Visualizar - XIV Semana de Pós-Graduação em Ciências Sociais

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Visualizar - XIV Semana de Pós-Graduação em Ciências Sociais
xiv semana de pós-graduação em ciências sociais da unesp/fclar
movimentos sociais no século XXI: olhares sobre o brasil contemporâneo
de 16 a 19 de novembro de 2015 - unesp/fclar
Ideologia, moral e liberdade: a ética
sexo-política de Wilhelm Reich
Rodrigo da Costa
Doutorando em Ciências Sociais - UNICAMP - Bolsista CNPq
Resumo: Esta pesquisa busca compreender e analisar o surgimento da esquerda
freudiana através do estudo do trabalho sexo-político do psicanalista e sociólogo austrohúngaro Wilhelm Reich, com ênfase nas obras das décadas de 1920 e 1930, desenvolvidas
paralelamente ao seu trabalho na Sociedade Socialista para o Aconselhamento e
Investigação Sexual, em Viena, e na Sexpol (Associação Alemã para uma Política Sexual
Proletária) em Berlim, e nos seus estudos sobre a Democracia do Trabalho, realizados
na Noruega e nos Estados Unidos. Um dos primeiros a estabelecer um diálogo entre as
ideias de Sigmund Freud e Karl Marx, Reich se tornou conhecido pela sua interpretação
original do fascismo, pela defesa da Educação Sexual, e pelo desenvolvimento do conceito
de Revolução Sexual. Expulso do Partido Comunista e da Associação Psicanalítica
Internacional, perseguido pelo nazismo, pelo stalinismo, e preso nos EUA após grande
controvérsia pública com as autoridades e grupos conservadores, Reich se tornou uma das
grandes influências para muitos movimentos intelectuais e políticos contemporâneos.
Buscamos compreender a sua contribuição para a Teoria Social, essencialmente sobre
as questões relacionadas à Política, Sexualidade, Corpo, Gênero, Poder e Identidade, e
como elas se manifestam nas múltiplas dimensões da vida social, da formação do sujeito
até a política institucional.
Palavras-chave: Wilhelm Reich; Teoria Social; Esquerda Freudiana.
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O presente trabalho busca compreender a analisar as origens, os conceitos e os
desdobramentos teóricos e políticos da esquerda freudiana. O primeiro a sistematizar
este conceito foi Paul A. Robinson, no livro A Esquerda Freudiana: Wilhelm Reich,
Geza Roheim e Herbert Marcuse (1971). Partindo da conjugação dos conceitos básicos
do materialismo histórico e da psicanálise freudiana, a esquerda freudiana é um dos
fenômenos intelectuais e políticos mais marcantes do século XX. Apesar de não formar
um único movimento, a partir deste núcleo freudo-marxista surgiram movimentos
intelectuais como a Escola de Frankfurt, a Filosofia e a Teoria Social francesas da segunda
metade do século XX, e a Nova Esquerda, e no mesmo sentido, foram fundamentais para
pautar movimentos sociopolíticos, como o Maio de 68. Buscando entender as novas
concepções de sociedade, sexualidade, corpo, poder e política estudaremos o trabalho
de Wilhelm Reich, por se tratar do primeiro a sistematizar um corpo teórico e uma
militância política a partir do freudo-marxismo.
De origem judaica, Wilhelm Reich nasceu em 24 de Março de 1897 em Dobrzynica,
uma aldeia da Galícia que nessa época pertencia ao antigo Império Austro-Húngaro,
mudou-se depois para Jujintz, na província da Bukovina, no lado germano-ucraniano
da Áustria. Em 1918, matricula-se na Universidade de Viena, primeiro em Direito,
transferindo-se para Medicina meses depois. Considerado um aluno brilhante, Reich
– ainda um estudante de Graduação – fascina-se pelo trabalho desenvolvido por um
de seus professores, o Dr. Sigmund Freud, e após frequentar seus grupos de trabalho
e passar por avaliações, consegue finalmente ser aceito na Sociedade Psicanalítica de
Viena (MATTHIESEN, 1995).
No dia 15 de Julho de 1927 a vida e obra de Reich sofrem um grande impacto.
No Palácio de Justiça de Viena, três paramilitares membros da extrema direita foram
absolvidos por um júri conservador, após terem assassinado uma criança de 8 anos
e um idoso veterano de guerra. Enquanto milhares de pessoas protestavam contra
um dos eventos, que é um dos símbolos da ascensão do fascismo na Áustria, a polícia
recebe ordens para atirar diretamente nos manifestantes. Reich então presencia uma
carnificina de mais de 3 horas, onde 89 pessoas morreram, e centenas ficaram feridas
(TURNER, 2011). Neste momento é que surge o questionamento que orientou, direta
ou indiretamente, todo o restante da sua obra: o porquê da aceitação da dominação. Em
suas palavras “o que é necessário explicar não é que o faminto roube, ou que o explorado
entre em greve, mas porque a maioria dos famintos não rouba e a maioria dos explorados
não entra em greve.” (REICH, 2001, p.40).
Reich passa a buscar respostas no arcabouço freudiano, e percebe que ali faltam
bases teórico-metológicas para explicar fenômenos sociopolíticos daquela magnitude.
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Assim, querendo entender uma realidade social conflituosa e contraditória, Reich passa a
buscar respostas no materialismo dialético de Karl Marx. Após ler efusivamente as obras
de Marx, Reich conclui que tanto ele quanto Freud são dotados da mesma grandeza em sua
capacidade de analisar a existência humana, e percebe que – por mais diferentes que possam
parecer – eles são completares entre si: a parte mais forte do pensamento de um começa
justamente onde se iniciam as limitações da análise do outro (SAMPAIO, 2007). Um dos
principais textos em que Reich busca esclarecer a forma como ele concebe a relação teóricometodológica entre Freud e Marx é o ensaio “Materialismo Dialético e Psicanálise”, publicado
pela primeira vez em 1929 (e presente na coletânea Sex-pol: Essays, 1929-1934, de 2013).
Já indicamos em que ponto o materialismo histórico e a psicanálise têm
uma função científica a cumprir, a qual não pode ser desempenhada pela
economia social: a compreensão da estrutura e da dinâmica da ideologia,
e não de sua base histórica. Ao incorporar os insights da psicanálise, a
sociologia atinge um nível superior e consegue compreender muito melhor
a realidade porque, finalmente, compreende a natureza da estrutura do
homem. Disto se conclui que a sociologia da economia sexual é uma ciência
construída sobre a base sociológica de Marx e psicológica de Freud, sendo,
na sua essência, uma ciência da psicologia de massas e da sociologia sexual.
Tendo rejeitado a filosofia da civilização, de Freud, ela começa exatamente
onde termina o campo clínico-psicológico da psicanálise. A psicanálise
revela-nos os efeitos e mecanismos da opressão e repressão sexual e suas
consequências patológicas para os indivíduos. A sociologia da economia
sexual vai mais longe, perguntando: por que motivos sociológicos a sexualidade
é reprimida pela sociedade e recalcada pelo indivíduo? (REICH, 2001, p.27)
Reich pensa que a psicanálise e o materialismo dialético são complementares, a
despeito de toda a animosidade existente entre eles no início do século XX. Para ele, ambos
possuem limitações teóricas, e a complementariedade se daria no sentido em que estas
atuavam em dimensões distintas da existência humana, o materialismo dialético no social,
político e econômico e a psicanálise na consciência e na subjetividade.
A primeira dificuldade que Reich enfrentou foi ter de persuadir os seus
camaradas marxistas de que a Psicanálise não era uma manobra divisionária
“idealista” da burguesia decadente, a contrapartida espiritual, por assim
dizer, do imperialismo. Reich afirmou que a Psicanálise compartilhava
muitos pressupostos importantes do marxismo. Em primeiro lugar, a
Psicanálise era, basicamente, uma ciência materialista, embora não o fosse
na acepção mecanista que equacionava “material” com “mensurável” ou
“tocável”. Tal como Marx, Freud focalizou as necessidades e experiências
humanas reais. Começou com os fatos materiais concretos de amor e fome,
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e acompanhou o trágico destino desses instintos quando se defrontavam
com a hostilidade igualmente concreta da natureza e da sociedade. Além
disso, argumentou Reich, a Psicanálise era uma ciência dialética. Como
prova de sua afirmação, alinhou uma série de conceitos e argumentos
psicanalíticos. O tema dialético subjacente em toda a obra de Freud era a
noção de conflito psíquico. Assim como o marxismo era uma sociologia
do conflito. Em vez de sublinharem o funcionamento harmonioso dos
componentes, dentro do todo, quer que se trate do eu ou da sociedade,
Marx e Freud preferiram salientar os antagonismos que ameaçam o todo
de dissolução. (...) Sugeriu ele que, tal como o marxismo representava
uma crítica da economia burguesa, provocada pelas contradições
dentro do próprio capitalismo, também a Psicanálise era uma crítica da
moralidade burguesa, que, à maneira dialética, decorria das contradições
inerentes na repressão sexual. (ROBINSON, 1971, p.33-34)
A partir de 1927, Reich se filia ao Partido Comunista e começa uma rica produção
intelectual e uma trajetória de ativismo político que buscava conciliar a psicanálise com
a militância de esquerda. A primeira etapa desse projeto se deu na Policlínica de Viena,
onde Reich cria um sistema de clínicas populares que prestavam atendimentos gratuitos
nos bairros onde se concentravam a classe trabalhadora. Em 1928, ainda em Viena,
Reich funda a Sociedade Socialista para o Aconselhamento e Investigação Sexual.
Passando a enxergar a psicanálise como uma terapia restrita à burguesia e a casos de
excepcionalidade médica, Reich entende que a psicanálise, assim como os serviços de
saúde de maneira geral, deve ser acessível a todos os membros da sociedade, e não somente
àquela minoria burguesa que poderia pagar por ela. E em sentido complementar, Reich
entende que as técnicas psicanalíticas não devem se basear somente em formas de “cura”,
mas que é fundamental desenvolver formas de prevenção, e de maneira geral, formas de
conscientização dos indivíduos. É nesse sentido que Reich se torna o primeiro a militar em
favor da necessidade de uma Educação Sexual.
Reich disse que no início Freud apoiou o seu trabalho com centros de atendimento
popular (REICH, 2013), e enquanto isso, ele prosseguia a sua produção intelectual dando
cada vez mais ênfase a dimensão social, política e econômica dos problemas psíquicos.
Reich passa a confrontar Freud com a tese de que a sociedade capitalista produzia
neuroses em massa, e que a psicanálise deveria romper os limites do divã para assumir um
compromisso político para a transformação de uma realidade social que é em si patológica.
Estava em questão nesse momento a tese defendida por Freud no seu “O Mal-Estar na
Civilização” (FREUD, 2010) de que as neuroses são intrínsecas à cultura, no processo em que
o superego oprime as pulsões individuais, sendo este justamente o fenômeno que torna a
civilização possível. O mal-estar gerado pela repressão dos impulsos, para Freud, é o preço
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inevitável que a civilização paga para poder existir. Já para Reich, que retoma os preceitos do
materialismo histórico, esse processo social de repressão sexual é construído historicamente
e ideologicamente através de relações de poder e dominação de classe e gênero.
Pressentirmos que não é a atividade cultural em si que demanda a repressão
e o recalcamento da sexualidade, mas apenas as formas atuais dessa
atividade. Não é, portanto, uma questão de cultura, mas de ordem social.
Estuda-se a história da repressão sexual e a etiologia do recalcamento
sexual e conclui-se que ela não surge com o começo do desenvolvimento
cultural; ou seja, a repressão e o recalcamento não são os pressupostos
do desenvolvimento cultural. Só bem mais tarde, com o estabelecimento
de um patriarcado autoritário e com o início das divisões de classe, é que
surgiu a repressão da sexualidade. É nesse estágio que os interesses sexuais
gerais começam a atender aos interesses econômicos de uma minoria; isso
assumiu uma forma organizada na família e no casamento patriarcais. Com
a limitação e a repressão da sexualidade, a natureza do sentimento humano
se altera; aparece uma religião que nega o sexo, e que, gradualmente,
constrói sua própria organização de política sexual – a Igreja, com todos
os seus precursores –, cujo objetivo não é outro senão a erradicação dos
desejos sexuais do homem e, consequentemente, da pouca felicidade que
ainda resta sobre a Terra. (REICH, 2001, p.27)
Neste sentido, também é fundamental a pesquisa que Reich fez em textos
antropológicos, especialmente de Bronislaw Malinowski. No livro “A Vida Sexual dos
Selvagens” (1982), Malinowski contesta a universalidade da teoria freudiana, com destaque
para a constatação da não existência do Complexo de Édipo entre os nativos das Ilhas Trobriand,
que fundamentalmente se caracterizavam como uma sociedade matriarcal. Reich analisa os
relatos de Malinowski, que descreve a pequena distinção entre homens e mulheres dentre
os trobriandeses, sendo os relacionamentos pautados por um estreito companheirismo, com
os jovens gozando de liberdade sexual, e não havendo famílias compulsórias, podendo os
relacionamentos ser desfeitos. Reich conclui que naquela sociedade não existem sinais de
neuroses pelo fato de não existir a repressão sexual própria da sociedade patriarcal.
Cada tribo que evoluiu da organização matriarcal para a organização
patriarcal foi obrigada a modificar a estrutura sexual dos seus membros
a fim de produzir uma sexualidade consonante com o seu novo modo
de vida. Isso tornou-se necessário porque o deslocamento do poder e da
riqueza da gens democrática para a família autoritária do chefe se efetuou
principalmente com o auxílio da repressão dos desejos sexuais das pessoas.
Desse modo, a repressão sexual faz parte integrante da divisão da sociedade
de classes. (REICH, 2001, p.85)
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Assim, as diferenças teórico-metodológicas entre Freud e Reich tornaram-se
cada vez maiores, levando finalmente em 1930 a uma ruptura pessoal entre eles (REICH,
1976). Neste mesmo ano, Reich muda-se para Berlim, onde esperava encontrar maior
receptividade e condições para o desenvolvimento da sua militância sexo-política.
Filiando-se ao Partido Comunista Alemão, Reich envolve-se diretamente no conflito
com o nazi-fascismo, e é nesse momento que o seu trabalho sexo-político se torna mais
maduro e mais intenso (BOADELLA, 1995).
Na Alemanha, Reich consegue agregar ao redor de si um grupo de psicanalistas
que também tinham interesse em relacionar o trabalho de Freud com as concepções
sociopolíticas do marxismo. É a partir daí que os pressupostos reichianos se disseminaram
pelo meio intelectual alemão (BOADELLA, 1995). Neste círculo, podemos destacar,
além de Otto Fenichel, o discípulo e amigo de Reich, Erich Fromm, que foi um dos
responsáveis pela introdução do trabalho de Reich na Escola de Frankfurt, e como um
dos diretores, imprimiu uma forte orientação freudo-marxista no Instituto para Pesquisa
Social. Um exemplo disso são os trabalhos de Fromm e Theodor W. Adorno sobre o
caráter autoritário (Fromm) ou a personalidade autoritária (Adorno), que de maneira
geral, discorrem sobre a formação social e histórica de um tipo psicológico de indivíduo
sobre a qual o fascismo se apoiou.
A pesquisa que relatamos neste volume foi orientada pela seguinte
hipótese principal: que as convicções políticas, econômicas e sociais
de um indivíduo formam muitas vezes um modelo amplo e coerente,
como se ligado por uma “mentalidade” ou “espírito”; e que neste modelo
é uma expressão de tendências profundas na sua personalidade. O
principal alvo era o indivíduo potencialmente fascista, aquele cuja
estrutura é tal que o torna particularmente susceptível à propaganda
antidemocrática. (ADORNO et al, 1965, tradução nossa)(Originalmente
publicado em 1950)
O “fascismo” não é mais do que a expressão politicamente organizada
da estrutura do caráter do homem médio. Neste sentido caracterial,
o “fascismo é a atitude emocional básica do homem oprimido
da civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística
e mecanicista de encarar a vida. É o caráter mecanista e mítico do
homem moderno que cria os partidos fascistas, e não o contrário.
(REICH, 2001)(Originalmente publicado em 1933)
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A mentalidade fascista é a mentalidade do “Zé-Ninguém”, que é
subjulgado, sedento de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado. Não
é por acaso que todos os ditadores fascistas são oriundos do ambiente
reacionário do “Zé-Ninguém”. O magnata industrial e o militarista
deudal não fazem mais do que aproveitar-se desse fato social para os
seus próprios fins, depois de ele ter se desenvolvido no domínio da
repressão generalizada dos impulsos vitais. Sob a forma do fascismo, a
civilização autoritária e mecanicista colhe no “Zé-Ninguém” reprimido
nada mais do que aquilo que ela semeou nas massas de seres humanos
subjulgados, por meio do misticismo, militarismo e automatismo
durante séculos. (REICH, 2001)
E nessa relação de trabalhos freudo-marxistas dos pensadores frankfurtianos e o
trabalho de Reich, podemos destacar também o “Eros e Civilização” (1999) de Marcuse. De
maneira geral, podemos dizer o trabalho de Marcuse (que é bem posterior ao de Reich),
vai por caminhos similares ao de Reich no sentido de criticar a suposta inevitabilidade
do mal-estar na civilização, e considera a repressão em sentido mais amplo (destaque
para o seu conceito de Super-Repressão, que domestica o indivíduo para o convívio em
sociedade), além de atentar para fatores desconsiderados por Freud, como a desigualdade
social. Sobre a relação entre as ideias de Reich e Marcuse, Robinson escreveu:
Uma preocupação semelhante com a repressão sexual evidenciouse na análise crítica de Marcuse do conceito burguês de amor. Sob
a ordem capitalista, argumentou ele, o amor sexual era despojado
de sua graça e espontaneidade. O amor tornou-se uma questão de
dever e de hábito, cuidadosamente circunscrito por uma ideologia
de fidelidade monogâmica. A sua única função, além de perpetuação
da espécie, era de ordem higiênica: manter a saúde física e mental
necessária ao funcionamento contínuo da máquina econômica. Entre
os trabalhadores, a sexualidade estava estritamente limitada ao
breve período de tempo livre destinado ao repouso e recuperação; e
Marcuse sugeriu que um embotamento da sexualidade era o inevitável
subproduto do trabalho industrial. Marcuse não levantou a questão
da repressão sexual meramente como um acessório. A repressão
sexual era mais do “apenas um outro” mal do capitalismo. Á maneira
reichiana, ele argumentou que a repressão da sexualidade contribuiu
significativamente para manter a ordem geral de repressão. Era um
fato tanto político como psicológico. (ROBINSON, 1971, p.147-148)
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Dando continuidade a sua militância, em Berlim, Reich funda a Associação
Alemã para uma Política Sexual Proletária, a Sexpol. Ligada diretamente ao Partido
Comunista Alemão, a Sexpol deu continuidade ao trabalho de militância sexo-política
que Reich já vinha desenvolvendo em Viena, ganhando, contudo, uma nova dimensão
política e teórica. Enquanto o trabalho da Sociedade Socialista para o Aconselhamento
e Investigação Sexual baseava-se na fundação de clínicas e em um trabalho de base de
educação sexual e assistência médica ao proletariado, com a Sexpol, a sexualidade se
torna indissociável da atividade política, tendo Reich a pretensão de vinculá-la – como
meio e como fim – à revolução socialista (BOADELLA, 1995).
As teorias e práticas desenvolvidas por Reich em torno da Sexpol configuramse no momento em que melhor se sintetiza o projeto sexo-político reichiano. Em 1931,
durante um congresso em Dusseldorf, Reich apresentou o programa da Sexpol com os
tópicos que listaremos e discutiremos a seguir:
1. Livre distribuição de contraceptivos e controle da natalidade.
Reich é um pioneiro na defesa dos métodos contraceptivos como uma
urgente política pública. Reich enfatizou a necessidade do Estado
promover não só a conscientização, via educação sexual, mas também o
livre fornecimento de contraceptivos por um sistema de saúde pública.
Para Reich, é impossível pensar em extinção da desigualdade de classe
enquanto a famílias dos trabalhadores não tiverem autonomia sobre si
mesmas, sendo capazes de escolher quando ter filhos. As altas taxas
de natalidade no proletariado são para Reich de profundo interesse
para a classe dominante, já que mantém o crescimento constante
do exército industrial de reserva. No mesmo sentido, a necessidade
dos trabalhadores de sustentarem muitos filhos torna-os submissos a
condições aviltantes de trabalho, e menos propensos a participarem de
sindicatos e greves, devido a constante ameaça de perda do emprego
para os que assim o fizerem. Colocando o trabalhador numa constante
luta pela sobrevivência, sua e de sua família, o não controle de
natalidade torna-se o obstáculo direto para o desenvolvimento de uma
consciência de classe e de uma articulação política do proletariado.
Nesse sentido, destaca-se também o papel do não controle de natalidade
para a condição de dupla submissão da mulher trabalhadora em uma
sociedade capitalista e patriarcal.
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2. Abolição de todos os entraves legais e técnicos para o Aborto.
Reich propunha a disponibilidade de aborto livre nas clínicas públicas,
assistência financeira e médica à gravidez e ao aleitamento materno. É
importante ressaltar que desde a Policlínica de Viena até a Sexpol, os
procedimentos médicos abortivos para mulheres trabalhadoras com
gravidezes indesejadas já eram praticados sigilosamente por Reich e
sua equipe (TURNER, 2013; SHARAF, 1984).
3. Abolição da distinção entre casados e não casados. Nesse
tópico está inclusa a ruptura do estabelecimento legal para um
padrão de família compulsória. Reich faz uma crítica radical a ideia
do casamento monogâmico e vitalício, e a ideia de reduzir toda
a sexualidade a um único padrão de instituição social voltada para
regular – e reprimir – os impulsos sexuais, de todos os seus membros.
Aqui, Reich critica também o estabelecimento do que hoje chamamos
de heteronormatividade, afirmando que a família compulsória cria um
padrão de “normalidade”, relegando outras formas de exercício da
sexualidade a “anormalidade”. Também está inserida aqui a abolição
do sentido de adultério, criminalizado na maioria dos países do mundo
até a metade do século XX. Reich é um dos primeiros a militar
abertamente pela liberdade de divórcio, que para ele aprisionava os
indivíduos em casamentos compulsórios. E por fim, com esse tópico,
Reich, entra na discussão sobre a prostituição. Reich não consegue ver
na profissionalização de um mercado sexual uma prática libertadora,
mas o seu extremo oposto: somente em sociedades com profundas
desigualdades de classe e repressão sexual é que existem pessoas que
tornam o próprio corpo uma mercadoria e pessoas dispostas a pagar
pelo uso sexual do corpo do outro. Dessa forma, Reich propõe uma
política de educação sexual que seria indissociável de políticas de
melhores condições para a classe trabalhadora, como uma política de
habitação, para que a prostituição seja eliminada da sociedade.
4. Eliminação das doenças venéreas. Reich propunha a abordagem
das doenças venéreas como um problema de saúde pública, que é uma
consequência direta da ausência de uma educação sexual com foco na
prevenção.
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5. Prevenção de neuroses e problemas sexuais. Neste campo, Reich
enfatiza um dos elementos do seu projeto que se tornou um dos
pontos de maior desavença entre ele e a comunidade psicanalítica,
que é a questão de prevenção de neuroses e problemas sexuais. Papel
fundamental da educação sexual que propunha, Reich enfatiza a
necessidade de um trabalho que se iniciaria na infância (com o
incentivo a masturbação infantil, por exemplo), e que se seguiria por
toda vida, com o apoio permanente de clínicas, que fariam o trabalho
de orientação dos jovens, de casais e instruiriam os pais sobre como
educar os seus filhos.
6. Treinamento de profissionais de diversas áreas (professores,
médicos, assistentes sociais, etc) para incorporarem como parte
de seu trabalho a educação sexual. Esse tópico, que é basicamente
uma extensão do tópico anterior, demonstra a dimensão do projeto
político-sexual reichiano, em que a educação sexual não seria uma
responsabilidade exclusiva de instituições específicas, mas uma
preocupação política global. Aqui, não podemos deixar de notar que
há uma interessante aproximação das ideias com Reich com o conceito
de intelectual orgânico de Antônio Gramsci.
7. Substituição da punição nos crimes de ordem sexual por
tratamentos. Reich entendia os crimes sexuais como manifestações
sintomáticas de uma sociedade sexualmente reprimida. Por extensão,
Reich pensava que o ato do crime sexual era uma consequência de
uma série de problemas psicossexuais as quais o indivíduo enfrentava,
e dessa forma, ele não deveria ser tratado como um mero criminoso,
mas como uma pessoa que necessita de tratamento. E novamente
nesse tópico, Reich destaca a importância da prevenção via educação
sexual e erradicação das causas econômicas, mas também enfatiza a
importância da criação de mecanismos de proteção para as crianças
e adolescentes contra possíveis ataques. Nota-se neste tópico que há
em Reich um seu viés descriminalizante de patologias psíquicas, assim
como a ausência da questão manicomial: Reich sempre aborda os
tratamentos numa perspectiva emancipadora, não havendo a principio
no programa da Sexpol referência a nada que se assemelhe a reclusão
em instituições.
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A Sexpol foi um sucesso nos três primeiros anos da década de 1930, com diferentes
relatos que, apesar de apresentarem números divergentes, convergem em afirmar que
incluía no mínimo dezenas de milhares de associados [a projeção mais baixa, de TURNER
(2011) fala em 40 mil associados], e chegando a falar para audiências com mais de 20 mil
pessoas. Destaca-se a grande projeção que Reich possuía entre os jovens, numa clara luta
política contra a massiva propaganda nazista voltada também para este público. Porém, a
estrutura básica que dá origem ao seu radical projeto sexo-político – a junção entre Marx e
Freud – começa a gerar uma série de tensões simultâneas tanto com o Partido Comunista,
como com a Associação Psicanalítica Internacional. Ao mesmo tempo, Reich, que era um
judeu comunista que havia se tornando uma das maiores figuras públicas no combate ao
fascismo, começa a correr sério risco de vida, sendo considerado “um dos grandes inimigos
do III Reich” pelo Partido Nazista (SHARAF, 1984).
Christopher Turner, em consonância com Myron Sharaf e o próprio Reich (1976),
relata que as lideranças do Partido Comunista Alemão começaram a se tornar incomodadas
com a idolatria dos jovens em torno da personalidade do líder da Sexpol, e se recusaram a
apoiar o lançamento do seu livro O Combate Sexual da Juventude (In: REICH, 2013), livro
este voltado especificamente para os jovens, em que Reich buscava esclarecer de maneira
didática questões básicas a respeito da sexualidade humana, e que também discorria sobre a
importância política da sexualidade. Turner conta que a liderança do partido afirmava que
Reich estava tentando transformar as Associações de Juventude Comunista em bordéis. Da
mesma forma, ele teve que submeter o seu Psicologia de Massas do Fascismo (que começou a
ser escrito em 1929 e foi finalizado em 1933) à aprovação de Moscou, que também se negou
a lançar a obra, devido a sua enfática leitura sexo-política e a demasiada atenção a aspectos
simbólicos e discursivos do fascismo, que contrariavam o economicismo stalinista. Assim,
Reich criou a sua própria editora – a Editora para Política Sexual – e lançou os livros
por conta própria.
Com a tomada definitiva do poder pelos nazistas em 1933, Reich encontra-se em uma
situação complicada. Com as portas fechadas para si na União Soviética, e sem proteção
do Partido Comunista Alemão, Reich foge primeiramente para a Dinamarca. Em 21 de
novembro de 1933, o Partido Comunista Dinamarquês, seguindo orientações de Moscou
e Berlim, publicou uma nota comunicando a expulsão de Reich do partido comunista.
Dentre os motivos apontados na nota constam comportamento antipartidário, criação de
uma editora sem a aprovação do Partido e a publicação de livros contrarrevolucionários (em
especial, o Psicologia de Massas do Fascismo) (REICH, 1976).
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Reich fica por alguns meses na Dinamarca e na Suécia, e permanece de 1934
até 1939 na Noruega. Nesse período, Reich começa a fazer uma revisão do seu trabalho
sexo-político, assumindo uma nova orientação que recebeu o nome de Democracia do
Trabalho. Em linhas gerais, podemos dizer que nesse período Reich inicia uma reflexão
sobre os motivos do fracasso da esquerda na Alemanha, analisa a interpretação do
marxismo feita pelo stalinismo, revisa a relação dos seus princípios teórico-meodológicos
com os de Freud, e aprofunda, no limiar da Segunda Guerra Mundial, a sua interpretação
sobre o fascismo.
A democracia do trabalho não é um sistema ideológico ou “político”,
que pode ser imposto à sociedade humana pela propaganda de um
partido, de um político isolado ou de grupos ligados por uma ideologia
comum. A democracia natural do trabalho é o conjunto de todas as
funções da vida, regidas pelas relações interpessoais racionais que
surgiram, cresceram e se desenvolveram de modo natural e orgânico.
A principal inovação da democracia do trabalho é que, pela primeira
vez na história da sociologia, se apresenta uma possibilidade de
regulação futura da sociedade humana, derivada não de ideologias
ou de condições a serem criadas, mas sim de processos naturais que
estão presentes e têm-se desenvolvido desde o início. A “política” da
democracia do trabalho caracteriza-se pela rejeição de toda e qualquer
política ou demagogia. As massas de homens e mulheres trabalhadores
não estarão livres da responsabilidade social; pelo contrário, serão
sobrecarregadas com ela. A democracia do trabalho transforma
conscientemente a democracia formal, que se exprime na simples
eleição de representantes políticos e não implica qualquer outra
responsabilidade por parte dos eleitores, numa democracia autêntica,
factual e prática em escala internacional. Esta democracia se origina a
partir das seguintes funções: amor, trabalho e conhecimento. (REICH,
2001, p.294)
A sua célebre frase “Amor, trabalho e conhecimento são as fontes da nossa vida.
Deveriam também governá-la.” surge em um dos artigos que depois foi incorporado
nas edições posteriores do Psicologia de Massas do Fascismo, e é a síntese perfeita dessa
fase da sua obra. Como bem aponta Boadella (1978), nesse período Reich abandona o
projeto revolucionário, assim também como qualquer modelo político que pré-conceba
uma nova ordem e novas formas de relação de poder. Enfatizando o princípio de
autorregulação, Reich pensa a educação, o trabalho, a consciência e a sexualidade como
vias libertadoras, e de maneira geral, reorienta a sua perspectiva sexo-política em um
sentido mais libertário.
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Em 1939, Reich vai para os EUA, onde sua pesquisa sofre uma grande reorientação.
Já em Oslo, Sharif relata que ele havia começado a dar uma ênfase maior nos estudos na
área de fisiologia. Nos EUA, Reich abandona a militância sexo-política, e através de centros
de pesquisa que funda, dedica-se mais ao estudo da energia vital. Através de experimentos,
Reich pensa ter descoberto uma forma de energia que ele batizou de Orgone. O Orgone
seria a energia vital que dá origem a vida, presente não só nos seres humanos, como no
universo. Reich passa a revisar a sua Teoria do Orgasmo, pensando que a libido e o êxtase
orgástico são partes de um mesmo processo em que o Orgone é primeiramente acumulado,
gerando tensão, e depois liberado através de uma descarga de energia.
Nos anos 1940, torna-se latente a mudança do trabalho de relação aos seus postulados
anteriores. Reich passa a entender a si mesmo cada vez mais como um “cientista” (SHARIF,
1984), e como grande símbolo desta sua fase, começa a construir os Acumuladores de
Orgone, espécies de caixas de madeira do tamanho de cabines telefônicas, revestidas com
metal por dentro, que aumentariam o tensionamento da acumulação de Orgone de quem
as adentrasse, e consequentemente, tornariam o êxtase orgástico mais potente, tornando
o indivíduo mais saudável física e mentalmente (e praticamente abolindo essa distinção), e
operando na esfera da prevenção, aspecto tão caro para Reich em seus trabalhos anteriores.
Por mais que seu trabalho nessa época sofresse muita oposição de tantos
pesquisadores das mais diversas áreas – Humanas, Exatas e Biológicas – os Acumuladores
de Orgone de Reich e as técnicas terapêuticas relacionadas a ele tornaram-se um grande
sucesso nos EUA, sobretudo nos anos 1950. Dentre seus “clientes” estavam inúmeros
escritores, poetas, atores, diretores, artistas e magnatas, em especial, os principais
expoentes do Movimento Beat, como Allen Ginsberg, William S. Burroughs e Jack Kerouac
(SHARAF, 1984). Os trabalhos de Reich com o Orgone, somados a ampla difusão dos
trabalhos anteriores, como A Função do Orgasmo, Psicologia de Massas do Fascismo e a
Revolução Sexual, tornaram Reich uma das maiores referências para os movimentos da
Contracultura nos 1960 (TURNER, 2011).
Porém, a desconfiança da comunidade científica sobre os trabalhos de Reich com
o Orgone, em especial os Acumuladores, transformou-se em inúmeros processos judiciais
e ampla perseguição política. As acusações, basicamente, alegavam fraude devido a
comercialização de equipamentos médicos sem eficácia cientificamente comprovada (Reich
desenvolveu estudos sobre a relação entre o Orgone e o câncer, por exemplo, alegando haver
uma relação direta entre eles). Em um tenso clima político gerado pelo macartismo, pesava
contra Reich o seu passado como grande expoente do Partido Comunista no Europa. Além
do que, eram extremamente impactantes para uma conservadora sociedade americana
ideias de Reich sobre a importância da masturbação infantil, dos métodos contraceptivos,
431
Rodrigo da Costa
da liberdade sexual dos jovens, do direito ao divórcio, direito ao aborto, e até em relação
à importância do orgasmo feminino (em uma época que muitos cientistas o negavam,
e que em muitos países as mulheres ainda lutavam pelo direito ao voto). Desde o início
dos seus trabalhos, Reich sempre foi bem enfático em suas críticas a moral sexual
religiosa, e a religião de maneira geral, e ao conceito da “família tradicional”, vista como
o microcosmo do autoritarismo.
A combinação da estrutura socioeconômica com a estrutura sexual
da sociedade e a reprodução estrutural da sociedade verificam-se nos
primeiros quatro ou cinco anos de vida na família autoritária. A Igreja
só continua essa função mais tarde. É por isso que o Estado autoritário
tem o maior interesse na família autoritária; ela transformou-se numa
fábrica onde as estruturas e ideologias do Estado são moldadas. A
inibição moral da sexualidade natural na infância, cuja última etapa é o
grave dano da sexualidade genital da criança, torna a criança medrosa,
tímida, submissa, obediente, “boa”, “dócil”, no sentido autoritário das
palavras. Ela tem um efeito de paralisação das forças de rebelião do
homem, porque qualquer impulso vital é associado ao medo; e como
sexo é um assunto proibido, há uma paralisação geral do pensamento
e do espírito crítico. Em resumo, o objetivo da moralidade é criação de
um indivíduo submisso que se adapta a ordem autoritária, apesar do
sofrimento e da humilhação. Assim, a família é o Estado autoritário
em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se adaptar, como uma
preparação para o ajustamento geral que será exigido dela mais tarde.
(REICH, 2001, p.36).
Esse conjunto de fatores fez com que Reich se tornasse uma espécie de “inimigo
público” nos EUA. O documentário de 2009 “Wer hat Angst vor Wilhelm Reich?” (Quem
tem medo de Wilhelm Reich?), escrito e dirigido por Nicolas Dabelstein e Antonin
Svoboda faz uma interessante pesquisa histórica nos arquivos de jornais, revistas, rádios
e televisão sobre a forma como Reich foi publicamente atacado. Com problemas judiciais
desde 1952, em 1954 Reich negou-se a comparecer ao júri, alegando que nenhuma corte
estava em posição de avaliar seu trabalho (SHARAF, 1984). Em 1956, o conflito de Reich
com a Justiça americana ganha mais intensidade e publicidade, com Reich recusando
um advogado e representando a si mesmo no julgamento. Neste mesmo ano, Reich e um
auxiliar – Dr. Michael Silvert – foram condenados à prisão. A Justiça ordenou que os
Acumuladores fossem destruídos, assim como qualquer material relacionado ao Orgone.
No dia 23 de agosto, foram incineradas 6 toneladas de livros, artigos, revistas e jornais
com escritos de Reich, que em sua grande maioria consistiam na sua obra sexo-política,
como “A Função do Orgasmo”, “Análise do Caráter”, “A Revolução Sexual” e “Psicologia
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Ideologia, moral e liberdade: a ética sexo-política de Wilhelm Reich
de Massas do Fascismo”, e não ao seu trabalho bioenergético (SHARAF, 1984). Turner nos
lembra de que Reich também teve suas obras proibidas e incineradas pelos nazistas e pelos
soviéticos, e também fez parte de “listas negras” de Hitler e Stálin. Ou seja, em vida, Reich
conseguiu ser perseguido por sua obra pelos três principais regimes políticos do século XX
(TURNER, 2011).
Wilhelm Reich morreu na prisão no dia 3 de novembro de 1957 devido a um ataque
cardíaco. Era conhecido entre os internos como “the sex box man”( TURNER, 2011, p.425).
Turner abre uma importante discussão sobre a repercussão e as interpretações feitas do
pensamento reichiano, chamando a atenção para uma série de paradoxos, como o fato do
símbolo da libertação sexual neste primeiro momento ter se tornado justamente o ato de se
fechar dentro de uma claustrofóbica caixa de metal. E qual a razão para uma reação tão ampla
e intensa, em que os custos dos processos judiciais contra Reich são estimados em mais de
2 milhões de dólares, tendo o relatório do FBI sobre ele 789 páginas, sendo que a acusação
consistia basicamente no fato dele distribuir um objeto que alegavam justamente não servir
para nada? Turner aponta que o vazio e o isolamento das caixas refletiam justamente vácuo
político e ideológico de uma geração divida entre a decepção com os rumos da revolução
socialista, e o esgotamento da democracia pós-guerra que culminou nos movimentos dos
anos 1960.
Ao processo de libertação econômica dos trabalhadores está inevitavelmente
associada uma dissolução das velhas instituições (especialmente daquelas
que governam a política sexual), para a qual o homem reacionário, e mesmo
o trabalhador industrial, desde que a sua maneira de sentir seja reacionária,
não está preparado. Especialmente o medo da “liberdade sexual”, que nas
concepções do pensamento reacionário se confundo com o caos sexual e
a dissipação, tem um efeito inibidor em relação ao desejo de libertação do
jugo da exploração econômica. Isso só se verificará enquanto prevalecer
a concepção errada de liberdade sexual. E esta só persiste em virtude de
as massas humanas não estarem esclarecidas sobre estas questões de
importância tão fundamental. É por isso que a economia sexual deve
desempenhar um papel um papel fundamental na ordenação das relações
sexuais. Quanto mais ampla e profunda tiver sido a influência reacionária
na estrutura das massas trabalhadoras, tanto maior é a importância de um
trabalho orientado pela economia sexual no sentido de educar as massas
humanas para assumirem a responsabilidade social. (REICH, 1989)
Com a ideia de Revolução Sexual, Reich estabelece o conceito fundamental de toda
sua teoria e prática sexo-política. O termo “revolução”, como foi utilizado primeiramente
por Reich, é literal. A sua ideia nesse momento era que o seu projeto sexo-político fosse
433
Rodrigo da Costa
incorporado como parte indissociável da Revolução Socialista. Se, evidentemente, a
proposta não se consolidou, ao menos o conceito consegue refletir toda a base da sua
crítica, da sua concepção de homem, sociedade e política. E se as suas propostas radicais
não foram implementadas por uma Revolução Socialista, por outro lado, elas ajudaram a
compor as novas utopias e a agenda política de diversos movimentos sociais e políticos na
segunda metade do século XX, desde setores da esquerda marxista, passando por novas
concepções de anarquismo, até a esquerda liberal americana. Turner e Sharaf descrevem
como frases de Reich eram pichadas nos muros durante as revoltas dos anos 1960, e
como seus livros eram utilizados como símbolos de subversão. As questões relativas ao
gênero, sexualidade e juventude entraram definitivamente na pauta da grande política, e
indiretamente, surgem a partir de interpretações do pensamento reichiano, concepções
que baseiam sua ação política através do uso político do próprio corpo. Podemos encontrar
uma síntese desse conceito na célebre frase de um dos grandes expoentes do Maio do
1968 e um dos pioneiros da militância LGBTI, Guy Hocquenghem: “O buraco do meu cu é
revolucionário”. Sendo feita a importante ressalva de que, Reich em si, nunca deslocou a
revolução para o plano do indivíduo.
Reich lança os fundamentos da Esquerda Freudiana ao propor que os escopos
marxista e freudiano, apesar de operarem em dimensões distintas, são partes de um
mesmo processo, que liga o inconsciente e o subconsciente ao econômico e político. Para
ele, não são apenas os traumas individuais e questões idiossincráticas que geram neuroses
nos indivíduos, mas um sistema de alienação e dominação de classes, típico da sociedade
patriarcal e burguesa. A alienação, com Reich, ganha uma nova dimensão, que poderíamos
definir como alienação sexual, um processo em que o indivíduo é privado do exercício
pleno e natural da própria sexualidade. Nesse sentido, Reich (retomando a noção básica
da Teoria da Libido de Freud) considera que, como o impulso sexual é a força motriz do
indivíduo, sua maior expressão bioenergética, é o domínio da sexualidade que permite
com que o indivíduo seja suscetível a todas as outras formas de alienação e dominação. É
também dentro desse contexto que para Reich se insere a questão da ideologia. Se ela atua
na consciência dos indivíduos, gerando uma falsa consciência, Reich como psicanalista
entende que esse processo precisa ser melhor esclarecido, complexificado. Em mais uma
das pontes entre Freud e Marx, Reich entende que na sociedade capitalista, é a ideologia
que é a grande produtora de neuroses, e responsável pela “miséria sexual do proletariado”
(REICH, 2001). A ideologia estrutura o caráter dos indivíduos. Ela atua moldando suas
formas de sentir, perceber e reagir ao mundo, e a forma de pensarem a si mesmos. É a
ideologia que produz angústias, assim como a ilusão de satisfação e liberdade sexual.
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Ideologia, moral e liberdade: a ética sexo-política de Wilhelm Reich
A sua tese fundamental era que a existência de uma ordem social injusta
não podia ser explicada, simplesmente, em termos de poder econômico
e político da classe dominante, como o marxismo corrente fazia. Do
mesmo modo, era impossível explicar unicamente o fracasso da revolução
como resultado da relativa fraqueza econômica das classes oprimidas.
Marx, é claro, tinha reconhecido a existência de uma defasagem entre
a subestrutura econômica e a superestrutura ideológica, incluindo a
política. (...) A explicação de Marx, muitas vezes apenas implícita, para
tais discrepâncias era uma “falsa consciência”. Mas essa noção ajustavase bastante mal aos seus pronunciamentos categóricos (em A Ideologia
Alemã) sobre a dependência da consciência das condições econômicas
reais. Era esse o dilema que Reich focaliza em seus escritos políticos.
Como explicar a força aparentemente autônoma da ideologia? A resposta
de Reich era que a ideologia se internalizara ou “fixara” na estrutura de
caráter do indivíduo. Era esse fato psicológico que a análise marxista
clássica tinha negligenciado. Certo, as ideias, os imperativos morais e os
dogmas religiosos refletem desenvolvimentos econômicos e tecnológicos,
mas não se trata, simplesmente, de questões a que a que os membros da
sociedade deram seu assentimento intelectual. Tornaram-se, realmente,
conceitos enraizados na estrutura de personalidade; em consequência do
impacto da ideologia, os homens não só pensam diferentemente, eles
são diferentes. A noção de que a ideologia se tornou psicologicamente
internalizada torna possível entender como a política é incapaz de refletir,
eventualmente, as realidades econômicas, sobretudo em uma sociedade
que esteja passando por uma rápida transformação. É esse o significado
de “força da tradição”. Precisamente porque a tradição está enraizada
na personalidade os homens é que pode manter uma ordem social
completamente em conflito com a lógica do desenvolvimento econômico
e a realidade das necessidades humanas. (ROBINSON, 1971, p.35-36)
Reich entende que a dominação de classe não se baseia simplesmente na constante
ameaça física e no medo do castigo, ou então na culpa e sublimação, mas que ela é um
autocontrole exercido pelo próprio indivíduo. Para Reich, isso só seria possível através
de um processo social de internalização repressão sexual pelas massas. Essa concepção
surgiu para Reich ao notar a vasta presença de neuroses, do desconhecimento da própria
sexualidade e da intensa e autoimposta repressão sexual na classe trabalhadora, que ele
atendia voluntariamente nas clínicas que desenvolveu para dar suporte ao seu projeto
sexo-político.
435
Rodrigo da Costa
Assim, para Reich existe uma relação direta entre a ordem socioeconômica e
a ordem sexual. Enquanto Freud universalizou a moral sexual, como em relação ao
Complexo de Édipo, Reich apoiou-se no materialismo histórico, e teorizou sobre uma
divisão da história das diferentes ordens sexuais, relacionando as diferentes ordens
sexuais com os diferentes modos de produção apontados por Marx. Para Reich, o corpo
e a consciência humana são as instâncias mediadoras dos processos, aparentemente
distintos, apontados por Marx e Freud. Então, é também através da consciência e do corpo
– e da sexualidade, que por sua vez, integra consciência e corpo – que deve começar a
luta. Para Reich, só é possível lutar contra o capital libertando a classe trabalhadora das
amarras psicossociais que a impedem de transformar a luta de classes em um conflito
deflagrado contra quem a domina e explora. Daí a importância dada por ele à Educação
Sexual, paralelamente a formação política e intelectual da classe trabalhadora. Nesse
sentido, podemos dizer que Reich é o teórico de uma práxis sexo-política.
Podemos entender Reich como um importante catalisador, que através da sua
obra e militância, colocou em diálogo diferentes correntes teóricas, e abriu as portas
para uma série de problemáticas que se tornaram posteriormente a base de vários
movimentos intelectuais e sociopolíticos contemporâneos. Dessa forma, o estudo de
Reich se justifica pelo fato de ser um autor fundamental para se entender o complexo
século XX. Assim, a pesquisa busca comprovar a tese de que é partir do trabalho de Reich
que são propostas uma série de problemáticas que passam a conceber a sexualidade
humana como parte indissociável das relações de poder, e as questões sexuais passaram
a compor a pauta política da nova esquerda, que surgirá em meados do século XX. Em
outras palavras, é a partir da forma original como ele conjuga Freud e Marx que será
desenvolvido o paradigma da Esquerda Freudiana.
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