Obituário: um gênero em construção?

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Obituário: um gênero em construção?
SUZANO ANO 4
ISSN: 2176-5227
Nº 3
ABR. 2012
REVISTA INTERFACES
27
Obituário: um gênero em construção?
Maria Cristina Sperandio Veiga Cimminiello
Faculdade Unida de Suzano - UNISUZ ([email protected])
Alba Lúcia Romeiro Tambelli
Faculdade Unida de Suzano - UNISUZ ([email protected])
Resumo
Em razão do nosso interesse sobre o assunto e com o objetivo de analisar sua origem e a estrutura usada pelo
obituarista daquele periódico, propusemos o estudo do obituário como mais uma opção de gênero para ser
trabalhado em sala de aula. Para tanto, escolhemos como corpus do trabalho os textos publicados no jornal
Folha de São Paulo, no período de 24 a 31 de outubro de 2007 e de 01 a 04 de novembro de 2007. Esse período foi
escolhido porque em 24 de outubro foi publicado o primeiro obituário. Analisamos os obituários, dividindo-os
em duas partes título e texto. Os textos foram divididos em introdução, desenvolvimento e conclusão. Alcançamos nossos objetivos. Os obituários possuem uma estrutura estável que nos permite defini-los como relatos,
e identificá-los como gênero do discurso jornalístico. Sua construção composicional é específica para o meio
de comunicação em que estão inseridos. Foi possível determinar a estrutura dos obituários a partir de estudos
sobre gêneros textuais. Para um aprofundamento do tema, estudos futuros poderão ser feitos no sentido de
verificar se, para além de um gênero do discurso jornalístico, os obituários poderiam ser classificados como
gêneros literários.
Palavras Chave: obituário; gênero; texto e discurso jornalístico.
Introdução
Os obituários são textos publicados no caderno Cotidiano na coluna Mortes. Nessa coluna são divulgados pequenos anúncios de pessoas falecidas, convites
para cerimônias religiosas e os serviços fúnebres do
município.
Com o objetivo de analisar sua origem e a estrutura usada pelo obituarista daquele periódico, propusemos o estudo do obituário como mais uma opção de
gênero para ser trabalhado em sala de aula.
Para tanto, escolhemos como corpus do trabalho
os textos publicados no jornal Folha de São Paulo, no
período de 24 a 27 de outubro de 2007, de 30 e 31 de
outubro, e de 01 a 04 de novembro de 2007. Esse período foi escolhido porque em 24 de outubro foi publicado o primeiro obituário no jornal Folha de São Paulo.
Objetivando definir se os obituários publicados têm
uma estrutura estável, de modo a ser considerado um
gênero e a viabilidade de sua utilização nas salas de
aula, iniciamos nossa discussão teórica com o estudo
sobre gêneros do discurso.
Discurso e texto
Bakhtin (2003, p. 262) denomina gêneros do discurso os enunciados que contenham conteúdo temático,
estilo e construção composicional específicos em um
determinado campo da comunicação.
A diversidade dos gêneros do discurso baseia-se
na atividade humana. Isso nos mostra a existência
da grande heterogeneidade desses gêneros (orais e
escritos). As réplicas do diálogo do cotidiano, o relato
do dia-a-dia, a carta, o comando militar lacônico padronizado, as manifestações publicistas, as manifestações científicas e os gêneros literários, do provérbio
ao romance, são exemplos citados por Bakhtin para
salientar a extrema heterogeneidade dos gêneros do
discurso.
Marcuschi (2005, p.19) esclarece que “[...] os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”. São eventos textuais
maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem das necessidades e atividades sócioculturais e na relação com
inovações tecnológicas, fato comprovado se considerarmos a quantidade de gêneros textuais existentes
hoje em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.
A heterogeneidade dos gêneros discursivos permite que eles sejam definidos como gêneros discursivos primários (simples) e secundários (complexos).
No processo de formação dos gêneros secundários
(romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc...), são incorporados diversos gêneros primários (simples), que
se formam nas condições da comunicação discursiva
imediata (BAKHTIN, 2003, p. 263).
A linguagem literária evolui de acordo com a sua
penetração em todos os gêneros, em maior ou menor
grau, com os novos procedimentos de gênero de construção do todo discursivo, do seu acabamento, da inclusão do ouvinte ou parceiro.
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SUZANO
TIPOS TEXTUAIS
GÊNEROS TEXTUAIS
1- constructos teóricos definidos
por propriedades linguísticas
intrínsecas;
1- realizações linguísticas concretas definidas por propriedades
sóciocomunicativas;
2- constituem sequências linguísticas ou sequências de enunciados no interior dos gêneros e não
são textos empíricos;
2- constituem textos empiricamente realizados cumprindo funções em situações comunicativas;
3- sua nomeação abrange um
conjunto limitado de categorias
teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações
lógicas, tempo verbal;
4- designações teóricas dos
tipos: narração, argumentação,
descrição, injunção e exposição.
3- sua nomeação abrange um
conjunto aberto e praticamente ilimitado de designações concretas
determinadas pelo canal, estilo,
conteúdo, composição e função;
4- exemplos de gêneros: telefonema, sermão, carta comercial,
carta pessoal, romance, bilhete,
aula expositiva, reunião de
condomínio, horóscopo, receita
culinária, bula de remédio, lista
de compras, cardápio, instruções
de uso, outdoor, inquérito policial,
resenha, edital de concurso, piada,
conversação espontânea, conferência, carta eletrônica, bate-papo
virtual, aulas virtuais, etc.
Quadro 1: Tipos Textuais e Gêneros Textuais.
As expressões “gênero textual”, “gênero discursivo”
ou “gênero do discurso”, segundo Marcuschi (2008,
p.154), podem ser usadas intercambiavelmente, salvo
naqueles momentos em que se pretende identificar
algum fenômeno específico.
No obituário, objeto desse trabalho, são apresentados os fatos da vida da pessoa falecida. Marcuschi
(2005, p.35) destaca que “Gêneros textuais não são fruto de invenções individuais, mas formas socialmente
maturadas em práticas comunicativas”.
Cada enunciado particular é individual, mas cada
campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2003, p. 262).
Os gêneros que aparecem nos trabalhos escolares
são as narrativas de aventuras, as notícias do dia a dia,
as receitas de cozinha, entre outras. Assim é importante trabalhar com o aluno gêneros que ele não domina ou o faz de maneira insuficiente, os dificilmente
acessíveis e gêneros públicos e não privados.
O aluno precisa aprender a resolver os problemas
que vão surgindo à medida em que ele está elaborando um texto. Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p.104),
apresentam quatro níveis de abordagens para a produção de textos: a representação da situação de comunicação; a elaboração dos conteúdos; o planejamento
do texto e a realização do texto.
Na representação da situação de comunicação, o
aluno deverá aprender a fazer uma imagem do destinatário do texto, da finalidade e da sua posição como
autor ou locutor.
Na elaboração dos conteúdos, o aluno deverá co-
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nhecer as técnicas para elaborar, buscar ou criar conteúdos, entendendo que as técnicas diferem em função das características de cada gênero.
No planejamento do texto, o aluno deverá estruturar seu texto de acordo com a finalidade que deseja
atingir ou do destinatário do texto.
Na realização do texto, o aluno deverá escolher os
meios de linguagem mais adequados para escrever
seu texto, utilizar vocabulário correto, variar os tempos verbais, servir-se de organizadores textuais para
estruturar o texto.
Outro ponto importante destacado pelos autores
é que o professor deve variar as atividades e os exercícios. Executar trabalhos em grupo, propondo aos
alunos atividades diversificadas, dando a eles a possibilidade de ter acesso às noções e aos instrumentos,
aumentando suas chances de sucesso.
Marcuschi (2008, p. 206) indaga se diante da multiplicidade de gêneros existentes, existe um gênero
ideal para utilizar-se em sala de aula. Segundo ele, os
próprios Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs
(BRASIL, 1997) têm grande dificuldade quando chegam
a este ponto. Aparentemente existem gêneros adequados para a leitura e outros para a produção. Uma
observação atenta e qualificada dos gêneros textuais
presentes nos manuais de ensino, revela que utilizamos sempre os mesmos. Os demais figuram apenas
para distração dos alunos.
Gênero textual e ensino
Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 120) explicam
que se deve encarar a aprendizagem como um conjunto de aprendizagens específicas de gêneros textuais variados. Ter o domínio do processo de escrita de
um texto narrativo não significa que se têm o domínio
do processo de escrita de um texto explicativo.
Cada gênero de texto necessita de um ensino adaptado, pois apresenta características distintas: os tempos verbais, por exemplo, não são os mesmos quando
se relata uma experiência vivida ou quando se escrevem instruções para a fabricação de um objeto.
Em compensação, os gêneros podem ser agrupados em função de certo número de regularidades linguísticas e de transferências possíveis.
De acordo com os autores, para serem inseridos na tradição didática da escola, é preciso que os
grupamentos:1-correspondam às grandes finalidades
sociais atribuídas ao ensino, cobrindo os domínios essenciais de comunicação escrita e oral em nossa sociedade; 2- retomem, de maneira flexível, certas distinções tipológicas, da maneira como já funcionam em
vários manuais, planejamentos e currículos; 3- sejam
relativamente homogêneos quanto às capacidades de
linguagem implicadas no domínio dos gêneros agru-
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pados (DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY, 2004, p.120).
Com base nesses critérios, os autores nos apresentam um quadro com os Aspectos Tipológicos:
DOMINIOS SOCIAIS
DE COMUNICAÇÃO
CAPACIDADES
DE LINGUAGEM
DOMINANTES
EXEMPLOS DE GÊNEROS
ORAIS E ESCRITOS
Cultura literária
funcional
NARRAR
Mimeses da ação
através da criação de
intriga
Conto maravilhoso
Fábula
Lenda
Narrativa de aventura
Narrativa de enigma
Narrativa de ficção científica
Novela fantástica
Conto parodiado
Documentação e
memorização de
ações humanas
RELATAR
Representação pelo
discurso de experiências vividas, situadas
no tempo.
Relato de experiência vivida
Relato de viagem
Testemunho
Curriculum vitae
Noticia - Reportagem
Crônica esportiva
Ensaio biográfico
Discussão de
problemas sociais
controversos
ARGUMENTAR
Sustentação, refutação e negociação de
tomadas de posição
Texto de opinião
Diálogo argumentativo
Carta ao leitor
Carta de reclamação
Deliberação informal
Debate regrado
Discurso de defesa (adv.)
Discurso de acusação (adv.)
Transmissão e
construção de
saberes
EXPOR
Apresentação textual
de diferentes formas
dos saberes
Seminário
Conferência
Artigo ou verbete de enciclopédia
Entrevista de especialista
Tomada de notas
Resumo de textos “expositivos” ou explicativos
Relatório Científico
Relato de experiência
científica
Instruções e
prescrições
DESCREVER AÇÕES
Regulação mútua de
comportamentos
Instruções de montagem
Receita
Regulamento
Regras de jogo
Instruções de uso
Instruções
Quadro 2: Aspectos Tipológicos.
Nos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs encontramos:
Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do convívio com textos verdadeiros, com
leitores e escritores verdadeiros e com situações de comunicação que os tornem necessários. Fora da escola
escrevem-se textos dirigidos a interlocutores de fato.
Todo texto pertence a um determinado gênero, com
uma forma própria, que se pode aprender. Quando
entram na escola, os textos que circulam socialmente
cumprem um papel modelizador, servindo como fonte de referência, repertório textual, suporte da atividade intertextual. A diversidade textual que existe fora
da escola pode e deve estar a serviço da expansão do
conhecimento letrado do aluno (BRASIL, 1997, p.28).
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Origem do Obituário na Mídia
Os obituários começaram a ser publicados, pelo
jornal Folha de São Paulo, em 24 de outubro de 2007,
assinados pelo jornalista Willian Vieira. Diferente das
reportagens sobre as mortes ocorridas por assassinato ou acidentes de trânsito, os obituários são leituras
agradáveis, relatadas com estilo e sensibilidade.
Escrever um obituário é um trabalho jornalístico
que exige que se entrevistem amigos e parentes daquele que morreu. A pesquisa precisa ser tão meticulosa quanto possível. Não se apresenta o morto como
um santo ou um monstro. É preciso ser realista, às vezes picante, sem se injusto ou cruel. Os melhores amigos do morto serão capazes de fechar o jornal e dizer
“esse era o Abner que conheci em vida”.
O objetivo dessas publicações é mudar a visão
mórbida do obituário, mostrando uma boa história
humana, próxima e bem narrada. Assim como o jornal Estado de São Paulo entendeu ser importante
essa publicação e a fez quando estava apresentando o
novo desenho do jornal, é possível que outros editores
concordem que vale a pena mostrar ao grande público
pessoas que foram importantes na vida de alguém e
mereceriam tornarem-se conhecidas por todos os leitores.
Texto e contexto
Um texto pode trazer na sua configuração vários
tipos textuais como a narração, a descrição, a dissertação, a argumentação e a injunção (Silva, 1999, p.101).
Podemos completar essa definição com a posição de
Marcuschi (2008, p. 154), quando ele nos explica que
“tipo textual designa uma espécie de construção teórica, definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais,
relações lógicas e estilo)”.
A estrutura do gênero textual está ligada ao suporte midiático que o apresenta. Esse suporte é um “lócus
físico ou virtual, com formato específico que serve de
base ou ambiente de fixação do gênero materializado
como texto” (MARCUSCHI, 2008, p.174).
O sentido do texto
Koch (2003, p. 16) explica que o conceito de texto
depende do conhecimento que temos de língua e sujeito. Se observarmos a língua como representação do
pensamento e de sujeito como dono de suas ações e
de seu dizer, o texto será visto como um produto do
pensamento, cabendo ao leitor apenas ouvir o autor.
O sentido do texto é construído na interação textosujeito e não algo que pre-exista a essa interação. A
coerência refere-se ao modo como os elementos pre-
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sentes na superfície textual constituem uma configuração veiculadora de sentidos.
Estrutura do texto
Marcuschi (2005, p. 27) explica que os traços linguísticos predominantes em um texto é que vão defini-lo. A coesão textual está na habilidade de organizar
as sequências tipológicas com uma armação de base.
Quando se diz que um texto é narrativo, descritivo ou
argumentativo, estamos determinando o predomínio
de uma sequência de base. Seguindo a sugestão de
Werlich (apud Marcuschi, 2005, p. 27), na qual ele considera que os meios adequados para a formulação da
tipologia são o título ou o início do texto, iniciaremos
o estudo dos obituários pelos títulos.
Título
Guimarães (202, p. 50) considera o título como fator estratégico da articulação do texto. Ele pode substituir a leitura da sinopse, auxiliar na elaboração do
trabalho de indexação, resumo e tradução e funcionar
como roteiro na sequência do texto didático. Segundo
a autora, o discurso jornalístico apresenta os aspectos
mais importantes figurando em primeiro lugar. O título funciona “[...] como o lembrete de uma informação conhecida, remetendo a um elemento anterior,
não enunciado no texto, mas presente no espírito do
leitor.”(GUIMARÃES, 2002, p. 51).
Os títulos dos obituários demonstram a preocupação do jornalista em destacar a passagem mais representativa da vida da pessoa que morreu e assim chamar a atenção do leitor. O texto está sempre de acordo
com o título porque, se assim não fosse, ficaria a sensação de que o autor mentiu.
No quadro abaixo, apresentamos os títulos os obituários que estamos estudando:
DATA
PÁGINA DA
PUBLICAÇÃO
TITULO
24/10/2007
C4
Marco Maia, estilista carioca
25/10/2007
C10
Miguel Idalgo, primeiro patrão de Lula
26/10/2007
C4
Mário Sayeg, pioneiro da gerontologia
27/10/2007
C8
Antonio Mendonça, pastor protestante
30/10/2007
C4
Elisabete Hart, a eterna voz do Oscar
31/10/2007
C2
Hélio Cherubini, o legista obstetra
01/11/2007
C6
José Carlos da Fonseca, um ruralista
02/11/2007
C4
José Correa, o maior devedor do BB
03/11/2007
C4
Eduarda Delascio, mulher do médico
04/11/2007
C4
Gratagliano, o pracinha
Quadro 3 -Títulos dos Obituários.
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ISSN: 2176-5227
No primeiro título, “Marco Maia, estilista carioca”,
observamos que o autor do texto destacou a profissão
e o local aonde vivia a pessoa sobre quem ele escreve.
No segundo título, “Miguel Idalgo, primeiro patrão
de Lula”, somos informados da relação de Miguel Idalgo com o Presidente da República, mas é necessário ler
a matéria para sabermos quando ocorreu esse fato.
No terceiro título, “Mário Sayeg, pioneiro da gerontologia”, o autor trabalha a curiosidade do leitor, subentendida na pergunta “O que é gerontologia?”.
No quarto título, “Antonio Mendonça, pastor protestante”, a informação passada ao leitor é clara. Dificilmente alguém não saberá dizer o que faz um pastor
protestante.
No quinto título, “Elizabeth Hart, a eterna voz do
Oscar”, o autor leva o leitor a lembrar-se da festa do
Oscar. Na entrega do prêmio, comenta-se o evento em
si e não as pessoas que fazem a tradução dos que os
apresentadores e premiados dizem sobre o prêmio.
Os tradutores precisam ter conhecimento e experiência suficientes para que possamos compreender as
piadas, que, quando mal interpretadas, perdem totalmente a graça e a transmissão perde o brilho.
No sexto título, “Hélio Cherubini, o legista obstetra”,
o autor trabalha novamente a curiosidade do leitor.
Podemos considerar como paradoxo a frase “o legista
obstetra”, porque encontramos dois pontos opostos: o
legista lida com a morte e o obstetra com a vida.
No sétimo título, “José Carlos da Fonseca, um ruralista”, é um tiíulo simples, porém quando lemos o
texto, percebemos que foi omitida a palavra Militante, que se houvesse sido destacada no título, traria de
imediato a certeza de que estava se falando de uma
pessoa ligada a um movimento político.
No oitavo título, “José Correa, o maior devedor do
BB”, embora pareça que o autor estava mostrando um
lado negativo do caráter da pessoa sobre quem estava
escrevendo, a matéria relata bem, porque ele foi considerado o maio devedor do BB e o que o levou a obter
esse título.
No nono título, “Eduarda Delascio, mulher do médico”, é importante observar que o autor usou a conjunção “do” e não a preposição “de”, para identificar a
pessoa de quem ele fala. Novamente é preciso ler-se o
texto para entender o título.
No décimo título, “Gratagliano, o pracinha”, o autor
nos apresenta um brasileiro descendente de italianos
que lutou na guerra. Pracinha era o termo que designava os soldados brasileiros que foram convocados
para lutar na Itália.
Texto
O obituário é um texto publicado no jornal Folha
de São Paulo, no caderno Cotidiano. Esse caderno reserva um espaço denominado Mortes, no qual são
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destacados os obituários, os nomes de pessoas falecidas, cerimônias religiosas, ecumênicas, e a indicação
de serviços para anúncios fúnebres.
Quem determina o tamanho da coluna é o diagramador. Assim, a quantidade de parágrafos do obituário é determinada pelo espaço que o obituarista terá
para escrever o texto e não pela quantidade de informações que ele possui sobre a pessoa que faleceu.
Na análise das introduções, os parágrafos iniciais
demonstram que predomina a marcação temporal:
TITULO
ATIVIDADE
PROFISSIONAL
CARACTERÍSTICA
PESSOAL
Marco Maia, estilista
carioca
Ao criticar o desfile de
verão da marca Santa
Ephigênia, no ano passado [...]
Marcação temporal –
oração subordinada
adverbial temporal
reduzida de infinitivo.
Miguel Idalgo, primeiro
patrão de Lula
Quando Miguel Serrano Idalgo carimbou
a carteira daquele
Pernambucano obstinado [...]
Marcação temporal –
oração subordinada
adverbial temporal.
(Introduzida pela conjunção subordinativa
temporal quando)..
Nos idos dos anos 1960,
quando poucos atentavam para a velhice [...]
Marcação temporal
– “Nos idos dos anos
1960” - oração adverbial
temporal, marcada pela
conjunção quando.
Mário Sayeg, pioneiro
da gerontologia
Antonio Mendonça, pas- Não havia contradição
tor protestante
em ser pastor e pesquisador do protestantismo e defender o
ecumenismo na visão
do professor Antonio
Gouvêa Mendonça
Convicção religiosa e
crítica – “não havia
contradição”.
Quem viu a entrega do
Oscar pela TV Globo
nas décadas de 1980 e
1990 tem na memória a
voz de Maria Elisabete
Figueiredo Hart
Identificação do homenageado por característica física: a voz.
Durante mais de vinte
anos ele entrou na sala
de aula com o rosto
sério e os slides debaixo
do braço – com fotos de
cadáveres que ele [...]
Omissão do nome –
desperta a curiosidade
do leitor.
José Carlos da Fonseca,
um ruralista
Houve um tempo em
que os políticos usavam
chapéu e eram mais
honestos, pensava José
Carlos da Fonseca.
Marcação temporal
– “Houve um tempo”
–oração adverbial
temporal.
José Correa, o maior
devedor do BB
José Arlindo Passos
Correa tinha uma vida
pacata e uma bela casa
em Votuporanga, interior de São Paulo, com a
mulher e os dois filhos.
Identificação do homenageado no inicio do
primeiro parágrafo.
Eduarda Delascio,
mulher do médico
Eduarda Delascio foi
daquelas mulheres que
vivem abnegadas a vida
de outrem[...]
Identificação da homenageada no início do
parágrafo.
Gratagliano, o pracinha
Quando Vicente Gratagliano entrou naquele
navio com outros
pracinhas[...]
Marcação temporal –
oração subordinada
adverbial temporal.
(introduzida pela conjunção subordinativa
temporal quando).
Elisabete Hart, a eterna
voz do Oscar
Hélio Cherubini, o
legista obstetra
Quadro 4 - Análise dos parágrafos introdutórios.
31
Na análise do desenvolvimento dos textos, mostraremos as informações que os obituários nos trazem sobre a vida e sentimentos dos homenageados.
Nos textos que apresentaremos existem informações
sobre a personalidade, modo de vida, sucessos alcançados, paixões e opiniões políticas.
TITULO
ATIVIDADE
PROFISSIONAL
CARACTERÍSTICA
PESSOAL
Marco Maia, estilista
carioca
Estilista
Apostava na ousadia.
Miguel Idalgo, primeiro
patrão de Lula
Empresário – admirava
Luiz Inácio da Silva
Sempre votou em “Luiz”.
Mário Sayeg, pioneiro
da gerontologia
Cardiologista –
especializou-se em
envelhecimento
Formou a primeira
turma da especialização
em envelhecimento e
saúde do idoso.
Antonio Mendonça, pas- Professor e pastor
tor protestante
Tornou-se conhecido
por seus estudos em
sociologia do protestantismo.
Elisabete Hart, a eterna
voz do Oscar
Tradutora e intérprete
Tinha orgulho de ter
aprendido inglês não na
escola, mas na vida.
Hélio Cherubini, o
legista obstetra
Obstetra e legista
Adorava dizer que
cuidava sozinho dos
mortos “da barranca do
rio em Santa Fé do Sul”.
José Carlos da Fonseca,
um ruralista
Advogado, repórter,
deputado
Visão de mundo:
“Política não é profissão.
José Correa, o maior
devedor do BB
Empresário – informado Julgava injustos os juros
cobrados.
na introdução
Eduarda Delascio,
mulher do médico
Enfermeira – dona de
casa – informado na
conclusão
Abandonou a carreira
para dedicar-se à do
marido – informado na
conclusão.
Gratagliano, o pracinha
Feirante
Não se orgulhava dos
tiros e preferia não fazer
as contas que quantas
“vidas inimigas” tirara
da guerra.
Quadro 5 - Desenvolvimento do texto.
Nas conclusões, o obituarista quase sempre escreve a idade e a causa da morte do homenageado. Em
alguns o texto é bem simples em outros ele apresenta
alguns detalhes de hábito ou qualidades do homenageado e apresenta informações sobre familiares.
TITULO
LOCAL DO
FALECIMENTO
CAUSA
DA MORTE
Marco Maia,
InforMãe – informado no
estilista carioca mado na
desenvolvimento
introdução
– 51 anos
Informado na
introdução – Rio de
Janeiro
Enfisema
pulmonar
Miguel Idalgo,
Em torno
primeiro patrão dos 90
de Lula
anos
Filhos e netos.
Provavelmente São
Paulo – informado
no 2º parágrafo
Parada
cardíaca
Mário Sayeg,
pioneiro da
gerontologia
82 anos
Esposa.
Rio de Janeiro
Infecção
pulmonar
Antonio Mendonça, pastor
protestante
85 anos
Tia – informado no
desenvolvimento.
Provavelmente São
Paulo – informado
no 5º parágrafo
Câncer
IDADE
FAMILIARES CITADOS
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SUZANO
TITULO
IDADE
FAMILIARES CITADOS
LOCAL DO
FALECIMENTO
CAUSA
DA MORTE
Elisabete Hart,
a eterna voz do
Oscar
64 anos
Filhos e netos.
Rio de Janeiro
Câncer
Hélio Cherubini, o legista
obstetra
82 anos
Filhas, netos e
genros.
Provavelmente São
Paulo – informado
no 5º parágrafo
Broncopneumonia
José Carlos da
Fonseca, um
ruralista
76 anos
Filhos e netos.
Brasília
Câncer
José Correa, o
maior devedor
do BB
58 anos
Família.
São José do Rio Preto Infarto
Eduarda Delascio, mulher do
médico
92 anos
Marido, filhos e
netos.
Provavelmente São
Paulo – informado
no 3º parágrafo
Pneumonia
Gratagliano, o
pracinha
88 anos
Família – informado
no desenvolvimento.
São Paulo
Não informado
no texto
Quadro 6 - Resumo das conclusões
Considerações finais
Diante do estudo realizado concluímos que esses
obituários têm uma estrutura estável que nos permite
defini-los como relatos, conforme nos ensinam Dolz,
Schneuwly e Noverraz, e identificá-los como gênero
do discurso jornalístico, de acordo com a definição de
Bakhtin.
São textos que contém conteúdo temático, apresentam a vida de pessoas comuns, que ficam conhecidas a partir da publicação dos obituários; possuem
estilo próprio, são relatos que nos apresentam experiências vividas em um determinado tempo.
E sua construção composicional é específica para
o meio de comunicação em que estão inseridos, possuem título, introdução, desenvolvimento e conclusão
obedecendo sempre a diagramação da página em que
são publicados.
Os títulos sempre trazem um detalhe da vida do
homenageado; na introdução encontramos em vários
deles a predominância da marcação temporal; no desenvolvimento do texto fatos relevantes ou curiosos
que mostram como viveram; na conclusão encontramos sempre a causa da morte.
Foi possível determinar a estrutura dos obituários
a partir de estudos sobre gêneros textuais. Para um
aprofundamento do tema, estudos futuros poderão
ser feitos no sentido de verificar se, para além de um
gênero do discurso jornalístico, os obituários poderiam ser classificados como gêneros literários.
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Informações sobre as autoras:
Maria Cristina Sperandio Veiga Cimminiello
Curso de Letras da Faculdade Unida de Suzano. Formada em Direito pela Faculdade Bras Cubas. Durante 30
anos trabalhou em diversos setores administrativos
na Cerâmica São Caetano, pós-graduanda em Psicopedagogia e Professora do Governo do Estado de São
Paulo.
Alba Lúcia Romeiro Tambelli
Licenciada em Letras pela Universidade de Mogi das
Cruzes (1969), Licenciatura em Pedagogia pela Universidade de Mogi das Cruzes (1972) e doutorado em Semiótica e Lingüística pela Universidade de São Paulo
(2002). Atualmente ministra aulas de Língua Portuguesa nos cursos de Gestão Financeira e Letras, na Faculdade Unida de Suzano – UNISUZ, em Suzano (SP).