Somanlu - ong estilo de vida

Transcrição

Somanlu - ong estilo de vida
Nome autor
Somanlu
Revista de Estudos Amazônicos
ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
1
Nome ar tigo
Copyright © 2004 Universidade Federal do Amazonas
SOMANLU – REVISTA DE ESTUDOS A MAZÔNICOS
Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas.
(SOMANLU é um herói mítico da Amazônia criado pelo escritor Abguar Bastos)
MINISTRO DE ESTADO
Tarso Genro
DA
EDUCAÇÃO
C OMISSÃO EDITORIAL
Elenise Faria Scherer
Narciso Júlio Freire Lobo
Nelson Matos de Noronha
R EITOR
Hidembergue Ordozgoith da Frota
E DITOR
Renan Freitas Pinto
V ICE-REITORA
Neila Falcone da Silva Bonfim
COORDENADORA DE R EVISTAS
Prof.ª Dayse Enne Botelho
PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS -GRADUAÇÃO
José Ferreira da Silva
DIRETOR DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
Maria Izabel de Medeiros Valle
COORDENAÇÃO DO PROGRAMA
E CULTURA NA AMAZÔNIA
Narciso Júlio Freire Lobo
DE
PÓS-GRADUAÇÃO SOCIEDADE
CONSELHO EDITORIAL
Elenise Faria Scherer, Renan Freitas Pinto,
João Bosco Ladislau de Andrade, José Aldemir de Oliveira,
Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro, Márcia Perales Mendes Silva,
Marcos Frederico Krüger Aleixo, Maria Izabel de Medeiros Valle,
Marilene Corrêa da Silva, Narciso Júlio Freire Lobo,
Nelson Matos de Noronha, Odenildo Teixeira Sena,
Selda Vale da Costa, Walmir Albuquerque Barbosa e
Yoshiko Sassaki
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Rogério Cordovil
CONCEPÇÃO DA CAPA
Marcicley Rego
FINALIZAÇÃO DA CAPA
Verônica Gomes
FOTO DA CAPA
Antônio Lima (A Crítica)
REVISÃO DE ABSTRACTS
Paulo Renan Gomes da Silva
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Sérgio Pereira
A exatidão das informações, conceitos e opiniões são
de exclusiva responsabilidade dos autores
Publicada em Julho de 2004
Somanlu: Revista de Estudos Amazônicos do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura
na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Ano 1, n. 1 (2000 - ). —- Manaus: Edua/
FAPEAM, 2000 v.: il.; 17 x 24cm.
Semestral
Até 2002 publicação anual e vinculada ao PPG Natureza e Cultura na Amazônia.
Interrompida em 2001.
ISSN 15118-4765
1. Cultura Amazônica 2. Amazônia - Sociologia 3. Amazônia - Antropologia I. Programa de
Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia.
CDU 316.722(811)
2
Universidade Federal do Amazonas
Instituto de Ciências Humanas e Letras
Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na
Amazônia — PPGSCA
Av. Rodrigo Octavio Jordão Ramos, 3.000/Campus
Universitário — ICHL
CEP 69077 – 000 Manaus – Amazonas – Brasil
Fone/Fax: 055 92 647-4381/647-4380
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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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do Amazonas
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Telefax: (0xx) 92 231-1139
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CEP 69.010-110 Manaus/AM
Nome autor
Sumário
Apresentação ........................................................................................
5
Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos tradicionais”
como fator essencial de transição econômica - pontos resumidos
para uma discussão
Alfredo Wagner Berno de Almeida .................................................9
Tradição, modernidade e políticas públicas no alto Rio Negro
Maria Luiza Garnelo Pereira ..........................................................29
Dimensão pedagógica da violência na formação do
trabalhador amazonense
Marlene Ribeiro .............................................................................. 55
Inovações tecnológicas e qualificação profissional
Maria Izabel de Medeiros Valle ..................................................... 81
Impactos da reestruturação produtiva nas expressões
de consciência de classe dos operadores de produção da
Zona Franca de Manaus
Márcia Perales Mendes Silva .......................................................... 99
Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização
na Zona Franca de Manaus
Elenise Faria Scherer ..................................................................... 125
Impactos da reestruturação produtiva no Amazonas – níveis
de emprego e desemprego na Zona Franca e demais setores
Iraildes Caldas Torres .................................................................. 147
SUFRAMA: agência dos agentes
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3
Nome ar tigo
Izaura Rodrigues Nascimento .................................................... 159
Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira: em defesa
da floresta amazônica
Pérsida da Silva Ribeiro Miki ....................................................... 187
Dissertações defendidas (2002) ............................................................ 201
Roteiro para elaboração de artigos ......................................................215
4
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Nome autor
Apresentação
O Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia
– PGSCA completou cinco anos de existência na busca e no esforço para
consolidar a pós-graduação e a pesquisa na área das humanidades no Instituto
de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal do Amazonas. Na
trajetória da produção acadêmica do Programa, a revista Somanlu tem
sido o veículo de comunicação por meio do qual os seus professores, seus
pesquisadores, alunos colaboradores e convidados têm oportunidade de
publicar os seus trabalhos, suas pesquisas e seus estudos literários. Trata-se
de um empreendimento que vem reforçar, formalmente, a interlocução
com outros segmentos acadêmicos/intelectuais -- não só no âmbito local
como, também, transpondo fronteiras regionais -- que participam de
preocupações similares: a Amazônia.
Sem perder suas características de pluralidade temática e de opiniões,
próprias de seu caráter muldisciplinar, a revista Somanlu, neste número,
procurou trazer aos seus leitores reflexões centradas, em grande parte, na
questão do trabalho.
Este número inicia com o artigo de Alfredo Wagner B. de Almeida que
traz ao debate a reflexão de que não se pode, na atualidade, pensar e falar
sobre as alternativas de desenvolvimento na Amazônia sem levar em conta
a presença dos movimentos sociais e o reconhecimento dos saberes
tradicionais dos povos amazônicos, somados ao direito intelectual desses
povos para viabilizar a autosustentabilidade.
O artigo de Maria Luiza Garnelo Pereira analisa as práticas políticas
e as formas próprias de organização da etnia Baniwa do alto Rio Negro na
luta pela implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI.
A autora mostra de forma inovadora e particular, a busca pelos direitos à
saúde que se expressam nos convênios celebrados entre essa etnia e algumas
instituições governamentais.
O texto de Marlene Ribeiro procura historiar a organização de uma
nova classe social que se constituiu, precisamente, nos anos 70 com a
consolidação do industrialismo em Manaus, na era da Zona Franca. A autora
procura enfatizar o fazer-se classe dos trabalhadores agricultores/
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Nome ar tigo
pescadores/ribeirinhos que, na luta política e na sua dimensão educativa transformaramse em operários metalúrgicos no chão das fábricas do Distrito Industrial de Manaus.
O trabalho de Maria Isabel de Medeiros Valle discute os impactos sociais das
inovações tecnológicas e organizacionais nas indústrias da Zona Franca de Manaus.
Mostra como estes processos sociais passaram a exigir dos trabalhadores do chão de
fábrica novas qualificações técnico-profissionais e novas competências sociais,
demandando uma outra formação e qualificação profissional.
O texto de Márcia Perales Mendes da Silva centraliza a discussão nas metamorfoses
que ocorreram no mundo do trabalho nas indústrias do Distrito Industrial da Zona
Franca de Manaus. Aponta as mudanças que afetaram o cotidiano dos operadores de
produção destas fábricas e que se expressam nas manifestações de consciência dos
trabalhadores no espaço fabril.
Completa a temática da reestruturação produtiva nas fábricas do Distrito
Industrial, acrescido da questão do desemprego, o artigo de Elenise Faria Scherer que, ao
tomar como referência as fontes primárias e secundárias, mostra o índice de desemprego
em Manaus a partir dos anos 90. Apresenta as manifestações dos ex-montadores e exmontadoras sobre suas condições de vida e seus envolvimentos em trabalhos precários,
a partir do momento em que perderam seus postos de trabalho nas fábricas do complexo
industrial local.
O trabalho de Iraildes Caldas Torres que examina a mesma temática da reestruturação
produtiva nas indústrias da Zona Franca de Manaus, mostra os impactos deste processo
no emprego e no desemprego no Distrito Industrial e em outros setores da economia
amazonense.
A análise de Isaura Rodrigues do Nascimento sobre a SUFRAMA indica os caminhos
percorridos por esta agência de desenvolvimento regional na Amazônia Ocidental, a
qual imprimiu uma nova dinâmica sócio-econômica no Estado do Amazonas. Destaca,
outrossim, os impactos sócio-culturais que influenciaram a vida cotidiana dos manauenses.
A revista Somanlu finaliza esta edição com o artigo de Pérsida da Silva Ribeiro
Miki que faz uma análise da Agenda 21 brasileira no que se refere às implicações ambientais.
A autora nos mostra o lugar de destaque que a Amazônia Legal ocupa neste documento,
pelo reconhecimento mundial de sua sócio-biodiversidade.
Encerramos a revista com a apresentação dos resumos das dissertações dos
nossos alunos defendidas durante o ano de 2002.
Editores
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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Nome autor
Artigos
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Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Alfredo Wagner Berno de
Almeida
Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos
tradicionais” como fator essencial de transição
econômica – pontos resumidos para uma discussão
Alfredo Wagner Berno de Almeida1
Resumo
O trabalho focaliza os movimentos sociais como sujeitos da questão
ambiental na Amazônia no contexto das polêmicas oficiais em torno da
propriedade intelectual e do patrimônio genético
Palavras-Chave
Movimentos Sociais na Amazônia, agroecologia, propriedade intelectual,
patrimônio genético.
Abstract
This paper aims to focus the social movements as subjects of
environmental issues within the context official controversies vis-à-vis the
intellectual property and the genetic inheritance in the Amazon Region.
1
Professor-visitante do PPGACP-UFF/Universidade Federal Fluminense. Bolsista da Faperj.
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Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
Keywords
Social Movements in the Amazon Region; Agroecology; Intellectual Property;
Genetic Inheritance.
As polêmicas em torno da relação entre a fragilidade do “ecossistema
amazônico” e as “alternativas de desenvolvimento” têm sido marcadas, a partir
de 1988, com a intervenção sistemática dos movimentos sociais, por uma ruptura
radical com esquemas de pensamento utilizados comumente nos documentos
oficiais de planejamento e no âmbito da política ambiental. Tal ruptura aponta
para uma noção de “ecossistema amazônico” que não se reduz mais ao quadro
natural e às descrições e classificações de espécies, produzindo listas e copiosos
inventários de ocorrência de plantas, frutos e congêneres. Rompendo com a
prevalência do “biologismo” na explicação deste quadro natural, ela traz em seu
bojo o significado de “ecossistema amazônico” como produto de relações sociais
e de antagonismos, ou seja, pensado como um campo de lutas em torno do
controle do patrimônio genético, do uso de tecnologias e das formas de
conhecimento e de apropriação dos recursos naturais. As representações da
natureza, cristalizadas no âmbito do aparato burocrático, são abaladas neste embate
com repercussões sobre outras noções operacionais e conceitos que preconizam
uma “exploração racional” dos recursos.
De igual modo tem sofrido modificações o tratamento mediático dos
conflitos sócio-ambientais resultante de estratégias de comunicação postas em
prática, nos jornais e revistas de circulação periódica, por interesses e por
“especialistas” em meio ambiente coadunados com a lógica dos “grandes projetos”
e com sua pretensa racionalidade na exploração dos recursos naturais. A repetida
invocação de “modernidade” e “progresso”, que parecia justificar que os agentes
sociais atingidos pelos grandes projetos fossem menosprezados ou tratados
etnocentricamente como “primitivos” e sob o rótulo de “atraso”, tem sido abalada
em face da gravidade de conflitos prolongados e à eficácia dos movimentos sociais
e das entidades ambientalistas em imporem novos critérios de consciência ambiental.
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Um dos principais embates nestas polêmicas concerne à própria instituição
de direitos sobre o patrimônio genético, que está sendo crítica e duramente
construída2 em oposição às formulações de laboratórios de biotecnologia adotadas
pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Os traços e características, deste
referido patrimônio, que devem ser tomados em conta, não são a soma das diferenças
“objetivas”, ao contrário, apontam para um quadro complexo de experiências e
distintas modalidades de uso dos recursos naturais, envolvendo conhecimentos
localizados de diferentes agentes sociais, marcados por uma diversidade étnica com
suas respectivas organizações de representação política.
Neste contexto, as alternativas de desenvolvimento podem ser entendidas
como abrangendo o conjunto de medidas adotadas para pôr em execução projetos
de reconhecimento do “saber nativo”. Compreendem experiências concretas de
cooperação, que tanto envolvem manejo quanto processamento e transformação
de matérias-primas. Tais experiências sempre consideradas artesanais, pré-industriais
ou limitadas, não obstante sua eficácia, até então não tiveram condições históricas de
ganhar corpo, dado que a Amazônia foi sempre uma região “dominada”, pensada
de fora e objeto permanente de projetos de inspiração colonialista.
Aliás, a função geral da oposição entre “natureza” e “civilização”, coextensiva
à nossa maneira usual de pensar, expressa tão-somente a consciência que as metrópoles
coloniais têm de si mesmas. Ela resume tudo aquilo em que a sociedade ocidental
dos últimos três séculos se julga superior a sociedades consideradas “mais primitivas”,
“atrasadas”, “selvagens” ou ágrafas, tudo aquilo em que as sociedades industriais e
urbanas se julgam superiores às “populações nativas” consideradas características
das florestas úmidas e tropicais.
É sobre o processo de fortalecimento de movimentos sociais e de afirmação
étnica que se contrapõe a este ideário positivista de racionalidade absoluta, cujo fito
é a naturalização de fatos sociais, que pretendo discorrer.
2
Veja-se as dificuldades de aprovação do primeiro instrumento de combate à “biopirataria” que se acha tramitando no
Congresso Nacional há oito anos, qual seja, o Projeto de Lei do Senado n. 306, de novembro de 1995, de autoria da
senadora Marina Silva, que dispõe sobre os instrumentos de controle do acesso aos recursos genéticos do País e dá outras
providências. Dentre as disposições gerais tem-se a que prevê a participação das comunidades locais e dos povos indígenas
nas decisões que tenham por objetivo o acesso aos recursos genéticos nas áreas que ocupam.
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Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
Os Pajés e a Organização Mundial do Comércio
Em decorrência deste ponto de partida, quero iniciar a reflexão com uma
proposta de discussão que apresentei ao Encontro Nacional de Agroecologia (ENA),
realizado em 2002, mencionando a reunião dos pajés, curandeiros e líderes espirituais,
de povos indígenas da Amazônia realizada em dezembro de 2001 em São Luís,
capital do Estado do Maranhão. Compareceram a este evento representantes de
vinte povos indígenas, que definiram os termos de uma carta a ser enviada à
Organização Mundial de Produção Intelectual (OMPI) sediada em Genebra, Suíça.
O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que patrocinou a reunião, foi
o portador da carta destinada diretamente ao Comitê Intergovernamental da
Biodiversidade.
Os temas em pauta diziam respeito a:
a) recursos naturais das florestas tropicais, em particular da Amazônia, que
estão sendo explorados industrialmente;
b) necessidade de serem protegidos juridicamente os conhecimentos
tradicionais para evitar a biopirataria ou pirataria ecológica 3 , ou seja, para evitar que
“outros” se apropriem ilegítima e ilegalmente destes saberes nativos. 4
Considere-se “biopirataria” ou “pirataria ecológica” um conjunto de práticas delituosas que tanto consistem em transportar
animais ou plantas, sem permissão legal, com o objetivo de usar o material genético coletado para fins comerciais, quanto
em usurpar os conhecimentos tradicionais de povos indígenas e camponeses sobre animais e plantas. Compreende, pois,
a usurpação de direitos de propriedade intelectual e a expropriação dos saberes nativos.
4
Na última década intensificaram-se de tal ordem os casos de apropriação ilegal do capital de conhecimentos acumulado pelos
povos indígenas e pelas chamadas “populações tradicionais” que foi instituída, em 1997, na Câmara dos Deputados uma
“Comissão para apurar denúncias de exploração e comercialização ilegal de plantas e material genético na Amazônia”. Entre
outros, foram apurados casos de tráfico de besouros e borboletas, exportação ilegal de sementes (caso da empresa Tawaia,
Cruzeiro do Sul-AC), corantes naturais (extração do pigmento azul do jenipapo) e processamento do urucum, patentes do
bibiru ou bibiri, cujo princípio ativo foi registrado pelo laboratório canadense Biolink, e do cunani, patente do couro
vegetal, extração do látex de cróton (caso da Shaman Pharmaceuticals, que diz já ter estudado “sete mil plantas de todo
o conjunto da Floresta Amazônica”: cf. Relatório Final da Comissão. Brasília. Câmara dos Deputados. 1998 p. 13-44.
Acrescentem-se ainda casos de coleta de sangue-DNA dos Karitiana e Suruí de Rondônia por universidades norteamericanas (Arizona, Yale) e laboratórios. (ibid. p. 30-35)
Aumentando esta lista, tem sido divulgados pela imprensa periódica em 2003 “novos” casos de patenteamento que
usurpam conhecimentos nativos, senão vejamos: o cupuaçu, considerado uma fruta exótica da Amazônia, foi patenteado
pela Asahi Foods que produz o cupulate, chocolate de cupuaçu. A Rocher Yves Vegetale registrou nos EUA, Europa e Japão
a patente sobre a produção de cosméticos ou remédios que usam o extrato de andiroba.O laboratório nor te-americano
Abbot sintetizou e vende uma toxina analgésica produzida por um sapo ( Epipedobetes tricolor) que vive nas árvores
3
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Alfredo Wagner Berno de
Almeida
Esta reunião em que funcionários religiosos e especialistas das sociedades
indígenas, que detêm conhecimentos de botânica e de flora, aplicando-os em suas
práticas agrícolas e extrativas, produzem pleitos dirigidos a agências multilaterais
(OMC, OMPI), coadunados com as mobilizações de preservação ambiental levadas
a efeito pelos movimentos sociais na Amazônia na última década, significa uma
politização do saber sobre a natureza e por extensão uma politização da própria
natureza. Abre-se, de maneira mais formal, um novo capítulo de antagonismos e
conflitos sócio-ambientais em que os conhecimentos indígenas e das chamadas
“populações tradicionais” começam a se constituir num saber prático em contraponto
àquele controlado pelos grandes laboratórios de biotecnologia, pelas empresas
farmacêuticas e demais grupos econômicos que detêm o monopólio das patentes,
das marcas e dos direitos intelectuais sobre os processos de transformação e
processamento dos recursos naturais.5
E o que são estes conhecimentos nativos? Eles não se restringem a um mero
repertório de ervas medicinais. Tampouco consistem numa listagem de espécies
vegetais. Em verdade, eles compreendem as fórmulas sofisticadas, o receituário e os
respectivos procedimentos para realizar a transformação. Eles respondem a
indagações de como uma determinada erva é coletada, tratada e transformada num
processo de fusão.6
A questão do direito de patente institui, enquanto prerrogativa para regular
relações, um campo de confrontos sucessivos. Nele começam a se destacar as
mobilizações e as iniciativas dos movimentos sociais e de organizações ambientalistas.
amazônicas. O governo Lula, através do Ministério do Meio Ambiente, objetivando aprimorar o controle sobre as usurpações
prepara um banco de dados com o nome científico e popular das várias espécies nativas para ser disponibilizado via
Internet. Cf. MENCONI,M. e Rocha,L. “Riqueza Ameaçada --- a falta de fiscalização e controle das espécies nativas abre as
portas para a biopirataria e dá ao Brasil prejuízo diário de US$ 16 milhões”. Isto É nº. 1773, de 24 de setembro de 2003
p. 92-98.
5
Esta experiência de reunião dos pajés foi inspirada em um trabalho já em curso na Venezuela, produzindo um banco de
dados que catalogou, até agora, nove mil conhecimentos.Todos estes conhecimentos tradicionais foram produzidos por
povos indígenas e por camponeses. Para outros esclarecimentos consulte-se TACHINARDI, Maria Helena. “Pajés com a
palavra --- Brasil poderá ter banco de dados com conhecimentos tradicionais”. Gazeta Mercantil, 17 e 18 de novembro de
2001.
6
Um dos exemplos de expropriação destes conhecimentos indígenas mais divulgados pela imprensa concerne à “espinheira
santa”, que é bastante conhecida para combater a acidez no estômago. Técnicos japoneses teriam tido informações sobre
os procedimentos de beneficiamento e patentearam os extratos da erva e agora para que se possa utilizá-la tem que se pagar
a empresas japonesas os direitos autorais.
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Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
A Rede “Grupo de Trabalho Amazônico” - GTA, “para além da luta em defesa
dos conhecimentos tradicionais, como no processo movido pela anulação do registro
do nome cupuaçu no Japão, trabalha pelos direitos comunitários mais amplos como
forma de mostrar para a sociedade brasileira que a biodiversidade está ligada com a
diversidade cultural e agrícola das comunidades” (GTA, 2003). A Associação em
Áreas de Assentamento do Maranhão - ASSEMA, juntamente com a Cooperativa
dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco-COPPALJ e o
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Côco Babaçu-MIQCB têm se
movimentado desde 1998 no sentido de registrar suas marcas, numa linha de produtos
batizada como “babaçu livre”, que já são comercializados 7 . Desde fevereiro de
2003 o Instituto Indígena Brasileiro de Propriedade Intelectual - IIBPI, recém-criado,
começou a registrar os conhecimentos tradicionais dos pajés (MENCONI; ROCHA,
2003, p. 96). Não obstante tais iniciativas registre-se que o número de patentes
solicitadas por brasileiros é extremamente baixo se cotejado com o de países
industrializados 8 .
Reivindicar o direito intelectual é uma forma de luta, é uma forma de
contrapor conhecimentos, tornando-se essencial para as alternativas de
desenvolvimento autônomo, posto que podem viabilizar a auto sustentabilidade.
Basta dizer que as bases empíricas dos procedimentos elaborados em laboratórios e
demais empresas refletem as informações primeiras detidas pelos nativos. A seleção,
a infusão e a utilidade já foram definidas, muitas vezes centenariamente, pelo saber
nativo quando os laboratórios começam a atuar. Afinal, em muitos casos, o que os
laboratórios acabam fazendo se resume em agregar os componentes tecnológicos à
fórmula criada pelos índios e pelas “populações tradicionais” 9 . A eficácia trabalho
precursor dos povos indígenas é sobejamente reconhecida como assevera o
pesquisador Charles Clement do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia O primeiro empreendimento de comercialização exclusiva destes produtos em áreas metropolitanas trata-se da “Embaixada
do Babaçu” inaugurada em São Luís (MA) no decorrer de 2002. Outras 68 iniciativas de “relações comerciais justas” podem
ser encontradas na publicação do MMA intitulada “Negócios para Amazônia Sustentável” (MMA et al. Rio de Janeiro, 20022003).
8
Para maiores dados veja-se o artigo “Caldeirão da pajelança”, de autoria de D. Menconi e S. Filgueiras, publicado na Isto
É, de 19 de setembro de 2001, p. 93-95.
9
Há situações extremas como o caso da associação das mulheres trabalhadoras rurais de Ludovico, que fabricam sabonetes
de óleo de babaçu e vendem para a Sensual’s Pacific que os distribuem nos EUA com seu próprio rótulo, porquanto as
quebradeiras de coco babaçu ainda não patentearam seu produto. O óleo de babaçu para tal fabricação é produzido pela
7
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Alfredo Wagner Berno de
Almeida
INPA, que, a partir de seus estudos com o palmito pupunha, explica que “quando a
planta não é domesticada ou pelo menos semidomesticada esses conhecimentos são
adquiridos em etapas da investigação científica no decorrer de vários anos”. Os
índios desenvolveram essas tecnologias por meio da seleção de sementes, de solo,
da rigorosa observação do meio ambiente”. (CLEMENT apud NOGUEIRA,
2002, p. 9) 10. Sob este prisma não haveria uma descontinuidade absoluta entre os
saberes práticos e aqueles produzidos pela investigação científica e os laboratórios se
beneficiaram deste conhecimento inicial.
As estratégias empresariais e o monopólio dos direitos autorais
De outra parte há laboratórios farmacêuticos que, além do controle da
extração vegetal e dos processos industriais, adquiriram imóveis rurais para compor
suas próprias fazendas com espécies cultivadas. Depois de décadas nas florestas
ombrófilas da Pré-Amazônia, adquirindo produtos extraídos por povos indígenas
(Guajajara) e camponeses, a MERCK, após uma experiência conflituosa com
posseiros na fazenda Faísa, no Vale do Pindaré, adquiriu a fazenda Chapada, em
Barra do Corda (MA), Vale do Mearim, e implantou uma grande plantação de
jaborandi do qual obtém a pilocarpina. Este mesmo laboratório farmacêutico obtém
também a rutina a partir da fava-d’anta coletada por camponeses das regiões de
cerrado. 11
Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco, que também expor ta para a Europa (The Body Shop) e
para o EUA (Aveda). Para um aprofundamento desta experiência leia-se o documento “História sobre o pensamento de
fabricação de sabonetes do grupo de Ludovico”, de autoria da quebradeira de coco babaçu Maria Alaídes de Souza. O
Mar anhão em r ota de colisão-e
xperiencias camponesas vver
er sus políticas ggoo v er namentais
colisão-experiencias
namentais.. São Luís:CPT.
Coleção Padre Cláudio Berganaschi, 1998, p.171-176.
10
Segundo Clement, “o conhecimento dos índios e caboclos também é substancial na catalogação das plantas medicinais.
Informações de comunidades tradicionais ou correntes no meio urbano sobre prováveis benefícios terapêuticos de plantas
são absorvidos na Coordenação de Pesquisas em produtos Naturais (CPPN) do INPA como ferramenta para investigação
científica”. Clement cita o exemplo da pupunheira, que produz a pupunha. Essa palmeira foi domesticada pelos índios em
um período estimado de cinco a dez anos atrás e devido a essa característica possui tolerância ecológica muito
mais ampla que qualquer um de seus prováveis ancestrais [...] os índios desenvolveram sofisticadas
tecnologias de melhoramento genético, manejo e desenvolvimento de produtos que só resta
aperfeiçoá-las às necessidades do consumo em larga escala, a principal característica do mercado
mercado...”.
NOGUEIRA, W. Indios ajudam pesquisa a queimar várias etapas. Gazeta Mercantil, 18 de junho de 2002.
11
A Merck atua em 150 países com 32 fábricas e 69 mil empregados e apresentou em 2001 faturamento correspondente a US$
47,7 bilhões. No Brasil possui uma unidade industrial com 800 empregados e teve um faturamento, em 2001, correspondente
eta Mer
cantil
a US$ 95,5 milhões Cf. KARAM,Rita. “Mercado questiona balanço da Merck”. Gaz
Gazeta
Mercantil
cantil, 09 de julho de 2002.
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
O que está em jogo em estratégias empresariais desta ordem é a propriedade
da terra visando o controle efetivo de toda a evolução das espécies vegetais e o controle
do conhecimento absoluto da flora 12.
Está-se diante, pois, de pelo menos duas estratégias empresariais: uma delas,
por artifícios de intermediação, controla principalmente a circulação da produção
extrativa, através de uma vasta rede de intermediários, que comercializam diretamente
com índios, quilombolas e extrativistas, enquanto a outra detém também a propriedade
dos meios de produção. Combinando-se estas estratégias com uma terceira,
desenvolvida no domínio jurídico-formal e empreendida por agências multilaterais
focalizando a concentração da propriedade intelectual, tem-se o escopo da ação
empresarial das indústrias farmacêuticas. Assim, quando os pajés se reuniram para
decidir os termos da citada carta, eles não se encontravam isolados em sua condição
de funcionários religiosos e antes refletiam um aspecto coletivo dos conflitos em que
seus grupos sociais de referência se acham envolvidos. De certo modo estava em jogo
uma percepção de que hoje a Organização Mundial do Comércio (OMC) – que é
uma das três agencias multilaterais que disciplinam as medidas emanadas das políticas
de inspiração neoliberal (as outras duas seriam o Banco Mundial-BIRD e o Fundo
Monetário Internacional-FMI) e visam globalmente uma “homogeneização jurídica”
(BOURDIEU, 2001, p. 107) – através da Organização Mundial de Produção Intelectual
(OMPI) pretende estabelecer seu controle sobre todas as espécies vegetais do planeta13,
independentemente das legislações nacionais e dos direitos consuetudinários.
Neste caso o laboratório atua diretamente diferenciando-se de estratégias empresariais, mais usuais, que pressupõem
intermediação sem preocupação com propriedade da terra, como no caso do contrato entre o laboratório suíço Novartis
e a organização chamada Bioamazônia, com escritório em São Paulo. “O tiro de largada já foi dado nos grandes laboratórios
do País e do mundo. Para ober microorganismos da região o suíço Novartis desembolsou US$ 4 milhões, o britânico Glaxo
Wellcome, US$ 3,2 milhões, e o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos,US$ 1 milhão.Cada um à sua maneira. O
contrato da Novartis com a Bioamazônia, uma organização social, por exemplo, virou escândalo e está sendo revisto.Com
escritório em São Paulo, a Bioamazônia acabou comprometendo-se com a Novar tis a coletar 10 mil microorganismos
diferentes e enviar cepas para o Exterior.
Para se ter uma idéia da riqueza da região, o laboratório só precisaria recolher meio quilo de terra em cada um dos 50
pontos escolhidos na florestas para chegar à quantidade de microorganismos desejada. Em outras palavras estaria
gastando os tais US$ 4 milhões em 25 quilos de terra. “O contrato entre a Bioamazônia e a Novar tis parece o antigo acordo
do governo da Costa Rica com o laboratório Merck, quando toda a biodiversidade do país foi vendida por apenas US$ 1
milhão” segundo Antonio Paes de Carvalho presidente da Extracta e da Associação Brasileira das Empresas de
Biotecnologia. Apesar das farpas de Carvalho, a sua Extracta também mantém um polpudo acordo com a Glaxo”. (Cf.
OSMAN,Ricardo; ALMEIDA, Juliana. “Guerra verde”. Dinheir
Dinheiroo , n.155., 16 de agosto de 2000, p. 65-66).
13
“A unificação do campo econômico mundial pela imposição do reino absoluto do livre comércio, da livre circulação do
capital e do crescimento orientado para a expor tação apresenta a mesma ambigüidade que a integração no campo
econômico nacional em outros tempos: embora dando aparência de um universalismo sem limites, de uma espécie de
ecumenismo que encontra suas justificativas na difusão universal dos estilo de vida cheap da “civilização” do MacDonald’s, do jeans e da coca-cola, ou na “homogeneização jurídica”, freqüentemente tida por um indício positivo de
12
16
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Almeida
Tem-se, pois, uma contradição básica qual seja: de um lado a posição norteamericana, secundada pela Suíça e refletida na OMC, que pretende que os grandes
laboratórios de biotecnologia patenteiem todas as espécies e fórmulas que possam
ser usadas na transformação industrial destas espécies nativas. De outro lado, tem-se,
além de nações relutantes, a posição resoluta das cooperativas agroextrativistas, das
associações artesanais, dos movimentos sociais, das organizações ambientalistas e
dos pajés de que os conhecimentos tradicionais, inclusive os considerados folclóricos,
são fatores de uma cultura específica que não são passíveis de patenteamento por
grandes laboratórios, porquanto se trata de conhecimentos centenários e/ou
imemoriais que não podem ser regulados por patentes ou a elas reduzidos.
Trata-se de uma luta entre a liberdade de uso dos conhecimentos tradicionais,
pelos próprios agentes sociais que os produzem e reproduzem, e o controle absoluto
destes conhecimentos pretendido por empresas transnacionais e pelos laboratórios
de biotecnologia. Tais laboratórios pretendem levar o patenteamento ao máximo,
estendendo-o a todo e qualquer conhecimento dos recursos naturais. Está-se diante
de uma modalidade de “homogeneização jurídica” que subjuga dispositivos jurídicos
nacionais e visa disciplinar, pela subordinação jurídico-formal, as práticas e os saberes
de pajés, pajoas, benzedeiras, curadeiras e demais conhecedores de ervas com função
medicinal e ritual.
Tal episódio consiste num novo capítulo da chamada “guerra ecológica”,
referida a trágicas disputas por recursos naturais estratégicos, porquanto afeta a
combinação estável de recursos que tradicionalmente têm assegurado a sobrevivência
de índios e camponeses. Isto é, além de ameaçar as condições de reprodução social
e física das chamadas “populações tradicionais”, expropria seus conhecimentos e
saberes, inviabilizando sua reprodução cultural e desestruturando fatores de identidade
étnica. Este processo de expropriação se traduz em conflitos diretos na esfera
circulação e torna-se explícito em diferentes circuitos de mercado.
“gglobaliza
lobalization
tion”, esse “projeto de sociedade” que serve os dominantes, isto é, os grandes investidores que, situandotion
se acima dos Estados, podem contar com os grandes Estados e em particular com o mais poderoso dentre elês política
e militarmente, os Estados Unidos, e com as grandes instituições internacionais, Banco Mundial, Fundo Monetário
Internacional,Organização Mundial do Comércio, controladas por eles, para garantir as condições favoráveis à condução de
suas atividades econômicas” (BOURDIEU, 2001, p. 107)
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Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
O mercado segmentado versus o mercado de “commodities”
As chamadas “populações tradicionais”, através de suas entidades
representativas e de diversos movimentos sociais, apregoam que este conhecimento
intrínseco não pode ser assim expropriado, não pode ser subdividido e retalhado
entre laboratórios, desagregando os domínios de saberes em que são socialmente
produzidos. O esfacelamento não apenas colide com processos de afirmação étnica
como pode destruir as unidades culturais e ter, por extensão, um impacto negativo
sobre centenas de experiências produtivas, de povos indígenas, comunidades
quilombolas, ribeirinhos e pequenos produtores agroextrativistas em toda a
Amazônia. Além dos aspectos simbólicos têm-se os aspectos econômicos desta
contradição que apontam para dois circuitos de mercados que se opõem frontalmente:
o mercado segmentado versus o mercado de “commodities”. A noção de “commodity”
vinculada a produtos homogêneos, produzidos e transportados em grandes volumes,
por grandes empreendimentos tanto no setor mineral (ferro, ferro-gusa, bauxita,
estanho, manganês...) quanto na extração madeireira 14 , na coleta de plantas com
propriedades medicinais e nos produtos industriais (soja, óleos vegetais, celulose ...),
contrasta e colide com a produção baseada na extração através do trabalho familiar,
em cooperativas de produtores diretos, de base artesanal ou que incorpora tecnologia
simples, agregando valor aos produtos da floresta, e que é comercializada em circuitos
específicos de mercado.
Reforça o mercado de “commodities” a implantação de agroindústrias, de
indústrias agroflorestais, incluindo-se as de papel e celulose, e de bioindústrias, a
14
Registra-se atualmente uma ácida discussão sobre espécies que estariam em extinção como o mogno que foi exportado no
decorrer de 2000 para 96 empresas estrangeiras de 27 países diferentes. “Os quatro maiores compradores, segundo o
gerente do Greenpeace, são Aljoma Lumber, Dan K. Moore Lumber, DLH Nordisk e Thompson Mahogany”(FERREIRA, Renata“Preço do mogno pode subir”. Gazeta Mercantil
Mercantil, 27 de novembro de 2002 pág. C-04). Uma das exigências relativas ao
mogno é que sejam implantados projetos de manejo, com plantio aprovado pelos órgãos oficiais competentes e com a cota
de retirada de madeira determinada pelo IBAMA.O manejo florestal na Amazônia, embora tenha se constituído numa
exigência legal a empresas de papel e celulose, guzeiras etc, praticamente não existia até 1994. Em 2001 se limitava a 300
mil hectares, o que evidencia a pouca importância que lhe vem sendo atribuída por empresa mineradoras e madeireiras.
Por outro lado, no que diz respeito à ação governamental tem-se o seguinte quadro prospectivo: “Os planos oficiais para
a preservação dos recursos naturais amazônicos incluem a criação até 2010 de 50 milhões de hectares de novas florestas
nacionais (Flonas), que são unidades de conservação de uso sustentável, com o objetivo de produzir bens (produtos
madeireiros e não madeireiros) a ao mesmo tempo manter os serviços ambientais. Outros 25 milhões de hectares deverão
ser destinados a parques e reservas biológicas, ampliando a área de proteção na região dos atuais 3,25% para cerca de
eta Mer
cantil
10% do território”. (PINTO, Raimundo. “A Amazônia explora a sua biodiversidade”. Gaz
Gazeta
Mercantil
cantil, 10 de dezembro
de 2002).
18
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Almeida
expansão das usinas de ferro-gusa e empreendimentos mineradores que fazem dos
recursos naturais uma atividade comercial em larga escala. Um dos exemplos mais
conhecidos concerne à rápida e desordenada expansão do plantio de soja no Sul do
Maranhão, no Mato Grosso e em Rondônia. Uma outra situação compreende a
ampliação das usinas guzeiras em Marabá (PA) e Açailândia (MA), consumindo carvão
vegetal de florestas nativas em proporções cada vez maiores 15 . Outros exemplos
destes “grandes projetos” referem-se aos milhares de hectares incorporados por
indústrias de papel e celulose no Maranhão (baixo Parnaíba e Imperatriz) e no Amapá
e o descontrole das atividades mineradoras que já adentraram terras indígenas16 ,
violando princípios constitucionais, uma vez que a exploração depende de
regulamentação do Congresso Nacional.
No que tange à questão do patrimônio genético ora abordada vale citar a
proposta de utilizar a biodiversidade como matéria-prima, estabelecendo “um pólo
bioindustrial que utilize fármacos e extratos fitoterápicos de plantas nativas” na Zona
Franca de Manaus (PINTO, 2002). O autor observa que “Para dar apoio a esta
meta, acaba de ser inaugurado em Manaus o Centro de Biotecnologia da Amazônia
(CBA), que vai gerar tecnologias que agreguem valor às matérias-primas da
biodiversidade amazônica. Trata-se de um setor que movimenta cerca de US$ 195
bilhões anuais no mercado mundial”. (PINTO, 2002).
Nada assegura, entretanto, que tal iniciativa seja reflexo de uma política
industrial dirigida especificamente para o patrimônio genético, buscando recuperar
Segundo documentos do Programa Nacional de Florestas (PNF) do Ministério do Meio Ambiente, a recomposição das áreas
plantadas para uso industrial e energético da madeira encontra-se abaixo do necessário. “Segundo estimativas apresentadas
ao Banco Mundial pelo Programa Nacional de Florestas a média de replantio de áreas desde 1996 não ultrapassa os 250
mil hectares/ano, quando seriam necessários 630 mil hectares/ano”. Em outras palavras o Brasil estaria a caminho de um
Gaz
eta Mer
cantil
apagão florestal conforme sublinha Leonor Bueno em “Apagão florestal vem aí, aler ta PNF” (Gaz
Gazeta
Mercantil
cantil, 31 de
julho de 2002).
16
Para efeito de ilustração, cabe citar que grande parte dos 2,6 milhões de hectares das terras dos Cinta-larga, em Rondônia
e Mato Grosso, foi devastada por garimpeiros em busca de diamantes. Compradores estrangeiros, oriundos de Israel e da
Bélgica, foram detidos em Juína (MT), sob suspeita de contrabando. O contrabando explica a enorme discrepância entre a
expor tação legal de diamantes de gemas, que segundo o Serviço de Comércio Exterior (SECEX) no ano passado foi de
apenas 9.096 quilates, e o destaque que as pedras brasileiras começam a ganhar no mercado externo. De acordo com o
Mining Journal
Journal, publicação especializada da Inglaterra que mede a comercialização de pedras preciosas na Europa, a
produção de diamantes de gema no País foi de 900 mil quilates, no mesmo período, comercializados a US$ 41 milhões.Esse
número colocou o Brasil como o décimo maior produtor de diamantes do mundo. Basta fazer a conta – 900 mil quilates
menos nove mil – para concluir que 890 mil quilates saíram ilegalmente do País em 2001. “Está claro que a amior parte
desses diamantes sai do País contrabandeada” afirma o procurador da República Pedro Taques que coordena uma força
tarefa da PM que investiga o contrabando de diamantes em terras indígenas” (RIBEIRO JR., Amaury. A Nova Maldição. Isto
É , 4 de dezembro de 2002).
15
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19
Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
o conhecimento indígena e valer-se das suas potencialidades econômicas. A Fundação
Getulio Vargas-FGV desenvolveu, por solicitação da SUFRAMA, um estudo sobre
as potencialidades econômicas da Amazônia Ocidental e enfatizou os seguintes
produtos de mercado amplo: amido de mandioca, palmito de pupunha, frutas
tropicais (notadamente açaí e cupuaçu), extração de safrol da pimenta-longa, madeira
serrada (pré-beneficiada), madeira laminada e compensada, piscicultura, castanhado-brasil e turismo ecológico (GAZETA MERCANTIL, de 10 de maio de 2002).
Os prognósticos de diferentes instituições assinalam que “antes de 2010 a madeira
tropical se transformará na principal “commodity” da Amazônia brasileira” (GAZETA
MERCANTIL, de 10 de maio de 2002) 17.
Os movimentos sociais e a contra-estratégia
Quais os recursos que as entidades ambientalistas e os movimentos sociais
com suas respectivas experiências localizadas contam hoje no âmbito deste
enfrentamento tão desigual? A tentativa de resposta nos impele a refletir sobre a
necessidade de repensar a questão ambiental, envolvendo além de práticas colidentes
de agentes sociais diferenciados, o reconhecimento daquelas dimensões simbólicas
peculiares nas relações destes agentes com os recursos naturais. Este ato de repensar
aponta para novas modalidades de interpretação sobre o acesso, o uso e a
apropriação, temporários ou permanentes, dos recursos hídricos, florestais e do
solo, bem como para aspectos conflitantes em face das políticas governamentais.
Transcendendo a uma noção estrita do recurso básico, a terra, o esforço de
reconceituação incorpora ademais fatores étnicos e político organizativos, abarcando
distintos atos de mobilização que denotam consciência ecológica. Deste modo a
questão ambiental não pode mais ser tratada como uma questão sem sujeito. Não se
restringe ao contorno de um quadro natural isolado, pensado preponderantemente
por botânicos e biólogos. E quem seriam os sujeitos? Os sujeitos desta questão
17
No dia 10 de maio de 2002 foi realizado no Renaissance Hotel em São Paulo (SP), sob patrocínio da SUFRAMA e do
Ministério do Desenvolvimento, com realização da Gazeta Mercantil, o evento intitulado: “Seminário sobre oportunidades
de negócios na Amazônia Ocidental e Amapá” visando atrair investidores e empresários do Centro-Sul do País.
20
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ambiental na Amazônia tem se constituído na última década e meia. Eles não têm
existência individual ou atomizada. A construção destes sujeitos é coletiva e se vincula
ao advento dos vários movimentos sociais que passaram a expressar as formas
peculiares de uso e de manejo dos recursos naturais por povos indígenas, quilombolas,
ribeirinhos, seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, ou seja pelas denominadas
“populações tradicionais”. Constata-se nos meandros dos conflitos sócio-ambientais
decorrentes uma desnaturalização do termo “população” que aqui contrasta com a
noção de “populações biológicas”.
O advento nesta última década e meia de categorias que se afirmam através
de uma existência coletiva, politizando nomeações da vida cotidiana tais como: índios,
seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos, castanheiros, pescadores,
extratores de arumã e quilombolas, dentre outros, trouxe a complexidade de elementos
identitários para o campo de significação da questão ambiental. Registrou-se uma
ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente
apagou as diferenças étnicas e a diversidade cultural. O sentido coletivo destas
autodefinições emergentes impôs uma noção de identidade à qual correspondem
territorialidades específicas, cujas fronteiras estão sendo socialmente construídas e
nem sempre coincidem com as áreas oficialmente definidas como reservadas. Estáse diante de um processo de territorialização complexo em que o raio de abrangência
dos movimentos sociais não se confunde com as manchas de incidência de espécies
identificadas cartograficamente, ou seja, a atuação do Conselho Nacional dos
Seringueiros-CNS, por exemplo, não se acha confinada nas regiões de incidência de
seringais.
Com propósito de síntese, pode-se adiantar que antes da questão ambiental,
através da categoria terra, recurso básico, era considerada indissociável dos problemas
agrários e agora pela noção de território, revela-se dinamicamente atrelada a fatores
étnicos e afirmativos de uma identidade. A construção de sujeitos sociais indica para
uma existência coletiva objetivada numa diversidade de movimentos organizados
com suas respectivas redes sociais, redesenhando a sociedade civil da Amazônia e
impondo seu reconhecimento aos centros de poder. Estas redes emergem para
além de entidades ambientalistas ou de defesa ecológica, abrangendo sobretudo
organizações locais. Já não é mais possível dissociar a questão ambiental das associações
voluntárias e entidades da sociedade civil, com raízes locais profundas, que estão se
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
21
Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
tornando força social tais como: a União das Nações Indígenas (UNI), a Coordenação
Indígena da Amazônia Brasileira (COIAB) e toda a rede de entidades indígenas a ela
vinculada, que alcança 75 organizações e 165 povos indígenas; o Movimento
Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), o Conselho Nacional
dos Seringueiros, o Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE), o Movimento
dos Atingidos de Barragens (MAB), a Associação Nacional das Comunidades
Remanescentes de Quilombo e a rede de entidades a ela vinculada no Maranhão
(ACONERUQ) e no Pará (ARQMO), e a Associação dos Ribeirinhos da Amazônia.
Há outras organizações incipientes que estão se estruturando a partir de situações de
conflito localizadas como o Movimento dos Atingidos pela Base de Lançamento de
Alcântara, a partir de 2001, e a Coordenação das Organizações e Articulações dos
Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA), criada em setembro de 2003 por mais
de 60 lideranças Guajajara, Krikati, Gavião, Canela, Awá-Guajá e Kaapor. Inclua-se
também as mobilizações crescentes em face da construção do gasoduto de Coari
(AM). Atreladas a elas tem-se outras modalidades organizativas que também devem
ser mencionadas tais como:
a)entidades ambientalistas, que também buscam sistematizar um
conhecimento mais detido sobre a região amazônica;
b) o novo sindicalismo dos trabalhadores rurais proveniente das antigas
“oposições sindicais” que hoje designam a chamada “agricultura familiar”; e
c) as experiências de cooperativas agroextrativistas e de projetos de
assentamento, principalmente no Acre, Amapá, Rondônia, Tocantins e Maranhão;
d) o agrupamento de índios de diferentes etnias, que se encontram em áreas
metropolitanas, numa só entidade. Uma ilustração concerne ao Conselho dos Índios
de Belém, que inclusive tem representação no Congresso da Cidade, outra ilustração
aos índios que residem em Manaus. Em ambas situações participantes destas
organizações podem ser encontrados comercializando produtos fitoterápicos. No
caso de Belém há condições de possibilidade, através do Congresso da Cidade, de
uma articulação destes movimentos com a associação dos feirantes do Ver-o-Peso
que consiste na maior praça de mercado de fármacos e saberes tradicionais da
Amazônia.
A expressão destas múltiplas redes ultrapassa a mil organizações e tem,
inclusive, levado os organismos internacionais a estimularem a sua institucionalização.
22
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Não é por acaso que tem sido financiados pela cooperação internacional, nos últimos
onze anos, inúmeros projetos de “fortalecimento institucional”. O maior deles data
de 1991-1992 e se refere à constituição do Grupo de Trabalho Amazônico (GTA),
como uma rede de organizações que acompanha as iniciativas do Projeto Piloto de
Preservação das Florestas Tropicais-PPG-7. Esta rede hoje abrange 513
organizações18 e paralelamente à consolidação institucional estimula experiências
localizadas através dos Projetos Demonstrativos (PDA) e, mais recentemente, os
Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas (PDPI).
Além de se caracterizar por práticas de mobilização contra a devastação das
florestas, a expropriação dos meios de produção e a usurpação dos “saberes nativos”,
a contra-estratégia busca consolidar a consciência ecológica, incorporando-a à
identidade coletiva dos movimentos sociais. Às lutas pelo livre acesso das chamadas
“populações tradicionais” aos recursos naturais acrescente-se aquela de uma nova
geração de índios, quilombolas e seringueiros, que migrou para as cidades concluindo
cursos de formação superior e que agora se voltam para aprimorar seus estudos na
questão do patenteamento. “Para saber a melhor forma como isso pode ser feito e
quais seus direitos, um seringueiro, um pajé, uma advogada índia – a primeira a se
formar no País ---, uma juíza negra, representando os direitos das mães-de-santo da
Bahia e advogados, representantes de comunidades indígenas, estão desde segundafeira recebendo noções sobre patentes, marcas e direitos autorais na sede do Instituto
Nacional de Propriedade Intelectual(INPI) no Rio”. (CONCEIÇÃO, Cláudio R.
Gomes. “Indios se interessam por patentes”. Gazeta Mercantil, 8 de maio de 2002).
Outras atividades de aprimoramento concernentes à titularidade de “conhecimentos
tradicionais” e sua consolidação compreendem seminários, exposições e intercâmbio
de experiências e instalação de pequenos empreendimentos industriais, envolvendo
representantes dos diferentes movimentos e das entidades ambientalistas 19 . Em
todas estas situações a contra-estratégia reforça as identidades políticas e não pode
De acordo com a publicação do GTA intitulada Pelo futuro da Amazônia
Amazônia, conjunto de posições tornadas públicas
quando da realização da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WSSD 2002) ou Rio + 10, a rede GTA é
“integrada por 513 organizações sociais e populares entre associações de ribeirinhos, castanheiros, pescadores, seringueiros,
quebradeiras de coco babaçu, povos indígenas, agricultores familiares, entidades ambientalistas, de assessoria e de
pesquisa” (GTA, 2002, p. 6).
19
Para efeito de evidenciar a intensificação destas práticas vale citar os informes do GTA que noticiam: a) a realização da oficina
“Conhecimentos tradicionais:proteção, acesso e repartição de benefícios” em Rio Branco (AC) entre 2 e 4 de outubro de
2003; b) a “Mostra de empreendedoras rurais da Amazonia”, promovida pelo MMNEPA, GTA,FETAGRI e GTNA, congregando
90 experiências realizadas por grupos rurais de mulheres não somente agricultoras, mas também extrativistas, quilombolas
e indígenas, realizada em Belém entre 1 e 3 de outubro de 2003; c) Embrapa e FUNAI devolveram milho indígena a
18
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Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
ser dissociada do controle efetivo dos meios de produção combinado com a
aplicação dos “saberes práticos”.
Os movimentos sociais e o processo de consolidação de
territorialidades específicas
As identidades peculiares (seringueiros, quebradeiras de coco babaçu,
ribeirinhos, quilombolas) correspondem territorialidades específicas. Tais
territorialidades, como já foi sublinhado, não equivalem exatamente às manchas de
incidências de espécies cartografadas no zoneamento ecológico-econômico. Para
efeito de exemplo, observe-se que a área de atuação do movimento das quebradeiras
de coco babaçu não corresponde de maneira precisa àquela de ocorrência dos
babaçuais estimada em 18 milhões de hectares. O mesmo se pode dizer dos chamados
castanheiros. A territorialidade que lhes é correspondente não equivale à superfície
do Polígono dos Castanhais, cujas estimativas variam entre 800.000 e 1.200.000
hectares. No caso dos movimentos indígenas seu raio de abrangência não corresponde
exatamente à extensão das terras indígenas na Amazônia. Haja vista que há entidades
que agrupam indígenas que trabalham e têm morada habitual nas capitais, Belém e
Manaus, rompendo com os dualismos rural/urbano e aldeia/cidade. A existência
do recurso natural, em termos botânicos e geológicos, e a sua classificação oficial,
por si só, não constituem critérios definidores de um determinado grupo ou de seu
respectivo território. Além disto, os mesmos agentes sociais podem ser encontrados
em mais de um movimento, tais como castanheiros e quebradeiras de coco babaçu
que se filiaram ao Conselho Nacional dos Seringueiros ou atingidos por barragens
que se vinculam a diferentes os movimentos. Há um processo de territorialização
comunidades Xavante. O milho pertence às variedades Nodzob que foram perdidas com a orientação de técnicos agrícolas
para o uso de sementes comerciais. “O milho foi recuperado do banco de sementes, foi cultivado no campo experiemental
de Nova Porteirinha (MG) antes de ser devolvido aos Xavante. Não se tem ainda informações sobre o tipo de cooperação
técnica e proteção aos conhecimentos que foi utilizado nessa cooperação” (GTA – Info 30 setembro de 2003); d) o
plantio e processamento do caju e outros frutos do cerrado através da implantação de uma indústria, controlada por
cooperativas agroextrativistas, em São Raimundo das Mangabeiras, que será inaugurada pelo líder camponês Manuel da
eta Mer
cantil
Conceição (cf. FILGUEIRAS, Otto. “Fábrica do Sonho no Sertão”. Gaz
Gazeta
Mercantil
cantil, 11 e 12 de outubro de 2003).
24
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que é dinâmico e não necessariamente composto de áreas contíguas, que é construído
através das ações sucessivas de unidades de mobilização. 20
Os grupos que se objetivam em movimentos sociais se estruturam também
para além de categorias censitárias oficiais. Importa distinguir a noção de terra daquela
de território e assinalar que as categorias imóvel rural, usada pelo INCRA, e
estabelecimento, acionada pelo IBGE, já não bastam para se compreender a estrutura
agrária na Amazônia. Os critérios de propriedade e posse não servem exatamente
de medida para configurar os territórios ora em consolidação na Amazônia, haja
vista que no caso do “babaçu livre” os recursos são tornados abertos e de uso
comum, embora registrados como de propriedade de terceiros. 21 Os tipos de manejo
e de uso se sobrepõem à propriedade garantidos pela mobilização política dos
movimentos sociais. Tal mobilização apóia-se também no repertório de saberes
específicos próprios das realidades localizadas. Menosprezar isto pode gerar impasses
como estes que discutem genericamente a “ocupação humana em áreas de preservação
ambiental” ou outros tais como: as RESEX permanecem há uma década sem que
tenha sido concluída a regularização fundiária e sem que haja perspectiva de dirimir
os litígios a curto prazo. De igual modo parques, reservas e florestas nacionais
encontram-se intrusados, notadamente por madeireiras e agropecuárias, sem que
haja um mecanismo capaz de garantir de maneira efetiva o desintrusamento.
Um dos elementos centrais desta discussão é que hoje na Amazônia não se
pode mais pensar no problema do ecossistema através da categoria terra simplesmente.
Tem-se que considerar as vantagens teóricas de pensá-lo a partir de um processo de
territorialização, pois esta categoria envolve o sujeito da ação, implicando numa
construção social. Bandeiras de luta de preservação ambiental, mobilizações que se
Sobre o conceito de unidades de mobilização, consulte-se ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. “Universalização e Localismo –
ba
te
movimentos sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazônia”. CESE-De
CESE-Deba
bate
te, n. 3-Ano IV, Maio
de 1994, p. 21-41.
21
A mobilização das quebradeiras de coco babaçu tem levado, desde 1997, inúmeras Câmaras de Vereadores do Vale do
Mearim a aprovarem leis municipais que garantem a preservação e o livre acesso aos babaçuais em regime de economia
familiar. Tais leis que asseguram o livre acesso aos babaçuais, separam a propriedade do solo daquela do uso da cobertura
vegetal, permitindo às quebradeiras adentrarem em terras de terceiros para efetuar a coleta e a quebra da amêndoa do
babaçu. O município que primeiro logrou êxito na aprovação foi o de Lago do Junco com a Lei Municipal n. 005 de 1997.
Atualmente este município conta em sua representação com uma vereadora quebradeira de coco: D. Maria Alaídes de Souza.
Além deste tem-se a Lei Municipal n. 32 de 1999, aprovada pela Câmara de Lago dos Rodrigues e a Lei Municipal n. 255
também de 1999, aprovada pela Câmara Municipal de Esperantinópolis. Além do livre acesso tais leis proíbem derrubadas
de palmeiras babaçu, cortes de cachos e uso de agrotóxicos em conformidade com a Lei Estadual n.4. 734 de 1986,que
também consistiu numa conquista.
20
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Amazônia: a dimensão política dos
“conhecimentos tradicionais”...
contrapõem aos desmatamentos e instrumentos legais no plano municipal para garantir
áreas reservadas constituem alguns dos elementos deste processo de territorialização.
São os seringueiros, com seus empates e outras formas de impedir o desmatamento,
que estão construindo o território em que a ação em defesa dos seringais se realiza.
São os atingidos por barragens e os ribeirinhos que estão defendendo a preservação
dos rios, igarapés e lagos. E assim sucessivamente: os castanheiros defendendo os
castanhais, as quebradeiras os babaçuais, os pescadores os mananciais e os cursos
d’água piscosos, as cooperativas agroextrativistas os seus métodos de processamento
da matéria-prima coletada. De igual modo os pajés, as pajoas, os curandeiros e os
benzedores acham-se mobilizados na defesa das ervas aromáticas e medicinais, dos
extratos, das resinas e dos saberes que as transformam.
De maneira resumida, pode-se dizer que esta forma de pensar a Amazônia
abre uma nova possibilidade, que transcende àquela idéia de imaginar estes sujeitos
da ação ambiental como guardiães da floresta simplesmente ou, numa visão com
pretensão de racionalidade, como fazendeiros ambientais. Eles são mais que guardiães
ao acumularem um capital de conhecimentos localizados (uso centenário, manejo
em contínua transformação, processamento, transformação) e ao disporem de
quadros técnicos (Ong’s, universidades) como assessores permanentes produzindo
um conhecimento cumulativo e em permanente transformação. Assim, eles não
podem ser mais imaginados, numa perversa divisão de trabalho, como guardando
a floresta ou como preservando-a para ser usada pelos laboratórios de biotecnologia.
O conhecimento científico encontra-se também nas suas experiências transformadoras
– seja nas cooperativas, nas unidades de processamento e beneficiamento – , nas
suas práticas, e este fato estabelece uma disputa teórica e conceitual frente a um
conceito positivista de “ciência”, engendrado pela dominação. Em decorrência existe
uma forte articulação entre o conhecimento científico – produzido por intelectuais
que intervêm numa luta política seus critérios de competência e saber acadêmicos –
e os movimentos sociais, que não pode mais ser facilmente quebrada. Pode-se pensar
numa nova divisão do trabalho político em face da questão sócio-ambiental,
combinando ciência e disciplinas militantes na acumulação de um capital de
conhecimentos.
Qualquer proposta de “alternativa de desenvolvimento” ou de
“desenvolvimento local sustentável” passa, portanto, por este saber acumulado, pelas
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Almeida
formas de agregação de valor dele derivadas, e por um novo gerencialismo nas
associações e cooperativas agroextrativistas, que incorpora fatores étnicos, de
identidade, de gênero e de ênfase no entendimento dos sujeitos da ação.Não é por
acaso que se recorre agora à autoridade dos pajés. Eles não controlam só o sagrado,
eles controlam também os saberes que orientam as relações com os recursos naturais.
Seriam o pano de fundo das relações antrópicas. Sabem transformar as ervas, sabem
fazer infusões, conhecem os santuários e ademais não revelam publicamente seus
segredos, protegendo-os para assegurar sua reprodução dentro do próprio grupo.
A noção de direito autoral aqui é tradicionalmente resguardada pelo “segredo” da
vida sacerdotal de funcionários religiosos dos próprios povos indígenas ou de
quilombolas e extrativistas. À OMPI, em princípio, se põe o reconhecimento destas
formas nativas de direito consuetudinário que tem no “segredo” da fórmula uma
expressão de “propriedade intelectual”, acatada por diferentes povos e etnias. A
forma consuetudinária expressa uma modalidade de direito autoral que luta para
ser reconhecida.
Os desdobramentos destes pontos para discussão aqui apresentados
conduzem às seguintes indagações: em que planos pode-se articular o conhecimento
científico, crítico e responsável, com o “conhecimento nativo” dos recursos naturais
da região amazônica? Em que medida as experiências de produção em cooperativas
agroextrativistas, observando os ditames das organizações ambientalistas, podem
garantir a consolidação dos chamados “saberes tradicionais”? Quais as condições de
possibilidade destes saberes virem a ser incorporados e “protegidos” por políticas
governamentais num quadro em que prevalece a idéia de mercado aberto, no qual a
lógica das “commodities” prepondera, e em que a homogeneização dos produtos da
floresta tornou-se um objetivo das estratégias empresariais? A nossa capacidade de
respondê-las pode significar um meio de superar os entraves por elas colocados.
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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Alfredo Wagner Berno de
Almeida
Tradição, modernidade e políticas públicas no alto
Rio Negro
Maria Luiza Garnelo Pereira 1
Resumo
Este trabalho, desenvolvido na região do alto rio Negro, analisa as
concepções políticas de lideranças indígenas Baniwa, sobre suas próprias
práticas e as de instituições do mundo não indígena, refletindo sobre a
polifonia discursiva de agentes de políticas públicas, que estabelecem
interações com o movimento indígena.
Palavras-Chave
Saúde, diferenças étnicas e mundo indígena.
Abstract
This work, developed in the the region of the high Negro River, analyses
the polithical conceptions of the leaders of the Baniwa indians, about
their owns practises and over the non-indian world, thinking over the
poliphony of speeches from the agents of public polithics, that has
interactions with the indian movement.
1
Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas. Coordenadora do Núcleo de Estudos de
Saúde Pública. Projeto Rede Autônoma de Saúde Indígena/RASI, da Faculdade de Ciências da Saúde.
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Tradição, moder nidade e políticas
públicas no alto Rio Negro
Keywords
Health, differentiated ethnics, indian world.
O contexto da pesquisa
O trabalho vem sendo desenvolvido no município de São Gabriel da Cachoeira, alto rio Negro; esta região, conhecida na geopolítica brasileira como cabeça
do cachorro, tem sido, nos últimos anos, palco de importantes embates entre projetos
nacional-desenvolvimentistas, ambientalistas, grupos indígenas e instituições
transnacionais que conduzem a globalização das relações planetárias.
O contexto político geral da região agrupa os militares com o Sistema de
Vigilância da Amazônia – SIVAM e o revigorado Calha Norte, garimpeiros, entidades ambientalistas e de defesa da causa indígena, missões religiosas, projetos governamentais de desenvolvimento regional e outros. No campo sanitário, temos a recente movimentação do Ministério da Saúde para a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI,2 uma tentativa de prover atenção à saúde de
grupos etnicamente diferenciados, e de resolver uma longa disputa com a FUNAI
pela condução dos rumos das políticas de atenção à saúde indígena. A movimentação em torno dos DSEI gerou, além de um incremento nas tensões e interações
políticas, a celebração de relações conveniais entre um órgão de governo, a Fundação Nacional de Saúde e entidades indígenas. Os convênios, celebrados não apenas
no alto rio Negro, inauguram uma forma de legitimação do movimento indígena
por setores do governo, que comporta inclusive o repasse de recursos públicos para
entidades indígenas, algo inusitado no Brasil.
Partindo do campo específico da saúde, buscamos explorar a interface entre o mundo indígena, com suas formas próprias de organização social e as lutas
políticas travadas junto à sociedade nacional e global, na busca do exercício de direitos políticos específicos de grupos culturalmente diferenciados e de acesso aos direitos de cidadania e bens sociais, entre os quais se destaca a saúde. Tais lutas, ainda que
2
Distritos Sanitários Especiais Indígenas são formas de organização de microssistemas de saúde de base local e dirigidos
especificamente à população indígena residente em sua área de abrangência.
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travadas no âmbito das instituições e fóruns decisórios não indígenas, são centradas
na idéia de direito à diferença étnica e são profundamente matizadas pelo modo
indígena de vida, que parametra e orienta as representações e práticas sociopolíticas
dessas lideranças, seja no campo da saúde, principal foco de interesse deste texto, ou
nas outras ações realizadas no âmbito mais geral do movimento indígena.
A análise das estratégias de atuação dos atores políticos indígenas, no contexto de lutas intra e interétnicas, evidencia um manejo da identidade étnica, em que
a adoção de uma condição de “índio genérico” garante unidade política na atuação
de representantes de diferentes etnias, autodenominados lideranças indígenas,3 e
amplia sua capacidade de negociação junto aos poderes constituídos. Embora a
diferença étnica nunca se apague de fato, sua negação temporária facilita alianças
com entidades/instituições globalizadas, contribuindo para consolidar e ampliar sua
intervenção no sistema de saúde e nas políticas indigenistas como um todo. Paradoxalmente, este mesmo movimento gera uma revigoração da etnicidade, e uma busca/reconstrução, de sinais diacríticos de uma indianidade antes pouco valorizada.
Uma das idéias centrais aqui desenvolvidas é que as características da organização social e cosmológica do grupo étnico estudado, influenciam decisivamente
nas formas de atuação de suas organizações indígenas,4 o que implica propor que
uma compreensão mais adequada da dinâmica de atuação do movimento indígena
rio-negrino exige um entendimento das formas de exercício do poder político e
simbólico da sociedade que deu origem a cada organização indígena que o compõe.
O grupo investigado, localmente conhecido como Baniwa, pertence à família lingüística Aruak e habita as margens dos rios Içana e Aiari, no território brasileiro.
Tal grupo, composto por aproximadamente 4.000 indivíduos, distribuídos em 97
aldeias, subdivide-se no Brasil em quatro fratrias exogâmicas entre si, cada uma das
quais congregando diversos sibs que interagem através de relações hierárquico-rituais,
Na linguagem corrente no alto rio Negro, a denominação de liderança indígena costuma aplicar-se a vários tipos de agentes
políticos, tais como chefias de aldeia conhecidas como capitães, líderes de organizações indígenas de base, isto é, de âmbito
local e dirigentes da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro/FOIRN.
4
Organizações indígenas são fenômenos recentes na sociedade brasileira, existindo poucos estudos sobre as mesmas.
Ricardo (1995) e Monteiro (1996) estudaram o tema, no âmbito do Brasil, com certa ênfase em relação ao alto rio Negro.
Dentre as principais características destas entidades observa-se a utilização, pelos índios, de estratégias organizativas
próprias das sociedades nacionais, assemelhadas aos sindicatos. Sua direção costuma ser exercida por pessoas jovens cujo
foco principal de luta se dá no contexto das relações interétnicas na busca de maior autonomia de decisão na política
indigenista e na conquista de direitos sociais.
3
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Tradição, moder nidade e políticas
públicas no alto Rio Negro
centradas na consangüinidade como eixo de reprodução/manutenção da cultura
Baniwa e na afinidade/alteridade por eles concebida, por fator essencial na transformação da mesma. Dentre os membros deste grupo, os dados sobre o movimento
indígena, biomedicina e organização de serviços da rede de saúde, foram coletados
através de observação participante de eventos políticos e sanitários ocorridos na
área Baniwa nos últimos quatro anos e de entrevistas aplicadas a informantes Baniwa
dos rios Içana e Aiari, afluentes do rio Negro, dos sibs Kadapolitana, Dzawenai,
Walipere Dakenai, Komadaminannai e Kapithiminannai e Hohodene. As informações
sobre as organizações indígenas de base 5 foram coletadas também junto às diretorias
e filiados de cinco das nove entidades atuantes na região.
Referencial teórico
A idéia de cultura, caracterizada por Sahlins (1997), como organização da
experiência e da ação humanas por meios simbólicos é um conceito central que
perpassa toda a discussão do tema, e a partir do qual buscaremos articular e harmonizar as diferentes contribuições teóricas utilizadas. Na tentativa de evitar um uso
instrumental da noção de cultura, foram explorados os espaços de uso ressignificado
das normas culturais pelos sujeitos, rejeitando uma abordagem dicotômica entre
tradicional e moderna; os pressupostos adotados neste trabalho são mais bem expressos pelas palavras de Sahlins, para quem, “a tradição consiste nos modos distintos como se dá sua transformação: a transformação é necessariamente adaptada ao
esquema cultural existente” (1997, p. 62). A partir dessas premissas, buscou-se entender
como os povos indígenas rio-negrinos vêm desenvolvendo estratégias específicas
de incorporação de elementos da cultura mundializada ao seu próprio sistema de
mundo.
Tais propostas são congruentes com investigações recentes de Terence Turner
(1992 e 1993), sobre as interações entre as produções socioculturais Kayapó e aquelas trazidas pelo contato interétnico; em tais pesquisas o autor demonstra que este
grupo indígena vem efetuando um “processo de recolonização” dos saberes e artefatos
5
Organizações de base são entidades que congregam um número determinado de aldeias e efetuam uma intermediação entre
o plano local e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro/FOIRN, entidade que articula politicamente todo o
movimento indígena no alto rio Negro.
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tecnológicos do mundo não indígena, utilizando-os como forma de revitalização da
etnicidade.
Bourdieu (1989 e 1996), ao interrogar-se sobre as condições sociais que
tornam possível a apreensão do mundo, evidencia que, dentre as diversas formas de
conceber e manipular a vida social, o Poder Simbólico capaz de atribuir sentidos
ordenados ao mundo social, é uma das vias preferenciais de transformação da realidade, constituindo redes de sentido que operacionalizam uma simbolização capaz
de constituir e transformar esta mesma realidade. A proposta de Bourdieu, que
adotaremos aqui, é aceitar os símbolos por instrumentos de poder, de comunicação
e de transmissão de conhecimentos, mas sem ignorar, como faz o interacionismo
simbólico, as interveniências do meio social, onde tais símbolos são gerados, reproduzidos e transformados. O autor caracteriza o campo da produção simbólica
como um microcosmo onde grupos sociais exercitam a capacidade de “fazer ver e
fazer crer”, isto é, de fazer valer, para os outros, a sua própria visão de mundo,
intervindo desta maneira sobre a sociedade; o poder simbólico é uma forma transfigurada de outras manifestações de poder, partilhando com elas a capacidade de
produzir efeitos e transformações reais no contexto social onde é exercido. A partir
das premissas dadas por Bourdieu, tentaremos apreender os modos como os atores
sociais 6 em pauta capturam o real e como reconstroem no cotidiano das organizações indígenas.
As lutas travadas em torno da identidade étnica podem ser caracterizadas
como um caso particular de luta pela possibilidade de dar a conhecer, fazer reconhecer e legitimar sentidos/visões específicos de mundo, produzidos por grupos
culturalmente diferenciados, em luta para instituir suas categorias de percepção e
apreciação da realidade como algo reconhecível pelo todo social (BOURDIEU,
1996). O que está em jogo aqui é um tipo de luta simbólica na qual as lideranças
indígenas esforçam-se por legitimar uma definição identitária capaz de anular o
estigma e a exclusão. É através de atividades eminentemente simbólicas que o
movimento indígena vem intervindo na cena social, buscando reverter desvantagens
sociais e econômicas que lhes foram impostas no contato interétnico. Em relação
aos seus próprios liderados, as lutas simbólicas das lideranças comportam também
6
O termo está sendo usado para caracterizar os sujeitos que estabelecem relações capazes do produzir o campo políticosanitário que tentamos analisar.
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Tradição, moder nidade e políticas
públicas no alto Rio Negro
uma reconstrução criativa do passado e presente étnicos, que eles tentam legitimar
através de suas práticas políticas diante das organizações que dirigem.
A produção etnológica de pesquisadores dos grupos rio-negrinos, como
Wright (1981, 1988, 1992, 1998), Hill (1989), Journet (1980, 1995), S. Hugh-Jones
(1979) C. Hugh Jones (1979), Goldman (1963), Jackson (1983) e Koch-Grümberg
(1995), será intensamente utilizada, provendo a base de análise das características da
cultura e organização sociopolítica dos grupos étnicos em pauta. Igualmente a produção teórica de Pierre Clastres (1982, 1990) e F. Santos-Granero (1993, 1994)
proverá aportes sobre as características do poder político nas chefias ameríndias.
A teoria da Comunicação Social também comparece com a Semiologia
dos Discursos, entendida como o estudo dos fenômenos sociais enquanto formas
de produção de sentido, pelos sujeitos de um processo histórico, político e sociocultural
determinado (ARAÚJO, 1995).
Os movimentos sociais são aqui conceituados como processos políticos,
expressões de poder da sociedade civil, desenvolvendo-se em um contexto de correlação de forças sociais (GOHN, 1997). A teoria dos movimentos sociais subsidiou
a análise da organização interna e externa do movimento indígena do alto rio Negro
e conseqüentemente das formas de exercício de seu poder político. Observa-se que
internamente as demandas estão orientadas a partir de um conjunto de valores e
crenças oriundos do pensamento mítico, que ordena as estratégias de ação dos grupos e as orienta para as lutas travadas no âmbito das relações interétnicas.
No contexto intersocietário, onde se inscreve o movimento indígena
rionegrino, vêm ocorrendo diversas iniciativas governamentais que visam à implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI; as autoridades de governo
têm buscado alianças políticas com as organizações indígenas e suas assessorias, para
a legitimação de seu projeto político, que costuma confrontar-se com os interesses
das redes de poder local, não indígena. As elites não indígenas do alto rio Negro
configuram-se como o principal opositor do movimento indígena em decorrência
de tensões oriundas da disputa pela terra e pela exploração de recursos ambientais.
Questões como esta remetem às estratégias de (re)construção histórica da
identidade étnica e política do movimento indígena na América Latina, temas que
vêm sendo tratados por autores como Bartolomé (1979) e Bonfil Batalla (1979 e
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1988), que analisam a politização da diferença pelo movimento indígena e identificam a possibilidade de construção de um novo sujeito coletivo capaz de encaminhar
processos reivindicatórios passíveis de influenciar as políticas de Estado.
Verón (1980)7 permite a exploração da polissemia das práticas discursivas
sobre o poder político, doença e práticas de cura, onde coexistem diferentes visões
de mundo; tais elementos configuram a realidade sócio-sanitária do alto rio Negro
como um mercado simbólico8 onde os diferentes discursos e práticas políticosanitárias buscam tornar-se hegemônicos; tais facetas caracterizam o campo sanitário como um espaço de expressão do poder e disputa política entre os grupos
sociais envolvidos. O mercado simbólico representado por estes discursos permite
evidenciar um conjunto de forças políticas indígenas e não indígenas, que buscam
legitimar suas práticas e cuja dinâmica própria determina a forma de atuação dos
atores políticos indígenas que produzem demandas para as instituições de saúde.
O movimento indígena na cena social rio-negrina
A cena social9 em que se situa o movimento indígena é bastante eclética,
comportando a presença de múltiplos atores como ONG’s cristãs com suas propostas de fraternidade, os saudosistas da “vida natural” que identificam os povos
indígenas quase como parte do cenário de florestas idílicas, os ecologistas políticos,
entidades com interesses políticos e econômicos de impacto na globalização, como
a Organização Pan-americana de Saúde e o Banco Mundial. Pode perceber-se ainda
uma variada gama de outros atores sociais como empresas de cosméticos,
universidades que desenvolvem programas de estudos sobre a questão indígena e,
Diversos autores, entre os quais E. Verón (1980), têm trabalhado com a noção de inter textualidade no sentido da
heterogeneidade das origens de cada discurso; cada emissor congrega em si mesmo um conjunto de discursos que
constituem o seu próprio, constituindo um mercado simbólico no qual as diferentes configurações discursivas competem
entre si.
8
Segundo Verón (1980), mercado simbólico é o espaço social onde os discursos concorrentes expressam posições, onde
os atores negociam sentidos e poder, gerando-se uma alternância de posições sociais e práticas discursivas, que ora
ocupam posições centrais, ora periféricas, dependendo das relações de poder/saber, nos distintos níveis de articulação das
relações sociais.
9
A cena social é aqui concebida como um espaço de interações conflitivas onde os atores sociais tentam tornar hegemônicas
suas posições e visões de mundo.
7
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públicas no alto Rio Negro
finalmente, as onipresentes ONG’s de apoio a ambas as causas, que com freqüência
intermediam o acesso dos grupos locais ao plano político mundial. O cenário comporta ainda diferentes formas de atuação de lideranças indígenas, tais como as que
militam nos centros de poder e decisão urbanos e a população aldeada que está em
um outro patamar, um pouco mais distanciado de um convívio cotidiano com a
modernidade e que efetuam sua “educação mundializada” no contato com agentes
da globalização, entre os quais seus próprios parentes, assessores e outros membros
da sociedade nacional.
Este conjunto de elementos mostra a inadequação de pensar-se em simples
oposições entre índios e não índios. Embora a prática política das lideranças indígenas seja profundamente perpassada pela idéia dessa oposição, pode-se observar
uma complexificação na teia de relações de poder; nela os atores sociais intercambiam
suas posições no campo político intersocietário, de acordo com as situações contextuais
que precisam enfrentar, ora situando-se como índios que atuam em consonância ou
oposição ao mundo dos brancos10 e com as produções sociopolíticas de sua cultura
de origem, ora são brancos desempenhando tais papéis, em uma dinâmica que
permite a construção de alianças diversas onde se intercambiam interesses e
prioridades dos blocos de poder que perpassam a questão indígena. Tal
movimentação demonstra a capacidade de manejo simbólico da identidade indígena,
de apropriação e utilização dos interesses e prioridades das instâncias de decisão do
mundo não indígena e a incorporação de políticas sociais e tecnologias que possam
viabilizar a ampliação das lutas políticas travadas pelas lideranças (TURNER, 1993).
A dinâmica das relações políticas travadas nas organizações de base reflete,
em grande parte, as tensões das relações de parentesco, expressas na distribuição
geográfica das aldeias que lhes fornecem base de apoio e nas fissões periódicas que
entre aquelas ocorrem. Por outro lado, as formas de atuação de tais lideranças representam novas estratégias, construídas pelos povos indígenas, para lidar com as instituições não indígenas, na busca de uma posição menos assimétrica que a que lhes é
habitualmente conferida; boa parte da legitimidade dos líderes de organizações indígenas é garantida por sua escolaridade e pelo domínio de saberes do mundo dos
10
O termo “branco”, uma designação corrente no alto rio Negro, está sendo utilizado aqui para referir-se aos membros do
mundo não indígena, não tendo correlação necessária com características somáticas dos indivíduos.
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brancos, mas esta pré-condição é insuficiente para prover a sustentação de uma
trajetória política mais duradoura.
Discutindo as atribuições de uma chefia de aldeia, Nicolas Journet (1995)
informa que entre os Baniwa a generosidade, a habilidade de congregar o esforço
comum para a realização de obras na comunidade, a firmeza e a constância de
posições e opiniões, a serenidade, a ponderação, a constância e a capacidade de
mediar conflitos, são características valorizadas no exercício do poder político. Se
no contexto intratribal os antigos critérios de avaliação e legitimação de chefias de
aldeias costumam ser aplicados para orientar a avaliação do desempenho das jovens
lideranças das organizações de base, no plano das relações interétnicas observa-se
uma flagrante diferença entre as práticas discursivas produzidas pelas lideranças do
movimento indígena que reivindicam direitos legais e as dos capitães, particularmente os mais idosos que, através de práticas clientelistas que foram dominantes no
passado, tentam driblar a profunda assimetria das interações com o poder político e
econômico local.
Tal diferença expressa as posições relativas dos atores sociais no mercado
simbólico do alto rio Negro; nele coexistem visões de mundo contraditórias e em
disputa pela hegemonia e credibilidade, que garantirá a legitimidade de ação de cada
ator envolvido na cena social; não existe uma homogeneidade possível: o processo
político ali travado configura um mosaico com uma coerência global, mas comportando consideráveis contradições internas onde se confrontam feições plurais de
configurações identitárias; a cultura manifesta-se heterogênea e dinâmica, expressando as diferentes visões de mundo e experiências concretas de seus membros.
Sendo entidades políticas criadas para mediar a relação com o mundo externo, as organizações indígenas têm como exigência básica: o aprendizado de
atividades próprias do mundo do branco e de suas relações de poder; são prérequisitos comuns ao militante do movimento indígena, ao professor e ao agente de
saúde, a escolaridade formal 11 e o aprendizado de técnicas de linguagem institucional
do mundo ocidental, ou seja, de documentação escrita, como abaixo-assinados,
ofícios, requerimentos, formulários, estatísticas, procedimentos administrativos, ela11
Na história das relações de contato do alto rio Negro, a escolarização aparece como um dos sinais distintivos do processo
civilizatório desenvolvido pela Missão Salesiana; atualmente qualquer processo educativo desenvolvido recebe uma valorização
imediata, independente de sua qualidade pedagógica e eficácia social. Nas representações e práticas sociais dos informantes
da pesquisa, a escolaridade surge como um disputado objeto de desejo e de prestígio, que inflama as disputas intercomunitárias.
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Tradição, moder nidade e políticas
públicas no alto Rio Negro
boração de projetos para captação de recursos jetc. Nelas pode observar-se um
padrão de aprendizado horizontal, travado no âmbito informal pelas próprias lideranças; os “locus” de aprendizado são as práticas do movimento indígena regional,
nacional e internacional; os líderes aprendem, uns com os outros, a lidar com eventos, reuniões, audiências com autoridades, a elaborar projetos, a negociar com suas
bases e com as outras organizações, na busca de ampliar a legitimidade, o prestígio,
os recursos e os bens captados no bojo do trabalho político.
As estratégias de ação e de aprendizado próprios do movimento indígena
geram construções analíticas específicas, não inscritas nas pautas de comportamento
anteriores ao contato interétnico, e nem nas formas próprias de operar do mundo
não indígena; tais elaborações visam a compreensão e abordagem de um conjunto
de problemas cuja eventual resolução e/ou encaminhamento torna as organizações
indígenas uma das vias privilegiadas de acesso a bens e direitos sociais sistematicamente negados aos povos indígenas.
Em que pese tais características, elas não são entidades de classe, no sentido
que concebemos um sindicato; tampouco representam grupos de moradores dispostos aleatoriamente no espaço urbano, sem vínculos prévios entre si, unidos apenas por interesses conjunturais. As organizações indígenas congregam grupos de
parentes (e mais raramente também seus afins) com relações prévias de obrigações
sociais recíprocas culturalmente estabelecidas, e constituindo-se como mais um, dentre
outros, meio de demarcação de uma identidade de uso local12 no cadinho pluriétnico
do alto rio Negro; tal identidade pode propiciar um manejo gradativamente mais
ampliado, de “índio do alto rio Negro” quando as lideranças participam do Conselho Deliberativo da COIAB,13 de “índio da Amazônia ou do Amazonas” quando
participam de fóruns de âmbito nacional da CAPOIB e ainda de “índio da Amazônia brasileira” quando comparecem a reuniões internacionais. Ao sair do alto rio
Tal singularidade pode ser bem evidenciada quando observamos a base geográfico-cultural a partir da qual uma associação
se configura; assim, temos por exemplo: Organização do Rio Aiari, uma entidade que representa majoritariamente os sibs
Hohodene; Organização do Médio Rio Içana, que representa principalmente a fratria Walipere; podemos ter ainda Organizações do Alto, Médio e Baixo Tiquié, Uaupés, etc.; sob o rótulo de diferenciação geográfica encontramos diferenciações
de “sibs”, que expressam configurações das relações de poder local.
13
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) propõe-se a ar ticular as interações entre todas
as organizações indígenas da Amazônia Legal; a CAPOIB – Conselho de Articulação dos Povos Indígenas do Brasil propõese a fazer o mesmo no âmbito nacional. Os próprios nomes dessas instituições evidenciam a renúncia a uma forma
hierárquica de organizar as entidades de base cujas iniciativas podem ser, no máximo, “articuladas” por entidades de
âmbito mais geral; de fato, observa-se que as organizações locais gozam de bastante autonomia, não havendo relações de
subordinação aos níveis regionais e nacionais.
12
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Negro, efetuam um apagamento temporário da identidade local, em favor de uma
frente de alianças que possa ampliar seu poder de negociação e deliberação em
fóruns mais amplos.
Algumas entidades, como as Associações de Agentes Indígenas e de Professores – AAIP poderiam ser consideradas como algo próximo a uma entidade de
categoria; elas têm lutado por salários, pelo estabelecimento de um programa de
educação continuada para seus membros, por currículos escolares diferenciados,
etc. Essas, porém, comportam muitas diferenças em relação a uma organização tipo
sindical. No âmbito local o poder ou influência da entidade de classe é nulo: o
professor ou agente de saúde lida diariamente mais com a influência do capitão e
outras figuras de destaque na aldeia, que de sua associação. Pelo menos no alto rio
Negro elas não têm tido acesso a canais diretos de financiamento, embora contem
com a contribuição dos associados, boa parte dos recursos tem sido obtido através
da FOIRN, o que, de uma forma ou de outra, limita sua autonomia. De um modo
difuso pode observar-se uma desconfiança da liderança de entidades de base, que
temem um fortalecimento das entidades de classe, como a Associação dos Agentes
Indígenas de Saúde – AAISARN, que poderiam estabelecer lutas corporativas, prejudiciais aos interesses de conjunto das comunidades indígenas. Tal desconfiança,
firmemente enraizada nos mecanismos de restrição à diferenciação individual, pode
representar um meio de intervir no trabalho dos subgrupos profissionalizados, detentores de saberes não oriundos do mundo indígena, sobre cuja atuação o mundo
da aldeia dispõe de poucas formas de controle.
O trabalho político cotidiano exige o entendimento do mundo não indígena, da dinâmica do próprio movimento indígena e das conjunturas políticas e
econômicas que possam favorecer ou dificultar as lutas étnicas. Nas aldeias há uma
circulação limitada destas informações, boa parte das quais exige o domínio da
escrita, o que deixa muitos líderes potenciais fora do páreo; é inegável que existe um
descompasso entre o que as lideranças indígenas aprendem em sua militância e os
saberes circulantes nas aldeias. Com freqüência, os jovens líderes queixam-se da dificuldade em fazer os mais velhos compreenderem as diferenças entre esta forma de
atuação de suas entidades e o trabalho de gestão cotidiana da vida na aldeia. Entre as
próprias lideranças indígenas a apropriação desses saberes é desigual; tanto podeSomanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Tradição, moder nidade e políticas
públicas no alto Rio Negro
mos encontrar lideranças perfeitamente familiarizadas com a linguagem do mundo
globalizado, como outras que, em fase mais inicial de aprendizado, expressam posições mais próximas às do mundo da aldeia, imersas em uma lógica predominantemente local.
A partir da dinâmica encontrada entre as organizações Baniwa, pode-se
imaginar a organização política no alto rio Negro como uma série de círculos concêntricos, nos quais os anéis mais largos são mais ligados ao poder local, representado pelos capitães que dão sustentação (ou a retiram) às organizações de base; tais
cargos costumam ser preenchidos por pessoas mais velhas, de baixa escolaridade,
que podem atuar também como conselheiros das organizações de base, exercendo
controle sobre a movimentação delas. Os mais jovens, em geral mais escolarizados,
podem fazer-lhes triagem para cargos de direção das organizações de base e/ou
participar do conselho da FOIRN (um colegiado deliberativo de base ampla), onde
também se observar um significativo número de velhos capitães. Os cinco diretores
da Federação podem ser considerados o anel mais central e certamente de maior
alcance político, a quem cabe a difícil tarefa de negociar as grandes decisões com as
esferas de poder do mundo dos brancos, incluindo-se aí as políticas públicas, e
acomodar as tensões e disputas entre os diferentes grupos étnicos do alto rio Negro,
além de movimentar toda a burocracia necessária para o funcionamento da entidade.
Neste movimento ascendente, a escolaridade não é o único critério, mas
tem um peso importante na escolha de dirigentes de organização de base, agentes de
saúde e professores indígenas. Embora este critério, oriundo da “situação colonial”,
seja um requisito fundamental, ele não significa que a liderança possa agir com completa autonomia e independência dos capitães; ela recebe uma delegação provisória
cuja legitimidade pode ser rapidamente contestada com a força dos boatos que
circulam nas aldeias. Observamos aqui a construção de um tipo de identidade política que não sendo centrada exclusivamente na tradição, promove uma manipulação
no capital simbólico (BOURDIEU, 1989) detido por alguns membros do grupo,
permitindo um reencontro e um reforço da comunidade étnica, que se apropria e
utiliza, para seus próprios fins, os saberes gerados no contato interétnico.
Particularmente entre os Baniwa, os capitães detêm suficiente poder para
fazer a glória e a desgraça dos representantes de suas organizações de base, forçan40
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do sua rotatividade. Esta forma de intervenção social gera uma dificuldade permanente no funcionamento destas instituições, pois sua atuação está sempre pautada
pela substituição periódica de líderes que, a cada mandato, reiniciam o aprendizado
de como a entidade deve atuar e de como interagir com os outros elementos dos
mundos indígena e não indígena; existe, além disso, o risco permanente de
descontinuidade dos projetos e atividades iniciados na gestão anterior. Em longo
prazo, porém, tal rotatividade pode mostrar-se funcional, não só porque limita a
formação de uma elite descolada dos interesses comunais, mas também porque
propicia a ampliação do raio de capacitação informal, feita no seio do próprio
movimento indígena, gerando, a cada mandato, um maior número de pessoas informadas sobre as formas próprias de operar do mundo não indígena, motivadas
e engajadas nas pautas de luta étnica.
Apesar das fortes interações com a politização mais ampla do movimento
indígena, pode dizer-se que no caso Baniwa a principal base de apoio das lideranças
é a endorreferida (TURNER, 1992), isto é, definida no interior, e pelas normas
culturais do próprio grupo étnico. Não se deve subestimar porém a influência do
apoio externo representado por assessores e instituições não indígenas, já que sua
atuação pode redundar em maior ou menor volume de conquistas políticas e sociais
e em conseqüente aporte ou retirada de apoio político às lideranças; mesmo com
forte sustentação local, uma liderança cuja atuação não se traduza em ganhos concretos,
através da obtenção de bens e serviços a serem redistribuídos entre suas comunidades de apoio, será, cedo ou tarde, destituída de seu mandato.
Se por um lado as chefias de aldeia reconhecem a necessidade de eleger
representantes com escolaridade suficiente para aprender a lidar com os complexos
problemas da política indígena e indigenista, por outro lado eles não estão dispostos
a abrir mão de sua autoridade em favor dos mais jovens, capacitados ou não para
lidar com os saberes dos brancos. Ao contrário, o que se observa no momento atual
é que as habilitações obtidas pelos jovens, no campo da saúde, da educação ou da
política indígena, têm sido utilizadas como instrumento de reforço ao poderio dos
capitães, não apenas para reafirmar sua própria importância entre os consangüíneos,
ou entre os afins nos rios vizinhos, mas também junto aos outros grupos étnicos rionegrinos.
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públicas no alto Rio Negro
O agente de saúde é, por exemplo, um dos elos de uma corrente de relações familiares em cujo núcleo central está o capitão e/ou pastor, no caso de aldeias
evangélicas (às vezes os dois papéis são exercidos pela mesma figura); o capitão
articula uma rede de alianças entre parentes e opera como uma “máquina” de captação de recursos de subsistência e principalmente mercadorias industrializadas e
bens sociais como assistência à saúde ou oferta de escolas comunitárias. Sua maior
ou menor capacidade de obtê-los reflete-se no poder que pode exercer junto ao seu
grupo de influência. Quando o capitão tem vários filhos, ele procura distribuí-los
em diversos papéis sociais que possam reforçar seu prestígio e importância; assim,
encontramos capitães com filhos soldados, agente de saúde, professor etc. Em geral,
as duas últimas profissões costumam ser desempenhadas por filhos mais novos, que
estudaram um pouco mais, através do esforço conjugado do pai e irmãos mais
velhos, para custear os estudos fora da aldeia. Nesse contexto, o trabalho do agente
é concebido pela chefia de aldeia e pelo próprio agente, como um meio de sustentação
do poder político do pai e às vezes do tio ou do avô. Ser agente de saúde não é
trilhar um caminho de diferenciação individualizante e sim reforçar as relações
comunais de poder, já estabelecidas.
As jovens lideranças das organizações indígenas também são continuamente
pressionadas para obter bens e prestígio junto a FOIRN, onde os Baniwa têm sido
historicamente suplantados por outros grupos étnicos. Embora critiquem com certa
freqüência suas organizações de base, os capitães entrevistados orgulham-se dela e
de suas conquistas; as lideranças incorporaram esta necessidade e competem
ativamente para conseguir ampliar seu poder político e decisório na Federação.
No mundo Baniwa não se observa, como entre os grupos Tukano do
Uaupés colombiano,14 uma subversão das relações tradicionais de poder entre gerações; mesmo detendo um considerável grau de autonomia, a atuação das lideranças
de organizações de base ainda é regulada pelos típicos mecanismos sociais rio-negrinos
que visam inibir a diferenciação individual. O controle exercido pelas gerações mais
velhas se dá pelo uso de estratégias não apenas políticas, mas também através das
práticas sanitárias, acusações de feitiçaria e maledicências diversas que expressam
14
Embora não tenhamos efetuado uma pesquisa sistemática junto às organizações indígenas da área Tukano no Brasil, o
trabalho de capacitação das lideranças que realizamos junto a todas as organizações indígenas do alto rio Negro, permite
evidenciar que a situação entre os povos Tukano guarda similaridades (embora com menor intensidade) com o contexto
colombiano descrito por Jackson (1995).
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formas próprias de reprodução da ordem indígena. Atualmente tais mecanismos
são ampliados pelo uso da radiofonia, que permite aos capitães comunicar-se entre
si, às vezes espalhando boatos15 que forçam a liderança a explicar e justificar suas
ações e a restringir sua autonomia em reuniões, assembléias e conferências que ocorrem ao longo do ano nas aldeias.
Localismos e globalismos
Dentre o seu conjunto de atribuições, as lideranças indígenas costumam
ressignificar práticas sociais e políticas modernas como o ambientalismo16 e as disputas e padrões de comportamento de seus grupos de parentes. Suas organizações
operam simultaneamente como instituições da sociedade nacional, mas também
expressam relações de poder travadas entre os sibs e as contradições entre os grupos de parentesco. Os dirigentes devem gerenciar a coexistência de padrões ocidentais de organização política, fundados nos direitos de cidadania, no voto, no
igualitarismo entre os representantes, com o exercício do poder no âmbito do parentesco, cujas características são pautadas não só pela hierarquia que ordena a vida
de consangüíneos e afins, mas também pelas representações e percepções que os
capitães elaboram sobre os modos de operar do mundo não indígena e da atuação
das lideranças. O acúmulo de capital político dos capitães faz valer sua visão de
mundo para os mais jovens (BOURDIEU, 1989); aqueles que rompem, ou não
cumprem com suas expectativas, fundadas ou não, podem ter um novo acesso
negado à representação de seu grupo de origem, junto às organizações indígenas.
As lideranças Baniwa, como todas as outras, devem lidar com um duplo e
contraditório papel; tem de harmonizar em si próprias a diluição de sua identidade
Um fato ilustrativo deste controle ocorreu com uma das lideranças das organizações pesquisadas. A liderança obteve 14
dúzias de tábuas para construção de uma escola; a notícia circulou pela radiofonia e pôde observar-se uma verdadeira
romaria de capitães que se dirigiram à aldeia sede da organização para contar as tábuas, uma a uma, e verificar se haviam
realmente 14 dúzias de tábuas ou se eventualmente a liderança havia se apropriado individualmente de alguma delas.
16
Albert (1995) analisa o discurso de uma liderança indígena Yanomami demonstrando como ela vem se apropriando do
discurso ambientalista para fazer-se ouvir no mundo dos brancos, não como uma mera caixa de ressonância, mas através
da elaboração de simbolizações criativas, nas quais a liderança busca elementos de sua singularidade cultural, para
produzir uma prática discursiva que lhe permita configurar e ampliar alianças conjunturais e viabilizar seu projeto político
que, necessariamente, não coincide com o do movimento ambientalista internacional, apesar das semelhanças aparentes.
15
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em uma condição genérica de “índios em luta” que demandam direitos de cidadania, pautados no igualitarismo, mas também na afirmação da diferença étnica junto
à sociedade nacional e mundial. Tais concessões ao pan-indigenismo só são toleradas como estratégias de atuação direcionadas “para fora” da reserva; no âmbito
comunal, as rivalidades clânicas, as relações de poder fundadas no controle de gênero e de geração têm prioridade absoluta na cena social. Na realidade aqui estudada,
o controle das organizações indígenas pelo poder local é forte o suficiente para
enfrentar o interesse e prioridades de ONG’s de financiadores e destituir lideranças
apontadas como demasiado subservientes aos ditames dos brancos.
O tema remete à questão da autonomia possível aos povos indígenas no
bojo deste cenário. Neste âmbito, Smith (1987) interroga que constelação de interesses cerca uma organização indígena e que liberdade de ação ela tem diante dos
interesses de partidos políticos, donos de terras, igrejas, etc. Não pode falar-se em
completa autonomia do movimento indígena, subsumido como está, às determinações da sociedade global, que conjunturalmente lhe empresta apoio e visibilidade
em detrimento dos interesses de um desenvolvimentismo rudimentar da burguesia
regional.
Apesar de não estar isento da influência de instituições políticas do mundo
não indígena, as práticas do movimento indígena no alto rio Negro não apresentam,
atualmente, grau importante de cooptação político-partidária como as situações estudadas por Jackson (1995) e Smith (1987) em outros grupos ameríndios. A política
partidária exerce um considerável fascínio sobre muitas lideranças, observando-se
um certo número de candidaturas indígenas, a maioria das quais malsucedida nas
eleições. A militância partidária, porém, tem implicado um afastamento de tais
lideranças do movimento indígena e não na cooptação das mesmas; não dispomos
ainda de dados suficientes para explicar as variáveis implicadas na situação, mas
facilmente se constata que a FOIRN e a maioria das organizações de base vêm se
mantendo firmemente distanciadas de partidos políticos de qualquer viés ideológico.
As informações coletadas mostram que as razões da adesão a candidatos
são análogas àquelas descritas por Palmeira (1996) em seus estudos sobre processo
eleitoral, são critérios vinculados a lealdades e solidariedades a grupos de parentes,
44
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vizinhos e amigos. Nas palavras do autor, embora não haja uma completa correspondência entre a lealdade do voto e lealdades fundamentais ligadas à parentela,
“[...] a lealdade do voto é adquirida via compromisso: ela não implica, necessariamente,
ligações familiares ou vinculação a um partido; a lealdade política tem a ver com
compromisso pessoal, com favores devidos a uma determinada pessoa, em determinadas circunstâncias” (1996, p. 46).
Informantes Baniwa do rio Içana demonstram, por exemplo, uma forte
lealdade a um ex-prefeito que ocupou o cargo há alguns mandatos anteriores ao
atual, em função de antigas ligações com seu pai que foi regatão e “patrão de borracha” de boa parte dos homens mais velhos desse rio. Diversos capitães aprenderam
a língua e a lógica do mundo do branco, trabalhando para o velho comerciante em
um tipo de aprendizado que, mesmo precariamente, substituiu o trabalho dos internatos salesianos, inexistentes no alto e médio Içana. Desta forma, a imagem do exprefeito assume conotações emocionais pela rememoração do menino que cruzava
os rios da região em companhia do pai, nas intermitentes viagens pelos rios da
região.
Outro critério orientador do voto é um cálculo pragmático da quantidade e
tipo de bens distribuídos pelos candidatos. A análise das falas Baniwa mostra que
eles não têm sequer ilusões de melhorar sua vida através da ação político-partidária;
o “tempo da política” é período de promessas, de favores, festas, animação e de
potenciais presentes trazidos pelos candidatos, mas não um tempo de esperança de
mudança; os candidatos podem ter maior ou menor valor, não segundo suas propostas, já que, como disse um dos capitães: “eles só fazem falar tudo igual, mas
nenhum deles faz mesmo nada”, mas segundo a qualidade dos bens veiculados
durante a campanha.
Os pedidos de votos são incluídos em um circuito de trocas de favores que
“[...] supõem, de um lado, um pedido e, de outro, uma promessa, ou seja, diferentemente de outras formas de reciprocidade, supõem o empenho da palavra em
duas partes; portanto, promessas recíprocas: a promessa de retribuição e a promessa
de atendimento” (PALMEIRA, 1996, p. 47). Os candidatos são amplamente
reconhecidos como pessoas que não cumprem suas promessas (o cumprimento da
palavra é um valor essencial no código de honra Baniwa), por isso os capitães
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atualmente só valorizam o que poderíamos chamar de “pagamento à vista” da
promessa, isto é, presentes distribuídos antes da eleição. Os chamados “presentes”
podem ser gêneros baratos, como camisas e bonés, mas também itens mais
valorizados como geradores de energia, antenas parabólicas, telhas de alumínio e
motores de popa. As chefias de aldeia aprenderam a não confiar em promessas a
serem cumpridas depois do pleito, já que depois de eleitos os políticos costumam
esquecê-las. São inúmeros os relatos rancorosos sobre promessas não cumpridas,
dívidas acumuladas com pessoas e comunidades, desatenção, grosseria e humilhação
de capitães que demandam a resolução de problemas existentes nas aldeias, decorrentes
da falta de uma correta aplicação de políticas públicas, principalmente na área social.
A existência de demandas reprimidas nas áreas de saúde, auto-sustentação e
educação costumam gerar fortes pressões, feitas pelos capitães, sobre o movimento
indígena, para que encontre formas de atendê-las. Caso a organização tenha sucesso,
sua atuação resulta, afinal, na ampliação do poderio dos capitães. Se estes anteriormente tentavam responder a tais questões através de um “corpo a corpo” com as
autoridades, atualmente preferem encaminhar tais demandas para as suas organizações de base.
A análise de discurso de lideranças indígenas, feita por Orlandi (1990), mostra o domínio de diferentes formas e tipos de discurso (discurso científico, histórico,
crítico, de denúncia, etc.) que são acionados conforme a oportunidade (e necessidade), nas negociações com as agências de contato. Quando se faz necessário, as lideranças podem exibir, durante uma interlocução, uma postura ingênua e/ou alegar
desconhecimento das regras da língua portuguesa. Em tais situações elas costumam
invocar a condição de índio, manipulando sua identidade para melhor identificar e
selecionar aliados e adversários no âmbito da sociedade nacional. Garnelo (1997),
analisando a dinâmica do movimento indígena a partir da ótica da saúde, encontrou
uma situação análoga, demonstrando que, nos espaços de negociação com representantes das instituições da sociedade nacional, as lideranças manejam e ressignificam
sentidos e práticas sanitárias de forma a ampliar seu espaço e poder político junto à
população aldeada e citadina.
O trabalho do agente Indígena de Saúde pode ser caracterizado como um
dos vetores de aplicação de políticas públicas de saúde nas áreas indígenas; no geral
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ele se legitima por um tipo de desempenho, fundado na apropriação de um saber
técnico aprendido nos treinamentos ministrados pelas instituições de saúde, e no
controle da circulação de bens de saúde que são colocados a seu encargo. Ao serem
selecionados em suas aldeias, os agentes de Saúde passam a prover meios adicionais
de reforço ao prestígio da liderança comunal; tais meios se fundamentam tanto na
capacidade de reconhecer e tratar problemas de saúde, como na detenção de bens
simbólicos e materiais como os medicamentos, o combustível, e outros meios de
intervenção sanitária.
Os capitães esforçam-se para controlar os bens captados pelos agentes de
Saúde, forçando sua redistribuição na comunidade; tal atitude se choca com a lógica
técnica, que orienta a prescrição de medicamentos segundo os diagnósticos dos
doentes e não para atender às regras da reciprocidade obrigatória tradicional. Os
agentes de Saúde têm de lidar com dois tipos de exigências conflitantes: aquelas
feitas pelo seu treinamento, que proíbe a distribuição dos bens de saúde na forma de
presentes e aquelas das comunidades que exigem esta forma de circulação dos mesmos; se o agente de Saúde atende às exigências do Sistema de Saúde, perde prestígio
na comunidade; distribui-se prodigamente os insumos sob sua guarda, atendendo
aos ditames da ordem social indígena, pode ser responsabilizado pelo uso inadequado dos mesmos e os potenciais efeitos adversos daí decorrentes.
Diversas frações da sociedade globalizada têm feito uma identificação,
justificada ou não, dos povos indígenas com as premissas do ecodesenvolvimento, o
que tem lhes propiciado um maior apoio da opinião pública mundial e acesso a
financiamento das atividades de política indígena, além de possibilitar às lideranças a
travar contato com modelos de desenvolvimento distintos do tipo predatório que
vêm sendo praticado historicamente na Amazônia, auxiliando-os a pensar e a desejar o direito de estabelecer os seus próprios modelos de desenvolvimento em suas
sociedades. Segundo Smith (1987), tais iniciativas só se têm feito possíveis nas regiões
em que os grupos indígenas puderam gozar de relativa independência econômica e
de relativa autonomia cultural, apesar de séculos de processo colonizatório.
O entrelaçamento entre o indigenismo e o ambientalismo põe as organizações indígenas em um eixo de articulação entre universalismos e localismos, superando um momento anterior em que elas se referiam essencialmente aos Estados
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nacionais. A liderança indígena articulada em seu cotidiano imediato ao poder local,
que a constitui e legitima sua participação, é guindada ao papel de interlocutor de
uma comunidade discursiva mundial. A globalização materializa-se na vivência indígena, gerando saberes e vivências que modificam e redimensionam suas práticas
sociais e influem no modo de viver; suas lutas pelos direitos étnicos concretizam um
tipo de “educação mundializada” (ORTIZ, 1994).
Se por um lado o movimento indígena pode ser caracterizado como uma
forma de luta para obtenção de melhoria das condições de vida, por outro, a própria dinâmica de atuação/interação das lideranças estabelece importantes transformações em sua concepção de etnicidade; eles aprendem a partilhar símbolos da
modernidade, a transitar pelas linhas de força da globalização e a mobilizar valores
e padrões culturais produzidos fora das fronteiras da terra indígena. Tal movimentação “para fora” redimensiona o modo como essas lideranças lidam com as manifestações de sua cultura de origem. A consciência da “indianidade” adquirida no
mundo não indígena, torna as lideranças mais alertas e sensíveis para a necessidade
de preservar rituais, saberes, o meio ambiente onde vivem, etc., não apenas para
negociar com poderes externos ao mundo indígena, mas também por perceberem
que mudanças nas pautas tradicionais de comportamento se fazem necessárias, a fim
de dar conta dos novos desafios que se constituem no contato com a modernidade.
Tais práticas sociais remetem a uma identidade-processo, em permanente
ressignificação, rejeitando o fixismo de um modelo prescritivo, mas que, ao contrário, deve ser permanentemente reconstruído, segundo as necessidades e prioridades
geradas no contato intersocietário estabelecido não apenas com o mundo dos brancos, mas também com outros grupos indígenas. Em regiões como o alto rio Negro,
a etnicidade comporta elementos de um prolongado processo colonizatório, com a
incorporação de diversos saberes e ideologias alheios ao núcleo central dessas culturas. Embora a ordenação mítica se mantenha como discurso fundador e agregador
das formas de atribuir sentido à realidade, as representações sociais elaboradas pelos
indígenas evidenciam uma permeabilidade a elementos ressignificados da cultura do
colonizador que foram incorporados ao ethos Baniwa, permitindo releituras críticas
das normas culturais e a geração de estratégias cognitivas que favoreçam as interações
com a alteridade.
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Trata-se aqui menos de enunciar o que Oliveira Filho (1999) chama de
“Antropologia das perdas e ausências culturais”17 e mais de efetuar a análise da
expressão de tais formações culturais, enquanto elementos totalizadores de múltiplas influências18 que configuram atualmente o universo nativo. O “ser indígena”
configura uma identidade que, longe de ser contrastiva com a população regional
ou meramente inventada, configura um processo multifacetado de circulação de
significados que, sem negar o que é estrutural, assume um caráter historicamente
dinâmico em sua configuração cada vez mais perpassada pela realidade mundial.
Problematizando as relações dos grupos sociais supostamente exteriores
ao fluxo principal da cultura mundializada, Ortiz (1992) demonstra que nas interações
intersocietárias a idéia convencional de imposição de valores e comportamentos
de uma realidade à outra precisa ser relativizada no atual processo de globalização.
Para ele, o caráter e intensidade dessas inter-relações fazem com que hoje nenhum
grupo social possa situar-se efetivamente como uma exterioridade em relação à
cultura mundial; o que era externo, pertencente a um padrão mundial, torna-se
nativo, legitima-se ao ser inserido em práticas nativas de caráter amplamente
polifônico. Instituições e comportamentos ditos tradicionais convivem com formações socioculturais mundializadas que assumem, por sua vez, configurações
inesperadas ao serem reapropriadas pelos grupos subalternizados (ORTIZ, 1994).
Além disso, a adesão a padrões globalizados de comportamento, como o uso de
bens tecnológicos, ao invés de constituir-se apenas em fator de dependência e de
destruição da organização da sociedade, pode passar a formar parte das estratégias
de luta pela autonomia política e econômica de povos indígenas (TURNER, 1993).
O autor está se referindo a uma tradição de cer tas correntes da Antropologia latino-americana, cuja produção se
contentava em evidenciar/denunciar as perdas de descontinuidades culturais e territoriais, sofridas por cer tos povos
indígenas no processo de assimilação às sociedades nacionais; segundo Oliveira, tais estudos careciam de uma preocupação
maior com o entendimento de como tais sociedades efetivamente se organizavam e enfrentavam as relações de contato
interétnico.
18
No rio Negro é sutil a expressão de traços culturais identifiquem contrastivamente os indígenas diante dos regionais. As
pessoas comuns das aldeias não expressam sequer dúvidas sobre sua identidade indígena, mesmo que algumas vezes os
traços distintivos sejam vivenciados de forma depreciativa. Entre líderes indígenas é comum o uso de expressões como
“resgate cultural” e “revitalização da cultura”; as lideranças Baniwa questionam tal uso, alegando que não se pode resgatar
o que não foi perdido, pois consideram íntegras as bases de sua cultura. A própria vivência no movimento indígena é que
parece despertar uma maior necessidade de expressar sinais distintivos (como a construção de malocas, não para morar,
mas para sediar organizações) diante do mundo não indígena; neste mesmo tipo de estratégia podemos situar o trabalho
de revitalização do uso de plantas medicinais e de valorização das estratégias xamânicas de cura, que vêm sendo feito pelas
organizações indígenas naquela região.
17
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As práticas discursivas do movimento indígena se configuram simultaneamente como um produto e uma forma de ação social, não se devendo encará-las
apenas como um meio, um veículo de informação; elas evidenciam as conflitivas
interações de poder que permeiam esses grupos sociais e a posição que os emissores
desses discursos ocupam em suas respectivas sociedades e em relação à sociedade
nacional e mundial. Tais práticas não apenas representam, mas também transformam a realidade, caracterizando-se como um tipo de ação social, simultaneamente
material e simbólica, que se constitui e é constituída nas relações de poder vigentes na
sociedade e que entreabrem a possibilidade de construção de um novo sujeito coletivo
capaz de, pela politização da diferença, lidar com as situações de conflitos e subordinação interétnicos e de encaminhar processos reivindicatórios passíveis de influenciar as políticas de Estado referentes aos povos indígenas.
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Nome autor
Dimensão pedagógica da violência na
for mação do trabalhador amazonense
Marlene Ribeiro 1
Resumo
O artigo trata de uma experiência popular e movimentos sociais no
Amazonas, no período de 1979 a 1987, tendo por objetivos os agricultorespescadores e os operários metalúrgicos amazonenses. Focaliza a violência
– mecanismo inerente ao capital enquanto relação social – na sua dimensão
educativa de formação de sujeitos sociais. Registra mudanças na linguagem,
nos costumes e no saber, ou na cultura construída sobre o mundo da
produção rural cabocla, que cedem lugar a atitudes, linguagens e conteúdos,
ou a uma cultura própria da moderna produção industrial. A pedagogia
da violência dirigida contra os trabalhadores amazonenses faz-se pedagogia
da autoformação de uma classe trabalhadora que, aos poucos, reconhecese por sujeito da produção de bens e de história.
Palavras-chave
Trabalho e educação; violência cultural; cultura do trabalho.
1
Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ex-professora da Universidade Federal do
Amazonas (1980-1990).
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Dimensão pedagógica da
violência na formação...
Abstract
This article is about an experience concerned with popular education and social
movement in Amazonas, during the period of 1979 to 1987, and which involved
the amazonense fishermen-agricultural workers and metallurgists. It concentrates on
violence – an inherent mechanism of capital as social relation – in its educative
dimension of formation of social subjects. It registers changes in language, custums
and knowledge or in the culture produced and based on the wold of caboclo
agricultural production, that are transformed into new attitudes, languages and
meanings or into a culture of the modern industrial production. The pedagogy of
violence directed against the amazonense workers turns into the padagogy of the
self-formation of a working class which recognizes itself as subjects of production
of goods and history.
Keywords
Work and education; cultural violence; culture of work.
Introdução
A violência é hoje um tema incorporado ao nosso cotidiano pelas notícias
de crimes aparentemente incompreensíveis cometidos por jovens, de saques
motivados pela fome, de seqüestros, de exploração do trabalho e da sexualidade
infantil, que quase nos acostumamos com ela. Nesse sentido, acusações de violência,
desordem e ilegalidade, dirigidas às lutas dos trabalhadores sem-terra, de um lado, e
a massificação das análises que “naturalizam” as desigualdades ao afirmar que na
sociedade não há lugar para todos, de outro, estimulam-me a retomar este texto,
parte da minha dissertação de mestrado escrita em 1987. 2 Sua atualidade e importância
mostram-se pela necessidade de desocultar a violência que se acentua na produção
2
Ver RIBEIRO, 1987, nas referências bibliográficas.
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Mar lene Ribeiro
de um a “nova pobreza” decorrente do desemprego,3 violência esta cujo tratamento,
muitas vezes restrito ao âmbito jurídico, 4 oculta suas múltiplas faces. É preciso,
penso, compreender a violência na sua raiz, enquanto produção da relação
contraditória capital x trabalho, produção esta que assume uma dimensão pedagógica
de formação do trabalhador para o capital e, ao mesmo tempo, contra o capital.
Aqui se insere a minha contribuição neste estudo em que faço um recorte do processo
do trabalhador amazonense.
Reflito sobre uma experiência de 8 anos com educação popular e
movimentos sociais no Amazonas, no período de 1979 a 1987, tendo por sujeitos
os agricultores-pescadores e os operários-metalúrgicos amazonenses. Focalizo a
violência – mecanismo inerente ao capital enquanto relação social – na sua dimensão
educativa de formação de sujeitos sociais – os trabalhadores – que buscam uma
emancipação concreta. Entendo que as formas através das quais a classe trabalhadora
se organiza e luta conferem conteúdo a esta realidade social. Estas formas, porém,
são contraditórias, uma vez que as mesmas se contradizem no interior de relações
onde se confrontam interesses antagônicos. De um lado, o capital organiza os
trabalhadores para produzirem forças para impor. Ao controle interno da fábrica,
alia-se o controle externo do exército industrial de reserva “liberado” da terra, dos
instrumentos de trabalho e do salariato (CASTEL, 1998). De outro lado, a exploração
mesma que atinge as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, responsáveis
por um produto que é social, impõe a necessidade de organização, cujas estratégias
de luta são caracterizadas por manifestações de violência, de desrespeito à lei e à
ordem. A democracia representativa, sustentada pelo poder econômico e pelo poder
ideológico dos meios de comunicação de massa, mascara a extrema violência com
que se estabelece a relação capital x trabalho. Esta violência é agravada pelo fato de
que o capital arranca novas máquinas-ferramentas eliminadoras de postos de trabalho,
jogar aquela força de trabalho “liberada” à sua própria sorte. Ampliar o conhecimento
sobre esse processo de constituição do trabalhador contribui para entender a violência
sistemática imposta às classes trabalhadoras.
Exclusão ou eliminação do excedente de força de trabalho na 3.ª Revolução Industrial – qual o destino dos trabalhadores
em um mundo governado pelo capitalismo neoliberal? Esta é a questão que se coloca FORRESTER, Viviane. O horror
econômico. São Paulo: Unesp, 1997.
4
Ver CHAUÍ, Marilena. Uma ideologia perversa. Folha de São Paulo, Caderno Mais! Domingo, 14/3/1999, v. 5, p. 3.
3
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Dimensão pedagógica da
violência na formação...
Acumulação primitiva – chave teórica para análise da
for mação do trabalhador
A história dos trabalhadores europeus e brasileiros aponta para um
movimento comum de expulsão de terra, perda dos instrumentos de trabalho e
transformação do camponês em operário, muito embora este movimento possa
assumir coloridos diversos de acordo com as condições históricas em que se efetua.
Como interpretar este movimento, que é comum, sem perder de vista a sua
especificidade no Brasil, especialmente no Amazonas? Começo pela sua origem
concebida por Marx como acumulação primitiva, ou seja, uma acumulação que não decorre
do mundo capitalista de produção, mas é seu ponto de partida (MARX, 1982, p. 828). A
acumulação primitiva, portanto, é onde se estabelecem as condições iniciais para a
obtenção da mais-valia. Os meios de produção e sobrevivência em si não possuem
valor de troca, não são ainda capital. Para isso, é preciso que sofram transformações
que estabeleçam as relações básicas contraditórias entre forças produtivas e relações
de produção, que, por sua vez, estarão fundadas na unidade dialética produção
social/apropriação privada, ou seja, trabalho/capital.
A teoria clássica construída por Marx explica o processo que produz o
assalariado e o capitalista, que tem suas raízes na sujeira do trabalhador (MARX,
1982, p. 831). Nessa teoria, expropriação e proletarização são momentos de um
único processo, a chamada acumulação primitiva que teve sua gênese na Europa,
quando a nobreza aliada à burguesia promoveu o cercamento das terras comuns e
da Igreja Católica, expulsando camponeses e servos (MARX, 1982, p. 850).5 Não
tendo sido criados postos de trabalho para toda essa força de trabalho liberada, a
legislação sanguinária contra os expropriados, através das prisões, das torturas, dos
enforcamentos e da compreensão dos salários iria discipliná-la adequadamente para
as relações de trabalho instauradas com o advento das indústrias (MARX, 1982, p.
854). Como transpor essa experiência dos trabalhadores europeus para interpretar o
processo de expropriação/proletarização dos trabalhadores amazonenses, tendo o
cuidado de não aplicar a teoria como se fosse uma camisa-de-força à realidade
pesquisada?
5
Ver ainda KAUTSKY, Karl. A questão agrária. Por to: Por tucalense. v. I e II, 1972. FLORENZANO, Modesto. As revoluções
burguesas. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981.
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Mar lene Ribeiro
Na contradição básica capital/trabalho encontra-se a resposta para esta
realidade também contraditória, uma vez que a expansão do capital se efetiva através
de dois movimentos excludentes: a atração e a repulsão dos trabalhadores em
conseqüência da luta de classes. O capital expulsa o camponês da terra e o atrai para
a fábrica, porque só a força de trabalho cria valor, portanto, só a apropriação do
produto gera capital. Mas, na fábrica nem todos são aceitos, e mesmo os que ficam,
rebelam-se, pondo em risco os lucros e a própria relação. Nesta luta situam-se os
novos inventos que revolucionam os processos técnicos de produção, aumentando
a força produtiva do trabalho e reduzindo o tempo de trabalho necessário para reproduzir
o mesmo valor (MARX, 1982, p. 359 e s). Para manter as taxas médias de lucro
ameaçadas constantemente pelas reivindicações de aumentos de salários e de benefícios
sociais, o capital repele, ou desemprega, o mesmo trabalhador que atrai para si. É no
interior desse movimento de atração/repulsão que acrescento um terceiro elemento
à teoria clássica, como negação da negação, a organização dos trabalhadores que,
lutando contra a relação que os vincula ao capital, constroem-se como classe.
Tem sido muito criticada a concepção marxista-leninista de classes sociais
fundamentais.6 A leitura que faço do movimento contraditório de constituição do
trabalhador para o capital e como classe está baseada em Marx e Engels, para quem
a burguesia é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série
de revoluções no modo de produção e de troca (s/d, p. 6), da mesma forma que o
proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento (s/d, p. 6). Ainda nessa
obra, os autores complementam: A princípio, empenham-se na luta operários isolados,
mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente operários do mesmo ramo
de indústria, de uma mesma localidade, contra o burguês que os explora diretamente
(MANIFESTO, p. 14).7
Estudioso do processo de formação da classe trabalhadora inglesa,
Thompson faz uma crítica à direção que tomou o conceito classe operária a partir da
implantação do comunismo na Rússia, afirmando que é freqüente que a teoria preceda a
6
7
Ver, entre outros, LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. Publicações Escorpião, 1974.
Além do Manifesto do Partido Comunista, há outras obras de Marx em que aparece a questão das classes sociais, como
MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luiz Bonaparte, As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: Obras Escolhidas.
São Paulo: Alfa-Omega, [s/d.], p. 93-285.
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Dimensão pedagógica da
violência na formação...
evidência histórica que se tem como objetivo teorizar. Este autor, retomando Marx e Engels,
destaca que a luta de classes é inseparável da classe e que esta não fica pronta pela sua
mera introdução nos processos de trabalho industriais; a classe define a si mesma no seu
efetivo acontecer, envolvendo homens e mulheres que modelam suas experiências de
luta em formas culturais (THOMPSON, 1979, p. 34).
Deste ângulo focalizo a classe que, não nascendo pronta, passa, como ocorreu
com a burguesia, por um longo processo de aprendizado que é essencialmente de
luta, que é essencialmente violento em todas as estratégias nas quais, conforme ressaltam
Marx e Engels, procura quebrar a relação. Entendo, ainda, que este movimento
gerado pela luta de classes tem um caráter pedagógico para ambas as classes. Como
então fazer deste processo de modo a perceber a expropriação/proletarização/
organização como instrumentos educativos para o capital e para a formação da
classe operária?
Inicio pela caracterização do agricultor naquilo que o diferencia
fundamentalmente do operário para captar o sentido de suas lutas. Despojado da
terra e dos instrumentos de produção, o operário transforma-se em trabalhador
coletivo no interior das fábricas, identificando-se com os companheiros nas condições
de trabalho e nos salários que lhe são impostos. Porém o agricultor, ainda não
transformado em operário, trabalha a terra utilizando seus próprios instrumentos,
mantendo uma relação direta com o que produz enquanto matéria-prima. Suas
relações com o capital se concentram no mercado, onde comparece sozinho ou, no
máximo, com sua família, para levar seus produtos. Estes serão transformados em
mercadorias mediadas pela mercadoria universal, o dinheiro, que lhes imporá um
preço ou valor de troca, sem considerar o trabalho socialmente incorporado naqueles
produtos, mas a “avaliação” do mercado determinada pelas leis do mercado.
Operário e agricultor participam do mercado capitalista com mercadorias
diferentes. O primeiro só dispõe de sua força de trabalho para vender. O segundo
apresenta-se no mercado com seus produtos transformados em mercadorias.
Portanto, as condições materiais de exploração a que estão sujeitos é que irão
determinar a consciência destes trabalhadores, por isso mesmo diferem as formas
de ver a realidade que se constroem nas lutas operárias e camponesas, ambas de
naturezas diversas. Martins (1982, p. 19) considera que o agricultor, mesmo envolvido
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Mar lene Ribeiro
na exploração do capital, não se percebe por trabalhador coletivo, mas por
trabalhador autônomo. A exploração atinge apenas os seus produtos transformados
em mercadorias sujeitas ao mercado, cujas leis são impostas de fora e de cima. A
impossibilidade de intervir nas leis que regulam o mercado não lhe permite também
captar a radicalidade da exploração contida na contradição básica produção social/
apropriação privada. Mesmo aí onde é explorado, não consegue apreender o seu
produto como social, ainda que sejam muitos os agricultores que comparecem ao
mercado nas mesmas condições.
Ainda, segundo Marins (p. 15-19), o agricultor só tem possibilidade de
constituir-se como classe no momento em que, expropriado da terra e dos
instrumentos de trabalho, torna-se um trabalhador livre naquele sentido que é conferido
por Marx, isto é, livre de sua terra e de seus instrumentos de produção e possuidor
apenas de sua força de trabalho com a qual será obrigado a sujeitar-se ao regime de
assalariamento. O autor está fundamentado em Marx, quando este diz que a
transformação dos meios de produção em propriedade privada, “a expropriação
da grande massa da população, despojada de suas terras, de seus meios de subsistência
e de seus instrumentos de trabalho, essa terrível e difícil expropriação constitui a préhistória do capital” (MARX, p. 880).
Todavia, Martins (1983) critica a postura ortodoxa que considera as lutas
camponesas como um atraso na construção do socialismo enquanto dificultam a
transformação do camponês em operário. Afirma que: “em tese e de modo muito
geral este ponto de vista é correto. Ao mesmo tempo, reconhece que seria, entretanto,
pura imbecilidade tentar convencer o camponês, que está sendo despejado, cuja casa
está sendo queimada pelo jagunço e pela polícia, de que aceitar tal fato como uma
contingência histórica” (MARTINS, p. 13).
Martins (1983) também destaca as peculiaridades das lutas dos posseiros e
dos sem-terra, nas quais é questionada a legalidade da propriedade, pondo em confronto
o que é legítimo e o que é legal (MARTINS, p. 95). O móvel destas lutas não é a exploração,
muito embora ela esteja presente, mas é a necessidade da terra para trabalhar e viver.
Ainda, segundo o autor, as lutas pela terra são profundamente radicais; diferem da
história clássica em que as lutas eram episódicas, por manifestarem uma vitalidade e
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Dimensão pedagógica da
violência na formação...
organização que ultrapassa o momento de conquista da terra. É nesta luta que
posseiros e sem-terra se descobrem vítimas de um sistema arbitrário e injusto.
Em obra posterior, Martins (1986) identifica, nas lutas camponesas, a
emergência de novas concepções de terra como um bem comum, de direito e justiça
fundamentados no trabalho e não na propriedade privada, que evidenciam o rompimento do
novo no interior da velha estrutura da sociedade de classes.
Parto de questões levantadas por Martins, principalmente nessas duas últimas
obras, para definir a compreensão teórica da realidade da expropriação/proletarização
dos trabalhadores amazonenses, onde é possível observar a violência como método
pedagógico de formação do trabalhador para o capital e como classe.
Contextualizando as lutas dos agricultores-pescadores amazonenses na
dinâmica da sociedade brasileira, percebo um caráter de classe que atinge o cerne do
capital, enquanto as lutas procuram destruir a propriedade privada e propor uma
nova forma de uso e, conseqüentemente, uma nova concepção de terra. A
despolitização do econômico pelo emprego de categorias estáticas, desencarnadas
dos processos históricos nos quais se engendram, tem dificultado a compreensão
do movimento camponês que escapa às interpretações teóricas tradicionais. Captar
a dimensão educativa desse processo, que expropria o trabalhador de sua terra e de
seus instrumentos de trabalho, que o transformam em operário e, que, ao mesmo
tempo, obriga-o a organizar-se para destruir essa relação, põe a seguinte questão:
Como perceber, na violência com que o capital investe para expropriar/
proletarizar camponeses e operários e na violência com que estes trabalhadores se
organizam para romper a relação, a dimensão pedagógica de formação do
trabalhador para o capital e do trabalhador como classe, sem perder de vista a
contraditoriedade de tal relação e sem dissociar o móvel econômico, como
determinante da luta de classes, do político, como referencial ideológico, cultural e
de valores que o informa?
Vejo a luta pela posse da terra como uma luta específica dos trabalhadores
brasileiros que vivem um determinado processo histórico diferente do que ocorreu
na Europa, em que os trabalhadores eram autônomos, portanto, não se constituíam
em relação com o capital. O trabalhador rural amazonense já está amarrado às
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relações sociais de produção capitalista através do mercado. Procuro visualizar seu
movimento por classe em formação; por classe que se faz na luta pela posse da terra
e dos instrumentos de produção; pela comercialização de seus produtos e pela
implantação de uma infra-estrutura que lhe ofereça condições de sobrevivência na
terra, sob forma de hospitais, escolas, remédios, transportes, financiamentos, insumos,
política de preços, etc. Nessas lutas alguns líderes são cooptados. Outros conseguem
seus objetivos e abandonam a luta. Há aqueles que precisam fugir pelas ameaças
constantes de mortes. Muitos morrem nos enfrentamentos e de doenças causadas
pela miséria. Permanece o movimento fortalecido por levas de migrantes e de
trabalhadores expulsos por fazendeiros, grileiros, dívidas com bancos... Aos poucos
vão se encontrando ao longo do caminho, no cotidiano da luta pela terra e pela
sobrevivência.
Há uma dualidade no trabalhador rural que se manifesta na sua radicalidade
quanto à luta pela terra e no seu conservadorismo quanto às relações de trabalho e
quanto à aceitação das inovações tecnológicas.8 A observação pura e simples dessas
condutas poderia levar a uma leitura deturpada de suas lutas, muito especialmente se
privilegiarmos uma das faces de seu comportamento. É preciso ir à raiz desses
comportamentos, às relações de expropriação/proletarização que geram a perda
dos meios de produção, o assalariamento e a organização dos trabalhadores. Essas
relações se fundam na contradição capital/trabalho, contradição esta que se reflete
nas práticas sociais. O agricultor quer participar das instituições organizadas pelo
capital, quer obter lucros, ser patrão. Porém, na luta que empreende para manter-se
na terra e para vender seus produtos no mercado, percebe a existência de outros
companheiros na mesma situação de exploração. Percebe também que o capital
concentra a propriedade da terra e a riqueza produzida socialmente e não lhe permite
espaço para a ampliação de seus ganhos, antes restringe e até destrói as oportunidades
de reproduzir-se como agricultor. Esse é o processo histórico de longa duração,
prenhe de contradições. A forma esquemática com que foi exposto tem por objetivo
orientar a análise da realidade pesquisada, atentando, portanto, para o caráter dialético
e histórico dos conceitos.
8
Lenin e Kautsky, ao analisarem a formação de um mercado na Rússia, o primeiro, e a questão agrária, o segundo, já
apontavam essa dualidade do camponês. LENIN, Vladimir I. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. 1982. São Paulo:
Abril. KAUTSKY, 1972.
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O processo de expropriação/proletarização/organização assume uma
dimensão pedagógica ao instituir a relação trabalho x capital. Para o capital, enquanto
“educa” a força de trabalho para produzir mais, em menor tempo, gerando índices
de lucro. Para a classe trabalhadora, enquanto esta se organiza e luta para destruir as
relações de expropriação/proletarização, obrigando o capital a redimensionar-se
para manter-se e, ao mesmo tempo, construindo-se classe para si 9 nesse processo.
O movimento gerado pela luta de classe entre trabalho e capital parece-me a
situação privilegiada para captar a violência que marca o educativo do capital e da
classe trabalhadora. Parto do pressuposto de que as relações engendradas pelo capital
são sempre contraditórias. Neste caso, o agricultor-pescador amazonense é autônomo
enquanto detém a posse da terra e dos instrumentos de trabalho, não é autônomo
enquanto já está preso à relação com o mercado. Sua produção é determinada por
este e valorizada pela troca e não pelo trabalho socialmente contido ou pelo valor de
uso. A ausência do título de propriedade não lhe garante a permanência na terra limitando
a sua autonomia. No entanto, por possuir a terra e os instrumentos de trabalho, o
trabalhador ainda não está preso à relação, podendo, de certa forma, subverter a
lógica do capital. Faz isso, organizando a sua jornada de trabalho e a sua produção de
acordo com as necessidades familiares, sem preocupar-se em produzir um excedente,
até porque a herança indígena fortalece o hábito da não acumulação. Além disso, com
sua posse está negando a propriedade privada, fundamento do capital.
É a luta pela posse da terra e contra as condições que o esmagam e o empurram
para a sujeição nas fábricas, que põe o agricultor frente a frente com o capital enquanto
relação, forjando nele a consciência de que isolado será submetido e até assassinado,
como já vem acontecendo. Esta luta para desvencilhar-se da relação vai subvertendo a
concepção de propriedade privada pela sua negação – a posse – e engendrando novas
relações que apontam para novas formas de organização da sociedade. “Percebo a
posse coletiva como terceiro momento (negação da negação) da luta de classes em
que se dá a superação da propriedade privada que é, por sua vez, a negação da
propriedade individual autônoma” (RIBEIRO, 1987, p. 73). As lutas dos trabalhadores
sem-terra parecem caminhar em direção a esse horizonte.
9
Ver MARX, Karl. Miseria de la filosofia. Moscú: Editorial Progresso, 1981. p. 141.
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No Amazonas, condições geográficas acrescentam um dado importante para
o entendimento do processo de expropriação/proletarização/organização. A
Amazônia é uma imensa planície; as águas são presença viva e constante na vida dos
caboclos; são suas estradas e fontes de alimentos. A exuberância da floresta não
demonstra a pobreza do solo. Em vista disso, a sobrevivência do caboclo interiorano
é garantida pela agricultura e complementada pela pesca.10 Na falta de carne bovina,
porque o solo, o relevo e o clima não se prestam à pastagem, salvo em algumas
regiões, e na falta de caça devido à depredação do meio ambiente, é o peixe que
ainda garante o suprimento de proteína à alimentação do agricultor amazonense.
Expropriação no Amazonas, portanto, refere-se não só a expulsão da terra, mas
também dos rios, lagos, paranás e igarapés de onde o caboclo retira, através da
pesca, o alimento necessário ao seu sustento e da sua família. Os rios estão sendo
invadidos por barcos pesqueiros e as entradas dos lagos fechadas por seringalistas e
fazendeiros, proprietários das terras que o margeiam, impedindo os agricultorespescadores de pescar.
Supostamente despovoada, a Amazônia é objeto de projetos de ocupação
e colonização justificados para a opinião pública como uma estratégia de integrar a
região ao país, e de oferecer terra e trabalho para agricultores que perderam a terra
(MARTINS, 1982; IANNI, 1979, 1981). A política oficial, entretanto, é desmascarada
pelo fracasso dos projetos oficiais de colonização que têm um triplo objetivo: deslocar
os conflitos das áreas mais tensas, desmobilizando os trabalhadores; ocupar áreas
indígenas e posses de caboclos para a exploração mineral e garantir mão-de-obra
barata para os projetos industriais e agropecuários.
Hoje, a expansão do capital, expulsando índios, posseiros, pequenos e médios
proprietários, retirando-lhes as possibilidades de sobreviverem da agricultura, da
caça e da pesca, efetua-se com o acirramento cada vez maior da contradição capital/
trabalho, uma vez que não reproduz mercado de trabalho nas fazendas e indústrias
para absorver pelo menos uma parte dessa força de trabalho “liberada” (MARTINS,
1982). Desta forma, o contínuo caminhar do agricultor expulso, em busca de
sobrevivência nas grandes cidades, sem emprego, sem lugar fixo para morar e criar
os filhos, enfrentando em toda a parte um inimigo comum que não lhe dá tréguas,
10
EMBRAPA. O significado socioeconômico da pesca. 1.º Plano Indicativo de Pesquisa Agropecuária para o Estado do
Amazonas – 1980-1985. Manaus/AM, 1978.
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violência na formação...
é que lhe incute a compreensão de que não há saída. Com outros companheiros
ocupa terras e as defende até a morte. É nesta luta pela posse da terra, que já vem
ocorrendo em várias partes do país, que o trabalhador rural vai, aos poucos,
construindo-se como classe e rompendo com a estrutura da propriedade privada.
Nisto reside a diferença qualitativa das lutas dos trabalhadores rurais brasileiros, o
que nos permite apreender a expropriação/proletarização/organização como um
processo elementar de formação de força de trabalho para o capital e, ao mesmo
tempo, do trabalhador como classe em luta contra o capital.
A compreensão das lutas dos operários brasileiros, por sua vez, deve ser
inserida na compreensão mais ampla das lutas internacionais. É o contexto de classes
que se pode compreender o avanço científico-tecnológico aplicado aos processos
produtivos. A pressão dos trabalhadores organizados nos países centrais eleva os
salários e os encargos sociais, alterando a composição orgânica do capital. Para
manter as taxas médias de lucro o capital move-se em duas direções: a) emprega
tecnologias sofisticadas que ampliam os níveis de apropriação pela concentração de
postos de trabalho e pela dispensa de trabalhadores; b) desloca-se para regiões onde
exista uma força de trabalho liberada, barata e abundante, com regimes autoritários
que exerçam controle sobre as organizações operárias, que sejam condescendentes
ao não-cumprimento das leis trabalhistas, 11 que ofereçam incentivos fiscais e que
permitam o livre fluxo de capitais para o exterior. 12
A divisão internacional do trabalho determina, com a criação da Zona Franca
de Manaus, que, no Amazonas, seja implantado um modelo industrial artificial, porque
não vinculado à produção primária, dependente de tecnologia e componentes
importados. A abundância de terras determinará que a estratégia de proletarização,
tal como no processo original, esteja articulada à expropriação da terra com a finalidade
de “liberar” os trabalhadores para sujeitar-se ao trabalho nas indústrias. AntecedendoA flexibilização e a precarização do trabalho, no Brasil, diferentemente dos países centrais em que políticas sociais do
Estado de Bem-estar Social entram em crise no início dos anos 70, constituem-se a regra de uma seguridade social nos
moldes em que foi conquistada na Europa.
12
Este é o entendimento acerca dos objetivos de criação das Zonas de Livre Porto (ZLP), direcionados para os interesses
do capital internacional, que aparecem em documentos da United Nations Industrial Developement Organization (UNIDO),
nos autores consultados. Sobre a Zona Franca de Manaus, ver ANCIÃES, Adolpho Wanderley da F. et al. Avaliação da Zona
Franca de Manaus . Brasília: CNPq/CAT/NAEA, 1980. Fotocopiado; ARAÚJO, Nice Ypiranga Benevides. O milagre dos
manauaras: Zona Franca de Manaus. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1985. Dissertação. Fotocopiado. Ver também
publicações em Ribeiro (1987, p. 245-6, nota).
11
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as, o comércio de importados inicia o trabalho de “atração” das populações
interioranas para a capital, Manaus, em busca de melhores condições de vida, de
escolas e empregos para os filhos [...]. Além das agências estatais que mascaram a
tomada “pacífica” da terra, é criado do Distrito Agropecuário com incentivos à
implantação de agroindústrias no município de Manaus.
O Distrito Industrial sujeita os trabalhadores liberados do campo. Aí onde
o capital pretende obter índices de mais-valia que compensem a diminuição das
taxas nas matrizes, irá pagar salários que nem preenchem as funções de subsistência,
deixando de cumprir acordos de proteção ao trabalho e de assistência social. Para
obter a sujeição dos trabalhadores a tais condições, as empresas precisam selecionar
e educar o operário caboclo para que este produza segundo os fins determinados
pelo capital. Faz isso. Não são propriamente os agricultores expulsos de suas terras
os recrutados para trabalhar nas fábricas, mas seus filhos. Os operários estão na
idade de 14 a 25 anos. Aí eles se submetem a uma série de normas para a produção
que os reduzem a complementos de máquinas já obsoletas em países desenvolvidos,
mas aqui no Brasil ainda respondem aos objetivos do capital, ou seja, prolongar o
período de extração da mais-valia em função do capital investido na construção das
máquinas.
Os números escritos no quadro para serem alcançados ao final de um dia
de trabalho, irão determinar todo o comportamento dos operários, suas horas de
trabalho, refeição e lazer, a posição de seus corpos diante das máquinas e até o
número de filhos que devem ter. 13 Produzir mais em menos tempo é uma norma que o
operário deverá incorporar à sua alimentação, ao seu trabalho, à sua reprodução, ao
seu lazer, à sua saúde, à sua instrução, à sua cultura, de modo a tornar-se um traço de
sua personalidade. De maneira visível para o capital e invisível para o trabalhador, a
constituição de uma subjetividade produtiva passa pela norma de produção
entranhada nos corpos para fazê-los dóceis, confirmando estudos sobre a disciplina
(ENGUITA, 1989), ou a constituição de um bio-poder (FOUCAULT, 1980 e 1984).
Expropriação/proletarização/organização, portanto, são categorias históricas que
13
A introdução de novas tecnologias nos processos produtivos, como a robotização e a computação, convive ainda com a
esteira taylorista no Distrito Industrial de Manaus.
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permitem captar no movimento global da sociedade como se faz o trabalhador
amazonense para e contra o capital. Nesse processo há uma dimensão pedagógica
em que o capital procura impor suas “leis naturais” aos trabalhadores para formar o
operário produtivo. O reverso desta posição mostra o educativo para o trabalhador,
que se constrói como classe em uma práxis contraditória na qual, ao mesmo tempo
em que produz para o lucro, luta contra o capital, subvertendo a sua racionalidade
e tentando destruí-lo.
O capital usa estratégias para expropriar o agricultor/pescador amazonense
desde quando se estabelece como relação, determinando de fora a produção do
caboclo; ou quando não lhe dá condições para produzir e comercializar seus produtos;
ou na figura do Estado quando gera a dependência dos insumos, da assistência
técnica e do crédito, ou quando toma a terra do caboclo usando a violência física, o
aparato policial, desrespeitando preceitos constitucionais ou, ainda, nos projetos de
colonização em que coloca em confronto com o caboclo para que este se “eduque”
na composição com outro trabalhador já expropriado (RIBEIRO, 1998).
São os filhos e filhas dos agricultores-pescadores que se tornam metalúrgicos
nas multinacionais instaladas em Manaus. Para produzir segundo as exigências do
capital internacional, os operários amazonenses serão submetidos à rigorosa disciplina.
Costumes tradicionais provenientes da produção de tipo caboclo cedem lugar a um
ethos direcionado para a produção lucrativa, imposto pelo arroubo salarial, pela
extensão do exército de reserva e pelas péssimas condições de trabalho nas empresas
e de vida nos bairros operários.
Agricultores e operários não são robôs. Organizam-se na luta pela posse da
terra e de uma política adequada aos seus interesses, por benefícios sociais já
conquistados pelos trabalhadores do Sul, pela autonomia de suas organizações, ou
seja, contra as contradições a que são submetidos e que representam o próprio
capital. Neste aproximar-se da classe em construção é possível perceber que a violência
da expropriação/proletarização caracteriza a pedagogia do lucro, substituindo
métodos primitivos de produção, como os que utilizados para produzir a alimentação
básica do caboclo, o peixe e a farinha, por métodos altamente sofisticados, como o
uso da esteira, do computador e do microscópio.
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Nesse processo, a linguagem, os costumes, as crenças, o saber construído
sobre o mundo da produção rural determinada pelas condições de exploração do
capitalismo mercantil, vão cedendo lugar a comportamentos, atitudes, linguagens e
conteúdos peculiares ao mundo da moderna produção industrial, que substitui a
lentidão e a incerteza dos fenômenos naturais, próprios do trabalho agrícola, pela
precisão do cronômetro embasado no conhecimento científico-tecnológico. Mas,
na contramão desse movimento, a pedagogia da violência dirigida contra os
trabalhadores, moldados em mercadorias do processo produtivo capitalista,
transmuda-se em violência de autoformação do operário em direção a uma classe
que aos poucos passa a reconhecer-se como sujeito de produção de bens e de
história.
A dimensão pedagógica da violência na relação capital x trabalho
Despovoadas na concepção daqueles que vêem o desenvolvimento através
das fábricas, das agroindústrias, das estradas, do trabalho mecanizado e, sobretudo,
das cercas de propriedade privada, as terras do Amazonas são, ao mesmo tempo,
obstáculos à sujeição do trabalho, como também apresentam um grande potencial
econômico representado por seus recursos naturais. Por isso, a expansão do
capitalismo exige o cumprimento de leis de trabalho. A propriedade e/ou posse
familiar são obstáculos à transformação de uma economia baseada na subordinação
mercantil, para a subsunção real do capital, fundamento da economia planejada
(MARX, 1985). A subordinação real efetuar-se-á pelo aproveitamento da força de
trabalho potencial expulsa da terra para ser transformada no operariado do Distrito
Industrial de Manaus.
A passagem do velho individualismo econômico, caracterizado pela
subordinação mercantil, para uma economia programada, que emprega tecnologias
sofisticadas, ocorre sob a extrema violência das classes para manter/destruir a relação
que as vincula. Essa luta tem um caráter educativo para as classes enquanto estas
refazem suas estratégias de confronto em função das perdas e conquistas que vão
obtendo ao longo do processo. Decorrente desta racionalização da economia, a
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expropriação/proletarização no Amazonas se apresenta como uma situação
privilegiada para captar a dimensão pedagógica do processo que transforma
trabalhadores muito próximos dos povos chamados “primitivos”, pela cultura
indígena da qual são herdeiros diretos, em operários montadores de sofisticados
aparelhos eletroeletrônicos.
Modificações que ocorrem na organização do trabalho vão se refletir nas
concepções, costumes e crenças dos trabalhadores. Para o agricultor-pescador a
concepção de vida confunde-se com sobrevivência e trabalho porque este tem por
objetivo único a manutenção da vida. O trabalho do agricultor-pescador, determinado
tanto pelas condições materiais em que produz peixe e farinha com métodos artesanais
quanto pela apropriação de seus produtos por regatões, 14 está sendo substituído pela
agricultura intensiva, exploração racional da madeira e do minério. A mudança que
se processa na produção material de bens de sobrevivência para bens de consumo é
caracterizada pela introdução de novas culturas, instrumentos e métodos de cultivo.
Silvicultura, guaraná, cacau, dendê, cítricos e pesca, que se utilizam de pesquisas,
insumos, instrumentos aperfeiçoados, financiamentos, redes e frigoríficos substituem
o peixe e a farinha que historicamente se constituíam como alimento básico dos
caboclos amazonenses, derivados da pesca e do plantio da mandioca.
As diferenças nas concepções de vida e de trabalho, definidas em função
das alterações que se processam na estrutura produtiva baseada no trabalho familiar,
que muda para trabalho assalariado, podem ser visualizadas com maior nitidez nos
projetos de colonização, onde entram em conflito o caboclo, subordinado ao capital
mercantil, com relativa autonomia sobre a sua produção, e o colono, já expropriado
e submetido formalmente ao capital financeiro sob controle do Estado. 15 Para o
colono, que perdeu a terra no Paraná, sua região de origem, que precisa pagar o
empréstimo bancário e a sua parcela de terra, não interessa mais produzir a vida, mas
produzir o lucro, o excedente. Para o caboclo, o colono é ganancioso porque trabalha
para enricar. Separados pela cerca da propriedade privada, vão aos poucos
descobrindo que são iguais nas condições de exploração a que estão submetidos. 16
Regatões são comerciantes que percorrem o interior em barcos, trocando produtos in natura por produtos industrializados,
estes sobrevalorizados em relação àqueles. Ver TEIXEIRA, Carlos Corrêa. O aviamento e o barracão na sociedade do seringal:
estudos sobre a produção da borracha na Amazônia. São Paulo: USP. Dissertação, 1980.
15
Sobre o confronto entre a produção e a cultura do agricultor caboclo e do agricultor colono, ver RIBEIRO, 1998.
16
Em Novo Aripuanã, no Projeto Esperança, caboclos foram expulsos das posses que ocupavam há mais de 10 anos, sendo
essas terras demarcadas para a instalação de colonos provenientes do Paraná (RIBEIRO, 1987, p. 221-231).
14
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Essas mudanças que se dão na matriz material de produção encarregam-se
de destruir/gerar antigas/novas concepções, costumes e instituições. A troca de
matérias-primas por produtos industrializados entre os trabalhadores rurais e os
regatões vai perdendo espaço para o comércio de compra e venda, em que aqueles
trabalhadores começam a ver seus produtos como mercadorias e a exigir o
pagamento em dinheiro.
A terra é abundante, porém o solo é pobre o que estimula a continuidade
do nomadismo indígena, em que os agricultores-pescadores deslocam as lavouras
sempre que o solo se esgota, por isso mesmo não se preocupam em obter títulos de
propriedade. A posse ainda se confunde com a propriedade da terra percebida
como meio de produção e de vida. A introdução das cercas da propriedade privada
realça a validade dos títulos, bem como coloca para o caboclo a noção de terramercadoria, entendida no capitalismo como um valor monetário (MARX, 1983)
que contrapõe à terra de trabalho a terra de negócio (MARTINS, 1982).
A alimentação determinada pela natureza (peixe e caça) e pelos hábitos
culturais (frutas e produtos derivados da macaxeira) diversifica-se com a introdução
do macarrão, de enlatados e da pequena criação (galinhas e porcos), como alternativas
para a falta de carne bovina, para a escassez de peixe e de caça. Nas fábricas, a
quebra do binômio peixe com farinha, que enfrenta a resistência constante dos
operários, têm dois objetivos ainda mais específicos. O tempo, como fator
preponderante na produção, condiciona refeições que possam ser ingeridas mais
rapidamente, que exigem menor consumo de água após a ingestão para não romper
o trabalho e que evitem o sono e a fadiga após o almoço.
A diminuição das áreas de terras dos posseiros minifundistas determina
também a diminuição do tamanho da família. Agricultores têm famílias numerosas
que garantem força de trabalho para o cultivo da terra e a produção da farinha. O
processo de expropriação/proletarização está pondo para os agricultores-pescadores
a questão do planejamento familiar pela preocupação com o futuro dos filhos, uma
vez que não há terras para dividir. O uso da telha no lugar da palha do buriti, que
vem rareando, e a introdução dos aparelhos eletroeletrônicos vão modificando os
hábitos culturais relativos à construção das casas e à organização das atividades de
lazer, respectivamente.
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violência na formação...
As mudanças que se processam na organização do trabalho são determinadas
pelo propósito do capital de racionalizar a produção agrícola, extrativa e industrial
na região, e que, para tanto, precisa ensinar ao caboclo as normas da produção
intensiva. Usar sementes selecionadas, adubos químicos e instrumentos técnicos (grupos
geradores e motosserras); investir em culturas que obtenham maior rendimento;
analisar a fertilidade do solo para identificar as maiores possibilidades de
aproveitamento do mesmo, são alguns dos objetivos desta proposta “educativa”
cuja metodologia e conteúdos caracterizam-se pela violência e crueldade com que
são impostos os novos valores aos expropriados/proletarizados.17
O capital estabelece e mantém suas normas fundadas nas relações de
exploração pelo consenso, criando mecanismos que as justifiquem para torná-las
“aceitáveis”, e pela coerção, quando os primeiros já não surtem efeito ou começam a
ser desmascarados. A multiplicação das agências estatais responsáveis pelos
financiamentos, pesquisas, assistência técnica e social, legislação, registro e controle
de terras e águas preenchem a primeira função. Tais agências disfarçam a violência
da destruição de modos de produção primitivos e da implantação da produção
tecnológica planificada. Essa produção molda o trabalhador, inculcando, não só as
novas regras do plantar/colher, do comprar/vender, mas também os novos valores
que deverão ser incorporados como padrões de comportamentos produtivos pelos
trabalhadores.
Há casos em que a violência direta não se faz necessária, pois a falta de
condições para produzir e as ofertas de compra de terras por parte dos fazendeiros
fazem da expulsão em acontecimento anônimo, tranqüilo e limpo. Mas nem sempre
é assim. Cada vez mais as máquinas das prefeituras, as carabinas da polícia e dos
jagunços, os papéis mandados pelos juízes, através dos oficiais de Justiça, coagem o
agricultor-pescador a tornar-se um novo homem, trocando sua terra, enxada e terçado
pelo salário que talvez lhe dê o direito de usar instrumentos mais sofisticados, mas
que não lhe pertencem.
A luta apresenta também uma dimensão educativa para o trabalhador que
se vai fazendo classe nesse processo. Os primeiros atos de resistência dos trabalhadores
rurais às mudanças introduzidas pelo estabelecimento de novas forças produtivas
17
Ver Expropriação disfarçada: as agências educativas do capital (RIBEIRO, 1987, p. 128).
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vão no sentido de tentar ampliar a sua terra, os seus ganhos, e até de formar um
capital pela aquisição de máquinas, barcos e contratação de outros trabalhadores,
bem poucos conseguem atingir este estágio, diferenciando-se dos companheiros.
Uma grande maioria, pressionada pelas exigências do capital que quer fazê-los peões,
ocupa espaços na Igreja participando de linhas pastorais de cunho popular. Em
alguns casos, a organização da comunidade em defesa da posse da terra não conta
nem com a Igreja nem com a presença do sindicato. É a luta extrema pela
sobrevivência, pois os posseiros sabem que não têm para onde correr.
As práticas dos sindicatos de trabalhadores rurais amazonenses, que começam
a ser criados em 1972, têm-se caracterizado pelo assistencialismo e pelos impostos
pela legislação aos seus órgãos de classe. 18 A premência da luta pela terra, que marca
o processo de formação do agricultor como classe, vai burlar o controle exercido
pelas agências estatais que imprimem a organização do trabalho para o capital, como
também vai romper com os limites das instituições que os trabalhadores procuram
para organizar-se: Igreja e sindicatos. Na Igreja são introduzidos temas de conteúdo
eminentemente político, produzindo-se reflexões sobre as práticas dos trabalhadores
na luta pela posse da terra, que os orientam para a ocupação de terras e para a
participação sindical e partidária. Nos conflitos, onde a situação se radicaliza, porque
não há terras para onde os agricultores possam deslocar suas roças, o sindicato
começa a superar a característica assistencialista e de dependência do Estado, assumindo
a liderança e encaminhando as propostas dos trabalhadores. Nesse processo são
geradas, além de uma nova concepção de sindicalismo construída na luta, formas
alternativas de organização autogeridas pelos trabalhadores, como as associações, as
feiras e as cantinas comunitárias.
A concepção de terra também vai sofrer alterações que apontam para novas
formas de propriedade e uso coletivo do solo como meio de produção e de vida,
uma vez que os conflitos vão mostrando aos trabalhadores a necessidade de
permanecerem juntos. Mesmo assim, a dualidade do camponês como proprietário/
trabalhador faz com que as suas organizações, que em determinados momentos
assumem maior radicalidade em relação às lutas dos operários, caminhem mais
devagar e sejam muito frágeis aos métodos desagregados utilizados pela pedagogia
do capital através de suas agências educativas.
18
Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Amazonas (FETAGRI/AM) e Confederação dos Trabalhadores da Agricultura
(CONTAG).
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O processo de expropriação/proletarização vai atingir um número
significativo de agricultores-pescadores, cujos filhos irão trabalhar como montadores
de aparelhos eletroeletrônicos no Distrito Industrial de Manaus. Nas fábricas, a
imposição de um novo ethos aos filhos dos agricultores-pescadores funda-se nas
transformações resultantes da implantação do modo capitalista de produção
plenamente desenvolvido, que tomará o lugar da subordinação dos agricultores ao
capital mercantil, construindo-se, a partir da prática, a concepção de trabalho assalariado
que substitui a de trabalho autônomo. O tempo da máquina irá determinar a disciplina
direcionada para a produção da mais-valia sobre a qual se organizarão o transporte,
a alimentação, os hábitos, a sexualidade, o lazer, a doença e a escola. No lugar dos
dias e noites, dos meses, das cheias e vazantes do rio Amazonas, que determinam o
plantio, a colheita e a festa; das estações inverno/verão, que duram cada seis meses,
é posto o cronômetro que elimina a lentidão própria da natureza, o desperdício de
matérias-primas e de movimentos. O tempo natural é substituído pelo tempo
tecnológico, medido em minutos e segundos e inscrito nas esteiras, nas calhas onde
são colocados os instrumentos, na posição dos corpos, determinando o movimento
dos braços, mãos, olhos presos aos alicates, à solda, aos microscópios, às cores dos
fios elétricos...
O agricultor não tem móveis; come de pé ou sentado no chão; usa apenas
a colher (vínculo com o remo, o barco e o rio) ou mãos; a sua principal refeição é
pela manhã, antes de sair para a roça ou para a pesca. Nas fábricas, o operário, filho
do agricultor, aprende a entrar em fila, a comer em intervalos regulares, a usar
talheres, a sentar à mesa e a comer muito mais rápido. O barco a remo, usado no
interior, é substituído na cidade pelo transporte coletivo (ônibus) fretado pelas
empresas, mais rápido e eficiente para eliminar atrasos e quebrar o hábito de não
trabalhar em dia de chuva, próprio do modo de vida rural. Perdem-se as habilidades
de caçar, pescar, plantar, ralar e torrar a mandioca e aprende-se a montagem do kit
eletrônico.
A cultura indígena é identificada não só nos hábitos alimentares de construção
da casa e nos instrumentos da caça, como também na manifestação da sexualidade.
A miscigenação de nordestinos, que migraram para trabalhar na borracha, com
índias, criou uma forma peculiar de sexualidade que não perde o caráter repressivo,
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porém se expressa com maior liberdade, sendo marcada pelo afetivo em detrimento
do que a cultura ocidental caracteriza como moral. Há uma lenda do boto, em que
é possível perceber a síntese das culturas indígenas e européias, na interpretação que
é dada à gravidez de uma moça solteira. Nas fábricas, empresários e gerentes vindos
geralmente da Região Sudeste, caracterizam o comportamento feminino como
tendendo à prostituição, não a partir de critérios culturais ou morais, como à primeira
vista poderia parecer, mas estritamente econômicos, uma vez que as formas mais
livres com que forma de fadigas, faltas, atrasos, licenças médicas e de gestante. Por
isso, é preciso difundir a concepção de imoral ao comportamento das operárias
caboclas, imprimindo a moral burguesa do “recato” feminino através de prescrições
sobre o uso de roupas, proibições de relações com chefias, ou disciplinando o
comportamento sexual dos jovens trabalhadores pelo controle da natalidade, pelas
demissões após a licença-gestante, pela falta de creches, o que não impede que gerentes,
supervisores e encarregados tirem proveitos de operárias que trabalham sob suas
ordens. A sexualidade dos operários passa a ser rigorosamente controlada, tendo
em vista a disciplina da linha de montagem que não pode parar.20
Paralelamente à questão da sexualidade, observa-se a disciplina do lazer, que
passa a ser organizado pelo Serviço Social, ou Comunicação Social da empresa, ou
pelo Serviço Social da Indústria (SESI), tendo por objetivo disciplinar as diversões
operárias dentro dos padrões de produção, controlando especialmente o horário, a
duração, a espécie de atividade e o consumo de bebidas. Visa também desmobilizar
a freqüência às atividades sindicais que afetem a produtividade, pondo em questão
as próprias relações sociais de produção devido ao trabalho político desenvolvido
pelo Sindicato dos Metalúrgicos. Até a questão da saúde/doença é organizada pela
disciplina da produção, visando classificar e manter o operário produtivo, extraindo
dele o máximo de possibilidades de mais-valia.21
20
21
Nas indústrias montadoras a força de trabalho é predominantemente feminina, o que é justificado com a afirmação de que
as mulheres são mais ágeis e pacientes para lidar com aparelhos minúsculos na montagem do kit. A resposta marcara o
critério econômico que determina a seleção das mulheres por serem mais “dóceis”, morarem com os pais e, por isso,
aceitarem salários inferiores aos que são pagos aos operários (RIBEIRO, 1987, p. 240-242).
O tempo tecnicamente comprovado de “vida útil” de uma montadora é bastante curto, ou seja, constata-se que a partir
do 3.º ou 4.º ano consecutivo no desempenho das tarefas de montadora, a produtividade da operária decresce. Ver
SPLINDEL, Cheywa Rojza. Formação de um novo proletariado. As operárias do Distrito Industrial de Manaus. São Paulo:
IDRC/FAPESP/IDESP, jan./1987. Fotocopiada.
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Por fim, a escola, onde se supõe que os operários deveriam receber uma
formação científico-tecnológica, desempenha dupla função. Uma, como socializadora
de hábitos, atitudes e habilidades afinadas com a disposição do corpo e com a
distribuição do tempo na linha de montagem; outra, como classificadora e
hierarquizadora do valor da força de trabalho (ENGUITA, 1989). Para o trabalhador
rural amazonense, a escola é a terra, das estações, das cheias e vazantes do rio, das
características do solo, das sementes, da desova dos peixes [...] Seus filhos freqüentam
a escola da sede do município durante as cheias, quando não há outra coisa a fazer
senão esperar que as águas baixem para iniciar o plantio. Para as fábricas, no entanto,
a escola é importante como inculcadora da disciplina que se expressa na obediência
aos horários, na concentração da atenção, no domínio das necessidades fisiológicas,
na freqüência e na permanência do corpo em uma mesma posição durante longos
períodos de tempo. Esta importância cresce em função da idade-limite para o ingresso
nas fábricas, dos 14 aos 25 anos. Os padrões de comportamento incorporados
através da disciplina escolar influem para que o operário atinja mais rapidamente os
patamares de produção e os critérios de qualidade determinados pelas previsões de
lucro estabelecidas pelas empresas. Quanto à segunda função, a escolaridade constituise em critério de classificação de funções e salários, não importando a qualidade da
formação escolar recebida.
As formas através das quais o capital imprime o caráter do operário são
brutais, uma vez que, sobre a destruição de processos primitivos de produção agrícola,
estabelecem métodos refinados de montagem de sofisticados aparelhos
eletroeletrônicos, como televisores, calculadoras, computadores, videocassetes,
aparelhos de som, telefones, condicionadores de ar, ventiladores. Esta mudança, que
ocorre na matriz material de produção, destrói hábitos, habilidades e comportamentos
reproduzidos há séculos pelas práticas culturais de sobrevivência e pela tradição oral,
e formula novas concepções de trabalho, de tempo, de vida e de crença.
A violência com que o capital impõe às práticas dos trabalhadores a sua
concepção de mundo, de humanidade e de economia explica-se pela violência com
que os operários resistem ao estabelecimento da relação capitalista de reprodução. É
na luta para não ser roubados, subjugados e consumidos que os operários vão se
descobrindo enquanto tais. No início, através de atitudes individuais de rebeldia. Os
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pedidos de demissão justificados pelos maus-tratos e gritos dos chefes imediatos; o
sentir vergonha de ser operário(a); o absenteísmo; a doença mental e até o suicídio
são formas individuais, espontâneas e ainda de rejeição de produção a que são
submetidos os operários. Esses comportamentos iniciais irrefletidos vão evoluindo
para formas coletivas não organizadas de resistência, que se expressam em lutas por
reivindicações concretas. São as guerras de pratos contra a comida podre, são as
paralisações internas contra o trabalho em altas temperaturas sem ventiladores ou
condicionadores de ar, contra o fechamento do vestiário feminino, contra a falta de
água gelada, contra a retirada da farinha do cardápio [...].
Aos poucos, os operários passam a ocupar espaços na Comissão Interna de
Prevenção de Acidentes (CIPA). Descobrindo que esta instância é patronal, os
operários procuram organizar-se fora da fábrica. Seguindo a tradição religiosa
interiorana do trabalho comunitário, procuram a Igreja e fundam a Pastoral Operária,
onde irão articular a organização externa com a organização interna dos grupos de
fábrica. Reflexões produzidas sobre as práticas mostram aos operários os limites da
organização eclesial que os faz partir para a conquista do seu sindicato, organizando
Oposição Sindical Metalúrgica Puxirum, eleita em 1984, cuja linha de ação foi mantida
em 1986. A partir daí, sob a orientação do sindicato, são organizados os grupos de
fábricas que mobilizam e sustentam as duas greves gerais, a de 1985, primeira da
categoria metalúrgica, e a de 1986. Vale ressaltar a participação e a solidariedade de
diferentes categorias de trabalhadores à primeira greve metalúrgica de Manaus. Apesar
das conquistas obtidas, os sindicalistas têm enfrentado inúmeros problemas, que vão
do seu despreparo para administrar a burocracia sindical, às questões referentes à
segurança e à disciplina na organização dos grupos de fábricas, e às campanhas
salariais, além de divergências de cunho político-ideológico no encaminhamento das
lutas.
Este foi o estágio possível, dentro de um determinado contexto de
movimentos sociais em nível nacional, de amadurecimento da categoria metalúrgica,
referência para as demais categorias de trabalhadores amazonenses. Em menos de
20 anos de criação do Distrito Industrial de Manaus, a categoria metalúrgica transpôs
séculos de história de formação do proletariado internacional. Arrancada do interior
de culturas autenticamente rurais, com fortes traços indígenas, começa a formar-se
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Dimensão pedagógica da
violência na formação...
uma classe operária moderna que acompanha o movimento dos trabalhadores
nacionais e internacionais e que inova nas suas estratégias de enfrentamento do capital.
Suas práticas evidenciam a construção de concepções de solidariedade de classe, de
um sindicalismo independente do Estado e de partidos políticos como instrumentos
de luta da classe trabalhadora. Mas essas mesmas práticas são contraditórias e
começam a apresentar limites, referidos, tanto ao esgotamento da estrutura sindical
quanto à conjuntura de desemprego, em que a redução dos postos de trabalho e do
número de sindicalizados aplasta o movimento sindical. Apesar do limites da luta
sindical, compreendidos dentro do pacto que representou o Estado social, vejo
como importante o aprendizado histórico efetuado pelos operários metalúrgicos,
embora reconheça que hoje o contingente de trabalhadores desempregados enfrenta
o desafio de superar o campo institucional, tanto sindical quanto partidário, como
arena de luta.
Considerações finais
Esse recorte da história da transformação do trabalhador rural em operário,
no Amazonas, está circunscrito a um período histórico – do final dos anos 70 ao
final dos anos 80. É marcado, neste Estado, pelo crescimento das indústrias da Zona
Franca de Manaus e, no país, pela reabertura política conquistada pela força dos
movimentos sociais, em que se destacam as grandes greves metalúrgicas do ABC
paulista.
Os movimentos sociais, entre os quais o sindicalismo, enfrentam questões
relacionadas à estrutura sindical e ao desemprego estrutural e tecnológico, questões
essas relacionadas ao esgotamento do salariato e do modelo de sindicato a ele vinculado.
Sendo assim, pergunto-me: Teria o estudo da expropriação/proletarização
ultrapassado seu tempo de comunicar sentido, quando o desemprego estrutural e
tecnológico aliado à destruição do Estado social, privilegia a repulsão da força de
trabalho proletarizada? Não seria hoje a exclusão da relação – que concentra capital
e expulsa trabalho –, disfarçada pelo nome de desemprego, uma violência ainda
maior enquanto elimina a possibilidade aos processos produtivos concentram capital
e expelem trabalho. Então, o que pode ser mais violento, a expropriação da terra
para criar a relação em que o capital sujeita e explora a força de trabalho, ou a
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Mar lene Ribeiro
eliminação desta força de trabalho explorada de seu vínculo contraditório com o
capital, que pode significar a morte? Pode a substituição do “trabalho vivo” pelo
“trabalho morto” significar uma via para a emancipação do trabalhador?
Essa é uma questão central para a compreensão da violência sobre a qual se
sustenta a relação capital x trabalho e das formas de superá-la. Será que o trabalhador
consegue estar “livre” sem as mínimas condições de sobrevivência, quando todas as
possibilidades de vida estão sujeitadas, exploradas e concentradas pelo capital? Ou
será que a exclusão da relação no processo produtivo sob a forma do desemprego
é a face oculta da queima do excesso da mercadoria, força de trabalho que, em
outras épocas e situações, tem sido destruída por leis de vadiagem, enforcamentos,
guerras, fome, miséria, queima de barracos, catástrofes e epidemias que,
“preferencialmente”, atingem os pobres?
Penso que desnudar a violência do capital na sua gênese, retratada na
concretude e na singularidade do processo de expropriação/proletarização/
organização do trabalhador amazonense, ainda forneça elementos para contrapor
ao capitalismo como via única que o neoliberalismo tenta-nos impingir. Ao mesmo
tempo, realimenta aqueles princípios constituintes de uma sociedade democrática e
solidária, cuja defesa, mesmo nos momentos mais adversos, como afirma Perry
Anderson (1995), não podemos transigir. A revisão do processo histórico de
expropriação/proletarização, tendo por referência um caso concreto, que reconta
com novas palavras a velha e conhecida história da formação dos trabalhadores
europeus e brasileiros, expõe inúmeras questões para refletir. O trabalho obscurecido
pelo problema do desemprego, o esvaziamento dos movimentos sociais e
organizações sindicais tradicionais são questões que não estamos sendo capazes de
enxergar, presos que ainda estamos aos velhos modelos institucionalizados de
organização dos trabalhadores.
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Nome autor
Inovações tecnológicas e qualificação
profissional 1
Maria Izabel de Medeiros Valle 2
Resumo
Este trabalho tem como objetivo discutir os impactos sociais das inovações
tecnológicas e organizacionais na indústria de bens eletrônicos de consumo
da Zona Franca de Manaus tendo como referência a pesquisa de campo
realizada nos anos 1998-1999 junto a 4 grandes empresas do setor
eletroeletrônico da ZFM. Os dados da pesquisa revelam que as novas
formas de organização do trabalho aparecem como processos que
requerem novas qualificações técnico-profissionais e novas competências
sociais e, por conseguinte, promovem alterações substantivas nas
demandas de formação e qualificação profissional.
Palavras-chave
Inovações tecnológicas e organizacionais, qualificação e formação
profissional, treinamento, trabalho, qualidade total.
1
2
O ar tigo é parte da Tese de Doutorado defendida em 2000 junto ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da IFCS/UFRJ.
Professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da UFAM.
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Inovações tecnológicas e
qualificação profissional
Abstract
The objective of this work is to discuss the social impacts of the technological and
organizational inovations on the electronics industry of consumer goods in the Manaus
Free Zone, having as a reference the field research, made in the years 1998-1999, on
4 great industries from the electronic sector. The data from the research show that
the new ways of work organization require new technical and professional skills
and, as a consequence, demands important changes in the professional formation
and qualification.
Keywords
Technical inovation, organizational innovation, professional formation, professional
qualification, trainning, work, total quality.
Introdução
A mudança nas formas de organização da produção e do trabalho difundiuse, nas últimas décadas do século 20, com enorme rapidez no mundo inteiro. A
reestruturação produtiva alcançou países econômica e industrialmente diferenciados
a partir da globalização dos mercados e da produção, do declínio da produção em
massa e da adoção de políticas econômicas nacionais orientadas para o mercado. As
repercussões do conjunto das transformações desencadeadas por esses processos
são múltiplas e diferenciadas. Os distintos espaços empíricos de investigação,
intensificada a partir da década de 80, capturaram especificidades e diversidades e,
por isso mesmo, auxiliaram na reflexão sobre a natureza e a amplitude da nova
trama produtiva.
O ponto de partida do trabalho aqui apresentado é a literatura que trata do
processo de modernização tecnológica e a sua repercussão sobre a formação
profissional e toma como referência para o estudo realizado a indústria eletroeletrônica
brasileira situada na cidade de Manaus. Centrado em quatro grandes montadoras de
bens eletrônicos de consumo, o estudo considera que as mudanças ocorridas no
82
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Maria Izabel de Medeiros Valle
espaço fabril na década de 90 visaram a adequação das unidades produtivas às
exigências do ambiente marcadamente mais competitivo. A busca de novos padrões
de produção para enfrentar a redução da demanda no mercado interno e o
acirramento da concorrência entre os diversos produtores, resultados da recessão
econômica e da abertura comercial, conduziram à elevação no grau de automação e
à adoção de novos métodos de gestão. As inovações tecnológicas e organizacionais
implicaram no reordenamento da estrutura de funcionamento das unidades produtivas
daí emergindo um perfil diferenciado da empresa e do trabalhador.
Modernização e qualificação profissional
O debate sobre os impactos das inovações tecnológicas sobre a qualificação
do trabalhador tem como referencial básico a formulação de quatro teses principais
(PAIVA, 1989).
A primeira, de filiação bravermaniana, aponta para o aprofundamento da
desqualificação e intensificação do trabalho. A segunda, considera que o desenvolvimento
tecnológico produz um efeito positivo sobre o trabalho já que conduz à requalificação
e, portanto, à elevação da qualificação média do trabalhador. A terceira, refere-se à
polarização das qualificações, isto é, à coexistência de dois tipos de profissionais: de um
lado, um número muito reduzido de trabalhadores altamente qualificados e, de outro,
uma grande massa de trabalhadores desqualificados. Por último, a tese da qualificação
absoluta e desqualificação relativa que se apóia na idéia de que o “capitalismo
contemporâneo necessita de homens mais qualificados em termos absolutos (a
qualificação média se elevaria) enquanto que a qualificação relativa, considerando-se
o nível de conhecimentos atingidos pela humanidade, se reduziria se comparado
com épocas pretéritas” (PAIVA, 1989, p. 5).
A análise dos efeitos da reestruturação produtiva sobre a qualificação do
trabalhador brasileiro tem levado alguns pesquisadores, como se verá a seguir, a
apontar para a emergência de um novo perfil de trabalhador que se coaduna com
aquele estabelecido por Piore e Sabel (1984). Esses autores, ao analisarem os novos
paradigmas da produção industrial, notadamente a especialização flexível, afirmam que
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Inovações tecnológicas e
qualificação profissional
o seu funcionamento implica não só na adoção de novas tecnologias mas também
na alteração do perfil do trabalhador: no lugar do trabalhador semiqualificado e
obediente do sistema fordista, o trabalhador polivalente, multifuncional, consciente
e responsável. Dessa forma, o operário-massa, desqualificado, tende a perder
relevância no cenário das economias que vêm, desde a década de 70, procurando
estabelecer um novo padrão de produção industrial mediante a adoção de novas
tecnologias e novas formas de organização do trabalho.
Pesquisas e ensaios produzidos no Brasil nos primeiros anos da década de
80, analisados por Abramo (1990), apontaram para mudanças na composição e
qualificação da força de trabalho, isto é, para o aumento da proporção das profissões
mais qualificadas em relação ao total da mão-de-obra empregada; exigências de
escolaridade mais elevada; atribuição de tarefas de inspeção e controle para os
trabalhadores da produção e polarização das qualificações.
Com base nos resultados acima enumerados, a autora conclui que, de maneira
geral, a tese da desqualificação não encontra amparo empírico. Outros autores
(GITAHY; Rabelo, 1991; LARANJEIRA, 1993), também apontam para a
transformação no perfil das qualificações e Laranjeira (1993, p. 26) chama a atenção
para o fato de que “a desqualificação em um nível pode ser acompanhada por
requalificação simultânea em outro nível”.
Outros indicadores das exigências de mudança no perfil do trabalhador são
apresentados por Lima (1991) que considera que o conhecimento do produto e das
diversas fases da produção, a exigência de conhecimentos gerais e a disposição para
o trabalho em grupo ganham cada vez maior relevância nos vários setores industriais.
Valle (s/d, p. 8) considera que “uma das condições para a utilização eficiente
dos sistemas integrados de produção é que os trabalhadores possuam algumas
habilidades”, isto é, que sejam portadores de capacidades cognitivas e capacidades
comportamentais.
Na década de 80, cresce a demanda por um profissional tecnicamente
competente, flexível, multifuncional e dotado de atributos ligados à sua subjetividade.
Cooperação, iniciativa, envolvimento, responsabilidade e capacidade de decisão
aparecem como novos requisitos necessários à contratação.
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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Maria Izabel de Medeiros Valle
Kirschner et al. (1993) também apontam, como resultado da pesquisa realizada junto
a diferentes estabelecimentos de empresas líderes da indústria do Estado de São
Paulo, para um novo perfil de qualificação do trabalhador. Maior autonomia,
capacidade de verbalização e comunicação, capacidade de trabalho em equipe,
conhecimento geral do processo de produção, capacidade de iniciativa, de criar, de
pensar e de decidir são alguns dos requisitos que compõem o novo perfil da
qualificação profissional. Para os autores (1993, p. 46-7),
a superação da concepção taylorista-fordista da organização
do trabalho leva, impreterivelmente, à mudança da
concepção de tarefas que deixa de requerer um aprendizado
por assimilação de operações, às vezes repetitivas, e de
acrescentamento de qualificação [...], para requerer formas
mais abrangentes e organizadas de aprendizagem, onde o
ato de pensar preside o ato de fazer.
A tese da qualificação/requalificação do trabalhador é fortemente
questionada quando se introduz a perspectiva de gênero. Hirata (1992), por exemplo,
alerta para as conseqüências sociais diferenciadas das mudanças tecnológicas sobre o
emprego, o trabalho e a qualificação para homens e mulheres. Na mesma linha
encontram-se os trabalhos de Lobo (1991), Kergoat (1992) e Abreu (1994). Para
Neves (1994, p. 33), “se existe uma formação/requalificação para as mulheres, isto
ocorre em setores onde elas já estão presentes: têxtil, metalúrgica, elétrica, eletrônica”.
Fogaça e Salm (1994, p. 210-213) identificam na literatura que trata dos
requisitos de qualificação exigidos pela nova base técnica, alguns pontos consensuais.
Em primeiro lugar, o esgotamento do padrão taylorista-fordista conduz a
uma diminuição das hierarquias e a uma ampliação das atribuições e responsabilidades
dos trabalhadores do chão da fábrica, modificando a divisão do trabalho; por outro
lado, as empresas tornam-se mais dependentes do envolvimento dos trabalhadores
para a obtenção de melhores desempenhos.
Em segundo lugar, as alterações da estrutura ocupacional, notadamente entre
os trabalhadores diretos, privilegiam as habilidades mentais/intelectuais em detrimento
das habilidades manuais. O “aprender a pensar” substitui o “aprender a fazer” e a
formação profissional precisa ser reorientada no sentido de prover o desenvolvimento
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Inovações tecnológicas e
qualificação profissional
das novas competências; os novos perfis privilegiam a maior autonomia, a
criatividade, a capacidade de intervir no processo produtivo e o trabalho em
equipe.
Em terceiro lugar, as empresas passam a requerer e valorizar uma formação
profissional ampla (broad skills) e não mais a formação específica (narrow skill).
Em quarto lugar, a baixa escolaridade da população brasileira apresentase como o principal obstáculo à introdução e difusão das novas tecnologias de
automação e de organização do trabalho.
Os impactos produzidos pelas mudanças tecnológicas e,
fundamentalmente, pela racionalização do processo produtivo e pelas novas
técnicas organizacionais – menor verticalização, ampliação das tarefas, maior
autonomia e responsabilidade – se não eliminam necessariamente os postos de
trabalho sem maiores requisitos de qualificação, provocam uma maior segmentação
porque os postos caracterizados pelo trabalho manual e repetitivo tendem a ser
ocupados por uma força de trabalho secundária, sujeita a contratos precários e à
alta rotatividade. A separação passa a ser estabelecida entre os que participam do
core das atividades modernas e os que dela estão ausentes introduzindo novas
fissuras na estrutura ocupacional.
Os processos de reestruturação produtiva e de globalização da economia
que transformam rapidamente o mundo do trabalho repercutem sobre a formação
profissional dos trabalhadores. Nesse processo, emerge um perfil do trabalhador
e um conceito de qualificação “que vai além do simples domínio de habilidades
motoras e disposição para cumprir ordens [posto que inclui] também ampla
formação geral. Não basta mais que o trabalhador saiba ‘fazer’; é preciso também
‘conhecer’ e, acima de tudo, ‘saber aprender’ (LEITE, 1997, p. 162-163). Forma,
conteúdo e metodologia são redefinidos nesse contexto abrindo espaço para a
emergência de uma nova institucionalidade. Os diferentes atores sociais –
trabalhadores e sindicatos, empresas e suas entidades representativas, Estado e
instituições científicas, tecnológicas e educacionais, organizações e instituições da
sociedade civil posicionam-se nesse debate apresentando e negociando suas
concepções acerca do tema da formação e qualificação profissional.
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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Maria Izabel de Medeiros Valle
Qualificação profissional e treinamento dos trabalhadores na ZFM
A pesquisa realizada em quatro empresas produtoras de bens eletrônicos de
consumo do Distrito Industrial de Manaus indica que as novas formas organizacionais
do processo de trabalho adotadas na década de 90 do século 20 vêm distanciandose daquelas centradas no modelo hierárquico-funcional taylorista.
A implementação de programas de qualidade requerem um tipo de
qualificação que, situando-se além da escolaridade formal, envolve um processo de
socialização pré-profissional resultante das características socioculturais e psicossociais
dos trabalhadores. As novas formas de organização do trabalho faz evoluir a
qualificação operária no sentido de transformá-la numa “divisão acrescida do
trabalho” (FREYSSENET, 1990, p. 100).
As condições para o ingresso e permanência no emprego tornam-se cada
vez mais seletivas. Escolaridade, idade, capacidade de decisão, de ter iniciativa e
responsabilidade, de resolver problemas e propor soluções, de administrar a produção
e a qualidade, isto é, de desenvolver múltiplas funções, de ser simultaneamente operário
de produção e de manutenção e inspetor de qualidade, todas estas são qualificações
exigidas pelo novo modelo produtivo e contrastam fortemente com aquelas do
modelo taylorista. Os novos requisitos que associam saber técnico-profissional e
competências atitudinais parecem indicativas de uma transição da lógica da
qualificação para a lógica das competências. 3
Nas entrevistas realizadas com os gerentes das diferentes empresas, ficou
claro que entre os atributos hoje necessários ao trabalhador estão o conhecimento
em profundidade de área específica de trabalho, compreensão de todo o processo
de produção tendo em vista a necessidade de entender e prever os efeitos de possíveis
erros na cadeia de produção e capacidade de adquirir e operar intelectualmente
novas informações. Exige-se do trabalhador que ele seja simultaneamente um
3
A noção de qualificação, entendida na sua multidimensionalidade, implica na qualificação do emprego, qualificação do
trabalhador e qualificação como relação social, isto é, como resultado de uma correlação de forças capital-trabalho. Na
noção de competência, oriunda do discurso empresarial na década de 80, está ausente a idéia de relação social que define
o conceito de qualificação. A competência remete a um sujeito e a uma subjetividade e as qualificações são substituídas por
um “saber-ser” (HIRATA, 1992, p. 5).
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Inovações tecnológicas e
qualificação profissional
especialista e um generalista e “um homem de decisão e iniciativa, disposto a
colaborar”. A Confederação Nacional da Indústria (CNI, 1993, p. 18) expressa
limpidamente essa idéia ao indicar que o trabalhador deve apresentar competência
para superar “hábitos tradicionais adquiridos numa forma ultrapassada de relações
sociais, baseada na oposição linear entre capital e trabalho” [e] capacidade de transferir
conhecimentos adquiridos na vida cotidiana para o ambiente organizado do sistema
produtivo”.
A nova forma de organização exige do trabalhador habilidades de natureza
operacional e conceitual. O trabalho autônomo, conceito fundamental no novo
processo produtivo, deve orientar a formação do trabalhador de forma a incluir,
entre a aquisição das competências necessárias, as habilidades básicas (“ensinar a
pensar”, isto é, a identificar e superar erros como parcialismo, egocentrismo, arrogância
e polarização); as habilidades específicas (identificada com o conceito de
“empregabilidade” polivalente e a longo prazo, isto é, ações de qualificação e de
requalificação profissional) e as habilidades de gestão (capacidade de co-gerir o
processo tecnológico, de gerir o seu próprio tempo e sua relação com companheiros
e chefes). A formação profissional deve, assim, ampliar o horizonte de competência
do trabalhador, na percepção da CNI (1993, p. 19-21).
Zarifian (1998, p. 22-23) argumenta que, entre algumas evoluções ocorridas
nas grandes empresas encontra-se a introdução de um jogo mais dialético entre
qualificação do cargo e aquela do indivíduo. A noção de competências, entre estas,
as competências sociais (autonomia, comunicação, etc.), introduz capacidades que,
em princípio, referem-se ao comportamento do indivíduo:
Mas na aplicação prática da noção, a tendência prescritiva
continua amplamente em cena: não é ao indivíduo que
se associam as competências de autonomia e
responsabilidade; é sempre o cargo que tem necessidades
de autonomia e de responsabilidade. A competência exigida
pelo cargo continua a determinar a competência adquirida
pelo indivíduo.
De fato, embora as competências sociais não estivessem explicitadas na
“matriz de qualificação” em três das empresas investigadas, os atributos de
responsabilidade e capacidade para o trabalho em equipe para o preenchimento de
88
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Maria Izabel de Medeiros Valle
determinadas funções eram verificados através de entrevistas e “testes de seleção”.
Em uma delas, no entanto, os atributos de responsabilidade, iniciativa, flexibilidade
e facilidade de relacionamento eram parte dos “requisitos mínimos” para os
preenchimentos dos cargos de montador, operador e reserva encontrando-se
explicitados na descrição de cargos.
No que se refere ao treinamento, o novo modelo produtivo vem requerendo
a elaboração e execução de novos cursos destinados aos diferentes níveis hierárquicos.
Na Tabela 1 estão relacionados os principais cursos oferecidos pelas empresas da
amostra aos seus “funcionários”.
Tabela 1: Zona Franca de Manaus. Treinamentos realizados pelas empresas da amostra
(1998)
Cursos
Público-Alvo
IE1
IE2
IE3
IE4
Matemática Básica
Produção
Sim
Sim
Não
Sim
Prática Redacional
Produção
Não
Não
Não
Sim
Leit. e Interp. Desenho
Produção
Sim
Não
Não
Não
Metrologia
Prod/Qualidade
Sim
Sim
Não
Não
Op. de MFCN
Produção
Sim
Não
Não
Não
Manut. Equipamentos
Engenheiros
Sim
Sim
Não
Não
CEP
Prod/Qual/Sup/Eng. Sim
Sim
Não
Não
Desenvol de Hab. Gerenciais
Gerentes/Chefes
Sim
Sim
Não
Não
Conscientiz. para QT
Todos
Sim
Sim
Sim
Sim
ISO 9000
Todos
Sim
Sim
Sim
Sim
Comunicação
Adm/Qual/RH
Sim
Sim
Sim
Sim
Inglês
Todos
Sim
Sim
Sim
Não
Informática
Diversos
Não
Não
Sim
Sim
Programa de Integração
Todos
Sim
Sim
Sim
Não
Palestras
Todos
Sim
Sim
Sim
Sim
Formação de Inst/Multiplic.
Diversos
Sim
Sim
Não
Sim
Supl. 1. grau
Montador
Não
Sim
Não
Não
Fonte: Pesquisa de campo.
Obs: Na IE2 e na IE3 os cursos de inglês destinam-se àquelas categorias de trabalhadores “que
necessitam desse tipo de curso”.
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Inovações tecnológicas e
qualificação profissional
As quatro empresas estudadas começaram a investir em amplos programas
de treinamento como parte do projeto de reestruturação envolvendo a gestão da
qualidade e encontravam-se, no momento de realização da pesquisa, em diferentes
estágios de desenvolvimento dos programas de treinamento.
A IE3 tem uma longa tradição na área de treinamento tendo inclusive criado
uma fundação que atua na área de formação profissional. O grupo corporativo
“adota uma política de treinamento agressiva” [que busca preparar] os seus
funcionários para enfrentar os desafios do mercado, cada vez mais exigente em
termos de formação profissional” (Balanço Social 1997 do Grupo Empresarial
IE3).
Em 1997, 5.311 funcionários participaram de 55.795 horas de treinamento
conforme tabela abaixo:
Tabela 2:Treinamento realizado pelo grupo corporativo IE3
Cursos
Participantes
Horas
4.741
45.274
Bolsa e Seminários
244
443
Idiomas
147
6.694
74
1.501
105
1.883
Capacitação
Informática
Gerencial
Fonte: Balanço Social 1997 do Grupo Empresarial IE3.
Na fábrica de Manaus, 962 trabalhadores participaram de 1.198 horas de
treinamento no ano de 1998. A grande maioria destinava-se aos “operacionais” (626
trabalhadores, o que representa 65% do contingente empregado). A coordenadora
de Desenvolvimento de Pessoal da empresa informa que o “treinamento objetiva
solucionar problemas localizados na produção”.
Em 1998, a coordenação referida foi responsável pela realização de 56
cursos dos quais 32 destinados aos operacionais, 19 aos administrativos (técnicos), 4
aos engenheiros e 1 às chefias. Predominaram os cursos destinados à capacitação,
com carga horária variável (entre 2 e 120 horas). Todos os cursos foram organizados
90
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Maria Izabel de Medeiros Valle
e executados internamente o que revela os frágeis ou até mesmo inexistentes vínculos
com outras instituições locais.
O grupo empresarial atua no ensino médio com habilitação profissional em
Eletrônica e Processamento de Dados através de uma fundação, criada em 1987,
“para formar e capacitar mão-de-obra qualificada para atender às necessidades
tecnológicas da região amazônica”. Em 1997, a fundação investiu R$ 2.815,33 em
cada um dos 287 alunos (139 em eletrônica e 148 em processamento de dados),
“concedendo benefícios como ensino gratuito, empréstimo anual de livros didáticos
e doação de uniformes, atendimento médico-odontológico e social, alimentação e
transporte. Para dar suporte aos alunos, a fundação contava com 16 professores e
29 funcionários (15 dos quais terceirizados)” (Balanço Social 1997 do Grupo
Empresarial IE3).
Nos últimos anos, o montante destinado aos programas de treinamento
vem diminuindo substancialmente e a “tendência é diminuir” frente às incertezas
econômicas. A crise atingiu profundamente o setor de treinamento que ficou reduzido
a 3 pessoas.
A implantação de novas formas de organização e gestão do trabalho tem
como objetivo, por outro lado, a construção de uma nova mentalidade: “a cultura
da qualidade”.
A estratégia de treinamento adotada na empresa IE2 tem como base os
procedimentos da qualidade percebidos como “a bíblia” que orienta a elaboração
dos programas para os diferentes trabalhadores. O objetivo dos programas é
“qualificar o funcionário de acordo com a matriz de qualificação [e tem como] meta
atingir a qualidade”, segundo depoimento da analista de treinamento da empresa.
A qualificação apresenta, na percepção da entrevistada, diferentes significados:
qualificação para a promoção; para a reciclagem de conhecimentos inerentes ao
próprio cargo (nível operacional); para habilitar o trabalhador ao uso de novas
tecnologias e para atualização (áreas financeira e de pessoal). Embora contemple
diversas áreas e funções, “o foco dos programas de treinamento é a área produtiva”.
Aos operários da produção destinavam-se os cursos de matemática básica,
supletivo de 1º grau, eletrônica básica e instrumentação eletrônica. Para os técnicos e
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Inovações tecnológicas e
qualificação profissional
engenheiros, metrologia, manutenção de equipamentos e Controle Estatístico de
Processo (CEP). Estas categorias participavam de treinamentos realizados em São
Paulo. E todas as categorias participavam dos programas Integração, 4 Conscientização
para Qualidade Total, ISO 9000 e Palestra.5 O programa Desenvolvimento de
Habilidades Gerenciais, destinado aos chefes e gerentes, visava ao preparo de
“lideranças” junto às outras categorias de trabalhadores. Executado nos anos de
1996 e 1997, com assessoria de São Paulo, o programa desenvolveu-se mediante a
formação de grupos formados por sete pessoas (grupos Cumbuca) que se reuniam
uma vez ao mês, durante duas horas, para discutir e apresentar soluções para os
problemas relatados. “A experiência iniciou-se em nível de chefia e direção e depois
‘baixou’ [para os outros níveis]. Todo mundo perdeu o medo de falar, de fazer
exposição do pensamento”, informa o gerente da Garantia da Qualidade.
Organizados pela própria empresa ou por centros profissionalizantes,
instituições educacionais ou por empresas de consultoria, os cursos objetivam
capacitar a força de trabalho, “fortalecer as relações interpessoais e promover uma
integração maior entre os diferentes níveis”.
O departamento de treinamento da empresa encontrava-se bastante reduzido.
As funções anteriormente de responsabilidade da gerência de recursos humanos
foram incorporadas à área de abrangência da gerência administrativa e financeira. O
“enxugamento” do departamento, resultado da crise, é percebido pela analista de
treinamento como “algo necessário e conjuntural”.
O programa de treinamento na IE4 contempla atividades internas e fechadas e
externas e abertas e visam “à qualificação e aperfeiçoamento do funcionário”. O
setor de treinamento possui uma coordenação e um corpo de instrutores constituído
pelos próprios trabalhadores.6 Em geral, os treinamentos destinam-se às áreas
O programa consiste em apresentar a empresa ao trabalhador recém-contratado. No primeiro dia de trabalho e acompanhado
por alguém da área de recursos humanos, o trabalhador visita as dependências da empresa, é apresentado ao “pessoal
principal” (gerentes) e toma conhecimento das normas de funcionamento da empresa, do sistema de benefícios e de
responsabilidades, da política de qualidade e da expectativa da empresa com relação ao desempenho do trabalhador.
5
As palestras, realizadas ao longo do ano, abrangem temas ligados à saúde, alimentação e qualidade de vida.
6
O gerente de Relações Industriais informa que “o corpo de instrutores”, ou “doutrinadores”, é constituído pelos
trabalhadores da própria empresa que ao concluírem cursos realizados externamente transmitem seus conhecimentos para
os demais trabalhadores de dentro da fábrica. Os “doutrinadores” são remunerados por hora/aula. Estes trabalhadores
demonstram grande interesse em ministrar cursos em função da remuneração que funciona como complemento salarial.
4
92
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Maria Izabel de Medeiros Valle
específicas. Para o pessoal da produção, matemática básica, eletrônica básica, kanban,
solda e revisor de montagem. Os cursos externos “têm caráter comportamental”.
Na avaliação do gerente de recursos humanos, os técnicos e os gerentes
são bons tecnicamente mas péssimos em ter mos
comportamentais porque não sabem lidar com pessoas. É
um desastre no lidar com as pessoas. Nós estamos dando
cursos de relações humanas, estilos de liderança, organização,
trabalho em equipe, etc.
Na IE1, o objetivo do treinamento também é a qualificação e a atualização
da força de trabalho: “profissionais melhores, mais capacitados, mais criativos, em
linha com o mercado”. Cursos de matemática básica, leitura e interpretação de
desenho, metrologia e operação de máquinas/ferramentas com controle numérico
destinam-se aos operários da produção. Para os engenheiros, cursos de manutenção
de equipamentos e Controle Estatístico de Processo. Para os chefes e gerentes, o
curso de Desenvolvimento de Habilidades Gerenciais e Palestras sobre relações
humanas. Todas as categorias de trabalhadores participam de treinamentos
relacionados à Conscientização para Qualidade Total, curso de idiomas (inglês) e
programa de Integração.
As horas anuais de treinamento distribuem-se entre cursos organizados pela
empresa para seus funcionários e cursos organizados por centros profissionalizantes,
empresas de consultoria e convênios com instituições educacionais.
Os recursos financeiros aplicados pela empresa em treinamento vêm
crescendo nos últimos anos, uma vez que a orientação da empresa é enfrentar a crise
com investimentos em pessoal: “crise maior, maior o investimento em pessoal”
(gerente de Recursos Humanos).
No discurso gerencial, os novos métodos e técnicas organizacionais
demandam um trabalhador com novas qualificações. No entanto, na prática, os
programas de treinamento efetivados pelas empresas não se orientam pela busca de
uma maior qualificação do trabalhador no sentido de provê-lo de maiores habilidades
cognitivas, uma vez que se limitam às atividades vinculadas à execução da tarefa e à
preparação de uma “nova mentalidade”. A introdução de novas formas
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Inovações tecnológicas e
qualificação profissional
organizacionais não implica, portanto, na superação da divisão clássica taylorista que
opõe trabalho de concepção e de execução. As informações obtidas no trabalho de
campo indicam que a qualificação profissional identifica-se com a “qualificação
horizontalizada” (ARRUDA, 1997), ou seja, aquela que ocorre por meio da agregação
de tarefas.
Conclusão
A qualidade total é uma estratégia que permite simultaneamente melhorar a
qualidade do produto e do processo, maximizar o uso de máquinas, equipamentos,
materiais e instalações e instituir uma nova sociabilidade fabril mediante a constituição
de relações sociais entre os diferentes níveis hierárquicos fundada na cooperação. O
pacto social que daí emerge pressupõe a participação ativa e o compromisso dos
trabalhadores na busca da qualidade e da produtividade. No entanto, ao ampliar as
tarefas, o desgaste e as responsabilidades dos trabalhadores, mantendo o mesmo
nível dos salários, as empresas asseguram-se da elevação da qualidade e da
produtividade e também da lucratividade.
O trabalho repetitivo e fragmentado tende a perder importância frente à
exigência de novas habilidades cognitivas e comportamentais. A perda relativa de
importância das habilidades manuais em face dos processos automatizados favorece,
por sua vez, a polarização entre trabalhos mais qualificados e menos qualificados e o
aprofundamento da segmentação por gênero.
Os novos perfis profissionais compatíveis com o avanço da automação e a
difusão de novos métodos de organização da produção e de gestão encontram-se
associados à maior capacidade de abstração (capacidade para ler, interpretar e decidir)
e, fundamentalmente, a certas qualidades subjetivas como responsabilidade,
cooperação, interesse, etc. O trabalhador típico do modelo taylorista-fordista vem
deixando de ser funcional para os objetivos empresariais.
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Nome ar tigo
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Márcia Pelares Mendes Silva
Impactos da reestruturação produtiva nas
expressões de consciência de classe dos operadores
de produção da Zona Franca de Manaus
Márcia Perales Mendes Silva 1
Resumo
O presente estudo constitui-se em um empreendimento de investigação e
reflexão sobre as conseqüências advindas de um conjunto de mudanças
contemporâneas para o cotidiano da classe trabalhadora. Sob tal enfoque,
são centralizadas as metamorfoses ocorridas no mundo do trabalho e os
desdobramentos políticos daí decorrentes, a partir da ótica dos operadores
de produção do Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus, base
empírica para apreensão das múltiplas formas de expressão de suas
consciências, bem como para a análise dos limites e possibilidades da
emergência de embriões potencializadores em direção à formação da
vontade coletiva.
Palavras-chave
Manaus; Zona Franca; trabalho.
1
Doutora em Serviço Social e professora adjunta do Departamento de Serviço Social e do Programa de PósGraduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.
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Impactos da reestr utur ação
produtiva nas expressões de...
Abstract
The study sought to investigate and reflect on the consequences originated from a set
of present changes on the day-to-day of the working class. Under such focus, the
metamorphosis occurred on the working world and the political deployments derived
were considered, departing from the point of producting workers of the Manaus
Industrial District, which was the empirical basis for gathering the multiple forms of
consciousness expressions, allowing the analysis of the limits and possibilities of
appearance of purposive embryoes toward the consolidation of a collective will.
Keywords
Manaus; zone free; work
Introdução
Diante da emergência cada vez mais incontrolável das contradições inerentes
à lógica do capitalismo, coube a precípua, inadiável e complexa tarefa de articular o
“instrumental” necessário para a reversão da tendência das taxas de lucro. A grande
recessão mundial que se instaurou a partir de 1974-1975, longa e complexa, com
surtos de crise e expansão, exigiu que a dinâmica arbitrada pelo grande capital fosse
revista para garantir uma base adequada às exigências de valorização, reiniciando-se
uma nova sucessão de formas de produção de mercadorias (sob as mais diferentes
configurações), 2 e regulações sociais, econômicas e políticas compatíveis, que, somadas
às implicações das revoluções tecnológicas, têm subvertido o mundo do trabalho.
2
De acordo com os estudos de Mattoso, os representantes da escola de regulação francesa consideram várias configurações
nacionais ou variantes nacionais em relação à reestruturação produtiva: fordismo genuíno (EUA), fordismo híbrido (Japão),
flex-fordismo (Alemanha), fordismo impulsionado pelo Estado (França) e fordismo democrático (Suécia). Para outros
autores, ainda segundo Mattoso, os desdobramentos das respostas à crise e ao esgotamento de um padrão de desenvolvimento
seriam apenas dois: o neotaylorismo (caso dos EUA, Inglaterra e França) e o envolvimento coletivamente negociado (caso
do Japão). A esse respeito, ver Mattoso, Jorge. A desordem do trabalho. São Paulo: Scritta Editora, 1996, especialmente o
cap. II, p. 55-120. Para Gitahy, as novas formas de organização industrial recebem designações diferenciadas na literatura
internacional: neofordismo ou pós-fordismo para a “escola de regulação francesa”; novo paradigma técnico-econômico para
os neoschumpeterianos; “estratégia PIW”, na literatura escandinava; “especialização flexível” para Piore e Sabel; systemofactore
para Hojjman e Kaplinsky; lean production ou “produção enxuta” para Womack. Apesar das diferenças qualitativas que os
envolvem, todos eles destacam a existência de vantagens econômicas na utilização efetiva de inovações tecnológicas, nas
áreas de produto, processo e organizacionais. A respeito, ver Gitahy, L. Inovação tecnológica, subcontratação e mercado de
trabalho. In: São Paulo em Perspectiva. v. 8, n. 1. São Paulo: Seade, 1994, p. 144.
100
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Márcia Pelares Mendes Silva
É para responder, portanto, a um tipo de crescimento limitado às “ondas
longas recessivas”, em cuja origem situa-se a tendência declinante da taxa de lucro,
que o capitalismo monopolista – caracterizado por Mandel como capitalismo
tardio3 – implementa processos que envolvem desde a privatização do setor público
até a desregulamentação 4 do mercado financeiro e flexibilização do mercado de
trabalho, pautando-se numa nova política econômica, com capacidade, em
potencial, de remover as barreiras criadas pelo modelo de acumulação fordista, 5
bem como propiciar as condições para a reestruturação capitalista global. Recuperar
o controle do capital sobre o trabalho, tanto na esfera da produção quanto no
campo institucional, é uma imposição historicamente pontuada pelo próprio sistema
capitalista.
Sustentando-me na compreensão de que é sob a gênese de novas
determinações, pautadas nas mesmas bases capitalistas, que os complexos processos
em curso redimensionam a materialidade e subjetividade dos trabalhadores, o
objetivo desta pesquisa6 foi investigar e refletir sobre o conjunto de conseqüências
advindas das metamorfoses do mundo do trabalho e seu rebatimento no âmbito
das idéias e ações, a partir da ótica da classe trabalhadora, mais especificamente
dos operadores de produção do Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus,
como subsídio para o dimensionamento dos limites e possibilidades da emergência
de embriões potencializadores em direção à formação de uma futura vontade
coletiva.
Para Mandel, é a combinação de um conjunto de tendências desiguais que interagem na totalidade social (composição
orgânica do capital em geral e nos setores mais importantes; a distribuição do capital constante entre o capital fixo e o
circulante; o desenvolvimento da taxa de mais-valia e de acumulação; o desenvolvimento do tempo de rotação do capital
e as relações de troca entre os Departamentos I e II [respectivamente, bens de produção e bens de consumo] que “[...]
vai permitir-nos explicar a história do modo de produção capitalista, e sobretudo da terceira fase desse modo de produção,
que denominaremos ‘capitalismo tardio’, mediante as leis do movimento do próprio capital, sem recorrer a fatores exógenos,
alheios ao âmago da análise de Marx do capital”. (MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
Os economistas, p. 27.
4
A desregulamentação é um slogan político determinante na era da acumulação flexível (HARVEY, 1992, p. 150).
5
O fordismo é aqui concebido como “a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste
século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através da linha de montagem e de
produtos mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro fordista e produção em série
taylorista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das funções; pela separação entre elaboração e execução
no processo de trabalho; pela existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação
do operário-massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões” (ANTUNES, 1995, p. 17).
6
Esta pesquisa constituiu-se em uma das investigações, dentre outras realizadas, para o desenvolvimento e conclusão de
minha Tese de Doutorado.
3
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101
Impactos da reestr utur ação
produtiva nas expressões de...
Transfor mações sociais em curso: um olhar crítico
É amplo e controverso o terreno de reflexão em torno da profunda crise
que assola as sociedades contemporâneas. Incorporada ao léxico corrente sob os
mais diversos significados7 e presente nas produções dos mais variados autores e
correntes do pensamento social,8 a importância do desvendamento das teias
constitutivas da crise deste final de século impõe-se a partir do entendimento de que
as várias concepções que a envolvem estariam imbricadas “[...] no processo de
secularização que envolveu todas as categorias da história e da ciência social e, de
modo particular, os modelos macrossociológicos da explicação da evolução histórica,
desde o positivismo até o marxismo e o funcionalismo”.9
Para a apreensão da constituição do bloco histórico atual, a concepção crítica
da crise precisa ser refletida, em primeiro plano, evidenciando-se a prevalência da
base material e não apenas a sua superestrutura jurídico-política. Com este propósito,
sustento-me teoricamente em textos clássicos de crítica da economia política, 10 bem
como me amparo em autores que oferecem contributos na direção supramencionada.
Neste sentido, parece ser a partir da clássica afirmação de que a crise é a
expressão do um descompasso entre a produção e a circulação, enquanto processo
de produção e realização do lucro no interior da lógica de acumulação do capital e,
ao mesmo tempo, o mecanismo através do qual a lei do valor se impõe, que é
De acordo com Nogueria, “Na maior parte de seus inúmeros significados, ‘crise’ associa-se a um turning point, no qual
explicitar-se-ia uma situação de particular gravidade e se revelariam, como diriam os médico, as chances de recuperação do
paciente. Fala-se em crise econômica para assinalar uma fase de desemprego ou recessão. Em crise de consciência para
demarcar uma inquietação causada por graves problemas éticos. O senso comum das pessoas registra a existência de crises
sempre que se manifesta uma ruptura de um padrão (pessoal, grupal ou coletivo) tido como ‘normal’ [...]. Muitos sociólogos
usam a palavra para qualificar situações afetadas pela quebra dos padrões de organização social, pelo ‘esgarçamento do
tecido social’ que comprometeria a reprodução de uma dada ‘ordem” (JORNAL da Tarde, São Paulo, 25/3/99.
8
Segundo Nascimento, existe um congestionamento conceitual que merece ser bem enfrentado em nome da construção
rigorosa de um espaço de inteligibilidade sobre a crise. Ao argumentar que na história das ciências sociais as concepções
de crise têm assumido distintos contornos, Nascimento percorre a obra de alguns autores e/ou correntes do pensamento
social resenhando as diversas concepções de crise nas ciências sociais, classificando-as em hermenêuticas, empíricas e
comparativas. Ver NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. Crise e movimentos sociais: hipóteses sobre os efeitos perversos. In:
Revista Serviço Social & Sociedade. v. 43, ano XIV, dez./1993, p. 72-92. São Paulo: Cortez Editora.
9
MARRAMAO, G. Política e Complexidade: o Estado tardo-capitalista como categoria e como problema teórico. In: HOBSBAWM,
E. (Org.) História do Marxismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 132, v. 12.
10
Refiro-me especialmente aos livros 2 e 3 de O capital e os Grundrisse, de Karl Marx, cuja base conceitual permite uma leitura
das crises do capital.
7
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possível o entendimento dos processos de crises enquanto “[...] soluções momentâneas
e violentas das contradições existentes, erupções bruscas que restauram transitoriamente
o equilíbrio desfeito”.11
Redefinindo suas linhas de atuação através de uma dupla e concomitante
implementação -- políticas neoliberais e transformações produtivas --, o sistema
capitalista vem “favorecendo” a emergência de um novo paradigma industrial, pautado
em novos processos de trabalho, onde “o cronômetro e a produção em série e de
massa são ‘substituídos’ pela flexibilização da produção, pela ‘especialização flexível’,
por novos padrões de busca de produtividade, por novas formas de adequação da
produção à lógica do mercado”.12
Os processos reestruturadores em curso apontam também para o embate
de práticas políticas, de ações de classes, que ratificam a correlação de forças entre
capital e trabalho. É a partir dessa ótica que Dias sustenta que o conjunto de
transformações para viabilizar as condições para a cumulação do capital envolve a
adoção de medidas de dupla ordem – técnica e política: “[...] Todo o processo
conhecido como reestruturação produtiva nada mais é do que a permanente
necessidade de resposta do capital às suas crises. Para fazer-lhes frente é absolutamente
vital ao capital – e aos capitalistas – redesenhar não apenas sua estruturação ‘econômica’,
mas, sobretudo, reconstruir permanentemente a relação entre as formas mercantis e
o aparato estatal que lhe dá coerência e sustentação. Assim, o momento atual da
subsunção real do trabalho ao capital – conhecido ideologicamente como III
Revolução Industrial – exige uma modificação das regras da sociabilidade capitalista,
modificação essa necessária para fazer frente à tendência decrescente da taxa de
lucro”. 13
Neste sentido, subjacente à emergência das mudanças na produção e no
modo de regulação, enquanto condições para a reestruturação capitalista global, a
proposta neoliberal apóia-se concomitantemente na despolitização das relações sociais,
através da “[...] desqualificação teórica, política e histórica da existência de alternativas
11
12
13
MARX, op. cit., p. 286.
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo:
Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1995, p. 16.
DIAS, Edmundo. A liberdade (im)possível na ordem do capital. Reestruturação produtiva e passivização. Campinas: IFCH/
UNICAMP, 1997, p. 14 [grifos meus].
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produtiva nas expressões de...
positivas à ordem capitalista e (d)a negação de qualquer mecanismo de controle
sobre o movimento do capital, seja enquanto regulação estatal, seja por meio de
outros mecanismos democráticos de controle social, em favor da regulação do
mercado”. 14
A emergência de uma nova Revolução Industrial, possibilitada pela
cibernética, automação, robótica, microeletrônica, flexibilização da unidade fabril,
desconcentração da produção, vem aprofundando os níveis de desemprego,
marginalização, precarização e exclusão social.15 Trata-se de um conjunto de
transformações da estrutura do capitalismo – realizado em meio às ondas de
modernização conservadora e de um quadro geral de globalização financeira,
instabilidade econômica e emergência de inovações tecnológicas, produtivas e
organizacionais – que vem rompendo com os mecanismos nacionais e internacionais
que os regulavam, favorecendo um comportamento predatório ou espúrio, cujos
resultados têm sido prejudiciais às sociedades contemporâneas. 16
Ainda que o Brasil esteja inserido em um contexto econômico, social, político
e cultural que tem traços universais do capitalismo globalizado, apresenta singularidades
que, “[...] uma vez apreendidas, possibilitam resgatar aquilo que é típico desta parte
do mundo e deste modo reter a sua particularidade. Trata-se, portanto, de uma
globalidade desigualmente combinada, que não deve permitir uma identificação
acrítica ou epifenomênica entre o que ocorre no centro e nos países subordinados”.17
Para Netto, o Brasil se insere no capitalismo contemporâneo com duas importantes
refrações derivadas de sua condição periférica e do nível de desenvolvimento e
articulação das suas relações capitalistas: “Numa palavra, as transformações societárias
[...] processam-se no Brasil mediadas pela inserção subalterna do país no sistema
capitalista mundial e pelas particularidades de sua formação econômico-social”.18
MOTTA, op. cit., p. 97.
“É possível afirmar que o conjunto de países ativamente envolvidos no processo de globalização, isto é, todos os membros
da OCDE, mais uma ou duas dúzias de países da Ásia e da América Latina, estão em graus variados, sendo submetidos ao
mesmo processo” (SINGER, 1996, p. 10). Sobre taxas de desemprego e número de desempregados, consultar OCDE (1990)
E OCDE (1992).
16
Cf. MATTOSO, 1996, p. 31-32.
17
ANTUNES, R. Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva na Inglaterra e no Brasil. São Paulo: Boitempo,
1997, p. 79.
18
NETTO, op. cit, p. 103.
14
15
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A instauração tardia do neoliberalismo no Brasil ocorreu sob uma forte
ofensiva político-ideológica do capitalismo internacional que, amparando-se na queda
do Muro de Berlim, na desagregação da antiga Rússia, no anúncio do “fim da
História” e da “vitória” do capitalismo liberal em nível planetário, fez proliferar
mundialmente a ideologia do mercado auto-regulado, da competição, da eficiência
e do êxito econômico, sob o determinismo de que não haveria saída contra as
tendências emergentes e inevitáveis dos pressupostos neoliberais.
A partir de 1990, portanto, com a vitória de Fernando Collor nas eleições
de 1989 que se inicia no Brasil “uma maior e explícita inserção subordinada às
condições da nova ordem internacional e ao receituário de ajustes proporcionados
pelos organismos internacionais”. 19
A nova orientação neoliberal e seus profundos resultados recessivos impõem
novos padrões de concorrência capitalista no país e acelera o processo de privatização,
desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho, contingenciando as
transformações produtivas nas empresas, expostas à concorrência internacional. É
principalmente a partir desse marco histórico que o Brasil “[...] tende a se integrar
mais ainda à nova ordem capitalista planetária, a construir um modo periférico da
condição ‘pós-moderna’”. 20
Nesse contexto, ao invés de redefinir-se o perfil de intervenção estratégica
do Estado, atacou-se o burocratismo do Estado e, com base na eficiência de mercado,
acelerou-se “o seu processo de desestruturação e redução de sua capacidade de
planejamento, financiamento, fiscalização, apoio à competitividade e à distribuição
de renda”. 21 Iniciou-se no Brasil uma verdadeira cruzada privatista22 de
desmantelamento de empresas estatais ou paraestatais em consonância com a
ortodoxia dominante que apregoava a diminuição do Estado que, contrariamente
ao desempenho do setor privado, era letalmente taxado de ineficiente e corrupto.
MATTOSO, 1996. p. 39.
ALVES, op. cit., p. 131.
21
MATTOSO, 1996, p. 39. Ainda segundo Mattoso (1995, p. 135), ao final da década de 80, o Estado brasileiro já se
encontrava enfraquecido, não apenas financeiramente, mas do ponto de vista político e institucional, favorecendo a
“aventura neoliberal de desestruturação selvagem no início dos anos 90”.
22
Cf. BORÓN, Atílio. A sociedade civil depois de dilúvio neoliberal. In: SADER, E.; GENTILI, P. (Org.). Pós-neoliberalismo. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 79.
19
20
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O mercado de trabalho, que já vinha acumulando os efeitos da estagnação e
da alta inflação da década de 80, ainda teve de conviver com a redução do emprego
industrial, elevação da participação de trabalhadores sem contrato de trabalho,
deterioração do poder de compra e aumento da desigualdade de renda dos indivíduos
e famílias.23 Os resultados positivos têm sido para os empregadores que acompanham
e corroboram com um processo de desintegração da força de trabalho, de dispersão
dos trabalhadores, enfraquecimento de suas identidades sociais e políticas, precarização
do emprego, do trabalho e a própria vida, ao lado do aberrante desemprego
estrutural.
Tendo como referência as reflexões explicitadas, o núcleo temático dessa
investigação nas múltiplas formas de expressão de consciência dos trabalhadores na
atualidade, bem como nos limites e possibilidades daí decorrentes em direção à
possibilidade de germinação de uma vontade coletiva. Tal centralidade ratifica a
importância e o interesse pela dimensão política, embora se reconheça a prevalência
da esfera econômica. Conseqüentemente, fundamento-me em uma concepção entre
política e economia que não restringe as relações de dominação e exploração ao
terreno da economia, pois, “embora a hegemonia seja ético-política, ela deve ser
também econômica, baseada necessariamente na função decisiva exercida pelo grupo
dominante no núcleo decisivo da atividade econômica”. 24
Para tanto, elegi a matriz do materialismo histórico e dialético, uma vez que
esta empreende o desvendamento do processo de produção e reprodução da
sociedade capitalista, a partir da tematização teórica e histórica do processo de
produção material e de reprodução social, numa perspectiva crítica, de ruptura e
superação da sociedade capitalista. Sem distanciar-me do pensamento de Marx,
fonte original dessa tradição, amparo-me também no pensamento de Lênin, Lucáks
e outros pensadores mais contemporâneos filiados à tradição marxista, mas priorizo
a perspectiva gramsciana, justificada não apenas pela contemporaneidade de seu
pensamento, mas por ser a política a centralidade de seu constructo teóricometodológico.
As condições do mercado de trabalho só não foram mais agravadas na década de 80 em função do crescimento mais lento
da população urbana, do aumento do desemprego no setor público e à preservação da estrutura industrial (MATTOSO,
1996, p. 42).
24
GRAMSCI, Antonio. Obras escolhidas. São Paulo: Mar tins Fontes, 1978.
23
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Parti da hipótese de que, diante da complexidade e das fragilidades que envolvem
o coletivo operário na atualidade, esse coletivo manifesta sua ótica sobre as conseqüências
das metamorfoses do mundo do trabalho para o seu cotidiano, principalmente porque
é diretamente por elas atingido e ameaçado, sem estabelecer uma relação causa/efeito,
levando-o, conseqüentemente, a incorporar de maneira significativa a ideologia dominante
e expressar formas de consciência limitadas. Entretanto, entendo que tais limitações não
são manifestações de expressões prevalentemente alienadas de consciência, mas de sua
contraditoriedade, a partir da qual é possível apreender, à luz do núcleo do senso comum,
germes potencializadores organizativos.
Para tanto, as categorias centrais de análise são: a crise, o trabalho e a organização
política.
Ainda que se reconheça a extensão e diversidade do caráter teórico25 da crise,
que sugere a priori uma complexidade quanto às suas construções conceituais, entendo
que a prioridade à compreensão histórico-crítica da crise atual do capital é condição sine
qua non para o desvelamento de seus impactos sociopolíticos na sociedade capitalista
contemporânea, uma vez que é no interior dessa tessitura de crise econômica, política e
social que os homens vêm elaborando reflexões, respondendo a indagações, posicionandose diante de novas determinações, consolidando/questionando concepções e objetivando
ações.
À luz desse entendimento, parto do princípio de que o discernimento crítico
acerca do significado da crise do capitalismo atual vem ratificar a concepção de que a
série de reparos temporários26 empreendidos na sociedade contemporânea – apresentados
sob formas estratégicas inovadoras e definitivas de gerir as crises capitalistas instauradas –
não implica na perenização do capitalismo, na aceitação da tese do fim da História27
25
26
27
Na história das ciências sociais, o tratamento teórico sobre a crise tem assumido contornos quantitativos e qualitativos
distintos. A título de ilustração, Nascimento destaca, por sua importância, autores e correntes de pensamento onde a
concepção de crise é abordada de formas diferenciadas, a saber: Durkheim e os funcionalistas, Marx, Gramsci, os marxistas
franceses, a escola alemã da derivação, Weber, Keynes, a escola francesa de regulação, a corrente monetarista da economia,
a escola de Frankfurt, Habermas, Bourdieu, Dahrendorf, Moore, Hobsbawm, Dobry, Chazel, Boudon, O’Donnel, Portantiero,
Torres-Rivas, dentre outros. Cf. Nascimento, op. cit.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992. p. 177.
Segundo Fernandes (1995, p. 58), na tese do fim da História, que adquiriu instantânea notoriedade já no início da década
de 90, predomina a noção de que “a humanidade havia chegado a um estágio que tornava impossível qualquer perspectiva
viável de desenvolvimento fora dos contornos do liberalismo político e econômico. Havia que se conformar com isso e
aceitar todas as suas conseqüências. Estas perspectivas apontavam para a emergência no mundo de uma nova ‘paz
perpétua’ de tipo kantiano. A ação norte-americana seria a ponta de lança de um projeto universal, baseado na razão, capaz
de garantir paz e prosperidade para todos os povos do mundo”.
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Impactos da reestr utur ação
produtiva nas expressões de...
nem, tão pouco, no entendimento de que se vive uma etérea e nova ordem,28 ainda
que seja inegável a implementação de um conjunto de medidas e inovações de
dimensões globalizantes em prol do grande capital.
Inova-se, sim, mas para potencializar uma estrutura socioeconômica em
prol das mesmas forças que arbitram o trabalho assalariado, a troca de mercadorias,
a acumulação do capital e a extração da mais-valia; inova-se, sim, mas para garantir
que os frutos do produto gerado socialmente continuem açambarcados de forma
privada; inova-se, porque, como afirma Marx, a burguesia só pode existir se renovar
permanentemente as forças produtivas, 29 inova-se, sem dúvida, porque se trata de
uma regra de sobrevivência do modo de produção capitalista: “inovar ou morrer”.
Durante as crises, o capitalismo busca a forma que lhe possibilita produzir
sempre e novamente as condições que permitem a continuidade de sua existência,
através de novas maneiras de administrar as contradições emergentes, ou seja, “a
crise como fase de destruição (desvalorização, aniquilamento) é, em virtude de seu
poder reestruturador, condição para o desenvolvimento do capitalismo”. 30 Isso
significa que nos momentos de crise, não há somente o fim de uma fase do
desenvolvimento, em função do aguçamento das contradições, mas,
concomitantemente, instaura-se uma nova fase de desenvolvimento por conseqüência
da regulação dos elementos contraditórios em processo.
Do ponto de vista histórico-crítico, as concepções de “trabalho e organização”
devem sempre ser compreendidas à luz do histórico processo de formação da
consciência humana, que sempre esteve e está umbilicalmente vinculada às experiências
cotidianas dos homens, no locus do trabalho e fora dele, às suas formas de inserção
nas relações sociais, econômicas, políticas e culturais, enfim, ao complexo de complexos
constituintes da totalidade concreta, 31 onde os homens apreendem e/ou desenvolvem
um conjunto de concepções que dão sustentação e direção às suas ações.
Ver: FERNANDES, Ana Elizabeth Simões da Mota. Cultura da crise e da seguridade social: um estudo sobre as tendências
da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, especialmente os cap. I e II; também
HARVEY, op. cit., parte II, 1995, p. 117-184.
29
KARL, M.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Global Editora, 1987. p. 79.
30
Idem, p. 87.
31
“O próprio da estrutura do ser social é o seu caráter de totalidade: não um ‘todo’ ou um ‘organismo’, que integra
funcionalmente partes que se complementam, mas um sistema histórico-concreto de relações entre totalidades que se
estruturam segundo o seu grau de complexidade” (NETTO, 1994, p. 37-38.)
28
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De acordo com Netto, embora o processo de trabalho marxiano seja uma
objetivação ontológico-social primária e ineliminável, comporta outras objetivações
e delas se realimenta. Neste sentido, “Marx não reduz as objetivações ao trabalho e,
menos ainda, não deriva dele as objetivações sociais. O mencionado processo de
socialização da sociedade consiste, exatamente, em fazendo recuar as ‘barreiras naturais’
(mas jamais as eliminando), na atualização das crescentes possibilidades de novas
objetivações. É o processo que, para Marx, configura a essência humana do ser
social, explicitação dinâmica e movente de uma estrutura histórica de possibilidades:
a objetivação, a socialização, a universalização, a consciência e a liberdade”. 32
Para Marx, a objetivação é positiva quando materializa a expressão da vida
genérica, traduz a essência humana e possibilita ao sujeito reconhecer-se como autor
e criador dessas objetivações. Entretanto, nas condições engendradas nas sociedades
capitalistas, o trabalho humano não é a objetivação pela qual o ser genérico se realiza;
mas, pelo contrário, é uma objetivação negativa, que o destrói, que o aniquila. Tratase da distinção feita por Marx entre duas modalidades de atividade prática do ser
genérico consciente: “[...] a atividade prática positiva, que é a manifestação de vida
(Lebenstausserung) e a atividade prática negativa, que é a alienação de vida
(Lebenstausserung); [...] a objetivação é a forma necessária do ser genérico no mundo
– enquanto ser prático e social, o homem só se mantém como tal pelas suas
objetivações, pelo conjunto de suas ações, pela sua atividade prática, enfim; já alienação
é uma forma específica e condicionada de objetivação”. 33
A atividade material está diretamente vinculada à atividade material e coletiva
dos homens, sendo impossível concebê-la isoladamente em cada homem no conjunto
das relações sociais. Fruto de um movimento contraditório e complexo de sujeitos
históricos que obstinam libertar-se da opressão e dominação burguesas, tanto quanto
possível, a consciência de classe implica uma ruptura crucial – a ruptura da alienação.
Tal ruptura exige a superação de uma atitude contemplativa, imediata, superficial e
fragmentada. Enquanto processo histórico-social, tal superação não é um ato
individual, mas fruto de um movimento histórico de homens que buscam
conscientemente realizar-se como seres humanos, através do conjunto das
32
33
NETTO, op. cit., p. 36.
NETTO, J. P. Capitalismo e Reificação. São Paulo: Editora Ciências Humanas, 1981. p. 56.
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Impactos da reestr utur ação
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objetivações, tanto ideais quanto materiais, que constitui a práxis humana, crítica e
revolucionária no pensamento de Marx. Assim, a impulsão e estruturação da
consciência de classe dão-se no processo de embate que se desenvolve no interior
do conjunto complexo e contraditório da sociedade burguesa, através da práxis
revolucionária, onde o trabalho é a categoria fundante do ser social. É através da
organização e dos atos dos operários revolucionários que a teoria revolucionária
materializa-se.
De acordo com Lênin, a perspectiva marxiana de revolução pressupõe a
organização do proletariado em classe, e, portanto, em partido político34 que encarna
os interesses gerais, reais e históricos da classe proletária em seu conjunto, assim
como o futuro do movimento. Não se trata, portanto, de elucubrações ou engenhosas
fantasias. “As teses históricas comunistas não se baseiam de modo algum em idéias e
princípios inventados ou descobertos por tal ou qual reformador do mundo”. Na
realidade, as mesmas “São apenas a expressão geral das condições reais de uma luta
de classes existente, de um movimento histórico que se desenvolve sob os nossos
olhos”. 35
Portanto, a política é uma atividade prática na medida em que as lutas que os
grupos ou classes travam está diretamente vinculada a um certo tipo de organização
real. Nas condições da sociedade dividida em classes antagônicas, a política
compreende a luta de classes pelo poder e pela direção da sociedade em consonância
com os interesses e finalidades correspondentes: “O poder é um instrumento de
importância vital para a transformação da sociedade”. 36
Para Lênin, coexistem, no interior da classe operária, diferentes tipos de
consciência, com suas respectivas formas organizativas e práticas políticas. Isso significa
que ainda não há consciência operária em se tratando da totalidade da classe, assim
como não há dois blocos independentes, cujas constituições expressem, no primeiro
bloco, a representação da classe em si (marcado pela alienação) e, no segundo, a
representação da classe para si (caracterizada pela consciência política). O que de
Segundo Vazquez (1977, p. 176), no Manifesto do Partido Comunista encontram-se as premissas da concepção de partido
como destacamento estreitamente vinculado à sua classe: “Daí carecer de fundamento a tendência atribuir ao próprio Marx
a idéia que o proletariado como classe se basta a si mesmo – isto é, sem necessidade de um partido – para conquistar
o poder político, ou a idéia que identifica classe e partido”.
35
MARX, K. Manifesto do Partido Comunista, p. 88.
36
VAZQUEZ, op. cit., p. 201.
34
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fato pode ser identificado no interior da classe é uma heterogeneidade ideológica, a
partir da qual Lênin estabelece níveis diferenciados de consciência, fazendo distinção
“entre os setores atrasados e setores avançados, setores intermediários da classe e
operários marxistas -- revolucionários organizados em partido”. 37
Referindo-se à sua concepção de classe, Lucáks sustenta que a mesma não é
“[...] nem a soma nem a média do que pensam, sentem, etc., os indivíduos que
formam a classe, tomados um por um. E, no entanto, a ação historicamente decisiva
da classe como totalidade é determinada, em última instância, por essa consciência e
não pelo pensamento, etc. [...]”. 38 Isso significa que as questões que envolvem a
consciência de classe não podem ser abordadas de forma individualista ou tão pouco
reducionista, limitando-a aos pensamentos dos indivíduos, por mais que os mesmos
sejam evoluídos.
Ao tratar da necessidade da organização da classe subalterna e da constituição
da vontade, Gramsci sustenta que a mesma não se constitui numa vontade exterior,
imposta ou meramente teórica. Ao desenvolver a teoria da vontade coletiva,39 Gramsci
a desenvolve concebendo-a a partir da unidade teórico-prática, que vai muito mais
além do conhecimento, pois se encontra, direta e indissoluvelmente, ligada à atividade
humana, à pratica, entendida não somente como agir, mas como agir que intenciona
modificar conscientemente, transformando objetos e situações.
É com base nesse entendimento que deve ser entendido que o processo de
formação da vontade coletiva não se objetiva de forma homogênea no interior da
massa. Se Gramsci posiciona-se contrariamente ao voluntarismo soreliano (que
desprezava as condições objetivas) e contra o economicismo (que conduzia ao
determinismo da base econômica), ele também não acredita na possibilidade de
suscitar a vontade coletiva pelo alto, isto é, por uma atitude arbitrária do partido40,
37
38
39
40
WEBER, op. cit., p. 73.
LUCÁKS, p. 64-66.
GRAMSCI, 1988, p. 7.
A crítica à manipulação das massas fica ainda mais evidente quando Gramsci analisa dois exemplos de partido que parecem
fazer abstração da ação política imediata. O primeiro, é aquele constituído por uma “elite de homens de cultura, que tem a
função de dirigir sob o ponto de vista da cultura, da ideologia geral, um grande movimento de partidos afins (que são na
realidade frações de um mesmo partido orgânico)”. O segundo, almejando galvanizar as massas, “não tem outra função política
senão a de uma fidelidade genérica, de tipo militar, a um centro político visível ou invisível”. Muitas vezes, o centro visível “é
o mecanismo de comando de forças que não desejam mostrar-se em plena luz, mas agir apenas indiretamente por pessoa
interposta ou por ideologia interposta” (GRAMSCI, A.). Obras Escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 173-175).
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porque, de seu ponto de vista, esses sentimentos das massas devem ser
“purificados”, “educados”, “orientados”, mas nunca ignorados. “Essa unidade da
‘espontaneidade’ com a ‘direção consciente’ (ou seja, com a disciplina) é precisamente
a ação política real das classes subalternas, enquanto política de massa e não simples
aventura de grupos que dizem representar as massas”. 41
Se, portanto, o processo de organização e coesão de classe inicia sua
concretização a partir dos movimentos espontâneos da massa, esses devem ser
orientados e disciplinados por uma ação diretiva do partido, o que significa que os
movimentos espontâneos exigem uma ação partidária orientadora e disciplinadora,
porque, através dessa ação, essa espontaneidade vai, gradativamente, sendo
substituída por uma ação política mais consciente, uma vez que nesse processo a
vontade coletiva vai se fortalecendo e a classe subalterna, concomitantemente, vai
elaborando sua própria concepção de mundo, e a fragmentação, a dispersão e a
incoerência vão dando lugar à homogeneidade e à coerência. Assim, o processo
de organização das massas funda-se na dialética espontaneidade/direção consciente.
Neste sentido, o projeto da reforma intelectual e moral é a superação das
formas de consciência existentes, da filosofia e da visão de mundo dominantes.
Significa a possibilidade de, através de um movimento intelectual e moral – que
está intimamente vinculado aos intelectuais orgânicos, aos intelectuais coletivos e a
vontade coletiva – criar, popularizar e socializar a elaboração crítica da filosofia da
práxis e da luta política das classes subalternas, o que culminará no surgimento de
um novo homem, o homem-coletivo: “[...] todo ato histórico não pode deixar de
ser realizado pelo ‘homem-coletivo’, isto é, ele pressupõe a obtenção de uma
unidade ‘cultural-social’ pela qual uma multiplicidade de vontades desagregadas,
com fins heterogêneos, se solidificam na busca de um mesmo fim, sobre a base
de uma idêntica e comum concepção de mundo (geral e particular, atuante
transitoriamente – por meio da emoção – ou permanentemente, de modo que a
base intelectual esteja tão radicada, assimilada e vivida que possa se transformar
em paixão”. 42
41
42
GRAMSCI, In: COUTINHO, 1989, p. 106.
GRAMSCI, 1987, p. 36-37.
112
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Na perspectiva gramsciana, a reforma intelectual e moral “[...] é condição
necessária para a conquista da hegemonia nas sociedades capitalistas ‘ocidentais’”. 43
E essa hegemonia de uma classe na sociedade só existe efetivamente quando essa
classe tem a direção ideológica e o domínio político, o que implica na conquista da
sociedade e do Estado. É neste sentido que Gramsci intenciona “salientar a função
dirigente, a conquista do consenso, a ação de tipo cultural e ideal que a hegemonia
deve desempenhar”. 44
Para uma postura de contraposição à passividade, Gramsci chama atenção
para a relevância da criticidade na consciência dos homens,45 ressaltando que a ausência
da mesma pode comprometer a possibilidade da práxis revolucionária. Ao
desenvolver seu raciocínio, explicita que o homem ativo da massa desenvolve uma
atividade prática, mas sem ter uma clara consciência teórica da mesma, podendo-se
até identificar, pela própria contradição entre sua consciência e seu agir, duas
consciências teóricas: “[...] uma, implícita na sua ação, e que realmente o une a todos
os seus colaboradores na transformação prática da realidade; e outra, superficialmente
explícita ou ‘verbal’ não é inconseqüente: ela liga a um grupo social determinado,
influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou
menos intensa, que pode, inclusive, atingir um ponto no qual a contraditoriedade da
consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de
passividade moral e política”. 46
O processo investigativo
Ratifico a consideração fundamental que os eixos de investigação deste
trabalho devem estar permanentemente parametrados num contexto de medidas
de enfrentamento da crise capitalista – esta por nós entendida como contradições
COUTINHO, 1989, p. 107.
GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramci. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1978.
p. 78.
45
De acordo com Nogueira, “a chamada ‘consciência crítica’ tem seu principal atributo justamente nesse ponto. É uma
consciência sempre em ‘crise’: desafiada a se negar a si própria para permanecer em condições de captar a realidade que
muda ininterruptamente” (JORNAL da Tarde, São Paulo, 25/3/99).
46
GRAMSCI, op. cit., 1987, p. 20-21.
43
44
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inerentes ao próprio movimento ampliado de acumulação do capital – onde têm
sido concomitantemente encaminhadas, de forma estratégica, impositiva e prevalente:
a reestruturação produtiva, a desvalorização da força de trabalho e o redirecionamento
dos mecanismos de regulação estatal. Esse é o horizonte pontual em que se formam
as condições, limites e possibilidades da visão de mundo e conseqüente expressões
de consciência de todos nós, onde se destacam os sujeitos desta pesquisa – os
operadores de produção – trabalhadores do Distrito Industrial da Zona Franca de
Manaus, especificamente os inseridos nas empresas de grande porte do Pólo
Eletroeletrônico, lócus da pesquisa. 47
Para chegar às respostas e/ou reflexões acerca dos problemas de pesquisa
enunciados, percorri a trajetória metodológica a seguir detalhada: primeiramente,
procedeu-se a uma pesquisa qualitativa, 48 e, num segundo momento, implementouse uma pesquisa quantitativa. 49
Na pesquisa qualitativa, o instrumento utilizado foi a entrevista semiestruturada. Foram entrevistados 24 operadores de produção de 7 unidades das 4
empresas selecionadas. Considerando a necessidade de ampliação da base empírica
da pesquisa, procedeu-se à pesquisa quantitativa, utilizando-se um instrumento
devidamente estruturado em função do objetivo de desvelar, tendo como referência
às opções registradas no instrumento supramencionado, as múltiplas expressões de
consciência dos operadores de produção, conforme categorização construída
(consciência crítica, crítica/contraditória, contraditória/alienada e alienada),
vislumbrando-se, a partir das análises daí empreendidas em articulação com o conjunto
das análises da pesquisa qualitativa, o desvelamento dos limites e possibilidades de
embriões potencializadores da vontade coletiva.
As categorizações construídas apresentam o seguinte conteúdo:
• Consciência crítica: caracteriza-se pela capacidade do sujeito de relacionar
causa/efeito, de discernir e refletir de forma consciente e coerente acerca de sua
situação e de sua classe. Tende a atuar politicamente em movimentos organizados
em prol de melhorias, incluindo tanto a sua categoria profissional, como extrapolando
47
48
49
Refiro-me às empresas Gradiente, Sharp, Sony e Philips.
Realizada nos meses de agosto, setembro e outubro de 1998.
Realizada nos meses de dezembro de 1998 e janeiro de 1999.
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para uma visão em direção à totalidade, a classe trabalhadora. Inclina-se a expressar
um comprometimento político com sua classe. É a força impulsionadora para o
empreendimento do novo;
• Consciência crítica/contraditória: caracteriza-se por uma composição mista
de elementos de criticidade, que se fazem presentes, ainda que numa esfera pouco
aprofundada, e elementos que expressam acriticidade, ingenuidade, espontaneísmo
e visão fragmentada da realidade. O sujeito não consegue articular devidamente
causa/efeito, nem refletir de forma consciente e coerente, embora disponha de um
pequeno arsenal que o possibilita fazer reflexões isoladas, ocasionais e sem nexos
causais. Tal ausência não permite o substrato suficiente para questionamentos e
reflexões mais aprofundadas, propiciando apenas ocasionalmente envolvimento em
ações políticas reivindicatórias, mas sem nenhum vínculo de comprometimento com
ações políticas mais amplas;
• Consciência contraditória/alienada: caracteriza-se pela composição de
elementos fragmentados, incoerentes e ocasionais. Aqui, a criticidade não se manifesta
dissociada de elementos de contraditoriedade e de alienação, uma vez que a relação
causa/efeito não é realizada, ainda que de forma superficial. Há vislumbres de
consciência, embora a predominância seja muito mais de ausência de tais vislumbres,
o que oblitera e torna muito raro o envolvimento político, ainda que o mesmo se
reduza exclusivamente ao nível de reivindicações corporativistas;
• Consciência alienada: caracteriza-se pela quase total impossibilidade de
reflexão, articulação e coerência. O sujeito torna-se mero produto alimentador da
estrutura ideo-política e socioeconômica que o envolve, situando-se em estado de
inércia moral e política. Não há nenhum indício de valorização e envolvimento
políticos.
Foram aplicados precisamente 410 formulários, com o objetivo de alcançarse um retorno de 10% de um total de 3.390 operadores de produção das empresas
selecionadas. A elaboração do instrumento aplicado privilegiou um tipo de instrumento
para levantamento de percepções. Optou-se pela medição atitudinal que se baseou
na tabulação das respostas a um instrumento de medição de atitude do tipo Likert,50
50
LIKERT, R. The method of constructing an attitude de sacle. New York: Wiley, 1967.
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envolvendo a amostra atingida – 9,03% – do total de operadores de produção.
A construção do instrumento, coerentemente com os objetivos gerais e específicos
e à luz dos pressupostos teórico-metodológicos do projeto de pesquisa, teve
como centralidade doze dimensões, todas relacionadas ao cotidiano dos
operadores, onde três categorias básicas foram priorizadas (trabalho/organização
política/crise), além do tema serviço social, sendo que para cada uma das
dimensões foram elaboradas entre três e quatro asserções (negativas e positivas),51
como se segue: 52
• Importância do Trabalho
É através do trabalho que executo que posso chegar lá;
O trabalho não é dispensável para o ser humano;
Sempre atendo às exigências da empresa para garantir meu trabalho;
Não ter trabalho é o que mais me assusta hoje.
• Natureza do Trabalho
Meu trabalho faz bem ao meu corpo e a minha mente;
Não posso ter vida digna sem trabalho digno;
Utilizo reflexão e criatividade para executar o meu trabalho;
O que me importa mesmo é ter um trabalho.
• Satisfação Profissional
Não sinto orgulho do trabalho que faço;
O meu trabalho parece com os movimentos de um robô;
Um bom trabalho só depende de meu esforço em ter boa qualificação;
Meu trabalho me proporciona um bom padrão de vida.
A referência axial utilizada para esse procedimento teve como base a obra de LEMON, N. Attitudes and their measurement.
New York: Wiley, 1960.
52
Asserções foram pulverizadas ao longo do instrumento aplicado, onde também foi incluído um espaço em aberto para
considerações não direcionadas dos respondentes.
51
116
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• Importância da Política
Não participar de atividades políticas é falta de consciência;
Todo homem é por natureza um ser político;
Lutar por uma vida melhor não tem nada a ver com política;
A prática política nesse país é uma grande sujeira.
• Valorização da Organização Política
O mais certo é mesmo “cada um por si e Deus por todos”;
Minha organização política na fábrica é um risco que não vale a pena;
O sindicato é um importante instrumento de luta dos trabalhadores;
Partidos políticos são todos iguais: defendem seus próprios interesses;
• Credibilidade na Política
Ainda acredito que a união dos trabalhadores faz a sua força;
Não acho que minha participação política possa melhorar minha vida;
A política pode ser exercida com seriedade e dignidade;
• Significado da Crise
Somos nós que realmente sentimos a crise na pele: a corda sempre rompe
do lado mais fraco;
A crise seria menor se a renda do país fosse melhor distribuída;
Acho que todos estão sofrendo igualmente os efeitos da crise;
• Dimensões da Crise
A crise é econômica, social e política;
Funcionários e patrões precisam cooperar para superar a crise;
A tecnologia não é boa porque tira o nosso emprego;
A causa da crise é a globalização.
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Impactos da reestr utur ação
produtiva nas expressões de...
• Conseqüências da Crise
As empresas só demitem porque precisam ser competitivas;
Em nome da crise exigem cada vez mais da gente e dão cada vez menos;
As empresas demitem porque não querem diminuir seus lucros;
Com o desemprego que está aí, as empresas valorizam muito pouco
nosso trabalho.
Em relação a cada asserção, o respondente tinha a possibilidade de optar
dentre quatro opções: concordo plenamente, inclinado a concordar, inclinado a
discordar e discordo plenamente. Para cada uma das opções foi por mim atribuído
previamente um valor entre 1 (mínimo) e 4 (máximo) pontos. A delimitação de cada
valor foi definida de acordo com o conteúdo específico das várias dimensões e suas
respectivas asserções, tendo sempre como suporte os objetivos a serem alcançados
e os fundamentos teórico-metodológicos de sustentação do projeto de pesquisa. O
instrumento foi validado quanto ao Conteúdo, Item e Confiabilidade. 53 Em relação
aos resultados atitudinais finais, a prova estatística utilizada foi o teste não paramétrico
do X² pertinente.
Após a coleta do material e a tabulação dos dados de identificação dos
sujeitos, pude registrar um conjunto bastante variado de características em relação
aos operadores de produção: quanto à função (foram identificadas 22 diferentes
funções envolvendo os operadores de produção), quanto à escolaridade (90% dos
pesquisados eram portadores de certificado de conclusão de Ensino Médio), quanto
ao gênero (discreta predominância das mulheres, aproximadamente 58,5% contra
41,50% de homens), quanto à faixa etária (massiva concentração na faixa etária entre
25 e 30 anos – 75%) e quanto ao tempo de vínculo empregatício (67% trabalham/
estão trabalhando na empresa entre o período de um e quatro anos). Após a tabulação
total dos dados, os resultados foram graficamente representados e interpretados. 54
53
54
Os procedimentos em relação à validação de conteúdo, item e confiabilidade tiveram por base a obra de SCHMIDT, M.J.
(1975). Undestanding and using statistics. D.C. Massachusetts: Heath and Company.
Considerando a natureza e as delimitações de um paper, deu-se prioridade para a inserção somente do gráfico do
resultado final da pesquisa.
118
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Márcia Pelares Mendes Silva
Considerações finais
Uma consciência coletiva, um organismo vivo, só se forma depois
que a multiplicidade unificou-se através do atrito dos indivíduos;
não se pode dizer que o ‘silêncio’ não é multiplicidade. Uma orquestra
que ensaia cada instrumento por sua conta, dá a impressão da mais
horrível cacofonia; porém, estes ensaios são a condição para que a
orquestra viva como um instrumento só.
Antonio Gramsci
As análises oriundas do processo investigativo e suas correlações
demonstram que as teias constitutivas nas quais nos inserimos remetem-nos a um
novo ethos. Não no sentido do novo que engendra características inéditas na
constituição das bases de sustentação do modo de produção capitalista, já que
seus pilares permanecem eretos e favorecendo as condições de acumulação e
valorização do capital. Trata-se de um novo ethos, revelador, sobretudo, das novas
formas de subordinação do trabalho ao capital, fomentadas por uma cultura de
crise geradora de consentimento das classes, que, inegavelmente, tem minimizado
as potencialidades da classe trabalhadora de discernir, projetar e agir coletivamente,
atuando, influenciando e alterando as relações sociais de dominação que imperam
nas relações de classe. Sim, porque mesmo a exacerbação das adversidades
conjunturais vivenciadas não torna anacrônico o entendimento de que as classes
sociais ainda se constituem num importante “[...] foco centrípeto nas relações de
oposição e antagonismo entre as forças sócias, despertando a solidariedade coletiva
e implicando formas de organização socialmente abrangentes”55 desmonte da
resistência à exploração do trabalho e à dominação do capital, como condição de
visibilidade social e coletiva, sinalizam precisamente para uma lacuna, conforme
expressa o gráfico final da pesquisa.
55
EVANGELISTA, J. E. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. In: Questões de nossa época , n. 7. São Paulo:
Cor tez, 1992. p. 33.
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Impactos da reestr utur ação
produtiva nas expressões de...
Ainda assim, considero que tomar a atual fragilidade, opacidade e ausência
dos movimentos dos trabalhadores de forma fatalista e precipitadamente derrotista,
legitima a ideologia dominante, favorece a ampliação da lacuna e, concomitantemente,
desfavorece a possibilidade de seu desvelamento e redimensionamento. Exatamente
por isso, tais ausências precisam ser analisadas no contexto de feroz ofensiva do
capital e apreendidas como expressão da complexificação processada nas relações
sociais no mundo do capital, cuja reversão e avanço, longe de passar pela destruição
das pretensões totalizadoras, requer, compulsoriamente, a perspectiva de totalidade.
Mas, é fato que a ideologia dominante, ao mesmo tempo em que fragmenta
o ponto de vista da totalidade, pela racionalidade da organização capitalista da vida
social, parece atingi-la através dos processos de manipulação, persuasão e
disciplinamento que penetram e conformam a totalidade das relações que viabilizam
a sua reprodução, transcendendo o domínio das relações de trabalho para regular
integralmente a vida dos homens.
Neste sentido, a forma de ser e agir da classe trabalhadora parece ser
contingenciada por uma força que lhe é exterior e por um poder que, ao dissolverse e esconder-se nas contradições das relações sociais, vem ampliando o seu espaço,
aperfeiçoando a sua eficácia, ratificando uma substantividade concreta de dominação.
Como “[...] a consciência jamais pode ser outra coisa que o ser dos homens conscientes
e o ser dos homens consciente é o seu processo de vida real”, 56 os condicionamentos
estruturais e conjunturais que engendram os processos concretos de trabalho e vida
da classe trabalhadora, denotam a busca de maximizar o caráter reprodutor da
ideologia dominante, expressas nas posturas dos trabalhadores voltadas,
prioritariamente, para responder aos contornos das demandas empresariais, aos
imperativos do mercado e aos ditames da cultura da qualidade e da competitividade,
delineados pelos contornos de “colaboracionismo” e “parcerias” apregoadas pela
ideologia neoliberal.
Os trabalhadores vivem os processos de reestruturação produtiva, a
globalização e a flexibilização de suas relações de trabalho. Sentem o seu potencial
produtivo, a intensificação de sua força de trabalho, as relações de exploração que
56
MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã . São Paulo: Ed. Hucitec, 1987. p. 29.
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caracterizam o espaço fabril, a parca remuneração que não lhes permite vida com
dignidade. E, ainda, vislumbram trabalho e vida com qualidade e dignidade.
Entretanto, não conseguem dar a inteligibilidade necessária ao viver, ao sentir e ao
vislumbrar, limitando-se a acatar as novas determinações impostas, pressionados,
sobretudo, pelo fechamento de postos de trabalho, perda de espaço profissional e
altas taxas de desemprego.
Dentre as conseqüências daí advindas, prevalecem concepções carentes de
unidade crítica, o que oblitera reflexões coerentes e questionadoras, que relacionem
os nexos de causa e efeito, que ousem elaborar prospecções, projetar investidas,
lutar através de ações coletivas. O exercício político sindical e partidário que deveriam
configurar-se em formas de organização e resistência dos trabalhadores, apresentase com seu campo reduzido, sai efetividade desacreditada, sua ação questionada e
sua eficácia depreciada. As entidades classistas de organização política das classes
trabalhadoras – partidos e sindicatos – parecem desencadear um misto de decepção
e desaprovação e/ou distanciamento ou indiferença, enfatizando, concomitantemente,
a postura de distanciamento da política e a necessidade de “novas” formas de fazer
política. Ora, se a política é objetivada também através dessas entidades, que lhe dão
visibilidade e força coletiva, e se os trabalhadores, que deveriam ser a sua base,
concebem-nos com inequívocas doses de rejeição e descrédito, sobretudo quando
se trata dos partidos políticos, parece urgente e imprescindível que se reavalie e
redimensione a atuação, o significado e a importância que referidas entidades
desenvolvem e ocupam na contemporaneidade da sociedade amazonense e
manauense.
Ainda que seja possível sustentar a prevalência de um caráter restrito de
política, a possibilidade do exercício político sob bases éticas também é posta
expressivamente pelos trabalhadores. Isso significa que se, conceptualmente, as formas
clássicas de exercício político estão desacreditadas, como quer a classe dominante,
potencialmente, a política é ainda vislumbrada como possibilidade de união, resistência
e força dos trabalhadores. Entretanto, é preciso mais que sentir ou intencionar, porque
a política requer concretude. É necessário viver a prática política.
Sob o conjunto de adversidades em nível mundial, nacional e local, que tem
desestruturado os movimentos organizados dos trabalhadores, as análises revelam a
complexidade que envolve as situações que os trabalhadores e suas entidades
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produtiva nas expressões de...
enfrentam, e que ainda terão de enfrentar para não permitir que a fragilização e o
descrédito fortalecem, mais ainda, a campanha da despolitização regida pela classe
dominante. Talvez, fazendo confluir os movimentos organizados da classe
trabalhadora para um patamar que extrapole os limites do espaço fabril, em direção
a uma maior organicidade da sociedade civil.
Se as formas de expressão de consciência dos trabalhadores investigados
manifestam-se marcadas por reduzidos elementos de criticidade e fortes doses de
alienação, que denotam a expressão de uma consciência contraditória, fragmentada
e incoerente, há de considerar-se que, apesar de todos os percalços e limitações,
esses trabalhadores não foram reduzidos a corpos sem alma. Eles apresentam
momentos de “vislumbres de consciência”, que denotam a inabsorção integral e
definitiva da ideologia dominante. Se for um fato que as concepções incoerentes e
fragmentadas demarcam as expressões contraditórias de consciência dos
trabalhadores, isto, por sua vez, parece também implicar na necessidade de que as
entidades da classe trabalhadora tomem para si a responsabilidade histórica de orientar,
direcionar e disciplinar a incoerência, a fragmentação e a contraditoriedade. Os raros
germes identificados na contraditoriedade do senso comum dos trabalhadores
precisam ser potencializados e substituídos por uma concepção mais coerente,
direcionados em conexão com o exercício político imbricado num programa político
que os trabalhadores reconheçam como expressão de suas necessidades. Sem esse
direcionamento e ousadia, sem o desafio da concretude dos ensaios, ficará cada vez
mais distante a efetividade de um projeto profissional, social, econômico e político,
onde a orquestra viva como um instrumento só.
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Elenise Faria Scherer
Desemprego, trabalho precário e des-cidadanização na
Zona Franca de Manaus
Elenise Faria Scherer1
Resumo
O propósito deste artigo é trazer para o debate político e acadêmico a
questão do desemprego, do trabalho precário e da descidadanização na
Zona Franca de Manaus, tendo como referência a pesquisa realizada no
período de 1999-2000, junto aos trabalhadores egressos das indústrias
do Distrito Industrial. O resultado da pesquisa mostra que as
transformações ocorridas no processo produtivo provocaram
desemprego e os trabalhadores amazonenses desempregados foram
obrigados a engajar-se nos mais diversos tipos de trabalho precário. Mostra
ainda que essa grave questão social não é apenas local, mas deve ser
entendida como uma expressão do capitalismo contemporâneo na sua
fase mundializada.
Palavras-chave
Desemprego; trabalho precário; reestruturação da produção; exclusão
social e cidadania.
1
Professora e pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas. E-mail: [email protected]
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Desemprego, trabalho precário
e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus
Abstract
The objective of this article is to bring to the polytical and academic debate, the
questions of unemployment, precarious job and lack of citizen rights in the Manaus
Free Zone, having as a reference the research made in the years 1999-2000, on
workers fired from industries of the Industrial District. The results of the research
show that the transformations on the production process was responsible for the
unemployment, and that the unemployed workers were forced to accept many
kinds of precarious works. It shows also that this serious social problem is not a
local problem, but a local expression of the modern capitalism in his worldwide
fase.
Keywords
Unemployment; precarious work; production restructuring; social exclusion;
citizenship.
Introdução
A onda de desemprego e de trabalho precário que se expande na Zona
Franca de Manaus pode ser imputada às transformações da estrutura produtiva
deste modelo industrial e da crise econômica que assola o país desde dos primeiros
anos da década de 90. 2 Tais processos sociais devem ser compreendidos e
analisados não somente pelas similitudes intrínsecas às sociedades contemporâneas
avançadas quando o desemprego estrutural chegou a um patamar de quase 28,5
milhões de trabalhadores em 1999 segundo os dados apresentados por Pochmann
(2001, p. 86), mas, também, pela particularidade de uma estratégia capitalista
originada nos anos 60 e 70 do século 20 com vista à expansão do capital em escala
2
Cf. POCHMANN, Márcio. Mercado de Trabalho e Gestão da Mão-de-Obra na Zona Franca de Manaus. Campinas: SUFRAMA/
FECAMP/UNICAMP, 1996; NOGUEIRA, Marinez. Reestruturação Produtiva: um olhar sobre a Zona Franca de Manaus.
Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 1998 e VALLE, Maria Isabel
M. Globalização e Reestruturação Produtiva. Um estudo sobre a produção offshore em Manaus. Tese de Doutorado em
Ciências Sociais. UFRJ, 2000.
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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Elenise Faria Scherer
mundial. Nesses termos, entre tantos outros modelos de Zona Franca espalhados
no mundo capitalista, 3 a Zona Franca de Manaus constitui-se apenas uma expressão
local do capitalismo contemporâneo em sua fase mundializada, em que a lógica
das transformações globais vem sendo impulsionada pelas inovações tecnológicas
e organizacionais na esfera da produção.
A Zona Franca de Manaus é produto de inúmeras combinações sociais
pois trata-se de um modelo de produção industrial que tenciona criar maior
liberdade à expansão do capital no processo de mundialização da economia nos
marcos da nova divisão internacional do trabalho. Faz parte, portanto, dos processos
de internacionalização da produção capitalista que foram criados em face das
necessidades inerentes à lógica de um mercado mundial cada vez mais intenso desde a
origem deste modo de produção.
O Estado Nacional brasileiro adotou essa forma de enclave, segundo o
discurso oficial por razões geopolíticas com intenções de ocupar os espaços vazios e
de desenvolvimento regional. Essa versão da história que impregnou o imaginário
social, na realidade, se fundamenta por uma diversidade de tributos ofertados
pelos países-sede para impulsionar um modelo industrial que materializa uma
estratégia econômica no processo de mundialização do capital.
As normas traçadas pela Organização das Nações Unidas para o
Desenvolvimento Industrial – ONUDI exigiam que o Estado Nacional oferecesse
inúmeros tributos para estruturar o Distrito Industrial na cidade de Manaus. E,
ainda, que fosse assegurada a governabilidade, capaz de possibilitar a estabilidade
política necessária à plena atividade dos negócios, sobretudo, criando as condições
gerais da produção capitalista, em especial, uma superpopulação relativa que
atendesse às exigências médias do capital e seu exército industrial de reserva
constituída por uma leva de caboclos que migraram da zona rural amazonense, sem
nenhuma qualificação e organização política.
A Zona Franca de Manaus, em seus anos dourados (1970-1980), absorveu
um número expressivo de trabalhadores em seu parque industrial, mas deixou de
3
Segundo a Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial – ONUDI, na metade da década de 70 os
modelos de Zonas Francas já se encontravam espalhados pelos países do Terceiro Mundo.
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Desemprego, trabalho precário
e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus
fora outros tantos, que foram obrigados a inserir-se no trabalho informal.4 Isto
significa dizer que o desemprego e o trabalho precário não se constituem numa
novidade histórica assim como sua interface com a exclusão.
Entretanto, os anos 90, com o esgotamento do pacto desenvolvimentista e
com a reestruturação do capitalismo brasileiro à economia global, ocorreu uma
retração no emprego formal, bem como ampliou o desemprego e o subproletariado
no mercado de trabalho informal. A Zona Franca de Manaus, neste contexto, é
profundamente afetada, sobretudo pela política de liberação comercial para o exterior
e pelos limites de importação de insumos impostos pelo governo Collor de Mello.
Este trabalho se propõe de forma sumária5 trazer para o debate a dimensão
perversa deste modelo capitalista, num lugar da Amazônia configurado pelo
desemprego e pelo trabalho precário que afeta de forma dramática o mercado de
trabalho amazonense. A intenção é mostrar que a onda de desemprego obrigou
inúmeros trabalhadores a engajarem-se no mercado informal, reinventando novas
formas de sobrevivência e de trabalho precário, em decorrência da introdução das
novas tecnologias no chão das fábricas do Distrito Industrial. Além disso, deixa
claro, também, que a perda do contrato de trabalho, cuja materialidade é a carteira
assinada significa a perda dos direitos sociais. As manifestações dos trabalhadores
entrevistados estão presentes no trabalho nas falas de ex-operadores e ex-operadoras
das que, hoje, se encontram fora das fábricas do Distrito Industrial.
A crise mundial, as transformações no mundo do trabalho e o
fenômeno do desemprego na Zona Franca de Manaus
O capitalismo global nos anos 70 traçou por meio da ONUDI que as
estratégias de desenvolvimento do capital, conhecidas por Zonas de Livre Comércio
4
5
Há um consenso entre os pesquisadores da dificuldade em definir o mercado informal de trabalho pela sua complexidade.
Ele engloba diversas categorias de trabalhadores com inserções particulares. Neste trabalho estamos nos referindo ao
trabalho por conta própria, sem carteira assinada, autônomos, donos de pequenos negócios familiares, com ganhos baixos
e incertos. Cf. VVAA. Mapa do Trabalho Informal: Perfil socioeconômico dos trabalhadores informais na cidade de São Paulo.
São Paulo: CUT/Editora Perseu Abramo, 2000. Ver ainda: CACCIAMALI, M.C. Globalização, informalidade e mercado de
trabalho. In: Anais de XXVIII Encontro Nacional de Economia – ANPEC, Belém, 1999.
Resumo do Relatório de Pesquisa Os excluídos da produção enxuta na Zona Franca de Manaus. Manaus: Universidade do
Amazonas/CNPq, 2001, de nossa autoria.
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ou Zonas de Livre Produção, deveriam ser subsidiadas com forte protecionismo
estatal por parte dos países hospedeiros. A consolidação da Zona Franca de Manaus
teve como suporte um conjunto de benefícios fiscais e creditícios, uma enorme
infra-estrutura urbana para a criação do Distrito Industrial e, sobretudo, a mercadoria
trabalho nos termos de Polanyi (1980) composta pelas levas de caboclos (ribeirinhos,
agricultores, castanheiros, seringueiros) que migraram do mundo rural amazonense.
Estavam, pois, dadas as condições necessárias a uma nova racionalidade do capital
num lugar da Amazônia.
A modernização capitalista chega, portanto, ao espaço regional afetando
todas as esferas da vida social amazonense. Manaus deixou para trás a cidade porto
de lenha e seu velho passado extrativista. Modificam-se as relações de produção e as
forças produtivas se desenvolvem. Formam e redefinem-se novas classes sociais e
novas formas de sociabilidade configuram-se na nova dinâmica do capital na região.
Um novo proletariado urbano majoritariamente composto por trabalhadores que
migram do mundo rural dá uma outra configuração à cidade de Manaus, que se
torna a cidade para o capital. As contradições da nova ordem capitalista engendram
um caos urbano em que a riqueza e a pobreza justapõem-se numa estranha mistura
como dizia Lefebvre de caos e ordem (1999, p. 19).
A magnitude das transformações aqui ocorridas está articulada às
necessidades de expansão da economia internacional, define uma nova racionalidade
e a precedência do lucro em todos os níveis da vida social amazonense e conformam
a natureza intrinsecamente excludente do modelo industrial ZFM. As indústrias
sediadas no Distrito Industrial incorporam no seu processo produtivo um número
expressivo de trabalhadores desqualificados, jovens, dóceis, predominantemente do
sexo feminino de acordo com a exigência do processo produtivo na época. 6 Mas
deixou de fora uma população trabalhadora supérflua, não incorporada: as necessidades
médias da expansão do capital (MARX, 1975, p. 485). Os postos de trabalhos criados
não foram suficientes para incluir a demanda de trabalhadores e as conseqüências
mais visíveis foram o desemprego e o crescimento do setor informal.
6
Cf. MOURA, Edila et al. A utilização do trabalho feminino nas indústrias de Belém e Manaus. Série Seminários e Debates, n.
10, Belém, NAEA/UFPA, 1986.
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Desemprego, trabalho precário
e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus
Na década de 70 e 80, os anos dourados da ZFM, a montagem dos produtos
eletroeletrônicos absorveu um número expressivo de trabalhadores. O processo
produtivo nas indústrias do pólo eletroeletrônico7 pode ser definido pelo que se
poderia de chamar de fordismo periférico (LIPIETZ, 1996) em que grande parte
da produção era montada de forma manual e congregava um contingente
significativo de trabalhadores. Nesse tempo histórico o parque industrial da ZFM
chegou a concentrar cerca de quase 90.000 trabalhadores (SUFRAMA, 2000).
No boom da ZFM, a cidade de Manaus contava com taxas de crescimento
ocupacional nas indústrias em escala ascendente, a tal ponto que o emprego industrial
superou as taxas de crescimento do emprego no comércio e nos serviços
(NOGUEIRA, 1998, p. 96). Desse modo, a ocupação/emprego industrial foi
crescente, apesar de uma relativa queda em 1985 em decorrência da recessão da
economia brasileira nos anos 80.
Apesar da chamada década perdida brasileira, a Zona Franca de Manaus
continuou crescendo, congregando cada vez mais trabalhadores, portanto, um
novo proletariado se punha no cenário político da sociedade local. Márcio
Pochmann mostra, com bases nos dados da Superintendência da Zona Franca de
Manaus – SUFRAMA, em 1985 “não somente o emprego industrial recuperou
seu dinamismo como também deve ter aumentado sua participação relativa no
emprego total, já que nesses quatro anos cresceu cerca de 39,5%” (1996, p. 9).
Destaque-se que até 1989 o parque industrial absorvia 75.926 trabalhadores.
A reestruturação do capitalismo em escala mundial e o esgotamento do
pacto desenvolvimentista nos anos 90 forçaram uma nova re-inserção do Brasil
ao capitalismo global que já vinha sendo sinalizado nos finais do governo Sarney.
Nesse âmbito, o empresariado nacional, diante da concorrência internacional acirrada,
passa a adotar um novo paradigma produtivo no parque industrial brasileiro.
Nesse sentido, o impacto do chamado ajuste neoliberal, ou seja, o programa
de liberação comercial exterior via redução de tarifas de importação sobre as
indústrias da ZFM, tornou-se mais intenso que o impacto sofrido pela indústria
7
O maior pólo industrial entre os 22 pólos existentes no parque industrial da Zona Franca de Manaus.
130
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brasileira. De acordo com o estudo de Marinez Nogueira, a ZFM experimenta
sua crise em face da proposta do governo em reduzir a margem concedida à
região para importação de insumos e para a venda de bens finais no mercado
nacional retraído (1998, p. 110).
Para Pochmann, a política de abertura comercial implicou uma maior
exposição à concorrência dos produtos da ZFM frente aos similares importados
no mercado nacional. Somando estes fatores à recessão dos primeiros anos da
década de 90 (contração do mercado regional e nacional), pode-se vislumbrar a
crise ocorrida no início da década de 90 no pólo industrial de Manaus.
Pode-se observar que os trabalhadores inseridos no processo produtivo
totalizavam em 1989 cerca de 75.926 e, em 1990, aproximou-se de 76.798
trabalhadores. Particularmente, o pólo eletroeletrônico – o maior dos 22 pólos
existentes na ZFM, admitia no chão da fábrica, em 1989, 38.048; em 1990,
45.283. Entretanto, em 1993, no momento de sua pior crise decorrente da recessão
econômica experimentada no governo Collor de Mello, este pólo absorveu somente
18.983 trabalhadores (SUFRAMA, 2000).
A partir dos anos 90, percebe-se um decréscimo do emprego nas indústrias
do ZFM. Em 1991, o processo produtivo contava com 58.875 trabalhadores; em
1996, cinco anos após, com 48.090 e encerrou o último ano do milênio com
39.652 empregos no Distrito Industrial. Isto significa dizer que na década de 90, a
Zona Franca de Manaus excluiu do processo produtivo 37.146 trabalhadores, ou
seja, uma média de 3.740 por ano (SUFRAMA, 2000).
As informações mais recentes da Superintendência da Zona Franca de
Manaus – SUFRAMA mostram que nos dois últimos anos do final do milênio
(1999-2000) as taxas de emprego no DI, em 1999, foram de 39.652 na totalidade
das indústrias da Zona Franca de Manaus. No ano 2000 houve acréscimo na
contratação de trabalhadores, chegando a 44.519 e foram inseridos no processo
produtivo 4.867 trabalhadores. Pode-se observar, entretanto, que apesar das taxas
de emprego voltarem a crescer no último ano do século 20, elas não mais atingiram
o patamar inicial da década de 90, ou seja, com 76.798 trabalhadores no chão da
fábrica.
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Desemprego, trabalho precário
e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus
Como se sabe, o contrato mercantil no Brasil sempre foi historicamente
manco, mas a estrutura ocupacional brasileira, bem ou mal, permitiu durante
décadas a integração de amplos contingentes de uma força de trabalho pouco
ou nada qualificada. Atualmente a onda de desemprego que assola o país e sem
perspectiva de retorno ao chão da fábrica, percebe-se uma quebra na estrutura
ocupacional, interrompendo um ciclo histórico e de longa duração de mobilidade
ocupacional e social. O contrato mercantil implode, que, como sabemos, nunca
foi sólido e não se ampliou como norma de sociabilidade, num cenário marcado
pela redefinição do Estado e pelos efeitos sociais decorrentes da globalização e
da reestruturação produtiva em curso no país, enfim, pela revolução silenciosa da
era Fernando Henrique Cardoso.
Entre outras palavras, a reestruturação produtiva em curso e os arranjos
neoliberais em vigor, o efeito conjugado da crise econômica e da abertura
comercial iniciada no governo Collor vão incidir sobre a histórica base salarial,
obviamente, distante da sociedade salarial de que fala Robert Castel (2000, p.
201)8 ao descrever as dimensões societárias e políticas do chamado modo de
regulação fordista nos países desenvolvidos, especialmente a França.
Na atualidade pode-se observar que a eliminação dos postos de trabalho
seja no chão da fábrica, seja nos níveis intermediários, vem provocando
processos de exclusão de grandes contingentes de trabalhadores amazonenses
concentrados na periferia de Manaus. Além disso, as metamorfoses no chão das
fábricas no parque industrial da Zona Franca de Manaus não se restringem à
eliminação de empregos, mas dizem respeito à constituição de uma nova
concepção sobre como produzir e, por conseguinte, afetam a composição e a
qualificação da força de trabalho (VALLE, 2000, p. 231).
8
Para Castel, uma sociedade salarial é uma sociedade na qual a maioria dos sujeitos sociais recebe não somente sua renda,
mas também seu estatuto, seu reconhecimento, sua proteção social. A sociedade salarial promoveu, neste sentido, um tipo
completamente novo de segurança: uma segurança relacionada ao trabalho, e não somente à propriedade. CASTEL. As
metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 180.
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Elenise Faria Scherer
A máquina de inserção automática e o desemprego
A partir dos anos 90, as indústrias da Zona Franca de Manaus, de forma
diferenciada entre elas, passaram a adotar alguns princípios da fábrica enxuta
disseminados pelos princípios do toyotismo de produção, ou seja, produção com
menor custo de trabalho. Esse processo decorre da introdução de novas tecnologias
e modificações na organização e nas mudanças da gestão da mão-de-obra, já
analisados por Nogueira (1998) e Valle (2000). Pode-se dizer, portanto que as indústrias
da Zona Franca de Manaus experimentam uma nova era configurada pelas
“transformações no processo produtivo por meio das novas formas de acumulação
flexível, do dowsizing, da reengenharia, do lean prodution, da qualidade total”
(ANTUNES, 2000, p. 135).
As empresas do Distrito Industrial, de acordo com a análise de Nogueira
passam adotar o processo de automação nas linhas de montagem utilizando-se das
máquinas de inserção automática que foram responsáveis pela redução brusca da força
de trabalho, especialmente, às do pólo eletroeletrônico como vimos acima. A pesquisa
da referida autora mostra que “cada máquina de inserção automática elimina em
média 100 postos de trabalho com a vantagem de eliminação de erros e aumento da
produtividade” (1998, p. 126). Anteriormente, a inserção de novas tecnologias no
processo de produção de produtos eletroeletrônicos era feita manualmente pelos
montadores e montadoras em número expressivo nas linhas de montagem. Entretanto,
de acordo com as informações coletadas por Nogueira, a qualidade do produto
não atendia às exigências da competitividade internacional. Com a adoção da máquina
de inserção automática no chão da fábrica assegurou-se a rapidez e a segurança, uma
vez que esta máquina é programada para tal. Essas máquinas, segundo o estudo da
autora acima, produzem em uma hora o que antes uma linha de produção levava
em média dois dias de trabalho. Além disso, elas garantem a possibilidade de não
haver erros na inserção dos componentes (p. 106). Não se pode esquecer, todavia,
que a redução da força de trabalho no DI deve-se ainda ao processo de terceirização
das atividades de suporte da produção. Contata-se que as empresas, em geral, vêm
externalizando os serviços de transporte, segurança, restaurante. limpeza e outros
serviços.
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Desemprego, trabalho precário
e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus
No âmbito dessas transformações no processo produtivo, novas estratégias
de captura da subjetividade operária são criadas com intenções de reconstruir um
outro processo cognitivo materializado numa espécie de regimento interno que
normatiza as condutas de todos os trabalhadores envolvidos na produção. Definemse as funções, competências, habilidades e comportamentos. Essa captura da
subjetividade operária adquire materialidade nas constantes reuniões, estímulos,
prêmios em busca de motivar os trabalhadores a assumirem efetivamente a produção
com controle de qualidade. Obtêm-se, portanto, o envolvimento dos trabalhadores
por meio de várias estratégias de controle social quando são estimulados a cooperar
com a lógica da valorização do capital.
Os trabalhadores excluídos do processo produtivo e engajados atualmente
na informalidade trazem consigo as formas persuasivas e de captura de sua
subjetividade no espaço fabril. Para eles, ainda que suas demissões tenham sido
justificadas pela necessidade de redução de quadro de pessoal, percebem que o
desemprego está relacionado com a introdução de novas tecnologias, portanto, das
transformações no mundo da fábrica. Para um ex-montador, “o desemprego na
Zona Franca é devido à inserção de novas máquinas. Por exemplo, agora é uma
máquina e um só técnico faz o serviço. Antes era preciso pelo menos uns três técnicos
para fazer o que hoje ela faz sozinha” (depoimento de ex-montador, 2000).
A racionalização da produção com intenções de diminuição dos custos é
percebível pelos trabalhadores: “as máquinas aparecem de montão dentro das fábricas,
aí o que ocorre, elas vão fazendo o serviço que antes a gente fazia. Elas fazem mais
rápido, e por isso produzem mais. O dono da fábrica começa a lucrar mais rápido
e manda a gente ir embora. Uma ex-montadora acrescenta: os robôs tomaram o
nosso espaço. Nas reuniões eles diziam pra gente que robô não adoece, não reclama
e não falta” (depoimento de um ex-montadora, 2000).
Por outro lado, ex-montadores e ex-montadoras reconhecem que dificilmente
voltarão ao chão da fábrica, pois são considerados “velhos” para o capital. A idade
por volta de 26 a 30 anos (30%) e 31 a 35 (27%), não lhes permitem retornar e, além
disso, não são qualificados para a nova racionalidade do capital. Nos anos iniciais de
instalação das fábricas da Zona Franca de Manaus admitia-se um trabalhador sem
qualificação ou semiqualificado. Agora requer-se um trabalhador com um novo
perfil: jovem, polivalente, multifuncional, consciente e responsável. A idade e o nível
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de escolaridade são critérios decisivos no momento de contratação. A destreza manual
perde importância e agora é cada vez mais exigida a capacidade de raciocínio abstrato,
para operar as máquinas computadorizadas. O operário-massa do início da ZFM
moldado à esteira de montagem, tende a perder relevância nos cenários das economias
globais que vêm, desde a década de 70, procurando estabelecer um novo padrão de
produção fabril mediante à adoção de novas tecnologias e novas formas de
organização do trabalho (VALLE, 2000).
Na cidade de Manaus, ficar desempregado é de fato, um dilema complicado
para os trabalhadores amazonenses, posto que o DI é o grande empregador. Perder
o emprego nessa cidade possui para os trabalhadores uma significação muito mais
grave do que perder o emprego no Sudeste do país, onde a economia e o próprio
parque industrial podem oferecer possibilidades de recolocação dos empregados.
Talvez, por isso, os trabalhadores mais jovens, embora admitindo que com a
automação dificilmente voltarão às fábricas, peregrinam diariamente pelas largas
avenidas do Distrito Industrial em busca de emprego. Outros, raramente por opção,
ingressam no setor informal envolvendo-se nos mais diversos tipos de atividades e
de trabalho precário.
Inventando o trabalho
Anterior a década de 90, no Brasil, o número de emprego gerado com
carteira assinada era superior a 23% (1986-1990). A partir dessa década o emprego
formal decresceu cerca de 28% (1991-1998), de acordo com as informações de
Dupas (2000, p. 58). Isto supõe afirmar que nos últimos seis anos houve uma perda
de 2,2 milhões de postos de trabalho no setor formal e um crescimento recorde de
trabalhadores por conta própria que ingressaram na informalidade.
Na contemporaneidade brasileira, o setor informal da economia engloba
em torno de 12,87 milhões de pessoas que correspondem a 25% da população
trabalhadora ocupada no país, envolvidos na informalidade com rendimento médio
em alguns casos de R$ 240,00, especialmente na cidade de São Paulo. Os dados do
Programa Regional de Emprego para América Latina e Caribe – PREALC, da
OIT, mostram que os trabalhadores na informalidade – sem falar do desemprego
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Desemprego, trabalho precário
e des-cidadanização na Zona
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aberto – chegam a 7 milhões de pessoas no Brasil contra 2 milhões no início da
década.
Historicamente, o Brasil sempre conviveu com índices de desemprego e
altos índices de informalidade. Nos últimos anos, porém, não só o governo
reconheceu a gravidade do problema como culpabilizou a globalização e as
novas tecnologias bem como faz, ainda, apologia à informalidade. 9
Mesmos nos anos dourados (década de 70 e 80), como já foi visto, as
indústrias não absorveram a demanda de trabalhadores em sua trajetória. A
Zona Franca de Manaus conviveu com o desemprego e o trabalho informal
obedecendo a lógica capitalista de incorporar as necessidades médias do capital.
Entretanto, como vimos, até a década de 80, as taxas de crescimento ocupacional
nas indústrias foram em escalas ascendentes. De acordo com Pochmann, “setor
industrial não foi o mais dinâmico apenas na criação de empregos já que o valor
da produção industrial cresceu mais rapidamente que o valor das outras atividades
econômicas. A participação relativa da produção industrial do PIB do Estado
do Amazonas salta de 15,4% em 1970 para 55,5% em 1985, indicando que a
indústria não somente foi o setor mais dinâmico da economia, como também
em seu movimento dinamiza outras atividades” (1996, p. 8).
A maioria dos trabalhadores da amostra era constituído de montadores
ou montadoras nas fábricas do Distrito Industrial, sobretudo do pólo
eletroeletrônico. Atualmente, 73% estão engajados no mercado informal. Eles
possuem uma capacidade extraordinária de inventar cotidianamente o trabalho.
As mulheres desenvolvem as mais diversas atividades, tais como corte e costura,
peças íntimas femininas, fazem doces e salgados, lavam roupa para fora, vendem
dindin (espécie de um gelado), produtos da Avon, jóias, lanches, churrasquinhos,
peças de crochês e guardanapos que são vendidos nas feiras livres dos bairros.
Observa-se ainda que algumas trabalhadoras saem para trabalhar deixando as
responsabilidades domésticas com os maridos.
Os homens preferem abrir pequenos comércios em suas próprias
residências, com o dinheiro recebido das demissões. Estes são os que menos
9
Ao eliminar as diferenças que caracterizam a informalidade, o presidente da República fez este comentário: o informal não
quer dizer o pior, do ponto de vista econômico. Os dados mostram que onde a renda mais cresceu foi no setor informal.
Revista Veja, 10.9.97, p. 25.
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sofrem e reclamam, pois, bem ou mal, têm uma renda garantida cotidianamente,
portanto, estão em melhores condições se comparados aos outros que estão
inseridos diretamente na informalidade – freqüentemente montada em uma
extraordinária improvisação – para mobilizar recursos, algum ganho sempre
incerto e descontínuo no mercado informal. Outros aventuram na construção
civil, mas sem nenhuma formalidade contratual. Esses subproletários têm em
comum a precariedade e estão desprovidos das garantias de estabilidades
associadas ao padrão convencional, isto é, a carteira assinada.10 Essa é uma
característica comum em quase todos os nossos informantes: a vulnerabilidade,
a insegurança na relação de trabalho e na percepção da renda. Em síntese, não
há garantias de cobertura social. Em decorrência perdem substancialmente a sua
cidadania. Na informalidade são maiores as dificuldades para eles se constituírem
como sujeitos políticos.
Os trabalhadores engajados no setor informal, como os demais nas
principais capitais brasileiras,11 recorrem ao trabalho por conta própria, quase
sempre por falta de alternativa e raramente por opção. Além disso, caracterizamse por longas jornadas de trabalho, com ganhos incertos e variados. Em geral,
ganham em média entre 1 a 2 salários mínimos em atividades que envolvem
outros membros da família.
Ademais, o mercado informal é o desaguadouro de quase toda a força
de trabalho que sai à procura de emprego, tentando ganhar a vida de qualquer
jeito. Muitas vezes os trabalhadores desempregados desistem de procurar
emprego no setor formal por falta de condições financeiras para custear o
transporte, lanche, etc. Na informalidade caracterizam-se a um só tempo pela
insegurança e aleatoriedade, mas, por outro lado, inauguram formas alternativas
de sociabilidade. Contudo, a referência no imaginário social dos trabalhadores
da amostra, continua sendo o desejo de voltar às fábricas do DI, e, portanto,
ter o vínculo empregatício, expresso na carteira assinada, que lhes dá garantia
aos direitos trabalhistas e previdenciários, assegurados por lei.
Dados do Ministério do Trabalho mostram que, em 1999, 35 milhões de trabalhadores encontram-se sem carteira assinada
no Brasil.
11
Cf. VVAA. Mapa do Trabalho Informal: Perfil socioeconômico dos trabalhadores informais na cidade de São Paulo. São Paulo:
Editora Perseu Abramo/CUT, 2000.
10
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e des-cidadanização na Zona
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Sem emprego e privados dos direitos sociais
O contrato de trabalho cuja materialidade é a carteira assinada conforma
na tradição brasileira os requisitos de sustentação da cidadania.12 Ela define a
existência civil e os modos de sociabilidade. Além disso, ela é aceitação tácita na
sociedade brasileira como sinal de uma respeitabilidade e honestidade que redime
o trabalhador do estigma da pobreza. Sem essa representação simbólica os
trabalhadores estarão privados dos direitos sociais.
Nessa perspectiva, os trabalhadores da amostra têm ainda uma enorme
expectativa de retornarem às fábricas do DI. Apesar de reconhecerem que as
inovações tecnológicas vêm provocando o desemprego,13 eles ainda têm
esperança de voltar ao chão da fábrica. Para alguns: hoje em dia na sociedade uma
pessoa desempregada não é bem-vista. Em outras palavras, é a carteira assinada que
lhes dá segurança e dignidade.
Essa representação simbólica faz com que os trabalhadores se sintam
seguros, pelas garantias dos serviços sociais existentes dentro das grandes e médias
indústrias da Zona Franca de Manaus. Veja-se este depoimento: “Lá é bom
porque o Distrito paga bem, tem carteira assinada e tem acesso até a Unimed,
transporte. Trabalhando em outro canto, tem que pagar transporte” (LSV, 2000).
No imaginário social dos trabalhadores, nas fábricas do DI “é lugar onde se
tem mais direitos”. O desejo de retorno ocorre “por causa da estabilidade da
carteira assinada e da certeza do pagamento no final do mês” (depoimento de
uma ex-operadora, 2000).
A ausência de sistema público de proteção social eficaz obrigou aqueles
setores do capital que são reconhecidamente estratégicos para o padrão do
desenvolvimento brasileiro a criarem os welfare dentro das empresas. O welfare
empresarial, existente nas grandes e médias indústrias da Zona Franca de Manaus,
tornou-se atraente para os trabalhadores, pois o vínculo contratual implica ter
Cf. a clássica discussão feita por SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Editora Campus,
1979.
13
A crise enérgica brasileira vem afetando as indústrias da Zona Franca de Manaus. Nos últimos meses do ano foram demitidos
974 trabalhadores. Jornal Gazeta Mercantil, 26.7.2001.
12
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acesso aos serviços sociais. Talvez por isso que Castel observa: “o trabalho
permanece como referência dominante não somente economicamente como
também psicologicamente, culturalmente e simbolicamente, fato que se comprova
pela reação daqueles que não o têm” (CASTEL, 2000, p. 123).
Nesses termos a precarização é sempre identificada com a ausência de
contribuição à Previdência Social, e, portanto, sem direitos, inclusive o de
aposentadoria.14 O fato de os trabalhadores desempregados não disporem de
nenhuma garantia de renda assegurada pelo vínculo contratual, encontram-se
ainda mais vulneráveis aos efeitos deletérios do mercado. Além disso, ao
perderem o direito à sindicalização, não têm acesso às resoluções dos acordos
coletivos e não podem ingressar no sistema de seguro-desemprego.
Os dados do Sistema Nacional de Emprego – SINE – Regional do
Amazonas mostram que só no primeiro semestre de 1999, considerado o pior
momento da Zona Franca de Manaus, quando o desemprego atingiu seu ápice,
41.945 trabalhadores recorreram ao seguro-desemprego. Entretanto, somente
40.136 conseguiram obter esse direito.
Com a perda do vínculo formal de trabalho, os trabalhadores ficaram
impossibilitados de contribuir para a Previdência Social, haja vista que 100%
dos entrevistados afirmaram que, se esta contribuição não for feita por meio do
desconto em contracheque, o pagamento ao seguro social fica inviável. O trabalho
precário, sem ganho fixo e sem contrato, impossibilita-os de contribuir
mensalmente à Previdência Social.
Para aqueles que estão na informalidade não existem nenhum instrumento
que seja capaz de impor a contribuição ao INSS. Os nossos informantes mostram
que não têm como pagar, outros não sabem como contribuir, e os demais não
confiam na capacidade do setor público gerenciar a verba pública. Por isso a
baixa na carteira não significa somente as perdas dos direitos, mas também a da
dignidade.
14
A exclusão do sistema previdenciário, possivelmente, é o grave problema decorrente da informalidade. As chances de
aposentadoria são nulas, a não ser que isso ocorra por velhice cujo benefício gerado é de natureza assistencial e não
contributiva.
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e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus
Os sem-trabalho e sem-esperança. Somos todos inúteis?
Como se vê, a necessidade do vínculo formal garantido e materializado
pela carteira assinada é uma realidade entre os trabalhadores da amostra, pois somente
assim se sentem úteis. Para alguns o trabalho dignifica o homem. Isto significa afirmar que
é por meio da carteira assinada que lhes é garantida a cidadania. Sem ela, os nossos
informantes se sentem sem direitos de cidadãos.
Nesse sentido, a questão do desemprego é paradigmática, pois sem estatuto
de trabalhador, os sem-emprego são confundidos com a figura do pobre, do
desocupado, ou simplesmente da ociosidade e da vadiagem. Excluídos do mercado
de trabalho, para alguns suas identidades não se completam, já que estão privados
dessa espécie de acabamento simbólico que é a carteira de trabalho e que implica
nos exercícios dos direitos e na prática da representação sindical (TELLES, 1991). A
inserção no mercado formal de trabalho e, portanto, a carteira assinada é que constrói
parâmetros de semelhança, identificação e reconhecimento, se possa afirmar: somos
trabalhadores.
Os trabalhadores engajados no setor informal e que tiveram suas trajetórias
de emprego regular com registro em carteira nas indústrias da Zona Franca, as
atividades na informalidade, hoje, por mais constantes e persistentes que venham a
se tornar, não são consideradas trabalho. “Quando estou trabalhando, me sinto tão
orgulhosa, pés no chão, me sinto uma brasileira, mas desempregada, não tem para
onde correr” (depoimento de uma operadora, 2000). A carteira assinada, que assegura
e prescreve o acesso aos direitos sociais e seu direito a existir socialmente, a ser
reconhecido como cidadão, é a prova de ser um trabalhador responsável como
uma trajetória ocupacional identificável em seus registros e cumpridor de seus deveres.
Caso contrário, o trabalhador se sente: “discriminado, marginalizado, parece que a
pessoa é um vagabundo. É difícil conviver com isso” (depoimento de um exoperador, 2000).
Aqueles que são considerados velhos pelo capital, sofrem a provação da
precariedade profissional que é efetivamente mais dolorosa quando ela atinge
indivíduos no coração do trabalho, muitos deles com 30 anos de vida. Veja um
depoimento: “inútil, porque saio à procura de trabalho e não tem, e quando tem,
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não aceitam por causa da idade, então me sinto inútil. Um Zé-ninguém. Já tive a
ponto de fazer besteira, pois sem trabalho não sou ninguém, é um desespero andar
atrás de trabalho e não encontrar nada, ser sustentado pelos vizinhos” (depoimento
de um ex-operador, 2000).
Alguns desses trabalhadores entrevistados não têm mais nenhuma esperança
de sair da condição de desempregado. Essas pessoas começam a ter o sentimento
de que são inúteis à sociedade e perderam o sentido de suas vidas.
Conclusão
No início de abril do ano 2001, a Secretaria de Trabalho do Estado do
Amazonas – SETRABS, registrou a ocorrência de 9.502 demissões somente no
primeiro trimestre. Acresça, ainda, a demissão de 974 trabalhadores recentemente,
decorrentes, naquele momento, da crise enérgica que vem afetando sobremaneira a
indústria brasileira. Em outros termos, o desemprego voltou a crescer neste início
de século na Zona Franca de Manaus. 15
Neste cenário, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias
Metalúrgicas e Eletroeletrônicas afirmou que entrou máquina, sai trabalhador, é trabalhador
na rua. A despeito disso, Marx havia observado que no futuro o capitalismo iria
orientar-se para a mais-valia relativa e que o capital se utilizaria do trabalho humano
de forma intensiva, agora, com base em ciência e tecnologia que permitiria produzir
mais e melhor. Esta antevisão marxista é impressionante, pela sua atualidade
interpretativa do capitalismo contemporâneo; a mais-valia absoluta não perduraria
como estratégia básica de exploração capitalista (1975, p. 585).
Na contemporaneidade, as mutações nos processos produtivos, como
vimos, estão a indicar que a exploração capitalista ocorre com a captura da inteligência
do trabalhador, muito mais do que a sua força física. A sujeição do trabalho à lógica
15
Em face do aumento de demissões nos primeiros meses do ano, o governo do Estado mandou um projeto de lei ao
Legislativo que estabelece normas para demissão dos trabalhadores do pólo industrial de Manaus. O secretario de
Desenvolvimento Econômico argumentou que muitas empresas possuem uma massa salarial de 0,8 do seu faturamento
total, incluindo o salário e os benefícios dos empregados. Para ele, é necessário que as empresas justifiquem porque esse
índice de 0,8% do faturamento justifica as demissões. Jornal Amazonas Em Tempo. Economia. A 5, 12.7.2001.
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e des-cidadanização na Zona
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do capital ocorre num tempo histórico configurado pela intensidade do
conhecimento como condição fulcral da produtividade capitalista.
Marx já afirmara: “o capital tem, pois, o instinto imanente e a tendência
permanente de aumentar a força produtiva para diminuir o preço das mercadorias
e em conseqüência o do próprio operário” (1975, p. 586). Ao lançar mão de meios
científicos e tecnológicos para o aperfeiçoamento das condições de produtividade,
o capital impõe que a força de trabalho produza mais e melhor de acordo com a
regras da competitividade em escala planetária.
As mutações que ocorreram e estão a ocorrer no chão da fábrica, excluindo
milhares de trabalhadores do processo produtivo na Zona Franca de Manaus, são
apenas um caso singular no mundo capitalista – muito interessante de ser estudado
– das necessidades da economia global, que nas décadas de 60 e 70 do século
passado utilizaram-se da estratégia capitalista das zonas de enclaves para onde se
transportaram modos de organização da produção e circulação da mercadoria
compatíveis técnica e socialmente com a nova divisão internacional do trabalho.
A Zona Franca de Manaus, como toda a estratégia capitalista, sempre foi,
intrinsecamente, excludente. Mesmo nos seus anos dourados, nas décadas de 70 e 80,
estima-se que 48% de PEA encontravam-se na informalidade, portanto, o
desemprego, o trabalho precário e a exclusão não se constituem uma novidade
histórica na cidade de Manaus.
Entretanto, a automação e a crise na economia brasileira nos anos 90
provocaram demissões em massa e o aumento exacerbado do desemprego e do
trabalho precário. As necessidades de valorização do capital são postas de forma
explícitas pelo superintende da Zona Franca de Manaus:
O pólo industrial de Manaus está definitivamente inserido
no processo de globalização. Aos 33 anos, a Zona Franca
e a SUFRAMA orgulham-se de possuir um parque
industrial com níveis internacionais de preço e qualidade,
tão com o aumento da oferta de emprego. Mas para que
isso acontecesse, as empresas aqui instaladas enfrentaram
um período de transição doloroso, de conseqüências
severas, que exigiu sacrifícios, principalmente do
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trabalhador amazonense, que viu a oferta de emprego
cair pela metade passando de 90 mil para os atuais 45 mil
(Grifos nossos). 16
As palavras do superintendente da Zona Franca de Manaus são reveladoras.
pois (...) o movimento do capital é insaciável, diria Marx (1975, p. 316). O faturamento das
indústrias do Distrito Industrial em 1988 contabilizou US$ 5.098.581.585; em 1995
chegou em torno de US$ 11.766.561527; e em 2000 US$ 10.291.961.410. Pode-se
inferir que as indústrias cada vez mais faturam e cada vez mais absorvem menos
trabalhadores. A queda da participação dos custos com pessoal pode ser o indicador
que as indústrias da Zona Franca de Manaus estão inseridas no mercado mundial
ultracompetitivo. Como afirma o economista Rodemark Castelo Branco, esse
processo “não é uma tendência, é uma necessidade imposta pelo mercado
internacional” (A CRÍTICA, 2001).
A chamada crise da economia regional, que vem impulsionando o
desemprego no Distrito Industrial, é apenas uma expressão local de repercussão das
crises de expansão e reajuste da economia global. Nas palavras de Chesnais, “o
movimento da mundialização é excludente” (1996, p. 33-36). No novo cenário
mundial, os desempregados, subproletarizados que reconfiguram a cidade de Manaus,
dificilmente voltarão ao processo produtivo. Esses trabalhadores excluídos parecem
não ter lugar na história, pois não têm qualificação e nem idade para adequar-se ao
progresso contemporâneo. Vivendo de bico, na condição de inempregáveis, transitam
na informalidade de um lado para o outro, na incerteza e na descontinuidade. Alguns
peregrinam pelas largas avenidas do Distrito Industrial na esperança de obter um
trabalho com carteira assinada. Outros reconhecem que dificilmente voltarão ao
chão da fábrica. Esses trabalhadores estão fora do limiar da trama representativa,
não se constituem plenamente como cidadãos e não se singularizam como sujeitos
direitos. Eles se tornaram dispensáveis à modernidade brasileira e amazonense em
particular.
16
Entrevista com o superintendente da Zona Franca de Manaus, Sr. Antônio S.Melo no, Jornal “Amazonas em Tempo”.
27.2.2000.
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e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus
Referências
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Madrid: Editorial Trotta, 1999.
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crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.
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CASTELL, Robert. As metamorfoses da Questão Social. Petrópolis: Vozes, 2000.
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Desemprego, trabalho precário
e des-cidadanização na Zona
Franca de Manaus
146
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Iraildes Caldas Tor res
Impactos da reestruturação produtiva no
Amazonas – níveis de emprego e desemprego na
Zona Franca e demais setores
Iraildes Caldas Torres 1
Resumo
Este trabalho tem como propósito apresentar os níveis de emprego e
desemprego na Zona Franca de Manaus, tomando como referência os
dados secundários do Ministério do Trabalho e do DIEESE. Procura
mostrar que a reestruturação produtiva provocou índices de desemprego
e que a re-qualificação profissional não tem contribuído para a re-inserção
dos trabalhadores no processo fabril.
Palavras-chave
Emprego, desemprego, produção e inovação.
Abstract
The objective of this work is to present the employment and
unemployment levels in Manaus Free Zone, having as reference the
secondary data from the Work Ministry and DIEESE. It also discusses
1
Professora da Universidade Federal do Amazonas (PGSCA) e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
147
Impactos da reestr uturação produtiva
no Amazonas – níveis de emprego e
desemprego na Zona Franca...
that the production innovations are responsible for the unemployment levels and
that the new professional qualification of the workers hadn’t contributed to theirs
reintegration in the industry work.
Keywords
Employment, unemployment, production, innovation.
O trabalho assalariado é uma invenção do capitalismo industrial do século
18, período em que a relação salarial vai ser construída sob uma dupla face: abstrata
(valor de troca) e concreta (valor de uso). A remuneração é o reconhecimento
social e econômico do trabalho, da sua utilidade dentro de uma sociedade
eminentemente mercantil. Isto significa dizer que outros tipos de atividades, também
úteis, mas que não possuem um reconhecimento social, não se enquadram nesta
definição de trabalho. A crise por que passa o mundo do trabalho nas sociedades
modernas é, sobretudo, uma crise do trabalho assalariado e do fenômeno salarial.
De acordo com alguns autores franceses, como Freyssenet (1993), a idéia
de trabalho diz respeito ao mundo da produção ou do trabalho produtivo. Para
esse autor, a idéia de trabalho aparece associada à execução de tarefas de caráter
profissional, remuneradas, assalariadas e exercidas na esfera pública – leia-se nas
fábricas – predominantemente pelos homens.
Assim:
O mundo do trabalho que tendo sido historicamente
separado da casa, família, do local de moradia, torna-se
cada vez mais autônomo e independente das relações
sociais e das práticas políticas, religiosas, culturais e
educacionais. Um conjunto de atividades sociais antes
integradas no cotidiano da vida, comporia o mundo do
não trabalho (BLASS, 1998, p. 1).
A concepção de trabalho em Freyssenet é hegemônica e, de certa forma,
expressa bem o discurso oficial da divisão sexual do trabalho ao dissociar o mundo
da produção do mundo da reprodução e/ou o espaço público do espaço privado,
148
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Iraildes Caldas Tor res
em que o primeiro diz respeito ao trabalho exercido pelos homens e o segundo
ao não trabalho exercido pelas mulheres.
Para Freyssenet (1993), as atividades domésticas não podem ser definidas
como trabalho e sim como não trabalho, polaridade que se estabeleceu sobretudo
no interior dos movimentos sociais de mulheres e mesmo em algumas vertentes da
sociologia do trabalho.
O trabalho enquanto categoria antropológica universal possui um conteúdo
filosófico bem definido. É através dele que homens e mulheres realizam-se como
seres históricos e sociais, constituindo-se em uma atividade através da qual o ser
social modifica o mundo, a natureza, de forma consciente e voluntária, para satisfazer
suas necessidades básicas. Para Marx (1989), é através do trabalho que o ser põe em
movimento as forças de que seu corpo é dotado, para assim poder assimilar a
matéria, dando-lhe uma forma útil à vida.
O trabalho enquanto práxis possui um potencial libertador para o ser social.
Constitui-se em um fator de crescimento, através do qual o sujeito histórico produz
os meios necessários à sua existência para, assim, manter a sua dignidade.
Bouffartigue (1996) registra três aspectos que concorrem para a valoração
do trabalho: o aspecto econômico, o aspecto topológico e o aspecto simbólico. O
primeiro diz respeito ao valor das relações de trabalho como um bem mercantil que
assegura a sobrevivência do ser social. O segundo consiste no valor que o trabalho
ocupa no sistema de distribuição social e nas atividades dos grupos, enquanto que o
terceiro assenta-se nos significados sociais e no sentido pessoal atribuído ao trabalho.
Esse autor acredita que há uma crise de um tipo de trabalho que é o trabalho assalariado e esse tipo de trabalho não é e nunca foi centralidade do ser social.
Vásquez (1997) considera que o trabalho enquanto agir objetivo do ser social, que
cria a realidade humano-social, é o trabalho no sentido filosófico, que é, em sua
essência, a fonte das realizações e centralidade do ser.
Aparadas estas arestas que consideramos importantes para a compreensão
dessa conjuntura histórico-social – cuja intenção consistiu em deixar claro que não
está em causa nestas discussões o esgotamento do trabalho humano ou o “fim da
história”, como protagonizam os partidários da ética niilista do “fim do emprego”
e da sociedade do trabalho –, passaremos a apresentar as estatísticas de emprego e
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
149
Impactos da reestr uturação produtiva
no Amazonas – níveis de emprego e
desemprego na Zona Franca...
desemprego no Estado do Amazonas, a partir de dados secundários obtidos junto
aos órgãos oficiais como o Ministério do Trabalho e o DIEESE.
A reestruturação produtiva e o reordenamento das empresas remetem
para a exigência de qualificação da força de trabalho, como uma necessidade
que se coloca tangencialmente ao processo de ajuste ao mercado. No entanto,
dado que o Estado brasileiro não investiu suficientemente na formação
profissional, segue-se a lógica de exclusão produtiva de amplos setores das classes
trabalhadoras, não só porque não possuem qualificação profissional, mas também
porque não possuem escolaridade exigida.
Para Antunes (1995, p. 44), “a atual tendência dos mercados de trabalho
é reduzir o número de trabalhadores ‘centrais’ e empregar cada vez mais uma
força de trabalho que entra facilmente e é demitida sem custos.”
O impacto da reestruturação produtiva em países como o Brasil é mais
problemático. No que se refere ao aspecto da escolarização, além do Estado
não ter investido prioritariamente no setor educacional, também dificultou o
acesso ao ensino formal aos filhos dos trabalhadores, sem falar da exclusão
escolar de grandes contingentes de trabalhadores adultos. Quanto ao aspecto da
qualificação profissional, peremptoriamente, essa questão ficou ao encargo do
sistema ‘S’ (SENAI, SENAC, etc.), que por si só não pôde dar conta da grande
demanda existente.
No âmbito regional, é preciso dizer que a Zona Franca de Manaus,
autorizada a funcionar até o ano de 2023, apresenta sinais inequívocos de inflexão
no que tange à manutenção do nível de emprego para os trabalhadores
amazonenses em relação à PEA (População Economicamente Ativa) deste Estado.
O fausto da riqueza e do propalado desenvolvimento deixa uma dívida
social sem precedente para com os trabalhadores, evidenciada no quadro de
desemprego que a cada dia assume contornos assustadores, formando um
corredor de exclusão social consignado na baixa do nível de vida desta população.
A década de 90 apresenta indicadores de desemprego dos mais perversos. Os períodos de permanência do trabalhador nas empresas ficaram cada vez
mais reduzidos. As grandes empresas reduziram cargos e até operações inteiras
para evitar a sucumbência e imersão na crise.
150
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Iraildes Caldas Tor res
No caso do Amazonas, os índices de desemprego são bastante
preocupantes, conforme mostra a tabela abaixo:
Tabela 1: Nível de emprego e desemprego no Estado do Amazonas.
Ano
Desligamentos
Variação do nível de emprego
1991
90.212
- 17.349
1992
60.544
- 19.098
1993
53.145
3.967
1994
56.054
9.458
1995
73.472
2.726
1996 (jan. a jul.)
40.748
3.349
Fonte: Ministério do Trabalho/IPEA, Rio de Janeiro.
Como se vê, há uma substancial retração do nível de emprego formal no
Estado do Amazonas, incluindo sobretudo os setores da indústria que dispõem
de incrementos tecnológicos como as empresas localizadas no Distrito Industrial
de Manaus, mas que inclui, também, outros setores da economia formal com
grandes rebatimentos nos setores de serviços, da construção civil e do comércio.
Isto implica uma outra discussão presente neste debate que é a constatação
de que a reestruturação produtiva atinge, também, outros setores e postos de
trabalho. O professor Paul Singer (1998, p. 118), por exemplo, indica que “a demanda
por trabalhadores está se retraindo em setores beneficiados por inovações tecnológicas,
entre os quais se destaca a indústria, mas que inclui indubitavelmente boa parte do
terciário.”
Ao que parece, esta questão transcende os nexos da circunscrição teórica,
é atualmente uma constatação que “salta aos olhos”, conforme podemos observar
na demonstração estatística dos dados comparativos da situação dos postos de
trabalho e do nível de emprego e desemprego nos vários setores da economia do
Estado do Amazonas. Demonstraremos os dados no período de fevereiro de
1998 a janeiro de 1999, já que não nos foi possível obter os dados relativos ao ano
de 1997:
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
151
Impactos da reestr uturação produtiva
no Amazonas – níveis de emprego e
desemprego na Zona Franca...
Tabela 2: Dados comparativos da situação dos postos de trabalho no Amazonas de
Fev./ 98 a jan./ 99
Atividade econômica
Admissão
Demissão
Saldo
113
103
10
15.725
20.701
-4.976
879
351
28
4.926
6.384
-1.458
Comércio
17.073
16.387
635
Serviços
23.488
23.147
341
Administração Pública
100
96
4
Agric. Silv. Outros
668
525
143
Extrativa Mineral
Indústria de Transformação
Serv. Ind. Utilidade Pública
Construção Civil
Outras
Total
279
41
238
62.751
67.735
-4.984
Fonte: CAGED (MTb) – Lei n.º 4.923 – Sistematização: DIEESE do Pará.
Os dados sobre admissão e demissão de trabalhadores no período de fevereiro de 1998 a janeiro de 1999, na cidade de Manaus, mostram que o setor de
serviços foi, no mesmo período, o setor que majoritariamente empregou e desempregou pessoas, seguido do setor industrial e do comércio, com percentuais também constatados em todo o Estado do Amazonas.
Tabela 3: Dados comparativos da situação dos postos de trabalho em Manaus de Fev./
98 a Jan./ 99
Atividade econômica
Admissão
Demissão
Saldo
244
279
- 35
18.005
24.197
- 6.192
455
501
- 46
7.668
9.312
- 1.644
17.914
16.899
1.015
25.076
24.817
259
128
114
14
1.282
881
401
274
36
238
Extrativa Mineral
Indústria de Transformação
Serv. Ind. Utilidade Pública
Construção Civil
Comércio
Serviços
Administração Pública
Agric. Silv. Outros
Outras
Fonte: CAGED (MTb) – Lei n.º 4.923 – Sistematização: DIEESE do Pará.
152
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Iraildes Caldas Tor res
Os últimos dados relativos ao mês de abril de 1999 dão conta de que, em
todo o Estado do Amazonas, o índice de admissão de trabalhadores correspondeu
a 4.430, enquanto que o desligamento apresentou um percentual bem superior correspondente a 6.175, compondo um saldo de - 1.745 e uma variância de - 1. 09 do
nível de emprego.
A indústria é, certamente, o setor da economia que mais sofreu o impacto
da reestruturação no nível de emprego na Zona Franca de Manaus. Iniciada em
1989 com a abertura da economia a reestruturação produtiva tomou forte impulso
com a implantação do Plano Real no Brasil. As estatísticas mostram que em 1995 o
índice de demissão correspondeu a 6.247 trabalhadores. Em 1996 foi de 7.561; os
três primeiros meses de 1997 já davam sinais de inflexão com o índice de 1.941
demissões; do mesmo modo que nos dois primeiros meses de 1998 as demissões já
ostentavam um índice de 2.229 trabalhadores. Em 1999 o quadro de demissões
chegou a 5.797 e no ano de 2000 3.735 trabalhadores industriais foram demitidos,
conforme demonstração estatística seguir:
Tabela 4: Rescisão de Contrato de Trabalho do Ano de 1995.
Meses
Sexo Feminino
Sexo Masculino
Total
Janeiro
198
180
378
Fevereiro
304
197
501
Março
245
241
486
Abril
158
269
427
Maio
189
255
444
Junho
340
412
752
Julho
99
150
249
Agosto
216
284
500
Setembro
166
259
425
Outubro
177
251
428
Novembro
323
335
658
Dezembro
446
553
999
2.861
3.378
6.247
Total
Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/1996.
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
153
Impactos da reestr uturação produtiva
no Amazonas – níveis de emprego e
desemprego na Zona Franca...
Tabela 5:Rescisão de Contrato de Trabalho do Ano de 1996.
Meses
Sexo Feminino
Sexo Masculino
Total
Janeiro
279
319
598
Fevereiro
258
335
593
Março
514
467
981
Abril
343
345
688
Maio
258
335
593
Junho
199
286
485
Julho
332
428
760
Agosto
185
292
477
Setembro
206
385
591
Outubro
432
332
764
Novembro
153
250
403
Dezembro
304
324
628
3.463
4.098
7.561
Total
Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/1997.
Tabela 6: Homologação de Rescisão de Contrato de Trabalho no início de 1997.
Meses
Sexo Feminino
Sexo Masculino
Total
Janeiro
327
277
604
Fevereiro
336
338
674
Março
376
287
663
1.039
902
1.941
Total
Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/1997.
Tabela 7: Homologação de Rescisão de Contrato de Trabalho no início de 1998.
Meses
Sexo Feminino
Sexo Masculino
Total
Janeiro
807
637
1.444
Fevereiro
501
284
785
Total
1.308
921
2.229
Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/1998.
154
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Iraildes Caldas Tor res
Tabela 8: Rescisão de Contrato de Trabalho no Ano de 1999.
Sexo Masculino
3.683
Sexo Feminino
Total
5.797
2.114
Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/2000.
Tabela 9: Rescisão de Contrato de Trabalho no Ano de 2000.
Sexo Masculino
2.507
Sexo Feminino
1.228
Total
3.735
Fonte: Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos do Amazonas/2000.
Houve uma queda considerável do emprego em todo o território nacional,
enquanto que em 1993 a taxa era de 14,6% em 2001 chegou a 16,6%. Por outro
lado, houve um crescimento da informalidade que saltou de 44,4% do total de
ocupados em 1993, para 47,3% em 2001. Em apenas dois anos (1998-2000) o
número de trabalhadores sem carteira de trabalho cresceu de 23,5% para 25,5%
(PME/IBGE, 2001). Os índices de desigualdade social põem o Brasil na quarta pior
distribuição de renda do mundo, superando apenas a Suazilândia, Nicarágua e África
do Sul.
Para além da aporia emprego-desemprego, a reestruturação produtiva
introduziu mudanças nas relações de trabalho, afetando profundamente a materialidade
das classes trabalhadoras: flexibilização trabalhista; trabalho por prazo determinado;
transgressão da Convenção 158 da OIT; suspensão temporária do contrato de
trabalho dentre outros. Está em curso uma tendência que vem se configurando
numa perspectiva neo-social consignada na era do não direito, posto que promove
a desregulamentação de uma série de medidas trabalhistas conquistadas arduamente
pelo conjunto dos trabalhadores ao longo de quase dois séculos.
O desemprego, caracterizado pela ausência de relação empregatícia e/ou
pela ausência de geração de renda por parte do trabalhador, quer seja no âmbito
formal ou informal, priva-o dos meios de subsistência tornando-o um ser desprovido e vulnerável em todos os sentidos. Geralmente, a perda do emprego acarreta
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
155
Impactos da reestr uturação produtiva
no Amazonas – níveis de emprego e
desemprego na Zona Franca...
sérios problemas ao trabalhador, que vão desde os de ordem psicológica e emocional até aos problemas sociais como o alcoolismo, a perda da moradia, o submundo
da criminalidade e o suicídio.
É preciso dizer que o desenvolvimento econômico preconizado pela Zona
Franca de Manaus, sob os preceitos do grande capital deixa, hoje, ao povo
amazonense, um legado de aprofundamento da questão social, cujo preço é difícil
avaliar. A ideologia do “novo eldorado” que atraiu para a cidade de Manaus um
contingente populacional considerável, consignado numa mão-de-obra desqualificada
e barata – proveniente não só do interior do Estado do Amazonas e adjacências,
mas também de outras regiões, sobretudo do Nordeste – descarta, hoje, os filhos
desses trabalhadores, deixando um saldo de desempregados explicitado numa grande
problemática social.
O perverso nisso é que o capital não esboçou nenhuma preocupação com
a vida destes trabalhadores. Sequer dotou a cidade de infra-estrutura urbana à guisa
de organização do seu tecido social; muito menos o poder público investiu em
políticas públicas, principalmente no que diz respeito às políticas educacionais de
acesso universalizado. Nem mesmo as empresas do Distrito Industrial investiram
em qualificação profissional; ao contrário, mantiveram sempre a mão-de-obra inábil
para o mercado atual. Daí que, quando ocorre o reordenamento ou redefinição do
lugar do trabalho, é óbvio que a população não vai estar preparada, já que as forças
de mercado e o poder público não se preocuparam com esta questão.
É assim que, atualmente, a história impõe ao Estado brasileiro um “resgate”
desta dívida social, através de uma política compensatória de qualificação e
requalificação profissional financiada pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador –
FAT. Ocorre que essas medidas tardias de treinamento profissional não estão
resolvendo o problema do desemprego. De acordo com Singer (1998, p. 119), “o
aumento da qualificação não induz os capitais a ampliar a demanda por força de
trabalho, pois esta depende basicamente do crescimento dos mercados em que as
empresas vendem seus produtos.”
Em outras palavras, a qualificação profissional nesse contexto de transformações do mundo do trabalho não resolve o problema dos trabalhadores
coletivamente. Além disso, o tipo de política de qualificação profissional implementada
156
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Iraildes Caldas Tor res
pelo Ministério do Trabalho, via recursos do FAT, está longe de trazer benefícios de
emprego aos trabalhadores. Ao que parece, tem sido basicamente um engodo para
tirar o Brasil do ranking dos países que possuem uma população analfabeta e sem
qualificação para o trabalho.
Poderíamos concluir, a partir de Singer (1998, p. 120), que a “qualificação
maior interessa ao trabalhador individual para obter uma vantagem na luta por
emprego, mas só traria vantagens ao trabalhador em conjunto se fosse possível
negociar escalas de salários que remunerassem melhor os de mais qualificação, sem
reduzir o ganho dos menos qualificados.”
Com efeito, deve-se reconhecer que se hoje o trabalhador desqualificado é
excluído do processo produtivo, é porque antes ocorreu também a sua exclusão do
processo de educação formal, somada ao baixo desempenho que a qualificação
profissional teve neste país, em especial na Zona Franca de Manaus.
Deve-se notar, por fim, que mesmo se alguma empresa, como a Moto
Honda da Amazônia, tivesse desenvolvido minimamente uma política educacional
de ensino supletivo para os seus empregados, hoje, com a reestruturação produtiva,
esta empresa não se vê mais compelida a implementar essa política.
É verdade que a reestruturação produtiva fragilizou o protecionismo fiscal
das zonas francas afetando, inexoravelmente, o complexo industrial de Manaus. Isto
significa dizer que a competitividade dos mercados impulsionou o deslocamento de
muitas empresas para outras áreas mais atrativas, sob a intersecção dos blocos
econômicos que se encarregaram de efetivar proteção às empresas numa concorrência
intercapitalista. É também verdade que estxe modelo de desenvolvimento já cumpriu
o seu papel histórico no plano do grande capital, mas não nos parece convincente a
perspectiva de derrocada final da Zona Franca de Manaus, pois trata-se de um
moinho de vento que dá sustentação ao poder político local.
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158
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Izaura Rodrigues Nascimento
SUFRAMA: agência dos agentes
Izaura Rodrigues Nascimento 1
Resumo
O texto aborda a Zona Franca de Manaus – ZFM em três momentos.
Primeiramente no contexto de sua implantação, no segundo momento a
SUFRAMA é caracterizada como agência de desenvolvimento e no terceiro
momento são destacadas algumas questões que a perpassam na década
de 90.
Palavras-chave
Desenvolvimento; industrialização; planejamento.
Abstract
In this text the Free Trade Zone of Manaus is approached in three
moments. Firstly in the context of its installation, in the second moment
SUFRAMA is characterized as development agency and in the third
moment I look for to highlight some subjects that involve it in the decade
of 90.
1
Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pelo Centro de Ciências do Ambiente da
Universidade Federal do Amazonas. Técnica do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas – IPAAM.
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas.
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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SUFRAMA: agência dos agentes
Keywords
Development, industrialization, planning.
Na pesquisa que deu origem a este artigo, realizada no final da década de 90,
foram consultados livros sobre a temática, artigos e publicações de debates
organizados pelo jornal A Crítica. O critério de escolha desses materiais foi o debate
sobre o desenvolvimento regional e a ZFM, realizados por políticos, intelectuais e
técnicos da SUFRAMA. Foram utilizados também documentos do órgão, tais como
as sete Atas disponíveis com seus respectivos anexos, bem como um texto sobre a
história da SUFRAMA produzido pela Assessoria de Comunicação do órgão.
O contexto de instalação da Zona Franca de Manaus
A instalação da Zona Franca de Manaus ocorreu no contexto da “Nova
Divisão Internacional do Trabalho”. Esta nova divisão baseou-se na produção cada
vez mais padronizada, voltada para o mercado mundial. Correspondendo, conforme
aponta Freitas Pinto, a uma “nova estratégia do sistema capitalista mundial”, “...uma
tendência a concentrar a influência de determinados países sobre determinadas regiões
do mundo” (FREITAS PINTO, 1987, p. 29), concomitante a este movimento
econômico do capitalismo, observamos o embate político entre as forças capitalista
e socialista. A América Latina, desde o período pós-Segunda Guerra, como a maioria
dos países sob o regime militar, busca o desenvolvimento nacional (SANDRONI,
1994, p. 95; MANTEGA, 1990, p. 12), aliada aos Estados Unidos, um típico
representante da expansão capitalista.
As zonas francas possuem um modelo mundial definido pela ONUDI,
dentre as exigências para sua instalação encontram-se: baixos salários, controle do
Estado sobre os trabalhadores, além dessas, há, ainda, a orientação para a criação de
um órgão administrativo central e autônomo, autorizado pelo governo e situado
dentro da própria zona, para organizá-la e administrá-la (FREITAS PINTO, 1987,
p. 26).
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No Brasil, a Zona Franca de Manaus, além de ser baseada neste modelo
mundial é alicerçada na idéia de planejamento e esta está vinculada à idéia de Estado
planejador, centralizador. Conforme nos ponta Simonsen, se inicialmente o
planejamento “assumiu em realidade qualidade quase mística” no governo Kubitschek
e tornou-se condição de respeitabilidade para João Goulart, foi no período militar
que se impôs como método de racionalizar a ação governamental, a partir de um
“programa macroeconômico” (SIMONSEN, 1974, p. 47).
Podemos destacar, a partir na própria fala dos planejadores, a segunda fase
ou, talvez, a outra face do regime militar. A primeira caracteriza-se pela imposição,
pela força, do controle social e político, já na segunda o controle impõe-se como
racionalidade, implantando o que Marilena Chaui denomina como “a forma sutil de
dominação” (CHAUÍ, 1982, p. 49; CANCLINI, 1983, p. 37), que embora não sendo
no início, depois se torna elemento produtor de consenso. A administração racional
de meio transformar-se-á em fim. Sua representação pretende-se “neutra”, de
aplicação da ciência representa-se como se ela fosse.
Um conjunto de medidas governamentais vai consolidando-se nos quadros
regionais, com maior concentração na Regiões Norte e Nordeste, com as SUDENE,
SUDAM, SUFRAMA.
O quadro regional do Norte e Nordeste: as intervenções mais
significativas
Em Elegia para uma re(li)gião, Francisco de Oliveira revela-nos que o Nordeste,
anterior à SUDENE, encontrava-se num estado problemático, de estagnação
econômica, miséria. Diversas intervenções já haviam sido realizadas sem, contudo,
alterar a situação daquela região; ao contrário, acabaram por tornar-se reféns, seja do
Estado Oligárquico, caso do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas –
DNOCS, seja da indústria paulista, caso do Instituto do Açúcar e do Álcool – IAA.
Não que a SUDENE tenha alterado significativamente tal realidade, mas que aquele
quadro propiciou uma série de expectativas quanto a uma ação governamental.
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Assim, diz-nos Oliveira, os rumos da SUDENE não estavam marcados “desde
sempre e para sempre”, e sim profundamente marcados pela “tragédia” da forma
que tomaram as contradições do Nordeste, constituindo-se em ameaça à própria
burguesia nacional, por um lado e pelas expectativas de um Francisco Julião, de um
Miguel Arraes, do próprio Francisco de Oliveira, mas personagens do que indivíduos
em si, porque sintetizam expectativas de classes sociais, de categorias e do próprio
governo. Por isso é que na análise deste autor, caracterizar Miguel Arraes como
populista, à época, seria reduzir as possibilidades de compreensão do processo social
na sua dramaticidade; o populismo é a forma que as contradições tomam e não a
ausência delas.
A peculiaridade da colonização portuguesa no Brasil e, particularmente na
Amazônia, o luso-tropicalismo, já foi destacado por diversos autores, dentre os quais,
Raimundo Faoro em relação ao Brasil, Silva e Souza em relação à Amazônia. A
sociedade foi fundada com uma estrutura estamental, na qual a população nativa
sofreu profunda degradação cultural. Segundo Márcio Souza, a superestrutura da
ação portuguesa na Amazônia foi mais eficiente e impregnou-se de tal forma que
gerou uma auto-imagem negativa e, concomitantemente, uma dominação
patrimonialista.
O surgimento da elite política amazonense, por ele descrito, ocorre a partir
do colono-chefe-militar, que vai se transformando num administrador sedentário:
“[...] um estamento obediente aos interesses fiscais da Coroa e domesticado pela
complicada malha jurídica e burocrática, mais ardilosa que o cipoal da floresta virgem”
(SOUZA, 1990, p. 48). A independência do Brasil e seu tardio reconhecimento na
Amazônia, em função da distância geográfica, não deixaram de revelar, segundo o
autor, “o gosto oportunista da classe dominante, hegemonicamente portuguesa”, tal
foi a pressa de adequar-se à nova situação, o que seria corroborado com a Cabanagem.
O movimento, no qual se embatiam as Amazônias portuguesa, brasileira e
indígena, embora revelasse profundas contradições internas, teve seu trágico desfecho
com a elite, representando-se vitoriosa à custa do elemento nativo. Anos mais tarde,
o poder central reconheceria essa representação oferecendo-lhe o estatuto de Província.
Formava-se, assim, “a sociedade estamental baseada nos lances de boa vontade do
poder central e na defesa de suas prerrogativas menores” (SOUZA, 1990, p. 51).
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Assim, na Região Norte, as tentativas de “integração nacional” têm início de
forma dramática com a repressão à Cabanagem. A sociedade regional funda-se
sobre os escombros dos sonhos cabanos, solapados pelo Brasil independente (SILVA,
1996). A elite amazônica, que se aliara às forças imperiais, passariam, a partir daí, a
uma condição de subserviência, interrompida pelo surto de riqueza no período
áureo da economia gomífera, quando, conforme assinala Márcio Souza, Manaus
transformou-se numa caricatura da Europa (SOUZA, 1978, p. 98).
O autor acentua a diferença entre as elites do período colonial, do período
mercantilista e do período imperialista (ciclo da borracha), mas reconhece a
continuidade na superestrutura, nos costumes do estamento. Em 1900, Silvério Nery,
restabelecendo o poder do estamento, agora no interior da estrutura republicana,
inauguraria o caciquismo político no Amazonas. Nem a rebelião de 1924 pôde
transformar o poder político no Estado do Amazonas.
Na ideologia da borracha, a região e o ouro-negro eram indissociáveis, o
produto extrativo, dado a sua própria natureza, parecia inesgotável. A elite punha-se
uma aura, independia do Estado Nacional.
No ciclo da borracha sucederam-se duas gerações: uma do naufrágio,
conservadora, e a outra populista, voltada para as massas, representada por políticos,
como Gilberto Mestrinho e Plínio Coelho, ao mesmo tempo a vida cultural ganha
maior vigor com o Clube da Madrugada que, no entanto, não consegue mudar os
rumos da política estadual, opõe muito mais o boêmio ao burguês.
A partir das circunstâncias internas assim como dos quadros nacional e
internacional, temos uma série de políticas voltadas à ocupação e à retomada da
economia extrativa e agrícola, com os planos de colonização, plano de valorização
da borracha. A crise americana de matéria-prima, em decorrência da 2.ª Guerra
Mundial, possibilitou uma retomada do extrativismo da borracha, porém com pouca
duração.
Verificamos, assim, o quadro político e econômico que antecede a
implantação da SUDAM e, por conseguinte, da SUFRAMA. As expectativas variavam
em acordo com a proposta do deputado Francisco Pereira da Silva, que consistia na
constituição de um porto de livre comércio, com as “reivindicações populares,
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sobretudo das classes empresariais e trabalhadoras”, que em 1966 pressionaram
um reexame da e com propostas como a do governo federal: Zona Franca, após
a reformulação da primeira.
Poderíamos tomar como exemplo das expectativas as “esperanças” de
Djalma Batista. A instalação da ZFM lhe parecia a aplicação da ciência ao
desenvolvimento da Amazônia. Esta posição não pode ser tomada, no entanto,
desprovida de sua análise crítica acerca da relação entre o desenvolvimento
econômico e o desenvolvimento social, pois para Batista decifrar a “Esfinge”,
consistiria em analisá-la cientificamente, buscar compreender as suas peculiaridades
regionais. A Zona Franca de Manaus seria a intervenção governamental, por seu
alcance, mais eficaz no desencadeamento do desenvolvimento regional (Batista,
1976: 268).
Se tomarmos Márcio Souza, que publica seu livro A expressão amazonense:
do colonialismo ao neocolonialismo, na mesma época em que Djalma Batista publica O
complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento, veremos uma postura com
menor entusiasmo. A ZFM aparece como o “neocolonialismo”, no qual se teria
realizado um golpe de estado na própria elite local, pois ocuparão os cargos
subalternos, os diretivos ficando a cargo de pessoas de fora da região.
A SUFRAMA e as experiências das agências de desenvolvimento
As agências de desenvolvimento
Djalma Batista em O complexo da Amazônia: análise do processo de desenvolvimento
faz uma avaliação das agências de desenvolvimento: o BASA, nas suas três fases
(Banco da Borracha – 1942, Banco de Crédito da Amazônia – 1950 e, finalmente,
Banco da Amazônia – 1966); a SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia, e a SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento
da Amazônia. Sua leitura nos revela diversos aspectos que marcam a atuação dessas
agências na região.
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O BASA, segundo Batista, pode ser considerado como o primeiro
instrumento do processo desenvolvimentista. Sua primeira fase corresponde ao Banco
da Borracha, criado para defender a borracha, porém a Amazônia acabou
favorecendo e financiando o processo de transformação do produto nas áreas ricas
do Brasil, particularmente as indústrias do Sul, além dos desvios de recursos para
negócios imobiliários. Quando o banco passou a financiar todos os produtos, passou
também a exigir o título de propriedade, o que os pequenos e os médios proprietários
não possuíam, conseqüentemente a maior parte dos créditos passou às transações
comerciais.
Na análise sobre o BASA, criado em 1966, Batista orienta-se pela questão:
em que este banco estaria servindo a região como banco de desenvolvimento?, isto
porque, analisando os relatórios do banco, de 1971, o autor depara-se com o montante
de 47,5% dos empréstimos concedidos aos Estados fora da região amazônica, como
Piauí, Ceará, São Paulo, Rio Grande do Sul, inclusive ao Distrito Federal (BATISTA,
1976, p. 204). Aqui se revela novamente a dificuldade de apreender a função dessa
agência de desenvolvimento regional quando quase 50% dos empréstimos são
concedidos a Estados de fora da Amazônia. Quanto a isso, afirma que entre os
dados que não constam nos relatórios inclui-se a ausência de dados sobre as comissões
pagas aos diretores do BASA, pelo movimento financeiro global, incluindo as
liquidações.
Na conclusão sobre a ineficácia do BASA, o autor credita sua causa ao
sistema extrativista ao qual estava engajado.
A Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia –
SPVEA foi criada em janeiro de 1953 e instalada em junho do mesmo ano com o
objetivo de incrementar o desenvolvimento da produção extrativa, agrícola, pecuária,
mineral e industrial. Nas causas das dificuldades de sua estruturação estão, conforme
Batista: a novidade de um organismo de desenvolvimento, a necessidade de disciplinar
a aplicação das verbas, a inexistência de pessoal habilitado e a mentalidade de que
tudo deveria provir do governo.
Entre as maiores contribuições da SPVEA para a região, encontram-se o
levantamento das necessidades da região e o apoio à pesquisa histórica, ao INPA –
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Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, a realização pioneira do primeiro
curso de Planejamento Regional do Brasil em 1955. Vamos destacar aqui as
dificuldades, por terem dados importantes para a análise da agência, sua estrutura
interna. Temos: a “flutuação do cargo de superintendente, depois da primeira
administração, ao sabor dos ventos políticos, sem levar em conta que cada escolhido
tentava implantar uma nova orientação, sem que se fixasse a idéia de que o processo
de valorização teria de ser a longo prazo. A heterogeneidade da Comissão de
Planejamento era flagrante” (1976, p. 209), a criação de uma máquina burocrática
emperrada, transformação da SPVEA num superestado, com poderes maiores que
o dos governadores, em função dos recursos disponíveis, a hegemonia de técnicos
estrangeiros.
Em 27 de outubro de 1966, a SPVEA transforma-se em SUDAM, cujo
objetivo consistia em promover o desenvolvimento auto-sustentado da economia e
o bem-estar social da região amazônica (BATISTA, 1976, p. 211). Os planos da
SUDAM eram realizados por particulares, como Hidroservice, Serete e Planave. Na
avaliação sobre a SUDAM, o autor destaca principalmente os investimentos em
infra-estrutura.
As agências de desenvolvimento regional que antecederam a SUFRAMA
apresentaram percalços, contradições. Poderíamos estabelecer uma relação de
continuidade, uma tradição de constituição e/ou de configuração que tomam essas
agências? O BASA, a SPVEA – Superintendência do Plano de Valorização Econômica
da Amazônia, a SUDAM – Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia
apresentam distorções das suas finalidades. A ineficácia dessas agências, na análise de
Djalma Batista, tem sua principal causa no subdesenvolvimento histórico-social e,
por conseguinte, no subdesenvolvimento cultural, na medida em que não existem
condições para aceitação de princípios racionais na promoção do desenvolvimento,
bem como pessoas com formação científica que possam pensar racionalmente a
região (1976, p. 208). Decorridos 30 anos de SUFRAMA, não podemos mais atribuir
os problemas ao subdesenvolvimento cultural e poderíamos fazê-lo em relação às
vicissitudes do capitalismo? É patente que apenas um destes aspectos é insuficiente
para explicá-los, pois a ação decorre de uma série de combinações, e todas as tentativas
conjugam-se em esforços para apreendê-las.
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A SUFRAMA como agência de desenvolvimento
A Zona Franca de Manaus foi criada pela Lei n.º 3.173, de 6 de junho de
1957, regulamentada em 1960 a partir de alterações do projeto do deputado
Francisco Pereira da Silva, cuja proposta consistia em criar um porto franco com
a finalidade de “constituir um entreposto de mercadorias estrangeiras para
abastecimento dos países vizinhos, que fariam também, através dela, as suas
exportações” (BATISTA, 1976, p. 259). De 1957 a 1967, a Zona Franca de Manaus
correspondeu a uma área de livre comércio “similar aos demais portos livres do
mundo”, no próprio decreto é patente a inexistência de sua vinculação com o
desenvolvimento econômico regional.
Em 28 de fevereiro de 1967, pelo Decreto-Lei n.º 288, houve completa
reformulação da Zona Franca, segundo Batista, visando promover o
desenvolvimento do interior da Amazônia, dotando-a de bases concretas que
viabilizassem o desenvolvimento da região: um centro comercial, um centro
industrial e outro agropecuário (Zona Franca de Manaus: história e objetivos, 1996, p. 2).
O discurso oficial, do planejamento, centraliza a justificação da criação da Zona
Franca de Manaus em função das “desigualdades regionais”.
A SUFRAMA – Superintendência da Zona Franca de Manaus, entidade
autárquica, foi criada pelo Decreto n.º 61.244, de 28 de agosto de 1967, com uma
função bem definida de organizar e administrar a Zona Franca de Manaus, desde
a criação de uma infra-estrutura apropriada à instalação das empresas à distribuição
das cotas de importação.
Em fevereiro de 1976, Djalma Batista fazia um balanço sobre a criação
da Zona Franca de Manaus. Os números sobre a receita tributária demonstravam
a pujança do modelo, de 1968 a 1974 havia passado, em Manaus, de Cr$
1.749.678,00 para Cr$ 17.881.784,78 e no Estado de Cr$ 32.580.332,00 para Cr$
211.019.113,00. Estes dados demonstravam claramente a mudança do centro de
gravidade da economia do interior para Manaus, um aspecto positivo pela
superação da economia extrativista e negativo em relação ao êxodo rural, com o
abandono de culturas tradicionais.
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SUFRAMA: agência dos agentes
A Zona Franca de Manaus conta, atualmente (final da década de 90), com
sete incentivos. A SUFRAMA administra quatro deles: Imposto de Importação,
Imposto sobre Produtos Industrializados e o Imposto de Exportação e o quarto
incentivo, que se refere à aquisição de lotes do Distrito Industrial ao preço de R$
1,00 o metro quadrado, com 10 anos de prazo para pagamento. Muitas empresas
adquiriam os terrenos como incentivo e, posteriormente, revendiam-nos a preço de
mercado, só recentemente houve adoção de novos critérios. O quinto e o sexto
incentivos são administrados pela Superintendência do Desenvolvimento da
Amazônia: consiste na isenção total ou parcial do Imposto de Renda e acesso ao
Fundo de Investimento da Amazônia – FINAM. O sétimo incentivo é concedido
na esfera do Estado do Amazonas: refere-se à restituição total ou parcial do Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS.
Os impactos sobre o “mundo amazônico”
A ZFM adquiriu o caráter de um processo civilizatório na Manaus que
perdera seu vigor no início do século, pois imprimiu uma nova dinâmica ao Estado,
com os impactos culturais imediatos principalmente sobre a cidade de Manaus. Tais
transformações partiram do que é mais exterior à cidade: as fachadas, as residências
que se tornam lojas e vão se imbricando ao cotidiano, aos hábitos e “habitus”. São
diversas as percepções desse processo. As observações de Djalma Batista dão conta
de que: “Desde que começou a funcionar em agosto de 1967, depois de reestruturada,
a vida de Manaus se transformou radicalmente, abrindo-se uma avalanche de novas
casas comerciais e iniciando-se uma atividade econômica trepidante, de há muito
desaparecida da cidade, que se enchem de gente recém-chegada, à procura novamente
dos outrora famosos filões de ouro”, este processo passou a exigir e a forjar novos
costumes conforme Ribeiro: “A fábrica é uma escola na qual os comportamentos,
hábitos e atitudes adequados à produtividade são formados no próprio processo
de trabalho” (1987, p. 275).
Com a implantação do Distrito Industrial, veio toda uma “reestruturação”
urbana, prevista no próprio projeto da SUFRAMA, com inúmeros benefícios para
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os empresários, como a infra-estrutura para a instalação das indústrias, para o governo estadual, principalmente no que se refere ao montante do recolhimento do
ICMS, que se converteu, por outro lado, em uma “desestruturação” urbana: a
precariedade dos serviços prestados à população, a favelização mais intensa, a própria
mudança na arquitetura. Diversos trabalhos da década de 80 demonstram a
preocupação com o impacto da implantação da ZFM sobre a sociedade regional,
em particular em Manaus e regiões adjacentes.
Nesses trabalhos, a ZFM não aparece como um projeto, mas como realidade
que concorreu para o agravamento de diversos problemas sociais, tais como: moradia,
saneamento, serviços de saúde, transporte. Assim, a migração, favelização,
expropriação e a formação de proletários são analisadas como a outra face da
instalação do pólo eletroeletrônico em Manaus. Se a oferta de empregos e o aumento
da arrecadação foram conseqüências positivas para a região, por outro lado, quanto
à condição social, houve um certo tipo de degradação, pois a massa urbana aí
constituída torna-se objeto das medidas do capital e do Estado.
Se tomarmos o agravamento das condições urbanas na sua relação com a
instalação da Zona Franca de Manaus, veremos um debate interessante entre João
Pinheiro Salazar e Rosalvo Bentes. Para o segundo, o problema populacional, agravado
desde a década de 70 (com o inchaço da cidade e os seus conseqüentes agravantes),
ocorreu em função do declínio da economia gomífera e, por conseguinte, das
atividades agrícolas que faziam parte daquele sistema, esta situação teria atuado como
fator de expulsão do homem do interior. Salazar, que constrói sua tese num
contraponto a Bentes, aponta outros elementos na análise do problema da moradia:
a extinção da cidade flutuante e a Zona Franca de Manaus, que atuou como pólo de
atração, além do que apresenta a defasagem entre o declínio da economia gomífera
e o período no qual ocorre o inchamento da cidade. É interessante notar o aspecto
econômico, em ambos, apontado como o fator mais relevante na migração.
Retomando a polêmica, Marlene Ribeiro demonstra que estes aspectos não
são excludentes, mas partes de um único processo: o capitalismo no Amazonas com
sua face expropriadora e construtora de uma massa operária. O que na década de
80 aparecia como debate, nos anos 90 aparece como algo inquestionável: “Esse fato
reproduziu as condições clássicas do fenômeno, isto é, falta de condições de vida no
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campo, agindo como fator de expulsão e avanço industrial, e a concentração de
empregos e a ampliação do mercado de bens e serviços na área urbana, agindo
como fatores de atração, vinculados a uma ideologia do progresso associada ao
urbano” (COSTA, 1993, p. 20). Nos trabalhos de Salazar e Marlene Ribeiro existem,
ainda, a percepção da emergência de movimentos sociais: as invasões (como resistência
às políticas habitacionais levadas a efeitos pelos governos, marcando uma nova atitude
em face das arbitrariedades), a organização do Partido dos Trabalhadores e do
Sindicato dos Metalúrgicos. Estes movimentos marcam as contradições entre capital
e trabalho, entre Estado e sociedade civil, possíveis a partir de uma certa tomada de
consciência, viabilizadas tanto pela densidade populacional e condições precárias de
trabalho, quanto pela noção de direitos individuais, direito à propriedade privada,
ou seja, pela própria inserção nas relações capitalistas.
A autora continua a supervalorizar o fator econômico sem levar em
consideração os aspectos culturais e sua profunda influência nas migrações que
ocorrem em todo o país. A cidade como símbolo de modernidade, “uma ideologia
de progresso associada ao urbano”, com isso não queremos negar a importância do
econômico, mas tentar demonstrar que ele não está sozinho, nem exclusivamente
acompanhado da ideologia enquanto distorção do real.
Na década de 90, os dados demonstram que o quadro mudou
significativamente, mas não no sentido esperado. O impacto sobre a estrutura
demográfica é inegável. A concentração populacional pode ser demonstrada
conforme as informações do IBGE a partir dos levantamentos realizados em 1995
e 1996, segundo o qual o Amazonas possui 2.389.279 pessoas. Desse total, 1.157.357
vivem na capital e o restante nos demais 61 municípios do interior, ou seja, na capital
está concentrada 48% da população do Estado (A CRÍTICA, 11/1/98, E3). Os
serviços urbanos também continuam concentrados na cidade de Manaus.
Observa-se assim que a Zona Franca de Manaus não promoveu o
desenvolvimento regional, ou seja, não funcionou como pólo de irradiação do
desenvolvimento econômico; ao contrário: parece ter retardado as possibilidades
de desenvolver indústrias com matéria-prima regional pois “se, no âmbito estadual,
a economia é marcada pela presença predominante do setor secundário na
composição da renda (em virtude da participação do Distrito Industrial de Manaus),
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o mesmo não ocorre no interior, onde o setor primário constitui a principal fonte
de renda e onde a industrialização da capital quase não induziu as melhorias
tecnológicas, quer nas atividades agropecuárias, quer nas industriais” (COSTA, 1993,
p. 25), quanto ao distrito agropecuário, até agora não se consegue vislumbrar os
resultados.
A SUFRAMA e sua direção
A SUFRAMA como órgão administrativo acabou por constituir-se em um
poder paralelo ao poder do governo estadual, pois está vinculado diretamente ao
governo federal. Além de contar com um orçamento significativo, que para o ano
de 1995 era em torno de US$ 100 milhões, equivalentes ao orçamento da Prefeitura
de Manaus (A CRÍTICA, 9/2/95, A12). Neste sentido é fundamental resgatarmos
o artigo de Roberto Motta, com o título La Zone Franche de Manaus et le mode paria de
la production, de sua pesquisa conclui que no interior deste aparelho burocrático o
superintendente possui uma “aura imperial”. Nas palavras de Roberto Motta, é uma
das posições mais importantes no serviço público brasileiro, é nomeado pelo
presidente da República e possui uma importância concreta, equivalente ao governador
eleito. É, concretamente, quem distribui as cotas de importação.
Este poder, ao mesmo tempo em que constitui uma aura, inviabiliza a sua
manutenção, pois, conforme as observações de Motta, a mudança constante de
superintendentes deve-se às dificuldades de alocar as cotas, quando são necessárias
leituras conjunturais que passam pelas tendências ou as mudanças no mercado
internacional, dos interesses ou orientações do governo federal, das possibilidades
da Zona Franca e, acrescenta-se a esses elementos, a importância das relações entre
os superintendentes e o governo do Estado do Amazonas. Além disso, os critérios
oficiais para a distribuição das cotas não são muito claros, possibilitando diversas
interpretações e gerando, assim, condições para a centralização das decisões e
conferindo maior significado político ao cargo.
Algumas observações feitas por Clicério Vieira Nascimento Sá, atual
superintendente da Coordenação de Estudos Econômicos e Empresariais – CEE,
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acerca dos superintendentes, evidenciam este fato: Rui Lins saiu por atritos com José
Lindoso; Joaquim Igrejas Lopes se constituiu em uma medida apaziguadora; Delile
Guerra de Macedo foi contemporizador do governo federal; Jadyr Magalhães
assumiu sob a influência do governador Amazonino Mendes; Leopoldo Péres foi
indicado pelo senador Bernardo Cabral; Alfredo Nascimento: indicado por influência
do governador Amazonino Mendes; Manuel Rodrigues também sob a influência
do governador Amazonino Mendes; Mauro Costa sob a influência do senador José
Serra. Quanto à auto-imagem desta gestão, da qual faz parte, afirma que o
superintendente Mauro Costa concebe a SUFRAMA como uma agência de
promoção de investimento, e busca dar-lhe uma nova fisionomia.
As informações sobre as influências políticas na definição dos superintendentes
da ZFM podem ser corroboradas pelo processo de sucessão do superintendente
Manuel Rodrigues. Na lista de “suframáveis” publicada em fevereiro de 1995 (conf.
lista de ‘suframáveis’, tem quase dez nomes, A CRÍTICA, 9/2/95, A12), todos os
dez nomes que concorriam à sucessão de Manoel Rodrigues eram vinculados a
políticos amazonenses: “Esses nomes são apadrinhados de políticos amazonenses,
que estão estendendo seus tentáculos em busca de apoio em todas as regiões do
país”. O artigo também cita o condicionamento da viabilidade da administração,
feita pelo governador Amazonino Mendes, à nomeação de um membro de seu
grupo político. A disputa maior e mais significativa estava entre quem estava indicando,
polarizada entre Amazonino Mendes e Artur Virgílio Neto.
Conforme verificamos anteriormente neste trabalho, a implantação da Zona
Franca de Manaus foi assinalada por Márcio Souza como um golpe contra a burguesia
local que acabou ficando com os postos subalternos. Este aspecto é tratado também
por Motta, que destaca a característica geopolítica militar da criação da ZFM, processo
no qual não houve a preocupação com a oligarquia amazonense. Aponta, no entanto,
que isso não significou o fim da ampliação das redes patrimonialistas.
As disputas atuais que verificamos em relação ao cargo de superintendente
demonstram uma profunda transformação, pois se não são técnicos ou políticos
amazonenses que assumem a direção da SUFRAMA, parece haver, nas relações de
força, uma cooptação dos superintendentes. “Os novos e poderosos interesses
metamorfoseiam seus aliados, velhos ‘botos-tucuxis’ [...], novos Cabrais, tanto uma
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velha oligarquia, quanto novos funcionários do autoritarismo se arranjam com os
novos poderes...” (OLIVEIRA, 1994, p. 92). Um golpe dentro do golpe, a aparente
passividade amazonense novamente impõem-se e, na sua linguagem, nem tanto
estratégica do ponto de vista da ação racional burocrática, “vulgar” consegue imporse pela tradição e pelo carisma.
Este é um aspecto patente que pudemos verificar na leitura das atas, quando
Amazonino Mendes sobressai-se como líder, reconhecida sua “aura” no interior do
CAS, quando os governadores dos outros Estados não se opõem diretamente à
ZFM, mas o fazem à SUFRAMA, à burocracia do governo federal.
Por outro lado, quanto às relações governador/superintendente, se no interior
das reuniões do CAS verificamos um ritual de cordialidade, onde as disputas entre
suas respectivas propostas são representadas como em direção ao interesse comum,
na imprensa existe um enfrentamento mais aberto onde a pessoa do governador faz
constantes ataques aos “inimigos” da ZFM. Conforme assinala Francisco de Oliveira:
“Na retaliação pessoal opera-se a ilusão de um confronto de sujeitos; na realidade, a
retaliação individual mascara a onipotência dos processos destrutivos coletivos, que
permanece quase intocada. E a favor dos mais poderosos” (OLIVEIRA, 1994, p.
92). As próprias disputas entre Amazonas e São Paulo operam uma ilusão quanto
aos reais interesses.
Um outro elemento importante apontado por Motta refere-se aos privilégios
dos empresários, sua conclusão remete à combinação, na Zona Franca de Manaus,
de um capitalismo de pária com o despotismo hidráulico. Há, por conseguinte, um
caráter aventureiro nos investimentos, pois o atrativo da ZFM são os incentivos
fiscais. Segundo o autor, a maioria das empresas que veio para a ZFM era marginais
em relação ao capitalismo internacional. E há também uma burocracia privilegiada,
marcada pelo significado da própria SUFRAMA, como um locus de poder
burocrático.
O período ao qual se refere Motta, bem como o ponto de partida de sua
análise, parece não ter permitido a percepção da vinculação da Zona Franca de
Manaus com o capitalismo mais desenvolvido, fato que ganhou visibilidade com o
processo de globalização econômica. Silva demonstra como a referência da nação
produziu o fenômeno de refração nas análises dos militares, dos intelectuais.
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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SUFRAMA: agência dos agentes
Centrando a análise sobre a SUFRAMA como órgão burocrático a partir
da consulta das sete atas disponíveis, podemos verificar diversas divergências entre
o objetivo para o qual foi constituído seu Regimento Interno e suas ações concretas.
A SUFRAMA tem seu funcionamento orientado a partir do Planejamento
Estratégico, realizado de dois em dois anos, a partir do qual são elaboradas as
diretrizes gerais, além disso é definido um Plano de Ação anual. Sua direção está a
cargo do Conselho de Administração da SUFRAMA – CAS, que deveria reunir-se
uma vez ao mês conforme seu Regimento Interno, e de dois em dois meses
conforme orientações da direção atual; no entanto, conforme as atas consultadas,
de dezembro de 1994 a outubro de 1997, foram realizadas sete reuniões ordinárias.
Isto significa que a atribuição principal da autarquia, na prática à distribuição de
cotas de importação, permaneceu centralizada a maior parte do tempo nas decisões
do superintendente do órgão. Além do que não existem critérios definidos em
relação à distribuição das cotas, o próprio conteúdo das reuniões deixou clara a
prioridade aos projetos que tivessem maiores investimentos e, teoricamente, maior
geração de empregos. Nenhum indício de prioridade à utilização de matéria-prima
regional. Quanto a isso parece não haver muito interesse dos próprios governadoresconselheiros. Quando questionam a SUFRAMA, nas reuniões, é muito mais por
pleitearem os benefícios fiscais da ZFM e a aplicação dos recursos a fundo perdido
da SUFRAMA nos Estados do que discutir sobre a utilização da matéria-prima
regional.
A própria geração real de emprego não é fiscalizada. A reivindicação do
representante da classe trabalhadora, Wilson Paixão, na 175.ª Reunião Ordinária
realizada em março de 1997, torna patente este fato: “Ano passado, durante as três
reuniões realizadas do Conselho, nós aprovamos mais de 70 projetos tanto de
ampliação quanto de instalação, gerando em torno de aproximadamente 12 a 13
mil empregos. Até hoje estes empregos não apareceram. Onde estão esses
empregos?”
Outra questão que apareceu com as leituras das atas, e que está presente em
todos os debates, foi a seguinte: a SUFRAMA é uma agência de desenvolvimento?
Neste sentido, a 174.ª (de 6/12/96) Reunião foi esclarecedora, pois demonstra a
dramática desigualdade de tratamento dos diversos Estados da Amazônia Ocidental,
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Izaura Rodrigues Nascimento
quando nas palavras de Osmir Lima, deputado estadual do Acre, a SUDAM beneficia somente o Pará, e a SUFRAMA restringe seus benefícios ao Amazonas. Para
termos uma idéia deste fato é interessante observarmos alguns dados sobre aplicação de recursos em 1997. Os R$ 77,8 milhões dos convênios da SUFRAMA com
os governos estaduais foram assim distribuídos: 45,2 milhões para o Amazonas,
18,4 milhões para Rondônia, 11,1 milhões para Roraima, 1,1 milhão para o Amapá
e 687,8 mil para o Acre (A Crítica, 11/1/98, E7).
Este montante corresponde a apenas 40% dos recursos da SUFRAMA a
título de fundo perdido, pois conforme a decisão do CAS, na 176.ª Reunião Ordinária
de 1.º/8/97, 60% deveria ser rateado igualmente entre os Estados, ou seja, cerca de
R$ 116,7 milhões, cabendo cerca de R$ 23,34 milhões para cada Estado. Os recursos
destinados ao Estado do Amazonas podem ser acrescidos do ICMS arrecadado.
Segundo os Indicadores Industriais da SUFRAMA a arrecadação foi de,
aproximadamente, em 1995, US$ 203.533.549; em 1996, US$ 247.199.639 e, em
1997, até o mês de junho, US$ 100.957.492.
Ressalte-se que a distribuição dos recursos à qual nos referimos anteriormente
foi realizada a partir de critérios definidos pelo CAS. Antes de agosto de 1997,
portanto, esta decisão dependia exclusivamente do superintendente.
A SUFRAMA tanto não cumpriu sua função que os governadores
freqüentemente criticam as reuniões do CAS, que se restringem à aprovação de
projetos para a Zona Franca de Manaus e propõem a transformação da SUFRAMA,
se não a sua substituição, por uma agência de desenvolvimento da Amazônia
Ocidental. Isto, porém, não ocorreu somente neste órgão, pois o BASA e a SUDAM
também estão sendo postos em questionamento e buscando, tal como a SUFRAMA,
resgatar sua credibilidade a partir de uma reestruturação desses órgãos por meio de
maior contato com os Estados, definição de critérios para aplicação de recursos,
bem como da imagem dos seus dirigentes enquanto técnicos. O discurso do Sr.
Artur Tourinho – superintendente da SUDAM, representa esta tendência: “Não
tenho nenhuma vinculação a nenhum partido político, eu faço política ocupando
com muita honestidade, com muita seriedade, muita transparência e muita vontade
de trabalhar...” e “reunião de trabalho é discurso técnico, é discutir as necessidades
do Estado” (174.ª Reunião Ordinária, anexo VIII).
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175
SUFRAMA: agência dos agentes
O debate sobre as agências de desenvolvimento mostra um outro lado, ao
qual já nos referimos anteriormente. Há um despreparo, uma ausência de assessoria
dos órgãos (com conivente beneficiamento de alguns) ou um desinteresse por recursos
para projetos agropecuários e que utilizem recursos regionais. O discurso de Flora
Valladares, do BASA, demonstra que nem com critérios para distribuição de recursos
é garantida a participação dos Estados menores. Em 1996, por exemplo, apesar de
os recursos estarem disponíveis, não houve apresentação de projetos.
As reivindicações de atenção, por parte da SUFRAMA, para com os Estados
de Roraima, Rondônia e Acre aparecem em todas as reuniões, chegando a
posicionamentos extremos, como do governador do Estado de Rondônia, Waldir
Raupp, quando decide pedir vistas de todos os processos da 175.ª Reunião Ordinária
em função da divergência quanto aos critérios de distribuição dos recursos financeiros
da SUFRAMA entre os Estados.
A gestão atual da SUFRAMA representa-se como reestruturadora do órgão,
uma gestão técnica, contrapondondo-se a gestões políticas que a antecederam,
propõe-se a resgatar a imagem do órgão. “A SUFRAMA foi um feudo da
Administração Estadual até a gestão passada”, segundo Aristides Oliveira Júnior,
integrante da Coordenação de Estudos Econômicos e Empresariais – CEE,
referindo-se à recomposição do CAS e atualização do Plano Estratégico realizados
em 1996.
A crise e suas possibilidades
Desde sua implantação, a ZFM passou por diversas fases. No final dos anos
60 e na década de 70, foi favorecida em função da exclusividade em relação aos
produtos importados, detinha o monopólio desses produtos no Brasil. Um quadro
diferente delineia-se no final dos anos 70 e 80, com a liberação das viagens ao
exterior e quando, com as pressões da indústria nacional, começam as ameaças de
contingenciamento, o que não é de todo inesperado em função do próprio modelo
pensado enquanto substituição de importações. O contingenciamento num momento
de crise econômica, se por um lado possibilita o surgimento de médias e pequenas
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Izaura Rodrigues Nascimento
empresas de componentes, por outro torna esses produtos mais caros. Também
nessa década começam as exigências de crescentes índices de nacionalização dos
produtos. Com a abertura econômica em 90, as empresas perdem as condições de
competitividade em função dos custos, há a necessidade de adequação à Nova
Política Industrial e de Comércio Exterior – PICE. O PICE foi implantado com o
fim de estimular a produtividade e a qualidade e proporcionar maior competitividade
à indústria nacional em níveis interno e externo.
No ano de 1997 ocorreram três grandes crises: as pressões para a saída do
superintendente Mauro Costa, o pacote do governo federal que cortou em 25% os
incentivos fiscais, além da comissão de investigação da maquiagem de produtos na
ZFM. Com a pressão política sobre o pacote fiscal, o governo federal retrocedeu.
Um dos fortes argumentos utilizados foram acerca dos tributos federais recolhidos
no Norte. Segundo a Delegacia da Receita Federal, de janeiro a novembro de 1997,
do montante arrecadado no Norte, 54,97% foram recolhidos no Estado do
Amazonas, os 45,03% restantes nos outros Estados da região (A CRÍTICA, 28/12/
97, E3).
Podemos dizer que desde a sua criação, a ZFM esteve em crise. No seu
projeto, os desencantamentos; na sua direção, os embates entre o governo estadual e
o poder dos superintendentes; nos seus desdobramentos, a frustração do distrito
agropecuário sem resultados concretos; do distrito industrial sem valorizar a matériaprima regional e conseguir dinamizar a economia do Estado e da Amazônia
Ocidental; e no momento atual quando se consegue visualizar a globalização
econômica, na qual, conforme aponta Silva, a Zona Franca de Manaus pode ser
considerada, desde o início, como um “espaço global”, há a possibilidade de afugentar
esta economia global (SILVA, 1997, p. 45).
A também crise constante entre os rumos do capitalismo e os interesses
nacionais, embora possamos analisá-la como uma contradição aparente, bem serve
aos propósitos político-partidários e ainda apresenta-se como um argumento eficiente
na guerra fiscal.
A grande questão de fundo, contudo, contra a qual todos se embatem é a
seguinte: Por que a ZFM não conseguiu tornar-se uma zona franca do tipo superior,
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SUFRAMA: agência dos agentes
o qual “...goza de total autonomia até o nível de renúncia da determinação da sua
política econômica nacional?” (NICÁCIO apud SILVA, 1997, p. 42). Ou por que
não conseguiu desencadear um processo de desenvolvimento regional vinculado a
um projeto nacional?
A resposta a ambas não é una, a não ser que possamos afirmar que não
ocorreu nem uma coisa nem outra em função das contradições sociais, de forma
genérica, que resultou num desfecho inesperado, embora nem de todo imprevisível
conforme destaca Silva acerca da análise de Freitas Pinto. Temos, então, mais uma
“tragédia”, cuja causa pode ter sido “o protecionismo sob a forma de nacionalismo”,
ou a ausência de um projeto de desenvolvimento nacional, ou ambos. Seus avanços
e recuos nas relações de força concretas das quais temos pouco mais que os desfechos
ou as projeções racionais das ações.
Os rumos da Zona Franca de Manaus estão entre uma reestruturação do
modelo, o que é lugar-comum, e a possível perda dos incentivos fiscais em 2013.
Quanto à reestruturação, o próprio governo federal está operando adequações com
maior controle sobre as empresas, da qual faz parte a adoção de novos critérios
para a aprovação dos projetos (LEI n.º 9.532); a reestruturação da SUFRAMA é
defendida pelo superintendente da autarquia, cujo representante aponta contradições
entre a proposta do próprio governo federal e a posterior Medida Provisória n.º
1.602 e a Lei n.º 9.532. Há também a controvertida proposta do senador Jefferson
Péres, cujo objetivo consiste em “transformar a Zona Franca num efetivo instrumento
de desenvolvimento econômico”; segundo ele, “trinta anos de Zona Franca já
provaram, à exaustão, que o modelo é eficiente na atração de investimentos e na
geração de renda, mas concentrador nos sentidos espacial e social, em benefícios
apenas de Manaus e de alguns extratos da população. Não se irradia para o interior
nem distribui renda” (A CRÍTICA, 28/12/97), sua intenção, segundo ele, é mobilizar
a sociedade para elaborar uma proposta comum sobre a Zona Franca de Manaus.
Orientações menos extremadas aparecem na formulação do economista
Rodemarck Castelo Branco, um dos mais importantes interlocutores sobre a ZFM
no Estado, para quem “uma das saídas é verticalizar o parque industrial da ZFM,
trazendo empresas de componentes para gerar escala de produção e criar o fator
fundamental de competitividade, principalmente do setor eletroeletrônico, que é a
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interação dos fornecedores e empresas de bens finais”, e concomitantemente criar
condições para acumulação regional do capital, que propicie o surgimento de
pequenos e médios negócios, com a valorização das potencialidades regionais.
O quadro que se delineia, revela um tardio reconhecimento dos problemas
presentes no próprio modelo, bem como dos vícios presentes nas agências de
desenvolvimento que ensaiamos questionar se havia uma relação de continuidade.
Na década de 70, já havia formulações que apontavam diversos problemas e suas
possíveis superações como as de Djalma Batista, que se preocupava com a instalação
de fábricas de montagem de aparelhos eletrônicos e para assegurar o
desenvolvimento do Estado, sugeria, dentre outras medidas: “fiscalização dos lucros
do comércio e da indústria, e legislação objetivando reter no Amazonas pelo menos
uma parte dos mesmos, em aplicações concretas”; “estímulo ao aproveitamento
de matérias-primas regionais no processo de industrialização (evitando que as
fábricas se esvaziem quando cessarem os favores fiscais): madeiras, incluindo
compensados; celulose e papel[...]” (BATISTA, 1976, p. 270). Foram, no entanto,
necessários mais de vinte anos para que o próprio poder público estadual
reconhecesse as distorções. Em artigo recente o governador Amazonino Mendes
declara: “[...]desperdiçamos quase trinta anos de receita pública originária deste
verão sem procurar direcionar investimentos que nos dessem o mínimo de
resguardo para a instabilidade que já era flagrante. A Constituição de 88 nos
acordou, dando-nos, com a sobrevida de mais 25 anos, uma nova chance. Será
imperdoável perante a História não aproveitarmos esta segunda oportunidade,
embora em meio a todos esses sobressaltos”. Ao contrário do que se poderia
esperar, este reconhecimento não se pauta por uma abertura para pensar séria e
democraticamente a reestruturação do modelo da ZFM, mas para justificar os
investimentos no 3.º Ciclo: “O 3.º Ciclo não é propriedade de ninguém, é doutrina
de redenção e de libertação de todo um povo” (A CRÍTICA, 23/11/97).
Apesar disso a “mística do desenvolvimento regional”, que parecia cada
vez mais distante, recrudesce, num certo sentido, tanto regional como nacionalmente.
Mas os próprios critérios para concessão dos incentivos fiscais na “práxis”,
conforme depoimento de Aristides da Rocha F. Júnior, até o momento privilegiam
os maiores investimentos.
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SUFRAMA: agência dos agentes
Quanto aos trabalhadores, se antes havia o questionamento do modelo, a
partir de 1988, os sindicatos operários e suas lideranças políticas passaram a defender
seus empregos (SILVA, 1977, p. 44). A própria iniciativa de criar um movimento
pró-ZFM (A CRÍTICA, 6/2/98), de iniciativa da Força Sindical e do Sindicato dos
Metalúrgicos, demonstra esta posição, a qual não pode ser avaliada como “desindexada
de ideologias”, como quer fazer parecer José Roberto Tadros, presidente da
Federação do Comércio do Estado do Amazonas – FACEAM (A CRÍTICA, 21/
1/98). Impõe-se aqui a “hiper-realidade” como justificação ideológica sobre a qual
Boaventura de Souza Santos nos chama atenção. O grande desafio hoje não é
reconhecermos que a realidade tal como está era inevitável, mas surpreendermonos com a realidade que se teoriza a si mesma.
Os impactos da globalização e da reforma do Estado brasileiro
nos rumos da Zona Franca de Manaus
As fases pelas quais passou a Zona Franca de Manaus, seus percalços, aos
quais nos referimos anteriormente, podem ser melhor compreendidas quando
relacionadas à estrutura do Estado brasileiro. A análise de Albuquerque (1995) sobre
a história do Estado brasileiro, particularmente nos períodos correspondentes a “o
Estado como superinstituição”, de 1930 a 1980, e a crise de 1980 a 1995, fornecemnos elementos que explicitam as próprias contradições nas decisões do governo
federal quanto a ZFM.
O Estado como superinstituição consolidou-se concomitantemente com o
nacional-desenvolvimentismo. É ele que viabiliza a infra-estrutura e o desenvolvimento
industrial a partir do centralismo. De 1930 a 1970, seja através da infra-estrutura, seja
diretamente como empresário, o Estado, segundo Albuquerque, chega “[...] a
responsabilizar-se por mais da metade da formação bruta de capital fixo do país. E
gradualmente se transformou em gigantesca e centralizada superinstituição que tudo
pretendia prever e prevenir e quase tudo procurava prover e programar” (1995, p.
139). O auge desta condição foi alcançado na década de 70, em função do controle
do Estado sobre o Congresso Nacional e da sua organização administrativa em
grandes sistemas. O Poder Executivo da União torna-se “um espaço por excelência
de afirmação da tecnoburocracia”.
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Izaura Rodrigues Nascimento
Apesar de modernizador, acentua o autor que o Estado preserva “práticas
anacrônicas” que se ampliam na década de 80 e início de 90, com a crise econômica
e a abertura política. São remodelados: o velho patrimonialismo, o cartorialismo
clientelista e o corporativismo. O primeiro inicialmente representava a ampliação do
poder tutelar sobre a sociedade e, posteriormente, significou o emprego dos poderes
públicos para obter benefícios pessoais. O segundo “de início centrado nos amplos
poderes de conceder, voluntariamente, a pessoas e entidades privadas, financiamentos,
incentivos fiscais e outros privilégios, mais tarde, envolvendo o uso desses mesmos
poderes para obter, muitas vezes em detrimento do interesse público, vantagens
individuais” (ALBUQUERQUE, 1995, p. 140). O terceiro inicialmente fortalecendo
os poderes do estamento tecnoburocrático, mais tarde, ampliando sua influência
com adesão da nova força emergente: a dos políticos, para assegurar ou ampliar
direitos e prerrogativas.
A desagregação do Estado como superinstituição ocorre na década de 80,
a partir daí se delineia a exigência de sua reestruturação. Três crises foram fundamentais
no seu desencadeamento e ainda se fazem presentes: a crise de legitimidade do
Estado autoritário, a crise financeira e a crise existencial. A crise de legitimidade do
Estado autoritário tem lugar com a autonomia e significado adquiridos pela luta
para a democratização, cuja condução foi minada pela recessão de 1981-83. A crise
financeira “resulta da ampliação do fosso entre as receitas próprias da União e suas
necessidades de financiamento” (ALBUQUERQUE, 1995, p. 141). A crise
denominada pelo autor de existencial refere-se aos “alicerces institucionais” e a
“identidade do próprio ente estatal”, “sua razão de ser e consciência de si mesmo;
sua capacidade decisória e funcionalidade; sua percepção da sociedade; e a imagem
que projeta perante ela” (ALBUQUERQUE, 1995, p. 142).
A ausência de um projeto desde a década de 80 demonstra uma perda na
autoconsciência do Estado, um processo de desestruturação que gerou uma “insciência
institucional”. A própria capacidade decisória do governo “esgarçou-se” na transição
democrática. A tentativa da Nova República de reduzir o gigantismo do Estado
concorreu para sua desestruturação em função de um “[...]transformismo
organizacional destrutivo e desestabilizador[...]”, nas palavras de Albuquerque (1995,
p. 143).
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SUFRAMA: agência dos agentes
Neste contexto é instalada a constituinte, cujo resultado corresponde a
ausência de visão das novas tendências: a globalização da economia, a liberalização
dos fluxos comerciais e de capital, a formação de grandes blocos regionais e suas
repercussões sobre o papel do Estado na economia.
O governo Collor incorpora a vertente liberalizadora, porém
contraditoriamente interfere no mercado e na vida financeira privada. Quanto ao
Estado, a reforma administrativa aprofunda sua desestruturação. E como agravante
“leva a extremos a fruição patrimonialista e cartorial do Estado e o uso organizado
dos poderes públicos como forma de obter benefícios pessoais da iniciativa
privada”, processo que culminou no impeachment (ALBUQUERQUE, 1995, p. 144).
O governo Itamar Franco consegue restabelecer a respeitabilidade pública
e o atual se propôs a reconstruir, em bases modernas e mais funcionais, o Estado
brasileiro.
Conforme podemos verificar, a crise da ZFM corresponde a também
crise do Estado brasileiro, entre uma forma de acumulação primitiva de capital, a
indústria nacional e a adequação às exigências da globalização econômica.
A reestruturação da SUFRAMA relaciona-se diretamente ao
restabelecimento da credibilidade das instituições, reflexo da imagem projetada
pelo atual governo, o que no entanto está em xeque dados os escândalos observados
nas instituições públicas, envolvendo os três poderes: Executivo, Legislativo e
Judiciário desde o ano passado.
O processo de globalização tem um efeito profundo sobre a ZFM, pois
não corresponde a uma mudança setorial do capitalismo, que ocorre no seu interior,
mas a profundas transformações em toda a sociedade. A utilização indiscriminada
da globalização tem gerado uma considerável dificuldade de compreender o seu
alcance, o complexo de mudanças que a representam.
A análise de Ohmae (1996) demonstra a importância dos fluxos dos
investimentos, da indústria, da informação e dos consumidores individuais que
passam a ter “uma orientação mais global”. Isto significa dizer que não só as
indústrias tenham sofrido mudanças, mas que essas mudanças relacionam-se com
as exigências individuais, com um novo sentido na configuração da territorialidade,
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com a velocidade das informações, com a perda de poder dos Estados nacionais.
Os incentivos fiscais deixaram de ser o grande atrativo e dão lugar a “recursos
atraentes”, que guardam cada vez menor dependência de concessão dos Estados
nacionais. Neste sentido a tendência dos Estados nacionais não é de se orientarem
pela centralização do planejamento, isto porque deixaram de ser os “protagonistas”
das aspirações econômicas e sociais.
O reflexo nas indústrias que não reduziram os custos e investiram na qualidade
total é imediato, não conseguem competir perante as novas exigências, pois os
consumidores buscam os produtos mais baratos, independente de onde foram
produzidos. As ambíguas decisões do governo federal, ora mantendo os incentivos,
ora retirando-os, resulta da adequação do modelo às novas exigências, combinadas
senão a um projeto, mas a uma orientação de desenvolver e proteger uma indústria
nacional embora tardiamente.
A ZFM se por um lado antecipa a presença do capital globalizado no Brasil
(na sua primeira versão), por outro se consolidou de tal forma na dependência dos
incentivos fiscais e nas articulações políticas de interesses privados que sua transição
manifesta-se como o fim. O maior problema da Zona Franca de Manaus parece
localizar-se não apenas no seu modelo, pois produziu recursos que poderiam ter
sido aplicados na dinamização da economia regional, mas resulta também das
prioridades de investimento, definidas no âmbito das estruturas e do poder político.
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Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Pérsida da Silva Ribeiro Miki
Um debate sobre a Agenda 21 Brasileira:
em defesa da floresta amazônica
Pérsida da Silva Ribeiro Miki 1
Resumo
O debate acerca da Agenda 21 Brasileira e suas implicações ambientais
para os bens inerentes à floresta amazônica suscita questionamentos
mundiais e locais sobre os recursos naturais e as populações da região
amazônica.
Palavras-chave
Agenda 21 Brasileira; ambiente amazônico.
Abstract
The debate the about of the Brazilian Calendar 21 and its environmental
implications for the inherent goods to the Amazon forest raises world
and local subjects on the natural resources and the populations of the
Amazon Area.
1
Professora da Universidade Federal do Amazonas; mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na
Amazônia, com área de concentração em Política e Gestão Ambiental pelo Centro de Ciências do Ambiente
– CCA, da Universidade Federal do Amazonas.
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Um debate sobre a Agenda 21
Brasileira: em defesa da floresta
amazônica
Keywords
Brazilian Calendar 21; environmental amazon.
Fruto da Agenda 21, no Brasil há o debate interativo sobre a Agenda 21
Brasileira envolvendo inclusive os recursos florestais. Esse debate, que acontece
também nos espaços virtuais, vem produzindo documentos sobre os recursos
florestais, a agricultura sustentável e familiar, o manejo dos sistemas produtivos e
seus instrumentos econômicos para a sustentabilidade, e o planejamento e gestão
dos recursos naturais. Nesses documentos, a Amazônia Legal ocupa um lugar de
destaque pela sua importância mundial diante de toda a sua biodiversidade e do
perigo à sua depredação e os possíveis impactos ambientais globais que isso pode
significar:
No conjunto, a Amazônia é a maior reserva biológica do
mundo. Contém um quinto da água doce disponível e um
terço das florestas latifoliadas. Estima-se que a região contém
pelo menos a metade de todas as espécies vivas do planeta.
Já foram identificadas pelo menos 60 mil espécies vegetais,
2,5 milhões de espécies de artrópodos, 2 mil de peixes e
mais de 300 espécies de mamíferos (MMA/SCA, 1997). A
manutenção dessa biodiversidade tem efeitos importantes
para todo o planeta. Os compostos químicos e o material
genético proveniente desse ecossistema representam fonte
crucial para o desenvolvimento de produtos alimentícios e
medicinais (AGENDA 21 BRASILEIRA, 2000).
A biodiversidade da floresta amazônica já abre espaços para o investimento
em pesquisas realizadas na área da farmacopéia. A diversidade da floresta em termos
de Brasil é 35%. Grupos transnacionais como a Glaxo Wellcome2 firmou convênio
2
O grupo Glaxo Wellcome será o maior do mundo pela fusão com a SmithKline Beecham com seu valor estimado em US$ 189
bilhões. É um grupo que está investindo em pesquisas no Brasil cerca de US$ 3,2 para desenvolver novos medicamentos.
Cabe lembrar que 40% dos remédios produzidos mundialmente vêm dos recursos naturais e esse é um mercado que
movimentou só em 1994 cerca de US$ 345 bilhões.
188
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
Pérsida da Silva Ribeiro Miki
com a empresa brasileira Extracta, prestadora de serviços em pesquisa e tecnologia,
criada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, para pesquisar compostos da
flora brasileira. A Extracta juntamente com a Universidade Federal do Pará (UFPA)
coletará as amostras de plantas na Amazônia para a formação de um banco de
dados de pelo menos de 30.000 compostos. A pesquisa buscará descobrir
medicamentos para as doenças tropicais (malária, dengue e leishmaniose), além de
novos antiinflamatórios e antibióticos.
Uma das motivações dos investimentos internacionais no Brasil vem
juntamente com o vigor da Lei de Patentes (Lei n.º 9.279, de 14 de maio de 1996),
já que anteriormente às descobertas, os produtos farmacêuticos, químicos e
alimentícios não tinham suas patentes reconhecidas pelo Instituto Nacional de
Propriedade Intelectual – INPI. Pelo Art. 229-C,3 do Título VIII, “Das Disposições
Transitórias e Finais”, os produtos farmacêuticos necessitarão da anuência da
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANUS) para serem patenteados. Ainda
pelo inciso III, e Parágrafo Único do Art. 18, os microorganismos trangênicos
advindos dos seres vivos podem ser patenteados:
Art. 18. Não são patenteáveis: III – o todo ou parte dos
seres vivos, exceto os microorganismos transgênicos que
atendam aos três requisitos de patenteabilidade – novidade,
atividade inventiva e aplicação industrial – previstos no art.
8.º e que não sejam mera descoberta. Parágrafo Único. Para
fins desta Lei, microorganismos trangênicos são organismos,
exceto o todo ou parte de plantas ou de animais, que
expressem, mediante intervenção humana direta em sua
composição genética, uma característica normalmente não
alcançável pela espécie em condições naturais (GRIFOS
NOSSOS).
3
Artigo acrescentado pela Medida Provisória n.º 2.014-2, de 28/1/2000 – DOU, 29/1/2000 – Ed. Extra.
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189
Um debate sobre a Agenda 21
Brasileira: em defesa da floresta
amazônica
Porém, a situação é bem mais complexa, principalmente quando se põe em
pauta o comércio e o direito sobre a biodiversidade na Amazônia. Neste aspecto, o
Brasil não possui uma legislação para encaminhar ações e dirimir os conflitos existentes.
O Código Florestal aborda o assunto de forma superficial e simplista quando no
Art. 13 expressa que: O comércio de plantas vivas, oriundas de florestas, dependerá de licença da
autoridade competente. No Congresso Nacional tramitam três Projetos de Lei sobre a
matéria, e só o da senadora Marina Silva – PT já se estende por quatro anos. A
problemática crucial está em garantir o direito das populações tradicionais, que detêm
grande parte do conhecimento sobre a natureza, principalmente no que diz respeito
à farmacopéia, de impedir a biopirataria. Essas populações são consultadas sobre
quais as plantas ou partes de animais que fazem efeito para curar determinadas
doenças. Partindo daí, os laboratórios poupam uma grande soma de investimentos
e tempo, pela sabedoria popular dos povos da floresta. No projeto de Lei de Acesso
à Biodiversidade, da senadora Marina Silva – PT, esse impasse é posto no Capítulo
IV, ao tratar “Da Proteção do Conhecimento”, em seis artigos (ART. 17 ao 22). Eis
alguns exemplos:
Art. 17. O poder púbico reconhece e protege os direitos
das comunidades locais de se beneficiar coletivamente por
suas tradições e conhecimentos e de serem compensadas
pela conservação dos recursos biológicos e genéticos, seja
mediante direitos de propriedade intelectual ou outros
mecanismos [...];
Art. 18. Os direitos coletivos de propriedade intelectual
constituem o reconhecimento de direitos adquiridos
ancestralmente, englobando direitos de propriedade
industrial, direitos de autor, direitos de melhorista, segredo
e outros;
Art. 20. Fica assegurado às comunidades locais o direito de
não permitir a coleta de recursos biológicos e genéticos e o
acesso ao conhecimento tradicional em seus territórios,
assim como o de exigir restrições a estas atividades fora de
seus territórios, quando se demonstre que estas atividades
ameacem a integridade de seu patrimônio natural ou cultural.
Os demais artigos deste Projeto de Lei estabelecem inclusive o prazo de
regulamentação dos direitos coletivos de propriedade intelectual das propriedades
190
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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tradicionais e não reconhecem os direitos individuais de propriedade intelectual
(registrados dentro ou fora do país) dos recursos biogenéticos, quando forem
utilizados o conhecimento das populações tradicionais, ou tenham esses direitos
adquiridos sem o certificado de acesso e licença de saída do Brasil.
Enquanto isso, no Estado de Tocantins, a Universidade do Tocantins
(UNITINS), em convênios com a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ),
Universidade Federal da Paraíba (UFBP), Universidade Federal do Ceará (UFCE),
Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo (USP) e
universidades internacionais, vem desenvolvendo projetos, catalogando espécies e
trabalhando com a farmacopéia da floresta amazônica, com tecnologia para
produtos repelentes. No entanto, as práticas de uso dos recursos florestais na
Amazônia, em sua maioria, não levam em conta o uso da sua biodiversidade:
Mas este enorme manancial de biodiversidade tem sido
alvo de intensa dilapidação. O fluxo migratório para a
Amazônia aliado à ausência de uma política agrícola para a
região são incompatíveis com a necessidade de preservação
e conservação dos recursos florestais. A entrada de pequenos
produtores e de posseiros está fortemente associada ao
processo de extração madeireira. Entretanto não há estímulo
ao aproveitamento das áreas já desmatadas e ao manejo
florestal como alternativa de exploração sustentável da
região (AGENDA 21 BRASILEIRA, 2000).
Outro tema relevante da Agenda 21 Brasileira, que envolve a utilização do
solo e vegetação da Amazônia, diz respeito à agricultura tradicional. Os povos que
a praticam, principalmente nas várzeas, possuem tecnologias próprias que não
degradam o ambiente. Hiroshi Noda e Sandra Noda estabelecem três formas de
exploração do solo na Amazônia: “[...] o extrativismo, a agricultura tradicional e o
sistema de produção indígena” (1994, p. 136). Esta primeira tem precedentes
históricos, principalmente com a exploração do cacau, da salsaparrilha e da seringueira.
Além da exploração de espécies vegetais, o extrativismo envolve todos os elementos
da floresta, incluindo a exploração animal, e põe em questão a relação homemnatureza que também é uma relação de trabalho:
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Um debate sobre a Agenda 21
Brasileira: em defesa da floresta
amazônica
As populações extrativistas realizam uma combinação entre
agricultura de subsistência, coleta, caça, pesca e
transformação de produtos extrativos variados e os produtos
são utilizados tanto para o consumo próprio como para a
venda [...] o extrativismo é uma atividade que caracteriza
não um tipo de produtor rural, mas, fundamentalmente,
uma técnica de produção [...] então, sua força de trabalho
estará direcionada no sentido de aumentar a coleta do
produto. Como conseqüência ocorrerá um processo
recorrente, onde estágios mais elevados de especialização
na atividade extrativa, induzirão maiores níveis de
dependência do produtor rural, em relação ao comprador
e maiores pressões serão exercidas sobre as espécies
exploradas. Neste caso, níveis elevados de produtividade
implicarão estágios crescentes de dependência e pobreza
do trabalhador rural e, também, níveis predatórios de
exploração da natureza (NODA; NODA, 1994, p. 136).
Viajando de barco por cerca de 20 dias, nos municípios do Amazonas
(Tefé, Coari, Codajás, Beruri, Manacapuru, e Itacoatiara), é fácil perceber a exploração
existente nesta relação, principalmente devido à falta de organização (seja em forma
de associação ou por cooperativas) das populações tradicionais. Os donos das
embarcações chegam a pagar, nos lugares mais distantes como Beruri, gelo por
mantas de pirarucu. O pescador não pode impor seu preço, pois quando isso acontece
o pescado é devolvido imediatamente e logo em seguida já há outro pescador com
o mesmo produto a submeter-se às exigências do comprador. Tão fechada é essa
relação que os passageiros dos barcos não podem comprar o peixe oferecido nas
canoas. São momentos de suspense entre todos os envolvidos. Outro fato que
acontece na madrugada (presenciado no trecho entre Tefé–Coari e Coari–Codajás–
Manaus) é a prática comercial do pescado e outros gêneros da floresta. O comércio
começa no cais do porto, onde o dono da embarcação obtém as informações de
fiscalização do IBAMA na região. Navegando nos rios, já por volta das 24 horas, as
embarcações diminuem a velocidade e atracam canoas cheias de pescado (inclusive
4
5
Nos porões das embarcações geralmente há um compartimento secreto em caso de fiscalização do IBAMA, ou de qualquer
outro órgão do poder público.
Informações obtidas em pesquisa de campo nas viagens pelos municípios de Tefé, Coari, Codajás, Manacapuru e Beruri no
período de outubro de 1999 a janeiro de 2000.
192
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Pérsida da Silva Ribeiro Miki
com peixes proibidos como o pirarucu e tambaqui) e outros gêneros da floresta,
que são embarcados em porões4 quando a maioria dos passageiros está dormindo.5
Experiências com populações organizadas, como na Reserva de
Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e a Reserva Extrativista (Resex), do médio
Juruá, parecem demonstrar que há outras perspectivas dessa relação de trabalho. Os
povoados organizados já buscam alternativas econômicas sustentáveis de sobrevivência
e comercialização. Mesmo com dificuldades para esta segunda parte, como é o caso
da Resex do médio Juruá, que tentou colocar no mercado o óleo de andiroba e
copaíba e nenhum laboratório da região comprometeu-se a comprar.
Além do extrativismo, a agricultura tradicional é fruto da transculturação de
técnicas agrícolas das populações nordestina, africana, portuguesa e indígena (esta é
a formação da população cabocla):
[...]as técnicas utilizadas pela agricultura tradicional têm
permitido, durante séculos, o atendimento das necessidades
básicas de subsistência das populações sob condições
ambientais diversas (solos deficientes, áreas secas ou
propensas a inundações, com recursos escassos), sem
depender de mecanização, pesticidas ou fertilizantes
químicos (NODA, H.; NODA, S. 1994, p. 139).
Hiroshi Noda e Sandra Noda (1994) identificam duas características principais
para a agricultura tradicional: a diversidade das espécies cultivadas e o policultivo,6 o
que representa um manejo sustentável feito pelas populações tradicionais, pois é um
tipo de agricultura que preserva os recursos genéticos das espécies, sejam alimentícias
ou medicinais.
O sistema de produção indígena é feito com plantas que foram
semidomesticadas da floresta. As roças indígenas não são abandonadas após alguns
anos, ...os índios formam novas roças a cada ano e deixam de colher as plantas ao
cabo de dois ou três anos, mas algumas plantas permanecem por mais tempo,
como o inhame e o ariá até por cinco anos, a banana por dez, o urucum e o algodão
6
O policultivo é ...o cultivo de diferentes espécies de forma consorciada e a adoção de sistemas de descanso do solo da área
cultivada como uma espécie anual, principalmente a mandioca, denominado ‘pousio’ (NODA, H.; NODA, S. 1994, p. 140).
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Um debate sobre a Agenda 21
Brasileira: em defesa da floresta
amazônica
por mais de vinte e o cupá por quarenta anos (NODA, H.; NODA, S. 1994, p. 142).
Alguns grupos indígenas utilizam o “pousio” para manejar o solo. Dentre esse tipo
de produção podemos destacar as seguintes características:
• Diversidade de espécies plantadas (alimentícias, medicinais e para outros
fins), não havendo o aparecimento de pragas nas culturas;
• Técnica de pousio sem o abandono das áreas anteriormente plantadas,
facilitando na alimentação de espécies animais;
• Recuperação da flora e fauna com os corredores naturais (trilhas) até as
roças; e
• Contribuição na composição das florestas.
As práticas na Amazônia que foram por muito tempo consideradas
ultrapassadas e irrelevantes começam a ser expostas diferentemente diante dos
fracassos ambientais da agricultura praticada pelos países industrializados na década
de 70 e implantada principalmente no Sudeste e Sul do país. Dados da Agenda 21
Brasileira estipulam que as perdas ambientais pelo mau uso do solo com práticas
agrícolas e florestais degradadoras chegam a 5,9 bilhões de dólares ou 1,4% do
Produto Interno Bruto brasileiro – PIB. No entanto, os sistemas na Amazônia, tanto
a agricultura tradicional como os de produção indígena, realizados pelos índios e
caboclos, preservam os recursos genéticos das espécies cultivadas:
A agricultura na Amazônia é de fundamental importância
para a conservação dos recursos genéticos das espécies
olerícolas, frutíferas, florestais e medicinais. Os agricultores
tradicionais são os únicos que, ainda hoje, cultivam e
mantêm a variabilidade genética das hortaliças não
convencionais, de mandioca, de milho, etc. (AGENDA 21
BRASILEIRA, 2000).
Henk Hobbelink (1990) problematiza a questão inerente aos recursos e bancos
genéticos. Para o autor, é importante a implantação de uma política de conservação
de áreas de origem para que sejam mantidas as plantações das culturas tradicionais, como opção para as futuras gerações quanto à manutenção dos recursos
genéticos, e como opção de sustentabilidade para as comunidades tradicionais.
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Essa estratégia de ação é bem mais acertada do que a criação de bancos genéticos
devido a sua grande fragilidade:
Mas esta tentativa dos bancos de genes (conservar a
diversidade genética) fracassa com freqüência. Inadequações
técnicas e falhas nos equipamentos criam problemas
importantes. Mais preocupante é o fato de que as sementes,
uma vez armazenadas, fiquem marginalizadas do processo
de evolução. A vida da variedade, literalmente congelada no
tempo, dependerá mais de sua capacidade de adaptar-se às
condições do banco de genes do que das características que
a fizeram bastante valiosa para ser recolhida e armazenada.
Não é surpreendente que nos bancos de genes se perca uma
grande diversidade. William Brown, ex-presidente da Pioner
Hi-Bred, a maior companhia sementeira de milho do mundo,
afirma que, atualmente, se perde mais diversidade de milho
dentro dos bancos de genes que no mundo externo a eles
(HOBBELINK, 1990, p. 25-26).
A extinção de variedades genéticas tradicionais rompe mundialmente com
as possibilidades de combinações para os cultivos, além de tornar frágil histórica,
cultural e economicamente a vida das populações dos centros de diversidade:7
Quando se extinguem variedades tradicionais, as
comunidades perdem um fragmento de sua história e sua
cultura. As espécies vegetais perdem um fragmento de sua
diversidade genética. As gerações futuras perdem algumas
opções, e a geração presente perde a confiança em si mesma.
O tipo de semente que semeia o camponês determina em
7
Os centros de diversidade são locais geográficos onde há grande riqueza quanto à biodiversidade. “Os centros de
diversidade da maior parte dos cultivos encontram-se nos países do Terceiro Mundo. Devido a diversos fatores, como as
glaciações nos países do norte, são poucos os cultivos importantes cujos centros de diversidade estão fora do Terceiro
Mundo. Mas recordemos que a diversidade é fundamental, encontre-se onde se encontrar. Não é necessário que esteja
situada em um Centro de Diversidade, ou tão sequer em um país do Terceiro Mundo, para que se tenha importância local
ou internacional. [...] É difícil exagerar-se o valor da diversidade genética (que procede principalmente do Terceiro Mundo)
para as plantações modernas, nos países industrializados. Cada um dos cultivares de trigo do Canadá contém genes
introduzidos em décadas recentes, que procedem às vezes até de quatorze países diferentes. Os pepinos norte-americanos
obtêm seus genes para resistir a enfermidades, de lugares tão longínquos como Coréia, Birmânia e Índia. Existem cultivares
modernos de alface que incluem genes procedentes de Israel, Itália e Turquia. Os tomates não poderiam ser cultivados
comercialmente, na América do Nor te, se não fossem os genes de espécies selvagens da América Central e do Sul. Os
principais híbridos de grãos de sorgos mundiais têm por base os sorgos Zera-Zera do Sudão e Etiópia” (HOBBELINK,
1990, p. 25-27).
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Um debate sobre a Agenda 21
Brasileira: em defesa da floresta
amazônica
grande medida suas necessidades de fertilizantes e
agrotóxicos. A semente influi na necessidade de maquinário
e amiúde determina qual é o mercado para a colheita [...] e
qual é o consumidor último. As comunidades que perdem
variedades tradicionais que durante séculos adaptaram-se a
suas necessidades, perdem controle e tornam-se
dependentes, para sempre, de fontes externas de semente e
dos produtos químicos necessários para cultivá-las e protegêlas [...] (HOBBELINK, 1990, p. 32).
Essa dependência advém do capitalismo globalizado, através das
transnacionais (agroquímicas e farmacêuticas) como Monsanto, Bayer, Hoechst, Eli
Lilly, Hoffman-La Roche, Schering-Ploegh, Dupont e Lubrizol. São os chamados
agribusinees que controlam a agricultura mundial e a biotecnologia através de três
formas: criando pesquisas próprias, integrando seus interesses em outros territórios;
adquirindo pequenas empresas ou se associando em forma de cooperação com
estas; ou realizando contratos com universidades e outras instituições públicas de
pesquisa. Cerca de dez transnacionais controlam 50% do mercado de agrotóxicos,
processamento de alimentos, distribuição de grãos e outros setores deste agropoder,
que através do desenvolvimento da ciência e da tecnologia criam pacotes agrícolas
para os países emergentes, que se não forem utilizados na íntegra, há a quebra de
todo o processo no cultivo. A dependência é tão alarmante, aliada ao desenvolvimento
tecnológico, que sementes produzidas em determinada colheita não mais germinam,
forçando a compra de novas sementes. Além do que, todos esses fatores causam
desequilíbrios sócio-ambientais como a poluição das águas (mananciais),
comprometendo a fauna e flora aquática, desertificação, erosão pelo mau uso do
solo (com a contaminação química e a perda da matéria orgânica), o aumento da
fronteira agrícola, e a intoxicação de animais, vegetais e pessoas pelo manuseio dos
agrotóxicos, comprometendo as atuais e futuras gerações, com doenças que vão
desde lesões hepáticas, renais até a teratogênese, mutagênese e carcionogênese.
Além das populações tradicionais, na Amazônia há a agricultura familiar que
apresenta diversos problemas diante da perda do controle sobre o uso do solo, que
após diversas práticas agrícolas degradadoras ocorrem os processos de acidificação,
salinização, erosão e desertificação. Esta também concorre para o aumento da fronteira
agrícola na região amazônica. No debate existente sobre a Agenda 21 Brasileira, a
196
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Pérsida da Silva Ribeiro Miki
falta de conhecimento é um dos pressupostos para a utilização de tecnologias
depredadoras, mais de 40% dos agricultores assentados pela Reforma Agrária na
Amazônia são analfabetos. Buscando alternativas para minimizar a falta de
conhecimento dos assentados, no documento do referido debate há o destaque:
[...]experiência realizada pelo Centro Agropecuário da
Universidade Federal do Pará, de apoio ao Programa Casa
Familiar Rural, na Transamazônica. Nessa iniciativa a criança
divide o seu tempo entre a escola e o lote agrícola,
aprendendo e discutindo problemas reais relacionados à
produção e à gestão da propriedade (AGENDA 21
BRASILEIRA, 2000).
Neste quadro, os agricultores familiares estão organizados da seguinte forma:
• Catingão e Caixa Agrícola (organização da agricultura familiar);
• Cooperativa, através de sociedade civil comercial;
• Associação, através de sociedade civil sem fins lucrativos;
• Cooperativa extrativista; e
• Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (com base municipal e forte
representação em áreas extrativistas), que já vêm desenvolvendo trabalhos para
treinamento e profissionalização dos agricultores, buscando uma gestão ambiental
dos recursos da economia no setor primário, inclusive com diversas parcerias, a
exemplo da parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR e
Organizações Não-Governamentais – ONGs.
Os agricultores sem alternativas para o uso da terra em relação às políticas
de crédito, à infra-estrutura para a produção, ao acesso ao conhecimento, às tecnologias
de cultivos sustentáveis e às pressões do mercado para uma produção em curto
espaço de tempo são forçados a depredá-la, utilizando o processo de queimada
para o preparo da terra ou para formar pastos. São fatos que mostram o despreparo
deste agricultor diante da realidade amazônica, já que a origem deste agricultor e sua
família é geralmente de migrações através de projetos de assentamento dirigidos
pelo INCRA:
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Um debate sobre a Agenda 21
Brasileira: em defesa da floresta
amazônica
Os pequenos produtores rurais, migrantes dos projetos de
assentamento dirigidos, encontram grandes dificuldades para
adaptarem-se ao novo ambiente e as técnicas agrícolas
adotadas diferem daquelas praticadas pelos agricultores
tradicionais da Amazônia. A diversidade de espécies
cultivadas é mais restrita e, ao contrário dos agricultores
tradicionais, não adotam a técnica de pousio das terras,
para recuperar a capacidade produtiva dos solos [...] as roças
plantadas são maiores e mais homogêneas do que a dos
agricultores tradicionais, sendo mais sensíveis aos
problemas, quando aparecem, como as pragas e as
moléstias (NODA, H.; NODA, S., 1994, p. 146).
Os incêndios acidentais se constituem em outro fato preocupante no processo
de queimada:
O uso do fogo na agricultura está estritamente relacionado
ao preparo da área para plantio agrícola e à implantação e
limpeza de pastagens. Entretanto, muitas vezes a queimada
foge ao controle e provoca enormes prejuízos econômicos
e ambientais. As queimadas acidentais foram responsáveis
pela metade da área queimada na Amazônia em 1994 e
1995 (AGENDA 21 BRASILEIRA, 2000).
A prática criminosa de queimar áreas de mata ou floresta provocando
incêndios e a manipulação de balões está prevista na Lei de Crimes Ambientais (Arts.
41 e 42). No entanto ainda é difícil o controle sobre as queimadas e a identificação
do criminoso, principalmente em grandes áreas incendiadas que ultrapassam as
fronteiras das propriedades, tornando quase que impossível descobrir o início do
fogo.
A preocupação inerente aos debates da Agenda 21 Brasileira levanta sérias
apreensões diante do quadro existente na devastação da floresta amazônica.
As possíveis soluções apontadas para os problemas dispostos na Agenda
21 Brasileira envolvem uma gama de financiamentos econômicos, normatizações e
ações de órgãos governamentais e da sociedade civil organizada, e principalmente a
utilização dos conhecimentos advindos da pesquisa pelas universidades e instituições
de pesquisa.
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Entre os caminhos postos em pauta de discussão como alternativa para as
propriedades agrícolas familiares está a implantação dos Sistemas Agroflorestais –
SAF. Os SAF são desenvolvidos pelos agricultores tradicionais nos países emergentes,
como forma de subsistência para a superação dos obstáculos em relação à aquisição
dos insumos agrícolas industrializados. Os Sistemas Agroflorestais representam uma
[...]abordagem renovada que, atualmente, se faz acerca das
atividades agrícolas em ambientes frágeis e complexos como
dos trópicos úmidos, mais especificamente, da região
amazônica, é um esforço de síntese no qual a ciência
procura interpretar as técnicas antigas da agricultura
tradicional e indígenas e, ao acrescentar elementos novos,
as reconstrói sobre níveis mais elevados. Essa nova
modalidade de manejo de terras é um desdobramento da
agrossilvicultura concebida dentro de padrões de autosustentabilidade, de integração espacial e/ou temporal dos
diversos elementos que compõem o sistema, de otimização
do uso dos recursos disponíveis e de adequação e
aceitabilidade dos agentes envolvidos no processo produtivo
(NODA, H.; NODA, S., 1994, p. 142).
Outra alternativa de sustentabilidade ambiental envolvendo atividades
produtivas estaria no manejo e certificação florestal das reservas extrativistas. Hoje,
conforme dados da Agenda 21 Brasileira, na Amazônia há 11 reservas e
assentamentos extrativistas, englobando 30.000 pessoas organizadas em suas
comunidades extrativistas, em cerca de 4 milhões de hectares. Essas organizações
são interlocutoras com o mercado e instituições públicas e privadas, em relação com
os produtos da floresta. A auto-sustentabilidade na exploração dos produtos dessas
áreas é o objetivo desenvolvido por esses povoados, juntamente com a conservação
dos recursos naturais renováveis.
Finalmente, a Agenda 21 Brasileira (2000) propõe a redução das pressões
sobre os recursos naturais, em quatro diretrizes:
Desenvolver metodologias de planejamento setorial
(formulação de projetos) que levem em consideração
impactos ambientais negativos de modo a evitá-los de
forma pró-ativa;
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Um debate sobre a Agenda 21
Brasileira: em defesa da floresta
amazônica
Melhorar a ecoeficiência produtiva, visando, de forma
integrada entre os diversos setores, a redução de perdas e
desperdícios de recursos naturais e de energia (na produção
e no uso);
Internalizar no orçamento dos projetos de infra-estrutura
dos custos de oportunidade sociais, ambientais e
econômicos;
Promover avaliação dos impactos.
Referências
AGENDA 21 Brasileira. Disponível em: <http://www.ensp.fiocruz.br/publi/radis/
tema 18.html. 25. mai.2000>
BRASIL. Júris Síntese. Porto Alegre: Editora Síntese, n. 21, jan./fev. 2000.
HOBBELINK, Henk. Biotecnologia: muito além da revolução verde. [S.l]: Ed. Porto Alegre,
1990.
NODA, Hiroshi; NODA, Sandra do Nascimento. Produção agropecuária. In:
Amazônia uma proposta interdisciplinar de educação ambiental: temas básicos. Brasília: IBAMA,
1994.
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Disser tações defendidas
Dissertações
Defendidas
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Resumo de dissertações parte 2
Título: ALEGORIAS DA CONDIÇÃO HUMANA: UM ESTUDO SOBRE A OBRA “O TOCADOR DE CHARAMELA” DE ERASMO
LINHARES
Autor : Raimundo Nonato de França Fonseca
Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo
Data de Defesa: 3 de abril/ 2002
Resumo
Estudo sobre as alegorias da condição humana, tal como se apresentam
nas imagens literárias da obra “O Tocador de Charamela”, do contista
amazonense Erasmo Linhares. Investigação dos recursos literários utilizados
pelo autor para configurar alegoricamente a condição humana. Análise da
literalidade da obra, tomando como parâmetro as abordagens críticas
contemporâneas relativamente à arte em geral e à contística em particular,
especialmente o New Criticism, defendido por Afrânio Coutinho, e a Semiótica
Literária, difundida por Umberto Eco. Destaque para os processos narrativos
que apontam para a degradação humana, as intrincadas questões políticas do
período da ditadura militar, as singularidades da vida nos seringais do
Amazonas, a pequenez do homem diante da enormidade do universo e a sua
impotência diante da morte, os desencontros da convivência em família, a
oposição entre o que se é e o que se aparenta ser, o realismo fantástico.
Abordagem sobre a categoria de emblemas da humanidade, ou seja, alegorias
das contingências humanas.
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Disser tações defendidas
Título: O PANÓPTICO VERDE: A AMBIENTALIZAÇÃO DA AMAZÔNIA
ATRAVÉS DO PARQUE NACIONAL DO JAÚ
Autor: Luiz Fernando de Souza Santos
Orientador: Ernesto Renan Melo de Freitas Pinto
Data da Defesa: 17 de abril de 2002
Resumo
Esta Pesquisa examina as práticas referentes à proteção ambiental como
sinal de um processo de ambientalização da natureza, no qual o ambiente emerge
como tática de poder que regula e controla o uso do espaço e dos recursos naturais
pelo homem. O pensamento de Michel Foucault, particularmente sua noção de
biopoder, é a base teórica para a interpretação deste processo de ambientalização,
observado a partir de sua materialização na Amazônia, reconfigurada
contemporaneamente como espaço conectado ao destino ecológico da Terra. A
unidade de fundamentação empírica é o Parque Nacional do Jaú, localizado na
bacia do rio Negro e criado em 1980 para proteger elementos representativos de
um ecossistema de águas pretas. Este Parque é resultado de um complexo exercício
de poder e de saber de cientistas, ambientalistas e da política ambiental brasileira.
Vivem no interior desta unidade de conservação aproximadamente 150 grupos
domésticos sobre os quais pesam as normas, o controle, a disciplina e a vigilância
imposta na área. Portanto, o exercício de biopoder, observado no Parque Nacional
do Jaú, configura-se como um Panóptico Verde, representativo de um olhar
ambientalizado que se estende por toda a Amazônia.
Título: ÇAIRÉ: NOS RIOS DO IMAGINÁRIO, A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE CULTURAL
Autora: Eglê Betânia Portela Wanzeler
Orientador: Prof. Dr. Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro.
Data da Defesa: 27 de abril de 2002
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Disser tações defendidas
Resumo
Esta pesquisa aborda alguns aspectos importantes sobre o imaginário e o
símbolo da Festa do Çairé, que ocorre na Vila de Alter do Chão – cidade de
Santarém/PA há pelo menos quatro séculos. Compreender essa festa pelos rios do
Imaginário foi a tarefa principal da pesquisa, ora porque se apresenta de um universo
simbólico próprio, ora porque se constitui como um movimento constante de
renovação, transformação, recriação e flexibilidade, permitindo o desenvolvimento
de uma cultura que, efetivamente, conduz a vida das pessoas na Vila de Alter do
Chão e cria espaço para a reelaboração da identidade cultural. A abordagem histórica
antropológica perspectivada nesta pesquisa indica alguns caminhos possíveis para
a compreensão do processo de reinvenção do Çairé que irá contribuir efetivamente
para construção da identidade cultural Borari. A pesquisa também trata de refletir
sobre o processo de transformação e transfiguração dessa Festa e suas implicações
na cultura da Amazônia.
Titulo: ANDRÉ VIDAL DE ARAÚJO: PENSAMENTO SOCIAL E
SOCIOLOGIA
Autora: Lúcia Marina Puga Ferreira
Orientador: Ernesto Renan de Freitas Pinto
Data de Defesa: 2 de julho de 2002
Resumo:
Pesquisa sobre o Pensamento Social Brasileiro que tem por objetivos
conhecer e analisar as condições de produção desse pensamento num contexto
periférico da Sociologia no Brasil. Nesta pesquisa, tomou-se como estudo de caso
a obra sociológica de André Vidal de Araújo, identificando e interpretando o
pensamento e obra do autor; compreendendo a Sociologia Brasileira em uma de
suas manifestações regionais não incorporada ao processo de constituição da
Sociologia no Brasil, assim como identificando sua obra no contexto do Pensamento
Somanlu, ano 4, n. 1, jan./jun. 2004
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Disser tações defendidas
Social Brasileiro. Como metodologia, procedeu-se à reconstrução do pensamento
e dos escritos do autor, buscando fazer convergir as sugestões de análise que estão
em Quentin Skinner e Paul Ricoeur. Procedeu-se à análise da obra de Araújo
enfocando as influências em seu pensamento do Pensamento Social da Igreja
Católica, da Sociologia Americana da Escola de Chicago e da Sociologia Brasileira.
Os principais temas analisados são: sua visão sociológica da infância e da educação;
a Sociologia da Amazônia, enforcando aspectos referentes às comunidades
amazônicas, as relações sociedade natureza e a questão agrária; o desenvolvimento
de uma sociologia urbana; e a sociologia visual. Este estudo amplia o quadro do
pensamento brasileiro, por incorporar um autor que tem abordagens pioneiras
para o estudo da Amazônia.
Título: WAIMIRI-ATOARI EM FESTA É MARYBA NA FLORESTA
Autora: Maria Carmen Rezende do Vale
Orientadora: Selda Vale da Costa
Data de Defesa: 4 de julho de 2002
Resumo
Os Waimiri-Atroari, durante muito tempo, marcaram presença no
imaginário do povo brasileiro como guerreiro que enfrentava e matava a todos que
tentavam invadir seu território. Essa imagem contribuiu para que autoridades
governamentais transferissem a incumbência das obras da estrada BR 174 (Manaus–
Boa Vista) ao Exército Brasileiro, que utilizou forças militares repressivas para
conter os indígenas. Esse enfrentamento culminou na quase extinção do povo
kinja (autodenominação Waimiri-Atroari) que utilizaram as festas maryba como
manifestações importantes dessa realidade. Constituem-se em momentos onde
vários grupos locais e aglomerados se reúnem. Festejam o rito de passagem
masculino. O ascender do mundo infantil ao universo masculino adulto nas
Karaweri maryba, Primeira e Segunda Behe maryba. O término da construção da
casa nova – Mydy maryba. A harmonia entre o mundo dos vivos e dos mortos – as
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Disser tações defendidas
lohy maryba. Nessas festas, revela-se toda a complexidade de uma visão de mundo
construída durante século pelos Waimiri-Atroari. A maryba, por ser um espaço
festivo e ritual, conseguiu manter elementos estruturantes da cultura WaimiriAtroari, elementos esses que contribuíram para a residência desse povo diante da
situação de contato com a sociedade brasileira.
Título: MANAUS: PLANO DIRETOR E EXPANSÃO URBANA
Autor: João Paulo Vieira de Oliveira
Orientador: José Aldemir de Oliveira
Data da defesa: 5 de julho de 2002
Resumo
Analisa o Plano de Manaus (1975) nas permanências e transformações
ocorridas no processo de políticas urbanas adotadas pelo Estado, identifica-se o
que motivou o processo de expansão urbana da cidade, comparando as diretrizes
planejadas, com as ações efetuadas pelos agentes produtores do espaço urbano,
destacando a ação do Estado, ao mesmo tempo agente regulador e produtor do
espaço urbano. Compara o planejado no documento e o efetivamente executado,
recorre ao estudo das formas da cidade, tal qual ela hoje se apresenta, verificando
as transformações ocorridas no sistema viário, nos grandes equipamentos urbanos,
na condições de habitação e no uso e ocupação da terra urbana.
Título: O POVO KOKÁMA: UM CASO DE REAFIRMAÇÃO DE
IDENTIDADE ÉTNICA
Autor: Marcos Antônio Braga de Freitas
Orientadora : Selda Vale da Costa
Data da Defesa : 17 de julho de 2003
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Disser tações defendidas
Resumo
O ressurgimento do povo Kokáma no contexto das sociedades indígenas
contemporâneas suscita questões que levam a analisar o processo de reelaboração
de sua identidade étnica. Para isso foi preciso realizar o levantamento etno-histórico
de sua presença na historiografia amazônica, bem como mapear a realidade atual
dessa população no processo de reinvidicação da terra. Historicamente esse processo
vem sendo construído a partir da década de 80, quando esse povo se organiza e
luta pela posse do território. A análise para compreender essa reafirmação identitária
trabalhou com as categorias de identidade étnica, etnicidade e territorialidade,
sendo que esse processo de reelaboração da identidade dos Kokáma se reafirma nas
relações sociais processadas com outros povos e com a própria sociedade envolvente.
O povo Kokáma está espalhado por diversas localidades ao longo do rio Solimões,
desde o município de Tabatinga até o Anamã e na cidade de Manaus, no Estado
do Amazonas. Hoje, os Kokáma lutam e assumem abertamente sua identidade
étnica e são reconhecidos pelas organizações indígenas e a própria FUNAI como
um grupo indígena.
Título: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO SANGUE: UM ESTUDO COM
DOADORES E NÃO DOADORES EM MANAUS
Autora : Maria Zeilla Moreira da Frota
Orientadora: Yoshiko Sassaki
Data de Defesa: 21 de agosto de 2002
Resumo
A dissertação parte do pressuposto de que o ato de doar sangue diz respeito
não apenas a uma decisão pessoal do candidato de ser sensibilizado para tal, mas
envolve fatores que dizem respeito a todo o seu contexto social e cultural. Conforme
a legislação brasileira a doação de sangue deve ser altruísta, voluntária e não
gratificada direta ou indiretamente, com isso, torna-se relevante identificar e
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Disser tações defendidas
conhecer as motivações que envolvem a doação de sangue. Utilizou-se nos procedimentos metodológicos a análise documental e entrevistas numa amostra significativa e não probabilística. Na análise documental através das estatísticas do
hemocentro de Manaus, buscou-se refletir sobre o perfil dos doadores; e nas entrevistas dos grupos selecionados buscou-se refletir sobre as motivações e
representações sociais do sangue na doação. Os dados levantados apontam que o
imaginário social influi na demanda de doadores e em suas respectivas doações.
Assim, compreende-se que a doação de sangue não depende exclusivamente da
“boa vontade” dos sujeitos, mas de fatores que envolvem as condições de saúde do
indivíduo, o estigma cultural do simbolismo do sangue e as representações sociais
que as pessoas adquirem em relação à doação de sangue.
Título : AMAZÔNIA, TERRITÓRIO E PODER: O PROCESSO DE
IMPLANTAÇÃO DO SIVAM
Autor: Thelma Lima da Cunha Marreiro
Orientador: José Aldemir de Oliveira
Data de Defesa: 31 de outubro de 2002
Resumo
Consiste em analisar a reorganização do espaço na Amzônia, com base no
processo de implantação do Projeto SIVAM, cuja função é o de promover um
sistema de rede de informações sobre o território amazônico. Inicialmente é
discutido o exercício do poder no controle do território desde o seu período de
colonização, em busca de maior compreensão das ações estratégicas na Amazônia
brasileira. Reflete-se sobre a importância de um sistema de vigilância, na extensa
área de fronteira amazônica, mas com potencial relevante para compartilhar com
a sociedade nacional. E finaliza-se com uma abordagem sobre a educação articulada
à educação ambiental, buscando apresentar os principais objetivos do SIVAM
sendo repassados à sociedade regional por meio do Projeto SIVAMzinho.
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Disser tações defendidas
Título: MADEREIRA COM SELO VERDE NO ESTADO DO AMAZONAS:
UM ESTUDO ACERCA DAS CONCEPÇÕES DOS
TRABALHADORES SOBRE A CERTIFICAÇÃO FLORESTAL
MADEIREIRA.
Autora: Jocilene Gomes da Cruz
Orientadora: Elenise Faria Scherer
Data de Defesa: 31 de outubro de 2002
Resumo
Este trabalho faz uma abordagem sobre as discussões em torno do
desenvolvimento sustentável como um modelo alternativo de desenvolvimento ao
modelo capitalista vigente. Destacam-se, de modo particular, as propostas de
desenvolvimento sustentável para a Amazônia, como a exploração florestal
sustentada e a certificação florestal atribuída às empresas madereiras que adotam
princípios e critérios com fins sustentáveis, como os estabelecidos pelo Conselho
de Manejo Florestal – FSC. Nesse processo, apresentam-se as assertivas sobre a
Mil/Precious Woods Amazon, a primeira madereira no Estado do Amazonas a ser
premiada com um selo verde, em virtude de realizar sua atividade de exploração
florestal madereira pautada nos princípios do FSC. O objetivo da pesquisa
constituiu em ouvir os trabalhadores dessa madereira, com o intuito de conhecer
suas concepções sobre a certificação florestal concedida à referida madereira,
especialmente para saber o que pensam sobre os critérios sociais contidos na
certificação.
Título: A CIDADE QUE EXISTE EM NÓS: A MARCA DO URBANO NA
POESIA DE ALDÍSIO FILGUEIRAS
Autor: Allison Marcos Leão da Silva
Orientador: Marcos Frederico Krüger Aleixo
Data de Defesa: 06 de novembro de 2002
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Disser tações defendidas
Resumo
A literatura de produção amazonense, especialmente no que se refere à
poesia, tem se valido de temas que historicamente são tido como amazônicos, e
tem se caracterizado como literatura de feição regionalista com tendências aos
velhos motes da natureza – os elementos naturais, tais como o rio, a floresta. As
explicações para tal predileção não são simples e são várias; remontam mesmo a
um período anterior à chegada do europeu a estas terras e sedimentaram-se nas
mentalidades artísticas a partir da própria consolidação de certos traços do
imaginário geral sobre a Amazônia. No entanto, a cidade, que não está incorporada
plenamente a estes estereótipos, é um elemento muito forte que, independente
das tentativas de que a ocultem, emerge indireta ou diretamente nos discursos
literários e artísticos de uma forma geral. No caso do Amazonas, nosso maior
representante de literatura urbana é certamente o poeta Aldisio Filgueiras. Sua
produção, que já soma quase trinta anos, sempre trouxe a cidade como um dos
temas mais presentes, senão o mais freqüente. Interessados em conhecer alguns
dos motivos que levaram a produção literária amazonense a se consolidar sob a
égide do regionalismo estereotipado, e mais interessados ainda em compreender
as inúmeras retratações da cidade na poesia de Aldisio Filgueiras, resolvemos
pesquisar a marca do urbano em tal poética, especialmente nas obras Malária e
outras canções malignas, A república muda e Manaus, as muitas cidades, livros que
foram por nós estudados. Para tanto, nos foi necessário observar de que maneiras a
cidade tem sido percebida pela literatura universal. Um estudo da formação do
pensamento social da Amazônia também se mostrou importante, para que
obtivessem respostas satisfatórias acerca da grossa corrente regionalista já citada. A
apreciação da forma poética de Aldisio Filgueiras e sua relação com as formas de
comunicação urbanas ganhou relevo à medida que percebemos que esta é uma
poética bastante original do ponto de vista da forma. Concluímos o trabalho com
uma análise da marca do urbano nesta poética a partir de quatro pontos específicos
– o tempo, a memória, o choque e a multidão. A dissertação tenta utilizar
colaborações da crítica psicanalítica e da formalista, dada a complexidade do tema.
Tais contribuições se fazem presentes como ferramentas quando necessárias, e têm
como fio condutor a compreensão da literatura a partir das relações históricas
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Disser tações defendidas
entre arte e sociedade. Percebemos, por fim, a poesia de Aldisio Filgueiras como
representativa de uma modernidade que atualiza o discurso poético amazonense,
posto que traz um homem repleto de conflitos e repartições. Sua poesia tem a
cidade não somente como meio ambiente; ela desenvolve mesmo uma relação de
convivência com a urbe, que, como em toda convivência, traz suas benesses e seus
malefícios.
Título: A ENCRUZILHADA DO PECADO, YE’PÁ E O IMAGINÁRIO
SEXUAL NO MITO TUKANO DE CRIAÇÃO DO MUNDO
Autora: Maria das Graças de Carvalho Barreto
Orientadora: Heloísa Lara Campos da Costa
Data de Defesa: 18 de novembro de 2002
Resumo
O trabalho evidencia os contrastes entre a visão que os descobridores
europeus e alguns naturalistas do século 18 construíram sobre a sexualidade indígena
e o imaginário sexual dos povos da Amazônia, representados pela narrativa mítica
de Séribhi, Te’ónari-Kumu, da etnia Tukano. A pesquisa revela a impossibilidade
de encontro entre uma concepção de sexualidade fundada na misoginia e na rejeição
das manifestações e das imagens corporais e o imaginário sexual de uma cultura
que constrói sua identidade calcada na figura feminina, em torno da Deusa Ye’pá,
Criadora do universo cósmico do pensamento Tukano. Séribhi-Kumu, cujo nome
de batismo é Gabriel dos Santos Gentil, em sua narrativa, revela a importância da
sexualidade para o seu povo, quando identifica o ato criativo como ato sexualcerimonial. O Corpo e a sexualidade, centro das epifanias, é a própria essência da
criação. Todas as cerimônias e rituais celebram e recriam as núpcias entre a Deusa
Ye’pá e os entes por ela criados: Criador e Criatura estão de tal modo unificados
que um é a própria essência do outro, no plano real e imaginário, no universo
sagrado e no universo profano. O pecado fica na encruzilhada da
transcontinentalização e da trasculturação, porque, até então, “não havia pecado
do lado de baixo do equador”.
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Disser tações defendidas
Título: AS FESTAS POPULARES DA AMAZÔNIA NAS REDES DE
COMUNICAÇÃO; UM ESTUDO SOBRE O BOI-BUMBÁ DE
PARINTINS, A CIRANDA DE MANACAPURU E O ÇAIRÉ DE
ALTER DO CHÃO E AS SUAS RELAÇÕES COM O MERCADO
CAPITALISTA
Autor: Wilson de Souza Nogueira
Orientadora: Marilene Corrêa da Silva
Data de Defesa: 20 de dezembro de 2002
Resumo
Este trabalho trata da relação das festas populares amazônicas com o
mercado capitalista por intermédio de pesquisa sobre o Boi-bumbá de Parintins,
a Ciranda de Manacapuru e o Çairé de Alter do Chão. Os três eventos atraem a
atenção de milhares de turistas e dos meios de comunicação. Há pouco tempo, as
três folias não ultrapassavam os domínios dos lugares nos quais são encenadas.
Esse fenômeno foi analisado sob a orientação de pesquisas na literatura pertinente
e nas incursões de campo, com ênfase às informações dos atores sociais nele
envolvidos. Produziu-se, a apartir daí, uma reflexão que aponta as festas populares
em acelerado processo de ressignificação de conteúdo discursivo e plástico para se
adequarem às exigências do mercado capitalista. Embora estejam satisfazendo as
necessidades de um mercado que movimenta milhões de reais, as populações que
produzem e legitimam as três festas não são recompensadas com melhorias de
qualidade de vida. A televisão aparece como principal ferramenta no processo de
apropriação dessas festas populares pelo mercado por causa da sua singularidade
no transporte de imagem e áudio ao mesmo tempo e por estar atrelada aos interesses
do poder econômico. Para se contrapor ao quadro de exploração mercantil
exacerbada dos bens simbólicos, este estudo sugere mudanças nas relações de
produção, distribuição e consumo dos bens culturais, para que se tornem
democráticos e voltados à contrapartida social. Esse tipo de intervenção dependerá,
prioritariamente, da articulação das camadas que estão relegadas literalmente ao
papel de figurantes na realização desses eventos.
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Nome ar tigo
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devem ser destacadas do texto, em itálico, sem aspas.
5. As referências bibliográficas devem obedecer aos seguintes modelos: [MARCUSE, Hebert
(1972). Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar], [GALVÃO,
Eduardo (1951). Boi-bumbá; versão do baixo Amazonas. Anhembi. São Paulo, v. 3,
n. 8, julho, p. 276-291.], [SACHS, Ignacy. Estratégia de tradição para o século XXI.
In: BURSZTYN, Marcel. (Org.). Para pensar o desenvolvimento sustentável. São Paulo:
Brasiliense, 1993, p. 29-56.].
6. Anexo: caso existam, devem vir depois das referências bibliográficas.
7. Os textos serão submetidos à análise de consultores de acordo com o tema abordado.
8. Os autores que tiverem artigos publicados receberão um exemplar da Revista.
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