Obituário: um gênero em construção?
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Obituário: um gênero em construção?
SUZANO ANO 4 ISSN: 2176-5227 Nº 3 ABR. 2012 REVISTA INTERFACES 27 Obituário: um gênero em construção? Maria Cristina Sperandio Veiga Cimminiello Faculdade Unida de Suzano - UNISUZ ([email protected]) Alba Lúcia Romeiro Tambelli Faculdade Unida de Suzano - UNISUZ ([email protected]) Resumo Em razão do nosso interesse sobre o assunto e com o objetivo de analisar sua origem e a estrutura usada pelo obituarista daquele periódico, propusemos o estudo do obituário como mais uma opção de gênero para ser trabalhado em sala de aula. Para tanto, escolhemos como corpus do trabalho os textos publicados no jornal Folha de São Paulo, no período de 24 a 31 de outubro de 2007 e de 01 a 04 de novembro de 2007. Esse período foi escolhido porque em 24 de outubro foi publicado o primeiro obituário. Analisamos os obituários, dividindo-os em duas partes título e texto. Os textos foram divididos em introdução, desenvolvimento e conclusão. Alcançamos nossos objetivos. Os obituários possuem uma estrutura estável que nos permite defini-los como relatos, e identificá-los como gênero do discurso jornalístico. Sua construção composicional é específica para o meio de comunicação em que estão inseridos. Foi possível determinar a estrutura dos obituários a partir de estudos sobre gêneros textuais. Para um aprofundamento do tema, estudos futuros poderão ser feitos no sentido de verificar se, para além de um gênero do discurso jornalístico, os obituários poderiam ser classificados como gêneros literários. Palavras Chave: obituário; gênero; texto e discurso jornalístico. Introdução Os obituários são textos publicados no caderno Cotidiano na coluna Mortes. Nessa coluna são divulgados pequenos anúncios de pessoas falecidas, convites para cerimônias religiosas e os serviços fúnebres do município. Com o objetivo de analisar sua origem e a estrutura usada pelo obituarista daquele periódico, propusemos o estudo do obituário como mais uma opção de gênero para ser trabalhado em sala de aula. Para tanto, escolhemos como corpus do trabalho os textos publicados no jornal Folha de São Paulo, no período de 24 a 27 de outubro de 2007, de 30 e 31 de outubro, e de 01 a 04 de novembro de 2007. Esse período foi escolhido porque em 24 de outubro foi publicado o primeiro obituário no jornal Folha de São Paulo. Objetivando definir se os obituários publicados têm uma estrutura estável, de modo a ser considerado um gênero e a viabilidade de sua utilização nas salas de aula, iniciamos nossa discussão teórica com o estudo sobre gêneros do discurso. Discurso e texto Bakhtin (2003, p. 262) denomina gêneros do discurso os enunciados que contenham conteúdo temático, estilo e construção composicional específicos em um determinado campo da comunicação. A diversidade dos gêneros do discurso baseia-se na atividade humana. Isso nos mostra a existência da grande heterogeneidade desses gêneros (orais e escritos). As réplicas do diálogo do cotidiano, o relato do dia-a-dia, a carta, o comando militar lacônico padronizado, as manifestações publicistas, as manifestações científicas e os gêneros literários, do provérbio ao romance, são exemplos citados por Bakhtin para salientar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso. Marcuschi (2005, p.19) esclarece que “[...] os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”. São eventos textuais maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem das necessidades e atividades sócioculturais e na relação com inovações tecnológicas, fato comprovado se considerarmos a quantidade de gêneros textuais existentes hoje em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita. A heterogeneidade dos gêneros discursivos permite que eles sejam definidos como gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos). No processo de formação dos gêneros secundários (romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc...), são incorporados diversos gêneros primários (simples), que se formam nas condições da comunicação discursiva imediata (BAKHTIN, 2003, p. 263). A linguagem literária evolui de acordo com a sua penetração em todos os gêneros, em maior ou menor grau, com os novos procedimentos de gênero de construção do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusão do ouvinte ou parceiro. 28 REVISTA INTERFACES SUZANO TIPOS TEXTUAIS GÊNEROS TEXTUAIS 1- constructos teóricos definidos por propriedades linguísticas intrínsecas; 1- realizações linguísticas concretas definidas por propriedades sóciocomunicativas; 2- constituem sequências linguísticas ou sequências de enunciados no interior dos gêneros e não são textos empíricos; 2- constituem textos empiricamente realizados cumprindo funções em situações comunicativas; 3- sua nomeação abrange um conjunto limitado de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbal; 4- designações teóricas dos tipos: narração, argumentação, descrição, injunção e exposição. 3- sua nomeação abrange um conjunto aberto e praticamente ilimitado de designações concretas determinadas pelo canal, estilo, conteúdo, composição e função; 4- exemplos de gêneros: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete, aula expositiva, reunião de condomínio, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras, cardápio, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha, edital de concurso, piada, conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo virtual, aulas virtuais, etc. Quadro 1: Tipos Textuais e Gêneros Textuais. As expressões “gênero textual”, “gênero discursivo” ou “gênero do discurso”, segundo Marcuschi (2008, p.154), podem ser usadas intercambiavelmente, salvo naqueles momentos em que se pretende identificar algum fenômeno específico. No obituário, objeto desse trabalho, são apresentados os fatos da vida da pessoa falecida. Marcuschi (2005, p.35) destaca que “Gêneros textuais não são fruto de invenções individuais, mas formas socialmente maturadas em práticas comunicativas”. Cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2003, p. 262). Os gêneros que aparecem nos trabalhos escolares são as narrativas de aventuras, as notícias do dia a dia, as receitas de cozinha, entre outras. Assim é importante trabalhar com o aluno gêneros que ele não domina ou o faz de maneira insuficiente, os dificilmente acessíveis e gêneros públicos e não privados. O aluno precisa aprender a resolver os problemas que vão surgindo à medida em que ele está elaborando um texto. Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.104), apresentam quatro níveis de abordagens para a produção de textos: a representação da situação de comunicação; a elaboração dos conteúdos; o planejamento do texto e a realização do texto. Na representação da situação de comunicação, o aluno deverá aprender a fazer uma imagem do destinatário do texto, da finalidade e da sua posição como autor ou locutor. Na elaboração dos conteúdos, o aluno deverá co- ANO 4 Nº 3 ABR. 2012 ISSN: 2176-5227 nhecer as técnicas para elaborar, buscar ou criar conteúdos, entendendo que as técnicas diferem em função das características de cada gênero. No planejamento do texto, o aluno deverá estruturar seu texto de acordo com a finalidade que deseja atingir ou do destinatário do texto. Na realização do texto, o aluno deverá escolher os meios de linguagem mais adequados para escrever seu texto, utilizar vocabulário correto, variar os tempos verbais, servir-se de organizadores textuais para estruturar o texto. Outro ponto importante destacado pelos autores é que o professor deve variar as atividades e os exercícios. Executar trabalhos em grupo, propondo aos alunos atividades diversificadas, dando a eles a possibilidade de ter acesso às noções e aos instrumentos, aumentando suas chances de sucesso. Marcuschi (2008, p. 206) indaga se diante da multiplicidade de gêneros existentes, existe um gênero ideal para utilizar-se em sala de aula. Segundo ele, os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs (BRASIL, 1997) têm grande dificuldade quando chegam a este ponto. Aparentemente existem gêneros adequados para a leitura e outros para a produção. Uma observação atenta e qualificada dos gêneros textuais presentes nos manuais de ensino, revela que utilizamos sempre os mesmos. Os demais figuram apenas para distração dos alunos. Gênero textual e ensino Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 120) explicam que se deve encarar a aprendizagem como um conjunto de aprendizagens específicas de gêneros textuais variados. Ter o domínio do processo de escrita de um texto narrativo não significa que se têm o domínio do processo de escrita de um texto explicativo. Cada gênero de texto necessita de um ensino adaptado, pois apresenta características distintas: os tempos verbais, por exemplo, não são os mesmos quando se relata uma experiência vivida ou quando se escrevem instruções para a fabricação de um objeto. Em compensação, os gêneros podem ser agrupados em função de certo número de regularidades linguísticas e de transferências possíveis. De acordo com os autores, para serem inseridos na tradição didática da escola, é preciso que os grupamentos:1-correspondam às grandes finalidades sociais atribuídas ao ensino, cobrindo os domínios essenciais de comunicação escrita e oral em nossa sociedade; 2- retomem, de maneira flexível, certas distinções tipológicas, da maneira como já funcionam em vários manuais, planejamentos e currículos; 3- sejam relativamente homogêneos quanto às capacidades de linguagem implicadas no domínio dos gêneros agru- SUZANO ANO 4 ISSN: 2176-5227 Nº 3 ABR. 2012 REVISTA INTERFACES pados (DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY, 2004, p.120). Com base nesses critérios, os autores nos apresentam um quadro com os Aspectos Tipológicos: DOMINIOS SOCIAIS DE COMUNICAÇÃO CAPACIDADES DE LINGUAGEM DOMINANTES EXEMPLOS DE GÊNEROS ORAIS E ESCRITOS Cultura literária funcional NARRAR Mimeses da ação através da criação de intriga Conto maravilhoso Fábula Lenda Narrativa de aventura Narrativa de enigma Narrativa de ficção científica Novela fantástica Conto parodiado Documentação e memorização de ações humanas RELATAR Representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo. Relato de experiência vivida Relato de viagem Testemunho Curriculum vitae Noticia - Reportagem Crônica esportiva Ensaio biográfico Discussão de problemas sociais controversos ARGUMENTAR Sustentação, refutação e negociação de tomadas de posição Texto de opinião Diálogo argumentativo Carta ao leitor Carta de reclamação Deliberação informal Debate regrado Discurso de defesa (adv.) Discurso de acusação (adv.) Transmissão e construção de saberes EXPOR Apresentação textual de diferentes formas dos saberes Seminário Conferência Artigo ou verbete de enciclopédia Entrevista de especialista Tomada de notas Resumo de textos “expositivos” ou explicativos Relatório Científico Relato de experiência científica Instruções e prescrições DESCREVER AÇÕES Regulação mútua de comportamentos Instruções de montagem Receita Regulamento Regras de jogo Instruções de uso Instruções Quadro 2: Aspectos Tipológicos. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs encontramos: Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio com textos verdadeiros, com leitores e escritores verdadeiros e com situações de comunicação que os tornem necessários. Fora da escola escrevem-se textos dirigidos a interlocutores de fato. Todo texto pertence a um determinado gênero, com uma forma própria, que se pode aprender. Quando entram na escola, os textos que circulam socialmente cumprem um papel modelizador, servindo como fonte de referência, repertório textual, suporte da atividade intertextual. A diversidade textual que existe fora da escola pode e deve estar a serviço da expansão do conhecimento letrado do aluno (BRASIL, 1997, p.28). 29 Origem do Obituário na Mídia Os obituários começaram a ser publicados, pelo jornal Folha de São Paulo, em 24 de outubro de 2007, assinados pelo jornalista Willian Vieira. Diferente das reportagens sobre as mortes ocorridas por assassinato ou acidentes de trânsito, os obituários são leituras agradáveis, relatadas com estilo e sensibilidade. Escrever um obituário é um trabalho jornalístico que exige que se entrevistem amigos e parentes daquele que morreu. A pesquisa precisa ser tão meticulosa quanto possível. Não se apresenta o morto como um santo ou um monstro. É preciso ser realista, às vezes picante, sem se injusto ou cruel. Os melhores amigos do morto serão capazes de fechar o jornal e dizer “esse era o Abner que conheci em vida”. O objetivo dessas publicações é mudar a visão mórbida do obituário, mostrando uma boa história humana, próxima e bem narrada. Assim como o jornal Estado de São Paulo entendeu ser importante essa publicação e a fez quando estava apresentando o novo desenho do jornal, é possível que outros editores concordem que vale a pena mostrar ao grande público pessoas que foram importantes na vida de alguém e mereceriam tornarem-se conhecidas por todos os leitores. Texto e contexto Um texto pode trazer na sua configuração vários tipos textuais como a narração, a descrição, a dissertação, a argumentação e a injunção (Silva, 1999, p.101). Podemos completar essa definição com a posição de Marcuschi (2008, p. 154), quando ele nos explica que “tipo textual designa uma espécie de construção teórica, definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas e estilo)”. A estrutura do gênero textual está ligada ao suporte midiático que o apresenta. Esse suporte é um “lócus físico ou virtual, com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto” (MARCUSCHI, 2008, p.174). O sentido do texto Koch (2003, p. 16) explica que o conceito de texto depende do conhecimento que temos de língua e sujeito. Se observarmos a língua como representação do pensamento e de sujeito como dono de suas ações e de seu dizer, o texto será visto como um produto do pensamento, cabendo ao leitor apenas ouvir o autor. O sentido do texto é construído na interação textosujeito e não algo que pre-exista a essa interação. A coerência refere-se ao modo como os elementos pre- 30 REVISTA INTERFACES SUZANO sentes na superfície textual constituem uma configuração veiculadora de sentidos. Estrutura do texto Marcuschi (2005, p. 27) explica que os traços linguísticos predominantes em um texto é que vão defini-lo. A coesão textual está na habilidade de organizar as sequências tipológicas com uma armação de base. Quando se diz que um texto é narrativo, descritivo ou argumentativo, estamos determinando o predomínio de uma sequência de base. Seguindo a sugestão de Werlich (apud Marcuschi, 2005, p. 27), na qual ele considera que os meios adequados para a formulação da tipologia são o título ou o início do texto, iniciaremos o estudo dos obituários pelos títulos. Título Guimarães (202, p. 50) considera o título como fator estratégico da articulação do texto. Ele pode substituir a leitura da sinopse, auxiliar na elaboração do trabalho de indexação, resumo e tradução e funcionar como roteiro na sequência do texto didático. Segundo a autora, o discurso jornalístico apresenta os aspectos mais importantes figurando em primeiro lugar. O título funciona “[...] como o lembrete de uma informação conhecida, remetendo a um elemento anterior, não enunciado no texto, mas presente no espírito do leitor.”(GUIMARÃES, 2002, p. 51). Os títulos dos obituários demonstram a preocupação do jornalista em destacar a passagem mais representativa da vida da pessoa que morreu e assim chamar a atenção do leitor. O texto está sempre de acordo com o título porque, se assim não fosse, ficaria a sensação de que o autor mentiu. No quadro abaixo, apresentamos os títulos os obituários que estamos estudando: DATA PÁGINA DA PUBLICAÇÃO TITULO 24/10/2007 C4 Marco Maia, estilista carioca 25/10/2007 C10 Miguel Idalgo, primeiro patrão de Lula 26/10/2007 C4 Mário Sayeg, pioneiro da gerontologia 27/10/2007 C8 Antonio Mendonça, pastor protestante 30/10/2007 C4 Elisabete Hart, a eterna voz do Oscar 31/10/2007 C2 Hélio Cherubini, o legista obstetra 01/11/2007 C6 José Carlos da Fonseca, um ruralista 02/11/2007 C4 José Correa, o maior devedor do BB 03/11/2007 C4 Eduarda Delascio, mulher do médico 04/11/2007 C4 Gratagliano, o pracinha Quadro 3 -Títulos dos Obituários. ANO 4 Nº 3 ABR. 2012 ISSN: 2176-5227 No primeiro título, “Marco Maia, estilista carioca”, observamos que o autor do texto destacou a profissão e o local aonde vivia a pessoa sobre quem ele escreve. No segundo título, “Miguel Idalgo, primeiro patrão de Lula”, somos informados da relação de Miguel Idalgo com o Presidente da República, mas é necessário ler a matéria para sabermos quando ocorreu esse fato. No terceiro título, “Mário Sayeg, pioneiro da gerontologia”, o autor trabalha a curiosidade do leitor, subentendida na pergunta “O que é gerontologia?”. No quarto título, “Antonio Mendonça, pastor protestante”, a informação passada ao leitor é clara. Dificilmente alguém não saberá dizer o que faz um pastor protestante. No quinto título, “Elizabeth Hart, a eterna voz do Oscar”, o autor leva o leitor a lembrar-se da festa do Oscar. Na entrega do prêmio, comenta-se o evento em si e não as pessoas que fazem a tradução dos que os apresentadores e premiados dizem sobre o prêmio. Os tradutores precisam ter conhecimento e experiência suficientes para que possamos compreender as piadas, que, quando mal interpretadas, perdem totalmente a graça e a transmissão perde o brilho. No sexto título, “Hélio Cherubini, o legista obstetra”, o autor trabalha novamente a curiosidade do leitor. Podemos considerar como paradoxo a frase “o legista obstetra”, porque encontramos dois pontos opostos: o legista lida com a morte e o obstetra com a vida. No sétimo título, “José Carlos da Fonseca, um ruralista”, é um tiíulo simples, porém quando lemos o texto, percebemos que foi omitida a palavra Militante, que se houvesse sido destacada no título, traria de imediato a certeza de que estava se falando de uma pessoa ligada a um movimento político. No oitavo título, “José Correa, o maior devedor do BB”, embora pareça que o autor estava mostrando um lado negativo do caráter da pessoa sobre quem estava escrevendo, a matéria relata bem, porque ele foi considerado o maio devedor do BB e o que o levou a obter esse título. No nono título, “Eduarda Delascio, mulher do médico”, é importante observar que o autor usou a conjunção “do” e não a preposição “de”, para identificar a pessoa de quem ele fala. Novamente é preciso ler-se o texto para entender o título. No décimo título, “Gratagliano, o pracinha”, o autor nos apresenta um brasileiro descendente de italianos que lutou na guerra. Pracinha era o termo que designava os soldados brasileiros que foram convocados para lutar na Itália. Texto O obituário é um texto publicado no jornal Folha de São Paulo, no caderno Cotidiano. Esse caderno reserva um espaço denominado Mortes, no qual são SUZANO ANO 4 ISSN: 2176-5227 Nº 3 ABR. 2012 REVISTA INTERFACES destacados os obituários, os nomes de pessoas falecidas, cerimônias religiosas, ecumênicas, e a indicação de serviços para anúncios fúnebres. Quem determina o tamanho da coluna é o diagramador. Assim, a quantidade de parágrafos do obituário é determinada pelo espaço que o obituarista terá para escrever o texto e não pela quantidade de informações que ele possui sobre a pessoa que faleceu. Na análise das introduções, os parágrafos iniciais demonstram que predomina a marcação temporal: TITULO ATIVIDADE PROFISSIONAL CARACTERÍSTICA PESSOAL Marco Maia, estilista carioca Ao criticar o desfile de verão da marca Santa Ephigênia, no ano passado [...] Marcação temporal – oração subordinada adverbial temporal reduzida de infinitivo. Miguel Idalgo, primeiro patrão de Lula Quando Miguel Serrano Idalgo carimbou a carteira daquele Pernambucano obstinado [...] Marcação temporal – oração subordinada adverbial temporal. (Introduzida pela conjunção subordinativa temporal quando).. Nos idos dos anos 1960, quando poucos atentavam para a velhice [...] Marcação temporal – “Nos idos dos anos 1960” - oração adverbial temporal, marcada pela conjunção quando. Mário Sayeg, pioneiro da gerontologia Antonio Mendonça, pas- Não havia contradição tor protestante em ser pastor e pesquisador do protestantismo e defender o ecumenismo na visão do professor Antonio Gouvêa Mendonça Convicção religiosa e crítica – “não havia contradição”. Quem viu a entrega do Oscar pela TV Globo nas décadas de 1980 e 1990 tem na memória a voz de Maria Elisabete Figueiredo Hart Identificação do homenageado por característica física: a voz. Durante mais de vinte anos ele entrou na sala de aula com o rosto sério e os slides debaixo do braço – com fotos de cadáveres que ele [...] Omissão do nome – desperta a curiosidade do leitor. José Carlos da Fonseca, um ruralista Houve um tempo em que os políticos usavam chapéu e eram mais honestos, pensava José Carlos da Fonseca. Marcação temporal – “Houve um tempo” –oração adverbial temporal. José Correa, o maior devedor do BB José Arlindo Passos Correa tinha uma vida pacata e uma bela casa em Votuporanga, interior de São Paulo, com a mulher e os dois filhos. Identificação do homenageado no inicio do primeiro parágrafo. Eduarda Delascio, mulher do médico Eduarda Delascio foi daquelas mulheres que vivem abnegadas a vida de outrem[...] Identificação da homenageada no início do parágrafo. Gratagliano, o pracinha Quando Vicente Gratagliano entrou naquele navio com outros pracinhas[...] Marcação temporal – oração subordinada adverbial temporal. (introduzida pela conjunção subordinativa temporal quando). Elisabete Hart, a eterna voz do Oscar Hélio Cherubini, o legista obstetra Quadro 4 - Análise dos parágrafos introdutórios. 31 Na análise do desenvolvimento dos textos, mostraremos as informações que os obituários nos trazem sobre a vida e sentimentos dos homenageados. Nos textos que apresentaremos existem informações sobre a personalidade, modo de vida, sucessos alcançados, paixões e opiniões políticas. TITULO ATIVIDADE PROFISSIONAL CARACTERÍSTICA PESSOAL Marco Maia, estilista carioca Estilista Apostava na ousadia. Miguel Idalgo, primeiro patrão de Lula Empresário – admirava Luiz Inácio da Silva Sempre votou em “Luiz”. Mário Sayeg, pioneiro da gerontologia Cardiologista – especializou-se em envelhecimento Formou a primeira turma da especialização em envelhecimento e saúde do idoso. Antonio Mendonça, pas- Professor e pastor tor protestante Tornou-se conhecido por seus estudos em sociologia do protestantismo. Elisabete Hart, a eterna voz do Oscar Tradutora e intérprete Tinha orgulho de ter aprendido inglês não na escola, mas na vida. Hélio Cherubini, o legista obstetra Obstetra e legista Adorava dizer que cuidava sozinho dos mortos “da barranca do rio em Santa Fé do Sul”. José Carlos da Fonseca, um ruralista Advogado, repórter, deputado Visão de mundo: “Política não é profissão. José Correa, o maior devedor do BB Empresário – informado Julgava injustos os juros cobrados. na introdução Eduarda Delascio, mulher do médico Enfermeira – dona de casa – informado na conclusão Abandonou a carreira para dedicar-se à do marido – informado na conclusão. Gratagliano, o pracinha Feirante Não se orgulhava dos tiros e preferia não fazer as contas que quantas “vidas inimigas” tirara da guerra. Quadro 5 - Desenvolvimento do texto. Nas conclusões, o obituarista quase sempre escreve a idade e a causa da morte do homenageado. Em alguns o texto é bem simples em outros ele apresenta alguns detalhes de hábito ou qualidades do homenageado e apresenta informações sobre familiares. TITULO LOCAL DO FALECIMENTO CAUSA DA MORTE Marco Maia, InforMãe – informado no estilista carioca mado na desenvolvimento introdução – 51 anos Informado na introdução – Rio de Janeiro Enfisema pulmonar Miguel Idalgo, Em torno primeiro patrão dos 90 de Lula anos Filhos e netos. Provavelmente São Paulo – informado no 2º parágrafo Parada cardíaca Mário Sayeg, pioneiro da gerontologia 82 anos Esposa. Rio de Janeiro Infecção pulmonar Antonio Mendonça, pastor protestante 85 anos Tia – informado no desenvolvimento. Provavelmente São Paulo – informado no 5º parágrafo Câncer IDADE FAMILIARES CITADOS 32 REVISTA INTERFACES SUZANO TITULO IDADE FAMILIARES CITADOS LOCAL DO FALECIMENTO CAUSA DA MORTE Elisabete Hart, a eterna voz do Oscar 64 anos Filhos e netos. Rio de Janeiro Câncer Hélio Cherubini, o legista obstetra 82 anos Filhas, netos e genros. Provavelmente São Paulo – informado no 5º parágrafo Broncopneumonia José Carlos da Fonseca, um ruralista 76 anos Filhos e netos. Brasília Câncer José Correa, o maior devedor do BB 58 anos Família. São José do Rio Preto Infarto Eduarda Delascio, mulher do médico 92 anos Marido, filhos e netos. Provavelmente São Paulo – informado no 3º parágrafo Pneumonia Gratagliano, o pracinha 88 anos Família – informado no desenvolvimento. São Paulo Não informado no texto Quadro 6 - Resumo das conclusões Considerações finais Diante do estudo realizado concluímos que esses obituários têm uma estrutura estável que nos permite defini-los como relatos, conforme nos ensinam Dolz, Schneuwly e Noverraz, e identificá-los como gênero do discurso jornalístico, de acordo com a definição de Bakhtin. São textos que contém conteúdo temático, apresentam a vida de pessoas comuns, que ficam conhecidas a partir da publicação dos obituários; possuem estilo próprio, são relatos que nos apresentam experiências vividas em um determinado tempo. E sua construção composicional é específica para o meio de comunicação em que estão inseridos, possuem título, introdução, desenvolvimento e conclusão obedecendo sempre a diagramação da página em que são publicados. Os títulos sempre trazem um detalhe da vida do homenageado; na introdução encontramos em vários deles a predominância da marcação temporal; no desenvolvimento do texto fatos relevantes ou curiosos que mostram como viveram; na conclusão encontramos sempre a causa da morte. Foi possível determinar a estrutura dos obituários a partir de estudos sobre gêneros textuais. Para um aprofundamento do tema, estudos futuros poderão ser feitos no sentido de verificar se, para além de um gênero do discurso jornalístico, os obituários poderiam ser classificados como gêneros literários. Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. São Paulo: Pontes, 1989. BRASIL.MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros cur- ANO 4 Nº 3 ABR. 2012 ISSN: 2176-5227 riculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997. DOLZ, Joaquim, NOVERRAZ, Michele, SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento IN: ROJO, Roxane. CORDEIRO, Glaís Sales (Org.). Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado de Letras, 2004. GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 25. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2006. GUIMARÃES, Elisa. A articulação do texto. 8. ed. São Paulo: Ática, 2002. KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2003. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade IN: DIONISIO, Ângela Paiva, MACHADO, Anna Rachel, BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.). Gêneros Textuais e Ensino. 4. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 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Alba Lúcia Romeiro Tambelli Licenciada em Letras pela Universidade de Mogi das Cruzes (1969), Licenciatura em Pedagogia pela Universidade de Mogi das Cruzes (1972) e doutorado em Semiótica e Lingüística pela Universidade de São Paulo (2002). Atualmente ministra aulas de Língua Portuguesa nos cursos de Gestão Financeira e Letras, na Faculdade Unida de Suzano – UNISUZ, em Suzano (SP).