1 Comentários de Ilka Boaventura Leite do texto de Matthew C
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1 Comentários de Ilka Boaventura Leite do texto de Matthew C
Comentários de Ilka Boaventura Leite do texto de Matthew C.GUTMANN: Beyond Resistance: Raising utopias from the dead in México City and Oaxaca. Draft paper for September 2007 to meeting of “Rethinking Histories of Resistance in Brazil and Mexico Project” México. Neste interessante artigo, Matthew Gutmann lança inicialmente mão da expressão “desobediência conformista”, trazida de seu trabalho sobre cidadania democrática na classe trabalhadora na cidade do México, para relacionar conhecimento, ações políticas e responsabilidade entre os cidadãos da Colônia Santo Domingo, bairro periférico da Cidade do México. Gutmann extrai destes relatos dos moradores de Santo Domingo com quem convive, um enorme cepticismo, uma espécie de descrença nas possíveis mudanças e uma consciência que opera pela dissociação entre o desejado e o possível. Daí que estes supostos atos de consciência marcam um descontentamento, mas não o suficiente para propor mudanças – uma vez que eles não acreditam que elas possam vir de fato a acontecer. O autor discute a desobediência conformista para criticar o termo “agenciamento”, tal como é utilizado para capturar aspectos de desobediência, mas menos capaz de definir conformidade. Como a maioria dos textos produzidos no âmbito deste projeto, há aqui uma crítica à tendência geral da literatura sobre resistência em romantizar os bem sucedidos entre os despossuídos resultando invariavelmente em análises débeis sobre os ‘politicamente fracos’ e consequentemente tornando a passividade política, não simplesmente agenciamento, paradoxalmente, um território não mapeado. Ele sustenta que a popularidade do conceito de agenciamento se deve ao contexto histórico, precisamente como foi usado pelos estudiosos, momento em que também teve advento a teoria da resistência, a partir da qual, pensar em mudanças sociais em larga escala aparece como algo obsoleto, arcaico, possivelmente suspeito e indubitavelmente perigoso. Segundo ele, a teoria de resistência emergiu nessa época como uma “panacéia” para aqueles que não mais acreditavam nas teorias do socialismo e constituiu-se como outra corrente teórica, baseada muito mais em categorias de identidade do que classe. Nos anos 80, teorias sobre formas cotidianas de resistência tornaram-se muito populares os Estados Unidos e com a chegada do novo século também muito atraentes na América Latina. No entanto, o autor chama a atenção para o fato de que, tanto nas teorias de agenciamento como nas teorias de resistência, deve-se dar igual atenção aos sucessos e fracassos, ativismo e passividade para tornar esses conceitos úteis para entender a dinâmica da mudança social. Aponta ainda que nos anos 90 no México, a mudança parecia menos realizável do que nos 80 e, neste sentido, os estudiosos começaram a repensar questões ligadas às classes trabalhadoras e a capacidade que elas têm de alterar seus mundos políticos. As teorias de resistência vieram para complementar os documentos recentemente traduzidos das teorias pósestruturalistas, principalmente aquelas que atribuíam poder a tudo e a todos, não apenas aos grupos dominantes. Neste sentido, o autor afirma que houve um distanciamento da “análise de classe” e estabelece um paralelo entre a substituição das teorias da classe trabalhadora por outras centradas em “classes populares” e a ascensão das teorias de 1 resistência no mesmo período. Isto parece muito interessante para ser desenvolvido, principalmente nos aspectos de micropolitica que o seu campo de análise por vezes prioriza. A partir daí, Gutmann apresenta o que me pareceu mais original em seu paper. Desde suas conversas com Gabriel, um mecânico, morador da Colônia Santo Domingo, ele procura mostrar a sede deste por conhecimento e o seu envolvimento no debate sobre questões políticas e filosóficas. Em contraposição a esta disposição e interesse está o contexto em que Gabriel vive na colônia Santo Domingo. Destaca um aspecto que considera relevante nesta localidade: em comparação com outros bairros no México e em outros países, muitos homens e mulheres têm experiências pessoais de participação em diversas formas de protesto social e resistência em termos gerais, mesmo que na maior parte do tempo a maioria dos moradores típicos não se envolva em protestos ou participe de alguma forma de ação política pública, em meio às flutuações entre atividade política e passividade. Gutmann descreve uma situação multifacetada concluindo que muito poucas pessoas em Santo Domingo estão realmente despreocupadas em relação a questões de mudança social. O modo como eles expressam suas preocupações, enfatiza o autor, constitui uma lição em diversidade e contradição, mas, independentemente disso, seus horizontes políticos se estendem muito além da mera resistência. As conversas relatadas no texto sobre Gabriel e sua busca por conhecimento levam o autor a discutir a idéia de que quando pessoas como ele tornamse mais escolarizadas e mais conscientes de si isto traz implicações na vida política mais amplamente. Porém, se este tipo de consciência de si for levado mais adiante do que a valorização romântica de pessoas pobres e sua capacidade de desconstruir seus retratos depreciativos, este conhecimento deve ser medido de algum modo contra a ignorância e a cumplicidade. Para Gutmann, não importa o quanto os teóricos da mudança atribuam aos “despossuídos” responsabilidade por sua própria miséria, cooptação e duplicidade, pois reconhecer o conhecimento como consciência de si requer conhecimento. Esta parte do trabalho de Gutmann revela um detalhe importante e pouco discutido nas teorias comentadas por ele. No entanto, parece-me que para superar esta ambiguidade seria necessário ir além do exemplo de Gabriel, principalmente através do exame de outras situações neste bairro e na ampliação do seu próprio escopo comparativo para que a envergadura teórica encontre uma correspondência no plano etnográfico. Em seguida, o autor parte para um outro caso e uma outra dimensão social do fenômeno, ao buscar retratar os conflitos sociais desenvolvidos em Oaxaca em 2006. É aqui, onde, talvez a idéia central do texto se perca um pouco em relação à primeira parte e demande o investimento no aspecto comparativo proposto, de tal modo a estabelecer as correlações entre os diferentes planos de análise. Os protestos e agitações em Oaxaca em 2006 foram duramente reprimidos pelo governo, que matou 23 pessoas e prendeu arbitrária e ilegalmente centenas. Gutmann argumenta que é neste contexto de “terrorismo estatal” e de agitações sociais dele decorrentes que devemos nos perguntar o que significa sermos razoáveis em relação às chances de mudança social em grande escala. Pergunto: qual é a escala de sua análise e como juntar o primeiro exemplo com o segundo? A comparação parece ganhar certa coerência quando ele cita Wendy Brown em seu apelo aos estudiosos para “recuperar um imaginário utópico” e esclarece que é esta visão que ele quer contrastar com o realismo deprimente de tantos escritos sobre resistência. 2 O conflito e o movimento social em Oaxaca em 2006 assume uma dimensão analítica mais contundente em seu argumento, principalmente quando descreve o momento de crescimento das disparidades sociais no estado, e ao mesmo tempo de repressão brutal contra o protesto social por parte do governo. Esta repressão foi de encontro a uma efervescência da iniciativa popular. Em Junho de 2007, entre os que se denominavam “oposição” havia uma efervescência de sentimentos utópicos ligados às conquistas do ano anterior. Em suas entrevistas com intelectuais, artistas, estudantes, clérigos da teologia da libertação, etc., Gutmann afirma ter testemunhado um otimismo extraordinário e um humor comemorativo. Nos conflitos de 2006, universidades e outras instituições produtoras de conhecimento, pesquisadores, professores, trabalhadores culturais, intelectuais, organizações não governamentais e outras instituições tiveram um papel fundamental em estabelecer um espaço cívico para informação, debate e protesto social independente. Em contrapartida, Gutmann argumenta que os acontecimentos de 2006 em Oaxaca não devem sugerir que os estudiosos devem concentrar-se exclusivamente em ativismos, rebeliões ou outras formas de oposição intencional ao status quo. Aqui o imaginário utópico é recuperado para reavivar sua análise e recuperar a idéia de que é nos interstícios apáticos e apolíticos que se pode perceber que os desinformados e não envolvidos nunca o são completamente e que visões de um mundo melhor também podem fazer parte do cotidiano até mesmo daqueles que parecem evitar os assuntos políticos. O autor relembra também um outro momento de crise financeira no México (19941995), quando um assunto polêmico de debate na Colonia Santo Domingo eram as marchas e plantones (demonstrações e ocupações) realizadas por diferentes grupos que protestavam questões de austeridade. Esclarece que protestos, marchas, greves e outras manifestações constituem uma parte importante da história do bairro. Desde os primeiros dias após sua invasão em 1971 foi difícil distinguir entre atividades que constituem formas ocultas de resistência e as que representam confronto político declarado. Opiniões diversas sobre protestos, marchas e plantones entre os moradores e suas formas variadas de participação nestas atividades, de acordo com o autor, fazem parte dos processos e lutas políticas na Colonia. Para aqueles que desaprovam as marchas e manifestações, estes rituais de protesto tornaram-se “pára-raios”, incitando-os ao ressentimento. Para os manifestantes em si há uma variedade de entendimentos sobre suas próprias ações, que inclui tanto a idéia de que essas atividades são a única opção que lhes resta quanto a suspeita de que mesmo os rituais mais agitados constituem pouco mais que um meio de legitimar aqueles cuja política é alvo do protesto. Gutmann faz referência à discussão de Max Gluckman (1990) sobre ritos de rebelião para enfatizar que o protesto nem sempre envolve oposição ao alvo da discordância e pode, ao contrário, ser ritualizado e usado para legitimar o “status quo”. Qual a relação desta situação com a primeira? Talvez aqui a discussão pudesse ganhar mais fôlego interpretativo. Reafirma que atuando como válvulas de escape, os protestos podem validar poderes existentes. Cita como exemplo a análise de Stanley Brandes das fiestas no México rural, na medida em que desafiando relações sociais existentes podem perturbá-las. De um ou outro modo, o autor enfatiza que raramente a resistência está tão claramente delineada que representa algum tipo de “ação política pura”, livre de qualquer impulso e efeito contrário. E assim, conclui com a idéia de que nos anos 90 o termo “democracia” substitui o “socialismo” como palavra de ordem de mudança social. O ponto de chegada ético e o principal objetivo das lutas sociais. Mesmo que usada em 3 excesso e mal definida, democracia, como o conceito de agenciamento, pode ser útil para descrever aspectos de “afirmação desafiadora” por parte dos cidadãos em exercício de seus direitos políticos. Em contrapartida, conformidade política e resignação ao “status quo” não são facilmente conceitualizados como entendimentos padronizados de democracia, agenciamento ou resistência. Gutmann afirma que se as teorias de resistência, assim como o conceito de democracia, puderem ajudar a construir maneiras originais de resolver problemas como pobreza, racismo e militarização, elas devem ser encorajadas e abraçadas. Contudo, se elas oferecerem apenas análises críticas que encobrem tentativas utópicas de desenterrar a fantasia do controle sobre o destino humano, então elas são parte do problema e não da solução. Aqui a discussão sobre passividade lançada anteriormente perde-se um pouco no delineamento do suposto projeto utópico. A abordagem de Gutmann esvoça-se, contudo, como muito enriquecedora de tudo o que estamos discutindo no projeto, sobretudo sua iniciativa crítica de apontar aqueles aspectos em que normalmente se atribui como acomodação. Sua análise me reporta a Gramsci em suas “Prison Notebooks” quando descreve a forma subordinada de ver o mundo como a forma de ver dos subordinados. Para Gramsci, as classes subordinadas estão sujeitas às iniciativas das classes dominantes, mesmo quando se revoltam; estão num estado de “defesa ansiosa”. Esta constatação decorre da íntima correlação que Gramsci estabelece entre consentimento e coerção, que em alguns casos podem abranger a força e não ser algo nada benigno. Em sua mais recente obra, Kate Crehan (2002) nos lembra que Gramsci discutiu as manifestações identificadas normalmente como “folclore”, como algo romântico e principalmente como um “autêntico” reflexo da alma de uma nação. Em contraposição a esta forma romantizada de ver, deveríamos estudá-las como um modo de conceber o mundo e a vida, não necessariamente para ser recuperada, mas para ser desconstruída. Estas concepções não seriam multifacetadas, com elementos diferentes e justapostos, como um aglomerado confuso de fragmentos, mas como um mosaico, que resultaria da incorporação de certas opiniões e noções científicas que quando desligadas de seus contextos, frequentemente passam a compor as explicações que integram as visões de mundo dos grupos populares, integrando o que chamamos de “tradição”. O exemplo trazido por Gutmann sobre o processo de incorporação das teorias de Carl Sagan poderia ser visto através do que nos descreve Gramsci. O texto de Gutmann denota que a utopia é um mecanismo ou conhecimento social indissociável de qualquer projeto de mudança, que em cada pensamento ou atitude de insatisfação ou de desejo de mudança está presente a utopia, como se ela pudesse ser depreendida desde um pensamento fragmentário ou até de um gesto cotidiano. A utopia como uma espécie de motor impulsionado pela consciência humana, pela possibilidade da própria consciência, de tornar os menores gestos possíveis de produzir transformação, mas ao mesmo tempo e exatamente aí está também o seu fator de inércia e de alienação. Este é um aspecto muito interessante do texto. Referências bibliográficas: CREHAN, Kate.( 2004) Gramsci, cultura e antropologia: a questão do “poder” e as relações entre cultura, sociedade e política. Lisboa, Campo comunicação. 4