Silêncio e a relação entre as artes em sinfonia em branco
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Silêncio e a relação entre as artes em sinfonia em branco
Silêncio e a relação entre as artes em sinfonia em branco Tamires Nunes de Paula FALE/UFMG, Graduação, bolsista Fapemig Resumo: Este trabalho se propõe a analisar o romance Sinfonia em Branco, tendo como recorte o diálogo entre as diversas artes referidas no texto e tomando igualmente como ponto de reflexão o modo como é tratado o silêncio - já que é ele um dos temas principais da obra - e o papel que representa na relação que se estabelece no romance entre várias manifestações artísticas. Objetiva-se analisar as relações do silêncio com as outras artes referidas no texto ressaltando-o como elemento que liga todas essas artes. O projeto tem essa proposição justificada uma vez que, como se verá mais adiante, a relação entre pintura e literatura, música e literatura já se dá desde o título do romance. As reflexões alcançadas com esta pesquisa evidenciaram que o silêncio não é somente a ausência acústica de som, mas elemento que liga todas as mídias nessa obra, tem voz, uma voz que somente pode ser percebida através da delicadeza com a qual Lisboa o incorpora em seu texto. Palavras-chave: silêncio; sinfonia; música; artes. Abstract: This project aims to analyze the novel Symphony in White, cutting out the dialogue between the various types of art the text refers to and also taking as a point of reflection the way silence is treated since it is one of the main themes of this work - and the role it plays in the relationship that is established in the romance between various artistic manifestations. The objective is to analyze the relation of the silence with the other forms of art referred in the text, highlighting it as an element that connects all of these arts. The project has justified this proposal since, as will be seen below, the relationship between painting and literature, music and literature is already given in the title of the novel. The reflections achieved with this research showed that silence is not only the acoustic absence of sound, but an element that connects all media in this work, it has a voice, a voice that can only be perceived through the delicacy which Lisboa incorporates in its text. Keywords: silence; symphony; music; art. 760 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 O silêncio vem sendo trabalhado através dos anos somente como ausência de som, mas ao fazer uma análise profunda compreendemos que existem vários modos de silêncio, e que até mesmo no silêncio encontramos, de certa forma, uma voz. Em toda forma de silêncio há um sentido, uma significância. O trabalho complexo é perceber com qual forma de silêncio estamos lidando e qual seria melhor forma de compreendê-lo. Caminhando nessa direção, Heller (2008) aponta alguns tipos de silêncio estudados: Ainda não sabendo se há ou não fala silenciosa, talvez o mais acertado seja começar não pelo silêncio da fala, mas pela fala sobre o silêncio. Ou sobre os silêncios. Sim, porque há vários: há o silêncio da falta e da completude, da presença e da ausência, do vazio e do pleno, do não querer falar e do não poder falar, do bloqueio e do indizível, da mudez e da surdez, do calar (tacerere / Schweigen) e da quietude (silere / Stille) – enfim, infinitos silêncios que se cruzam e se entrecruzam. (HELLER, 2008, p.10) As vozes silenciadas no romance de Lisboa caminham no campo do silêncio do indizível, daquilo que é necessário falar, mas que não se pode falar. Várias personagens são silenciadas pelos seus respectivos traumas, mas todos esses silêncios são da ordem do indizível. O silêncio, como elemento que liga todas as mídias nessa obra, tem voz, uma voz que somente pode ser percebida através da delicadeza com a qual Lisboa o incorpora em seu texto. Não podemos reduzir o silêncio somente à ausência acústica: “O silêncio não é acústico, é uma mudança da mente, uma reviravolta.” (HELLER, 2008, p.11 ) A escritora Adriana Lisboa, nascida no Rio de Janeiro, mora atualmente nos Estados Unidos. Graduada em música pela Uni-Rio, trabalhou um tempo como professora de música no Rio e como cantora na França. Mais tarde, fez mestrado em Literatura Brasileira e doutorado em Literatura Comparada na UERJ. Publicou seu primeiro romance em 1999, intitulado Fios da Memória, e em 2001 publicou Sinfonia em Branco, romance laureado com o Prêmio José Saramago. Uma das mais prestigiadas escritoras da contemporaneidade, mantém um contato singular com seus leitores através das mídias sociais tais como facebook e seu blog. Sobre o romance Sinfonia em Branco, Victor Rosa diz: Silêncio e a relação entre as artes..., p. 759-766 761 Essa voz, acima de tudo, por vezes, não fala: ela se cala, silencia. Muitas palavras, em Sinfonia em branco, não são ditas, são omitidas do leitor. Recorto um fragmento que me fascina: “Clarice sentiu mais uma vez com as pontas dos polegares as duas cicatrizes gêmeas, uma em cada punho. E sorriu um sorriso involuntário e triste, um sorriso sem mistérios, ao pensar que afinal acabara sobrevivendo a si mesma” (p.23). Por um princípio de delicadeza, a voz não diz algo. Mas esse algo está aí: implícito - o dito do não-dito. Há certa relação, portanto, entre o silêncio e a delicadeza. Ou seja, a delicadeza se configura, justamente, a partir desse não-dizer, a partir da recusa à fala sistemática, à fala franca e explícita. Penso numa frase do francês Léon Bloy, lida em algum livro de Barthes: “Só é perfeitamente belo o que é invisível [...]”. (ROSA, 2005, p.12 ) A relação do silêncio com as demais artes referidas no romance nos leva para o campo dos estudos intermidiáticos, onde as mídias conversam entre si e se complementam. Nesse aspecto, o conceito de intermidialidade que Walter Moser aborda é enriquecedor: A relação entre as artes, por implicação, comporta sempre, também, questões intermidiáticas, mesmo que estas não sejam explicitadas, considerando-se que toda arte inclui a “midialidade”. (MOSER, 2006, p.42) A diferença entre pintura e literatura, por exemplo, é baseada em sua materialidade ou em seus meios físicos. A representação estética das duas é diferente, embora elas possuam a capacidade de transmitir o mesmo enfeito. Adriana Lisboa explora bem em seu romance o conceito de intermidialidade referenciando e interligando em seu texto diversas artes. Este trabalho se propõe a analisar o romance Sinfonia em Branco, tendo como recorte o diálogo entre as diversas artes referidas no texto, tomando igualmente como ponto de reflexão o modo como é tratado o silêncio – já que é ele um dos temas principais da obra – e o papel que representa na relação que se estabelece no romance entre várias manifestações artísticas. O estudo tem esta proposição justificada uma vez que, como se verá mais adiante, a relação entre pintura e literatura, música e literatura já se dá desde o título do romance. Nessa direção, o escritor Wanderley C. Oliveira observa a ligação entre pintura e silêncio: 762 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 “Como a pintura fala, isto é, comunica ou significa, mas sua voz, feita de cores e traços, é ainda voz do silêncio.” (OLIVEIRA, 2011, p.186). O artista é capaz de trabalhar a essência de cada detalhe minucioso em uma obra de arte. Nesse sentido, é possível notar na pintura a sua voz traduzida através das cores, uma voz que ainda abriga certo silêncio. Situa-se, assim, o projeto na linha de pesquisa da literatura e outros sistemas semióticos. Em seus outros romances, Adriana Lisboa também relaciona intimamente diferentes domínios artísticos, como em Hanói (Lisboa, 2013), romance cujo protagonista é um trompetista apaixonado por jazz e que exibe um trompete na capa. Outra obra é Rakushisha (Lisboa, 2007), em que a narrativa é tecida com amplas referências à poesia do poeta japonês Matsuo Bashô. A relação entre música, pintura e escultura é reveladora no texto literário de Adriana Lisboa, dá uma composição narrativa como uma grande sinfonia do trágico. O livro Sinfonia em Branco é uma obra marcada pelo silêncio, e esse é quem promove a lembrança de eventos traumáticos no decorrer do romance. O romance leva o mesmo nome de um quadro do famoso pintor James Whistler: “a jovem desvirginada”. Uma pintura tão clara e tão leve nos remete ao ponto chave do romance. Por que teria Adriana Lisboa escolhido tal título para seu romance? Por trás dessa imagem da pintura escondem-se várias vozes, sobretudo a voz principal do romance, a voz de Clarice, a jovem personagem que foi molestada quando criança pelo pai. Essa voz, ainda assim, como tantas outras presentes na narrativa, é silenciada no texto pelo evento traumático que a envolve. A relação com o quadro já foi salientada pela crítica literária Regina Félix: Sinfonia em branco leva o nome do quadro do pintor americano James Whistler (1834-1903), que intitulava seus trabalhos de modo a tornar clara a associação entre os conceitos da música e das artes visuais para alcançar sua forma não convencional de criar composições como arranjos de tons. Whistler provocou frisson com tal quadro, que para muitos sugeria o defloramento de uma virgem recém-casada. Symphony in White, nº 1: The White Girl (1862) é o quadro ao qual a narrativa de Lisboa se referee do qual tira o seu nome. O próprio texto torna clara a relação: “um branco virginal, uma moça vestida de branco Silêncio e a relação entre as artes..., p. 759-766 763 que evocava um quadro de Whistler” (FÉLIX; LISBOA 2011, p. 93-103) Aceitar, no entanto, que o nome do livro se justifique somente pela referência ao quadro de Whistler é insatisfatório, pois notamos que o pintor já se valia da intermiadialidade para criar seus quadros quando fazia associação entre os conceitos da música e das artes visuais. Adriana Lisboa se apropria do mesmo conceito para compor a obra, espaço em que as mídias se misturam e criam o enredo do livro. A beleza dessa obra é que, mesmo passando por várias mídias, pode-se levantar a hipótese de que o silêncio seja um elemento a promover a união de todas elas. Também ressalta-se, neste sentido, ser o silêncio elemento constitutivo da música (e da poesia) que só ganha sentido na alternância entre som e silêncio. A musicalidade desse romance é intrigante quando nos aprofundamos no conceito de sinfonia: O termo sinfonia designa um tipo de composição musical, adaptada da sonata, escrita para orquestra e que geralmente é composta por vários andamentos ou secções independentes, embora por vezes existam sinfonias compostas num único andamento. A sinfonia pode também incluir peças para voz, coro ou instrumento sem acompanhamento. Estrutura da sinfonia: O esquema da sinfonia é geralmente composto por quatro andamentos e cuja estrutura é a seguinte: • Primeiro Andamento: é escrito segundo as características da forma da sonata, a qual inclui três divisões básicas: a exposição (apresentação do tema), o desenvolvimento (auge do tema através da utilização de recursos como as modulações, as cadências e a dinâmica), e a reexposição (repetição do tema apresentado na exposição, mas com algumas modificações técnicas). • Segundo Andamento: andamento de tempo lento, escrito segundo uma forma tripartida que pode recorrer à estrutura da sonata ou a outras formas, como por exemplo, o rondó ou as variações. • Terceiro Andamento: andamento composto por minueto e trio ou por scherzo e trio, em que o tempo é moderadamente rápido. 764 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 • Quarto Andamento: é escrito segundo a forma do rondó ou, por vezes, da sonata e em que o tempo é rápido. (ENCICLOPÉDIA TEMÀTICA, 2016) Partindo da visão musical, levanto a hipótese de que os eventos ocorridos com as personagens em Sinfonia em Branco se dão no campo do primeiro andamento de uma sinfonia musical: a exposição ao trauma, os silenciamentos acrescidos no desenrolar do texto. O tempo em que cada personagem vive o seu silêncio é lento e repleto de fragmentos: As sementinhas rolam pelo chão recém-encerado e uma lágrima de dor e de medo rola pelas faces túrgidas da menina que agora foge, ainda nas pontas dos pés. Não mais, porém, porque deseje treinar para bailarina. Agora ela quer evitar que a ouçam, não que saibam que sabe. (LISBOA, 2001, p.80) Todas as artes retratadas no texto são, na verdade, tentativas de dizer o indizível. Busco refletir a incapacidade da arte de falar sobre o que não pode ser falado, mas pode ser sentido. Somente a pintura e a escultura estão além do que o discurso literário não dá conta, pois a pintura e a escultura exercem a estrutura vicária da arte, o silêncio que a escultura traz é palpável através de suas formas. No romance aparece a figura de escultura de uma personagem completamente silenciada e marginalizada: Clarice estava muda e pálida. Tinha nas mãos uma escultura com o corpo de Lina e o rosto da morte. Tinha diante de seus olhos o corpo de Lina e o rosto da morte. (LISBOA, 2001, p.102) Ainda aparece, outra voz silenciada, a voz de Lina, amiga de infância de Clarice. A escultura carrega em suas formas duas vozes: a de Lina, menina pobre e sem nenhum valor para sociedade da época, que é brutalmente violentada, e a voz de Clarice, sua melhor amiga que fez a escultura, mas não pôde finalizá-la, pois para alguns traumas só o silêncio é voz. O evento traumático na vida das personagens é construído e fortificado pela presença de vários silêncios que as acompanham no decorrer da narrativa. Sinfonia em Branco é uma obra composta por estágios de silêncios, é o querer falar e o não poder falar daquilo que é sentido, é tentar expressar o indizível. Silêncio e a relação entre as artes..., p. 759-766 765 O vocábulo sinfonia do título de Adriana Lisboa, por sua vez, suscita a ideia de resolução para as contraposições que compõem o livro. É também musicalmente sugestiva a maneira como se apresentam as existências não menos malogradas dos coadjuvantes do trauma, ecoando como um coro trágico na cena de fundo: a mãe frustrada de Clarice e Maria Inês, Lina, a amiguinha estuprada e morta, os pais exilados de Tomás, a solitária e subserviente tia-avó Berenice das meninas, o eco, provindo da fazenda dos Ipês, do marido linchado por ter esfaqueado a mulher adúltera, s institucionalizada e abandonada sogra de Maria Inês e sua própria dor ao se dar conta dos casos amorosos do marido. A sinfonia encadeia, quase cenograficamente, falas e imagens, elementos da música e da pintura como confluência das artes, única via possível para transmissão da sincronia dos personagens no trauma. (FÉLIX, 2011, p. 100-101). São os vários silêncios que dão ao texto de Lisboa a estrutura perfeita da leveza e delicadeza. O romance se constrói em meio aos silêncios que, em contato com as outras artes referidas, formam uma verdadeira sinfonia do trágico, uma sinfonia do silêncio. Referências FÉLIX, R. R. Tom, volume e arranjo no chiaroscuro da memória: Sinfonia em branco, de Adriana Lisboa. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 37, p. 93-103, 2011. HELLER, A. A. John Cage e a poética do silêncio. 2008.173 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Santa Catarina, 2008. KNOOW. Enciclopédia Temática. Paulo Nunes, 2016. Disponível em: <http://old.knoow.net/paulo-nunes.htm>. LISBOA, A. Sinfonia em Branco. 2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. MOSER, W. As relações entre as artes: por uma arqueologia da intermidialidade. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, v.14, p. 4265, 2006. 766 Anais da XII SEVFALE, Belo Horizonte, UFMG, 2015 OLIVEIRA, W. C. Das vozes do silêncio ao silêncio da linguagem: as relações entre pintura e literatura em M. Merleau-Ponty. Artefilosofia, Universidade Federal de Ouro Preto, v. 11, p. 185-198, 2011. ROSA, V. L. Os silêncios da sinfonia branca [sobre Adriana Lisboa]. Diário Catarinense - DC Cultura, Santa Catarina, v. XX, p. 12-12, 14 maio 2005.