Heróis de Papel e Tinta
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Heróis de Papel e Tinta
Laboratório de Palavras Heróis de papel e tinta1 João de Mancelos No último Outono, ao arrumar o sótão, descobri a caixa onde guardava o maior tesouro da minha adolescência: meia centena de livros aos quadradinhos, protagonizados por heróis como o Homem-Aranha, Batman ou a Mulher Maravilha. Soprei o pó de uma capa: o SuperHomem esvoaçava por entre os arranha-céus de Metrópolis, o punho erguido desafiando as forças do mal. Gerações de rapazes e raparigas como eu admiraram aqueles heróis de papel e tinta, a sua ética, a energia, os poderes extraordinários. Acredito que os grandes protagonistas fazem as grandes histórias. Poucos leitores recordam com pormenor as aventuras de Dom Quixote, mas quase toda a gente já ouviu falar nele. Isto significa que a personagem é mais memorável e importante do que o enredo da história e, por isso, o escritor aprendiz deve saber construí-la. E se inventássemos um superherói para os dias de hoje? Existem, na Escrita Criativa, técnicas que o podem ajudar nesta tarefa, evitando erros desnecessários. Primeiro conselho: um jovem leitor deve aderir à personagem, sofrer com ela quando perde e regozijar com as suas vitórias. Para tal, é necessário estabelecer empatia com o superherói. Este deve possuir qualidades como a força, a coragem, o carisma e altruísmo. No entanto, se um herói fosse imortal, a vitória contra a força das trevas seria previsível e as aventuras não gerariam suspense. Por isso, é sensato atribuir-lhe defeitos e medos, que o aproximem da condição humana do leitor. Até o Super-Homem tem problemas, desde uma malha nos “collants”, até à kriptonite, uma substância radioativa letal. Já reparou que a maioria dos protagonistas possui poderes de animais? O HomemAranha trepa pelos edifícios, Batman emerge como um morcego na noite da Gotham City, enquanto o Tarzan é um verdadeiro homem-macaco, saltando de liana em liana, com um grito animalesco. Por que não criar um herói com as capacidades de um animal da fauna lusitana: um lince da Malcata, um golfinho do Tejo ou um lobo de Trás-os-Montes? Por fim, não se esqueça que os heróis possuem um lado humano: Clark Kent (SuperHomem) apaixonou-se por Lois Lane, colega no jornal “Daily Planet”. Quando a via, gaguejava e compunha os óculos nervosamente, revelando uma timidez que fazia rir os leitores. Alternando 1 Mancelos, João de. “Heróis de Papel e Tinta”. Os meus livros 97 (abr. 2011): 38. 2 com a aventura, uma história romântica desenfastia da ação, e proporciona um momento para ganhar fôlego. Por outro lado, revela a faceta mais frágil, mas não menos bela, de um herói. Passei o resto da tarde no sótão, a folhear os livros aos quadradinhos que redescobrira após trinta anos, e confesso que senti a mesma admiração de outrora. Tal como os gregos e os latinos tinham vibrado, na Antiguidade, com Hércules, Aquiles ou Diana, também hoje admiramos os super-heróis e gostaríamos de ser como eles. Daniel Pennac afirmou que amar os protagonistas dos livros é um direito do leitor. E constitui, acrescento, o nosso passaporte para o sonho neste mundo demasiado real.