também Areias, Bananal e regiões vizinhas.24
Na falta de três contos de réis para completar a obra, a Câmara solicitou
ajuda ao governo imperial, que, em troca, propôs uma cotização entre os
munícipes interessados no melhoramento, garantindo-lhes a restituição do
investimento “pelo produto da respectiva barreira” que seria autorizada após a
conclusão da obra. Afirma ainda Whately que “esta forma de concessão de
cobrança de pedágio dada a particulares por dispêndios realizados em obras
públicas é uma constante da época”.25
Entretanto, o estabelecimento de culturas rentáveis ao longo dos cursos
fluviais não teve lugar apenas nas regiões próximas da corte. Desde o governo do
Marquês de Pombal, a Coroa pretendeu estabelecer atividades produtivas e
povoar regiões remotas no Centro-Norte e em outras regiões brasileiras. No
Primeiro Reinado e no Período Regencial, essas políticas tiveram continuidade.26
As circunstâncias favoráveis ocorreram quando Portugal, após ter parte de
sua frota naval destruída pela França, foi submetido comercialmente à Inglaterr,a
com o episódio da fuga dos governantes para o Brasil. Suplantado no comércio de
longo curso com o Brasil, sua principal fonte de rendas,27 Portugal estabeleceria
uma concorrência tarifária desigual em favor da Inglaterra, por força do Alvará de
1810. O melhor aparelhamento dos navios ingleses aprofundou a desvantagem
numérica dos barcos portugueses.
Para compensar, Portugal fez vir ao Brasil mestres em construção de
barcos, procurando aumentar a frota circulante e incrementar a navegação de
cabotagem. Em tese sobre a “pré-indústria” fluminense entre 1808 e 1860,
57
Beauclair estudou a formação desses “arsenais de marinha”, bem como de seu
efeito fomentador de indústrias associadas, como é o caso das fábricas de
cordoalhas, calafetagem, velas, óleos de baleia, metalurgia, siderurgia etc., e de
especialização em ofícios industriais.28
De acordo com Simonsen, em 1811, a Coroa Portuguesa fez reformar os
estaleiros da Bahia, Pernambuco e Rio. Nesse ano, o Arsenal Real da Marinha da
Bahia lançou ao mar
uma fragata, um bergantim de guerra, duas barcas, duas
escunas, um iate, duas lanchas e várias embarcações
menores. De outros estaleiros particulares, saíam três
galeras, oito brigues, três sumacas. 29
Crescia em número de embarcações e em volume de carga o movimento
de cabotagem nacional. Em 1814, 333 barcos deixaram o porto de S. José de
Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, cheios de “trigo, queijos, couros, sebo e
charque” para a Corte.30
Portugal recuperava-se no transporte de cabotagem entre os diversos
pontos da costa brasileira, enquanto perdia terreno para os navios de longo curso
para a Inglaterra e outros países. Dos 1.460 navios que entraram no porto do Rio
em 1816, 398 eram de longo curso e 1.062, de cabotagem. Entre os primeiros, 181
eram portugueses, 113 eram ingleses e os demais, de outras nacionalidades. Os de
cabotagem eram todos portugueses. A freqüência no porto da Bahia para o mesmo
ano mostra que, de 519 navios aportados, 229 eram de longo curso, sendo 128
portugueses e 101 estrangeiros. Dos 290 navios de cabotagem, todos eram
portugueses31.
Dessa forma, enquanto o número de navios de longo curso estrangeiros
aos poucos ia superando os de bandeira portuguesa, o número destas embarcações
58
utilizadas em cabotagem crescia, graças ao impulso dado à construção naval no
Brasil, privada ou real.32
Então, se parece tão nítida uma opção pelo desenvolvimento dos meios de
transportes terrestres e navais, que conexões teria essa opção com a política
macroeconômica adotada pelo Estado português para o Brasil?
Beauclair mostra que
a resposta se encontraria na diversificação. O traço marcante
da economia colonial brasileira neste período [1796 a 1807]
é a diversificação da produção, que envolve, naturalmente,
um renascimento agrícola.33
Mostra também o autor que, mesmo com declínio da extração do ouro e
“leve ascensão” do açúcar, o movimento global das exportações brasileiras
cresceu de “3 milhões e 200 mil esterlinos em 1796 para 3 milhões e 800 mil em
1807”34.
E prossegue, justificando sua afirmação:
A pauta dos produtos de exportação colonial neste período
atesta a referida diversificação: são, no total, 126 produtos. A
idéia de multiplicação da cultura agrícola estava presente em
todos os espíritos.35
Explicando um incremento nas atividades “pré-industriais” decorrente
dessa diversificação, o mesmo autor indica que
quando existe uma diversificação de atividades agrícolas,
naturalmente aumentam as formas de beneficiamento. Essa
elaboração, essa ação modificadora sobre os produtos da
terra (e do mar) tende a ser aplicada através de pequenos
inventos e máquinas simples, que podem evoluir pouco.
Surgem, assim, pequenas oficinas, em quantidades razoáveis,
que podem se desenvolver paulatinamente. 36
59
Seguindo essa perspectiva histórica, a circulação comercial dos produtos
oriundos da diversidade econômica teria gerado uma gama de estabelecimentos
industriais de produtos “naturais” (sal, velas, chapéus, cordas, têxteis, alimentos,
etc.), juntamente com indústrias de transformação (metalurgia, siderurgia,
indústria naval, etc.) e construção civil de obras públicas, ao menos para a
província fluminense, estudada por Beauclair. A esse modelo, organizado sob
formas mistas do trabalho escravizado e assalariado, o autor chamou préindústria.37
Em sua organização encontrava-se ora o Estado ora empresários que se
beneficiavam das loterias e de outros privilégios oferecidos pelo Estado e ora,
ainda, empreendedores dotados de outras potencialidades para penetrar na
estrutura da economia escravista.
Assim, pode-se antever no centro desse processo a figura central do
empresário pré-industrial. No âmbito da conjuntura socioeconômica brasileira do
século XIX, esse empresário atuava em condições sui generis: na esfera da
produção agrícola escravista com organização pré-industrial, produzindo bens que
faziam a ligação entre a produção de base escravista e o consumo na esfera dos
mercados capitalistas
No caso brasileiro, os setores dominantes da “economia agrária
patrimonial” — como define Florestan Fernandes38 — tratarão, no transcorrer da
primeira para a segunda metade do século XIX, de alterar a base técnica da
produção como forma de conservar sua base política. Isso implicou na ampliação
do “bloco histórico”39, abrindo-o para que técnicos, negociantes, inventores e
intelectuais dele pudessem participar, alterando as formas tradicionais de
relacionamento com o núcleo do Estado.
Tal manobra resultou, no transcorrer do primeiro para meados do
segundo reinado, num aprofundamento da vocação agrícola do Brasil, levando a
termo a expansão das culturas de produtos exportáveis que, embora produzidos
60
sob base escravista, demandavam mais e mais uma elaboração racionalizada sob
os padrões dos mercados centrais capitalistas.
Dessa forma, a agricultura de exportação do café e o poder político e
econômico crescente de seus fazendeiros e negociantes, a disponibilidade de
tecnologias industriais em desenvolvimento na Europa — a máquina a vapor e a
locomotiva — e a transmigração da estrutura financeira e empresarial do mundo
industrializado para o Brasil carreavam os investimentos do grande capital no
sentido de ampliar e modernizar as vias de transportes com o trem de ferro.
Necessitando modernizar-se, a economia cafeeira foi buscar auxílio nos
detentores de saber técnico aplicável às fainas da lavoura e às vicissitudes dos
meios de transporte. Não era possível simplesmente alterar cirurgicamente o
quadro estrutural importando inovações tecnológicas como as locomotivas a
vapor. Existia espaço para a criatividade, dentro de limites definidos. Desse
modo, o inventor encontrou no circuito da exportação de produtos agrícolas uma
franja para sua atuação.40
Contudo, apesar de tratar-se a sociedade brasileira da segunda metade do
século XIX de uma sociedade diferente daquela de tipo capitalista clássico, haja
vista a escravidão dominante e a situação de dependência em relação aos
mercados centrais, pode-se identificar no inventor brasileiro daquela fase o perfil
do empresário apresentado por Schumpeter, quando afirmou que
chamamos “empreendimentos” à realização de combinações
novas; chamamos “empresários” aos indivíduos cuja função
é realizá-las. [...] Chamamos “empresários” não apenas aos
homens de negócios “independentes” em uma economia de
trocas... [...]. Como a realização de combinações novas é que
constitui o empresário, não é necessário que ele esteja
permanentemente vinculado a uma empresa individual; [...] a
caracterização comum do empresário por expressões tais
como “iniciativa”, “autoridade” ou “previsão” aponta
diretamente em nossa direção.41
61
Na proposta de Cruz para caracterizar o empresário schumpeteriano
também é possível destacar elementos que ajudam a definir melhor o empresário
brasileiro do século XIX. O autor diz que
O agente que conduz as inovações recebe o nome de
empresário. Esta figura distingue-se do homo economicus do
fluxo circulatório, não apresentando as características
hedonistas, “racionais” do agente do repetitivo processo
econômico da economia estacionária. [...] Estes indivíduos
não constituem uma classe social, mas tem uma função social
a exercer. Há uma separação nítida entre o empresário e o
inventor que atua, em princípio, fora de esfera econômica. O
empresário também distingue-se do capitalista, que é o dono
do capital. É o empresário que realiza o potencial produtivo
que se encontra desarticulado entre o sistema econômico
atual e o possível.42
Como a economia escravista não era “estacionária”, pode-se dizer que ela
não representava uma camisa-de-força para o surgimento de inovações que
provocassem uma mudança tecnológica de sua base produtiva.
Para uma economia de base pré-industrial como a brasileira no dezenove,
é possível utilizar a proposição de Cruz para ver não um empresário distinto do
inventor “que atua fora da esfera econômica” mas, em função disso, um inventorempresário, cujos interesses se fundem com os dos grupos econômicos
dominantes, tanto os defensores da vocação agrícola quanto os industrialistas.
Além disso, sua atuação foi previamente beneficiada pela lei de patentes de
183O.43
As fontes indicam momentos em que os inventores e patenteadores eram
os próprios fazendeiros e empresários de café, como ocorreu com vários membros
da família Arruda Botelho, além do próprio Conde do Pinhal, fundador de São
Carlos do Pinhal.44 Em alguns processos, foram vistos patenteamentos de
máquinas como o secador Taunay-Telles, cujas experiências foram encomendadas
por fazendeiros esclarecidos, enquanto o próprio Taunay pertencia a uma família
62
atuante na política brasileira.45 Além disso, muitos inventores constam das listas
de membros das sociedades representativas dos setores dominantes da
intelectualidade e da política econômica brasileira, como é o caso da participação
de Guilherme Lidgerwood e de Daniel Pedro Ferro Cardoso nas seções da
Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional.46
O próprio Cruz enfatiza o caráter por demais abrangente e ainda turvo das
questões relativas à mudança tecnológica “devido ao precário estágio da
literatura” concernente. Quanto ao empresário schumpeteriano, conclui que
A questão é menos enfatizar as condições históricas que
definam o relacionamento entre os homens e a natureza ou do
ato da inovação (com as características particulares deste
agente), mas a realização do evento da inovação. Teorizar
sobre este ponto é teorizar sobre as atividades de pesquisa
realizadas pelo homem, na esfera econômica ou nãoeconômica, assim como suas próprias potencialidades. 47
A análise da legislação específica para transportes da primeira metade do
século XIX demonstra que o Estado brasileiro antecipava-se na introdução de
maquinismos que pontuavam a mudança tecnológica nos países centrais. Junto
com as ferrovias fantasmagóricas surgiam na Europa as múltiplas adaptações
decorrentes da mudança tecnológica ocorrida com o advento da máquina a vapor.
Simonsen informa das experiências feitas por Fulton, entre 1803 e 1807,
com a navegação a vapor no Rio Hudson. Essa modalidade de transporte foi
desenvolvida após a invenção da máquina a vapor. O invento original sofreu uma
série de adaptações e aperfeiçoamentos até poder ser empregado em escala
industrial e comercial, difundindo-se em aplicações diversas pela Europa e em
outros continentes nos anos seguintes.48
No Brasil, em 1818, D. João VI autorizava a criação de uma empresa de
navegação a vapor na Bahia para atuar tanto na cabotagem como na navegação
fluvial. Consta que o Marquês de Barbacena criou essa companhia importando o
63
“motor e aparelhos de propulsão da Inglaterra” — a embarcação foi produzida no
Brasil. Consta também que a companhia atuou no Rio Paraguaçu, “com rumo a
Cachoeira”, entre 1819 e 1823.49
Após a independência foram criadas as condições necessárias ao
desenvolvimento das linhas de transporte naval em outras regiões, dando
continuidade à política adotada pelo regente D. João nesse setor.
Surpreende a intenção de atualização tecnológica presente na legislação,
como o exemplo do Decreto no 24, de 17 de novembro de 1835, que
autoriza o Governo a conceder privilégio exclusivo por tempo
de 40 annos à companhia denominada - do Rio Doce -, ou a
outra companhia na falta desta, para navegar por meio de
barcos a vapor ou outros superiores, não só aquelle rio e
seus confluentes, como também directamente entre o mesmo
rio e as capitaes do Império e da Bahia, mediante
concessões.50
Esse exemplo mostra que havia nos períodos do Primeiro Reinado e da
Regência uma política de desenvolvimento econômico para o país que não
beneficiava apenas a implantação de algumas culturas agrícolas, tal como o café,
mas se aproveitava do domínio técnico-científico em aperfeiçoamento nos países
em industrialização para utilizá-lo nas diversas regiões brasileiras, particularmente
no que tange à infra-estrutura econômica.
Porém, para a cultura do café houve a motivação da exportação, que a
beneficiou de modo diferente da maioria das demais culturas agrícolas, uma vez
que seu plantio foi antecedido pela legislação de implantação do sistema de
transportes no país.
Preocupados em demasia com o fenômeno do café, poucos estudiosos
analisaram suas fontes considerando a importância dada ao desenvolvimento de
outras culturas econômicas e à estrutura de sua comercialização na primeira
64
metade do século XIX.51 Quanto a uma história das técnicas e da tecnologia
desenvolvidas no Brasil ao mesmo tempo, há tudo ainda por fazer.
Alguns autores, como Alves Motta Sobrinho em A civilização do café,
optaram por interpretar com fortes traços regionalistas questões de âmbito mais
global e estrutural. Por exemplo, quando o autor analisou o Decreto 101, de 31 de
outubro de 1835, sobre a implantação de ferrovias no Brasil, escreveu: “Data de
31 de outubro de 1835 a primeira tentativa de unir, por via férrea, as cidades do
Rio de Janeiro e de São Paulo, com o Decreto do Regente Feijó”52.
Porém, no texto legal o que transparece é uma preocupação mais ampla
do Estado, interessado em dotar o país de estradas de ferro, acentuando a
importância em conectar as províncias mais longínquas com a capital do Império
pelos meios mais modernos disponíveis. Afinal, o Império do Brasil formou-se
em plena era industrial!
Assim, o referido Decreto 101, tão-somente
autorisa o Governo a conceder a uma ou mais companhias,
que fizerem uma estrada de ferro, da capital do Império para
as de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, e Bahia, o privilégio
exclusivo por espaço de 40 annos para o uso de carros para
transporte de gêneros e passageiros, sob as condições que se
estabelecem.53
Apesar de sua abrangência, os maiores beneficiados pelo Decreto 101
foram os cafeicultores do Sudeste que, ante as boas perspectivas de escoamento
do café para os portos de mar, ampliaram as plantações e intensificaram a
exploração do trabalho do escravo. Em contrapartida, a crescente importância do
café na economia brasileira fez com que fosse carreado para a região cafeeira o
maciço dos investimentos em transporte ferroviário.
Através do quadro abaixo, pode-se acompanhar a ampliação do volume
de negócios das províncias produtoras de café para o mercado internacional:
65
EXPORTAÇÕES BRASILEIRAS POR PROVíNCIA
PROVÍNCIA
1860
1865
1870
1875
1880
RIO DE JANEIRO
57.592:390
62.592: 539
71.075: 350
103.091: 351
112.090:000
PERNAMBUCO
11.105: 818
18.997: 994
30.940: 720
16.363: 445
19.364:400
BAHIA
10.822: 941
14.083: 922
19.762: 706
15.743: 128
18.130: 800
RIO G DO SUL
6.400: 892
4.866: 262
12.041: 028
11.100: 554
9.378: 800
PARÁ
5.912: 860
5.840: 414
13.345: 916
12.569: 273
13.549: 200
MARANHÃO
2.511: 211
5.582: 602
6.723: 173
3.242: 674
3.515:600
SÃO PAULO
7. 633: 610
9. 107: 208
18.006: 569
27.854: 377
29.779: 700
PARAÍBA
3. 355: 301
5.604: 975
4.197: 561
3.423: 584
970: 200
CEARÁ
1.606:064
6.273: 736
6.394: 863
4.572: 808
2.382: 000
ALAGOAS
479: 497
682: 321
6.691: 011
4.161: 947
4.378: 400
SERGIPE
479: 497
682: 321
1.688:910
3.003:148
2.308: 400
PARANÁ
166: 381
662: 376
4.162: 867
1.320: 195
2.368: 200
SANTA CATARINA
202: 414
281: 994
557: 164
212: 517
309: 500
S. J. NORTE
133: 438
239: 814
423: 803
247: 211
468: 600
2.410: 067
2.324: 859
0
0
0
35: 344
0
0
124: 803
0
112.957: 972
141.083: 446
197.265: 321
208.494: 257
222.351: 700
MATO GROSSO
OUTROS
TOTAL
Fonte: Honorato, César T. A montagem do complexo portuário capitalista em Santos. Montevideo, Primeras Jornadas de Historia
Econômica, 1995, 16 p.
Dessa maneira, a construção de estradas de ferro no Brasil só ocorreu a
partir da década de 1850, quando o café firmou-se como principal produto
destinado ao mercado exportador. Aumentada enormemente a produção para os
padrões brasileiros, o café demandava vias de comunicação diretas entre o
produtor e o porto exportador, antes que se tornasse impróprio para as exigências
do comprador estrangeiro.
Segundo T. S. Ashton,
só em 1829, quando o Foguete de Stephenson venceu a
corrida em Rainhill, no caminho de ferro, construído havia
pouco tempo, entre Liverpool e Manchester, é que as
potencialidades do transporte a motor foram plenamente
compreendidas.54
Na opinião de El-Kareh,
66
a engenharia ferroviária vinha se transformando
rapidamente. Na década de 30, o francês Marc Seguin
construiu uma caldeira “tubular” que aumentava a superfície
de calor provocando maior quantidade de vapor, e, portanto,
maior potência do que a de Stephenson. Por volta de 1850 foi
inventado o “boggie”, carro orientável que permitia ao
comboio acompanhar as curvas da via, possibilitando o
aumento do conjunto locomotiva-vagões. Com isso
aumentava a capacidade de transporte, a possibilidade de
construir curvas mais acentuadas e tornara-se viável
construir as linhas de montanha. Nesta mesma época
difundiu-se o uso de trilhos de ferro fundido, mais duráveis,
tornando as viagens mais seguras e aumentando a
capacidade de transporte.55
A concessão dada em 1839 ao escocês Thomas Cochrane para construir
aquela que seria a primeira ferrovia brasileira, a Estrada de Ferro D. Pedro II,
penetrando a região cafeeira fluminense em direção a São Paulo, caducou depois
de 12 anos sem que tivesse conseguido atrair para ela os capitais disponíveis nas
praças do Brasil e de Londres. Para esse fato, Beauclair sugere que
em países pré-industriais, com economias extremamente
atrasadas, a escassez de capital é tão grande que nenhum
sistema bancário [...] conseguiria atrair fundos suficientes
para financiar o setor secundário da economia. Para poder
alcançar tais capitais, seria necessário o funcionamento
direto da máquina estatal que, com seu poder coercitivo,
poderia desviar as rendas do consumo para a inversão.56
As primeiras ferrovias brasileiras só foram construídas na década de
1850. Seu impulso fora possível graças à importação da Inglaterra de todos os
equipamentos e materiais, o que provocou uma relativa estagnação das atividades
das “indústrias naturais” e das instalações fabris dedicadas a fornecer ferramentas
para a lavoura e utensílios domésticos, caldeiras e peças para navegação costeira e
fluvial e engenhos de açúcar.
A chegada da ferrovia iria estagnar a indústria naval nativa, uma vez que
grande massa da produção seguiria direto da fazenda ao porto exportador,
dominado pela frota inglesa.57 Paralelamente, ocorria uma ampliação das lavouras
67
de café e um aumento dos preços dos gêneros de consumo popular interno,
advindos da diminuição de sua produção.58
A citada lei ferroviária de 31 de outubro de 1835, conhecida como “Lei
Feijó”, vigorou até 1852. Dava à empresa que se dispusesse a construir estradas
de ferro nas regiões entre a capital do Império e as capitais das províncias de Rio
Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia privilégio de exploração exclusiva por
quarenta anos, cessão gratuita das terras devolutas para a construção das linhas e
isenção de tarifa de importação para as máquinas nos primeiros cinco anos. Mas
não definia uma área privilegiada para a empresa para que outras não fizessem
concorrência com a linha primitiva, no futuro.
Porém, vários fatores são colocados como explicativos para que o plano
ferroviário custasse tanto a vingar. Entre eles, Odilon N. de Matos considerou “o
ambiente ainda pouco favorável às estradas de ferro, a grandiosidade do plano em
relação às nossas possibilidades, bem como as agitações políticas que
conturbaram a vida do país naqueles anos difíceis da Regência”.59
Os motivos destacados pelo autor relevam ainda mais o caráter de
pioneirismo do Estado brasileiro, como já foi referido para os transportes fluviais.
A promulgação daquela lei distava pouco mais de dez anos da Independência,
demonstrando uma disposição do Estado em transferir para o Brasil as inovações
tecnológicas em implantação na Europa. À época, muita gente punha em dúvida
as vantagens da estrada de ferro.60
Baseado nos depoimentos de Adolfo Pinto, Matos dirá que
o problema a resolver [...] era evidentemente superior às
forças e recursos do país, ainda então na infância de seu
desenvolvimento econômico e com uma população
verdadeiramente insignificante para a sua grandeza.61
68
Consideradas as razões apontadas, cabe então problematizar por que a lei
Feijó se tornou letra morta.
A partir dela, a Assembléia Provincial de São Paulo aprovou em 18 de
março de 1836 um plano de vias de transporte que era um “sistema combinado de
estradas de ferro, canais e rodovias”62. Sem produzir qualquer efeito prático,
apesar de mostrar também a vontade de integrar diferentes meios de transporte,
essa lei foi substituída pela lei de 30 de março de 1838, “que a reproduziu com
pequenas alterações”63. Cabe aqui citar o texto de Matos, analisando os efeitos
dessa nova lei, que redundou na “primeira concessão de estrada de ferro feita no
Brasil”:
Outorgava à firma Aguiar, Viúva, Filhos & Cia e a Platt &
Reid concessão para ligar Santos ao planalto ou, mais
precisamente, às então vilas de São Carlos (Campinas),
Constituição (Piracicaba), Itu ou Porto Feliz, e Mogi das
Cruzes, acrescentando que se cuidaria também da ligação do
Paraíba ao Tietê. Deveria ser atacada em primeiro lugar a
estrada São Paulo-Santos, cujas obras começariam dentro de
três anos. As localidades mencionadas eram, então, as mais
importantes da província. Tinham sua economia baseada na
cana-de-açúcar, mas o café, vindo pelo vale do Paraíba, já
fazia sua investida pelo Oeste paulista, particularmente na
região de Campinas. [...] Tal como a “Lei Feijó”, não
chegou a ser executada”.64
Matos diz, baseando-se em depoimentos da época, que “apesar das
diligências iniciais, os concessionários não tiveram a sorte de organizar a
companhia”.65
Parece claro que nesse momento existia já a preocupação em consolidar
Santos como porto principal da província de São Paulo, donde seria possível uma
articulação da ferrovia com os rios e com as estradas existentes entre a capital e
aquela localidade. O alemão Frederico Fomm, gerente da firma Aguiar, Viúva,
Filhos & Cia., tinha em mente, com a execução do plano, “[...] fomentar o
69
povoamento e a circulação no interior pela navegação dos rios e pela abertura de
novas vias de comunicação”66.
Com a ligação até Santos por trem, os produtos de São Paulo e arredores,
estariam em comunicação direta com os portos importadores, gerando renda
diretamente para a província.
A lei paulista, seguindo um modelo comum à época, também permitia que
fossem construídas modalidades de transportes bem articuladas entre si. Constava
de seu texto que a
companhia fará estradas de ferro, ou outras de mais
moderna invenção, ou canais, ou uma e outra coisa,
apropriados ao trânsito de carros de vapor, ou sem vapor,
para o transporte dos gêneros e viajantes desde a vila de
Santos até as de São Carlos [...] ou Porto Feliz [...], ou para
todas estas, como também, desde a vila de Santos até a de
Mogi das Cruzes, podendo juntar o rio Paraíba ao Tietê, no
primeiro ponto mais perto desta vila, em que a companhia
julgar possível, para a navegação de seus barcos, e a fim de
poder a companhia dar transporte entre esta vila, e a cidade
de São Paulo e a vila de Santos...67
Para o autor citado, sempre baseado no argumento da “infância” do
Brasil, os planos viários pareciam sempre ser obras de homens visionários, em
geral estrangeiros, que tentavam aproveitar-se das leis existentes. Acerca da obra
de Eugênio Egas, de 1926, ele concluirá que Fomm — em meados do século XIX
— era um “conhecedor da fertilidade do solo paulista, prevendo o
desenvolvimento da agricultura embrionária de São Paulo, que mais tarde havia
de ser o estado mais próspero da República...”68!
Também o “inglês de nascimento” Thomaz Cochrane era uma “figura
idealista e realizadora”, para aquele autor.69 Cochrane, em 1839, utilizara-se da lei
Feijó para requerer concessão para construir uma ferrovia ligando a Corte ao vale
do Paraíba. Em 1840, a concessão foi estendida até Cachoeira, ponto até onde o
70
“alto” Paraíba era navegável. Nota-se, portanto, nessas concessões também a
intenção de articular ferrovia e navegação, presente na atitude do Estado imperial.
Justificando a concessão dada a Cochrane, o autor apontará, citando obra
de Alberto de Faria, de 1925, que
a Inglaterra é a pátria do caminho de ferro. Era de louco
supor que um brasileiro pudesse ser o iniciador de tal
empreendimento. Não havia capitais, não havia homens, nem
podia haver ideais num corpo comercial e industrial cuja
base de operações era a importação de escravos da costa
d'África.70
Não parece ter sido esta a opinião do próprio Cochrane e dos diversos
estrangeiros que imigravam para “fazer a América”.71 Uma análise diferenciada
indica que ao Estado brasileiro da primeira metade do dezenove caberia reverter o
quadro socioeconômico colonial, estimulando a imigração e os investimentos
privados de risco e prosseguindo com a política de diversificação das atividades
econômicas, tal como se passava nos países em desenvolvimento.72 Por essa
razão, o fracasso de Cochrane não se deu pela ausência de capitais no Brasil ou
em Londres, nem pela falta de homens, mas sim devido à negativa da Câmara
Legislativa em conceder-lhe juros sobre os capitais investidos em sua firma, a
Imperial Companhia de Estrada de Ferro.
Dadas as vantagens previstas na própria lei, não haveria por que o próprio
Estado remunerar o capital arriscado, uma vez que, segundo Matos, “não se falava
em garantias de juros nem em subvenções quilométricas, havendo, contudo, o
direito de cobrança de taxas sobre passageiros e mercadorias, além de outros
favores”.73
Associe-se a essa análise o fator mão-de-obra, relacionando-o à questão
da formação técnica perseguida pelos países capitalistas no período. As análises
mais difundidas na historiografia brasileira sobre o século dezenove deram
71
bastante ênfase a uma interpretação das cláusulas contratuais que proibiam o
trabalho escravo nas obras ferroviárias como sendo fruto da pressão dos
fazendeiros escravistas para manter o escravo nos limites da lavoura cafeeira,
contribuindo para reforçar a vocação agrícola do país. Entretanto, numa análise
que considere no Estado imperial a intenção de estimular a atividade industrial
nacional, essas cláusulas poderiam também servir para qualificar tecnicamente a
mão-de-obra nacional ou estrangeira livre disponível nos ramos de ponta do
desenvolvimento — cujo símbolo era a ferrovia. Afinal, nesses primórdios da
estrada de ferro, nem sequer na Europa havia uma massa de trabalhadores
qualificados para as funções mais complexas da construção ferroviária civil e
mecânica.
No dizer de Florestan Fernandes, a implantação de novas tecnologias
[...] exige mudanças da natureza humana e elas só se
produzem com lentidão, por serem condicionadas pela
organização do ambiente social e pelo emprego que nele se
faz das técnicas de socialização ou de educação do homem.74
Entretanto, essa análise não implica que não se dê valor à importância da
proibição de empregar escravos nas ferrovias, o que poderia provocar uma alta no
preço daquela mão-de-obra. Em tempos de expansão da cafeicultura baseada
principalmente no trabalho escravo, o que mais contava era o escravo no “eito”.
Esse trabalhador detinha uma das taxas de produtividade na lavoura mais altas do
mundo, comparado com a produtividade do trabalho em outros países produtores
de café.
Porém, a postura de restrição do trabalho escravo à lavoura implicava
também uma política de preparação para a extinção da escravidão. O progresso
econômico tinha por pressuposto o trabalho livre, condição sine qua non para que
a “indústria” se desenvolvesse.
72
Os libelos do período próximo à independência são ricos em argumentos
pelo trabalho livre e pelo fim gradual da escravidão, inclusive com a exportação
de escravos brasileiros para colônias a serem fundadas na África — a exemplo do
que foi feito no estado de Maryland (EUA), enquanto se promovia a vinda de
colonos europeus.
A exposição de Frederico Leopoldo César Burlamaque, membro do
conselho do imperador e expoente da Sain, datada de 1837, dá firme idéia da
rejeição ao trabalho escravo em obras como as ferroviárias:
Muitos meios se apresentam para o bom êxito de uma tal
operação. [...] Consiste na preferência que deve dar o
governo à gente livre em todos os trabalhos que empreender,
assim como nos ordinários. Proíba-se absolutamente a
admissão de escravos nos arsenais, obras públicas e nas que
empreenderem companhias autorizadas pelo governo. É
evidente que, admitindo-se somente gente livre, se produzirão
dois bens: animar-se-á a população livre a que aprenda
ofícios e adquira amor ao trabalho e à economia, tornandose, assim, mais morigerada e mais útil, ao mesmo tempo que
se desanimará os possuidores de escravos na compra de uma
propriedade que achará poucos meios de dar-lhes
interesses.75
Nesse sentido, as pressões exercidas pela Inglaterra forçavam uma
tomada de decisão que foi, afinal, concretizada tanto pelo Bill Aberdeen, em 1845,
quanto pela Lei Eusébio de Queiróz, em 1850, mostrando que o poder dos
cafeicultores era, na verdade, muito relativo, ao menos naquele período. Sobre
esse ponto El-Kareh afirma que
não era a burguesia industrial inglesa que estava por detrás
do Bill Aberdeen, mas os interesses coloniais britânicos,
particularmente os antilhanos, produtores açucareiros, que se
viram prejudicados pela concorrência de nossos produtos
tropicais realizados em bases escravistas. Para eles se
tornava de primordial importância a interrupção de nosso
abastecimento de escravos. Com o estrangulamento de nossa
economia escravista se estabeleceria uma concorrência em
iguais condições, ou seja, à base de relações não-escravistas
de produção.76
73
E ainda:
A Lei Eusébio de Queiróz era resultado das pressões inglesas,
mas não só. Fora preciso que alguns setores de nossa
sociedade com poderes de decisão e influência
governamental, estivessem coniventes. Aqueles setores
escravistas decadentes e endividados viam no fim da
importação de negros a solução de seus problemas
econômicos. A escassez provocaria a valorização de seus
escravos e os traficantes, seus credores, passariam à
marginalidade.77
Portanto, pelo conjunto de leis e práticas abordadas, nota-se que, na
primeira metade do século dezenove, o Estado brasileiro assumiu uma postura
muito mais preparatória para o desenvolvimento de formas de produção
capitalista, rompendo com as práticas coloniais que ainda vigoravam. Nesse
intermezzo das décadas de 1830 e 1840, a construção ferroviária não evoluiu,
desde que a legislação vigente rompera com a centralização que marcara o
período anterior, deixando o setor de serviços de obras públicas por conta e risco
do capital privado, nacional ou estrangeiro, não habituado ao novo tipo de
negócio público.
Considerados esses aspectos do que Matos chamou de “primeira fase da
história ferroviária do Brasil”, caracterizada por “ensaios malogrados, cujo grande
mérito consistiu em preparar o terreno para futuras realizações”78, é interessante
notar o aumento do movimento de café exportado pelo porto do Rio de Janeiro:
em 1834, ano da lei Feijó, 686.462 sacas de 60 kg de café foram embarcadas,
enquanto, em 1852, quando a lei foi extinta, o movimento alcançou a cifra de
2.333.839 sacas, sem que houvesse ainda qualquer linha férrea construída.
Porém, a partir do ano seguinte à nova lei ferroviária de 1852 — e nas
décadas posteriores — verifica-se que, apesar da ampliação das lavouras e da
74
existência da malha ferroviária, o embarque de café no mesmo porto teve média
de 2.914.629 sacas anuais.79
De acordo com esses dados pode-se inferir que, apenas para o porto
carioca, o embarque de sacas de café quadruplicou, sem que houvesse ainda
ferrovias. Portanto, o aumento médio anual de 600 mil sacas no volume das
exportações de café após 1852 pelo Rio de Janeiro não justificou o volume dos
investimentos na construção ferroviária.80
Isso talvez explique a ínfima participação de fazendeiros escravistas de
café entre os acionistas da Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II. Com
efeito, na origem dos fundos da empresa, em 1860, no auge da produção cafeeira
do Paraíba fluminense, o capital de origem urbana predominava em uma
composição com 57,90% das ações sob controle do setor bancário, 2,26% com as
sociedades anônimas, 1,86% com “outras sociedades”, 4,50% com o setor
comercial e 26,13% não identificados, perfazendo 92,67% do capital. Enquanto
isso, apenas 7,32% das ações pertenciam ao capital de origem rural, sendo 3,95%
controladas pela família Teixeira Leite, de Vassouras, e 3,37% distribuídos entre a
“nobreza”.81
Justificando a maciça participação do setor urbano na Companhia, ElKareh explica que
a majoritária contribuição do setor urbano devia estar ligada
a objetivos lucrativos. Tratava-se de uma inversão com êxito
assegurado, fosse pela garantia de juros oferecida pelo
governo, fosse pela previsão do sucesso que alcançaria a
Estrada de Ferro D. Pedro II.82
Quanto à pequena parcela de ações do meio rural, o mesmo historiador
mostra que
75
[...] se devia em parte à descrença na estrada de ferro [...],
como também ao desinteresse do grupo paulista no momento
de sua criação. Mas era devida, sobretudo, à própria
organização da Companhia, submetida de fato e de direito ao
Estado escravista. Daí seu aparente descaso, na medida em
que tinha seus interesses garantidos. Não foi, entretanto, o
caso da importante família de ricos fazendeiros de café do
Município de Vassoura, os Teixeira Leite, que muito cedo
percebera a necessidade de uma estrada de ferro que
passasse por suas terras.83
Contudo, o município de Vassouras não foi contemplado com uma
estação da ferrovia, como queriam os Teixeira Leite. Para El-Kareh,
“prevaleceram os interesses da Companhia”84.
O volume das exportações de café transformou o Brasil no maior
produtor mundial. Isso desequilibrou a pauta dos produtos exportados, tornando a
economia brasileira dependente das exportações do café, o que conferia enorme
poder político e econômico aos grandes fazendeiros escravistas e àqueles setores
envolvidos com o grande mercado do café — banqueiros, comissários, traficantes
de escravos, etc. Consolidado o regime monárquico, esses grupos passaram a
deter prestígio crescente, sendo agraciados pelo imperador com títulos de nobreza.
Seu poder evidencia-se ainda mais quando se sabe que as rendas obtidas pelo
Estado eram provenientes, principalmente, dos direitos aduaneiros, em que o café
detinha indiscutível supremacia.
Já foi considerada a política de transportes brasileira da primeira metade
do século, que teve por tônica a diversificação da produção agrícola e fabril e o
necessário ajustamento das diferentes vias de comunicação de acordo com as
condições dadas pela natureza e com a descentralização das atividades
econômicas no país. Entretanto, a especialização das vastas áreas do Paraíba
demandou políticas radicalmente diversas, pelo novo quadro político que se
moldou.
A nova lei ferroviária aprovada em 1852 orientava o Estado segundo os
interesses confluentes dos cafeicultores, dos grupos urbanos vinculados ao café e
76
dos negociantes internacionais que tentavam garantir a expansão de seus negócios
e reservar para si a oportunidade de desfrutar das novas possibilidades de obter
lucros maiores.
Não causa surpresa, portanto, que a lei de 1852 tenha sido formulada
dentro de uma reforma maior do Estado brasileiro que abrangeu a elaboração do
Código Comercial e a Lei de Terras, fundamentais para permitir a inserção do
país nos mercados capitalistas.
Durante a fase anterior, essas possibilidades foram barradas pela não
garantia de juros pagos pelo governo sobre o capital investido. Em países como
Rússia e Índia, essa garantia foi concedida, assim como outros privilégios, o que
fez com que grandes massas de capitais dos centros capitalistas fossem lá
empregados.
No Brasil, o caminho para a entrada desses investimentos começou a ser
definido quando a nova lei de ferrovias foi aprovada, concedendo às empresas o
privilégio de zona de 6 milhas para cada lado das linhas e a garantia de juros a
serem pagos pelo governo imperial. A garantia, que nessa lei alcançava 5%, foi
depois aumentada em mais 2% em São Paulo, a cargo dos cofres provinciais.85
Por outro lado, para os fazendeiros, além de diminuir as perdas de parte
das safras devido às estradas em condições insuficientes para o volume de café
que produziam, a implantação das ferrovias implicava uma diminuição do preço
do frete, bem como dos custos com escravos e dos animais empregados nas tropas
de burros, além de franquear as áreas ocupadas com lavouras para alimentação
dos animais e escravos ao plantio de cafezais. Isso significava uma redução da
ordem de 20% no preço da saca de café exportada, dando ao café melhores
condições de concorrência nos mercados internacionais, pois tornava seu
consumo mais acessível às classes populares.
Porém, a partir da década de 1850, a diminuição das áreas de plantio de
alimentos básicos para consumo popular foi se acentuando até gerar um aumento
77
dos preços desses produtos, onerando os custos da fazenda cafeeira. Nesse
sentido, a afirmação de Sérgio Silva é esclarecedora, ao mostrar que, enquanto
cresciam os custos do fazendeiro com aquisição de escravos e com alimentação,
vestuário e ferramentas agrícolas importadas, aumentavam os lucros do
negociante do café, cujo mercado exterior estava em expansão:
A importância das estradas de ferro para a economia cafeeira
pode ser ilustrada por esse cálculo de A.d'E.Taunay.
Considerando que o preço do transporte pelo trem era seis
vezes inferior ao das tropas de mulas,ele estima a economia
realizada somente pelas Estradas de Ferro Pedro II, entre
1860 e 1868, em 48.677 contos. Somente para o ano de 1868,
essa economia é estimada em 9.393 contos, ou seja, mais de
10% do valor total das exportações brasileiras nessa época.
86
Portanto, na década de 1850, a construção ferroviária realmente tomou
impulso, tornando-se realidade. A primeira delas, a D. Pedro II, foi criada pelo
governo imperial. Sua construção foi concedida a Irineu Evangelista de Souza,
objetivando ligar a Corte ao vale do Paraíba e daí a Minas. O primeiro traçado
previa um trecho misto: partindo de um porto no fundo da baía da Guanabara, a
estrada de ferro seguiria até a raiz da Serra de Estrela. Na serra, o transporte seria
feito por estrada de rodagem até Petrópolis, e daí em diante em estrada de ferro
novamente. Em abril de 1854 inaugurou-se um pequeno trecho da ferrovia até
Fragoso e dois anos depois ela chegava à raiz da Serra de Estrela. Enquanto não
houvesse a ferrovia, o transporte após Petrópolis seria feito através da Estrada
União e Indústria.
Entretanto, a demora na conclusão da “União e Indústria” e,
principalmente, a distância entre seu traçado e a área cafeeira fluminense fizeram
com que seu projeto fosse abandonado. Como alternativa, o “Movimento de
Vassouras”, liderado pela família Teixeira Leite, pressionava por uma nova
ferrovia, que, partindo da cidade do Rio de Janeiro, deveria bifurcar-se após
78
transpor a serra: um ramal seguiria por Porto Novo do Cunha, na fronteira de
Minas Gerais através de Vassouras; o outro seguiria para São Paulo,
acompanhando o rio Paraíba até chegar a Cachoeira.87
Contudo, a estrada de ferro D. Pedro II, criada em 1855, teve seu primeiro
trecho inaugurado em 1859, mas o ramal de São Paulo chegou à cidade de
Cachoeira apenas em 1874.88 Sua execução foi entregue a empreendedores
ingleses, sendo todos os equipamentos e materiais utilizados importados da
Inglaterra. Porém, seu traçado foi alterado pelo governo, que a bifurcou em Barra
do Piraí até chegar a Porto Novo do Cunha, o que ocorreu em 1871, contrariando
os interesses dos vassourenses.89
Enquanto isso, as tentativas de ligar Santos a São Paulo por ferrovia
prosseguiam. Em 1856, Mauá (Irineu Evangelista de Sousa), o Marquês de Monte
Alegre e Pimenta Bueno obtiveram do governo o privilégio, por noventa anos,
para a “construção, uso e gozo” (com os privilégios de zona e garantia de juros)
de uma ferrovia entre Santos e Jundiaí, passando por São Paulo.90 A empresa foi
constituída em Londres, ficando o controle acionário na “City”.
Em novembro de 1860, a obra foi iniciada. Seu desafio principal era
conseguir transpor uma escarpa de oitocentos metros de desnível: em 1866, o trem
da “Inglesa” chegava a São Paulo; um ano depois atingia Jundiaí, totalizando um
percurso de 140 quilômetros, “apresentando, notadamente no trecho Santos-São
Paulo, importantíssimas obras de arte que por muito tempo causaram
admiração”91.
A “Inglesa”, concessionária do privilégio do “funil” ferroviário entre
Santos e Jundiaí por 90 anos, monopolizaria todo o movimento de carga que de
qualquer parte da província chegasse a Santos, assegurando a obtenção de lucros
sobre qualquer outra estrada que viesse a ser construída. Com efeito, todas as
demais ferrovias paulistas do século dezenove lhe eram direta ou indiretamente
tributárias.
79
Em março de 1870 foram iniciadas as obras da Companhia Paulista de
Estradas de Ferro, a Paulista, cujo trecho inicial era de 45 quilômetros, entre
Jundiaí a Campinas, aonde chegou em agosto de 1872.92
Merece relevo a matéria da Gazeta de Campinas, descrevendo como a
cidade ficou comovida com a chegada do trem, na inauguração da primeira
estação das quatro grandes ferrovias paulistas do século XIX:
Contavam-se três horas e meia quando um estremecimento
estranho veio eletrizar em todos os sentidos aquela reunião
enorme: ouvia-se longínquo um rugido estridente e os ecos
repercutiram pelas nossas belas campinas o férreo galopar
do misterioso hipogrifo. O que se passou nesse instante foi
uma coisa que não se diz: sonha-se ou vê-se. Girândolas,
foguetes, baterias, aclamações, música, tudo isso ergueu-se
num ímpeto tão sublime como a própria alma do povo a
perder-se numa vertigem de alegria infinita.
Espetáculo maravilhoso! Entusiasmo assim não se prepara,
nasce de si mesmo, como a lava no seio dos vulcões para
embrasear a face das montanhas e derramar o calor e o
brilho pela atmosfera incendiada.”93
Enquanto isso, “abonados fazendeiros da região Ituana, onde o café
também dominava a paisagem agrícola”94 criavam a Companhia Ituana de Estrada
de Ferro, com o objetivo, alcançado em abril de 1873, de ligar a cidade de Itu a
Jundiaí. Da mesma forma, foi criada a Estrada de Ferro Sorocabana.
A princípio, a Sorocabana foi criada para ligar Sorocaba a Itu, “onde se
uniria com a outra estrada ligando Itu a Jundiaí”. Depois seu traçado foi alterado,
ligando a capital da província a Sorocaba, o que ocorreu em 1875.95
Em 1872 criava-se em Campinas — e “tal como no caso das anteriores,
seus incorporadores são todos homens ligados ao café (Souza Aranha, Queiróz
Telles...)” — a estrada de ferro Mogiana, destinada a ligar Campinas a
Mogimirim, tendo lá chegado em 1875.96
80
Dessa forma, de acordo com Matos, foram criadas as principais ferrovias
paulistas dentro da segunda fase da história ferroviária de São Paulo, entre 18701880. Tais ferrovias avançaram sobre as principais regiões cafeeiras da década,
atendendo à demanda crescente por escoamento do produto das fazendas pelo
“funil” da “Inglesa” até Santos. Nessa fase, os investimentos na província de São
Paulo foram garantidos pelas concessões de privilégio de zona e garantia de juros
de 7%.
Atuando de forma direcionada para o escoamento do café, uma vez que a
agricultura especializava-se no produto, as ferrovias pioneiras paulistas
acompanharam a expansão das lavouras, chegando, por fim, a atingir a província
de Minas Gerais, de forma a também beneficiar São Paulo com a arrecadação pelo
escoamento das mercadorias lá produzidas. Da mesma forma, a expansão
ferroviária também auxiliava na abertura de novas fronteiras aos fazendeiros,
enquanto levava a fronteira agrícola cada vez mais ao interior.
Desde a obra de Sérgio Milliet97, muitos autores pesquisaram sobre os
aspectos factuais da expansão ferroviária em São Paulo. Entretanto, para que se
torne compreensível o roteiro que, seguindo o curso das ferrovias, as máquinas de
beneficiar café e seus criadores fariam nas décadas posteriores a 1870 para
acompanhar a expansão contínua dos cafezais, é necessária uma rápida
apresentação dos desdobramentos dos principais troncos ferrroviários. Para isso, o
estudo de Matos é de especial validade.98
Após a fundação das principais companhias ferroviárias paulistas, um
longo processo de construção de novas estradas (desde aquelas ligando cidades já
prósperas, até outras que ligavam fazendas importantes a troncos ou ramais —
linhas “cata-café”) foi desencadeado. Essa ramificação começou simultaneamente
em todas as companhias existentes em São Paulo. Porém a Paulista foi a primeira
a inaugurar as linhas de expansão. Em agosto de 1875 chegou a Santa Bárbara;
em julho de 1876, a Limeira e em agosto atingiu Rio Claro. No ano seguinte,
81
outra linha era liberada às margens do Mogiguaçu, chegando em abril a Araras e
em setembro a Leme. Em outubro de 1878 chegou a Pirassununga. Dois anos
após, em janeiro de 1880, a ferrovia atingiu Porto Ferreira, para, no ano seguinte,
integrar Descalvado à sua rede.
Enquanto isso, em 1872, organizava-se em São Paulo a “Estrada de Ferro
São Paulo e Rio de Janeiro”, depois Central do Brasil, cujo objetivo era ligar a
capital paulista à região do vale do Paraíba fluminense. Partindo da capital, essa
estrada foi passando por Mogi das Cruzes, Jacareí, São José dos Campos,
Caçapava, Taubaté, Pindamonhangaba e Lorena, até chegar a Cachoeira (atual
Cachoeira Paulista), em 1877.
A Ituana, no mesmo período, também prosseguia com as obras que
integraram à sua rede as cidades de Itaici, Capivari e Constituição (atual
Piracicaba), em fevereiro do ano de 1879. Enquanto isso, a Sorocabana expandiase com a construção de uma linha até Ipanema. Já a Mogiana, fora prolongada de
Mogimirim, chegando ao rio Grande, para os lados da fronteira com Minas
Gerais.
A expansão ferroviária em São Paulo foi importante porque veio dotar a
região cafeeira da província de uma infra-estrutura de transportes tecnicamente
dominada em toda a sua extensão: os caminhos de rodagem, a navegação fluvial e
costeira, e o maior desafio, os caminhos de ferro.
Uma vez incorporadas essas tecnologias a sua base sociocultural, de
acordo com as nações mais avançadas, preparava-se a região cafeeira brasileira
— e quem o diria! — para voar: na Serra da Mantiqueira, no início do processo de
transplantação da tecnologia industrial para o espaço econômico brasileiro, nascia
Alberto Santos Dumont.
Henrique Dumont, engenheiro civil, executava obras de construção de
trecho da Estrada de Ferro Pedro II próximo a Cabangu(MG), em 1873, quando
seu sexto filho, Alberto, nasceu. Entre 1874 e 1879, Henrique Dumont trabalhou
82
na fazenda de café de sua sogra, em Casal Valença. Em seguida, adquiriu a
fazenda Arindeúva, em Ribeirão Preto, tornando-a, em sua época, uma das
fazendas-modelo de café, devido ao alto nível de mecanização da produção.
O inventor Alberto Dumont iniciara-se na infância no maquinário do
benefício do café, aonde costumava ir brincar. Dessa experiência, escreveria em
suas memórias que “dificilmente se conceberia meio mais sugestivo para a
imaginação de uma criança que sonha com invenções mecânicas”.99
Graças à sua genialidade, o brasileiro empolgou as multidões parisienses
e de Montecarlo, prestando uma importante contribuição ao desenvolvimento
científico-tecnológico mundial. Seu menor balão, considerado por ele “o mais
lindo”, foi batizado com o nome do Brasil.
Voltando às ferrovias, a Mogiana continuou
em expansão com a
inauguração de estações em Casa Branca, em 1878, e em Ribeirão Preto, em
1883. As linhas de Franca e São Simão — que depois serviriam de tronco para
outros ramais — foram abertas ao tráfego no ano de 1887.100
A Mogiana prosseguiu com outro ramal para Itapira, de onde atingiria
Espírito Santo do Pinhal e Poços de Caldas, incorporando o tráfico de
mercadorias do sul de Minas e do Triângulo Mineiro através da antiga Estrada de
Ferro do Sapucaí. Em 1889, anexou ao seu patrimônio a Companhia Ramal do
Rio Pardo, e prosseguiu ligando as cidades até Casa Branca, passando por São
José do Rio Pardo, Mococa e Canoas. A maioria dessas cidades também serviria
de base de expansão de outras linhas comunicando com São Paulo parcela
considerável da província vizinha.101
A Paulista também expandiu-se muito para as áreas novas do interior. Na
mesma década de 1880, tomou como base o terminal de Rio Claro para alcançar
São Carlos, aonde chegou em 1884. Seu trajeto original foi alterado para atender
decisão da Justiça, quando inquirida em ação impetrada pelo Visconde de Rio
Claro e pelo Conde do Pinhal, que aguardavam a ligação entre as duas cidades.
83
Em janeiro de 1885, a Paulista chegou a Araraquara. Dois anos depois
também chegava a Jaú, e estendia-se em ramais como os de São Carlos, Santa
Eudóxia e Ribeirão Bonito. Depois prolongou o tronco de Araraquara a
Jabuticabal.102
Das grandes companhias iniciantes, a Sorocabana foi a que teve a
expansão mais tímida. No final da década de 1890, chegou com seus ramais a
Porto Feliz e Tietê.
A Ituana, desenvolveu-se com outra estratégia. Buscou integrar seus
trilhos a portos nos rios Piracicaba e Tietê. Manteve-se na estrutura navegaçãoferrovia, numa região já tradicional de cultura de pastagens e de agricultura. Seus
trilhos prolongaram-se até perto de Piracicaba.103
Matos tomou esse exemplo para o restante do país:
iniciava-se, assim, no Brasil, o serviço conjugado de
navegação fluvial com as ferrovias. [...] A Paulista
igualmente lançou mão deste recurso (com o rio Mogiguaçu)
e o mesmo ocorreu com a Rede Mineira, no sul de Minas, com
a utilização do Rio Grande.104
Vistas as considerações traçadas anteriormente, a região do vale do
Paraíba havia já adotado o sistema estrada-ferrovia-navegação, em fase anterior,
quando o fundo da baía da Guanabara ligou-se ao porto da Estrela e daí com a
ferrovia empreendida por Mauá. E ainda, segundo os estudos de Maria Celina
Whately,
até que os trilhos chegassem a Resende, na década de 1870,
continuava sendo utilizada a via marítima através dos portos
angrenses, e a via fluvial, pelo Paraíba, até a Barra do Piraí,
já que na década de 1860 a Estrada de Ferro D. Pedro II
atingira este ponto.105
84
Considerado o surpreendente crescimento que as ferrovias tiveram em
São Paulo, uma conexão com os cursos fluviais seria inevitável, como fora
previsto nas leis da década de 1830. Porém, tamanha expansão parecia refletir-se
em atraso nas demais obras públicas requeridas pelo crescimento das cidades
paulistas. O problema era discutido publicamente. O presidente de São Paulo,
João Teodoro (1872-1875), reclamava em seus relatórios do atraso de outras vias
de comunicação em relação às ferrovias da província:
contrasta o progresso das estradas de ferro com a decadência
de todas as outras. A vitalidade concentrou-se com
exuberância em um ponto, deixando desfalecer a máxima
parte do corpo coletivo.106
Completando o panorama da expansão ferroviária e cafeeira em São
Paulo, ainda no governo provincial de João Teodoro, foi criado o Ramal
Bragantino. A Bragantina foi planejada para partir de um ponto da “Linha
Inglesa” , ligando-a “as raias de Minas Gerais”. Porém, ao ser incorporada pela
São Paulo Railway, seu roteiro foi modificado: passou por Campinas, mas não
alcançou a província mineira. Seu percurso final foi Piracaia, passando por
Atibaia e Bragança.107
A expansão associada das fazendas de café e das ferrovias na Província
— e depois estado — de São Paulo não parou aí. Na última década do século
passado e na primeira deste século, a Paulista e a Mogiana expandiram-se ainda
mais, consolidando os interesses dos setores da economia paulista ligados ao café.
Ambas as companhias prolongaram suas linhas. A primeira chegava em
Jabuticabal em 1892 para, de Rincão, atingir Guatapará. De São Carlos chegou a
Ribeirão Bonito e Areia Vermelha.
85
A Mogiana foi ainda mais além, buscando interligar os ramais existentes
até entrar nas próprias fazendas de café, como a Santa Veridiana, pertencente à
família Prado, que teve ramal ligando-a às proximidades de Casa Branca.108
Neste capítulo buscou-se demonstrar a maneira como foi implantada a
base legal e tecnológica do sistema de transporte para a exportação do café
brasileiro no século XIX.
Na primeira metade do século, a conjuntura foi marcada pelas principais
leis sobre as vias de transporte, criadas na década de 1830. Nesse contexto, a
política de estímulo ao surgimento de atividades econômicas diversificadas
originária do período colonial teve como estratégia a conexão das regiões
brasileiras com os portos de rios e mar visando a garantir as rendas da Coroa e a
preservar seu domínio sobre o território. Isso teria aumentado o interesse no
aproveitamento dos cursos fluviais.
No Primeiro Reinado e na Regência, essa política teve continuidade,
tendo em vista o interesse em centralizar o poder político na Corte e a necessidade
de abastecê-la. Dessa fase destacam-se as leis de concessão de navegação fluvial a
vapor, e a lei Feijó para concessão de exploração do transporte ferroviário, da
década de 1830. A época em que foram editadas coincidiu com as primeiras
concessões do tipo nos países europeus mais avançados.
A partir da infra-estrutura agrícola que se criou e do refluxo da atividade
de mineração, parte da região do vale do Paraíba teve suas antigas culturas
substituídas por plantações de café, produto destinado mais a exportação. Foi o
início da implantação das grandes fazendas cafeeiras escravistas.
Na segunda metade de século XIX, a conjuntura foi marcada pelas leis de
concessão ferroviária que garantiam às companhias zona privilegiada e juros
sobre o capital investido. Surgiram as grandes ferrovias-tronco (a exemplo de São
Paulo), aumentando a capacidade instalada de exportação do café do Sudeste
brasileiro.
86
As áreas destinadas às lavouras foram ampliadas para as províncias de
Minas Gerais e Espírito Santo e para o oeste de São Paulo. Conseqüentemente, o
café tornou-se o principal produto brasileiro e o Brasil, seu maior fornecedor
mundial.
NOTAS
1
Rebouças, André. Agricultura nacional. Estudos econômicos. Rio de Janeiro, Tipographia A.J. Lamoureux, 1883,
p.75.
2
Simonsen. Roberto C. História econômica do Brasil. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1978. 8a ed., p. 437.
3
Cf. Whately, Maria Celina. Op. cit.
4
Ferrez, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender 1817. Rio de Janeiro, Fund. João Moreira Salles, 1976, pp. 263-264.
5
Ibid.., p. 261.
6
Ibid., p. 259.
7
Whately. M. C. Op. cit., p. 7.
8
Ibid., p. 8.
9
Prefácio de Whately. M.C. Op. cit., p. ix.
10
Ibid., p. x.
11
Ferrez, G. Op. cit., pp. 244-245.
12
A esse respeito consultar Sobrinho, Alves Motta. A civilização do café 1820-1920. São Paulo, Brasiliense, 1978. 3a
ed., p. 21.
13
Apud Whately. M.C. Op. cit., pp.8-9.
14
Beauclair, Geraldo. A construção da economia nacional: 1822-1860. Niterói, tese de titular/UFF, 1994, pp. 232237.
15
Magalhães, Basílio de. O café nas história, no folclore e nas belas-artes. 3a ed. São Paulo, Cia. Ed. Nacional/INL,
1980, pp.70-71.
16
Costa, Emília Viotti da. Da senzala..., p. 62. Também Machado, Humberto F. Escravos... faz interessante descrição
dos portos e caminhos fluviais fluminenses, no início do século XIX.
17
Beauclair, G. A construção..., pp. 232-237.
18
Sobrinho, Alves da Motta. Op. cit., p.65.
19
Beauclair. G. A construção..., Op. cit., p. 236.
20
Ibid..
21
Uma descrição dos “ caminhos antigos” do Rio de Janeiro é encontrada em Magalhães, Basílio de. Op. cit., pp. 6472. Para uma visão esquemática dos “caminhos antigos” consultar: Rio de Janeiro — cidade e estado. Rio de
Janeiro. Michelin, s/d. [Guia de Turismo. Apresent. de Wellington M. Franco], pp. 26-31.
22
Apud Whately. M.C. Op. cit., p. 20.
23
Ibid.
24
Ibid.., pp. 20-21.
25
Ibid.., p. 21.
26
Cf. Simonsen, R. Op. cit.
27
A este respeito consultar a clássica obra: Simonsen, R. Op. cit., pp. 389-391.
28
Beuclair, G. Raízes...
29
Simonsen, R. Op. cit., p. 441.
87
30
Ibid.
31
Ibid., p.439.
32
Cf. Beauclair. G. Raízes...
33
Beauclair. G. Raízes..., p. 27.
34
Ibid., p. 26.
35
Ibid., p. 27.
36
Ibid., pp. 28-29.
37
Ibid..
38
Fernandes, F. A revolução burguesa no Brasil. Rio Janeiro, Zahar, 1976. 2a ed., p.100.
39
Este conceito foi empregado no sentido definido por Honorato, C. T. O polvo e o porto. São Paulo, Hucitec, 1995
(no prelo).
40
Refiro-me ao espaço aberto para a incorporação de novas especializações profissionais e empresariais no eixo
dinâmico da sociedade brasileira, na segunda metade do século XIX.
41
Schumpeter, Joseph A. Teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo, Abril, 1982, p. 54.
42
Cruz, H. N. “Observações sobre mudança tecnológica em Schumpeter”. In: Estudos econômicos. São Paulo, vol.18,
no 3, set/dez 1988, p. 447.
43
As leis de patentes no Brasil são tema do próximo capítulo.
44
Sobre a história da fundação, sociedade e economia em São Carlos, ler a monografia de Truzzi. O. Op. cit.
45
A respeito de máquinas de beneficiar café encomendadas por fazendeiros a Taunay e Telles enquanto realizavam o
aperfeiçoamento de seu secador, ver o artigo de Louis Conty em O Auxiliador...1883, pp. 35-39. Sobre a atuação de
Alfredo d’ Escragnolle Taunay, ver Lima, S. L. L. Op. cit., pp. 74-84.
46
A respeito, consultar a composição bianual das diretorias e das seções da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional, a partir de 1870, em O Auxiliador..., além da análise de Silva, J. L. Werneck da. Op. cit.
47
Cruz, H. N. Op. cit., p. 447.
48
Simonsen, R. Op. cit., p. 441. A este respeito, a bibliografia disponível no Brasil é insuficiente, mas Katinsky, J. R.
(A invenção da máquina a vapor. São Paulo, FAU/USP, 1976) compilou textos de historiadores da tecnologia
ingleses que dão uma visão esclarecedora sobre o processo de invenção e difusão da energia a vapor na Europa até
1850.
49
Simonsen, R. Op. cit. p. 441.
50
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1835. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1864. Grifo meu.
51
Destacam-se os trabalhos mais recentes de Beauclair, G. Raízes... e de Fragoso, J. L. R. Homens de grossa
aventura...
52
Sobrinho, A. M. Op. cit., p.67.
53
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1835. Rio Janeiro, Typographia Nacional, 1864.
54
Apud Saes, Flávio A. M. de. As ferrovias de São Paulo 1870-1940. São Paulo, Hucitec/INL, 1981, p. 20. Na
América do Sul, o Brasil foi o terceiro país a inaugurar uma ferrovia. Em maio de 1851, o trem de ferro foi
inaugurado no Peru; em maio de 1852, o mesmo ocorreu no Chile, cf. Magalhães, B. de. Op. cit., p.70.
55
EL-KAREH, Almir Chaiban. Filha branca de mãe preta: A Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II 1855-1865.
Petrópolis, Vozes, 1982, p. 33.
56
BEAUCLAIR, G. Raízes..., p. 43.
57
Ibid.
58
Ibid., pp. 62-73.
59
MATOS, Odilon N. de. Café e Ferrovias. A evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura
cafeeira. Campinas, Pontes, 1990, pp. 59-60.
60
Ibid., p.60.
61
Ibid.. Grifo meu.
62
Ibid.
63
Ibid.
64
Ibid.
65
Ibid., pp. 70-71. Grifo meu.
66
Ibid., p.61.
67
Ibid, pp.69-70. Grifo meu.
68
Ibid., p. 61.
88
69
Ibid.
70
Ibid., p.62. Grifo meu.
71
Refiro-me à presença da imigração na forma como a tratou Fernandes, Florestan. A Revolução... Cap. I.
72
BEAUCLAIR, G. Raízes... e também A Construção...; Silva, J. L. Werneck. A SAIN... Também a recente obra
biográfica de Caldeira, J. Op. cit. descreve interessante painel das transformações ocorridas no Brasil no século
XIX.
73
Matos. O. N. Op. cit., p 62.
74
Fernandes, F. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo, Difel, s/d, cap.1, p. 68.
75
Memórias sobre a escravidão / João Severiano Maciel da Costa et. al. Introd. de Graça Salgado. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional/Fundação Petrônio Portella, 1988, pp. 180-181.
76
El-Kareh, A. C. Op. cit., p.19.
77
Ibid.
78
Matos, O. N. Op. cit., p. 62 e p.166.
79
Dados agrupados a partir das publicações de O Auxiliador... no ano de 1892. A partir daquele ano, O Auxiliador...
não foi mais publicado.
80
O Auxiliador... 1892, p. 19, principalmente.
81
Cf. El-Kareh, A. C. Op. cit., p. 51.
82
Ibid., p. 52.
83
Ibid., p. 51.
84
Ibid., p.134.
85
Sobre a questão dos juros ao investimento nas estradas de ferro construídas em São Paulo ver. Saes, F. A. M. Op.
cit.
86
Silva, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo, Alfa-Ômega, 1986, 7a ed., p. 51.
87
Matos, O. N. Op. cit., p. 68.
88
Em 1874, a Estrada de Ferro São Paulo e Rio de Janeiro encontrou-se com os trilhos da Estrada de Ferro Pedro II,
fundindo-se na Estrada de Ferro Central do Brasil.
89
Matos, O. N. Op. cit., pp.68-69.
90
Ibid., p.74.
91
Ibid.
92
MATOS, O. N. Op. cit., p. 81, diz que a companhia foi a primeira organizada “com elementos exclusivamente
provinciais” e que da reunião de Campinas participaram “em maioria, fazendeiros do centro-oeste e do oeste de São
Paulo. Nascia vinculada ao café a primeira estrada tipicamente paulista”. Entretanto, o autor não informa da
composição acionária da Companhia.
93
Apud. Matos, O.N. Op. cit., p. 81.
94
Matos, O. N. Op. cit., p. 86.
95
Ibid., p. 89.
96
Ibid., pp.90-91.
97
Milliet, Sérgio. O roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e social do
Brasil. 4a ed. São Paulo, Hucitec/INL, 1982.
98
Matos, O. N. Op. cit.
99
DUMONT, Alberto Santos. Os meus balões. Trad. do original de Dans l'Air, de A. de Miranda Bastos, s/l,
Biblioteca de Divulgação da Aeronáutica, 1938, p. 49. Para um melhor entendimento da biografia de Santos
Dumont e sua relação com a cafeicultura ver também Villares, Henrique Dumont. Quem deu asas ao homem:
Alberto Santos Dumont — sua vida e sua glória. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1953. Sobre a importância das
invenções aeronáuticas de A. Santos Dumont ler: Cruz, Celso. La conquista del aire. Proceso tecnico y heroico de
la aeronautica y la aviacion. Buenos Aires, Ed. Atlântida, 1940. Quanto à base material dos trabalhos de Dumont,
consultar principalmente os acervos do Museu Paulista da USP, Instituto Cultural da Aeronáutica (RJ) e Museu da
Aeronáutica do Campo dos Afonsos (RJ).
100
Matos, O. N. Op. cit., p. 99.
101
Ibid., p.100.
102
Ibid., pp.103-107.
103
Ibid., p.107.
104
Ibid., pp.107-108. Grifo meu.
105
Whately. M. C. Op. cit., p.24.
89
106
Apud. Matos, O. N. Op. cit., p.93.
107
Matos, O. N .Op. cit., pp.91-93.
108
Ibid., p. 117.
OK
87
3
O BRASIL TOMA CAPRICHO:
A CRIAÇÃO DAS LEIS DE PATENTES
Eu vô tomá capricho, meu bem vô trabaiá’, qui’eu tenho
uma promessa a pagá.1
O século XIX marcou um período de grandes alterações nas instituições
políticas brasileiras. Desde a vinda da família real portuguesa, em 1808, o país
iniciou um processo em que, paralelamente às ocorrências do além-mar, pouco a
pouco a estrutura colonial vigente entrou em colapso. Os atos legislativos do
regente D. João, muito mais que abrir os portos às nações amigas, derrubaram as
antigas proibições impostas à indústria nativa e criaram tratados de amizade,
navegação e comércio, culminando por transformar a colônia em metrópole
provisória e, posteriormente, elevá-la à categoria de Reino Unido ao de Portugal e
Algarve.
Desde a primeira constituição brasileira, outorgada em 1824, nota-se que
houve um esforço dos setores mais próximos ao núcleo do poder para estabelecer
um novo patamar de atuação política, quer sob a forma de organização e atuação
em associações civis, quer no interior do Estado, viabilizando a aprovação de
estatutos jurídicos para favorecer o aproveitamento da capacidade produtiva do
país.
No âmbito do Estado brasileiro, uma política de incremento à chamada
“indústria agrícola” pode ser considerada, particularmente através das “leis de
patentes”. Elas surgiram primeiro em Veneza, em 1474. A Inglaterra adotou-as
em 1623, a França, em 1762 e os EUA, em 1790. No Brasil, a legislação de
patentes foi criada em 1830, antes mesmo de muitos países “adiantados”.
88
O estímulo à entrada de artefatos para promover as atividades produtivas
no Brasil surgiu, concretamente, na carta régia de 28 de janeiro de 1808, onde D.
João ordenava
interina e provisóriamente, enquanto não consolido um
systema geral que effectivamente regule semelhantes
materias”, que “sejam admissíveis nas Alfândegas do
Brazil todos e quaisquer generos, fazendas e
mercadorias transportadas, ou em navios estrangeiros
das Potencias [...], ou em navios dos meus vassalos... 2
Tal “consolidação” viria na ano seguinte, quando o alvará de 28 de abril,
em seu artigo 5o, estabeleceu que
sendo o meio mais conveniente para promover a
indústria de qualquer ramo nascente, e que vai tomando
maior augmento pela introducção de novas machinas
dispendiosas, porém utilíssimas, o conferir-se-lhe
algum cabedal que anima o capitalista que emprehende
promover semelhante fabrica, vindo a ser esta
concessão um dom gratuito que lhe faz o Estado: sou
servido ordenar, que da Loteria Nacional do Estado,
que anualmente quero se estabeleça, se tire em cada
anno uma soma de sessenta mil cruzados [...] a favor
daquellas manufacturas e artes, particularmente das de
lã, algodão, seda e fábricas de ferro e aço. E as que
receberem [...] não terão obrigação de o restituir...3
O alvará também isentava de impostos a importação de matérias-primas
necessárias às manufaturas e às artes, e as livrava de taxas da exportação dos seus
produtos manufaturados. Deixava claro, ainda, que a medida era necessária “para
fomentar a agricultura, animar o commércio, adiantar a navegação, e augmentar a
povoação”.4
Mais ainda:
sendo muito conveniente que os inventores e
introductores de alguma nova machina, e invenção nas
89
artes, gozem do privilégio exclusivo além do direito que
possam ter ao favor pecuniário, que sou servido
estabelecer em benefício da indústria e das artes;
ordeno que todas as pessoas que estiverem neste caso
apresentem o plano de seu novo invento à Real Junta do
Commércio; e que esta, reconhecendo a verdade, e
fundamento delle, lhes conceda o privilégio exclusivo
por quatorze annos, ficando obrigados a publical-o
depois, para que no fim desse prazo, toda a Nação goze
do fructo dessa invenção...5
Nota-se que os textos régios refletiam uma ligação intrínseca das artes e
manufaturas com a proteção a ser dada ao inventor como forma de promover a
fundação de estabelecimentos manufatureiros. Ao mesmo tempo, procuravam
dotar o Brasil de máquinas e processos em uso nos países mais desenvolvidos.
Ao analisar o referido alvará, Cruz observa que o fato de o introdutor de
máquinas estrangeiras, e não apenas o inventor, gozar do privilégio exclusivo por
catorze anos caracteriza a intenção do Estado de atrair a “novidade tecnológica
para um uso efetivo e não apenas como política de reserva de mercado”6.
Em 1822, o alvará de 30 de dezembro, regulamentando a armação de
corsários por “súditos do império” e estrangeiros, para apresar propriedades dos
navios portugueses, previa que
são livres de todos os direitos os petrechos de guerra,
ouro e prata em moeda, barra ou pinha, utensílios de
lavoura, machinas de nova invenção applicáveis à
indústria do Brazil e o estímulo de suas fábricas, e os
mesmos navios aprezados.7
A LEI DE 28 DE AGOSTO DE 18308
No Primeiro Reinado, as iniciativas para desenvolver atividades fabris
passaram a fazer parte dos debates parlamentares. Em 1828 foi apresentado um
projeto de regulamentação dos direitos das patentes de invenção e melhoramentos
90
e de introdução de máquinas estrangeiras. Em 28 de agosto de 1830 foi criada a
primeira lei de patentes no Brasil, sendo o país o quinto no mundo a adotar o
estatuto.9
De acordo com essa lei de 1830, era concedido
[...] privilégio ao que descobrir, inventar ou melhorar
uma industria útil e um prêmio ao que introduzir uma
indústria estrangeira, e regula sua concessão.
Art. 1 . A lei assegura ao descobridor, ou inventor de
uma indústria útil a propriedade e o uso exclusivo da
sua descoberta, ou invenção.
Art. 2 . O que melhorar uma descoberta, ou invenção,
tem no melhoramento o direito de descobridor, ou
inventor.
Art. 3 . Ao introductor de uma indústria estrangeira se
dará um prêmio proporcionado à utilidade, e
dificuldade da introducção.10
A lei de 1830 instituiu uma diferença entre o inventor ou melhorador da
máquina e aquele que introduz no país uma máquina já desenvolvida no exterior.
Ao primeiro, concedia o uso exclusivo do invento; ao segundo, gratificava com
um prêmio.
A distinção se fazia necessária, uma vez que era uma época de
incremento à indústria nacional, mas também de grande proliferação das técnicas
no exterior, nos moldes da chamada Revolução Industrial. Vale lembrar que os
anos de 1800 a 1850 foram de proliferação do uso das máquinas a vapor nas
indústrias inglesas.11
Repetindo Fernandes,
[a] transplantação [de máquinas] exige algo que
transcende ao nível da inteligência do homem: exige
mudanças da natureza humana e elas só se produzem
91
com certa lentidão, por serem condicionadas pela
organização do ambiente social e pelo emprego que
nele se faz das técnicas de socialização ou de educação
do homem.12
A lei de 1830 preparava o terreno para a absorção das novas técnicas,
equipamentos e transformações decorrentes de sua introdução, distinguindo as
máquinas mais simples das que apresentassem maior complexidade técnica ou
utilidade. Já em seu artigo 4o, destacava a gratuidade da concessão da patente: o
inventor ou introdutor pagava apenas as custas do processamento administrativo.
Para tanto, era garantido, que
O direito de descobridor, ou inventor, será firmado por
uma patente, concedida gratuitamente, pagando só o
sello, e o feitio; e para conseguil-a:
1 Mostrará por escripto que a indústria a que se refere
é da sua própria invenção, ou descoberta. [...] 13
Em seguida, a lei institucionalizava uma política de arquivamento da
documentação técnica das invenções, ao retirar o julgamento e guarda dos
processos do âmbito da extinta Real Junta do Commércio, Agricultura, Fábricas e
Navegação, e passá-los para o Ministério dos Negócios do Império, delegando ao
Archivo Público — atual Arquivo Nacional — o depósito e guarda do “memorial”
dos inventos:
2 — Depositará no Archivo Publico uma exacta e fiel
exposição dos meios e processos, de que se serviu, com
planos, desenhos ou modelos, que os esclareça, e sem
elles, se não puder illustrar exactamente a matéria.14
Essa tramitação do processo de julgamento dos requerimentos, exames e
depósito dos documentos durou até 1860, quando a responsabilidade pelas
92
patentes foi transferida para o Ministério da Agricultura, Commércio e Obras
Públicas, mantendo o Archivo Publico como depositário dos documentos e
materiais comprobatórios, caso existissem.15
Ao dispensar a apresentação de “planos, desenhos ou modelos”, a lei era
complacente com aqueles que não eram capazes de desenhar tecnicamente seus
inventos de acordo com as normas em formação.
Convém ressaltar que tal capacidade de representação técnica era ainda
pouco comum nos países mais desenvolvidos industrialmente, onde prevalecia
uma separação entre a representação artística e a representação das técnicas. A
representação técnica foi iniciada com a publicação dos volumes da Enciclopédia,
na França, entre 1726 e 1772. Porém, apenas no século XIX os dois domínios — a
arte pictórica e o desenho técnico — encontrar-se-iam totalmente distintos.16
O artigo 5o da lei de 1830 também trazia novidades quanto ao prazo do
exclusivo da patente: “As patentes se concederão segundo a qualidade da
descoberta ou invenção, por espaço de cinco até vinte annos; maior prazo só
poderá ser concedido por lei”.17
Se o alvará de 1809 era rígido quanto à concessão de catorze anos para o
segredo se tornar domínio público, a nova lei mostrava-se flexível ao conceder o
privilégio por período entre cinco e vinte anos, de acordo com as características
do invento. Esse artigo abria a possibilidade de o prazo da exclusividade ser
menor, caso houvesse o entendimento de que o invento era essencial a alguma
“indústria”. Ao contrário, onde o interesse do governo imperial requeresse maior
segredo, o prazo do privilégio poderia ser estendido por lei específica.
Esse dispositivo é corroborado pelo artigo 6o da lei de 1830, que facultava
ao governo a compra dos direitos do invento para torná-lo público de imediato:
Se o Governo comprar o segredo da invenção, ou
descoberta, fal-o-ha publicar; no caso porém, de ter
93
unicamente concedido patente, o segredo se conservará
occulto até que expire o prazo da patente. Findo este, é
obrigado o inventor ou descobridor a patentear o
segredo.18
A lei de 28 de agosto de 1830 expressava a aceitação do princípio do
direito internacional de patentes. Porém esse reconhecimento limitava-se a
reservar a introdução da máquina no Brasil ao próprio autor estrangeiro — ou seu
representante, e à proibição de que outra pessoa o fizesse.
A lei garantia o pagamento de um prêmio pela introdução da inovação
estrangeira no Brasil. A partir desse pagamento ao inventor, a lei não lhe
assegurava no país os mesmos direitos de inventor ou patenteador que reservava
aos detentores de patentes de origens nacionais.
Dessa forma, a lei brasileira confirmava a patente estrangeira na medida
em que apenas ao seu detentor era facultado trazer a invenção para o país. Mas
não proporcionava ao inventor estrangeiro o gozo dos mesmos direitos de
privilégio exclusivo obtidos no país que reconheceu sua patente.
Isso significava que a máquina já patenteada no estrangeiro era tratada no
Brasil como um “bem” como outro qualquer e não como um invento, um objeto
de privilégio industrial. Quando o inventor estrangeiro optava por trazer sua
“indústria útil” para o Brasil, fazia jus a um prêmio pela introdução. Em troca, o
Estado repassava a toda a sociedade o direito de utilização da inovação.
Na prática, o dispositivo legal parecia funcionar como um incentivo ao
detentor da patente estrangeira para que o invento ou inovação viesse a ser
popularizado no país. Dessa forma, a lei facilitava que inovações estrangeiras
fossem introduzidas e sua tecnologia pudesse ser assimilada de imediato no
Brasil.19
94
Outra característica da lei de 1830 é a proteção explícita ao inventor ou
melhorador, inclusive penalizando os imitadores, e a abertura de um mercado para
as patentes:
Art. 7 . O infractor do direito de patente perderá os
instrumentos e productos, e pagará além disso uma
multa igual à décima parte do valor dos productos
fabricados e as custas, ficando sempre sujeito à
indenização de perdas e damnos. Os instrumentos, e
productos e a multa, serão applicados ao dono da
patente.
Art. 8 . O que tiver uma patente, poderá dispor della,
como bem lhe parecer, usando elle mesmo, ou cedendoa a um, ou a mais.
Art. 9 . No caso de se encontrarem dous, ou mais, nos
meios, por que tenham conseguido qualquer fim, e
coincidindo ao mesmo tempo em pedir a patente, esta se
concederá a todos.20
Entretanto, à proteção exclusiva dos direitos de autoria cabiam também as
exigências do uso do benefício:
Art. 10 . Toda a patente cessa, e é nenhuma:
1 Provando-se que o agraciado faltou à verdade, ou foi
diminuto, occultando materia essencial na exposição,
ou declaração, que fez para obter a patente.
2 Provando-se ao que se diz inventor, ou descobridor,
que a invenção, ou descoberta, se acha impressa, e
descripta tal que elle a apresentou, como sua.
3 Se o agraciado não puzer em prática a invenção, ou
descoberta, dentro de dous annos depois de concedida a
patente.
4 Se o descobridor, ou inventor, obteve pela mesma
descoberta, ou invenção, patente em paiz estrangeiro.
Neste caso porém terá, como introductor, direito ao
prêmio estabelecido no artigo 3.
95
5 Se o gênero manufacturado, ou fabricado fôr
reconhecido nocivo ao público, ou contrário às leis.
6 Cessa também o direito de patente para aquelles, que
antes da concessão della usavam do mesmo invento, ou
descoberta.21
O artigo 10o demonstra uma política definida de fomento às invenções.
Nesse sentido, o prazo de dois anos para o agraciado pôr em prática sua invenção
ou descoberta, sob pena de perda dos direitos de patente, enfatiza o quanto o
Estado imperial induzia a efetiva materialização das invenções. Mesmo nos dias
atuais, um prazo como esse seria, em muitos casos, diminuto para a construção de
inventos.
Ainda quanto às patentes estrangeiras, o parágrafo 4 do artigo 10o mostra
que o reconhecimento de patentes já garantidas em outros países limitava-se, no
Brasil, à proteção para que o mesmo invento não viesse a ser patenteado por
outrem contra a vontade do patenteador estrangeiro. Ou seja, ao trazer seu invento
para o Brasil, o inventor estrangeiro recebia apenas o prêmio pela introdução e o
seu invento caía em domínio público imediato.
Cabe notar que, de uma forma clara e objetiva, a lei de 1830 reconhecia a
patente de invenção ou melhoramento de “indústria útil” como uma propriedade
privada de seu inventor ou patenteador. Isso adquire maior importância quando se
constata que a institucionalização da privatização da propriedade dos inventos
industriais se dá nos primeiros anos do Estado brasileiro, dentro de uma formação
econômico-social escravista.
No que diz respeito à produção de máquinas para a atividade cafeeira,
embora desde a vigência do alvará de 1809 o Estado favorecesse a prática da
invenção, os documentos indicam que as primeiras aparições de máquinas
ocorreram em decorrência da isenção de impostos de importação de “máquinas
úteis”, promovida pelo mesmo alvará.
96
Nesse caso, os europeus residentes que vinham “fazer a América” traziam
senão informações sobre máquinas específicas, pelo menos um nível de “cultura
técnica” mais abrangente, que lhes permitia adaptar seus conhecimentos ao trato
das primeiras safras do café.
O primeiro desses registros encontrados foi um requerimento à Real Junta
do Commércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, pelo qual, em 1821, o francês
Luis Lecesne, plantador de café no Sítio da Tejuca, “mandou vir da França tres
diferentes máquinas de nova invenção para o mesmo objecto, por não-as haver
nesta Cidade, nem tão pouco quem as fizesse [...], vindas de Brest na fragatta
franceza Clorinda[...]”22.
O súdito de origem francesa solicitava de seu soberano a isenção de
tarifas das máquinas, sendo
duas para debulhar café ou também outra matéria
crasa (que se aproxime em tamanho) acompanhando as
mesmas um ventilador para limpar o grão das cascas,
cada huma das máquinas vão movidas a mão e facilitão
o trabalho de seis pessoas empregadas por o methodo
comum.23
Na verdade, o que o Sr. Lecesne importava eram máquinas de uso para
beneficiamento de produtos agrícolas em geral já em uso na Europa, a fim de
utilizá-las com o café em sua plantação no Rio de Janeiro.
Quanto ao movimento dessas máquinas “movidas à mão”, tal método
reflete o patamar técnico da produção agrícola européia do fim do século XVIII e
primeira metade do século XIX, em que, apesar do avanço da energia a vapor no
meio industrial, o chamado “methodo comum” pelo francês o era também na
Europa, qual seja o uso de pilões manuais e, em alguns casos mais avançados,
movidos por força animal, hidráulica ou eólica. Por isso, as máquinas que
97
importava, ainda que manuais, representavam juntas uma economia de trabalho de
seis pessoas.24
O primeiro privilégio concedido pelo alvará de 1809 a um invento para
café ocorreu em julho de 1822. Embora o alvará previsse uma duração de
quatorze anos, foi concedido um exclusivo de apenas 5 anos a Luiz Louvain e
Simão Clothe para
[...]machina para descascar café, a qual além de ser
inteiramente própria da invenção dos suplicantes
produz todo o bom resultado [...] pela perfeição com
que descasca o café sem lhe quebrar o grão, ou seja,
pela brevidade, e economia, e simplicidade do trabalho
[...] que se bem está construída para ser trabalhada por
hum homem, he suscetível de machinismo próprio para
ser movida ou por hum animal, ou por ágoa.25
Na falta de uma forma sistematizada por lei para avaliar a invenção, a
máquina foi examinada pelo “artista” Gaspar José Marques, cujo parecer descreve
assim a invenção:
das de construcção de moinhos ou galgas horizontaes,
com a inovação de suas superfícies serem dadas em
huma figura cônica de 25 graus 30 min de inclinação
sobre seu diâmetro, isto para melhor espidição da
matéria[...] 26
Ainda que não se tenha detalhes técnicos sobre a construção das
máquinas importadas da França por Lecesne, é necessário notar que há entre elas
vários pontos em comum com a de Louvain e Clothe. Em primeiro lugar a
preocupação com a rapidez e com a economia de trabalho e — como seria de se
esperar — com a qualidade do café. Em segundo lugar, salta aos olhos a
versatilidade com que a máquina brasileira fora dotada, podendo ser movida
manualmente ou ainda ser acoplada a mecanismos para ser movida por animal ou
por água.
98
A tendência pelo acoplamento de máquinas a mecanismos hidráulicos era
uma solução em andamento nos países em desenvolvimento industrial dotados de
recursos hídricos naturais. Mesmo na Inglaterra não houve um aproveitamento
industrial da energia da máquina a vapor em larga escala antes do século XIX,
como afirma R. J. Forbes.27
Por outro lado, Louvain e Clothe — não há indicação de suas
nacionalidades, mas é certo que residiam no Brasil — inovaram, e não
inventaram, um antigo moinho de amplo uso agrícola e doméstico desde a Idade
Média,28 visto os ajustes na angulação das mós estarem voltados às
especificidades do grão de café. Então, vale dizer que, no ínicio da produção
cafeeira do Sudeste brasileiro, as máquinas importadas continham relativo atraso
tecnológico quando confrontadas com aquela aqui inovada.
Após a aprovação da lei de patentes de 1830, a primeira petição de
privilégio para máquina de café data de 1835.29 Ainda que Cruz e Tavares a
tenham anotado como a primeira patente do tipo, não há indícios de que o
privilégio tenha sido concedido, pois não houve decreto governamental sobre a
matéria neste ano, como seria a praxe.30
Entretanto, consta nos documentos da Real Junta do Commércio,
Agricultura, Fábricas e Navegação — o que causa estranhamento, pois de 1830 a
1860 a matéria esteve no âmbito do Ministério dos Negócios do Império — o
processo de privilégio para João Guilherme Nhewes, “de nação alemã, que
servindo-se de sua indústria, inventara huma maquina, pela qual, com o trabalho
de hum só homem, se limpão e preparão de quarenta a cincoenta arrobas de café
por dia”31.
O autor requeria, em 1835, um privilégio por 10 anos. Nesse invento,
deve-se atentar para a preocupação com a economia de mão-de-obra e incremento
à produtividade: 40 a 50 arrobas equivalem a 600 a 750 quilos de café, ou 10 a 12
sacas por dia, com apenas um trabalhador!
99
Em 1849, o decreto no 645, de 27 de outubro, atendia à representação de
Fructuoso José Coelho, “pedindo privilégio exclusivo para só elle poder construir
machinas [...] a qual serve para despolpar o café, e extrahir-lhe o succo, que póde
ser aproveitado para d'elle se fazer aguardente, vinagre e assucar [...]”32.
Nesse caso, foi concedido o privilégio por oito anos, mas não é sabido se
a máquina chegou a ser fabricada e se os produtos da polpa do café chegaram à
comercialização.
Em 21 de dezembro de 1850, o decreto 746, o segundo de concessão de
patentes de máquina de café desde a lei de 1830, concedia a
Roberto João Ripper de Castro privilégio exclusivo por
dez annos para o fabrico e venda de uma machina de
sua invenção, pela qual, e por meio da força de dois
homens, se consegue descascar, abanar e brunir oitenta
arrobas de café em dez horas. 33
Mesmo sem o exame dos documentos desses processos de patentes — o
Arquivo Nacional possui os processos de 1873 a 1910 —, é possível destacar
alguns pontos fundamentais para o exame do que será mais bem explorado neste
trabalho: o gradativo aparecimento de novos inventos, à medida que se
intensificam as plantações e os negócios com o café e o grau de identificação
dessas inovações em relação aos problemas técnicos vivenciados nas fazendas.
No referido decreto 746, foi dada concessão por um período de dez anos,
ou seja, metade do tempo máximo permitido pela lei vigente. Isso pode sinalizar a
vontade do governo de popularizar a fabricação da máquina, devido à importância
relativa que a produção do café vinha adquirindo no conjunto dos produtos
agrícolas nacionais na metade do século passado.
100
Segundo Beauclair, “uma maior confiança no destino do café e no seu
papel de reforçar a articulacão da economia do país ao comércio internacional
parece aflorar mais nitidamente na década de 1850/60”.34
Uma década é tempo demais para se preservar um segredo quando há
interesse em divulgá-lo o mais rápido possível. Assim, pode-se inferir pelo tempo
de privilégio concedido a Roberto Ripper de Castro que ainda não havia um
consenso, em 1850, quanto à necessidade de aumentar a produtividade e melhorar
a qualidade do café brasileiro.
Ficou reservada à machina inventada por Ripper de Castro o mesmo
papel desempenhado por aquela patenteada por Louvain e Clothe em 1822: ambas
iniciaram uma prática de patenteamento de invenções e aperfeiçoamentos em
máquinas de beneficiar café que se consolidaria nas décadas seguintes no Brasil.
Representativa da transição de um beneficiamento rudimentar com
utilização de mão-de-obra escrava para um beneficiamento mecanizado, sob o
prisma tecnológico, a invenção de Ripper racionalizava sobre os métodos antigos
ao conjugar numa só máquina tarefas essenciais ao tratamento — descascamento,
ventilação e brunimento — de 80 arrobas (1.200 kg) de café em dez horas, com o
trabalho de apenas dois homens.
Vale lembrar que toda essa racionalização da produção do café se dava
em uma sociedade predominantemente escravista.
A lei 3.129, de 14 de outubro de 1882, regulamentada pelo decreto 8.820,
de 30 de dezembro do mesmo ano, foi a segunda lei brasileira de patentes.
Em relação à legislação anterior, a nova lei surgia num momento de maior
complexidade das técnicas e também das relações político-econômicas
internacionais. Desde novembro de 1880 estava instalada na França a chamada
Convenção Universal de Paris, com a finalidade de discutir e formular uma
legislação internacional de proteção à propriedade industrial. O Império do Brazil
101
uniu-se a ela em 1881, advindo daí uma lei mais específica em seu detalhamento
que a lei anterior.35
Seu primeiro artigo já enfatizava a garantia ao autor: “Art. 1 A lei garante
pela concessão de uma patente ao autor de qualquer invenção ou descoberta a sua
propriedade e uso exclusivo”.36
O mesmo artigo também definia o que se entendia por invenção ou
descoberta. Considerava, para efeito de proteção:
1o - invenção de novos produtos industriais,
2o - invenção de novos meios ou a applicação nova de
meios conhecidos para se obter um producto ou
resultado industrial,
3o - o melhoramento de invenção já privilegiada, se
tornar mais fácil o fabrico do producto ou uso do
invento privilegiado ou se lhe augmentar a utilidade.37
Vale a pena ressaltar o que o texto da lei expressava como novos:
[...] os produtos, meios, aplicações e melhoramentos
industriais que até o pedido da patente não tiverem
sido, dentro ou fóra do Império, empregados ou
usados, nem se acharem descriptos ou publicados de
modo que possão ser empregados ou usados.38
Com esse texto, a lei reiterava o reconhecimento das patentes
estrangeiras. Garantia ainda o uso público no Brasil daquelas inovações
industriais já conhecidas mas não protegidas por leis de patentes em outros países,
não permitindo a apropriação de seus direitos por particulares.
Para os requerimentos de invenções com patentes estrangeiras, a lei
reservava um período de até sete meses de prioridade para que o inventor
estrangeiro requeresse os direitos também no Brasil. Isso representou uma
explicitação considerável da política brasileira com patentes estrangeiras, que a lei
de 1830 não continha.
102
Não é demais reproduzir o artigo 2o:
Os inventores privilegiados em outras nações poderão
obter a confirmação de seus direitos no Império,
contanto que preenchão as formalidades e condições
desta lei e observem as mais disposições em vigor
applicáveis ao caso.
A confirmação dará os mesmos direitos que a patente
concedida no Império.
Parágrafo 1- A prioridade do direito de propriedade do
inventor que, tendo requerido patente em nação
estrangeira, fizer igual pedido ao governo imperial
dentro de sete mezes, não será invalidada por factos,
que occorrão durante esse período, como sejão outro
igual pedido, a publicação da invenção e o seu uso ou
emprego.39
Por outro lado, a patente estrangeira vigoraria no Brasil enquanto gozasse
de privilégio exclusivo em sua nação de origem até o máximo de 15 anos, caindo
em domínio público ao mesmo tempo no Brasil.
Para conferir seu ineditismo no julgamento do mérito da patente, além da
declaração do autor, a análise do processo de petição da concessão levava em
conta o universo das invenções e publicações no Brasil e nos demais países. A
preocupação com possíveis patenteamentos fraudulentos foi sanada, em parte,
pela possibilidade aberta pela própria lei (artigo 5o, parágrafo 3) a “qualquer
interessado” que quisesse promover ação de nulidade de patente já concedida.
Nesse caso, o decreto 8.820, de 30 de dezembro de 1882, que regulamentou a Lei
3.129, em seu artigo 54, parágrafo 2, era mais explícito, ao considerar
“interessados”
[...] os inventores, os seus legítimos representantes,
cujos direitos sejão offendidos pelo privilégio
concedido, e qualquer pessoa com capacidade civil que
se julgue prejudicada como consumidor dos produtos
da indústria privilegiada.40
103
É interessante também salientar que a possibilidade aberta à ação de
nulidade da patente funcionava como um mecanismo de vigilância da sociedade
para com o uso efetivo da concessão, uma vez que o inciso 1o do parágrafo 2o do
mesmo artigo 5o da lei de 1882 previa qu,e num tempo máximo de três anos, o
patenteador que não fizesse “uso efectivo da invenção” ou que interrompesse esse
“uso efectivo” por período superior a um ano, salvo por motivo de força maior
julgado pelo Conselho de Estado, perderia seus direitos.
Importa frisar que por “uso efectivo” definia a lei não só “o exercício da
indústria privilegiada” como também “o fornecimento dos produtos na proporção
do seu emprego ou consumo”41.
A mesma lei de 1882, no inciso 2o do parágrafo 2o do artigo 5o, afirma
que:
Provando-se que o fornecimento dos productos é
evidentemente insufficiente para as exigências do
emprego ou consumo, poderá ser o privilégio
restringido a uma zona determinada por acto do
governo, com approvação do poder legislativo.42
Fica, dessa forma, evidenciada a tentativa do Estado de atribuir um
caráter social às invenções, não apenas em relação ao súdito comum do Império
ou ao inventor, mas também em relação às exigências das demais indústrias
dependentes do fornecimento dos produtos oriundos de determinada invenção
patenteada.
O estatuto legal explicitava ainda:
produto — significa o objeto material obtido
resultado — quer dizer a vantagem obtida na
producção ou operação industrial relativamente à
104
qualidade, quantidade e economia de tempo ou de
dinheiro
meio — exprime o processo, a combinação chimica ou
mechanica, a maneira de empregar os agentes naturaes
ou artificiais e as substancias ou materias conhecidas.
applicação — é o facto de dar-se a qualquer agente,
substancia ou matéria conhecida um uso novo.
melhoramento — é o que torna mais fácil o fabrico do
producto, ou o uso do invento privilegiado, ou lhe
augmenta a utilidade.
novo — entende-se que é o producto, o resultado, o
meio, a applicação, ou o melhoramento, enquanto não
fôr, dentro ou fóra do Império, empregado, ou usado,
nem se achar descripto e publicado de modo que possa
ser empregado ou usado.
industrial — é o que apresenta resultado apreciável na
indústria e no commércio.43
Convém realçar que ficavam mantidas as cláusulas de desapropriação das
patentes consideradas de utilidade pública. Entretanto, o prazo máximo de
exclusividade foi reduzido a “até 15 annos”, ficando o tempo de privilégio dado
ao melhoramento de invenção feito pelo próprio autor restrito à duração da
patente que originou o melhoramento. Isso permitia colocar em domínio público
invenções já revistas pelos próprios autores, a um só tempo. Nesse caso, a lei
reservava o primeiro ano em vigor da patente aos melhoramentos feitos pelo seu
autor, abrindo os anos posteriores às adaptações de outrem.
Os inventores de melhoramentos privilegiados nesse último caso eram
forçados a aguardar até expirar o prazo de privilégio da invenção original para
gozarem de seus direitos, salvo se houvesse acordo explícito com o autor da
invenção original.44
Quanto às despesas do patenteamento, a lei de 1882 estabeleceu uma
fórmula progressiva para que o Estado taxasse os privilégios concedidos:
105
além das despesas e dos emolumentos que forem
devidos, os concessionários de patentes pagarão uma
taxa de 20$ [vinte mil-réis] pelo primeiro anno, de 30$
pelo segundo, de 40$ pelo terceiro, augmentando-se em
$10 em cada anno que se seguir sobre anuidade
anterior por todo o prazo do privilégio. Em caso
nenhum serão restituídas as anuidades.45
Por essa fórmula o inventor privilegiado por 15 anos pagaria 160$ na
última anuidade. Além disso, o parágrafo 5o do artigo 3o estabelecia que
ao inventor privilegiado que melhorar a própria
invenção se dará certidão de melhoramento, o que será
apostilado na respectiva patente. Por esta certidão
pagará o inventor por uma só vez quantia
correspondente à anuidade que tenha de vencer-se.46
Pode-se inferir que sobre a patente do melhoramento continuariam
incidindo as anuidades seguintes, até a expiração do prazo, o que dobrava as
despesas dos autores originais. Aos inventores de melhoramentos em patentes
alheias, incidiriam as mesmas anuidades, sem que pudessem gozar dos privilégios
antes de expirar a patente original.
Já o inciso 3o, do parágrafo 2o do artigo 5o previa a caducidade da patente
“não pagando o concessionário a anuidade nos prazos da lei”. Tais medidas
podem ter funcionado como um instrumento para que os inventores menos
possuídos vendessem seus direitos a pessoas ou empresas com maiores
possibilidades de pô-los em prática.
Quanto às especificidades da lei em relação à proteção ao inventor, as
penalidades infringidas eram também de monta:
[...] Os infractores do privilégio serão punidos, em
favor dos cofres públicos, com a multa de 500$ a
106
5:000$ [quinhentos mil-réis a cinco contos de réis]; e
em favor do concessionário da patente, com 10 a 50%
do damno causado ou que poderão causar.47
Outro ponto importante das garantias ao autor era a possibilidade de
negociar ou ceder seus direitos de qualquer forma prevista pela legislação
comercial vigente no Império, ou ainda dá-los ou deixá-los em usufruto. Nesse
último caso, ao extinguir-se o usufruto ou expirar a patente, o detentor do usufruto
da patente era obrigado pela lei “a dar ao senhor da sua propriedade o valor em
que esta fôr estipulada, calculada com relação ao tempo que durar o usufructo”48.
Esse dispositivo pode ter funcionado de forma a amenizar o impacto das
despesas com as patentes para os inventores menos providos de cabedais, que,
cedendo a outrem seus direitos, viam-se livres dos encargos e em melhores
condições de ver seus inventos serem construídos, gerando-lhes um ressarcimento
futuro.
Deve-se também atentar para o fato de que, pelo reconhecimento da
patente como um bem cuja propriedade era regulamentada pelo Código Comercial
vigente, o Estado imperial, escravista e de base política majoritariamente ligada à
agricultura, estabelecia uma política privacionista em relação à propriedade
industrial.
Em seção específica, será mostrado que muitos inventores nacionais
atuavam em conjunto com firmas como a Cia. Mechânica e Importadora de São
Paulo, que aparecem nos registros como procuradores do inventor. Em algumas
fontes, essas empresas constam como industriais e comerciantes das máquinas.
Essas observações são feitas com base na pesquisa nos anúncios de máquinas na
grande imprensa, já que a lei de 1882, em seu artigo 6o, parágrafo 6o, inciso 3o,
estipulava multa de $100 a $500[cem réis a quinhentos réis] para
107
os inventores privilegiados que, em prospectos,
anúncios, letreiros ou por qualquer modo de
publicidade fizerem menção das patentes, sem
designarem o objeto especial para que as tiverem
obtido.49
Dessa maneira, foi possível identificar na publicidade pesquisada alguns
indícios de vínculos entre inventores e fabricantes das invenções patenteadas.
Além de trabalharem visando ao mercado de máquinas de benefíciamento do café,
muitos inventores criavam máquinas de beneficiar diversos outros produtos,
atendendo inclusive a mercados de fora do Brasil. Esse foi o caso das
Machinas de Arroz Engelberg. Separadores e
ventiladores de arroz. Fabricação da Companhia
Mechânica e Importadora de São Paulo. Estas
machinas, já muito conhecidas, trabalham com a maior
perfeição e produzem grande quantidade. Grande
reducção de preços [...] 50
Mantendo as disposições da lei de 1830, o artigo 2o da lei de 1830 era
categórico: as invenções contrárias à moral, ofensivas à segurança pública ou
nocivas à saúde não poderiam ser objeto de privilégios.51
A mesma lei também estebelecia a realização de um exame prévio da
documentação depositada, quando parecesse que a matéria envolvia as categorias
interditadas ou ainda quando se tratasse de produtos alimentares, químicos ou
farmacêuticos. Porém a lei só era clara quanto ao exame prévio com relação às
invenções não passíveis de patenteamento. Em relação às máquinas e outros
artefatos, a lei de 1882, tanto quanto a de 1830, era omissa.
Contudo, em que pese a falta de regulamentação específica, as petições de
privilégios industriais feitas ao governo imperial eram previamente analisadas
pela Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional (Sain), cabendo às suas
diversas seções emitir pareceres sobre as petições, que seriam depois acatados
108
pelo Ministério da Agricultura, Commércio e Obras Públicas. Tal participação da
Sain demonstra a influência das associações civis criadas no bojo da
administração do Estado imperial.
De acordo com a regulamentação da lei (artigo 31, incisos 1o, 2o e 3o),
eram competentes para o exame: a Procuradoria da Coroa, Soberania e Fazenda
Nacional, a Junta Central de Hygiene Pública,
as escolas Polytéchnicas, de marinha, militar, a
faculdade de medicina da corte e quaisquer repartições
públicas , representadas por seus directores ou chefes,
que forem designadas pelo Ministro da Agricultura,
Commércio e Obras Públicas, conforme a espécie de
invenção e o resultado práctico que se trate de
verificar.52
Até aqui não havia qualquer referência à participação de sociedades civis
no exame prévio dos inventos. Entretanto, os artigos 39 a 43 da lei regulamentar,
que tratavam das formalidades após a concessão da patente, previam que o
privilegiado seria convidado através do Diário Oficial a assistir à abertura dos
envólucros e satisfazer as despesas devidas na presença do Diretor do Archivo
Público e do Diretor de Comércio do referido ministério.53
Realizados esses procedimentos, o relatório do inventor seria publicado
no Diário Oficial
e um dos exemplares dos desenhos, plantas, modelos ou
amostras, exposto no archivo por 15 dias ao exame do
público e ao estudo dos interessados, permitindo-se que
estes tirem ou fação tirar cópias por pessoas
habilitadas, sem damnificação dos originaes e no local
da exposição.54
109
Mas isso não significava que o processo de patenteamento houvesse
chegado a termo. Nesse ponto, ainda no decreto regulamentar, o Artigo 44 era
sutil, ao prever que
no caso de não ter havido exame prévio e secreto, o
governo, publicado o relatório, ordenará a verificação
dos requisitos e condições que a lei exige para a
validade do privilégio, procedendo-se pelo modo
estabelecido para aquelle exame e podendo a
verificação ser confiada a outros profissionais ou
peritos que o mesmo governo julgue idôneos, conforme
a natureza da invenção.55
Esse artigo do regulamento da lei de patentes de 1882 abria uma
possibilidade de ingerência da Sain na política de privilégios industriais do Estado
imperial. Confirmava-se na nova lei a prática adotada pelo Estado na apreciação
das petições de privilégios à margem da legislação de 1830.56
Na verdade, o exame prévio corriqueiro dos pedidos de privilégio para as
máquinas de beneficiar café era uma demanda antiga tanto dos membros da Sain
quanto dos próprios inventores já estabelecidos industrialmente. Antiga também
era a demanda por uma legislação mais clara e atualizada quanto ao
patenteamento de invenções estrangeiras.
Nesse caso, à falta de matéria legal reguladora desde a lei de 1830, fora
adotado um procedimento padrão, envolvendo desde as autoridades consulares
brasileiras até a Sain. Um bom exemplo da saída prática para a omissão da lei de
1830 é o pedido de concessão de privilégio feito em 1878 por F. Schmid
Schertlen & Comp., representando o inventor venezuelano José Antonio
Mosquera. No documento, o requerente era categórico:
Tem por fim esta petição obter o reconhecimento neste
Império da patente de privilégio de José Antonio
Mosquera, obtida na Inglaterra, para a construcção e
venda de machinas de beneficiar café. Essas machinas
110
são construídas presentemente na Inglaterra pela
companhia denominada Coffee Plater’s Machinery
Comp. - Mosquera’s Patent.57
F. Schmid Schertlen e Comp. esclareciam ainda a maneira como a
necessidade prática em face da conjuntura política e tecnológica criara, no bojo do
próprio Estado, uma situação de fato:
A petição está devidamente acompanhada pela
procuração do inventor, [...] tudo visado pelas
autoridades consulares deste Império [...] Cumprida
assim a praxe estabelecida para o reconhecimento neste
Império das patentes de privilégio, concedidas por
Governos estrangeiros, [...] seja reconhecida a patente
de privilégio [...] a terminar no Brazil no mesmo prazo
que a patente inicial na Inglaterra, salvo os detalhes já
conhecidos e privilegiados neste Império.58
Os pareceres das seções da Sain demonstravam sua influência crescente
nas decisões sobre patentes, num momento em que o patenteamento de novas
técnicas e máquinas de dentro e de fora do Império representava o que havia de
mais moderno no mundo civilizado.
Os pareceres da Secção de Machinas e Apparelhos eram sempre enfáticos
na crítica à guarda pura e simples das descrições técnicas dos inventos. Ainda em
1878, ao julgar um pedido de privilégio de Morris e Stockman sobre uma
máquina de beneficiar café, foi registrado que
a informação, que deve dar a Secção de Machinas e
Apparelhos da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional, lhe é absolutamente impossível informar
sobre o que se acha fechado, lacrado e depositado na
Archivo Publico. [...]
É na verdade, sabido que o maior número de privilégios
existentes neste Império versa sobre máquinas de café,
que os inventores seguem apenas tres ou quatro tipos
fundamentais; de modo que é preciso muita atenção e
111
sério estudo para diferenciar os detalhes característicos
de cada patente de privilégio.[...]
Nestas circunstâncias, admitir o sistema de sigilo nas
descrições e nos desenhos é suscitar conflitos e
provocar fraudes, em detrimento dos inventores de boa
fé, que foram privilegiados, apresentando francamente
ao Governo Imperial descrições e desenhos de suas
máquinas.59
Com efeito, tais críticas à lei de patentes de 1830 vinham de muito antes,
e coincidiam com o período da realização das primeiras exposições nacionais e
internacionais que se transformaram na moda entre os países considerados
civilizados na década de 1860.60 No Brasil, o primeiro desses certames industriais
teve lugar em fevereiro de 1861, no Largo de São Francisco, na Corte: era a
Primeira Exposição da Indústria Nacional Brasileira.61
Dezessete anos após, e depois de o Brasil ter montado stands com seus
principais produtos em várias exposições universais na Europa e Estados Unidos,
a Sain criticava em suas plenárias a legislação de propriedade industrial vigente.
Na sessão de novembro de 1878, por exemplo, o assunto foi debatido após um
pronunciamento do Dr. José Pereira Rego Filho, secretário-geral da Sociedade. O
Auxiliador publicou que seu dirigente afirmara na ocasião que:
[...] o desenvolvimento que vai tomando a iniciativa
individual pede garantias solenes ao direito de
propriedade pouco ou nada amparado até hoje; que a
lei de 28 de agosto de 1830, que regula a matéria da
concessão de privilégios, não satisfaz as exigências da
atualidade; pede reforma pensada, porem pronta; [...]
que desde 1862 esta sociedade reclama com todo o
empenho seu estudo e modificação radical, julgando-a
incompatível com os interesses dos industriais, não
oferecendo-lhes a menor proteção.62
Ao que parece, o Dr. Rego Filho vinha fazendo solicitações pela mudança
da lei de patentes ao governo e ao parlamento desde que assumira a secretaria-
112
geral da Sain, doze anos antes. Nesses expedientes, procurava sempre mostrar os
embaraços e irregularidades contidos na lei de 1830, considerada obsoleta quanto
às questões de privilégios que se apresentavam mais de quarenta anos após sua
aprovação.
Na plenária de novembro de 1878, a entidade julgou ser seu dever
continuar insistindo na mudança, inclusive empregando “todos os esforços a seu
alcance para dotar o paiz com leis, cuja equidade, fortaleza e doutrina,
representem os interesses legítimos da actualidade”63.
Não por coincidência, na mesma sessão, o Dr. Hargreaves, membro da
Secção de Machinas e Apparelhos e também inventor e fabricante de aparelhos de
beneficiamento de café, lembrou a conveniência de que um projeto de reformas
da legislação de patentes partisse da própria Sain. Em sua opinião, a Sociedade
deveria também propor outras questões emergentes daquele momento, tais como a
“locação de serviços, questão de transcendente interesse”.
Por voto unânime do conselho da Sain, a sugestão foi aprovada, com a
indicação de que
[...] se nomeasse uma comissão, a qual formulará o
projecto que, depois de discutido, deve subir ao Poder
Legislativo. O Sr. presidente nomeou membros dessa
comissão os Srs. Drs. secretário geral, Rebouças e
Hargreaves, ficando também a seu cargo o estudo da
questão de locação de serviços.64
É evidente que o relacionamento entre as entidades de industriais e
comerciantes é estreitado na discussão das leis e das políticas de comércio
exterior e patentes. No caso da Sain, a mais influente dessas entidades até os
primeiros anos da República, há também que se considerar o que fundamentava a
sua existência: seu relacionamento simbiótico com o Estado imperial. Nesse
sentido, análises mais aprofundadas mostram que, no Segundo Reinado, a
113
distinção entre a instância pública e a privada era muito mais tênue do que se
supõe.65
Fundada em 1827, a Sain existiu até 1904, quando se fundiu com o
Centro Industrial de Fiação e Tecelagem, originando o Centro Industrial do
Brasil. De 1933 a 1937, este integrou-se às demais associações industriais
estaduais e regionais na Confederação Industrial do Brasil para, a partir de 1938,
transformar-se na Confederação Nacional da Indústria(CNI).66
O discurso proferido pelo fundador da Sain, Ignácio Alves Pinto de
Almeida, “Fidalgo Cavalleiro da Casa de S. M. O Imperador do Brasil, seu
Guarda Roupa, Deputado da Junta do Commércio, Commendador da Ordem de
Christo, e Cavalleiro da Ordem de N. S. da Conceição, e Secretário da mesma
Sociedade”,67 deixava clara a importância dada ao desenvolvimento da indústria
brasileira:
[...] Indústria considerada, ou como simples trabalhos
manuaes, ou como invenção do espírito em
machinismos úteis, he hum thesouro precioso de
unnumeraveis benefícios porque applicada à sua
cultura da Terra, às Manufacturas, às Artes, e ao
Commercio, anima, e fertilisa tudo e por tudo espalha a
abundancia, e a vida [...] 68
Entendendo por indústria a síntese dos principais ramos da economia
nacional de então, “Invenção, Commércio, Indústria e Agricultura” formavam os
pilares da Sain. Essas palavras se destacavam no diploma desenhado por Debret
em 1829, para ser ofertado aos sócios da entidade recém-formada.69
Werneck da Silva problematizou que a Sain teria sido, em seus primeiros
momentos, um grupo de pressão na sociedade escravista e agrário-exportadora.
Isso, porém, teria sido logo depois mudado. À Sain coube, então, promover e
auxiliar as forças produtivas no espaço geográfico da nação brasileira. A
114
Sociedade via a indústria como sinônimo de artes mecânicas ou úteis, tanto ligada
ao comércio quanto à agricultura, com participacão ou não de máquinas.70
Porém, o mesmo autor entendeu que a Sain foi cooptada pelo Estado, pois
recebeu ajuda financeira e se submeteu à aprovação dos estatutos pela provisão de
31 de outubro de 1825, sendo sua primeira diretoria legitimada pelo imperador
através da portaria de 18 de julho de 1827.71
De fato, há muitos indícios do íntimo relacionamento da Sain com o
governo imperial, desde sua fundação. É verdade que também o governo provia as
verbas que sustentavam os projetos e ações da Sociedade, como o caso da portaria
de 29 de Janeiro de 182,9 que ordena a compra de máquinas que seriam entregues
à Sain, com dispositivo sobre “aquisição, arrecadação e conservação de máquinas,
modelos e inventos adquiridos... [que] deveriam ser conservados e expostos ao
público numa casa acomodada”, sob a responsabilidade da Sain, dentro de sua
proposta original de difundir o uso destas no Brasil.72
Entretanto, seria impreciso definir a Sain como um simples apêndice do
Estado. A entidade era formada, em grande parte, por intelectuais e homens ricos
que não raramente ocupavam altos cargos no núcleo do próprio Estado.73 Além
disso, a Sain também arrecadava recursos entre os seus sócios para a “aquisicão
de máquinas e modelos próprios à indústria da nação, na construcão deles no
próprio país, para o que seriam estabelecidas oficinas”. Em 1833, a Sociedade já
possuía 90 máquinas diversas em exposição: de descascar café, de lavar ouro, de
descaroçar algodão, de cortar capim, de tornear metais, e até de fazer cordas.74
Confirmando esse caráter difusor da modernização das técnicas, a Sain
criou, no mesmo ano de 1833, um periódico mensal de circulação nacional, O
Auxiliador da Indústria Nacional, ou
Collecção de Memórias e Notícias interessantes, aos
fazendeiros, fabricantes, artistas , e classes industriosas
115
do Brasil, tanto originaes como traduzidas das
melhores obras que neste genero se publicão nos
Estados Unidos, França, Inglaterra, etc.75
Com base na crescente importância da publicação, a Assembléia Geral
aprovou a Lei 514 de 28 de outubro de 1848 do orçamento do império de 18491850, que trazia em seu artigo 14: “Fica o Governo autorisado a tomar tantas
assignaturas do periódico mensal da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional,
quantas forem as Câmaras Municipaes do Império, às quaes será distribuído”76.
Com base nessa lei, foi expedido o decreto 630, de 6 de agosto de 1849:
Sendo o Governo autorisado [...] a tomar tantas
assignaturas do Periódico Mensal da Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional , quantas são as
Câmaras Municipaes do Império, para ser por ellas
distribuído o mesmo Periódico [...]: Hei por bem [...]
Autorisar o Ministério e Secretaria d'Estado dos
Negócios do Império a despender a quantia de dous
contos trezentos e vinte e dous mil réis, correspondente
a trezentos e oitenta e sete assinaturas do referido
Periódico [...] 77
De acordo com o artigo 1o do estatuto de 1827, o objetivo central da Sain
era “promover, por todos os meios ao seu alcance, o melhoramento e a
prosperidade da indústria no Império do Brasil”78.
Nunca é demais enfatizar que se entendia por indústria o conjunto das
atividades fabris, agrícolas e comerciais. Para Van Der Weid, em seus primeiros
tempos a Sociedade entendia que o motor da economia brasileira era a agricultura:
aceitando a vocação agrícola do país, [...] se
preocupava em promover
a modernização da sua agricultura. As atividades
comerciais e fabris, embora igualmente dignas de
atenção, constituíam temas secundários.79
116
Segundo a autora, a Sain teve participação importante na gradual
eliminação do tráfico e do trabalho escravo no Brasil, defendendo desde cedo a
entrada da mão-de-obra européia:
Ao lado destas soluções diretamente ligadas à mão-deobra, a Sain preconizava, como medidas para amenizar
a carência de braços, a introdução de novos métodos de
cultivo, bem como de modernas técnicas e instrumentos
agrícolas. O tema da modernização da agricultura [...]
ganhava nova dimensão. Fazia-se premente encontrar
novos meios que possibilitassem uma economia de mãode-obra e um aumento da produtividade.80
A Sain funcionava também como órgão consultivo do governo imperial,
principalmente no tocante ao exame dos processos de concessão de privilégios.
Quanto a isso, aliás, a legislação vai se tornando mais clara à medida que a Sain
consolida a sua influência no avançar do Segundo Reinado: pelo decreto 274,8 de
16 de fevereiro de 1861, a jurisdição onde atuava é transferida do Ministério dos
Negócios do Império para a da Secretaria de Estado e Ministério dos Negócios da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas, integrada no âmbito da Diretoria Central,
à qual cabia “a concessão de patentes de invenção e melhoramento de indústria
útil, e a de prêmios para introducão de indústria estrangeira”.81
Com efeito, segundo o estatuto de 1855, havia na Sain várias seções
especializadas, para auxiliar o governo com seus pareceres: a Seção de
Agricultura, da Indústria Fabril, de Máquinas e Aparelhos, de Artes Liberais e
Mecânicas, do Comércio e Meios de Transporte, de Geologia Aplicada e Química
Industrial e de Melhoramentos das Raças Animais.82
Werneck da Silva viu a Sain como uma instituição semi-estatal, com uma
estrutura capaz de pôr em prática toda uma política industrial que interessava aos
setores em ascensão na economia brasileira. Isso se concretizou nas inúmeras
117
exposições provinciais e nacionais de artefatos e produtos agrícolas. Segundo o
autor,
na conjuntura de 1871 até 1877, a Sain se qualificava
como um organismo intermediário, na confluência da
sociedade civil e da sociedade política, com
características semi-governamentais, semi-oficiais e
semi-públicas. Não era, certamente, um grupo de
pressão ou um grupo de interesses organizados, mas
podia ser (e muitas vezes foi) instrumento de pressão de
grupos de interesses organizados, como aqueles que se
representavam no bloco do poder, definido em meados
do século XIX e modificado no decorrer das suas 3
últimas décadas. 83
Nesse sentido, os “grupos de interesses organizados”, como diz Werneck
da Silva, podem ser relacionados com aqueles ligados à economia agrícola de
exportação, interessados em construir uma alternativa tecnológica para os
métodos de trabalho ultrapassados e para os problemas com a reposição da mãode-obra escrava em vias de extinção. Como grupos tradicionalmente
representados no “bloco do poder”, os grandes produtores agrícolas brasileiros
viam também na Sain um instrumento formal de atuação política com discurso
tecnicista, capaz de emprestar-lhes o verniz modernizante de que tanto careciam,
uma vez que transitavam do universo colonial de base escravista para uma
produção racionalizada em bases capitalistas, sem desvincular-se do núcleo do
Estado.
Por outro lado, da Sain participavam muitos empresários de negócios
urbanos. Honorato dá o tom desse “grupo de interesses organizados”:
participando, também, da vida política, a burguesia em
formação, embora sem hegemonia, pressionava o
Estado para o atendimento de suas demandas, que eram
atendidas, desde que isto não representasse uma cisão
no 'bloco histórico' do período.84
118
Uma das formas de atendimento a essas demandas ocorreu com a
montagem de um arcabouço jurídico sofisticado, coerente com o que existia de
mais avançado no capitalismo central.85 Ilustrativo foi o projeto de lei preparado
pela Seção de Máquinas e Aparelhos da Sain e enviado à Assembléia Geral pelo
Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas em 1874, sobre privilégios
de invenção, baseado na legislação em vigor nos Estados Unidos da América.
Segundo Werneck da Silva, por esse projeto seriam concedidos
privilégios industriais a
qualquer arte nova, qualquer máquina, qualquer gênero
de manufatura, qualquer composicão de substância,
qualquer indústria ainda não conhecida ou praticada
no país, qualquer melhoramento útil e importante em
invento já privilegiado e tudo enfim que puder satisfazer
qualquer necessidade real ou fábrica fictícia do
homem.86
Mas o autor adiantou que
logo alertava (a Sain) para não traduzir mal este tão
legítimo pensamento de progresso, dando força e vigor
àqueles que entendiam que progredir era aproveitar só
o que fosse mal, imitando e copiando, de um modo
desgraçado, o que se passava nos outros países.87
Com esta digressão, desejou-se mostrar que desde a instalação da Corte
portuguesa até a vigência da lei de patentes de 1882, o Estado brasileiro
incentivou a introdução e a invenção de “máquinas úteis” no país, visando a
desenvolver atividades econômicas.
Tal política teve início com a isenção de impostos de importação de
máquinas e com a instituição de loterias para financiar “indústrias” locais.
119
Com a independência, esses procedimentos continuaram no Primeiro
Reinado e na Regência, demonstrando que, nos primeiros anos de soberania, o
Estado brasileiro priorizou a atividade criadora, dotando-a de uma legislação
específica, antes que muitos países consolidados o fizessem. Isso vem demonstrar
o grau de interesse do Estado brasileiro em trazer os resultados do progresso
científico-tecnológico que se processava na Europa, tomando sua entrada no país
como fator estratégico.
A lei de 1830 favoreceu o surgimento das invenções “úteis” e, à medida
que se ampliava a lavoura cafeeira para exportação, a atividade criadora foi
beneficiada pelo surgimento de máquinas inventadas ou adaptadas para
beneficiamento, a partir das inovações existentes na Europa.
Além da garantia dos direitos da patente nacional e estrangeira presente
na lei de 1830, o Estado adotou também — através da Sain — uma estratégia de
exibição pública de equipamentos importados, para que fossem copiados e
empregados nas principais atividades produtivas. Isso acontecia num momento
próprio, visto que as construções mecânicas daquele período continham menor
grau de tecnologia “embutida” nos equipamentos, o que possibilitava sua cópia
sempre que os componentes de madeira e metal pudessem ser reproduzidos em
máquinas no Brasil.
Porém, a partir da participação do Brasil nas exposições universais,
quando o café já saltara para o topo da pauta de exportação, ficou demonstrado
que a organização industrial e as construções mecânicas ficavam cada vez mais
complexas. Atenta a esse processo, a Sain clamou por mudança radical na
legislação de patentes, além de reivindicar para si maior participação nos rumos
da política de patenteamento oficial.
A lei de patentes aprovada em 1882 veio atender a essas expectativas,
reiterando o direito de patentes estrangeiras, regulamentando a forma do
processamento das petições e induzindo à fabricação dos inventos.
120
Em relação à legislação anterior, a lei de 1882 agilizou o patenteamento
de invenções e aperfeiçoamentos. Confirmando a atuação da Sain no julgamento
das petições de concessão de patentes, a legislação permitiu a continuidade da
política de produção de máquinas de beneficiamento de café no país. Assim, a
lavoura cafeeira exportadora — em expansão contínua — pode ser acompanhada
de uma oferta de máquinas compatível com o aumento de sua produtividade.
NOTAS
1
Trecho do jongo “Iá-Iá, você vai à Penha?”, música da cultura capixaba, executada pela maioria das bandas de congo
do Espírito Santo.
2
Collecção das Leis do Brazil de 1808. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1891.
3
Collecção das Leis do Brazil de 1809. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1891.
4
Ibid.
5
Ibid., art. VI.
6
Cruz, Hélio N. da e Tavares, Martus A. R. “As patentes brasileiras de 1830 a 1891”. Estudos econômicos. São Paulo,
16 (2): 205-225, mai/ago, 1986, p. 211.
7
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1822. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1887.
8
A Lei de 1830, que tratou da regulamentação das patentes não possui número. É referida apenas pela data em que foi
sancionada: 28 de agosto de 1830. Cf. Collecção das Leis do Império do Brazil de 1830. Rio de Janeiro,
Typographia Nacional, 1876.
9
Cruz, Hélio N. da e Tavares, Martus A. R. Op. cit., p. 211.
10
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1830. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1876.
11
A respeito da utilização industrial da máquina a vapor há extensa bibliografia. Neste trabalho baseei-me,
principalmente, em: Kemp, Tom. A Revolução Industrial na Europa do Século XIX. Lisboa, Edições 70, 1987;
Landes, David S. Op. cit.; Hobsbawn, Eric. A era das revoluções (1789/1848). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977;
Katinsky, J. Op. cit., e Honorato, Cezar T. (Coord.) Clube de Engenharia, Brasil. São Paulo, Clube de
Engenharia/Odebrecht, (no prelo).
12
Fernandes, F. Mudanças... Cap. 1, p. 68.
13
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1830. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1876.
14
Ibid.
15
Arquivo Nacional. Inventário analítico ao acervo de privilégios industriais. Rio de Janeiro, 1993.
121
16
Cf. Le Bot, Marc. Pintura y maquinismo. Madrid, Catedra, 1979, cap. II.
17
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1830. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1876.
18
Ibid.
19
Ibid.
20
Ibid.
21
Ibid.
22
Arquivo Nacional. Fundo Real Junta do Commércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Caixa 386.
23
Ibid.
24
A respeito do tema, consultar: Honorato, C. e Beauclair, G. “Niterói industrial 1834-1860”. In: Martins, Ismênia
Lima. Revisitando a história de Niterói. Niterói, Funiarte/UFF (no prelo).
25
Arquivo Nacional. Fundo Real Junta do Commércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Caixa 385.
26
Ibid.
27
Forbes, R. J. “A energia até 1850”, in: Katinsky, J. Op. cit., p.88-89, afirma que: “Quando expirou a patente de
Watt em 1800, havia 496 máquinas de Watt em serviço na Grã-Bretanha em minas, metalúrgicas, fábricas têxteis e
cervejarias. Destas, 308 eram máquinas rotativas e 164 máquinas bombeadoras, enquanto 24 produziam jato de ar.
Uma ou duas estavam na marca de 40 HP, mas a capacidade média era somente 15 a 16 HP e por isso não
significativamente mais alta do que os moinhos de vento e as rodas d’água. [...] O desenvolvimento real da máquina
a vapor em fonte principal de energia adveio entre 1800 e 1850. Nos primeiros tempos de Watt, a teoria nascente
do calor teve certa influência no desenvolvimento da máquina a vapor, mas ainda não estava pronta para ajudar o
cálculo certo de tais máquinas. [...]”.
28
A respeito dos moinhos de cereais, consultar: stowers, A. “Moinhos de água de 1500 a 1850”. In: Katinsky, J. Op.
cit., pp. 133-154 e Bloch, Marc. “Advento e conquista do moinho d’água”. In: Gama, Ruy. (Org.) História da
técnica e da tecnologia. São Paulo, T. A. Queiróz/Edusp, 1985.
29
Collecção das Leis do Império do Brazil do Anno de 1835. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1864.
30
Cruz, H. N. da e Tavares, Martus A. R. Op. cit., pp. 218-219.
31
Arquivo Nacional.Fundo Real Junta do Commércio, Agricultura, Fábricas e Navegação. Caixa 385. A
documentação manuscrita deixa dúvidas quanto à grafia exata do sobrenome do autor.
32
Collecção das Leis do Império do Brazil do Anno de 1849. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1850.
33
Collecção das Leis do Império do Brazil do Anno de 1850. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1851.
34
BEAUCLAIR, G. Raízes...
35
Cf. Cruz, H. N. da e Tavares, M. A. R. Op. cit., p.212.
36
Lei 3.129, de 14 de outubro de 1882, apud O Auxiliador... 1883. pp. 10-11.
37
Ibid.
38
Ibid., pp. 10-11. Grifo meu.
39
Ibid., pp. 10-11.
40
Decreto 8.820, de 30 de dezembro de 1882, apud O Auxiliador...
41
Lei 3.129, de 14 de outubro de 1882, apud O Auxiliador...
42
Ibid.
43
Ibid.
44
Ibid.
45
Ibid.
122
46
Ibid.
47
Ibid.
48
Ibid.
49
Ibid.
50
Correio Paulistano, 04.07.1904, p. 4.
51
Lei 3.129, de 14 de outubro de 1882, apud O Auxiliador...
52
Decreto 8.820, de 30 de dezembro de 1882, apud O Auxiliador... Grifo meu.
53
Ibid.
54
Ibid.
55
Ibid.
56
A respeito das polêmicas entre os que defendiam políticas mais liberais e os que propunham leis mais protecionistas
na Sain, a partir da década de 1870, ler: Centro industrial do Rio de Janeiro. Apontamentos para a história do
Centro Industrial do Rio de Janeiro [por] Elizabeth von der Weid [e outros]. Rio de Janeiro, 1977. 64p.
57
O Auxiliador... 1979, pp. 3-4.
58
Ibid. Grifo meu.
59
O Auxiliador... ago/78.
60
A respeito das Exposições Universais na Europa e nos Estados Unidos e da participação do Brasil nesses eventos,
consultar: Hardman, Francisco Foot. Trem fantasma. A modernidade na selva. São Paulo, Cia. das Letras,1988;
Pesavento, Sandra J. Acertar o passo com a História: o dilema da modernidade brasileira no século XIX. Artigo
apresentado no III Congresso Latinoamericano de História de la Ciencia y de la Tecnologia, s/l, s/d.
61
CNI: história e concretização do pensamento industrial (catálogo da exposição comemorativa do cinquentenário).
Rio de Janeiro, CNI, 1988. Sobre as exposições nacionais ver também: Freitas Filho, Almir Pitta. “Tecnologia e
escravidão no Brasil: aspectos da modernização agrícola nas Exposições Nacionais de segunda metade do século
XIX (1861-1881)”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Marco Zero, vol. 11, no 22, mar/ago,
1991.
62
O Auxiliador... 1878. pp. 1-3.
63
Ibid.
64
Ibid.
65
Sobre o relacionamento do Estado com associações civis de caráter técnico e político, ler: Honorato, Cézar T. O
polvo e o porto... e Silva, José Luiz Werneck da. Op cit.
66
CNI: história e concretização...
67
Ibid.
68
Ibid.
69
Ibid.
70
Silva, J. L. Werneck da. A Sain...
71
Ibid.
72
Ibid.
73
Baseio-me no conceito de “estado ampliado” proposto por Gramsci, composto pela sociedade política, pela
sociedade civil (associações civis não públicas) e pela infra-estrutura. Cf. Gramsci, Antonio. Os intelectuais e a
organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.
74
Silva, J. L. Werneck da. Op. cit., p. 57.
123
75
CNI: história e concretização..., p.18.
76
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1848. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1849.
77
Collecção das Leis do Império do Brazil de 1849. Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1850.
78
Centro Industrial..., p.12.
79
Ibid.
80
Ibid., pp.15-16.
81
Silva, J. L. W. da. Op. cit., p. 93.
82
Ibid., p. 105.
83
Ibid., p. 94 .
84
Honorato, C. T. O porto..., p. 26.
85
Ibid.
86
Silva, J. L. W. Op. cit., p.102.
87
Ibid.
OK
121
4
BALÕES DE ENSAIO:
AS LEIS DE PATENTES E A
CRIAÇÃO COMO OFÍCIO
[...] ao meio-dia, almoçai tranquilamente com os vossos. Às
duas horas, parti em balão. Dez minutos mais tarde não
sereis mais um cidadão vulgar, sim um explorador, um
aventureiro da ciência.1
A exemplo do ocorrido na aerostação, em que Santos Dumont uniu sua
prática em mecânica ao conhecimento disponível sobre balões esféricos para
desenvolver a dirigibilidade aérea, todo o conhecimento científico acumulado até
o século XIX permitiu ao Ocidente desenvolver um conjunto de invenções que
foram, pouco a pouco, aperfeiçoadas e aplicadas ao processo produtivo.
No transcorrer da segunda metade do século dezenove, a comunidade
científica pôde conhecer os gases componentes do ar, os processos químicos e
muito do que seria a base da física contemporânea. Esse avanço científico tornou
possível desenvolver tecnologias em siderurgia e em refino do petróleo, a
utilização da energia elétrica, etc. O conhecimento também abriu caminho para a
invenção da bicicleta, do motor a combustão interna e — por extensão — do
automóvel, do telefone, e de tantos outros bens que alteraram para sempre o
cotidiano das cidades européias e logo produziriam o mesmo efeito em outros
lugares.2
A exemplo da máquina a vapor — principal invenção da era moderna —,
todo esse incremento tecnológico não ocorreu de forma abrupta. Sua aplicação
comercial deu-se lentamente, à medida que os estudos sobre calor, pressão e
comportamento dos materiais se aprofundavam e eram incorporados aos novos
122
modelos. Em 1850 a energia a vapor já era responsável pelo grosso da produção
industrial inglesa e, nas décadas seguintes, ela teria importante desempenho na
produção industrial de outros países, como Alemanha, França e Estados Unidos
da América.3
No limiar do século passado, as construções mecânicas eram
caracterizadas pela conjunção simples da madeira com mecanismos fundidos em
metal e, geralmente, eram de grande porte. O automatismo desses maquinismos,
fundamental à produção industrial em série, foi sendo aprimorado a partir da nova
geração de energia motriz independente dos fenômenos naturais. A capacidade e a
especialidade das máquinas criadas obedeciam às necessidades específicas da
produção, tendo por isso as invenções dos elementos dessas máquinas —
engrenagens, polias, materias de transmissão das correias, etc. — passado por
grande avanço tecnológico.4
A confiança na ciência orientava os interesses dos governantes e dos
capitalistas, convencendo-os de que a limitação humana diante da natureza estava
em vias de ser diminuída, à medida que, através da realização científica, o homem
“caminhava para o Olimpo”, livrando-se das amarras de Prometeu.5
As comunidades científicas esmeravam-se em divulgar suas experiências
e as que interessavam aos interesses políticos ou econômicos estratégicos eram
logo assimiladas industrialmente.
Na década de 1860, por exemplo, os confederados norte-americanos
construíram o “Hunley”, um submarino de nove metros de comprimento, para
destruir as embarcações da União que bloqueavam os portos do sul do país.
Construído no Alabama, o submarino era tripulado por nove homens, que se
revezavam no acionamento da manivela que o impulsiova a até 7,4 quilômetros
por hora, carregando 90 quilos de pólvora. O submarino — que não dispunha de
periscópio — era iluminado por um lampião e sua forma de ataque consistia em
123
posicionar-se sob as embarcações, explodindo-as, não sem antes deslocar-se para
longe dos alvos.6
Apesar da sua produção industrial menos diversificada, quando
comparada aos países centrais daquele momento, o Brasil tentava acompanhar o
desenvolvimento tecnológico. O país almejava granjear seu ingresso no mundo
civilizado ao lado da Inglaterra, França, Bélgica, Alemanha e da “grande
República”7.
Em 1876, o próprio imperador do Brasil fora convidado a abrir
solenemente a Exposição Universal de Philadelphia, comemorativa dos feitos
tecnológicos da nação norte-americana no centenário de sua independência, ao
lado do presidente Grant, dos Estados Unidos da América.
Internamente, o fim da escravidão, a imigração, a essência do regime
monárquico e a necessidade de um “salto tecnológico” eram discutidos nas
instituições e entidades técnico-científicas que surgiam, dentre elas a Escola
Polytechnica (1874) e o Clube de Engenharia (1880).8 Os intelectuais-engenheiros
brasileiros visitavam as indústrias européias e norte-americanas, exaltando seus
feitos no país e participavam dos círculos políticos, impregnando-os de valores do
mundo tecnológico9.
No interior do país, as famílias ricas percebiam a engenharia como uma
opção, enviando os seus filhos para as academias já existentes no país ou para as
escolas mais afamadas da Europa.
Mais uma vez o exemplo da família Santos Dumont é útil para
demonstrar a importância do convívio com a ciência e com a tecnologia já
naquele momento. Antes de completar 19 anos, Alberto receberia do pai três bens
que orientariam definitivamente sua vida: sua carta de maioridade, sua parte na
herança familiar e o conselho para que seguisse para Paris em busca do “futuro do
mundo”: o domínio do conhecimento da mecânica.10
124
As lembranças do funcionamento das máquinas misturado ao murmúrio
dos homens no trabalho, a idéia minuciosa dos elementos e materias mecânicos e
a certeza da importância da criatividade do homem o Petit Santos já levou consigo
na bagagem. Com a imaginação povoada desde a infância pelas personagens de
Júlio Verne e Phileas Fogg, Dumont preparava-se, a seu modo, para o mundo
tecnológico.
Aos 3 anos de idade,
Enquanto meu pai e meus irmãos montavam a cavalo para
irem mais ou menos distante ver si os cafeeiros eram bem
tratados, si a colheita ia bem ou si as chuvas causavam
prejuízos, eu preferia fugir para a usina, para brincar com as
máquinas de beneficiamento.11
E continuava demonstrando seu aprendizado no ambiente mecânico
vivido no Brasil:
Todas essas máquinas de que acabo de falar, bem como as
que forneciam a força motriz, foram os brinquedos da minha
meninice. O hábito de vê-las funcionar diariamente ensinoume muito depressa, a reparar qualquer das suas peças. 12
O maquinismo com que Dumont brincou na infância era composto por
uma gama de máquinas de diferentes funções e graus de desenvolvimento, cada
uma voltada para uma fase do benefício do café. Além das máquinas a vapor
importadas — as caldeiras podiam ser fabricadas no Brasil —, as demais eram
construídas basicamente em madeira, com partes em metal que, a partir daqueles
anos da década de 1870, sofreriam profundas modificações.
125
Desde quando a lavoura do café passou a fornecer o principal produto
exportável do Império, ficava cada vez mais incompatível o uso das técnicas de
outros tempos com os novos padrões de consumo no que dizia respeito tanto à
qualidade quanto à quantidade de café produzido. Os grandes terreiros de
secagem, os pilões manuais, os monjolos, os ripes e os carretões puxados por bois
ficavam cada vez mais distantes das exigências por um café capaz de disputar no
mercado mundial com o chá, o chocolate, a chicória etc., quando as disputas
comerciais se acirravam.13
Nas fazendas brasileiras, à medida que ocorria uma especialização da
produção para exportação, sentia-se a necessidade de um novo padrão de
beneficiamento, em contrapartida à cultura do café pelo mótodo de insolação e à
exploração do escravo e do imigrante na lavoura.
Entre as décadas de 1860 e 1870 ficava cada vez mais explícito não haver
no Brasil um modo unificado de beneficiar o café. A falta de uma padronização
do benefício aprofundava o desnível de qualidade entre os vários tipos de café
exportado, agravando-se ainda mais com a introdução de outras variedades da
planta como o libéria, bourbon, amarelo, etc. As técnicas e o tipo de machinismo
empregado variavam de região para região, de fazenda para fazenda.
A
derrubada
e
a
queimada
das
florestas
nativas
expunha
diferenciadamente a lavoura às condições específicas de cada clima e cada solo,
exigindo soluções diferenciadas em cada situação, ou seja, o mesmo tipo de café
plantado numa mesma época sob o mesmo método poderia sofrer um variação na
qualidade adquirida, de acordo com a região de cultivo.
O resultado disso eram safras irregulares em qualidade e quantidade, e
uma variedade de cafés dificilmente classificáveis e estandardizáveis. Para tal
problema, as máquinas surgiam como única solução, capazes ainda de amenizar a
carência de braços cativos. Dessa forma, pode-se dizer que a entrada da máquina
126
no processo produtivo do café operou uma transformação na estrutura da fazenda
cafeeira brasileira.
Até aquele momento, as instalações de beneficiamento das fazendas
conjugavam os equipamentos mais rudimentares com a máquina a vapor,
demonstrando uma enorme tendência em aceitar de pronto as inovações
tecnológicas importadas.
O depoimento de Tchudi, privilegiado observador da fazenda cafeeira do
Brasil da década de 1860, é ilustrativo. Visitando uma fazenda de um extraficante de escravos que se tornou cafeicultor, o viajante afirmou:
Antes do almoço mostrou-me o Comendador André seu
estabelecimento, que me surpreendeu, tanto pela extensão,
como pelas instalações e distribuição racional. Uma máquina
a vapor movimentava ali, segundo as necessidades, ora uma
prensa de açúcar, ora um monjolo de café, um moinho de
milho ou uma serra circular.14
Tchudi escreveu ainda que no Brasil era possível o beneficiamento do
café ser feito conjugando métodos antigos com outros mais modernos, ao mostrar
que quando o café chegava na sede da fazenda, suas bagas eram
[...] submetidas a tratamento diverso. O mais simples e
primitivo processo de separar a polpa da semente consiste em
deixar as bagas no terreiro até que sequem. Do terreiro
levam os grãos para o monjolo até onde se procede à
descascagem dos grãos, e daí para a peneira, onde se
completa a limpeza. Quando o tratamento é mais cuidadoso,
as bagas são postas em grandes tinas com água para se
tornarem mais moles, ou são passadas entre dois cilindros
que, esmagando a polpa, a removem quase inteiramente. As
sementes vão para um reservatório d’água para amolecer o
resto da polpa, que é fácilmente removida passadas algumas
horas. Após isto, lavam-se os grãos em água limpa e
127
estendem-nos no terreiro para secar. Uma vez secos, voltam a
passar nuns cilindros mais finos, que removem os últimos
filamentos da polpa, mas não ainda a casca de pergaminho.
Depois de novo processo de secagem, ao sol ou por métodos
artificiais, os grãos voltam ao monjolo, para remover-se a
casca de pergaminho e, finalmente, vão para o moinho
limpador ou peneira, que lhes dá a limpeza final. Entre os
métodos simples ou complicados há ainda muitas variedades,
determinados pelo cuidado que o fazendeiro quer dispensar
ao produto, pela sua inteligência, pelos recursos, etc. O café
limpo é ensacado em sacas de 5 arrobas (de 32 libras), isto é
162 libras e levado ao mercado.15
As anotações de Tchudi são importantes para caracterizar a articulação da
máquina a vapor com antigos processos, como o monjolo. Porém, a importação
das últimas novidades tecnológicas surgidas fora do Brasil induziu, internamente,
a produção de novas máquinas agrícolas e sua adaptação ao potencial da máquina
a vapor.
Não se deve com isso inferir que na década de 1870 o monjolo fosse a
única forma de beneficiamento de café ou que a máquina a vapor fosse o único
“meio” moderno utilizado nas fazendas. Desde a década anterior muitos
machinismos foram surgindo e sendo patenteados, com energia motriz de base
hidráulica.
Depois da roda d’água, a invenção da turbina fundida em metal otimizou
o aproveitamento da energia hidráulica, possibilitando uma geração maior e mais
uniforme de potência. Mesmo nos países industriais essa modalidade de energia
continuava sendo aproveitada nas fábricas e fazendas servidas por cursos
abundantes de água.16
A partir da década de 1870, além da fertilidade das terras relativa à
presença de matas nativas e à idade dos cafezais, os recursos hídricos e as
128
máquinas de beneficiar café eram colocados em primeiro plano na descrição das
fazendas quando se pretendia comprovar o valor das propriedades.
Isso demonstra ter havido uma preocupação crescente dos fazendeiros de
todas as regiões produtoras do Sudeste em aparelhar suas fazendas com os novos
equipamentos que surgiam. Por um anúncio de 1873 observa-se, em relação ao
padrão de beneficiamento descrito por Tchudi, um aprofundamento do
aproveitamento hidráulico, assim como se amplia a incorporação da máquina a
vapor — cujo preço a tornava proibitiva ao pequeno e médio fazendeiro, enquanto
outras máquinas específicas das fases de benefício de café eram introduzidas no
processo de produção:
Vende-se duas fazendas perto de Campo Bello de Rezende a
saber
Uma que tem duzentos alqueires de terras, com mais de cem
de matta-virgem, cafezaes, [...] muito boa água para todas as
obras. Outra com grandes vérzeas, terras muito boas para
canna e mantimentos; tem cafezaes para mais de duas mil
arrobas, tem um excellente engenho de socar café, moinho
para descascar, ventilador, etc. tudo tocado por uma
magnífica agua que dá para se collocar um machinismo de
qualquer ordem ...17
Uma outra fazenda oferecida, dessa vez em Guaratinguetá, São Paulo, era
dotada de “[...] mato virgem, mais de 90.000 pés de café, sendo cerca de 75.000
de seis mezes, casas de vivendas, senzalas, paióes, moinho e engenho de café
movidos por água, abanador e mais benfeitorias...”18
Este outro anúncio é também representativo do que constituía a exigência
de quem pretendesse comprar uma fazenda de café:
129
Fazenda de café: precisa-se comprar uma fazenda nas
seguintes condições: próxima a uma das estações da estrada
de ferro, com lavoura para 4,000 a 5,000 arrobas de café,
com trinta a quarenta escravos, todos os utensílios para o
cultivo da mesma, engenho ou aguada sufficiente para
construcção, terrenos bons, e alguma mata para novas
lavouras, nunca menos de 50 alqueires de matto: quem a tiver
nas condições e a desejar vender dirija-se à rua dos
Beneditinos n. 27.19
À medida que as fazendas se especializavam e eram servidas de máquinas
modernas na preparação do café, a composição da força de trabalho das fazendas
também sofria alguma alteração: apesar de muitos escravos serem especializados
em carpintaria, marcenaria, construção civil, enfermagem, etc.,20 os equipamentos
de benefício exigiam pessoas habituadas à leitura de manuais e desenhos, capazes
ainda de procederem às adaptações técnicas necessárias. Isso favoreceu o
surgimento de machinistas na implantação e funcionamento das novas instalações
mecânicas.21
Surgia um interesse maior nos assuntos tecnológicos tanto da parte dos
machinistas quanto dos fazendeiros. Alguns se transformariam em inventores e
industriais de máquinas. Não são raros os casos em que o machinista ou o
lavrador patenteou invenções e aperfeiçoamentos em máquinas de beneficiar café,
aproveitando-se da demanda das fazendas e usinas e das condições favoráveis
garantidas pela lei de patentes de 1830.
A variedade da qualidade dos cafés produzidos no Brasil, com os
problemas inerentes ao cultivo por insolação, forçava o surgimento de inovações
de âmbito local ou regional, ampliando a gama de aperfeiçoamentos interpostos às
invenções originais.
A demanda por máquinas modernas também atraía o interesse de
fabricantes estrangeiros. A Lidgerwood Manufactoring Company Ltd., por
130
exemplo, tradicional fabricante de máquinas agrícolas fundada nos Estados
Unidos da América em 1800, que também mantinha fábricas na Escócia,
interessou-se pelas possibilidades do promissor mercado brasileiro. Em 1861, esse
fabricante/inventor instalou-se, a princípio, no Rio de Janeiro. Posteriormente
fundou também lojas e depósitos de seus produtos em São Paulo, Campinas e
Taubaté, de onde funcionava como casa importadora e representante exclusivo
das máquinas de costura Singer.22
A montagem de uma estrutura de fabricação, importação e distribuição de
máquinas agrícolas, caldeiras e turbinas para geração de energia motriz e de uma
imensa gama de produtos industriais de utilidade cotidiana no meio rural
transformou a marca Lidgerwood em adjetivo para máquinas modernas, fazendo
com que os fazendeiros procurassem equipar as fazendas de café com suas
máquinas de beneficiar.
As máquinas de Lidgerwood eram montadas junto aos equipamentos
rudimentares e, muitas vezes, eram acionadas pelo trabalhador-escravo,
enriquecendo ainda mais o mosaico de experiências sociais, culturais e
tecnológicas experimentada pela sociedade cafeeira do último quartel do século
XIX.
No início da década de 1880, uma fazenda em local não identificado
estava à venda com “2 rodas, uma de madeira, outra de ferro de 9 metros de
diâmetro, machinismos Lidgerwood para café, despolpador, tanques para lavar
café, terreiro de pedra e cimento... [e] vinte e tantos escravos”23.
Entretanto, a invenção e o aperfeiçoamento de máquinas de beneficiar
café não se restringiram aos inventores há muito estabelecidos. A união de fatores
como a divulgação, pela imprensa especializada, de técnicas e dos equipamentos,
a demanda da economia cafeeira por alternativas que resolvessem o problema da
quantidade e da qualidade do benefíciamento do café, tornando-o independente
131
das condições do clima e economizassem mão-de-obra, e a vigência de uma
legislação favorável ao inventor nacional ou residente, fez surgir um grupo
fabricante dessas máquinas no Brasil.
A partir de uma atuação local, a princípio, as máquinas produzidas foram
sendo incorporadas às fazendas, à medida que suas petições de privilégios eram
aprovados pela Secção de Machinas e Apparelhos da Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional — Sain — e divulgados em folhetins de circulação nacional.24
Não por acaso, isso se iniciou à medida que os próprios inventores de
máquinas de beneficiar café, muitos dos quais engenheiros, fazendeiros ou
machinistas, participavam da composição daquela seção da Sain.
Por exemplo, na gestão de 1870-1871 da Sain, cuja presidência foi
exercida pelo conselheiro de estado e senador José Maria da Silva Paranhos, o
Visconde do Rio Branco, a Secção de Machinas e Apparelhos tinha como
membro o inventor e presidente da Lidgerwood Manufactoring Co. Ltd.,
Guilherme Van Vleck Lidgerwood, ao lado dos engenheiros André Pinto
Rebouças e Antonio de Paula Freitas.25
Em gestões sucessivas a partir de 1874 até 1881 foi a vez de outro
inventor e industrial de máquinas de café, Henrique Eduardo Hargreaves,
participar da mesma seção da Sain, alternando-se ora como secretário ora como
membro.26 No biênio 1882-1883, sua vaga foi ocupada por outro engenheiroinventor da maior importância no desenvolvimento de maquinário para café, Luiz
Goffredo de Escragnolle Taunay.27
Presidindo essa mesma Secção da Sain entre 1870 e 1889, André Pinto
Rebouças era o responsável pelos pareceres encaminhados ao governo imperial a
respeito dos inventos, desempenhando um papel fundamental na concretização
dos projetos das máquinas.
132
Intelectual influente em seu tempo, conhecedor das economias européias
e norte-americana, Rebouças procurava incentivar o desenvolvimento de
tecnologias de beneficiamento de café visando a uma racionalização da produção
agrícola brasileira em torno de um projeto modernizador que passaria pela
especialização das regiões e das fazendas em unidades produtoras —
encarregadas da produção agrícola — e unidades beneficiadoras — as fazendas
que sediariam os engenhos centrais, a partir da pequena propriedade e da mão-deobra nacional livre, pressupondo a extinção radical da escravidão.28
Em seus pareceres Rebouças tentava permitir aos inventores a proteção
necessária para que suas oficinas se desenvolvessem, atrelando seu sucesso ao que
supunha ser o interesse do país. Não surpreende, portanto, João Frederico
Richsen, um dos precursores dos inventores brasileiros de máquinas de beneficiar
café, estabelecer-se. Em 1857, Richsen conseguiu do governo imperial privilégio
exclusivo de 10 anos para “construir e vender” ventiladores de café de sua
invenção,29 tendo sido bem sucedido com os aparelhos que exibiu nas Exposições
Nacionais de 1861 e 1866, e na Exposição Universal de Paris.
Em 1869, Richsen requereu um novo privilégio por 10 anos para os
melhoramentos feitos na invenção original. No despacho desse requerimento, a
Secção de Machinas e Apparelhos afirmou que
[...] O privilegiado estabeleceu à ladeira do Barroso n. 5 e
5A uma fábrica de ventiladores de café e (cousa rara entre
nós) utilisou-se vantajosamente para si e para o paíz, da
patente que lhe foi concedida. [...]
A Secção de Machinas e Apparelhos ... deverá conceder a
requerida renovação do privilégio por mais dez anos não só
como premio aos esforços feitos, e aos resultados obtidos
pelo inventor, mas também como um efficaz incentivo a novos
e mais importantes commettimentos.30
133
Da mesma forma, em relação à petição de Américo Salvatori para, por
vinte anos, “fabricar e vender a machina de descascar e brunir o café da qual se
allegga inventor”, a Secção apreciou a invenção criticando o fato de que nela
Surgem [...] os mesmos inconvenientes, que tem sido notados
em todas em que se empregão dentes de ferro; taes como o de
quebrar ou arranhar o café; o de quebrarem-se os dentes,
estorvando ou impedindo o serviço e finalmente o de exigir
uma graduação prévia do apparelho, de sorte a deixar passar
café miúdo, médio, ou graudo por cada vez.
É portanto inferior a algumas outras machinas já conhecidas.
Entretanto, como convem animar a industria que se refere à
preparação do café, por ser este genero a principal fonte da
riqueza nacional, e como possa a pratica e o estudo apurado
desta machina dar lugar a novos melhoramentos [...] conceda
ao requerente um privilegio de dez annos.31
A atitute flexível da Secção de Machinas e Apparelhos da Sain fazia com
que mais inventores se lançassem ao ofício criador, atraindo também a atenção de
alguns grandes fazendeiros, que desenvolviam por si soluções para os problemas
vividos em seus negócios.
Em 1873, a J. L. de Souza Breves & Cia. requereu o privilégio “para um
machinismo destinado à conservação do café nos armazens de depósito”.32 A
empresa autora não apresentou desenho, mas apenas uma descrição, e isso foi
suficiente para que a Secção de Machinas e Apparelhos (SMA) julgasse o invento
“um systema simples e racional de conservar o café ao abrigo das intempéries.
[...]
As
disposições
esclarecimento”.33
são
tão
elementares
que
dispensão
mais
este
134
Em São Paulo, à medida que a fronteira cafeeira se deslocava para o
interior, alguns fazendeiros enobrecidos também se lançaram à criação de
máquinas e a introduzi-las em suas fazendas. O desenvolvimento de máquinas de
beneficiamento promovido pelos membros da família do Conde do Pinhal,
Antonio Carlos de Arruda Botelho, pioneiro de São Carlos do Pinhal (atual São
Carlos) não deixa dúvidas sobre a importância e o significado das alterações
tecnológicas ocorridas nesse campo. Entre 1889 e 1904, seus membros
patentearam um total de vinte inventos e aperfeiçoamentos, todos relacionados ao
benefício do café.34
Da mesma forma, também o Barão de Serra Negra, Francisco José da
Conceição, fazendeiro em Piracicaba (SP), foi o primeiro a utilizar “apparelhos
aperfeiçoados para beneficiar café” no município.35
Quanto aos primeiros inventos beneficiados pela política adotada pela
Secção de Machinas e Apparelhos da Sain com base na lei de patentes de 1830, os
resultados práticos não tardaram a surgir, justificando o privilégio recebido, ao
menos para o caso das máquinas em questão neste estudo.
No caso de João Frederico Richsen, sua indústria promovia ainda pelo
menos o ramo “arameiro”, que fornecia as malhas das peneiras de seus
ventiladores. Nas oficinas — como a de J.F. Tinnuermann, na rua da Ajuda, 15,
Rio de Janeiro —, as peneiras eram produzidas, ao mesmo tempo que “trançado
para clarabóias e gaiolas [...], ratoeiras de molas infalíveis, [...] viveiros com
ninhos, [...] grelhas para torrar pão, etc.” 36
Em julho de 1875, José Ribeiro da Silva e João Antonio da Silva Peres
Júnior, de Cantagalo (RJ), requereram privilégio por dez anos “para usar, fabricar
e vender neste Império um apparelho apropriado para descascar e preparar café”,
chamado Descascador Ribeiro ou Concassor Ribeiro.37
135
Em sua petição, os autores demonstraram estar a par das últimas
máquinas criadas para operações similares às de sua invenção, afirmando ser sua
máquina superior até mesmo ao Descascador Lidgerwood, uma das máquinas
mais conceituadas no Brasil. Por conta disso, a Secção de Machinas e Apparelhos
receou posicionar-se definitivamente, preferindo despachar que
a Secção não póde dar opinião em tão grave assumpto à vista
só do desenho do novo descascador; teria muita satisfação
em assistir a experiências comparativas.
No entanto, [...] receia que não seja bem sucedida a
supressão completa de elementos elásticos no seu
descascador.38
Embora não esteja clara a maneira exata como essa tão importante
máquina inovava em relação às suas predecessoras, pode-se dizer que ela abriu
caminho para inúmeras outras invenções, na medida em que o Descascador
Ribeiro tinha “um elemento mecânico realmente novo e engenhoso...”39
No ano seguinte (1876), o Concassor Ribeiro era instalado em Mendes,
na fazenda do comendador Felizardo José Tavares, para ser apresentado em
funcionamento aos fazendeiros da região, após ter sido premiado com o diploma
de honra na Exposição Nacional de 1875. Pela imprensa, o machinista e
representante do inventor convidava os fazendeiros da região para
verem praticamente o trabalho admirável de um apparelho
tão simples quanto comodo e relativamente barato, e que ,
sem duvida alguma, vem substituir literalmente quantos
engenhos e machinismos se tem empregado até hoje no
preparo do café.40
136
Em 1878, José Ribeiro da Silva requereu novo privilégio ao governo
imperial, dessa vez para os melhoramentos feitos no concassor, que chamou de
“concassor aperfeiçoado” e ainda “aparelho de descascar café”. 41
No mesmo ano, José Ribeiro da Silva voltou ao governo para patentear
uma outra máquina, o Descascador Congresso. Esse aparelho significava um
avanço considerável na adaptação das máquinas agrícolas em geral à indústria
cafeeira, pois situava-se entre os moinhos de pedra, de uso secular, e os
descascadores por superfícies reguladas, principalmente o Descascador Assis.42
Enquanto esse descascador substituiu os discos de pedra — que tinham o
inconveniente do desgaste muito rápido de seus elementos e pouca flexibilidade
— por dois discos de ferro canelado, a invenção de Ribeiro aperfeiçoava ambos,
na medida em que “a pedra é substituída por um disco de ferro unido a outro de
madeira e descasca comprimindo o café de encontro a uma borracha amarella”.43
Dessa forma, o inventor fluminense introduzia a borracha nas máquinas de
beneficiamento de café, inovação seguida por diversos outros autores. Pelo
sistema de superfícies reguladas funcionavam também as chamadas mós
centrífugas: o Descascador Progresso Mineiro, as Máquinas Albion Coffee
Huller, o Descascador de Lidgerwood, os moinhos excêntricos americanos, a
Máquina Brazileira, a Turbina Tange-teclas, os cilindros horizontais de capa
concêntrica e os descascadores verticais usados principalmente em Santa Maria
Madalena, Cantagalo, São Fidélis, Valença e Vassouras.44
Nas inovações anteriores feitas pela indústria inglesa de máquinas, os
discos de pedra haviam sido mantidos. Foi dado, entretanto, movimento ao disco
inferior contrário ao superior.
Essa inovação, produzida com o intuito de pulverizar grãos como o trigo
e o arroz, não se adequava ao descascamento do café, quebrando o grão ou não
descascando os de tamanho irregular, além de os discos se desgastarem e
137
empastarem com as cascas melosas do café. Os discos de ferro do Descascador
Assis resolveram esse último problema, mas continuaram quebrando os grãos
maiores que entravam no espaço interno, ou não descascavam os menores — os
grãos não descascados eram chamados marinheiros. Conforme esclareceu
Ribeiro:
Em vista da pequena revista que viemos a fazer, não parece
razoável que ao Descascador Assis se aplicasse a borracha?
Foi o que realizamos na nossa machina Congresso.
Procuramos melhorar a construcção do Descascador Assis e
fizemos uma machina pronta para funccionar, simplificandoa o mais que pudemos, afim de seu custo estar ao alcance de
todas as fortunas.
Entre as modificações que fizemos, há uma que garante maior
duração da borracha, e vem a ser a entrada do café pelo
centro da mó fixa, que é de borracha. [...]. Essa machina,
conquanto descasque o café de uma maneira completa e sem
quebrar, tem ainda defeitos sensíveis, mas, remediáveis. O
café, no seu estado mais natural, ou em côco, tem a sua casca
exterior de natureza quebradiça em uns, macio e melosa em
outros, mas sempre rija e dificil de destacar-se. É esta casca
que estraga as machinas, e uma borracha do Congresso não
prepara mais de quatro mil arrobas de café. No entanto, a
borracha, pela sua natureza, é mais própria para terminar o
descascamento do que para começá-lo, e, neste caso, sua
duração seria muitíssimo maior.45
Dessa forma, o próprio autor alterava a disposição de alguns elementos
nas máquinas existentes, enquanto reconhecia as deficiências de seu aparelho. A
consequência mais direta disso foi a necessidade de suprir o mercado com peças
de reposição de borracha, o que não foi um problema maior.
138
Em 1884, o mercado do Rio de Janeiro era suprido tanto das borrachas
como das demais peças de reposição do Concassor Ribeiro “a preços razoáveis”,
através da loja dos constructores machinistas Sérgio da Cunha & Baltar.46
A despeito das deficiências que reconhecia existir em seu invento,
Ribeiro preparava-se para aperfeicoá-lo:
Lembramos de construir machinas com descascador mixto de
ferro e borracha, cabendo a esta o terminar a operação. Para
este fim há dois meios entre outros que nos parecem
proficuos: construir uma mó de ferro canelado com um raio
ou menos de metade do tamanho total; uma arruela de
borracha completará a mó; em frente uma outra mó toda de
ferro canelado descascará o café, que entra pelo centro, e
terminará o descascamento pela borracha que atinge a
periferia.
A outra modificação, conquanto mais complicada, tem a
vantagem de se poder regular separadamente os dois
operadores; um cylindro com o diâmetro de 20 ou 30
centimetros e coberto de placas descascadoras, pelo systema
de Lidgerwood, contem em uma extremidade um disco de
ferro canelado e pelo systema do Descascador Assis. O
cylindro e o disco são presos a um eixo horizontal, que os
anima com um movimento de 300 rotações. Sobre o cylindro
há uma capa concêntrica de crivo de arame, por onde o pó
tem saída, e em frente ao disco de ferro uma arruela de
borracha completa o apparelho.
O café entra pela extremidade do cylindro, percorre-o,
soffrendo o descascamento, e entra nas mós que o completa
de encontro à borracha.
Esta disposição tem mais a vantagem de eliminar a poeira do
café antes de entrar na borracha.
Vamos experimentar estas modificações e em breve daremos
conta de seu resultado.47
139
Não há indicações de que José Ribeiro da Silva tenha voltado a patentear
aparelhos para café, embora outros tenham prosseguido com suas experiências.
Porém, seu companheiro na invenção original, João Antonio da Silva Peres
Júnior, continuou trabalhando individualmente com experiências como a secagem
mecânica do café.
Devido à irregularidade da produção da lavoura cafeeira, o processo de
secagem representava grande entrave na qualidade do produto. Expostos ao sol
em demasia, os cafeeiros produziam frutos com maturação desigual, existindo na
mesma planta frutos maduros (cereja), frutos já secos antes de colhidos (coco) e
também frutos verdes. Aliado a isso, o café era colhido num movimento de mão
chamado derriça, que consistia em envolver a base do galho com os dedos e
percorrê-lo até a ponta, arrancando assim frutos, cascas, folhas, etc.
Apesar de esse método apresentar maior produtividade por trabalhador,
provocava um problema técnico a superar na separação dos grãos diferentes em
tamanho e maturação, e destes com outros corpos estranhos — além de folhas e
cascas, havia ainda pedras, paus, etc.
O resultado desse método agrícola era sentido na qualidade do café
exportado e na fama de inferior nos mercados externos. Por isso os fazendeiros
interessavam-se por máquinas que igualassem os grãos durante a secagem e os
separassem conforme suas propriedades físicas.
A secagem mais comum do café era a de terreiro. As partidas vindas da
lavoura eram despejadas em terreiros cercados e calçados com pedra e cal nas
fazendas mais equipadas. Muitos fazendeiros orgulhavam-se dos terreiros que
possuíam e destacavam-nos nos anúncios de venda das propriedades. Nesses
terreiros, escravos e colonos eram encarregados de revolver com rodos de madeira
grandes quantidades de café várias vezes por dia, durante um período que variava
de acordo com as condições climáticas e pluviométricas na região da fazenda.
140
Dessa forma, a secagem, fase inicial do benefício do café, fugia ao controle do
fazendeiro.
Analisando as dificuldades técnicas e o alto custo da secagem para o
fazendeiro, Louis Couty assim se expressou:
Em uma fazenda de 30.000 arrobas, a operação do secamento
dura de cinco a seis meses, e, por todo esse tempo, dez
pessoas pelo menos, ocupam-se, da manhã à noite, em riscar
- revolver com rodo - o café no terreiro. Além disto, é ele
espalhado, ao esquentar o sol, pela gente disponível nas
proximidades do terreiro, e à noitinha os escravos, ao
voltarem da roça, vem reuní-lo em montes. Não consideremos
o gasto de mão-de-obra com a primeira operação, e só
atendamos à segunda. Calculando a sua duração em uma
hora - de ordinário e de mais - e sendo de 150 o número de
trabalhadores (o que dá para uma produção de 30.000
arrobas, 200 arrobas por escravo, resultado só obtido com
gente muito boa), aí estão 150 horas gastas ou o serviço de
15 pessoas. Assim o terreiro absorve diariamente o trabalho
de 25 pessoas.48
Continuando:
[...]
Sobrevem uma trovoada durante o dia, imediatamente todos
os braços, até pedreiros, carpinteiros, pagens, mucamas, etc.,
abandonam as ocupações, e, a trote largo, como dizem,
tratam de recolher o café às tulhas. Quando o aguaceiro cai
ou ameaça cair alta noite, as coisas são ainda piores. Tange
o sino de alarma, e os míseros escravos, arrancados
violentamente ao sono, vêm, quentes da cama e sem
precaução alguma, expor-se a todas as intempéries e esvaziar
o terreiro, para talvez tornar a enchê-lo no dia seguinte,
passada a tormenta. Quantas moléstias não são devidas a
isto?49
141
E completa: “Sabem os fazendeiros que muitos escravos são vítimas de
pneumonias e outras afecções apanhadas nessas ocasiões, daí provindo perda
considerável e definitiva de mão-de-obra”.50
As experiências com secagem mecânica do café eram feitas por toda
parte. As primeiras foram aquelas em que as estufas se assemelhavam a grandes
fornalhas aquecidas por queima de lenha ou outro material orgânico. Depois
surgiram experiências mais complexas, que introduziam o ar aquecido sob pressão
nas câmaras de secagem, e outras que introduziam o vapor sob pressão,
aquecendo o secador, enquanto a umidade era retirada por outro lado sob a ação
de bombas pneumáticas.
Portanto, não se pode estranhar que boa parte das patentes requeridas
referiam-se a secadores de café, em máquinas associadas ou não com outras
operações. Por isso, o ex-parceiro de José Ribeiro da Silva, João Antonio da Silva
Peres Júnior, também de Cantagalo (RJ), desenvolveu a Estufa Automática para
Seccar Café — A Cantagallense, que patenteou em 1879.51 Segundo ele, tratavase de uma máquina que secava o café
por meio da acção direta de ondas caloríficas irradiadas
dentro de um forno, auxiliado pelo ar, altamente aquecido e
confinado no mesmo, onde o café demora-se por tempo
determinado em um cylindro ôco animado de um movimento
de rotação lenta, e d’onde os vapores aquozos são
extrahidos...52
Dentre as muitas experiências feitas com secadores estão as realizadas por
Daniel Pedro Ferro Cardoso e John Sherrington, do Rio de Janeiro que resultaram
no Seccador Pneumático, patenteado em 1877.53 Segundo os inventores, sua
máquina apoiava-se no princípio da utilização do ar quente e do vácuo já tentado
142
anteriormente, inovando na medida em que o ar não entrava em contato com o
café posto para secar: “[...] nós procuramos retirar o mais completamente que
possível o contacto desse ar com o objecto a seccar assim como evaporar por
meio do vacuo e do calor todo o liquido contido no paranchima do mesocarpo ou
involucro d’elle”.54
O Seccador Pneumático tinha um compartimento hermeticamente
fechado onde ficava o café, um sistema de tubos ligados à caldeira para manter a
temperatura interna, uma bomba pneumática para a produção do vácuo no
compartimento de café e ainda um manômetro e um termômetro para o controle
das pressões e temperaturas internas.
No mesmo ano, Ferro Cardoso voltou a patentear. Dessa vez, o privilégio
foi requerido para uma inovação ao invento anterior: “ [...] lembrei-me de applicar
ao seccador acima mencionado um condensador...”. A nova máquina foi batizada
como Seccador Pneumático a Condensação.55
Porém, em seu requerimento, o autor faz questão de registrar para si a
autoria exclusiva da inovação, apontando para uma disputa que comumente
acontecia entre inventores e patenteadores de máquina: “Deposito esta descripção
no Archivo Público sob minha unica responsabilidade scientifica para me servir
de prova contra os desleaes e prevaricadores ou falsarios”.56
Ferro Cardoso fará patentear, em 1879, outro melhoramento à sua
invenção original, cujo nome passa a ser Machina Daniel para Seccar Café. Na
nova máquina, o autor, atento para a baixa produtividade do aparelho, adaptou-lhe
um sistema de tubos para aquecer mais rapidamente o ar, e gavetas com fundo de
telas de arame onde o café era posto para secar.57
Demonstrando enorme capacidade para adaptar os recursos tecnológicos
disponíveis em outras atividades às máquinas de beneficiar café, Ferro Cardoso
patenteou no mesmo ano de 1879 um aperfeiçoamento à primeira inovação que
143
fizera no seu secador original, quando introduziu um condensador no
processamento.
Nessa nova máquina, em que o “architecto” rebatizou o Secador
Pneumático a Condensação com o nome de Seccador Ferro Cardoso,58 a
inovação consistia na adaptação de uma máquina já existente. Nela, Cardoso
aplicou um
condensador idêntico ao que se emprega nas caldeiras de
vácuo para a cristalização do assucar; isto é condensação
que é feita por meio da introducção d’água fria que vae
condensar os vapores formados no recinto hermeticamente
fechado onde se acha depositado o café.59
Pelos registros posteriores, o inventor não conseguiu reduzir tanto o
tempo de operação do secador. Seu invento continuou a ser vendido para secar em
oito horas o café colhido no mesmo dia e em seis horas o café colhido com
antecedência de três dias. Entretanto, as máquinas cujos preços variavam entre
4:000$000 (quatro contos de réis) — para secar 50 alqueires em seis horas — e
6:000$000 (seis contos de réis) — para secar 100 alqueires em seis horas —
ofereciam uma vantagem adicional que justificava seu custo elevado: quando o
café era cereja, ela o despolpava (ou seja, extraía a espessa polpa vermelha que
envolve o grão), depois, o descascava em parte, ou seja, extraía a membrana que
envolve o grão. Quando o café já entrava despolpado, a máquina o devolvia
completamente seco em cinco horas.60
Ainda na década de 1870, sob a primeira lei brasileira de patentes, outros
inventores se destacaram na produção de máquinas de beneficiar o café. Na linha
de descascadores, um dos mais destacados foi Bernardino Corrêa de Mattos. Em
março de 1876 esse autor patenteou a Machina Brasileira para descascar café.61
144
Ao analisar a petição de Bernardino Mattos, a Secção de Machinas e
Apparelhos da Sain deliberou favoravelmente ao privilégio, ressalvando não
poder assegurar se sua máquina quebraria os maiores grãos e se deixaria de
descascar os menores, porque não fizera experiências práticas com a ela.
No caso, o aparelho continha princípios que o aproximavam do
Concassor Ribeiro. Entretanto, a Secção de Machinas e Apparelhos recomendou a
concessão do privilégio por dez anos por entender que a nova máquina
diferenciava-se do Concassor Ribeiro
1º Nas disposições dos cones descascadores, que em uma é
inversa da outra.2º Em ser acompanhado o descascador de
todos os accessorios necessarios para dar o café logo
prompto para ser ensacado.62
63
145
64
De fato, a Machina Brazileira para descascar fora projetada com cilindros
de chapas de aço temperado, para ter vida útil de 225 a 300 toneladas (20.000
arrobas) processadas. Os três modelos, com capacidade para descascar 750
kg/hora, 450 kg/hora e 225 kg/hora (respectivamente 50, 30 e 15 arrobas, na
linguagem da época) expostos aos fazendeiros na Estação do Commércio da
Estrada de Ferro Pedro II, em maio de 1876, recebiam o café seco de terreiro —
ou coco — em sua moega e, em 15 minutos, podiam “lançá-lo no sacco, já
brunido e prompto para ser exportado”.
Na opinião dos vinte fazendeiros que utilizaram a máquina, suas
vantagens adicionais eram poder funcionar com motor a água, de potência de 3 a
7 cavalos, de acordo com o modelo, ocupar apenas “25 palmos quadrados” para
sua instalação, ser movida por apenas “1 escravo ou empregado” e, finalmente,
146
apresentar índice de quebra de apenas 1/4 de arroba (cerca de quatro quilos) em
cada 100 arrobas (cerca de 1.500 quilos) de café descascadas.65
Em 1879, a empresa de Bernardino Corrêa de Mattos, a Corrêa, Mattos &
Cia., mantinha um representante na Rua da Saúde no 14, na Corte, que distribuía
os catálogos de suas máquinas já difundidas, que funcionavam principalmente nos
municípios cafeeiros de Valença, Vassouras e Parayba do Sul, na província do
Rio, e em Leopoldina, província de Minas Gerais. Além do descascador, o
inventor oferecia aos fazendeiros também máquinas distintas para ventilar e para
brunir o café.66
Entre outras invenções desenvolvidas em descascadores, obteve
repercussão a Máquina Mineira, patenteada em 1879 por José Jacinto Melo, de
Mar de Espanha, Minas Gerais, destinada a “descascar e ventilar o café”.67 Apesar
de seu patenteamento só ter sido requerido naquele ano, já em 1878 essa máquina
era experimentada por 34 fazendeiros na fazenda São Lourenço, que
manifestaram publicamente sua aprovação:
Nós abaixo assinado, fazendeiros residentes neste município,
tendo assistido ao primeiro ensaio da machina de soccar,
descascar e ventilar café, da invenção do artista mechanico
José Jacintho de Mello, e, sendo sem duvida alguma de
maxima vantagem para o fim que é destinado, porque vimos
em um minuto preparar uma arroba de café; que no correr de
doze horas que tem o dia, pode apromptar 120 arrobas,
viemos por este meio dar-lhe uma prova de consideração e
apreço por este importante melhoramento agrícola, devido
por certo a seus acurados esforços e superior intelligência.68
Outra máquina de descascar de relativa importância foi a Turbina Tangeteclas, desenvolvida em Campos (RJ) por Miguel Alamir Baglioni, e patenteada
147
no início de 1880. Segundo seu autor, tratava-se de uma “machina de preparar e
picar o café”.69
Tratando-se de aparelho idealizado para “descascamento por superfícies
reguladas”, seu funcionamento baseava-se no atrito provocado por duas
superfícies “rugosas e animadas por movimentos contrários”, sendo a distância
entre elas alterada de acordo com o tamanho do grão.70
No mesmo período, enquanto muitos descascadores eram desenvolvidos,
crescia também o interesse dos inventores por patentear ventiladores
independentes ou acoplados aos descascadores, para separar os objetos estranhos
e as cascas retiradas dos grãos no processo de descascamento.
Em muitos casos, essas cascas eram utilizadas como combustível nas
fornalhas das caldeiras ou mesmo na adubação dos terrenos, como era
recomendado na época pelos homens preocupados com a preservação da
qualidade das terras brasileiras e com a “economia rural”, como André Rebouças
e Nicolau Moreira.71
Um aparelho com esse fim foi desenvolvido por Henrique Delfim Duprat,
de Cantagalo (RJ), que o patenteou em 1880 sob o nome de “Ventilador a Prumo
[...] destinado à separação da casca e diversas qualidades de café depois de
descascado”.72 Esse equipamento depois se popularizou como Ventilador Duprat.
Nele o inventor requereu para si o privilégio por ter introduzido nos
ventiladores até então conhecidos a novidade da “pozição vertical do tubo de
propulsão do ar e onde opera a ventilação”, afirmando ser essa concepção
mecânica “toda nova e de invenção particular”.73
Em agosto de 1881, o mesmo autor requereu um privilégio industrial para
o aperfeiçoamento que realizara naquele ventilador. No aperfeiçoamento, Duprat
buscou simplificar o processo de ventilação, abreviando-o. Enquanto
148
no ventilador privilegiado o café [...] tinha de ser submettido
a dois processos de ventilação, [...] com o melhoramento
feito, póde conseguir-se o mesmo resultado com uma só
operação e ainda com a vantagem de separar todo o café
preto [...] 74
Tudo leva a crer que as máquinas produzidas por Duprat foram um
sucesso. Isso porqu,e no começo do século XX, elas eram ainda oferecidas ao
público pelo comércio especializado em equipamentos mecânicos do Rio de
Janeiro, juntamente com outros equipamentos congêneres de invenção nacional
ou estrangeira. Em 1902, por exemplo, a Casa de Hampshire & C., da Rua
Visconde de Inhaúma, 40, anunciava ter em estoque “machinas de beneficiar café
- Ventiladores Duprat, [e] Brunidores Bierrembach...”75
O primeiro registro de invenção de João Miguel Bierrembach, de
Campinas (SP), data de 1878. Esse patenteamento foi requerido para o Brunidor
Paulista, uma máquina capaz de brunir (o brunimento é a última operação,
quando o grão do café, livre da película que o envolve, recebe um polimento para
melhorar sua aparência e torná-lo mais impermeável à umidade) e separar os
diferentes tamanhos dos grãos de café através do peso. Segundo anunciava, sua
inovação funcionava nas fazendas dos barões de Aparecida, do Rio Bonito, e de
Sapucaia (RJ), e nas fazendas do Dr. Antonio José Vieira Machado, Francisco
Machado Marcondes, Dr. Luiz Augusto Correa de Azevedo, em duas fazendas do
comendador Vergueiro, em Ibicaba (SP), e na fazenda do marquês do Paraná.76
Face ao volume do café produzido em uma fazenda, o brunimento, por
suas características, era uma operação impossível de ser realizada manualmente.
Seu efeito, porém, representava uma cotação melhor para o produto, gerando
maiores lucros para o fazendeiro. Para melhor adaptar-se ao porte das fazendas, o
149
Brunidor Paulista era produzido em duas versões: o Brunidor 1, de capacidade
para 300 arrobas/dia, custando 700$000 (setecentos mil-réis); o Brunidor 2, para
150 arrobas/dia, ao preço de 550$000 (quinhentos mil-réis). Ambos eram
montadas pelo fabricante na fazenda ao custo adicional de 100$000 (cem milréis).77
No mesmo ano 1878, João Miguel Bierrembach requereu e obteve patente
de privilégio também para o Cecador Paulista78, um sistema de superfícies planas
móveis dentro de uma câmara de aquecimento em forma de casario de alvenaria,
encarregadas de receber os grãos de café e repassá-los à superfície plana seguinte
durante o processo de secagem, substituindo o terreiro de secagem natural.
No ano seguinte, Bierrembach patenteou um melhoramento do secador
original, dispondo os terreiros em série, de forma que “esses terreiros percorrem o
seo movimento sem fim”, melhorando a distribuição do café no secador através
do aperfeiçoamento do sistema de rotação dos terreiros.79
Em 1881, o referido inventor voltou a aperfeiçoar seu secador de café,
desta vez ampliando sua aplicação também para o descascamento do café já
despolpado, “prestando-se também para beneficiar cereais”.80
Apesar de apresentar um relatório complexo, cheio de referências ao
desenho técnico e às invenções e melhoramentos anteriores, o autor assim
enumerou as vantagens de sua nova máquina:
1º Facilitar o lavrador a beneficiar o café em 2 ou 3 dias
depois de colher.
2º Não ter mais café preto ou de qualidade inferior,
consequencia da fermentação havida nos terreiros.
3º Melhorar a qualidade do café que offerece ao mercado.
150
4º Dispensar os terreiros de seccar tão dispendiosos.
5º Desaparecer o contínuo e fastidioso trabalho de mecher e
recolher-se o café diariamente pelo espaço de 30 dias como
até aqui se tem feito.81
As máquinas produzidas pelo “inventor e fabricante” de Campinas
atingiram logo boa reputação no circuito de produção do café, inclusive porque o
fabricante também mantinha um representante exclusivo na Corte, a firma
Monteiro, Hime & Co.82 Além disso, ele próprio enviava aos jornais amostras dos
cafés beneficiados por suas máquinas, tentando aumentar a confiança pública em
seus produtos.
O Correio Paulistano a ele se referiu como o “acreditado industrial da
cidade de Campinas”,83 divulgando as vantagens de sua nova máquina de secar
café em dez horas e destacando a experiência realizada na fazenda Monjolinhos,
do comendador Souza Barros, quando o secador produziu uma secagem perfeita
de um café de qualidade superior, “conservando a côr natural”.84
Mesmo sem conhecer a máquina ou ter enviado repórteres à experiência,
o Correio recebia o novo secador com entusiasmo, condicionando sua
receptividade à capacidade que tivesse de superar os problemas representados
pelo terreiro de secagem natural:
Não temos conhecimento circunstancial da machina
inventada pelo Sr. Bierrembach, mas se puder ella seccar
quantidade de café correspondente à colheita ordinária de
nossas fazendas, o seu emprego será de grande utilidade à
lavoura do café, acabando ou diminuindo a necessidade do
serviço de terreiro, que exige grande número de braços e que
occasiona, às vezes grandes prejuizos, pela demanda do
seccamento.
151
Em todo o caso o Sr. Bierrembach merece elogios pelos
esforços que está empregando no sentido de facilitar o
processo de beneficiamento do café, uma das maiores
difficuldades com que luta a nossa lavoura.85
Ainda sob a vigência da lei de patentes de 1830, João Miguel
Bierrembach desenvolveu outro aperfeiçoamento do secador original, desta vez
no sistema de secagem. Para o inventor esse sistema, funcionando através da
passagem de ar quente exaustado por um ventilador, oferecia dificuldades na
montagem e alto custo de operação. Por isso, o secador patenteado em fevereiro
de 1882 caracterizava-se por ser uma máquina que
Concentra em si todos os predicados das outras nossas
machinas [...] somente tornou-se mais resumido, dispensando
casa própria, exigindo muito pouco combustível [...], em
condicções de ser fabricado na officina todo completo, visto
que é construído todo de ferro, dispensando portanto o
trabalho de carpinteiros, pedreiros etc. nas fazendas e por
esta razão ao alcance da pequena lavoura.86
Um outro secador obteve grande repercussão no circuito do benefício do
café. Trata-se da Machina de Seccar Café Taunay-Telles, desenvolvida e
patenteada em maio de 1880 pelos engenheiros e membros do Instituto
Polytechnico Brasileiro, Luiz Goffredo de Escragnolle Taunay e Augusto Carlos
da Silva Telles.87
Essa máquina, ao que parece, tinha como mérito maior um sistema
composto por duas câmaras cilíndricas de eixo comum, sendo uma interna à outra:
O cylindro exterior é fixo, preso a uma [...] dupla folha [...];
no espaço existente entre ella e a parede do cylindro exterior
152
fes-se circular o vapor de agua ou o ar aquecido. O cylindro
interno [...] apresenta na superfície interna espécies de
alcatruzes — dispostas longitudinalmente...88
No relatório autoral que acompanhou a petição do privilégio, os autores já
demonstravam a intenção futura de estudar uma variante que substituísse os
alcatruzes da máquina por um terceiro cilindro de raio menor, no mesmo eixo: “A
superfície d’este terceiro cylindro é crivado de orificiosinhos e sustenta uma
helice de espiras muito juntas...”89
Quanto ao funcionamento da máquina, enquanto o vapor de água ou o ar
aquecido era introduzido no cilindro maior, fixo, o café a secar era posto no
cilindro interno, móvel. Enquanto isso,
[...] Imprime-se movimento rapido à hélice de aspiração e ao
ventilador; estabelece-se corrente energica de ar. Posto em
movimento o cylindro interior, o café que occupa a parte
inferior, é elevado pelas alcatruzes e, attingida certa altura,
cahe atravessando a corrente de ar e cedendo-lhe parte de
sua humidade. Todos os grãos passam pelos mesmos
phenomenos veses sem conta; com vigor mathematico póde-se
asseverar que com o grão n se dará o mesmo que com o grão
1.
[...] Na nossa machina, dá-se o seccamento como na
natureza, pelo calor irradiado de uma fonte calorífera e a
evaporação provocada pela renovação constante do ar
saturado.90
A intenção original dos inventores era a substituição da mão-de-obra
empregada no beneficiamento, além de tornar a secagem do café independente
das condições atmosféricas, sem preocupação em reduzir grandemente o tempo
gasto na operação de secagem.
153
Para isso analisaram várias máquinas em utilização, principalmente no
Ceilão, que produzia os cafés mais conceituados. O maior problema dessas
adaptações era que as melhores máquinas e processos aplicados no exterior não
atendiam ao volume das safras de café praticadas no Brasil, responsável isolado
por cerca de 50% da produção mundial.
No entender de Louis Conty, “lente” de Biologia Industrial da Escola
Polytechnica e sócio da Sain, um problema grave a resolver era que, em muitos
secadores,
por vezes o café das camadas inferiores esta torrado até e o
das superiores não apresenta o menor phenomeno de
seccamento; outras, quando não há ventilação sufficiente, a
umidade do café satura o ar e então os grãos aquecidos nesse
meio amolecem, cozinham, ficam negros e sem aroma.91
Conty saudou com entusiasmo a invenção de Taunay e Telles, por julgar
que no Brasil do início da década de 1880, a secagem do café era a única
operação de preparação do produto que ainda não estava totalmente sob o controle
do fazendeiro. Devido a isso
[...]A necessidade de utilizar para esta operação o braço
escravo, e de ficar inteiramente à mercê das condicões
atmosféricas era uma das dificuldades mais consideráveis da
produção do café no Brasil. Por causa desse único fator o
fazendeiro não podia, de antemão, regular a sua colheita e
contar até com o café colhido.[...]
Acontecia por vezes que o fazendeiro, urgido de mandar o seu
café para o mercado, não podia seccá-lo bem , e por isso
vendia-o em más condicões, imperfeitamente sêcco e
dificilmente conservável.
154
Acontecia quasi sempre que uma só parte do café, o primeiro
colhido, podia ser despolpado e dar o café lavado, que
alcança maior preço, pois as cerejas, conservadas muito
tempo no pé por falta de espaço no terreiro para seccá-las,
não podião ser mais despolpadas.92
Conhecendo a forma pela qual a indústria agrícola se desenvolvera na
Europa, Conty analisava o desenvolvimento tecnológico das máquinas de
beneficiamento de café a partir das dificuldades enfrentadas pelos fazendeiros.
Por isso exaltava a criação de seus amigos, tomando-a como um passo decisivo na
evolução que a indústria cafeeira experimentara sob a primeira lei de patentes de
1830:
A indústria agrícola acha-se, porem, bastante adiantada no
Brasil para aceitar facilmente esse invento? Para mim é
líquido que sim: confesso ter ficado surpreendido vendo e
estudando, primeiro em S. Paulo e depois no Rio de Janeiro,
os processos aperfeiçoados postos em prática para a
preparação do café. Pensava encontrar por toda a parte
meios primitivos de beneficiamento, sempre à mão-de-obra
direto, sempre o escravo, e por toda a parte encontrei
machinas das melhores e mais custosas. Todas as vezes que
fôra possível substituir a mão de obra direta, muito imperfeita
e cara, sobretudo no Brasil com os escravos, se o fizera, os
fazendeiros tinham sabido não recuar ante os primeiros
sacrifícios, depois largamente compensados pelo diferenca de
custo de mão-de-obra e maior valia dos produtos. 93
Os dados de concessões de patentes confirmam as impressões de Conty.
Segundo os estudos de Cruz e Tavares, até 1869 apenas treze patentes foram
concedidas a inventos ligados ao café, desde a aprovação da lei de 1830.94
No entanto, conforme o quadro abaixo, entre 1870 e 1882, as concessões
de patentes para máquinas de beneficiamento de café inventadas ou aperfeiçoadas
155
sob a lei de 1830 tiveram um aumento substancial do número de registros. As
petições feitas no Rio de Janeiro — província e Corte — atingiram 65,1%; São
Paulo registrou 30,2% e Minas Gerais 4,7% de um total de 43 patentes
concedidas. É significativo que o primeiro registro tenha surgido em 1876,
iniciando um movimento crescente de petições nos anos próximos a 1880.
Naqueles anos, a lavoura cafeeira expandia-se por todo o Sudeste brasileiro,
enquanto o café nacional disputava qualidade com outros produtores nas
exposições universais e no mercado.
ORIGEM DAS PATENTES DE INVENÇÕES E APERFEIÇOAMENTOS DE MÁQUINAS DE
BENEFICIAMENTO DE CAFÉ CONCEDIDAS DE ACORDO COM A LEI DE 28 DE AGOSTO DE
183O NO PERÍODO DE 1873 A 1882*
ANO
Rio de Janeiro
São Paulo
Minas Gerais
Espírito Santo
Bahia
Santa Catarina
Exterior
1873
1874
1875
1876
1877
1878
1879
1880
1881
1882
1
4
2
3
2
5
2
1
4
1
7
5
4
1
1
TOTAIS
28
13
2
(*) Tabela organizada a paritr do acervo do Arquivo Nacional/Seção de Privilégios Industriais
Em 1881 Taunay e Telles patentearam um aperfeiçoamento para o “typo
de seccador já privilegiado pelo Governo Imperial, modificado e melhorado em
certas partes”95.
Para eles,
A inovação mais notável é a de dois planos inclinados
introduzidos no cylindro movel. Esses planos são aquecidos
pelo vapor de água circulando em tubos dispostos
symetricamente entre duas placas metallicas. [...] O café é
obrigado, por essa modificação, a correr pelos planos antes
de cahir na parte inferior do cylindro móvel.96
156
Tanto esse melhoramento quanto o invento original foram criticados
pelos próprios autores por apresentarem principalmente um custo elevado, apesar
de estarem convencidos de que sua máquina tinha atingido o grau de excelência.
Devido ao fator custo, no patenteamento que requereram para o “typo
aperfeiçoado da Machina Taunay-Telles”97, os autores afimaram ter resolvido o
problema:
suprimimos as caldeiras fixas e as substiuímos por uma série
de tubos de asas [...] que fornecendo absolutamente o mesmo
numero de calorias que se obtinha a princípio tão
dispendiosamente, são mais maneiros, accupão menos espaço
e sobretudo são muito menos caros.98
99
157
158
Taunay e Telles receberam no mínimo duas encomendas do secador que
criaram: a do Dr. Braz Nogueira da Gama, da fazenda Santa Luiza, onde já havia
outras máquinas, da marca Lidgerwood, e a de Domingos Theodoro de Azevedo
Júnior, grande fazendeiro de Santa Tereza de Valença. É possível que tal interesse
tenha contribuído em muito para animar os inventores à empreitada.
Mais uma vez ,Couty explica o método da criação do novo secador:
[...] feitas experiências altamente satisfatórias em um modelo
de dimensões reduzidas, construído no Rio de Janeiro
resolveram [...] ir à Europa. Em Paris não descansaram;
durante os primeiros meses de sua estada aí, visitaram
manufaturas de tabaco, fábricas de pólvora, fécula, papel e
outras em que podiam encontrar aparelhos de secagem e
ventilação destinados a fim análogo ao que se propunham.
Consultaram também especialistas, entre eles o ilustre
Tresca, colhendo de tudo a convicção de só haver ligeiras
modificações a introduzir no seu invento.
Completo o projeto definitivo da máquina tratou-se de
construí-la. Ainda aí os Drs. Taunay e Telles nada quiseram
deixar ao acaso, e, posto tivessem a maior confiança na
fábrica, tão justamente apreciada, do Sr. Guilherme
Lidgerwood, foram em pessoa, por duas vezes à Escócia, e aí
se demoraram algum tempo, afim de poderem acompanhar a
construção em todas as minúcias. 100
E continua, mostrando que os autores tinham em mente um objetivo bem
definido a alcançar:
[...] Não se tratava simplesmente de secar o café; esse
objetivo já fora conseguido pelo terreiro, pelas estufas e
alguns aparelhos aplicados no Brasil e outros países.
Impunham-se novas necessidades. A máquina definitiva devia
conservar ao produto todas as suas propriedades, reduzir
bastante o tempo antes gasto no terreiro, economizar mão-de-
159
obra, despesas de instalação e manutenção, ser de fácil
manejo, e, ao mesmo tempo, poder secar a enorme produção
anual de uma fazenda.101
Conty dá, ainda, uma idéia da problemática tecnológica que estava por ser
superada na nova máquina:
[...] Os primeiros ensaios tinham feito reconhecer a utilidade
de um tipo de máquina que realizasse as condições
verificadas empiricamente boas pelo terreiro. Era, porém,
indispensável dispor as superfícies de aquecimento em espaço
limitado e calculá-las de modo a evaporarem a grande
quantidade de água contida em 100 alqueires de café, e isto
sem que o número de calorias transmitidas pudesse
absolutamente estragar o produto; determinar o número de
metros cúbicos de ar a introduzir na máquina para ser toda a
umidade dissolvida e acarretada; combinar a temperatura do
ar de modo a não ir este roubar demasiado calor às
superfícies aquecidas; dispor o interior da máquina, afim de
estar o café sujeito a constante revolvimento, passando todos
os grãos pela mesma série de fenômenos...
Era mister, ainda mais, tornar impossível o embolamento das
massas na primeira fase da operação e o quebramento da
cápsula córnea na última. Em uma palavra, satisfazer ao sem
número de fatores físicos e macânicos de um problema
desesperadoramente complexo.102
Pouco antes da mudança da legislação de patentes foram também
patenteados outros equipamentos não diretamente ligados ao beneficiamento do
café, mas que contribuíam para a popularização do consumo e para aumentar o
conhecimento sobre o comportamento físico-químico do produto, principalmente
os destinados à sua decocção.
O primeiro foi a Cafeteira Fluminense, desenvolvida por José Antonio
Antunes, com privilégio industrial concedido pelo governo imperial em 1875.
160
Essa cafeteira obteve sucesso enorme e larga difusão, chegando a ser premiada na
Exposição Nacional de 1875 e na Exposição Universal de Philadelphia, Estados
Unidos da América, em 1876.103
Em sua fábrica, na rua Gonçalves Dias, 39, na cidade-Corte, J. A.
Antunes fabricava também peças avulsas de reposição e prestava assistência
técnica. As vendas eram realizadas no depósito da fábrica, à rua da Alfândega,
78.104 Somente em 1887, Antunes voltou a requerer privilégio industrial, dessa
vez para “aperfeiçoamentos em cafeteiras denominadas fluminenses”.105
Outro equipamento não diretamente envolvido com o beneficiamento do
café mas ligado a uma melhor qualidade dos métodos de colheita das imensas
safras que as fazendas brasileiras produziam foi o Aparelho para Colher Café,
criado por Manoel Francisco de Castro Nascimento.
Funcionando como uma rede sob o cafeeiro, esse aparelho era utilizado
durante a colheita para que o café não caísse no solo, evitando que grãos de terra e
corpos estranhos se misturassem ao produto. Desejando assegurar a confiança dos
clientes quanto à qualidade e utilidade do seu invento, Castro Nascimento mandou
fabricar alguns desses aparelhos na Inglaterra, e os distribuiu entre alguns
fazendeiros conhecidos, afirmando-lhes que, com 100 homens disponíveis,
necessitariam de vinte a trinta aparelhos para reduzir à metade o tempo da
colheita. Sua estratégia parece ter funcionado, pois, conforme anunciou um
lavrador na Gazeta de Notícias, ao menos vinte unidades do aparelho foram
encomendadas.106
Pela lei de 1830, os fabricantes estrangeiros não podiam patentear no
Brasil inventos protegidos em outras nações. O reconhecimento dos direitos do
estrangeiro expressava-se no prêmio que o inventor recebia a título de
ressarcimento pela introdução de seu invento no país. Após o pagamento feito
pelo governo, a patente se tornava de domínio público.
161
Entretanto, a lei não esclarecia o procedimento a ser adotado para as
máquinas estrangeiras importadas para o Brasil. Assim, não há clareza sobre os
motivos para que a venda dessas máquinas empregadas no beneficiamento do café
no Império fosse também objeto de concessão de patente. Pela prática adotada, o
representante do fabricante estrangeiro no Brasil obrigava-se a requerer ao
governo concessão de privilégio exclusivo para proceder à importação e à venda
daquelas máquinas.
Nesse caso, também a Sain era encarregada de apreciar a matéria. Na
sessão de fevereiro de 1870, por exemplo, a assembléia dos sócios da Sain
acompanhou o parecer de sua Secção de Machinas e Apparelhos sobre o
requerimento de José Gomes de Oliveira Guimarães para o privilégio de venda,
por dez anos, das “Machinas de descascar, limpar, brunir e separar o café” de E.
Carver & Cia., de Boston, EUA.107
O requerimento de Oliveira Guimarães foi negado porque a invenção em
questão já havia sido patenteada no Brasil, em abril de 1868, por Alberto
Angell.108 Portanto, não poderia haver privilégio para a importação e venda de
uma máquina estrangeira idêntica à que fora criada e patenteada no Brasil.
Porém, quando o mesmo Angell solicitou privilégio industrial para “um
cylindro de ferro fundido com canaleiras ou meias canas ou chapas corrugadas
fixas em molas de aço” que introduziu em sua máquina como elemento de
aperfeiçoamento, seu requerimento foi negado, devido à mesma adaptação já ter
sido praticada em 1864, e privilegiada por 10 anos, por William Van Vleck
Lidgerwood em máquinas de sua invenção.109 Naquele momento, Guilherme Van
Vleck Lidgerwood — provavelmente a mesma pessoa com o nome traduzido —
ocupava o cargo de membro da Secção de Machinas e Apparelhos, que emitiu o
parecer.
162
Lidgerwood era um dos fabricantes estrangeiros que, ao que parece, mais
vendia no Brasil. Porém, durante a década de 1860 e princípios da década
seguinte, demonstrou ter adotado a nacionalização dos modelos mais necessários
à lavoura cafeeira, consolidando seus produtos no mercado interno e protegendo
suas máquinas de possíveis imitações, à medida que se popularizavam em todas as
regiões cafeeiras.
Enquanto Guilherme Lidgerwood participava diretamente do núcleo de
apreciação das invenções e melhoramentos que surgiam, suas máquinas serviam
de parâmetro para o julgamento das novas patentes requeridas no Brasil. O
próprio André Rebouças, presidente da Secção de Machinas e Apparelhos,
lembrava, no início da década de 1880, que “devemos a um filho da grande
República, ao infatigável Engenheiro Mecânico — William Van Vleck
Lidgerwood — a iniciativa de todos os melhoramentos introduzidos, nestes
últimos anos, nos mecanismos de beneficiar café”.110
Confirmando essa opinião, ao julgar petição de privilégio de Manoel
Rodrigues Alves Vianna para um aparelho capaz de “limpar e brunir” duzentas
arrobas de café em um dia, a Secção ponderou que
Entre as machinas de limpar e preparar café, usadas no
Império, occupa o primeiro lugar a bem conhecida machina
Lidgerwood, privilegiada até 1877 pelo Decreto n. 5169 de 4
de Dezembro de 1872. Teve por isto a Secção o cuidado de
examinar que a nova machina de brunir café não empregava
os mesmos elementos mecanicos que a machina
Lidgerwood.111
A máquina de Lidgerwood deve ter tido sua patente requerida
primeiramente no Brasil e reconhecida nos demais países. Mas não há certeza a
esse respeito.
163
É possível ainda que a Lidgerwood, como prática geral, introduzisse no
Brasil suas inovações já patenteadas no exterior, recebendo por elas o prêmio
correspondente, além de adquirir o direito de produzi-las no Brasil. Nesse caso, o
fabricante ficava também com o direito ao patenteamento dos aperfeiçoamentos
dessas máquinas no país.
Ao que parece, o tamanho do mercado brasileiro para as máquinas de
beneficiar café de Lidgerwood compensava plenamente a cessão dos direitos de
patenteador de algumas de suas máquinas para domínio público. Esta hipótese se
fortalece, à medida que, sendo máquinas de patente em domínio público, o
fabricante também continuava com o direito de continuar produzindo-as no Brasil.
Para isso, contava com sua própria estrutura industrial e comercial, que o
colocava em posição de vantagem sobre a concorrência.
De qualquer maneira, no caso da patente de Lidgerwood referida pela
Secção de Machinas e Apparelhos na apreciação do parecer de Alves Vianna,
nota-se que o tempo mínimo de privilégio que o fabricante inglês recebeu —
cinco anos — sugere que havia o interesse da Secção em reduzir a duração do
tempo de privilégio do fabricante mais avançado, para que os direitos sobre a
máquina caíssem mais rapidamente em domínio público, facilitando o
patenteamento de similares e aperfeiçoamentos por outros inventores.112
Num outro processo de um limpador e brunidor de café, em 1875, a
Secção elogiou os esforços dos inventores brasileiros para o aperfeiçoamento das
operações de preparação do café exportável, por entendê-los da máxima urgência:
os processos actualmente empregados são quasi os que nos
legaram os tempos coloniaes: estão abaixo de qualquer
crítica - todo o trabalho se faz a braços de pretos, que
suffocão com o pó que sahe do café durante sua
manipulação.113
164
Julgando, ainda, a invenção de Alves Vianna, a Secção mostrou-se
preocupada em evitar que a máquina em questão repetisse uma linha de
brunidores que julgava superados:
Está muito em uso actualmente um brunidor de café, que
consiste simplesmente em um grande cylindro, forrado com
taboinhas de madeira pregadas com intervallos de um a dous
centimetros. O café vai em saccos para o interior desse
brunidor e é beneficiado pelo simples attrito de uns grãos
sobre os outros durante a rotação desses cylindros.
Tem evidentemente esse apparelho o inconveniente de deixar
o café com todo o pó e todas as matérias estranhas com que
veio do terreiro; quando evidentemente o maior benefício,
que se pode fazer é isolál-o de todas as materias estranhas.114
Ainda que reconhecesse ter havido a preocupação em dotar a máquina de
capacidade de limpar e brunir o café, “a Secção recommendou-lhe que dê mais
desenvolvimento a estas disposições de modo a obter simultaneamente para o café
a melhor apparencia e o mais grato sabor”.115
No caso desse autor, a Seção parecia particularmente interessada em
estimular “uma officina de machinas para lavoura na Barra do Pirahy em um
centro importantissimo de cultura do café”.116
Tudo indica que tal postura da Sain foi apropriada para que os inventores
avançassem no desenvolvimento de tecnologia de beneficiamento do café. Uma
década após, Manoel Rodrigues Alves Vianna & Cia. era uma “officina de
machinas para a lavoura, fundição de ferro e bronze”, em Barra do Piraí,
província do Rio de Janeiro, que produzia sob encomenda, além do brunidor
165
privilegiado, também despolpadores de café de quatro capacidades diferentes, de
25, 50, 60 e 80 alqueires de café por hora.117
A evolução das patentes requeridas a partir das necessidades da lavoura e
dos obstáculos interpostos pela Secção de Machinas e Apparelhos em repetir
inventos de ponta já privilegiados no Brasil forçava um caminho tecnológico
próprio,
caracterizado
por
invenções
originais
e
melhoramentos
comprovadamente funcionais para as máquinas de beneficiar café.
Outro exemplo disso, foi o requerimento feito por José Ribeiro da Silva, o
mesmo inventor do Concassor Ribeiro, que, também no ano de 1876, solicitou
privilégio industrial para uma máquina capaz de descascar e brunir o café, a que
chamou Eureka118.
Essa máquina era o resultado das críticas e recomendações que a Secção
fez ao concassor, que apenas descascava o café, sem bruni-lo. Sem poder usar o
sistema Lidgerwood, considerado o mais moderno, que consistia nos mesmos
mecanismos privilegiados cuja patente já tinha sido negada a Alberto Angell,119
Ribeiro buscou alternativas à máquina de Lidgerwood, recorrendo, na Eureka, a
“superfícies elásticas para o descascamento ou quebrador de casca, como elle
denomina, e reserva muito prudentemente a helice não elástica para o brunido”.120
Com esse artifício técnico, Ribeiro conseguiu o privilégio exclusivo para
a Eureka, com a ressalva de que a máquina destinava-se apenas ao uso na
“pequena lavoura”.121
Evitando repetir invenções consagradas, Ribeiro também marcou uma
linha tecnológica seguida por outros inventores brasileiros, ue, auxiliados pelos
pareceres da Secção de Machinas e Apparelhos da Sain, tiveram a chance de
desenvolver suas invenções e progredir como fabricantes.
166
Como exemplo, em 1876 a Secção aprovou uma peticão para privilégio
por dez anos para uma “nova machina de preparar café”, embora entendesse que o
invento não era original por pertencer ao tipo de máquinas “sem molas ou
elementos elásticos, como o primitivo Concassor Ribeiro”. Nesse particular, a
tolerância da Secção foi inconfundível, ao entender que “É muito provável que o
actual requerente depois de mais profundo conhecimento do assumpto, faça os
mesmos aperfeiçoamentos que o mencionado inventor”122
Ainda na década de 1870, a profusão de inventos, principalmente de
descascadores e secadores, era tamanha que gerou entre os fabricantes inúmeros
conflitos a respeito da autoria das invenções e dos diretos de fabricá-las e
comercializá-las.
Em 1877, uma polêmica envolvia os inventores José Ribeiro da Silva,
com o Concassor Ribeiro; Joaquim Ribeiro Pedroso Júnior, com a “maquina de
limpar” café Feronia123, e Bernardino Corrêa de Mattos, com a Machina
Maravilha124. Na época, as questões entre eles se agravaram a tal ponto que a Sain
chegou a marcar uma assembléia especial para tratar do “conflito entre os
inventores das machinas de preparar café...”125
Uma carreira de invenções e patenteamentos como a de Samuel Beaven,
cidadão inglês residente em Jundiaí, São Paulo,126 mereceria um estudo à parte
deste trabalho. Autor isolado de mais de vinte patenteamentos de máquinas de
toda a sorte para o trato industrial do café, Beaven é o melhor representante do
circuito de produção de máquinas de beneficiamento de café, desde a criação até o
comércio da inovação, no interregno entre a primeira e a segunda lei de patentes,
no Brasil.
Ainda em 1876, a Secção de Machinas e Apparelhos protestou contra o
fato de o autor ter apresentado petição de privilégio a um só tempo para quatro de
seus inventos: um aparelho para matar formigas (preocupação constante na
167
lavoura insolada), um ralador de mandioca, um aparelho para extrair raízes (útil
na limpa e preparação da terra para o plantio) e um despolpador e descascador de
café. Apesar do protesto, Beaven obteve os privilégios requeridos.127
Em seguida, a Secção concedeu a Beaven outro privilégio para “um
aperfeiçoamento nas molas usadas pelas machinas de descascar café do systema
de Lidgerwood”. Ou seja, o autor também entrara na seara do fabricante mais
renomado, criando a partir das máquinas mais bem estabelecidas comercial e
tecnologicamente. Nesse caso, o aperfeiçoamento parece ter sido bastante
inovador. A Secção, sem ter como testá-lo, mas também sem poder negá-lo de
antemão, decidiu-se pela concessão do privilégio ao constatar que “os princípios
seguidos pelo inventor são racionais...”128
A trajetória inventiva percorrida por Beaven demonstra tratar-se de um
inventor profissional, detentor de grande saber técnico e muito articulado com os
maiores fabricantes de máquinas de São Paulo.
Em 1877, ele patenteava um aparelho que chamou Secador Horizontal de
Beaven129; no ano seguinte, criava um “aparelho combinado” desse secador com
um despolpador de café. A novidade consistia nas “disposições de sua união com
o despolpador”130.
Porém, em 1879, quando Beaven voltou com novo requerimento para
esteiras de tela de arame para despolpar, descascar ou secar café, “reconheceu a
Secão que as esteiras, a que se refere o recorrente, são já muito conhecidos e
aplicados, com certas modificacões, em maquinas de beneficiar café, já
privilegiados pelo Governo Imperial”.131
Por isso, a Secção deliberou contra a concessão do privilégio, mandando
arquivar a petição do autor.
168
Neste mesmo ano, Beaven tentaria patentear o Regulador Automático de
Calor, segundo ele próprio um “apparelho de seccar e torrar café”132.
Provavelmente, esse regulador seria um aperfeiçoamento ao funcionamento do
secador horizontal, podendo também ser utilizado em outros aparelhos.
Em 1880, Beaven mais uma vez se faria presente. Fez patentear uma
máquina de despolpar café cereja ou descascar café seco, que chamou
Despolpador Beaven133, o Ventilador Beaven ou Ventilador Ipanema134 e um
aparelho ventilador de café a que chamou Limpador de Café Beaven.135
Demonstrando conhecer em profundidade a natureza físico-química do café e as
necessidades da lavoura cafeeira do país, ele registrou, a respeito do despolpador
apresentado, uma espécie de dez mandamentos de um bom aparelho desse tipo:
1. Deve tirar a casca vermelha sem prejudicar o pergaminho
e a pellicula.
2. Deve separar a casca no processo de despolpar e não
deixal-a misturada com o café para ser separada por outro
processo.
3. Não deve deixar sahir um grão de café, junto com a casca.
4. Deve deixar passar todo o café verde sem ser despolpado,
sendo impossível despolpar este sem tirar o pergaminho e a
pellícula.
5. Deve ter meio de separar o café verde do despolpado.
6. Não deve entopir-se facilmente.
7. Deve ter meio de tirar facilmente qualquer cousa estranha
que por acaso entra junto com o café.
8. Deve ter bastante duração e não ser dispendiosa em
concertos.
169
9. Não deve carecer muita água nem grande força motora.
10. Deve ter preço razoavel ao alcance de todos os
lavradores.136
No ano seguinte fez patentear novamente três invenções. A primeira era
uma máquina multitarefa que reunia em si as operações de descascamento,
ventilação e separação do café, a que chamou Machina Beaven.137 A segunda —
que demonstra que o inventor acreditava na necessidade de melhoria do café a
partir das lavouras —, era o Estrumador Ibicaba, “um apparelho destinado a
espalhar estrume nos cafezais”138.
Quanto à terceira, tratava-se de um aperfeiçoamento ao Despolpador de
Gordon, uma máquina usada nas colônias inglesas da Ásia, e que tinha
representado a Guatemala na exposição coletiva da América do Sul, dentro da
Exposição Universal de Paris de 1878.139
Ao mesmo tempo que essa máquina era introduzida no Brasil, em 1880,
Beaven já anunciava seu melhoramento, sob a alegação de que a máquina
original, ainda que largamente utilizada no Ceilão, apresentava o inconveniente de
quebrar os grãos que nela passavam. Por isso, procurou adaptar borrachas nas
partes do aparelho que conduziam o café, além de outras mudanças que
caracterizavam o melhoramento.140 Esse patenteamento indica ter ocorrido um
intercâmbio de informações sobre as máquinas entre os inventores e fabricantes
do Brasil com os do exterior, como era a intenção da Sain desde a sua
fundação.141
A estratégia de melhorar inventos consagrados parece ter funcionado a
contento, pois da associação entre Beaven e o fabricante e inventor Bierrembach,
170
surgiu um despolpador de teve boa aceitação nas fazendas. Segundo o fabricante
de Campinas,
As machinas de despolpar café deste novo sistema em uso em
diversas localidades, tem provado a sua superioridade, nos
seguintes pontos:
1. O novo cylindro com os dentes feitos de grampos, evita a
despeza continua de renovar as chapas
2. O novo systema de collocar e prender a borracha produz
melhor resultado, e facilita tirar qualquer cousa estranha que
por acaso entra junto com o café.
3. Separam perfeitamente bem a casca, o café verde, e o café
despolpado limpo.
4. Occupam pequeno espaco, e o assentamento é facílimo.
5. Levam pouca força motora, e pouca água no servico de
despolpar.
6. São as mais singelas e as mais baratas.
Fazem-se os despolpadores de tres tamanhos para despolpar
de 400 até 800 alq. (de 40 l) por dia.142
A partir de 1883, já sob a nova legislação de privilégios industriais,
Beaven daria continuidade à sua carreira tecnológica. Iniciando pelo Seccador
Multitubular de Beaven143, desenvolveu ainda outro secador multitubular144 e uma
Escolhedeira Beaven, para “escolher e limpar o café”145, em 1884. A seguir
patenteou uma outra máquina para “limpar e escolher café”146, a Escolhedeira
Pneumática Beaven147 e o Despolpador Beaven Melhorado148, estes de 1885.
Posteriormente, o inventor ainda patenteou o Seccador Beaven Melhorado
171
(1888)149, um outro secador de café150 e uma máquina “para beneficiar café e
arroz” (ambos em 1889)151, um melhoramento da Machina de Despolpar
Beaven152 e o Engenho de Café Beaven, uma máquina multitarefa para “limpar,
descascar, ventilar, brunir e catar café, e de descascar arroz” 153 (em 1890).
Expectativa do fim da escravidão? Esperança no resultado das mudanças
nas leis de patentes? Interesse no aproveitamento do potencial de crescimento da
lavoura cafeeira? Facilidade de comunicação com fabricantes e outros inventores
de máquinas? Genialidade criativa? O que teria feito Samuel Beaven produzir
tantos inventos em pouco mais de dez anos, exatamente naqueles anos de maiores
mudanças no quadro jurídico-institucional do Segundo Reinado? Responder a
todas essas questões está acima das modestas pretensões deste estudo.
Entretanto, o percurso que Beaven fez desde Ibicaba, de onde requereu a
primeira patente encontrada, passando por Itaicy, depois por Campinas, onde
inventou para Bierrembach, até chegar a Jundiaí, onde provavelmente trabalhou
para Mac Hardy de 1888 em diante, seria o próprio percurso da transformação na
infra-estrutura tecnológica da lavoura cafeeira brasileira nas últimas décadas do
século XIX.
Nesse sentido, Beaven encarnou a própria transplantação do saber técnico
(know how) para a geração de tecnologia de máquinas de beneficiamento de café
no Brasil. Ao imigrar da Inglaterra para o Brasil, o inventor trouxe do centro
gerador do modelo industrial para o local da plantação do café o padrão cultural e
tecnológico para a geração da máquina de beneficiar o produto.
Beaven foi um inventor de máquinas de beneficiar café no Brasil.
Representativo dos inventores de seu tempo, Beaven penetrou no dia-a-dia da
fazenda cafeeira e alterou-lhe a dinâmica pelo movimento das máquinas.
172
NOTAS
1
Dumont, A. S. Op. cit., p. 90.
2
Cf. Kemp, T. Op. cit.; Landes, D. Op. cit.; Mason, Stephen F. História de las ciencias. La ciencia del siglo XIX.
Madrid, Alianza, 1985, vol. 4; Nef, John. La conquista del mondo material. Buenos Aires, Paidos, 1969.
3
Cf. Hobsbawn, Eric. Da Revolução Industrial ao imperialismo. Rio de Janeiro, Forense, 1983, e Cipolla, Carlo.
História econômica da Europa pré-industrial. Lisboa, Edições 70, 1974.
4
A este respeito ler: Honorato, Cezar e Beauclair, Geraldo. “Niterói industrial ...”. Op. cit.
5
Empresto a imagem mítica associada à ciência moderna de “The Unbound Prometheus”, título original da obra do
professor Landes, David S. Progreso tecnologico y revolucion industrial. Madrid, Tecnos, 1979.
6
Cf. notícia publicada no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, em 15/06/1995, p. 15, dando conta do resgate da
embarcação feita por arqueólogos na costa do estado da Carolina do Sul, EUA, onde afundou em 1864.
7
André Rebouças, um monarquista notório, assim se referiu aos Estados Unidos da América em seus artigos de análise
da agricultura brasileira. O conjunto destes trabalhos encontra-se em Rebouças, André. Agricultura nacional.
Estudos econômicos. Rio de Janeiro, Typographia A. J. Lamoreux, 1883, p. 27.
8
Cf. Lobo, Eulália et al. Questão habitacional e o movimento operário. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1989, pp.27-28. A
respeito da história do Clube de Engenharia, desde sua fundação, ver: Honorato,C. (coord.), op. cit.
9
Cf. Pesavento, Sandra. Op. cit.
10
Cf. Dumont, A. Santos. Op. cit.
11
Ibid., p. 49.
12
Ibid., p. 52.
13
No relatório sobre a Exposição Universal da Philadelphia, em 1876, Nicolau J. Moreira afirmou “que na UniãoAmericana grande parte do café brasileiro superior era vendido sob diversas denominações, sendo conhecido
geralmente como produto do Brasil o café ordinário que aparecia no mercado; - café dos pobres - tal era o nome
que se lhe dava”. O Auxiliador...1881, p. 79. Grifo do autor.
14
Von Tchudi, J. J. Op. cit., p. 16.
15
Ibid., pp. 35-36.
16
Cf. Bloch, M. Op. Cit.; Katinsky, J. Op. cit. e Beauclair, G. Raízes...
17
Jornal do Commércio, 16.12.1873, p. 6. Grifo meu.
18
Jornal do Commércio, 04.09.1874, p.5. Grifo meu.
19
Jornal do Commércio, 03.07.1877, p. 5.
20
O Jornal do Commércio, 27.09.1874, p. 6, trouxe a seguinte mensagem “para Valença: deseja-se comprar tres
escravos carpinteiros ou marceneiros, que sejão possantes e de boa conducta, e não se faz questão de dinheiro [...]”.
21
É comum encontrar nos jornais, principalmente a partir de 1880, anúncios como o de “um homem casado, perito
machinista, com muita prática de beneficiar café, deseja encontrar uma fazenda importante para tomar conta dos
engenhos...” Jornal do Commércio, 15.01.1880, p. 5.
22
Uma pesquisa individual mais acurada sobre os fabricantes e inventores extrapolaria os objetivos deste trabalho. As
assertivas sobre a Lidgerwood Man. Co. Ltd. estão presentes na maioria de seus anúncios na imprensa,
principalmente: Almanak Laemmert 1873, p. 669; Jornal do Commércio, 13.01.1880, p. 5; Correio Paulistano,
14.07.1904, p. 7.
23
Jornal do Commércio, 09.05.1882, p. 5. Grifos meus.
24
Essa distribuição regional dos estabelecimentos industriais de máquinas de beneficiamento pode ser constatada pelo
seguinte anúncio: “João Anastácio Caminha, machinista conhecido e práctico ha vinte annos nas provincias do Rio
de Janeiro e Minas, tem a honra de participar aos Srs. fazendeiros que se acha estabelecido com fabrica de
machinas de preparar café na cidade de Leopoldina, onde recebe suas encommendas, e se encarrega de fazê-las
seguir seu destino.
A grande vantagem que têm as machinas é descascar o café sem fazer poeira, e deixa-lo limpo, sendo preciso apenas ir
ao pilão para brunir; a machina tem ventilador e peneira: póde preparar 400 arrobas em 12 horas; isto é, conforme a
collocação das ditas machinas, e também se encarrega de dar direcção para o assentamento das mesmas, mediante
qualquer quantia, conforme fôr a distância.
As machinas são em tudo iguais às de Ferreira de Assis.
Preço das machinas n. 1...............................350$000
Preço das machinas n. 2...............................300$000
Preço das machinas n. 1 com ventilador.......850$000
Preço das machinas n. 2 com ventilador.......800$000
173
[...] Os fazendeiros que quizerem vê-las podem dirigir-se à mesma cidade, na dita fábrica.” Jornal do Commércio,
04.12.1873, p. 5. Os processos referentes aos patenteamentos dessas máquinas não foram localizados,
permanecendo dúvidas quanto à originalidade dos inventos.
25
Para aprofundamento sobre a composição das diretorias e seções da Sain, consultar a coleção de O Auxiliador... a
partir de 1870.
26
A respeito, consultar as composições das diretorias da Sain e de suas várias seções, nas edições de O Auxiliador...
correspondentes aos anos citados. Quanto a Henrique Hargreaves, a firma Hargreaves Irmãos patenteou: em 1879, a
“Machina Hargreaves” para beneficiar café (Arquivo Nacional. Privilégios Industriais. PI-00403) e um
aperfeiçoamento à mesma máquina (Arquivo Nacional. Privilégios Industriais. PI-06680). Em 1880, a firma
patenteou um equipamento referido como “machina de preparar e beneficiar café” (Arquivo Nacional. Privilégios
Industriais. PI-08187).
27
As patentes de Escragnolle Taunay serão tratadas especificamente adiante.
28
Rebouças, André. Op. cit.
29
Decreto n. 1337 de 17.06.1857, apud. O Auxiliador...1870, pp. 50-51. O processo de privilégio industrial referente
ao invento não foi localizado.
30
O Auxiliador... 1870, pp. 50-51.
31
O Auxiliador... 1873, p. 138. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
32
O Auxiliador... 1873, p. 499. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
33
O Auxiliador... 1874, p. 11.
34
A historiografia a respeito dos pioneiros dos municípios cafeicultores do Sudeste brasileiro é insuficiente para a
identificação dos autores de invenções entre a nobiliarquia brasileira. O exemplo do município de São Carlos
demonstra a oportunidade de pesquisas como a de Truzzi, Oswaldo. Café e Indústria. Através dessa obra pude
identificar na família Arruda Botelho os patenteadores cujas peticões de privilégio encontram-se no Arquivo
Nacional. Privilégios Industriais: Antonio Carlos de Arruda Botelho/PI-6579; Leonardo Botelho/PI-1118, PI-1119,
PI-1235, PI-1368 e PI-1470; Álvaro Carlos de Arruda Botelho/PI-1395, PI-7535 e PI-8636; Álvaro Botelho,
Gautier & Cia/ PI-2112, PI-2129, PI-2130, PI-6480, PI-6575 e PI-7474; Auler, Teixeira e Botelho/ PI-0927, PI0989, PI-1193 e PI-1201; Elias de Camargo Penteado/PI-3806. É possível que outros membros não identificados
dessa família tenham patenteado inventos.
35
Cf. Vasconcellos, Barão de. Archivo nobiliarchico brasileiro. Lausanne, Imprimerie La Concorde, 1918, pp. 475476.
36
Jornal do Commércio, 27.09.1874, p. 6.
37
Decreto 6020, de 30.10.1875. Collecção das Leis do Império do Brazil de 1875. Rio de Janeiro, Typographia
Nacional, 1876. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
38
O Auxiliador... 1875, p. 315 e pp. 341-342. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
39
O Auxiliador... 1875, pp. 341-342.
40
Jornal do Commércio, 17-18.04.1876, p. 5.
41
Arquivo Nacional. Privilégios Industriais. PI-07001. Doravante as referências ao Fundo de Privilégios Industriais do
Arquivo Nacional serão simplificadas na sob forma: “PI”.
42
Não foram localizados documentos para verificação da origem desta máquina.
43
Arquivo Nacional. PI-06782.
44
O Auxiliador... 1879, pp. 33-35. A respeito das mós consultar: Bloch, M. Op. cit.; e também Katinsky, J. Op. cit.
45
O Auxiliador... 1879. pp. 33-35.
46
Jornal do Commércio, 08.02.1884, p. 7.
47
O Auxiliador... 1879, pp. 33-35.
48
O Auxiliador... 1883, pp. 35-39.
49
O Auxiliador... 1883, pp. 35-39.
50
O Auxiliador... 1883, pp. 35-39.
51
Arquivo Nacional. PI-08126.
52
Arquivo Nacional. PI-08126.
53
Arquivo Nacional. PI-07028.
54
Arquivo Nacional. PI-07028.
55
Arquivo Nacional. PI-07040.
56
Arquivo Nacional. PI-07040. Uma pesquisa mais aprofundada acerca das disputas pelos direitos autorais de
máquinas de beneficiamento de café poderá servir-se da documentação judiciária encontrada no Arquivo Nacional
e no Centro de Memória da Unicamp, principalmente.
174
57
Arquivo Nacional. PI-06657.
58
Arquivo Nacional. PI-06683. O inventor Daniel Pedro Ferro Cardoso, sócio e ex-membro da Seção de Artes
Liberaes da Sain, foi tratado por “architecto” por seus pares na Sain quando da proposta que fez à Sociedade em
1876 para que o Brasil sediasse uma exposição universal, no Rio de Janeiro, a ser aberta em abril de 1880. O
Auxiliador... 1876, pp.286-287.
59
Arquivo Nacional. PI-06683.
60
O Jornal do Commércio, 21.05.1882, p. 5, publicou uma carta dirigida aos fazendeiros por Frederico Carlos da
Cunha e Cia., convidando-os a assistir à demonstracão da “Machina de seccar, em seis horas, o café cereja”,
inventado por Dr. Ferro Cardoso, no domingo, 28-05-1882, nas oficinas de fundicão dos Srs. Finnie Comp., na rua
Cons. Zacharias, 4, Saúde. O anúncio dizia que “a baixa do café nos mercados impõe aos srs. fazendeiros a
necessidade de procurar o meio de produzir o café bom e a preco mais modico do que actualmente. Ora, como seja
incontestavelmente, na produção do café, a parte mais dispendiosa, lenta e trabalhosa o secca-lo; segue-se que o
apparecimento de uma machina, que, sendo de custo barato, de modo a achar-se na altura das pequenas fortunas,
secasse o café em cereja em muito pouco tempo e sem alterá-lo, seria, para a lavoura, o melhor auxílio que ella
poderia obter para uma producção econômica.
“Ainda maior seria a vantagem, se essa machina, no próprio trabalho de secca do café despolpasse-o todo e mesmo
descascasse-o em grande parte. [...] Cumpre fazer tornar bem saliente que o café secco por machina sahe todo com
uma uniformidade, de cor admirável, qualquer que seja a diferença no estado de maturição de cereja que fôr
empregada, isto é, a mistura de cafés verdes, seccos e maduros”.
61
Decreto 6135, de 04.03.1876. Collecção das Leis do Império do Brazil de 1876. Rio de Janeiro, Typographia
Nacional, 1876. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
62
O Auxiliador... 1876. p.7.
63
Panfleto da “Machina Brazileira”, de Bernardino Corrêa de Mattos. (Obras Gerais/Biblioteca Nacional)
64
Lista de preços da “Machina Brasileira” de Bernardino Correa de Mattos. (Obras Gerais/Biblioteca Nacional)
65
Jornal do Commércio, 06.05.1876.
66
Jornal do Commércio, 07.02.1879, p. 7. Os processos de privilégios industriais não foram localizados.
67
Arquivo Nacional. PI-07096.
68
Jornal do Commércio, 05.09.1878, p. 4.
69
Arquivo Nacional. PI-07735.
70
O Auxiliador... 1879, p. 35.
71
Em seus artigos sobre a agricultura brasileira, Rebouças fez observações como esta: “Os resíduos do café e de
qualquer outro produto agrícola são excellentes restauradores (estrumes, adubos) dos terrenos, que deram essa
colheita. Não queimeis as cascas de café, e quando cometerdes esse erro econômico apanhai, cuidadosamente as
cinzas, e utilizai-as como estrume mineral nos vossos cafezais [...]” (Rebouças, A. Op. cit. p. 140). Do mesmo tema
tratava Nicolau Moreira, nos diversos artigos sobre “Economia Rural” que publicou em O Auxiliador da Indústria
Nacional, na década de 1880.
72
Arquivo Nacional. PI-06687.
73
Arquivo Nacional. PI-06687.
74
Arquivo Nacional. PI-07738.
75
Jornal do Commércio, 05.05.1902.
76
Jornal do Commércio, 06.01.1878, p. 4. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
77
Jornal do Commércio, 06.01.1878, p.4.
78
Arquivo Nacional. PI-08799.
79
Arquivo Nacional. PI- 06640.
80
Arquivo Nacional. PI- 8192 e PI-6781. Dada a semelhança dos relatórios autorais, acredito tratar-se do mesmo
patenteamento.
81
Arquivo Nacional. PI- 08192.
82
Jornal do Commércio, 22.04.1881, p. 6.
83
Correio Paulistano, 06.04.1881, p. 2.
84
Correio Paulistano, 06.04.1881, p. 2.
85
Correio Paulistano, 06.04.188, p. 2.
86
Arquivo Nacional. PI- 07678.
87
Arquivo Nacional. PI-08219.
88
Arquivo Nacional. PI-08219.
175
89
Arquivo Nacional. PI-08219.
90
Arquivo Nacional. PI-08219. Grifo do inventor.
91
O Auxiliador...1880, pp. 201-206.
92
Ibid.
93
Ibid.
94
Cruz, H.N. e Tavares, M. A. R. Op. cit., pp. 218-219.
95
Arquivo Nacional. PI-06819.
96
Arquivo Nacional. PI-06819.
97
Arquivo Nacional. PI-07548.
98
Arquivo Nacional. PI-07548. Grifo do inventor.
99
Capa do manual da “Machina de Seccar Café Taunay-Telles” de Luiz Goffedro de Escragnolle Tunay e Augusto
Carlos da Silva Telles. Obras Gerais/Biblioteca Nacional.
100
O Auxiliador... 1883, pp. 35-39.
101
O Auxiliador... 1883, pp. 35-39.
102
O Auxiliador... 1883, pp. 35-39. Em 1886 Taunay e Telles voltaram a patentear “melhoramentos introduzidos na
machina”. (Arquivo Nacional. PI-07470). Em 1888, patentearam uma “nova machina de seccar café”, com o
mesmo nome da anterior (Arquivo Nacional. PI-09136).
103
Cf. Jornal do Commércio, 30.05.1878, p. 8. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
104
Cf. Jornal do Commércio,30.05.1878, p.8.
105
Arquivo Nacional. PI-00285.
106
Embora o processo de privilégio e o decreto de concessão do privilégio deste aparelho não tenham sido
localizados, vários anúncios informavam que o autor contava com o exclusivo do privilégio garantido pela lei, a
exemplo da publicação do Jornal do Commércio (23.02.1879, p. 8).
107
O Auxiliador... 1870, p. 146.
108
O Auxiliador... 1870, p. 146. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
109
O Auxiliador... 1870, p. 146. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
110
Rebouças, A. Op. cit., 1883, p. 27
111
O Auxiliador... 1875, pp. 340-341. Não foram localizados documentos de patenteamento da máquina Lidgerwood.
112
Devido à omissão da lei de 1830 quanto às formas de garantir os direitos de patentes estrangeiras, assumi neste
trabalho que o reconhecimento, quando se explicitava, restringia-se à publicação de um decreto quando
particularmente solicitado pelo patenteador estrangeiro diretamente interessado, sem passar pelo crivo da Sain.
113
O Auxiliador... 1875, pp. 448-449.
114
O Auxiliador... 1875, pp. 340-341, e Jornal do Commércio, 09.03.1886, p. 3.
115
O Auxiliador... 1875, pp. 340-341.
116
Ibid..
117
Jornal do Commércio, 09.03.1886, p. 3 . O processo de privilégio do despolpador de Manoel R. A. Vianna não foi
localizado.
118
Cf. O Auxiliador... 1876, pp. 290-292. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
119
A patente era para um “cylindro forrado com talagarça de arame de aço, e as molas rectangulares, com saliencias
digiformes, elementos mecanicos que constituem a indiscutível superioridade das machinas Lidgerwood sobre
todas as outras” (O Auxiliador... 1876, pp. 290-292).
120
O Auxiliador... 1876, pp. 290-292.
121
Ibid.
122
O Auxiliador... 1876, p. 415.
123
A Machina Feronia foi privilegiada pelo Decreto 6604, de 04.07.1867 e cedida a Moreira Cunha & C. Em
novembro de 1877, o cessionário requereu privilégio para uma inovação nela (cf. O Auxiliador... 1877, p. 533. Os
processos de privilégios do invento original e seu melhoramento não foram localizados).
124
Trata-se de um aperfeiçoamento da máquina Brazileira para descascar café, que lhe alterou também o nome original
(cf. O Auxiliador... 1877, p. 160. O processo de privilégio industrial não foi localizado).
125
Cf. O Auxiliador... 1877, p. 160.
126
Cf. Carone, E. O Centro Industrial do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Cátedra, 1978. p. 21.
176
127
Cf. O Auxiliador... 1877, p. 85. O processo dos privilégios industriais não foi localizado.
128
O Auxiliador... 1877, p. 486. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
129
Cf. O Auxiliador... 1878, pp. 122 e 147-148. O invento foi patenteado pelo decreto 6711, de 13.10.1877. Seu
processo de privilégio industrial não foi localizado.
130
Ibid. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
131
O Auxiliador... 1879, p. 195. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
132
Arquivo Nacional. PI-08179.
133
Arquivo Nacional. PI-08196.
134
Arquivo Nacional. PI-08197.
135
Arquivo Nacional. PI-08198.
136
Arquivo Nacional. PI-08196.
137
Arquivo Nacional. PI-07733. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
138
Arquivo Nacional. PI-07737.
139
Cf. O Auxiliador... 1879, p. 36.
140
Arquivo Nacional. PI-07732. Nesta pesquisa não levantei processos de concessão de importação de máquinas
apenas para o comércio. É possível que esses processos constituam acervo documental à parte, cuja consulta fugiria
ao âmbito deste trabalho.
141
A concessão de privilégio para o melhoramento no Despolpador Gordon foi obtido por Beaven pelo Decreto 7755,
de 10.07.1880. Não foi possível levantar dentre os inventos patenteados por Beaven quais foram fabricados e
utilizados na lavoura e na indústria do café. Uma pesquisa com esse fim deverá consultar fontes de empresas
industriais e comerciais de máquinas de café do período, além dos inventários de fazendas cafeicultoras. Alguns
aperfeiçoamentos de suas máquinas feitos por outros autores permitem crer que as patentes de Beaven entraram, em
grande parte, no circuito produtivo do café.
142
Correio Paulistano, 02.02.1884, p. 3.
143
Arquivo Nacional. PI-08907. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
144
Arquivo Nacional. PI-08948. É possível tratar-se do mesmo documento PI-08907.
145
Arquivo Nacional. PI-08950.
146
Arquivo Nacional. PI-00163.
147
Arquivo Nacional. PI-07409.
148
Arquivo Nacional. PI-08949.
149
Arquivo Nacional. PI-09215.
150
Arquivo Nacional. PI-07412.
151
Arquivo Nacional. PI-00425.
152
Arquivo Nacional. PI-01028.
153
Arquivo Nacional. PI-01037.
OK
177
5
A EMPRESA DA CRIAÇÃO
Chegado o momento de aterrar, goza-se de indizível alegria
em ir ter com homens estranhos, como um deus saído de
uma máquina. Em que país se está? Em que língua, alemã,
russa, norueguesa, obter-se-á a resposta?1
A segunda lei brasileira de patentes, aprovada em outubro de 1882,
marcou um novo momento da produção de máquinas para beneficiar café no
Brasil.
Sua aprovação ocorreu associada a uma expansão da lavoura e dos
negócios internacionais com o café, contribuindo para uma substancial mudança
no quadro evolutivo das patentes de privilégios de equipamentos de
beneficiamento do produto, nas duas últimas décadas do século XIX e no primeiro
decênio do século XX.
A tendência de ampliação do mercado mundial, a abundância de terras
férteis no Sudeste e o surgimento de cafés de qualidade internacional elevada
parecem ter estimulado uma oferta de máquinas à agricultura cafeeira.
A nova lei de patentes veio associada a uma fase de expansão das fábricas
de equipamentos para beneficiamento de café dirigidas pelos próprios inventores
ou por empresários que adquiriam os direitos sobre as patentes.
A nova lei confirmou os direitos de patentes internacionais. Assegurados
os princípios de reciprocidade e internacionalidade das patentes presentes na lei
anterior, o novo estatuto legal também orientou, no Brasil, a forma de
requerimento das patentes industriais já garantidas em outros países.
Vivia-se um tempo em que o conhecimento científico aplicado aos
processos industriais e aos materiais destinados às construções mecânicas eram
conhecidos dos setores “industriais” brasileiros, a par do que ocorria no exterior.
178
Não existia uma defasagem científica e tecnológica a ponto de não permitir que as
inovações mais bem-sucedidas fossem logo compreendidas e aperfeiçoadas pelos
inventores e empresas concorrentes. Isso ocorria em relação ao maquinário de
café e outros produtos agrícolas.
No século XIX, notadamente em sua segunda metade, viveu-se uma
época em que muitas das experiências científicas que culminaram em invenções
marcantes foram fruto do entusiasmo e da confiança que se disseminava na
Ciência. Acima de tudo, acreditava-se no espírito criativo de homens que, a partir
dos conhecimentos científicos e mecânicos elementares de que dispunham,
testavam combinações originais e, não raramente, chegavam a resultados
surpreendentes.
Tal foi, por exemplo, a fórmula utilizada por Santos Dumont para criar o
seu balão dirigível. Instigado pela idéia de sobrevoar os céus de Paris e retornar
ao ponto de partida, Dumont procurava utilizar-se de tudo que estivesse ao seu
alcance para “criar” a solução técnica desejada. Com esse espírito, o inventor
percorria a cidade de Paris:
Numa pequena oficina de carpinteiro, fabriquei com as minhas
próprias mãos um comprido quadro de madeira de pinho, de
seção triangular, muito leve e muito rígido. Apesar de medir 18
metros de comprimento, pesava só 41 quilos. As junturas eram
de alumínio. E para garantir a leveza, para assegurar a rigidez,
para que oferecesse a mínima resistência ao ar e mínima
sensibilidade às variações higrométricas, tive o cuidado de
reforçá-lo, não mais com cordas ordinárias, mas com cordas de
2
piano.
Excetuando-se o volume dos capitais e os mercados cativos das maiores
economias mundiais, a tecnologia brasileira não se diferenciava da estrangeira
quando sua aplicação comercial destinava-se ao uso rotineiro por setores sociais
economicamente consolidados.
179
Veja-se, por exemplo, o estágio da indústria de pianos, já de muito
fomentada em todo o mundo e no Brasil, pela prática da música no âmbito
familiar.3 Ainda em 1873, quando a maioria dos senhores de terras e escravos
habitavam as casa-grandes4, o Jornal do Commércio anunciava que
Os mais perfeitos e mais sólidos pianos, vendem-se por preços
commodos e com toda a garantia, na fabrica nacional da rua
Sete de Setembro n. 217.
N.B. - Em vista da bem montada officina, melhor do que
qualquer aqui no Rio de Janeiro, concerta-se pianos com cepos
arreiados etc., com toda a perfeição. Depósito de legítimos
Condes do Smith & Hangthon.5
Da mesma maneira, é surpreendente o volume de produtos industriais
oferecidos ao consumo doméstico strictu sensu. No mesmo período, quando a
água era servida em chafarizes, a eletricidade estava nos primeiros momentos e
apenas algumas cidades tinham iluminação a gás, outro ramo industrial buscava
amenizar as fainas do dia-a-dia dos lares cariocas oferecendo
a verdadeira machina de lavar roupa do autor Fisson, portatil,
preço muito barato em relação; a verdadeira machina de lavar
roupa do autor póde lavar e bater 100 peças de roupa em 2
horas, economizando 50% no sabão que se gasta pelo systema
ordinário, com igual economia de agua, sem o inconveniente de
rasgar ou moer a roupa como em outras machinas...6
Isso leva a crer que ao menos uma parcela da sociedade brasileira das
últimas décadas do século XIX estava relativamente acostumada a utilizar
produtos nacionais e estrangeiros de um padrão tecnológico atualizado para o seu
tempo, embora ainda convivesse com naturalidade com a escravidão dos negros
brasileiros. A documentação oficial e a publicidade daqueles anos indica que as
firmas nacionais e estrangeiras buscavam aperfeiçoar os produtos com que se
180
estabeleciam originalmente para, após a caducidade da primeira patente obtida,
garantir ao seu negócio o aval da Sain e a proteção do governo imperial através da
lei de privilégios industriais e do Código Comercial.
No âmbito da grande produção cafeeira, o quadro não era outro. A mesma
perspectiva de expansão da lavoura que incentivou o aumento da produção de
equipamentos de benefíciamento de café atuou também de forma análoga ao
motivar o fazendeiro a investir em mecanização. Os lucros que esperava obter
produzindo cada vez mais café orientavam a abertura de novas plantações; e o
fazendeiro mais empenhado na empresa buscava compatibilizar-se com as
potencialidades da terra, levando máquinas para a fazenda, além de escravos e
imigrantes.
Na maioria dos núcleos urbanos, não eram apenas as ferrovias e a mariafumaça que alteravam a rotina e a paisagem. O interesse em produzir mais café,
que orientava a vida das pessoas e transformava os campos, provocou também o
surgimento dos engenhos-centrais de beneficiamento, os quais, totalmente
mecanizados, deslocavam para as cidades uma parcela dos afazeres do campo.
À frente desse processo estavam, geralmente, homens de grande
importância local. Em São Fidélis, no ano de 1874, por exemplo, o jornal Correio
Municipal informava existirem na cidade três estabelecimentos de beneficiar o
café para exportação. Como o negócio estava em franca expansão, alguns homens
movimentavam-se:
No intuito de fundarem um estabelecimento em grandes
proporções e condigno da importância deste município, acabão
os Srs. Brandão & Balmaceda de admittirem mais dous socios
[...] Ha dias partio para a Côrte o socio gerente o Sr
Balmaceda, afim de comprar novos machinismos e uma
machina a vapor de força de 20 cavallos, devendo por 90 dias
abrirem o estabelecimento como pretendem, onde o lavrador a
par da modicidade nos preços, encontrará no mercado da côrte
181
um valor condigno do café perfeitamente preparado naquelle
estabelecimento.7
Era o surgimento do empresário do café, que, para além do comissário de
café e do traficante de escravos, atuava na “indústria” agrícola.
Mesmo a trajetória de Balmaceda no circuito da economia cafeeira
aprofundou-se na década seguinte, quando ele passou também a patentear
máquinas de beneficiar café e cevada. Em 1882, Balmaceda publicou em O
Auxiliador da Indústria Nacional um artigo no qual narrou sua experiência com o
trato do café, desde a colheita até a torrefação, sugerindo que essa operação fosse
feita em seu torrador, com o qual disputou vaga para a Exposição Nacional de
1881, representando a província do Rio de Janeiro.8
Casos como esse trazem à tona o envolvimento dos empresários do
beneficiamento do café com processos tecnológicos. As pesquisas são ainda
muito incipientes para que se possa determinar se Balmaceda realmente se
dedicava à invenção e ao melhoramento de máquinas de café e outros produtos
agrícolas; se encomendava essas invenções a outrem e as patenteava como de sua
autoria; se as máquinas eram fabricadas e vendidas ou se se limitavam ao uso
apenas local, etc.9 De qualquer maneira, essas questões são plausíveis e se
manterão até que um perfil do inventor-empresário brasileiro seja mais bem
traçado. Entretanto, desde já é possível inferir que a passagem de homens de
atividades diversas para a atividade de invenção e produção de máquinas de
beneficiamento de café se deve a fatores quase sempre específicos em cada
situação, variando a cada caso e a cada local.
A mesma ponderação é válida para o relacionamento de intelectuais e
políticos com a produção de tecnologia, a exemplo de Ferro Cardoso e
Escragnolle Taunay, que não apenas inventaram mas se envolveram em contínuo
processo de aperfeiçoamento de suas máquinas e das de outros inventores, antes e
182
depois da mudança da legislação de patentes industriais ocorrida em outubro de
1882.
Usaram ainda do prestígio político de que dispunham para influenciar na
criação de estabelecimentos modernos de produção de café, como aconteceu em
1883 com o Engenho Central de Santa Leopoldina, no porto de Cachoeiro de
Itapemirim, que foi “fundado por iniciativa e a esforços dos Srs. engenheiros Drs.
Goffredo Taunay e Silva Telles...”. Importa observar que o engenho central
funcionava em edifício de quatro pavimentos, especificamente projetado para esse
fim, em um momento em que o uso do aço estrutural era ainda um recurso
arquitetônico inédito no Brasil. O Auxiliador da Indústria Nacional assim o
descreveu o empreendimento:
A fábrica acha-se situada em um edifício de quatro pavimentos.
No subsolo estão assentados o locomóvel, da força nominal de
10 cavalos; o secador Taunay-Telles, que prepara de 100 a 120
alqueires por operação; o eixo motor e os bicos e bases dos
elevadores. No segundo pavimento acham-se o depósito de café
destinado ao secador, ventiladores, descascador e outros
aparelhos. No terceiro estão os bicos condutores do grão para
mesas onde este passa por uma operação de escolha, em que se
empregam 30 moças teuto-brasileiras. Destas mesas passa o
café para o brunidor colocado acima daquele aparelho, e dali
sai pronto para o ensacamento e pesagem. [...]
Não podemos senão desejar que os inteligentes engenheiros, a
quem é devida a fundação da primeira fábrica deste gênero no
Brasil logrem ver coroados os seus esforços por brilhantes
resultados...10
Como inventores, Escragnolle Taunay e Silva Telles patenteariam ainda
outro aperfeiçoamento à sua máquina de secar original. Em 1886, cinco anos após
o patenteamento do seu primeiro secador, suprimiram nele “os tampos perfurados
que fechavão as bases da camara de seccamento, e os... [substituíram] por duas
cabeças em forma de cone truncado (muito achatado)”11.
183
Continuando o processo de melhoramento da máquina, voltaram a
patentear, no ano em que foi extinta a escravidão, um melhoramento que
transformou sua máquina antiga. A Nova Machina de Seccar Café Taunay-Telles,
como a chamaram, baseava-se na “applicação do princípio da evaporação d’água contida no café - pelo seu aquecimento, e expulsão do vapor formado por meio de
uma corrente de ar quente”12.
A aplicação do princípio em questão dava-se num conjunto de elementos
mecânicos compostos por um cilindro que servia de câmara de secamento, um
“calorífero”, ou “uma câmara dentro da qual estão depositados os tubos, e por um
ventilador”13.
Quanto ao inventor Ferro Cardoso, sua capacidade técnica o fez ainda
criar “formas de pás, aplicação de torneiras duplas e sistema de portas” para
serem adaptadas ao Secador Prodígio14, já na vigência da nova lei de patentes.
Em 1885, no auge das devastações dos cafezais por pragas e doenças de
todos os tipos, Ferro Cardoso inventou uma fórmula química e um método de
aplicação para um “inseticida e restaurador dos cafeeiros”, que poderia ser
manipulado pelo próprio fazendeiro para adubar a terra e matar formigas.15
Na década de 1880, a oferta de máquinas de beneficiamento de café não
só cresceu como também houve uma especialização maior das empresas que
produziam máquinas agrícolas no Brasil. A partir de uma atuação específica para
a produção cafeeira, essas empresas estiveram em condições de fazer frente aos
fabricantes estrangeiros que começaram a patentear aqui os seus inventos, de
acordo com a nova legislação vigente.
É significativo que, tendo a lei de patentes entrado em vigor em outubro
de 1882, já em fevereiro de 1883 o português Antonio Francisco dos Santos
Marau obtivesse concessão para fabricar no Império a máquina Cruzeiro do Sul.
Esse descascador era conhecido dos brasileiros desde 1879, quando O
Auxiliador da Indústria Nacional publicou uma transcrição de matéria do jornal
184
português Commercial do Porto, dando conta das experiências com um modelo
de prova do invento, movido a vapor:
A máquina de que nos estamos ocupando é de ferro, e foi feita
dessa matéria apenas para ver se dava o resultado desejado
pelo seu inventor. Como esse resultado foi favorável [...] vai
agora mandar construir a mesma máquina, porém mais
aperfeiçoada, sendo então o esferóide de aço [...].
O Dr. Marau, pondo em execução o seu invento, destina-o ao
Brasil e às nossas possessões de África, onde a máquina pode
ser vantajosamente utilizada nas plantações de café.16
Ao trazer sua máquina para o Brasil, Marau não negligenciou dizer que se
destinava a “descascar e brunir café e outros grãos...” e que poderia ser movida
por máquina a vapor, força hidráulica ou qualquer outro tipo de força motriz.17 Ou
seja, era uma máquina de uso geral no meio agrícola, capaz de ser adaptada a
qualquer tipo de motricidade para atender à necessidade de beneficiamento de
diversos produtos da lavoura, inclusive o café.
Outro inventor que também não tardou em trazer seus inventos para o
Império do Brasil foi José Guardiola, da Guatemala, já consagrado no exterior.
Em 1884, foi primeiramente patenteado um “novo e aperfeiçoado descascador de
café com discos circulares”, invento possivelmente de sua autoria, pelo fabricante
de suas máquinas e detentor de algumas de suas patentes no Brasil, a empresa The
Blackman Air Propeller Ventilating Co. Ltd., de Londres. Tratava-se de um
“ventilador e aspirador ou exhauridor para seccar rapidamente cevada, [...] e
outras substancias taes que milho, café...18
A mesma empresa voltou a requerer patente em 1886, desta vez para um
“novo descascador de café cylindro-cônico [...] invenção de José Guardiola,
morador de Pariz”19. Nesse caso, mais que as características de sua máquina,
importa o relacionamento de empresas industriais dos países centrais com
185
inventores profissionais de máquinas oriundos dos países produtores de café,
como a Guatemala, cujo patamar tecnológico, supõe-se, não estava acima do
brasileiro. É possível afirmar que esses inventores, assim como os brasileiros,
criavam a partir de sua experiência empírica com o beneficiamento do café em
seus países.
No caso de Guardiola, o inventor depois passou a criar em Paris, capital
cultural da Europa, para ter seus projetos fabricados na City — Londres era a
capital empresarial e industrial do mundo. Seu movimento permite que se
imagine que a prática da invenção mecânica pertencia ao campo das atividades
mais cultuadas da Europa, ao lado da arte e da literatura. Em busca do sucesso,
uma década depois, Santos Dumont e outros inventores seguiriam o mesmo
caminho.
Já em 1889, o mesmo Guardiola, dessa vez em separado do fabricante
inglês, faria petição ao Estado brasileiro para obter garantias para um “novo e
melhorado apparelho para lavar, seccar, descascar e brunir café e outras
substancias”20.
Porém, desde antes, o Secador de café de Guardiola era fabricado em
Londres e anunciado ao mercado brasileiro, sendo também exportado para a
América Central em modelos com capacidade de secagem de café de até 10 mil
libras/dia.21
Tamanha foi a influência dessa máquina no benefício do café, a partir de
então e até meados do século XX, que Camargo e Telles Jr. afirmariam, em 1953,
que
[...] a lavoura, em geral, da Colômbia, da Venezuela, da
América Central e do México, conseguiu apoiar-se no princípio
físico-mecânico do secador conhecido por “Guardiola”, e que
tem valido como um arrimo às indústrias de secagem dêsses
países.22
186
Lidgerwood, o principal fabricante e distribuidor de máquinas de café
instalado no Brasil na década de 1860, também buscou reforçar seu espaço
comercial após a lei de 1882, patenteando uma variada gama de máquinas,
oferecidas ao mercado para fazer frente à concorrência dos novos fabricantes.
Enquanto durou a lei de 1830, seus direitos de patentes foram
reconhecidos através de decretos do governo, sem a participação da Sain no
julgamento do mérito. Naquele período, os privilégios das máquinas de
Lidgerwood devem ter sido assegurados principalmente pela ampla popularidade
de sua marca e pela ausência de um concorrente empresarial de seu porte no ramo
de máquinas de beneficiamento de café no Brasil. Torna-se tarefa complexa
relacionar a variedade de modelos desses aparelhos distribuídos por Lidgerwood,
quer os importados da Europa e dos Estados Unidos, quer os fabricados no Brasil.
Contudo, na vigência da lei de patentes de 1882, a Lidgerwood
Manufactoring Co. Ltd. faria patentear uma série de inventos que deram origem a
vários melhoramentos, entre os quais, em 1884, a Machina para despolpar café.23
No ano seguinte, a exemplo do que faziam os inventores e demais
fabricantes, a Lidgerwood já demonstrava certa preocupação em divulgar cartas
de fazendeiros que atestavam o melhor desempenho de suas máquinas. Isso
aconteceu num momento em que crescia significativamente o número de patentes
registradas por firmas no setor de equipamentos de beneficiamento do café.
Sobre o Catador Prodígio, por exemplo, que foi lançado na Exposição
Provincial de São Paulo ao preço de 295$000 (duzentos e noventa e cinco milréis), um fazendeiro dizia que
outr’ora eu tinha a sala do engenho com duas mesas cheias de
mulheres empregadas na escolha do café, hoje, graças ao seu
catador, tenho muito menos de metade do pessoal, que faz
melhor o mesmo serviço.24
187
Entre 1885 e 1902, Lidgerwood patentearia ainda quatro inovações para
máquinas descascadoras de café,25 número relativamente modesto quando
comparado a outros fabricantes e autores que disputavam o mesmo mercado. Isso
pode significar que, ainda na década de 1870, aquele fabricante tenha
desenvolvido aperfeiçoamentos em seus modelos, chegando às décadas seguintes
com uma linha de produção relativamente atualizada face às adaptações
tecnológicas promovidas no setor como um todo.
Uma outra interpretação pode levar em conta que, na década de 1870 e,
principalmente, na de 1880, as invenções de Lidgerwood patenteadas
originalmente no Brasil já tinham expirado o tempo de privilégio exclusivo e se
tornado domínio público. Isso teria, então, feito com que seu padrão tecnológico
fosse assimilado pelos autores e fabricantes nacionais.
Outro inventor e fabricante de equipamentos de beneficiamento de café
que muito prosperou na região cafeeira paulista foi a Companhia Mac Hardy, de
Campinas. A empresa de Guilherme Mac Hardy iniciou sua fase de
patenteamentos de máquinas para café logo após entrar em vigor a lei de patentes
aprovada em 1882. Isso permite supor que essa lei tenha motivado sua instalação
no Brasil, para aproveitar-se da demanda por equipamentos mecânicos de nova
geração no complexo cafeeiro.
Embora não esteja clara a atuação da firma na Escócia ou em outro país,
nota-se que, desde o início de suas atividades, a Mac Hardy possuía uma estrutura
empresarial relativamente grande.
No Brasil, a Companhia Mac Hardy funcionava como autora e fabricante
de invenções, importadora e fabricante de ferramentas e de objetos de consumo
em geral para a lavoura e a indústria, como correias, polias, canos e torneiras para
água, estopa, vidros, etc., além de também representar a marca Clayton &
Shuttlewort, fábrica inglesa de máquinas a vapor.26
188
A oficina possuía uma fundição de ferro e bronze que era dirigida pelo
sócio J. J. Simes, “cuja longa pratica em Londres, Rio de Janeiro e oito annos
nesta província, é a melhor garantia que podemos offerecer aos nossos freguezes”.
Nessa fundição “machinistas especialistas” executavam também reparos em
caldeiras e máquinas a vapor, e recebiam encomendas para construção de
qualquer peça ou máquina para a lavoura.27
Antes ainda de qualquer patenteamento, Mac Hardy já entrava ferozmente
no mercado importando máquinas de café e para a lavoura em geral de sua fábrica
na Escócia. Seus anúncios demonstram uma preocupação estratégica em ocupar
espaço num mercado em crescimento. Por isso, não hesitou em usar o expediente
da redução de preços e da liquidação dos estoques.
Num anúncio que publicou em 1883, Mac Hardy procurou afastar uma
possível má fama de seus produtos, talvez disseminada por algum concorrente.
Isso vem caracterizar a existência de uma concorrência acirrada entre os
fabricantes de máquinas de beneficiar café e outros produtos agrícolas:
convidamos todas as pessoas que desejarem possuir taes
objectos a examinarem os nossos fabricados antes de
comprarem em outras partes; as pessoas que não tem
experiência e conhecimento desses machinismos podem vir
acompanhadas de um engenheiro ou qualquer pessoa habilitada
(porém imparciaes) para verificar se os objectos são de
conformidade com nossos annúncios [...]
Fazemos o presente annúncio, porque recebemos aviso de
diversos fazendeiros, que elles foram aconselhados por certas
pessoas a não comprarem os nossos fabricados, pois não era
possível, sendo bom vendê-los pelos preços annunciados, cujas
pessoas sem dúvida tem interêsses particular em dizer o que não
é de todo inexato. Ao mesmo tempo repetimos o nosso aviso de
outróra que não temos agentes e nem pagamos comissão sobre
vendas effectudadas a pessoa alguma. Os referidos preços
porém vigoram somente até o dia 01 de abril proximo futuro,
dia em que termina nossa liquidação...28
189
No caso desses produtos em liquidação, os preços parecem ter sido
realmente convidativos aos fazendeiros, pois Mac Hardy construía máquinas com
adaptações modernas, como os descascadores dotados de elementos elásticos de
borracha, as chamadas molas americanas. Assim, um conjunto de beneficiar 400
arrobas de café por dia, composto por um descascador, um ventilador duplo e um
separador, custava Rs 1:795$000 (um conto setecentos e noventa e cinco milréis). O mesmo conjunto, com capacidade ampliada para 600 arrobas/dia, custava
Rs 2:240$000 (dois contos duzentos e quarenta mil-réis).29
As sete patentes de privilégio de máquinas de beneficiar café de
Guilherme Mac Hardy e da Companhia Mac Hardy versaram sobre equipamentos
para descascar, limpar, brunir e separar o café.
Porém, seu primeiro requerimento só ocorreu em 1885, quando a empresa
já estava solidamente implantada no mercado de máquinas e implementos
agrícolas. Em dois desses requerimentos (1887 e 1888), Samuel Beaven, inventor
profissional renomado, atuou como procurador de Guilherme Mac Hardy, o que
pode indicar ter o industrial atuado em conjunto com aquele inventor, ou ainda
ter-lhe adquirido os direitos autorais da invenção, antes mesmo do seu
patenteamento.30
Entre os autores e fabricantes nacionais destaca-se também a trajetória
tecnológica e empresarial da família Engelberg, de Piracicaba (SP). Juntos,
Evaristo Conrado, João Conrado e Pedro Alberto Engelberg patentearam mais de
11 invenções. Embora não esteja claro o início de suas atividades inventivas, as
primeiras petições parecem ter sido feitas no início da década de 1870.31
Mas em 1884 era patenteado o Apartador de Pedras, por João Conrado e
Evaristo Conrado Engelberg.32 Essa máquina era aplicada à limpeza do café coco
(café seco com polpa), separando “pedras, paos, e outros corpos estranhos ao café,
antes de ir para a machina de descascar”. Menos de dois anos após, os mesmos
autores patentearam um melhoramento dela.33
190
A respeito dessa inovação, o fabricante Engelberg, Siciliano &
Companhia, de Piracicaba, afirmou ser ela dotada de um sistema “inteiramente
original”. A sua principal vantagem era fazer a limpeza completa das impurezas
do café, dispensando a lavagem da safra, uma tarefa trabalhosa e difícil nas
fazendas com pouca água corrente.34 Em sua publicidade de 1886, os fabricantes
extrapolaram a oferta interna e externa de produtos para a lavoura do café,
oferecendo também a Machina para Beneficiar Arroz Evaristo Conrado.
Ao mesmo tempo que era patenteada e vendida no Brasil, essa máquina
era utilizada “também em diversos paízes da Europa, da América e na Índia
Oriental”35. Em 1894, já sob fabricação da Cia. Mechânica e Importadora de São
Paulo, as máquinas de Engelberg fariam grande sucesso nos Estados Unidos da
América, China e Japão e em outros países produtores de arroz. Ou seja, em meio
à década de 1880, a escravista Piracicaba, no interior paulista, exportava
equipamentos para beneficiamento de produtos agrícolas até para os Estados
Unidos da América e o Japão, que despontavam como nações industriais!
O principal reclame, no período, mostrava que os Engelberg tinham
conseguido obter na máquina uma racionalidade muito mais requerida na
produção capitalista. Com efeito, a Machina para Beneficiar Arroz de Evaristo
Conrado era
de uma simplicidade extraordinária e com uma operação faz o
serviço de custosos machinismos que custão quatro a cinco
vezes mais. Occupa apenas 1 metro quadrado de espaço pelo
que é fácil a sua installação em qualquer estabelecimento
industrial ou agrícola.36
Em 1890, Evaristo C. Engelberg patenteou, junto com Pedro Conrado
Engelberg, o Ventilador Engelberg, dessa vez em São Paulo. Tratava-se de uma
invenção original, com uma armação de madeira onde eram montados
191
1º o Cylindro cônico ou paralello, 2º as pás triangulares ou de
outra forma mais convenientes. 3º as ripas formando saliencias
no sentido de guiar o café na forma exigida. 4º o movimento
giratório do qual resulta a continuada elevação do café por
meio de pás.37
Seguindo a estratégia de buscar ampliar a gama de aplicação de suas
máquinas a outros produtos agrícolas, esse último invento destinava-se a ventilar
“café, arroz e outros semelhantes”38.
Se o Apartador de Pedras de 1884 destinava-se a livrar o café de suas
impurezas antes que fosse mandado para a máquina de descascar, o Ventilador
Engelberg, de 1893, era um invento para limpar automaticamente as cascas do
café, do arroz e de outros produtos após serem descascados.39 Um ano depois,
essa invenção receberia um aperfeiçoamento pelos mesmos autores,40 passando a
ventilar
...até mais de mil arrobas de café em 10 horas de trabalho. É o
melhor que existe. [...] Substitue com innumeras vantagens os
ventiladores dobrados ou de peneira de jogo. Não faz barulho,
não extremece a casa, não está sujeito a constantes estragos,
não atira café fora na palha e nem deixa accummular casca
dentro da casa. É de facil e constante graduação.41
Outro invento da maior importância foi o Descascador Engelberg,
possivelmente produzido em parceria pelos Engelberg e por Francisco Antonio
Siciliano como um aperfeiçoamento de um descascador já patenteado pelo último.
Do trabalho nesse aparelho pode ter saído a idéia da criação da firma Engelberg,
Siciliano & Comp., para fabricar as máquinas de ambos.42
Em 1886, a principal vantagem do Descascador Engelberg era produzir
um café descascado sem quebrar os grãos. Desde 1884, ele fora utilizado pelo
192
Comendador José Vergueiro, na fazenda Ibicaba, em São Paulo. A respeito de sua
impressão sobre o equipamento, o experiente fazendeiro escreveu ao fabricante:
de todos os descascadores de café em côco [...] não conheço
nenhum de outro systema que apresente resultado mais
favorável ao seu. Acresce têr a vantagem de ser a construcção
muito forte, de facílimo concerto e collocação, enfim, eu o
preferirei a qualquer outro dos atuais que conheço ao assentar
novo machinismo para o preparo do café.43
Esse descascador foi o carro-chefe das máquinas Engelberg-Siciliano. Em
1892 sua construção tinha sido incorporada pela Companhia Mechânica e
Importadora de São Paulo, o que possibilitou uma ampla divulgação e difusão de
seu uso pela lavoura cafeeira, principalmente a paulista.
Naquele mesmo ano, mais de mil desses descascadores já estavam em uso
na província de São Paulo. A procura pelo Descascador Engelberg parece ter
crescido substancialmente após o café nele beneficiado ter obtido a maior
recompensa na Exposição Universal de Paris.44 Em 1894, mais de três mil desses
aparelhos operavam o benefício dos cafés exportados pelo Brasil.45
O primeiro melhoramento do Descascador Engelberg foi patenteado por
Álvaro Carlos Arruda Botelho, “industrial, residente em São Paulo”, membro da
tradicional família do Conde do Pinhal, de São Carlos do Pinhal (atual São
Carlos), São Paulo. O melhoramento juntava ao cilindro original um outro
cilindro “guarnecido de dentes”, que acionava uma ou mais chapas dentadas
ou de múltiplas saliências, de modo a obrigar o café logo em
sua sahida da moega a passar entre esta chapa e o cylindro
dentado, operação esta que tem por fim descascar os grãos de
café entre o cylindro e a chapa ou chapas [...]
A construcção de tampa em duas partes separadas, para
facilitar a abertura da machina aquellas duas partes da tampa
girando sobre a dobradiça posta na caixa da machina e unidas
193
por um systema de parafusos oscillantes servindo a segurar com
manobra facil de um simples volante o fechamento da tampa.46
Para seu melhoramento, Arruda Botelho obteve privilégio exclusivo por
três anos, possivelmente para coincidir a expiração do prazo da patente de
melhoramento com o prazo da patente original, ficando ambas em domínio
público ao mesmo tempo.
O aperfeiçoamento seguinte foi realizado pelos próprios Evaristo e Pedro
Alberto Engelberg, em 1900. Demonstrando preocupação em dotar a sua máquina
antiga com peças fabricadas com novos materiais e pelos novos processos de
tratamento térmico que surgiam, tais como para o aço e suas ligas, o
melhoramento mudou o nome da máquina para Novo Descascador Engelberg.
Igualmente direcionada para descascar “café, arros e outros grãos” a nova
máquina tinha por características principais
1º as saliências nas chapas do cylindro por suas formas
especiaes, 2º A peça que chamamos de pente, com especialidade
as saliencias de aço temperado [...], 3º A construcção especial
do registro da entrada do café, 4º O alçapão da pressão [...] na
saída do café...47
Enquanto isso, o inventor Francisco Antonio Siciliano, parceiro dos
Engelberg no descascador original, não parou de aperfeiçoar sua máquina. O
melhoramento que apresentou em 1906 era um Descascador Francisco Siciliano
Melhorado, cuja inovação consistiu na “inclinação mais accentuada das barras
descascadoras helicoidais [...] sobre as geratrizes do cylindro descascador...” do
Descascador Engelberg-Siciliano antigo.48
Porém, desde 1893 a Cia. Mechânica e Importadora de São Paulo
anunciava-se como os “únicos fabricantes dos afamados Descascadores
Engelberg (Siciliano)”49. A empresa, que, além dos equipamentos Engelberg,
194
produzia também máquinas de diversos outros autores, era dirigida por A.
Siciliano, provavelmente membro da família de Francisco Antonio Siciliano — ou
o próprio —, o que pode indicar que a associação entre os inventores gerou uma
profícua carreira tecnológica entre os Engelberg, enquanto Siciliano seguia mais
pelo ramo empresarial, partindo da industrialização dos próprios inventos para,
em seguida, adquirir e fabricar patentes alheias, conforme a lei vigente.50
Os Engelberg também fundaram sua própria empresa industrial, a
Engelberg Irmãos, com sede à rua Major Sertório 45 e 47, em São Paulo. Em
1898, a fábrica produzia o Ventilador Engelberg e suas versões.51
A partir das invenções de Engelberg, as patentes brasileiras abriram um
caminho de expansão empresarial para o exterior. Em 1888, o engenheiro
mecânico e inventor Jorge P. Tebyriça52 organizou a empresa The Engelberg
Huller Co., com sede em Syracuse, estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos da
América.53
Nessa empresa, as máquinas Engelberg para arroz e para café passaram
por inovações feitas pelo inventor Carlos E. Lipe, de Syracuse, e as novas versões
fabricadas nos Estados Unidos da América ficaram conhecidas no Brasil como as
“machinas Engelberg americanas”, que eram aqui distribuídas, no início do século
XX, por F. Upton, de São Paulo.
Segundo um anúncio de F. Upton, de 1904, os equipamentos de descascar
café de Engelberg eram
uzados em todos os paízes do mundo onde se cultiva café e
arroz, desde 1888. [...] estes descascadores, pode-se dizer que
já são muito conhecidos no Brasil visto que são nem mais nem
menos do que as machinas antigas ‘Engelberg’ muito
melhoradas e aperfeiçoadas...54
195
Fruto de diversos aperfeiçoamentos baseados no Descascador EngelbergSiciliano, o Descascador e Polidor de Arroz no 1, produzido por The Engelberg
Huller Co., granjeou o primeiro prêmio em sua categoria nas exposições
industriais de Baton Rouge, Louisiana (1890) e Atlanta e Georgia, (1895), assim
como na Exposição do Cairo (1900). Em 1904, os descascadores eram usados em
lugares tão díspares como Bebedouro, Laranjal e Tatuí, em São Paulo, Nova
Iorque, Bucaramanga, na Colômbia, e Honolulu.55
Evaristo Engelberg, porém, não havia encerrado sua série de nove
patenteamentos de invenções e melhoramentos. Em 1908 voltou a requerer
patente para o que chamou Máquina Aureo Engelberg, uma “máquina de
beneficiar café, arroz e outros grãos”56. Segundo o autor, essa nova máquina era
uma invenção original de beneficiar café, devido aos pontos característicos de sua
construção geral, ao movimento do tubo da parte inferior, à multiplicidade dos
depósitos com as “chapas escamosas” e os furos, etc.
Enquanto isso, a Cia. Mechânica e Importadora de São Paulo seguia
atuando como inventora ou fabricante de máquinas de outrem. Até 1909, a
empresa requereu e obteve onze patentes de privilégios de fabricação de
invenções ou melhoramentos de máquinas, a maioria descascadores de café.57
Entre essas invenções, algumas alcançaram notoriedade pela excelência
da qualidade do café que produziam à época em que foram lançadas. O caso do
Secador Augusto é exemplar. Essa máquina foi desenvolvida pelo engenheiroinventor Augusto Ferreira Ramos, de Ribeirão Preto (SP), e patenteada em 1893.
Segundo o autor, tratava-se de um “aparelho destinado a produzir o
secamento do café e outros grãos”. O secador
Consta essencialmente de uma calha ou bica, de secção
circular, semicircular ou polygonal, commumente rectangular,
ou de qualquer outra forma, à qual se imprime, por meio de uma
manivella, de um excentrico, ou por qualquer outro dispositivo
mechanico, um movimento alternativo (de vai-vem) fazendo
196
d’esse modo avançar, de uma extremidade à outra, o café ou
qualquer outro producto introduzido.58
Basicamente, a máquina era composta de uma “moega de alimentação”,
de um “ventilador” e “de um elevador destinado a conduzir novamente à moega
de alimentação, o cafe que já percorreo a bica, afim de obrigal-o a repetir o
trajecto”59.
No ano seguinte, a máquina já funcionava em Cravinhos e Rio Preto, nas
fazendas de Joaquim Thimotheo de Araújo, nas propriedades do Dr. Jorge
Miranda em Rio Preto e São Simão, e nas fazendas do comendador José Ribeiro
de Freitas, na região de Araraquara, e na Companhia Agrícola de Ribeiro Preto.
Além disso, várias outras unidades estavam já encomendadas e em vias de serem
instaladas.60
Ainda em 1894 o Secador Augusto recebeu um aperfeiçoamento que
dobrou a capacidade do depósito do café para o secamento, o qual, dividido em
dois compartimentos, funcionava alternadamente. Além disso, o aparelho recebeu
também
[...] dois elevadores, sendo um de cada lado da bica oscillante
[...] A suspensão da bica oscillante por meio de estribos,
longarinas e supportes oscillantes de madeira; (..) um forno de
duas camaras, sendo uma da fornalha e outra do deposito; [...]
uma manga accompanhando o orifício praticado na chapa de
topo da bica oscillante...61
Após essas modificações, a Cia. Mechânica e Importadora de São Paulo,
fabricante exclusiva do Secador Augusto, passou a requerer que os fazendeiros
fizessem antecipadamente as encomendas com vistas às safras futuras, para que
pudessem ser atendidos sem atropelos e sem interromper a secagem do café nos
dias chuvosos. Segundo a empresa, em 1898, mais de cinqüenta desses aparelhos
equipavam fazendas cafeeiras do Sudeste.
197
Para promover as vendas do Secador Augusto, a Cia. Mechânica fazia
publicar nos jornais cartas de fazendeiros que, como Bento F. de Paula Souza, de
Remanso, estavam maravilhados com as possibilidades de ficarem independentes
das condições climáticas. Em relação ao Secador Augusto, Paula Souza afirmou
ter
[...] seccado nelle café roxo vindo da roça, apenas com um dia
de terreiro, café encharcado d'água e café de meia secca.
Em todos elles tive bom resultado. Gastei 18 horas no café de
um dia de terreiro; 22 horas em café encharcado e 8 horas em
café de meia secca. A fornalha foi alimentada com a palha e
muito pouca lenha. O manejo do machinismo é fácil: qualquer
possoa intelligente póde em 24 horas ficar preparada para
fazel-o funccionar. Estou muito satisfeito com o que aqui tenho e
penso em ser esta machina utilíssima para a lavoura,
indispensável mesmo, nos annos em que as chuvas comecam
cêdo, ou quando as safras grandes obrigam o fazendeiro a
prolongar a colheita até o tempo das águas.62
Outra máquina que obteve grande repercussão no circuito de benefício do
café foi o Separador Monitor, uma “maquina destinada a separar e classificar
café” patenteada em 1901 por Frank W. Holbrook, residente em São Paulo.63
O aparelho, que reunia as funções de separador de impurezas e
classificador de café, tinha como características: a) um “aparelho de distribuição”
que igualava a entrada do café; b) a disposição das caixas de ar, que
possibilitavam “vento constante e facil de regularisar” e c) um movimento
oscilante equilibrado provocado pela posição dos “caixilhos de peneiras”, que
deixavam a máquina operar com suavidade e sem trepidação, fazendo funcionar
automaticamente as escovas de limpeza das peneiras por “meio dos parafusos de
roscas direita e esquerda”64.
Esses elementos mecânicos possibilitavam ao Monitor realizar cinco
classificações, separando em uma só operação os cafés do tipo chato graúdo,
198
mediano, miudinho, moka graúdo e moka miúdo. Na operação de limpeza, eram
extraídos “paus, pellículas, café chocho, casquinha solta, côcos e quaesquer outros
fragmentos leves e corpos extranhos”65.
Além de todas as vantagens, a máquina ocupava área de dois metros
quadrados, sendo muito fácil de operar. Segundo seu fabricante, o Monitor era um
aparelho imprescindível para todo “negociante”de café.66 Para comprovar sua
aceitação nas diferentes atividades com o café, desde a fazenda até o engenhocentral, publicou extensa lista de possuidores do aparelho no Correio Paulistano,
demonstrando que o Monitor, apenas um ano após seu patenteamento, já era
largamente utilizado em São Paulo, nas fazendas de
Dr. Antonio Paes Barros Sobrinho, Campo Alegre.
Dr. Alfredo Jordão, Cravinhos
Antonio Penteado, Sertãozinho
Antonio José do Nascimento, Guariba
Dr. Augusto Barbosa, Corumbatahy
Major Antonio Barbosa Ferraz Jr, Cravinhos
Dr. Antonio Luiz dos Santos Werneck, Capim Fino.
Barão de Mello Oliveira (herança), Oliveiras
Braga & Cunha, Estacão Floresta
Dr. Bento de Barros, Campo Alegre
Bicudo & Branco, Carlos Gomes
Barroso & Cia, Ribeirão Preto
Baroneza de Grão Mogol, Morro Grande
Calazans de Negreiros & Cia, Santa Gertrudes
Conde do Pinhal (herança), Tibiricá
Dr. Chrispiniano M. Siqueira, Iracema
Conceicão & Cia, Santos
Dr. Candido José de Andrade, Morro Grande
Cia . Agrícola Fazenda Dumont, Ribeirão Preto.
Cia. Mechânica e Importadora de São Paulo, Engenho Central
de Beneficiar e Rebeneficiar, Santos
Dario Ferreira Novaes, Sousa Queiroz
Donato Tossoli, Rincão
Ellis & Netto, Santa Eudoxia.
E. Johston & Cia, Engenho Victória, S. Carlos
Eduardo Prates, Santa Gertrudes
Tenente-Coronel Eloy Pompeu de Camargo, Campinas
Francisco Hayden, Santos
Dr. Francisco V. de Paula Machado, Araras
Dr. Firmino M. Pinto, Visconde de Pinhal
Dr. Francisco A. Sousa Queiróz Netto, Treze de Maio
Dr. Francisco Antonio Sousa Queiroz, Treze de Maio
Francisco Maximiano Junqueira, Villa Bonfin
199
Cel. Henrique da Cunha Bueno, Ilha Grande
Dr. José de Sousa Queiroz, Leme
J. Oliveira & Cia, Araras
Joaquim Piza, Banharão
Joaquim da Cunha Bueno, Buenopolis
José Augusto de Oliveira, Jaboticabal
Dr. João Baptista de Mello Peixoto, Ribeirão Bonito.
Joaquim F. de Andrade Junqueira, Vila Bonfim
Dr. José Costa Machado e Sousa, Vila Costina
Joaquim da Costa Monteiro, Canoas
Dr. José Joaquim Cardoso de Mello, Bom Jardim
Levy & Irmão, Cordeiro
Dr. Mario Paes de Barros, Falcão Filho
Persio Pacheco e Silva, Vallinhos
Queiroz & Barros, Descalvado
Roberto Clark, Sarandy
Dr. Rodolpho Coimbra, S.Bento
Coronel Serafim Leme da Silva, Tombadouro
Dr. Theobaldo Sousa Queiroz, Pedreira
“The S.Paulo Coffee States C. Ltd”, Serra Azul
D. Veridiana Prado & Filhos, Porto M. Prado.67
Esses fazendeiros e empresários não pareciam preocupar-se com o preço
relativamente alto do Separador Monitor. Em 1905, após redução dos preços, o
modelo no 5, para 550 a 600 arrobas/dia, custava Rs 3:250$000 (três contos
duzentos e cinqüenta mil-réis) enquanto que o no 6, para 650 a 750 arrobas/dia,
custava Rs 3:500$000 (três contos e quinhentos mil-réis).68 Porém, a patente dessa
máquina parece ter sido vendida a uma empresa estrangeira, que, no entanto,
cedeu à Cia. Mechânica e Importadora de São Paulo os direitos de fabricação e
comercialização do produto. Num anúncio, a própria Cia. Mechânica alertava que
a The Hunthey Mfg Co. Limited procederia “com todo o rigor da lei contra os
contrafactores de seu privilégio e seus cúmplices”69.
Ainda nesse caso, é importante notar que, considerando preliminarmente
ser a The Hunthey uma empresa estrangeira, a lei de patentes de 1882 lhe
assegurava os direitos de privilégio de uma invenção criada e fabricada no Brasil,
com ampla aceitação no mercado. A aquisição dos direitos de patente do
Separador Monitor por uma empresa estrangeira vem confirmar o padrão
tecnológico internacional dessa inovação.
200
As máquinas de beneficiar alteraram a estrutura das fazendas de café. O
cenário rural aos poucos deixava de ser formado apenas pela “casa de morada”,
pelas “senzalas para grande escravatura” e pelos “engenhos de soccar café”. Na
última década do século XIX, muitas fazendas, principalmente aquelas localizadas
próximo às ferrovias, iam sendo formadas de acordo com uma concepção mais
aproximada de empresa agrícola. Elas passaram a ser construídas com “casas de
colonos nacionaes e estrangeiros” e a própria força motriz, antes extraída da
“aguada” dos rios ou — no outro extremo — da máquina a vapor, na nova
fazenda requeria planejamento e investimento especial, inclusive para
acompanhar a evolução constante das máquinas de café. Assim, uma grande
fazenda do município de São Paulo foi vendida, em 1896, no momento em que
estava
[...] em construcção a casa para o machinismo de beneficiar
café que tem força motora: é fornecida a água tirada de um
tanque que tem a profundidade de 13 metros por 80 metros de
largura e 300 de comprimento, assim como outras muitas
benfeitorias...70
É difícil imaginar que motivação teria levado um fazendeiro a
empreender projeto energético de tamanhas dimensões. Entretanto, o exemplo
dessa fazenda dá idéia aproximada de que, no Brasil do século XIX, os homens
também se lançavam em desafios descomunais em relação às dimensões físicas e
às forças da natureza.
A produção de máquinas para atender à lavoura de café continuava
gerando outras associações entre inventores e empresas. A mais profícua delas
parece ter sido protagonizada por Pedro Antonio Santangelo e a Cia. Mechânica e
Importadora de São Paulo, que produziu a maioria dos vinte e três inventos e
inovações de aparelhos de café que o primeiro patenteou.
201
O primeiro deles foi em 1891, quando o inventor de São João do Rio
Claro (atual Rio Claro) obteve o privilégio para o Ventilador-Escolhedor
Santangelo71, uma máquina para “secar o café” e separá-lo das suas impurezas
mais comuns . Pela sua descrição o invento era dotado de
1º separador tubular rotativo ou devoluto, de chapas furadas ou
tecido de qualquer especie... 2º uma caixa geral... 3º uma
veneziana rotativa contínua funcionando sobre cylindros ou
rodas endentadas de encontro ao ar impellido pelas
abanadeiras... 4º um ventilador para a produção de ar... 5º um
aspirador para receber o ar, produzido pelas abanadeiras em 4
e as impurezas e palhas do café em côco ou descascado...72
Dois anos após, Santangelo melhorava a distribuição do café no interior
da máquina, além de também mudar a forma como ela recebia o café.73 Após mais
dois anos, com novo melhoramento, aumentava a capacidade do VentiladorEscolhedor Santangelo, tornando-o mais simples e robusto e alterava a disposição
de diversas peças, buscando melhorar a separação das pedras e objetos estranhos
ao café.74
Dessa máquina, a Cia. Mechânica e Importadora de São Paulo, seu
fabricante, diria estar atendendo com muita presteza não só às fazendas de café
como também às indústrias, que a preferiam por ser o café nela beneficiado
“classificado por importantes comissários de Santos como superior e como se
fosse caprichosamente lavado, apesar de ser café de terreiro”75.
A invenção do Ventilador-Escolhedor Santangelo veio abrir caminho
para uma série de inventos feitos pelo autor, levando-o a atuar também em
máquinas para as demais operações do beneficiamento. Partindo do sucesso dos
lançamentos anteriores, o autor patenteou uma série de máquinas por quase toda a
última década do século XIX e início do XX.
Em 1892 foi a vez do Ventilador Separador Santangelo, uma “máquina
destinada a ventilar café descascado”76. Essa era uma operação importante pois
202
enquanto a invenção anterior buscava arejar o café e separar suas impurezas
preparando-o para o descascamento, essa última separava-o de suas cascas e o
mantinha livre da umidade, para que não deteriorasse. Essa mesma máquina
sofreu um melhoramento no ano seguinte77 e outro em 1897, com o objetivo de
torná-la mais sólida e mais simples, aumentado-lhe a capacidade, além de fazê-la
separar por tamanhos o café tanto em coco como o já descascado.78
Esse último melhoramento, assim como o anterior, constituía elemento
característico de aperfeiçoamento já patenteado pelo autor para o VentiladorEscolhedor Santangelo, sua primeira invenção. Assim, o autor aproximava as
funções de suas diferentes máquinas a partir das mesmas inovações.
No comércio, o Ventilador Separador Santangelo era oferecido como um
aparelho especial para eliminar o “marinheiro, o café descascado e as palhas
grossas, sejam de café sêcco, encouraçado ou rijo sem expellir para fóra nenhum
grão por pequeno que seja”79.
Até 1907, os inventos de Santangelo sofreram muitas adaptações e
aperfeiçoamentos, que foram sendo nomeados por letras do alfabeto, formando
uma rede complexa de aparelhos privilegiados. Em 1900, Santangelo requereu, de
uma só vez, privilégio para sete máquinas, a começar pelo Separador Cilíndrico
Santangelo, que chamou Máquina A.80 As demais petições referentes a
ventiladores-separadores desse pacote foram para o Ventilador Duplo
Santangelo81, o Separador Cilíndrico Completo Santangelo82, o Ventilador
Singelo Santangelo83 e para um melhoramento no Ventilador-Separador
Santangelo.84
De acordo com o anúncio publicado pela Cia. Mechânica e Importadora
de São Paulo, esses ventiladores tiveram grande aceitação na lavoura e nos
engenhos centrais de benefíciamento de café, sendo utilizados em boa parte dos
municípios produtores de café de São Paulo e adjacentes, conforme a
203
Lista dos usuários do Ventilador Santangelo
Aurélio Civatti-Mattão,
Dr. Augusto Barbora-Corumbatahy,
Baroneza de Piracicaba-Rio Claro,
Dr. Carlos Paes de Barros-Tombadouro
Tenente-Coronel Eloy Pompeu de Camargo-Campinas,
Dr. José de Paula Leite-S.Bento,
José Soares Hungria-Morro Alto,
José Augusto de Oliveira-Jaboticabal,
Dr. Joaquim Cardoso de Mello-S.Paulo dos Agudos,
João Liberato de Macedo & Irmão-Itatinga,
João Teixeira de Carvalho-Cravinhos,
Luciano Esteves dos Santos-Limeira,
Monteiro de Barros & Irmão-Rocinha,
Dr. Olavo Egydio de Sousa Aranha-Cordeiro,
Vespasiano Vaz- Guiabra.85
Outras máquinas para melhorar a limpeza do café desenvolvidas e
aperfeiçoadas pelo mesmo inventor no período continuavam tendo boa aceitação
no mercado, como se deduz da lista de
Usuários do Escolhedor de Pedras Santangelo
Dr. Alberto Penteado-Porto Ribeiro,
Alberto Sahn-São João da Bocaina,
Antonio Penteado-Ribeirão Preto,
Barão de Piracicaba-Rio Claro,
Dr. Carlos Paes de Barros-Tombadouro,
Comp. Agrícola Fazenda Dumont-Ribeirão Preto,
Coronel Diogo Salles-Annapolis,
D. Francisca Barbosa Moreira-Riberão Bonito,
J. Nicola & Irmão-Areado,
José Soares Hungria-Morro Alto,
José Moraes Salles- Bonfim,
José Rodrigues de Lima-Água Vermelha,
Dr. José Estanislau Amaral Filho-Capivary,
João Teixeira de Carvalho-Cravinhos,
João Evangelista do Amaral-S.João da Bocaina,
Dr. João Baptista Rocha Conceicão-Botucatu,
Luiz de Queiróz Telles-Ribeirão Preto,
Lemos & Santos-Pocos de Caldas,
Manuel Ferreira do Prado-Pontalete.86
204
Ainda no pacote de invenções de 1900, o autor requereu também
privilégios para máquinas com outras funções, que abrangiam as principais fases
da industrialização do café para exportação. Desse conjunto constam as petições
para privilégio de invenção do Descascador Santangelo87 e do Brunidor de Café
Santangelo — Maquina tipo E.88
No ano seguinte, o inventor voltaria a requerer um novo pacote de
privilégios, que foi nomeando com letras, de acordo com a função da máquina e
da capacidade de produção. Um novo Ventilador Singelo Santangelo recebia
agora o denominação de Máquina B, destinando-se a simplesmente ventilar o
café.89 Um outro Ventilador Duplo Santangelo era também patenteado.90
No campo específico dos separadores de impurezas e separadores de café
por tamanho do grão, constaram do mesmo patenteamento o Catador Uniforme
Santangelo (Máquina F)91, um separador para café92, um novo Separador
Cilíndrico Completo Santangelo — Máquina G,93 o Engenho de Café Brasileiro,
um aparelho “destinado a estabelecer os tipos e classes do café”94. Nesse
momento, Santangelo aproveitou para também requerer privilégios industriais
para a nova versão do Descascador Santangelo, que chamou de Máquina C,95 e
para a nova versão do Brunidor Santangelo — Máquina E.96
Em 1908, as máquinas descascadoras produzidas pela Cia. Mechânica e
Importadora de São Paulo podiam ser encontradas no comércio em versões A, B e
C, produzidas com armação de madeira, enquanto também a versão tipo B para
300 a 400 arrobas/10h e tipo C para 500 a 600 arrobas/10h eram fabricadas em
armação de ferro.97 Essa forma de nomenclatura usada pela empresa incluía,
possivelmente, não apenas máquinas criadas por Santangelo mas também inventos
de outros autores fabricados e comercializados sob seus auspícios.
Além dos inventores e empresas fabricantes de máquinas de
beneficiamento de café já vistas, outra da maior importância pelo seu desempenho
foi a Companhia Arens, que sucedeu a Arens & Irmãos, fundada em Jundiaí, por
205
volta de 1873. Engenheiros de construção de máquinas, atendiam a encomendas
de construção e reparos, além de também serem importadores de diversos
produtos mecânicos e os únicos representantes no Brasil das máquinas a vapor do
fabricante inglês Marshall Sons & Co.98 A Companhia Arens registrou vinte
processos de privilégio para suas máquinas e melhoramentos, atuando
incisivamente no mercado desses produtos.
As primeiras máquinas de Arens de que se tem notícia foram patenteadas
ainda sob a lei de 1830. Em 1879, a empresa obteve direitos exclusivos de
fabricação para “os reguladores de chapas de descascadores de café...”. Antes que
a nova lei de patentes tivesse sido aprovada, Arens conseguiu assegurar também
os direitos para o Catador Pneumático, o Teclado para Despolpadores e um
“descascador de café”, cujas patentes foram requeridas em setembro de 1882.99
Para construir o Catador Pneumático, os inventores realizaram “grandes
estudos e experiências”, com o intuito de proceder à “catação” de três tipos de
café: “maior”, “menor” e o “preto miudinho, quebradinho”, além de também
eliminar pela saída do ventilador da máquina todas as impurezas.100
Pouco depois, fariam patentear o Catador Inclinado, que explicaram
consistir “n’uma armação e caixa A horizontal feita de madeira com um tambor
para receber uma ventaneira de quatro pás B... [que] trabalham com a velocidade
de 300 a 400 voltas por minuto”101.
Nesse aparelho, a separação dos grãos graúdos dos “inferiores” se dava
primeiro através da ventilação. Após a limpeza, o catador lançava o café em
peneiras de classificação102.
Quanto ao Teclado para Despolpadores, tratava-se de um elemento
mecânico feito de materiais de uso mais atualizado e adaptável às máquinas
despolpadoras existentes. Nesse caso, a principal motivação para o seu
aperfeiçoamento continuava sendo os problemas de rigidez dessas máquinas, que
206
não se adaptavam aos diferentes tamanhos dos grãos de café. Assim, a invenção
visava a
[...] empregar em despolpadores teclados de ferro, metal
branco, amarello, ou outro [...] similhante as quaes recebem
elasticidade por meio de molas de arame temperado ou
borracha, para cederem ao grão verde ou secco de differente
tamanho e resistencia, que não pode nem deve ser despolpado e
d’esta forma escapão à ação do cylindro, offerecendo,
entretanto, os teclados resistencia bastante para despolpar todo
o café maduro denominado cereja, evitando mesmo a quebra
dos grãos bons e de regular tamanho.103
As inovações feitas nas máquinas de Arens visando a melhorar o
descascamento do café tiveram prosseguimento com a Máquina Progresso para
beneficiar café, de 1885.104
Em 1890 a Companhia Arens patenteou um “novo descascador de
café”105 e atuou como procuradora no patenteamento da invenção de Luis
Rivinius, um aparelho para descascar café batizado de Descascador Hércules.106
Posteriormente, em 1903, criou uma inovação para as chapas dos descascadores
de café, o Systema Chapa Couraça, que possibilitou um melhor desempenho das
máquinas descascadoras. Segundo os autores, o sistema apresentava as seguintes
vantagens e características:
1) nas novas chapas podemos graduar a posicão das mesmas
para com a esteira independente da elasticidade das molas.
2) Pode-se além disso fazer as mollas mais molles ou duras,
conforme exige o café, independente da posição das chapas
3) Graduam-se as chapas e molas facilmente com os dedos, não
precisando chave com trabalho penoso para esse fim.
4) Toda a superfície das chapas é elástica, o que não se dava
nas antigas, nas quaes as cabeças dos parafusos quebravam
café.
207
5) A chapa é de aço, dobrada e temperada, tornando-se uma
verdadeira couraça, de forma que dura quatro vezes mais que
as antigas
6) Devido à solidez, as chapas não alteram sua posição, visto
não poderem deformar-se com o peso do café - condição
essencial para o bom descascamento.
7) O systema de chapa couraça, podemos applicar a qualquer
systema de descascador de chapas e esteiras seja de nossa
fabricação ou de outrem.107
Com essa inovação, os autores acreditavam assumir a liderança
tecnológica e mercadológica da produção de descascadore,s tendo por base seu
aparelho já patenteado:
Do exposto resulta que o nosso descascador conico que por
causa da excellente graduacão externa, por muitos lavradores é
considerado o melhor existente, com a applicacão das novas
chapas couraças, não tem mais rival [...].108
A Companhia Arens desenvolveu também uma linha de secadores para
atender às necessidades da lavoura de café. O primeiro deles foi construído na
Inglaterra. Para testar sua eficiência, o secador foi instalado na fazenda do coronel
Antonio Leme da Fonseca, na estrada Monte Serrat, perto de Jundiaí. Uma vez
aprovado, os fabricantes deixaram uma amostra do café na redação do jornal
Correio Paulistano para ser apreciado pelos fazendeiros e interessados.109
A primeira petição de privilégio para esses secadores foi feita para o que
os autores descreveram como “aparelhos para secar café e outros frutos, grãos, ou
materiais semelhantes”110. Um ano após, em 1893, patentearam e produziram o
Novo Secador Arens, ainda “um aparelho para secar café e outros grãos”111. Pela
publicidade do aparelho, sua capacidade de secagem variava entre 8 e 10 horas
para o café cereja e entre 4 e 6 horas para o café já despolpado, sem alteração da
cor ou do aroma dos grãos.112
208
No intuito de tornar essa máquina bem conhecida e adquirir a
confiabilidade da praça, ela foi instalada agora não mais numa fazenda, mas no
Engenho Central da Providência, na margem do Estrada de Ferro Leopoldina,
Minas Gerais, onde os interessados apreciavam todas as fases da operação.113
Quatro anos depois, esse secador seria ainda aperfeiçoado através dos
“melhoramentos em cilindros para secar café e outros grãos e materiais
semelhantes”114.
Possivelmente, o último separador de café fabricado por Irmãos Arens foi
o Separador Guarany115. Além de funcionar nas fazendas, esse separador era
também usado pelos exportadores nos armazéns do Rio de Janeiro.
Os fabricantes anunciavam sobre esse aparelho uma perfeita classificação
do café, solidez e suavidade de funcionamento, facilidade de intercambiamento
das esteiras, de acordo com o tamanho do café a separar. Dessas vantagens,
advinha ser o Guarany de “absoluta superioridade [...] sobre todo e qualquer
separador actualmente fornecido por outras casas”116.
Ainda que neste estudo não se tenha objetivado pormenorizar a
globalidade dos registros de invenções e aperfeiçoamentos em máquinas de
beneficiar café entre 1870 e 1910, é necessário esclarecer que a análise aqui
apresentada do processo de patenteamento e fabricação desses equipamentos no
Brasil não é definitiva.
Neste capítulo, buscou-se demonstrar os inventores e fabricantes mais
destacados em suas conexões com a produção do café para o mercado exportador,
enfatizando um relacionamento tecnológico abrangente entre inventores e
fabricantes nacionais e estrangeiros. A partir da aprovação da lei de patentes de
1882, homens e empresas concentraram-se principalmente na região de Campinas,
aproveitando-se da expansão incessante da fronteira agrícola que se processava
em todo o Sudeste brasileiro.
209
Pelo quadro apresentado abaixo constata-se que, entre 1883 e 1910, ou
seja, a partir da entrada em vigor da lei de patentes de 1882 até o final do período
deste estudo, foram patenteadas 419 invenções e aperfeiçoamentos em máquinas
de beneficiar café, contra 43 no período de 1873 até 1882. Sob a lei de 1882, a
base inventiva e industrial do benefício de café moveu-se do Rio de Janeiro para a
província de São Paulo, em meados da década de 1880, quando as fábricas e os
inventores deixaram a Corte e acompanharam a construção da infra-estrutura dos
transportes na região das lavouras, sobretudo as paulistas.
ORIGEM DAS PATENTES DE INVENÇÕES E APERFEIÇOAMENTOS DE MÁQUINAS DE
BENEFICIAMENTO DE CAFÉ CONCEDIDAS DE ACORDO COM A LEI 3.129 DE 14.10.1882, NO
PERÍODO DE 1883 A 1910*
ANO
Rio de Janeiro
São Paulo
Minas Gerais
1883
1884
1885
1886
1887
1888
1889
1890
1891
1892
1893
1894
1895
1896
1897
1898
1899
1900
1901
1902
1903
1904
1905
1906
1907
1908
1909
1910
6
5
1
4
8
4
4
5
15
14
13
13
20
16
15
11
3
12
7
12
12
10
11
11
14
6
10
9
5
7
1
3
2
3
4
5
6
5
1
2
3
2
2
1
1
3
5
5
1
5
1
6
2
3
Espírito Santo
Bahia
Santa
Catarina
Exterior
2
1
2
4
1
3
1
4
1
1
1
2
3
1
2
7
2
1
1
2
3
1
3
1
1
1
2
1
3
1
3
1
1
210
TOTAIS
82
272
24
1
1
1
38
(*) Tabela organizada a partir do acervo do Arquivo Nacional/Seção de Privilégios Industriais
Assim, a oferta de maquinário acompanhou a própria ampliação da
produção cafeeira de cada região: os fabricantes de São Paulo requereram 64,9%
do total de privilégios industriais concedidos; o Rio de Janeiro requereu 19,6%
das patentes, e Minas Gerais, 5,7%. Em outras províncias cafeeiras, as petições
foram residuais. Caso tenham ocorrido invenções em maior número, é possível
que a centralização do processamento na Corte tenha distanciado os inventores
dos trâmites legais.
Quanto aos registros de inventores e empresas estrangeiras, sua pequena
participação confirma ter sido a formação da indústria de máquinas de beneficiar
café um processo endógeno à sociedade brasileira.
Enquanto as grandes firmas industriais se consolidavam no mercado da
tecnologia das máquinas de beneficiamento, a experimentação também
continuava nas oficinas do interior de muitas fazendas e cidades, em outras
regiões brasileiras, a exemplo da “Colônia Leopoldina”, na Bahia, onde Emílio
Krull criou uma “nova máquina de descascar café”, em 1890.117 No Espírito
Santo, Eduardo Vicente D’Auzac, de Cariacica, patenteou o Descascador
Cariacicano, para café e arroz, em 1892.118 Bertoldo Kellner, de Blumenau, Santa
Catarina, patenteou a Máquina Ideal, para “beneficiar café”, em 1902.119 Em
Minas Gerais, Lobo & Spínola, de Leopoldina, patentearam, entre 1899 e 1902, a
Machina Spínola para beneficiar120, e o Separador-Catador Lobo Júnior para
limpar e selecionar café121. No Rio de Janeiro e em São Paulo muitas outras
patentes de pequenos inventores foram requeridas.
Aos poucos, a máquina de beneficiar café ocupou um lugar central na
fazenda. Não por acaso, um fazendeiro de Campinas promoveu uma grande festa
para inaugurar um secador de café. Tão especial fora aquela ocasião que o
211
fazendeiro fez servir três banquetes: no terreiro serviu os escravos; na casagrande, serviu os colonos e os convidados especiais.
Em salas separadas, naturalmente!122
NOTAS
1
Dumont, A.S. Op. cit., p. 90.
2
Dumont, A. S. Op. cit., p. 145.
3
Para uma melhor compreensão da vida cotidiana familiar e pública na cidade do Rio de Janeiro, a partir da última
década do século dezenove, consultar: ARAÚJO, Rosamaria B. de. A vocação do prazer. O Rio de Janeiro
republicano. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.
4
Para minha orientação, a melhor referência a esse respeito continua sendo a obra de Freire, Gilberto. Vida social no
Brasil nos meados do século XIX. 2a ed., Recife, IJNPS/Artenova, 1977.
5
Jornal do Commércio. 05.12.1873, p. 5. Grifei officina para enfatizar sua conotação fabril no período abordado.
6
Jornal do Commércio. 02.09.1874, p.7.
7
O Auxiliador... 1874, p. 502.
8
Cf. O Auxiliador... 1882, pp.102-109. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
9
Em 1886, Manuel Antonio Balmaceda faria patentear o Torrefador Balmaceda, uma “maquina de torrar café ao ar
livre”. Arquivo Nacional, PI-00231 e um “novo sistema de maquina de descascar café em côco”. Arquivo Nacional,
PI-00235. Em 1888, o mesmo autor também patenteou ‘melhoramentos no descascador de café”. Arquivo
Nacional, PI-00236. Não foram encontrados indícios de que essas máquinas tenham sido fabricadas e
comercializadas.
10
O Auxiliador... 1883, p. 68.
11
Arquivo Nacional, PI-07470.
12
Ibid., PI-09136.
13
Ibid., PI-09136.
Ibid., PI-08339. Não foram localizados documentos referentes ao Secador Prodígio.
15
Ibid., PI-00100.
16
O Auxiliador... 1879, p. 92.
17
Arquivo Nacional, PI-00017.
18
Ibid., PI-08921. Grifo meu.
19
Ibid., PI-08984.
20
Ibid., PI-06829.
21
Jornal do Commércio, 18.03.1888, p.7.
22
Camargo, R. de e Telles Jr, A. de Q. Op. cit., pp. 507-508.
23
Arquivo Nacional, PI-00093. Devido à lei de 1830 não explicitar a exigência do registro de patentes estrangeiras
também no Brasil, não foi possível identificar a totalidade de invenções e inovações de Lidgerwood que foram
produzidas no país. Entretanto, sua publicação comercial no Correio Paulistano de 21.07.1878, p. 4, dá uma visão
dos produtos e preços praticados: “[...] - Descascador n. 33, descasca até 80 arrobas p/ hora - 1:400$000 Ventilador dobrado p/ idem 600$000 [...] - Descascador n. 7 descasca até 40 arrobas por hora... 900$000 Ventilador dobrado... 600$000 [...] - Apparelho n. 7 com ventilador singelo 2:250$000 - Apparelho n. 10 sendo
descascador e ventilador com correias e polias beneficia 10 arrobas por hora...850$000 - Despolpadores de café
com 2 cilindros de cobre, conforme o tamanho 600$000 até 1:950$000 - Despolpadores de um cylindro 350$000
até 550$000 - Brunidores systema novo 600$000 até 800$000...”
24
Jornal do Commércio, 30.08.1885, p. 7. Não foram localizados registros referentes ao Catador Prodígio. Em 1896
foi concedida patente também para o Novo Catador Lidgerwood. Arquivo Nacional, PI-01620.
25
Os equipamentos descascadores eram: “Machina aperfeiçoada destinada a descascar café despolpado”, de 1885
(Arquivo Nacional, PI-00139); “chapa invencível Lidgerwood... para descascar café ou outro qualquer grão
similar”, de 1889 (Arquivo Nacional, PI-00423); “aperfeiçoamentos em descascadores de café e outros grãos”,
patenteada de Londres, em 1893 (Arquivo Nacional, PI-01221); e “chapas de gancho e caldeiras aperfeiçoadas com
212
aparelho de graduação automática para descascador de café”, de 1902 (Arquivo Nacional, PI-03246). O processo
de privilégio industrial do descascador Lidgerwood original não foi localizado.
26
Correio Paulistano, 01.02.1883, p. 4; 06.02.1883, p. 3; 26.02.1883, p. 3. A difusão alcançada pelas máquinas a
vapor Clayton e Shuttlewort, ao menos para o interior de São Paulo, pode ser considerada através da venda de
segunda mão de uma de suas unidades, conforme anúncio do Correio Paulistano de 26.02.1883, p. 3: “Machina a
vapor. Vende-se uma das melhores Clayton & Shuttlewort- Inglaterra; de forca de 16 cavallos, de 2 cylindros,
locomóvel, sem rodas, está em perfeito estado de conservacão e pode ver-se funccionar todos os dias úteis; vendese por preço razoável, por se ter feito aquisição de outra de mais força. Para ver e tratar, na fabr. de Santo Antonio,
largo do Riachuelo, S. Paulo”.
27
Correio Paulistano, 01.02.1883, p. 4. e 11.02.1883, p. 4.
28
Ibid., 01.02.1883, p. 4.
29
Ibid., 01.02.1883, p. 4.
30
Os processos de Mac Hardy encontrados foram: de 1885, “machina para escolher café” (Arquivo Nacional, PI00179) e “machina de descascar e brunir café” (Arquivo Nacional, PI-00180); de 1898, “Machina Economica”
(Arquivo Nacional, PI-02185), “Catador Companhia Mac Hardy” (Arquivo Nacional, PI-02225), e
“aperfeiçoamentos na machina para descascar café” (Arquivo Nacional, PI-02208). Samuel Beaven atuou como
procurador nos seguintes processos: de 1887, “Ventilador e Separador de Pedras” (Arquivo Nacional, PI-00287); e
de 1888, “Catador de Pedras Mac Hardy” (Arquivo Nacional, PI-09169).
31
Há indicações de que suas primeiras máquinas tenham sido patenteadas na década de 1870, porém seus processos
de privilégios não foram localizados. Uma pesquisa específica deverá considerar que esses inventos poderiam estar
direcionados a outros produtos agrícolas - como o arroz, etc. -, não constando, por isso, no inventário de café.
32
Arquivo Nacional, PI-08958.
33
Ibid., PI-08959.
34
Correio Paulistano, 02.03.1886, p. 4.
35
Ibid., 02.03.1886, p. 4.
36
Jornal do Commércio, 07.07.1894, p. 8.
37
Ibid., PI-08342.
38
Ibid., PI-08342.
39
Ibid., PI-01216.
40
Ibid., PI-01217.
41
Correio Paulistano, 03.08.1898, p. 4. Futuramente mais três inventos de apartadores iriam aumentar a família de
máquinas Engelberg: em 1898, uma separador para “aperfeiçoar o benefício do café mal beneficiado, contendo
corpos estranhos e prejudicando seu preço” (Arquivo Nacional, PI-08127); em 1900, o Catador Engelberg “para
separar do café os grãos mais leves e mal desenvolvidos, corpos estranhos como pausinhos, cascas, etc.” (Arquivo
Nacional, PI-02812); e, em 1901, o Selector Engelberg, para separar do café já beneficiado “todos os corpos
estranhos como sejam pedras, torrões de terra, pausinhos e tudo o que pode prejudicar o valor do mesmo café”.
Arquivo Nacional, PI-03059.
42
O processo de privilégio original não foi localizado.
43
Correio Paulistano, 02.03.1886, p. 4.
44
Jornal do Commércio, 27.08.1892, p. 9.
45
Ibid., 04.08.1895, p. 9.
46
Arquivo Nacional, PI-06579.
47
Ibid., PI-02810.
48
Ibid., PI-07489.
49
Correio Paulistano, 03.06.1893, p. 4.
50
O levantamento dos dados para uma história empresarial da Cia. Mechânica e Importadora de São Paulo
extrapolaria os fins desta pesquisa. Porém, a ligação de Siciliano com a empresa pode ser comprovada pela
correspondência com os clientes publicada no Correio Paulistano de 07.08.1898, p. 6.
51
Correio Paulistano, 03.08.1898, p. 4.
52
Em 1906, Jorge P. Tebyriçá associou-se a Willard Halstead, de Nova Iorque para patentear um “aperfeiçoamento
em descascadores de café” (Arquivo Nacional, PI-04446).
53
Correio Paulistano, 22.07.1904, p. 7.
54
Ibid., 22.07.1904, p. 7.
55
Ibid., 22.07.1904, p. 7. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
56
Arquivo Nacional, PI-07916.
213
57
Entre todas as petições de máquinas e elementos para descascadores de café, a Cia. Mechânica e Importadora de
São Paulo registrou: em Piracicaba, São Paulo, em 1895, a “Máquina Engelberg” (Arquivo Nacional, PI-00083);
em 1897, o “Despolpador Mecânico” (Arquivo Nacional, PI-02010); em 1901, a “Maquina Schulman” (Arquivo
Nacional, PI-03019); em 1902, “melhoramentos a maquina Schulman” (Arquivo Nacional, PI-03020); em 1903,
“cilindros, barras e chapas para descascadores de café” (Arquivo Nacional, PI-03550); em 1903, “Esbrugador
Mechanica” (Arquivo Nacional, PI-03651); em 1909, a “Máquina Especial Combinada” (Arquivo Nacional, PI02111). Exceto a primeira, todas as petições foram feitas em São Paulo. Em todos os registros, a firma agente de
patentes Jules Geraud, Leclerc & Cia ou derivações de sua razão social, atuou como procurador do inventor, o que
encobriu as pessoas físicas envolvidas com os processos de invenções de cada registro.
58
Arquivo Nacional, PI-01250.
59
Ibid., PI-01250.
60
Correio Paulistano, 04.08.1894, p. 3.
61
Arquivo Nacional, PI-01251.
62
Correio Paulistano, 07.08.1898, p. 6.
63
Arquivo Nacional, PI-02983.
64
Ibid., PI-02983.
65
Ibid., PI-02983.
66
Correio Paulistano, 05.05.1902, p. 4.
67
Ibid.
68
Ibid., 02.11.1905, p. 4.
69
Ibid., 02.11.1905, p. 4.
70
Jornal do Commércio, 25.06.1896, p. 6.
71
Arquivo Nacional, PI-00711.
72
Ibid., PI-00711.
73
Ibid., PI-00712.
74
Ibid., PI-00713.
75
Correio Paulistano, 15.05.1899, p. 3.
76
Arquivo Nacional, PI-01148.
77
O melhoramento visava a fazer com que a máquina passasse a também selecionar o café por seu tamanho, além de
eliminar impurezas. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
78
Arquivo Nacional, PI-01149.
79
Correio Paulistano, 15.05.1899, p. 3.
80
Arquivo Nacional, PI-07184.
81
Ibid., PI-07433.
82
Ibid., PI-07486.
83
Ibid., PI-07494.
84
Ibid., PI-01149.
85
Correio Paulistano, 17.05.1902, p. 5.
86
Ibid.
87
Arquivo Nacional, PI-07432.
88
Ibid., PI-07193.
89
Ibid., PI-02899.
90
Ibid., PI-02906.
91
Ibid., PI-02901.
92
Ibid., PI-02905. O nome do invento não consta no processo de privilégio, apenas sua função.
93
Ibid., PI-02907.
94
Ibid., PI-02908.
95
Ibid., PI-02900.
96
Ibid., PI-02952.
97
Jornal do Commércio, 13.12.1908, p. 18.
98
Correio Paulistano, 06.06.1893, p. 3.
214
99
Seus processos de privilégios industriais são, respectivamente: Arquivo Nacional, PI-08319, PI-08321 e PI-08201.
100
Arquivo Nacional, PI-08319.
101
Arquivo Nacional, PI-07631.
102
Arens também patenteou os seguintes separadores de café: “Catador Pneumático Excelsior”, invento de Julio
Scheibel, de S. José do Rio Pardo (SP), em 1884, atuando como procuradores (Arquivo Nacional, PI-00278); o
“novo separador de café”, em 1887 (Arquivo Nacional, PI-09090); “Separador Kohinoor”, em 1902 (Arquivo
Nacional, PI-03296); “Catador Maravilha”, em 1903 (Arquivo Nacional, PI-03445); o “Catador Turbilhão”, de
1903 (Arquivo Nacional, PI-03679); e os “aperfeiçoamentos em separadores de café e grãos semelhantes”, também
de 1903 (Arquivo Nacional, PI-03476). Devido à forma genérica com que os anúncios se referiam às diversas
máquinas, tratando-as por catadores, descascadores, etc., e não pelos nomes específicos, não foi possível
estabelecer quais patentes foram efetivamente produzidas. Um pesquisa mais acurada neste sentido poderá levantar
os registros contábeis da empresa.
103
Arquivo Nacional, PI-08321.
104
Ibid., PI-00174.
105
Ibid., PI-09231. O invento não recebeu um nome específico dos seus patenteadores.
106
Ibid., PI-09240.
107
Ibid., PI-03482.
108
Ibid., PI-03482.
109
Correio Paulistano, 01.08.1890, p.1. O processo de privilégio industrial não foi localizado.
110
Ibid., PI-07457. O invento não recebeu nome específico.
111
Ibid., PI-01140.
112
Jornal do Commércio, 04.06.1893, p. 13, e Correio Paulistano, 08.04.1893, p. 4.
113
Jornal do Commércio, 04.06.1893, p. 13, e Correio Paulistano, 08.06.1893, p. 4.
114
Arquivo Nacional, PI-01818.
115
O processo de privilégio industrial não foi localizado. Sabe-se apenas que o separador Guarany foi patenteado pelo
decreto 3.630.
116
Correio Paulistano, 09.1903, p. 4.
117
Arquivo Nacional, PI-01049.
118
Ibid., PI-01417.
119
Ibid., PI-03324.
120
Ibid., PI-02510.
121
Ibid., PI-03377.
121
Cf. Martins, J. S. Op. cit., p. 60.
OK
212
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo sobre o desenvolvimento das invenções de máquinas de
beneficiar café no Brasil partiu de uma dúvida de origem: se o café era o produto
mais importante que o Brasil exportava no século XIX e o trabalho nos cafezais
era feito por escravos negros, como foi possível ao Brasil aumentar a exportação
do café quando a escravidão foi extinta?
Se hoje não se pode imaginar o beneficiamento industrial do café a não
ser com máquinas, como isso era feito no século passado, quando as máquinas de
hoje simplesmente não existiam? Será que existiam escravos para tanto? Será que
a população de imigrantes era suficiente para suprir a ausência do escravo após a
abolição?
Aparentemente simplórias, essas questões trazem à tona a importância da
máquina ontem e hoje, quando ela se tornou objeto do cotidiano a ponto de sua
presença passar despercebida. Ter máquina hoje é “natural”. Até quase o fim do
século XIX, não ter máquinas é que era o normal: vivia-se num mundo diferente
quanto à noção de tempo, distância, quantidade, etc.
Naquela época, os problemas materiais eram resolvidos com as soluções
que já se apresentavam como rotineiras. Não é demais lembrar que o país vinha de
um longo período de economia colonial, em que o ritmo das atividades
econômicas maiores era regulado pelos agentes da Metrópole.
No entanto, quando a própria Corte mudou-se para o Brasil, a lógica das
atividades produtivas mudou.
213
Era necessário fortalecer o poder da Corte sobre todo o país. Por isso, ela
se transformou numa cidade cheia de atrativos, um lugar para onde tudo afluía.
Um lugar que era preciso abastecer.
Por sua vez, a própria novidade da criação da Corte no Brasil trazia
contido o impulso da inovação, o interesse em atrair a novidade, em tornar o lugar
reluzente e digno de uma Real presença.
Visto dessa forma, compreende-se porque as primeiras regulamentações
de D. João foram nessa direção, abrindo um caminho de entrada de máquinas que
logo depois seria incorporado à primeira constituição do país, não tardando
também a ser tratada por lei específica, em 1830.
Quando o Estado brasileiro se instalou de vez, a mesma lógica econômica
foi mantida: produzir um artigo principal para servir de moeda de troca no
estrangeiro e manter o comércio de longo curso com a Europa. Isso era
fundamental para o suprimento das necessidades materiais, culturais e políticas da
nova nação. Mas como, se o açúcar já não rendia tanto e o ouro não era tão
encontradiço quanto antes?
O novo problema que então se colocava era tornar compatíveis os meios e
o modo de vida no “eito”, de forma que produzisse um outro artigo para ser
exportado como antes. A única mudança eram os lucros, que permaneceriam no
Brasil, em vez de seguirem para a Metrópole lisboeta.
Havia, então, essa visão da produção material. Mas também havia
distâncias culturais enormes, barreiras naturais, e outros problemas cujas soluções
cabia ao Estado encontrar. Afinal, para isso fora ele fundado no Brasil!
Quando o café tornou-se produto de exportação, os problemas das
distâncias ficaram ainda maiores, devido às suas características físicas, que
214
exigiam melhor tratamento e mais rapidez no transporte até o vapor ancorado no
porto exportador. Era preciso então prover as condições em que se poderia
exportar o café.
No exterior, o velho mundo mudara. A Ciência e a Indústria, alçadas à
categoria de deusas, tinham promovido mudanças no pensamento econômico e
social e principalmente na organização do trabalho, que teriam logo reflexos nas
bandas de cá.
A cidade, o campo, a vida social, enfim, o mundo, rendia-se ao progresso.
As artes se renovavam, as distâncias se encurtavam, as pessoas tocavam com as
próprias mãos as aparições “fantasmagóricas” dos trens a vapor. Enfim, chegara o
tempo do progresso industrial!
A inventividade humana ganhava novo sentido. Ficava cada vez mais
patente que mesmo os homens comuns poderiam alterar métodos antigos,
dinamizar o funcionamento das ferramentas, alterar a ordem “natural” das coisas.
E mais: agora era possível enriquecer criando. Havia até leis para assegurar a
propriedade da invenção humana.
Nada mais contundente para convencer sobre as possibilidades infinitas
da Ciência.
Havendo esse tipo de lei também no Brasil, e sendo o café a atividade
econômica principal, seria então ele o produto para o qual se dirigiriam as
atenções. Pelo café, criou-se no Brasil um novo ofício, próprio da criação, para
implementar a produção da terra.
Havia escravos e imigrantes pobres em abundância para trabalhar, havia
florestas extensas a explorar, havia o sentimento de que no café estavam
representados todos os interesses do Brasil. Era um processo único: primeiro as
215
leis, depois os capitais, depois os homens. Abriam-se estradas de ferro e rodagem,
reformavam-se antigos e construíam-se novos portos, as florestas iam abaixo,
dando lugar ao “ouro verde”, o “eito” sugava mais e mais negros que afluíam de
outras partes. Criava-se a grande fazenda de café, e com ela vinham os homens
cuja empresa era abrir novas fazendas de café.1
Nesse processo, os inventores de máquinas de beneficiar café ainda eram
poucos no seu ofício, mas também já estavam presentes.
Os negócios iam bem. Vivia-se vida abastada. O cafezal produzia muito
nos primeiros anos, depois a terra morria. Mas poucos se importavam. O que valia
mais era aquele dinamismo, aquele sentimento de que o Brasil dependia do
cafezal... e do negro que tocava o cafezal.
Muita gente se importava. Mas quem podia com o café?
Afinal, onde buscar um braço tão forte, tão “adaptado” à terra? Na
Europa, ou o “chin”? O que fazer? Era melhor não mudar, ou mudar aos poucos e
ver o que acontecia, diziam alguns.
E assim foi.
Aqueles inventores fundaram fábricas de máquinas de café.
Outras fábricas vieram com inventores de outros países. Sempre atraídos
pelo café. Era a febre do café!
E a Sain, surgida dos anseios dos letrados, finalmente conseguiu o seu
intento: mudou a antiga lei de patentes.
1
Cf. Martins, José de Souza. Op. cit.
216
A partir da lei de 1882, o inventor ficava mais próximo ainda do
industrial. Com essa lei, a lavoura do café teve o impulso que precisava da parte
da tecnologia mecânica: aumentavam os tipos de máquinas em oferta, os
problemas eram solucionados mais rapidamente com os aperfeiçoamentos. Tudo
isso num processo bem brasileiro, com participação da sociedade civil — através
da Sain — na hora de julgar o mérito da patente da máquina, e também na forma
como a máquina era apresentada ao público: os anúncios de máquinas eram
detalhados procurando transmitir segurança aos fazendeiros através de
depoimentos de pessoas honradas. Enfim, tudo muito a capricho, como nas mais
afamadas casas de Londres e Paris.
Nas exposições universais, o Brasil mostrava ao mundo os cafés e as
máquinas, que recebiam menções honrosas. Com isso, as máquinas de café
brasileiras passaram logo a ser também exportadas para outros países.
Por fim, as grandes fazendas foram supridas de máquinas e ferrovias. O
café das terras brasileiras era tanto que nenhum outro país foi capaz de competir
em quantidade. Os tempos eram outros. Até o negro deixou de ser escravo.
Doravante seria só negro.
Assim o Brasil virou o século. Deixou de ser império, mas continuou
café, e café era ouro, dizia-se.
A máquina de café, criada nos moldes das necessidades da lavoura do
Brasil ia tomando um lugar cada vez mais central na fazenda. Seus inventores as
tinham criado para resolver os problemas específicos do café. Elas deram conta
disso: economizaram a mão-de-obra gasta no pilão, deixaram o benefício
independente do clima, trataram com rapidez impressionante aquela quantidade
enorme de café que vinha do “eito” e que ninguém dava conta de preparar.
217
Elas não mudaram a forma da produção do café em si: continuaram a
derrubada e a queimada dos “mataréus”, a enxada e a capina no sol tropical.
Elas não modernizaram o Brasil, mas incorporaram tecnologia às
condições em que se beneficiava café no Brasil.
Elas fizeram a ponte de ligação da fazenda do Brasil com a mesa
estrangeira, dando aquele verniz moderno que os fazendeiros tanto prezavam.
Já no século XX o café era tanto que sobrava. O porto de Santos
expandia-se sem parar. Era tanto café que o preço caía. Os convênios resolveram
o problema, o governo garantiu o preço da saca.
E tanto café saía da máquina que foi preciso fazê-la parar.
226
FONTES
ARQUIVO NACIONAL
• Processos de Privilégios Industriais
• Coleção das Leis do Brasil
BIBLIOTECA NACIONAL
• O Auxiliador da Indústria Nacional
• Jornal do Commércio
• Almanak Laemmert
• Coleção das Leis do Brasil
• Catálogos/imagens de máquinas
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
• Correio Paulistano
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Museu Paulista da USP
• Coleção Santos Dumont
Museu do Café - Campus de Ribeirão Preto
• Coleção de Máquinas de Beneficiar Café
UNIVERSIDADE DE CAMPINAS
Centro de Memória da Unicamp
• Processos judiciários acerca de invenções e patentes
227
BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Gelson R. de. Hoje é dia de branco. O trabalho livre na província fluminense: Valença e
Cantagalo, 1870-1888. Niterói, ICHF/UFF, 1994 (dissertação de mestrado).
ARAÚJO, Rosamaria B. de. A vocação do prazer. O Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.
ARQUIVO NACIONAL. Inventário analítico ao acervo de privilégios industriais. Rio de Janeiro, 1993.
BEAUCLAIR, Geraldo. A gênese industrial do Brasil. In: Cadernos do ICHF, no 38. Niterói, ICHF/UFF, nov/1990
(mimeo).
———. A construção da economia nacional: 1822-1860. Niterói, 1994 (tese de titular/UFF).
———. Raízes da indústria no Brasil. Niterói, Studio F & S, 1993.
BITTENCOURT, Gabriel. A formação econômica do Espírito Santo. Vitória, Departamento Estadual de
Cultura/Cátedra, 1987.
BLOCH, Marc. Advento e conquista do moinho d’água. In: GAMA, Ruy. (Org.). História da técnica e da tecnologia.
São Paulo, T.A. Queiróz/Edusp, 1985.
CALDEIRA, J. Mauá - empresário do Império. São Paulo, Cia. da Letras, 1995.
CAMARGO, Rogério de & TELLES Jr., Adalberto de Queiróz. O café no Brasil. Sua aclimação e industrialização.
Rio de Janeiro, Serv. de Informação Agrícola/MA, 1953. 2 vol.
CARDOSO, Ciro & BRIGNOLI, Hector. Os métodos da história. 3a ed. Riode Janeiro, Graal, 1983.
CARONE, E. O Centro Industrial do Rio de Janeiro e sua importante participação na economia nacional (18271977). Rio de Janeiro, Cátedra, 1978.
CENTRO INDUSTRIAL DO RIO DE JANEIRO. Apontamentos para a história do Centro Industrial do Rio de
Janeiro [por] Elizabeth von der Weid [e outros]. Rio de Janeiro, 1977.
CIPOLLA, Carlo. História econômica da Europa pré-industrial. Lisboa, Edições 70, 1974.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA. História e concretização do pensamento industrial. Rio de
Janeiro, CNI, 1988 (catálogo da exposição comemorativa do cinqüentenário).
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3a ed. São Paulo, Brasiliense, 1989.
CRUZ, Celso. La conquista del aire. Proceso tecnico y heroico de la aeronautica y la aviacion. Buenos Aires, Ed.
Atlântida, 1940.
CRUZ, Hélio N. da & TAVARES, Martus. As patentes brasileiras de 1830 a 1891. In: Estudos econômicos. São
Paulo, maio/agosto 1986.
———. Observações sobre mudança tecnológica em Schumpeter. In: Estudos econômicos. Vol. 18, no 3. São Paulo,
set/dez 1988, p. 435.
DANTAS, Geremário. O café na cidade do Rio de Janeiro. In: O café no segundo centenário de sua introdução no
Brasil. Rio de Janeiro, DNC, 1934.
d’Oliveira, Luiz Torquato M. Novo Methodo de plantação, fecundidade, durabilidade, estrumação e conservação do
café e extincção das formigas exposto em benfício da agricultura do Brasil e lugares cafeeiros. Rio de Janeiro,
Typographia Paula Brito, 1863.
DUMONT, Alberto Santos. Os meus balões. Trad. do original de “Dans l'Air” de A. de Miranda Bastos. s/l,
Biblioteca de Divulgação da Aeronáutica, 1938.
EL-KAREH, Almir Chaiban. Filha branca de mãe preta: A Companhia da Estrada de Ferro D. Pedro II 1855-1865.
Petrópolis, Vozes, 1982.
EULÁLIO, Joaquim. O café na Inglaterra. In: O café no segundo centenário de sua introdução no Brasil. Rio de
Janeiro, DNC, 1934.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
———. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo, Difel, s/d.
FERREZ, Gilberto. O Brasil de Thomas Ender 1817. Rio de Janeiro, Fundação João Moreira Salles, 1976.
FRAGOSO, João Luís. Economia brasileira no século XIX: mais do que uma plantation escravista-exportadora. In:
LINHARES, Maria Yedda L. (coord.) História geral do Brasil. Rio de Janeiro, Campus, 1990.
———. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830).
Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1992.
228
FREITAS FILHO, Almir Pitta. Tecnologia e escravidão no Brasil: aspectos da modernização agrícola nas Exposições
Nacionais de segunda metade do século XIX (1861-1881). In: Revista Brasileira de História. Vol. 11, no 22. São
Paulo, ANPUH/Marco Zero, mar./ago. 1991.
FREYRE, Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX. 2a ed. Recife, IINPS/Artenova, 1977.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989.
HARDMAN, Francisco F. Trem fantasma. A modernidade na selva. São Paulo, Cia. das Letras, 1988.
HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções. Rio de Janeriro, Paz e Terra, 1976.
HONORATO, C. & BEAUCLAIR, G. Niterói industrial 1834-1860. In: MARTINS, Ismênia Lima. Revisitando a
história de Niterói. Niterói, Funiarte/UFF (no prelo).
HONORATO, Cezar T. (Coord.). Clube de Engenharia, Brasil. Rio de Janeiro, Clube de Engenharia/Odebrecht (no
prelo).
———. O polvo e o porto. São Paulo, Hucitec, 1995 (no prelo).
INSTITUTO DO CAFÉ DO ESTADO DE SÃO PAULO (Seção de Publicidade). Cultura do café à sombra. Ed.
Navarro de Andrade, sd.
KATINSKY, J. R. A invenção da máquina a vapor. São Paulo, FAU/USP, 1976.
KEMP, Tom. Grã-bretanha 1870-1914: um pioneiro sob pressão. In: A revolução industrial na Europa no século XIX.
Lisboa, Ed. 70, 1987.
LANDES, David. Progreso tecnológico y revolucion industrial. Madrid, Tecnos, 1979.
LE BOT, Marc. Pintura y maquinismo. Madrid, Catedra, 1979, cap. II.
LEVY, Maria Bárbara. A indústria do Rio de Janeiro através de suas sociedades anônimas. Rio de Janeiro,
FEA/UFRJ, 1988 (tese de titular, mimeo.).
LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em um economia escravista. Minas Gerais no século XIX. São Paulo,
Brasiliense, 1988.
LIMA, Antonio Alves de. Uma grande lavoura de café no estado de São Paulo. In: O café no segundo centenário de
sua introdução no Brasil. Vol. 1. Rio de Janeiro, DNC, 1934.
LIMA, Sandra L. L. O oeste paulista e a República. São Paulo, Vértice, 1986.
LOBO, Eulália et al. Questão habitacional e o movimento operário. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1989.
MACHADO, Humberto F. Escravos, senhores e café. Niterói, Cromos, 1993.
MACIEL da Costa, João Severiano et al. Memórias sobre a escravidão. Introd. de Graça Salgado. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional/Fundação Petrônio Portella, 1988.
MAGALHÃES, Basílio de. O café nas história, no folclore e nas belas-artes. São Paulo, Cia. Ed. Nacional/INL,
1980.
MAGALHÃES, Hildebrando de. O café em Minas Gerais. Piracicaba, Typographia da Livraria Giraldes, 1933.
MARTINS, Ana Luiza. Império do café. A grande lavoura no Brasil 1850 a 1890. São Paulo, Atual, 1990, p. 39.
MARTINS, Araguaia Feitosa. Multirão cafeeiro. São Paulo, Brasiliense, 1962.
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 2a ed.São Paulo, LECH, 1981.
MARX, K. O Capital. Crítica da economia política. 6a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.
MASON, Stephen F. História de las ciencias. La ciencia del siglo XIX. Vol. 4. Madrid, Alianza, 1985.
MATOS, Odilon N. de. Café e ferrovias. A evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura
cafeeira. Campinas, Pontes, 1990.
MELO, J. M. C. de. O capitalismo tardio. 8a ed.São Paulo, Brasiliense, 1991.
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na era pombalina. Correspondência inédita do Governador e
Capitão-general do Estado do Grão-pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1751-1759. Vol. 2.
São Paulo, IHGB, 1963, p. 806, 128a carta.
MILLIET, Sérgio. O roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e social do
Brasil. 4a ed. São Paulo, Hucitec/INL, 1982.
MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo, Hucitec, 1984.
NEF, John. La conquista del mondo material. Buenos Aires, Paidos, 1969.
PESAVENTO, Sandra J. Acertar o passo com a História: O dilema da modernidade brasileira no século XIX (artigo
apresentado no III Congresso Latinoamericano de História de la Ciencia y de la Tecnologia, s/l, s/d)
PRADO JR, C. História econômica do Brasil. São Paulo, Círculo do Livro, s/d.
REBOUÇAS, André. Agricultura nacional. Estudos econômicos. Rio de Janeiro, Tipographia A.J. Lamoureux, 1883.
229
RIBEIRO, Luiz. Cláudio M. Segundo relatório de iniciação científica ao CNPq. Niterói, dez/1989.
RIO DE JANEIRO — CIDADE E ESTADO. Rio de Janeiro, Michelin, s/d [guia de turismo. Apresent. de Wellington
M. Franco.
ROSENBERG, Nathan. Perspectives on tecnology. London, Cambridge Univ. Press, 1976
SAES, Flávio A. M. de. As ferrovias de São Paulo 1870-1940. São Paulo, Hucitec/INL, 1981.
SALLES, Iraci Galvão. Trabalho, progresso e a sociedade civilizada. São Paulo, Hucitec, 1986.
SCHUMPETER, Joseph A. Teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo, Abril, 1982 (Col. Os Economistas).
SIQUEIRA, Penha. O desenvolvimento do porto de Vitória 1870-1940. Vitória, Codesa/Ufes, 1984.
SILVA, J. L. Werneck da. A SAIN (1827-1904) na formação social brasileira. Isto é o que me parece. Rio de Janeiro,
ICHF/UFF 1977 (dissertação de mestrado, mimeo.), 2 vol.
SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. 7a ed. São Paulo, Alfa-Ômega, 1986.
SIMONSEN. Roberto C. História econômica do Brasil. 8a ed. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1978.
SOBRINHO, Alves Motta. A civilização do café 1820-1920. 3a ed. São Paulo, Brasiliense, 1978.
STEIN, Stanley J. Grandeza e decadência do café no vale do Paraíba. São Paulo, Brasiliense, s/d.
TAUNAY, Affonso E. História do café no Brasil. Rio de Janeiro, DNC, 1945, 12 vol.
TRUZZI, O. Café e indústria. São Carlos: 1850-1950. São Carlos, UFSCar, 1986.
VASCONCELLOS, Barão de. Archivo nobiliarchico brasileiro. Lausanne, Imprimerie La Concorde, 1918.
VILLARES, Henrique Dumont. Quem deu asas ao homem: Alberto Santos Dumont - sua vida e sua glória. São Paulo,
Revista dos Tribunais, 1953.
VON TCHUDI, J. J. Viagem às províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. s/l, Martins Ed., s/d.
WHATELY, Maria Celina. O café em Resende no século XIX. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1987.
OK
ANEXO 1
LEI DE PATENTES DE 28 DE AGOSTO DE 1830
“Concede privilégio ao que descobrir, inventar ou melhorar
uma indústria útil e um prêmio ao que introduzir uma indústria
estrangeira, e regula sua concessão.
D. Pedro I, por Graça de Deus (...). Fazemos saber (...) que
a Assembléia Geral decretou ...:
Art. 1
A lei assegura ao descobridor, ou inventor de uma
indústria útil a propriedade e o uso exclusivo da sua descoberta, ou
invenção.
Art. 2
O que melhorar uma descoberta, ou invenção, tem no
melhoramento o direito de descobridor, ou inventor.
Art. 3
Ao introductor de uma indústria estrangeira se
dará um prêmio proporcionado à utilidade, e dificuldade da introducção.
Art. 4
O direito do descobridor, ou inventor, será firmado por
uma patente, concedida gratuitamente, pagando só o sello, e o feitio; e
para conseguil-a:
1 - Mostrará por escripto que a indústria, a que se refere, é de sua
própria invenção, ou descoberta.
2 - Depositará no Archivo Publico uma exacta e fiel exposição dos
meios e processos de que se serviu, com planos, desenhos ou modelos,
que os esclareça, e sem elles, se não puder illustrar exactamente a
matéria.
Art. 5
As patentes se concederão segundo a qualidade da
descoberta ou invenção, por espaço de cinco até vinte annos: maior
prazo só poderá ser concedido por lei.
Art. 6
Se o Governo comprar o segredo da invenção, ou
descoberta, fal-o-ha publicar; no caso porém, de ter unicamente
concedido patente, o segredo se conservará occulto até que expire o
prazo da patente. Findo este, é obrigado o inventor ou descobridor a
patentear o segredo.
Art. 7
O
infractor
do
direito
de
patente
perderá
os
instrumentos e productos, e pagará além disso uma multa igual à décima
parte do valor dos productos fabricados, e as custas, ficando sempre
sujeito à indemnização de perdas e damnos. Os instrumentos, e
productos e a multa serão applicados ao dono da patente.
Art. 8
O que tiver uma patente, poderá dispor della, como
bem lhe parecer, usando elle mesmo, ou cedendo-a a um, ou mais.
Art. 9
No caso de se encontrarem dous, ou mais, nos meios,
por que tenham conseguido qualquer fim, e coincidindo ao mesmo tempo
em pedir a patente, esta se concederá a todos.
Art. 10
1
-
Toda a patente cessa, e é nenhuma:
Provando-se que o agraciado faltou à verdade, ou foi
diminuto, occultando materia essencial na exposição, ou declaração, que
fez para obter a patente.
2 - Provando-se ao que se diz inventor, ou descobridor, que a
invenção, ou descoberta, se acha impressa, e descripta tal qual elle a
apresentou, como sua.
3
-
Se o agraciado não puzer em prática a invenção, ou
descoberta, dentro de dous annos depois de concedida a patente.
4 - Se o descobridor, ou inventor, obteve pela mesma descoberta,
ou invenção, patente em paiz estrangeiro. Neste caso, porém terá, como
introductor, direito ao prêmio estabelecido no Art. 3.
5 - Se o gênero manufacturado, ou fabricado fôr reconhecido
nocivo ao publico, ou contrário às leis.
6 - Cessa também o direito de patente para aquelles, que antes
da concessão della usavam do mesmo invento, ou descoberta.
Art. 11
O Governo fica autorizado a mandar passar as
patentes, conformando-se com a disposição da presente lei, sendo
sempre ouvido o Procurador da Corôa, Fazenda e Soberania Nacional.
Art. 12
Ficam revogadas todas as Leis e disposições em
contrário.
Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o
conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e
façam cumprir e guardar tão inteiramente como nella se contém. O
Secretário de Estado dos Negócios do Império a faca imprimir, publicar e
correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos vinte e oito dias do mez de
Agosto de mil oitocentos e trinta, nono da Independência e do Império.
Imperador com rubrica e guarda.”
Fonte: Collecção das Leis do Império do Brazil de 1830. Parte
Primeira. Rio de
Janeiro, Typographia Nacional, 1876.
ANEXO 2
LEI 3.129 DE 14 DE OUTUBRO DE 1882
“D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Acclamação dos Povos,
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brazil: fazemos saber a
todos os nossos súbditos que a Assembléia Geral decretou e nós
queremos a lei seguinte:
Art.1
A lei garante pela concessão de uma patente ao autor
de qualquer invenção ou descoberta a sua propriedade e uso exclusivo.
Paragr.1 - Constituem invenção ou descoberta para os efeitos desta
lei:
1-
A invenção de novos productos industriaes.
2-
A invenção de novos meios ou a applicação nova de meios
conhecidos para se obter um producto ou resultado industrial.
3-
O melhoramento de invenção já privilegiada, se tornar mais
fácil o fabrico do producto ou uso do invento privilegiado ou se lhe
augmentar a utilidade
Entendem-se por novos os productos, meios, aplicações e
melhoramentos industriaes que até ao pedido da patente não tiverem
sido, dentro ou fóra do Império, empregados ou usados, nem se acharem
descriptos ou publicados de modo que possão ser. empregados ou
usados.
Paragr. 2 - Não podem ser objecto de patente as invenções:
1-
Contrárias à lei ou à moral.
2-
Offensivas da segurança pública.
3-
Nocivas à saúde pública.
4-
As que não offerecerem resultado prático industrial.
Paragr. 3 - A patente será concedida pelo Poder Executivo, depois
de preenchidas as formalidades prescriptas nesta lei e em seus
regulamentos.
Paragr. 4 - O privilégio exclusivo da invenção principal só vigorará
até 15 annos, e o do melhoramento da invenção concedido ao seu autor
terminará ao mesmo tempo que aquelle.
Se durante o privilégio, a necessidade ou utilidade pública
exigir a vulgarização da invenção, ou o seo uso exclusivo pelo Estado,
poderá ser desapropriada a patente, mediante as formalidades legaes.
Paragr. 5 - A patente é transmissível por qualquer dos modos de
cessão ou transferência admittidos em direito.
Art. 2 Os inventores privilegiados em outras nações poderão obter
a confirmação de seus direitos no Império, contanto que preenchão as
formalidades e condições desta lei e observem as disposições em vigor
applicáveis ao caso.
A confirmação dará os mesmos direitos que a patente
concedida no Império.
Paragr. 1 - A propriedade do direito de propriedade do inventor
que, tendo requerido patente em nação estrangeira, fizer igual pedido ao
Governo Imperial dentro de sete mezes, não será invalidada por factos,
que occorrão durante esse período, como sejão outro igual pedido, a
publicação da invenção e o seu uso ou emprego.
Paragr. 2 - Ao inventor que, antes de obter patente, pretenda
experimentar em público as suas invenções, ou queira exhibi-las em
exposição official ou reconhecida officialmente, se expedirá um título,
garantindo-lhe provisoriamente a propriedade pelo prazo e com as
formalidades exigidas.
Paragr. 3 - Durante o primeiro anno do privilégio só o próprio
inventor ou seus legítimos successores poderão obter privilégio de
melhoramento na própria invenção. Será comtudo permittido a terceiros
apresentarem os seus pedidos no dito prazo para firmar direitos.
O inventor de melhoramento não poderá usar da indústria
melhorada, enquanto durar o privilégio da invenção principal, sem
autorização do seu autor; nem este empregar o melhoramento, sem
acordo com aquellle.
Paragr. 4 - Se dous ou mais indivíduos requererem ao mesmo
tempo privilégio para idêntica invenção, o Governo, salva a hypothese do
paragrapho primeiro deste artigo, mandará que liquidem previamente a
prioridade, mediante accôrdo ou em juizo competente.
Art.3
O inventor, que pretender patente, depositará em
duplicata, na repartição que o Governo designar, sob envólucro fechado e
lacrado, um relatório em língua nacional, descrevendo com precisão e
clareza a invenção, o seu fim e modo de usa-la, com as plantas,
desenhos, modelos e amostras que sirvão para o exacto conhecimento
dessa invenção e intelligência do relatório, de maneira que qualquer
pessoa competente na matéria possa obter ou applicar o resultado, meio
ou producto de que se tratar.
O relatório designará com especificação e clareza os
caracteres constitutivos do privilégio.
A extensão do direito de patente será determinada
pelos ditos caracteres, fazendo-se disto menção na patente.
Paragr. 1 - Com o documento do depósito será apresentado o
pedido que se limitará a uma só invenção, especificando-se a natureza
desta e seus fins ou apllicação de accôrdo com o relatório e com as peças
depositadas.
Paragr. 2 - Se parecer que a matéria da invenção envolve
infracção do Paragr. 2 do Art. 1, ou tem por objecto productos
alimentares, chimicos ou pharmaceuticos, o Governo ordenará o exame
prévio e secreto de um dos exemplares, de conformidade com os
regulamentos que expedir, e á vista do resultado concederá ou não a
patente.
Da decisão negativa haverá recurso para o conselho de
Estado.
Paragr. 3 - Exceptuados sómente os casos mencionados na
paragrapho antecedente, a patente será expedida sem exame prévio.
Nella se designará sempre, de modo summário, o objecto do
privilégio com ressalva dos direitos de terceiro e da responsabilidade do
Governo, quanto à novidade e utilidade da invenção.
Na patente do inventor privilegiado fóra do Império, se
declarará que vale emquanto tiver vigor a patente estrangeira, nunca
excedendo o prazo do Paragr. 4 do Art. 1.
Paragr. 4 - Além das despezas e dos emolumentos que fôrem
devidos, os concessionários de patentes pagarão uma taxa de 20$ pelo
primeiro anno, de 30$ pelo segundo, de 40$ pelo terceiro, augmentandose 10$ em cada anno que se seguir sobre a annuidade anterior por todo
o prazo do privilégio. Em caso nenhum serão restituídas as annuidades.
Paragr. 5 - Ao inventor privilegiado que melhorar a própria
invenção se dará certidão de melhoramento, o que será depositado na
respectiva patente. Por esta certidão pagará o inventor por uma só vez
quantia correspondente à annuidade que tenha de vencer-se.
Paragr. 6 - A transferência ou cessão das patentes ou certidões,
não produzirá effeito emquanto não fôr registrada na Secretaria de
Estado dos Negócios da Agricultura, Commércio e Obras Públicas.
Art. 4 Expedida a patente e dentro do prazo de 30 dias se
procederá com as formalidades que os regulamentos marcarem à
abertura dos envólucros depositados.
O relatório será immediatamente publicado no Diário
Official, e um dos exemplares dos desenhos, plantas, modelos ou
amostras exposto à inspecção do público e ao estudo dos interessados,
permittindo-se tirar cópia.
Paragrapho único. No caso de não ter havido o exame prévio de
que trata o Paragr. 2 do Art. 3, o Governo, publicado o relatório,
ordenará a verificação, por meio de experiências, dos requisitos e das
condições que a lei exige para a validade do privilégio, procedendo-se
pelo modo estabelecidado para aquelle exame.
Art.5
A
patente
ficará
sem
effeito
por
nullidade
ou
caducidade.
Paragr.1 1-
Será nulla a patente:
Se na sua concessão se tiver infringido alguma das
prescripções dos paragraphos 1 e 2 do Art. 1.
2-
Se o concessionário não tiver tido a prioridade.
3-
Se o concessionário tiver faltado à verdade ou occultado
matéria essencial no relatório descriptivo da invenção, quanto ao seu
objecto ou modo de usá-la.
4-
Se a denominação de invenção fôr, com fim fraudulento,
diverso do seu objecto real.
5-
Se o melhoramento não tiver a indispensável relação com a
indústria principal, e puder constituir indústria separada, ou se tiver
havido preterição da preferência estabelecida pelo Art. 2 paragrapho 3.
Paragr. 2 - Caducará a patente nos seguintes casos:
1-
Não fazendo o concessionário o uso effectivo da invenção,
dentro de três annos, contados da data da patente.
2-
Interrompendo o concessionário o uso effectivo da invenção
por mais de um anno, salvo motivo de força maior, julgado procedente
pelo Governo, com audiência da respectiva secção do Conselho de
Estado.
Entende-se por uso, nestes dous casos, o effectivo exercício
da indústria privilegiada e o fornecimento dos productos na proporção do
seu emprego ou consumo.
Provando-se
que
o
fornecimento
dos
productos
é
evidentemente insufficiente para as exigências do emprego ou consumo,
poderá ser o privilégio restringido à uma zona determinada por acto do
Governo, com approvação do Poder Legislativo.
3-
Não pagando o concessionário a annuidade nos prazos da lei.
4-
Não constituindo o concessionário, residente fóra do Império,
procurador para representá-lo perante o Governo ou em juízo.
5-
Havendo renuncia expressa da patente.
6-
Cessando por qualquer causa a patente ou título estrangeiro
sobre invenção, também privilegiada no Império.
7-
Expirando o prazo do privilégio.
Paragr. 3 - A nullidade da patente ou da certidão do melhoramento
será declarada por sentença do juízo commercial da capital do Império,
mediante o processo summário do decreto n. 737, de 25 de Novembro de
1850.
São competentes para promover a acção de nullidade:
O Procurador dos Feitos da Fazenda e seus ajudantes,
aos quaes serão remettidos os documentos e peças comprobatórias da
infracção;
E qualquer interessado, com assistência daquelle
funccionário e seus ajudantes.
Iniciada a acção de nullidade nos casos do Art. 1
Paragr. 2, números 1, 2 e 3, ficarão suspensos até final decisão os
effeitos da patente e o uso ou emprego da invenção.
Se não fôr annulada a patente, o concessionário será
restituído ao gozo della com a integridade do prazo do privilégio.
Paragr. 4 - A caducidade das patentes será declarada pelo Ministro
e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Commércio e Obras
Públicas, com recurso para o Conselho de Estado.
Art. 6 Serão considerados infractores do privilégio:
1 - Os que, sem licença do concessionário, fabricarem os
productos, ou empregarem os meios, ou fizerem as applicações que
fôrem objecto da patente;
2 - Os que importarem, ou venderem ou expuzerem à venda,
occultarem ou receberem para o fim de serem vendidos productos
contrafeitos da indústria privilegiada, sabendo que o são.
Paragr. 1 - Os infractores do privilégio serão punidos, em favor dos
cofres públicos, com a multa de 500$ a 5:000$; e em favor do
concessionário da patente, com 10 a 50% do damno causado ou que
poderão causar.
Paragr. 2 - Serão consideradas circunstâncias aggravantes:
1 - Ser ou ter sido o infractor empregado ou operário nos
estabelecimentos do concessionário da patente;
2 - Associar-se o infractor com o empregado ou operário do
concessionário, para ter conhecimento do modo prático de obter-se ou
empregar-se a invenção.
Paragr. 3 - Dispondo-se das infracções de privilégio competente
aos juízos de direito das comarcas onde ellas se derem os quaes
expedirão, a requerimento do concessionário ou de seu legítimo
representante, os mandados de busca, apprehensão ou depósito, e
ordenarão as diligências preparatórias ou instructivas do processo.
O julgamento será regulado pela lei n. 562, de 2 de
Julho de 1850, e pelo decreto n. 707 de 9 de Outubro do mesmo anno,
no que fôrem applicáveis.
Os productos de que tratão os números 1 e 2 deste
artigo, e os respectivos instrumentos e apparelhos serão adjudicados ao
concessionário da patente, pela mesma sentença, que condemnar os
autores das infracções.
Paragr. 4 - O processo não obstará à acção para o concessionário
haver a indemnização do damno causado ou que se poderia causar.
Paragr. 5 - A jurisdição commercial é competente para todas as
causas relativas a privilégios industriaes, na conformidade desta lei.
Paragr. 6 - Serão punidos com multa de 100$ a 500$, em favor dos
cofres públicos:
1 - Os que se inculcarem possuidores de patentes, usando de
emblemas, marcas, letreitos ou rótulos sobre productos ou objectos
preparados para o commércio, ou expostos à venda, como se fôssem
privilegiados.
2 - Os inventores que continuarem a exercer a indústria como
privilegiada, estando a patente suspensa, annullada ou caduca.
3 - Os inventores privilegiados que, em prospectos, annuncios,
letreiros ou por qualquer modo de publicidade fizerem menção das
patentes, sem designarem o objecto especial para que as tiverem obtido.
4 - Os profissionaes ou peritos que na hypothese do Paragr. 2, Art.
3 derem causa à vulgarização do segredo da invenção, sem prejuízo,
neste caso, das acções criminaes ou civis que as leis permittirem.
Paragr. 7 - As infracções de que trata o paragrapho antecedente
serão processadas e julgadas, como crimes policiaes na conformidade da
legislação em vigor.
Art. 7
Quando a patente fôr concedida a dous ou mais co-
inventores, ou se tornar commum por título de doação ou successão,
cada um dos proprietários poderá usar della livremente.
Art. 8
Se a patente fôr dada ou deixada em usofructo, será o
usofructuário obrigado, quando o seu direito cessar por extincção do
usofructo ou terminação do prazo do privilégio, a dar ao senhor da sua
propriedade o valor em que esta fôr estimada, calculada com relação ao
tempo que durar o usofructo.
Art. 9
As patentes de invenção já concedidas continuão a ser
regidas pela lei de 28 de Agosto de 1830, sendo-lhes applicadas as
disposições do Art. 5, paragr. 2, número 1 e 2 e do Art. 6 da presente lei,
com excepções dos processos ou das acções pendentes.
Art. 10
Ficão revogadas as disposições em contrário.”
Fonte: O Auxiliador da Indústria Nacional, Janeiro/1883.