o inferno no cinema, uma visão dantesca para

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o inferno no cinema, uma visão dantesca para
O INFERNO NO CINEMA, UMA VISÃO DANTESCA PARA BLADE RUNNER1
Paulo de Tarso Coutinho Viana de Souza2
Resumo: Este artigo procura mostrar como o inferno, ao contrário do que se pensa, não
desapareceu, mas continua sendo representando por roteiristas, diretores de cinema,
desenhista de quadrinhos e game designers. Sua representação mudou, o infernou deixou de
ser algo para onde se vai e passou a ser o lugar onde se está. Ele não é mais lá, mas aqui, e
carrega toda carga simbólica de se estar aqui. Não é o fogo constante, mas os desastres do
mundo moderno que alimentam o inferno. Desordem genética, poluição, sujeira, escuridão
fazem parte desse inferno agora. Como exemplo, utilizamos Blade Runner, filme de Ridley
Scott, de 1982, para demonstrar como esse inferno está sendo reconstruído a cada dia por
novos atores e autores. Procuramos demonstrar que esses novos intérpretes não abandonaram
a noção de inferno, mas a atualizaram e a trouxeram para os nossos dias, nos inserindo num
inferno que todos esperam evitar no pós-morte.
Palavras-chave: inferno, Blade Runner, Dante Alighieri
Abstract: This paper seeks to show how the hell, contrary to popular belief, not disappeared,
but still representing for writers, filmmakers, comic book artist and game designers. His
representation has changed, the infernou ceased to be something where you go and became
the place where it is. He is no longer there, but here, and loads all symbolic of being here. It is
the constant fire, but the disasters of the modern world that feed the inferno. Genetic disorder,
pollution, dirt, darkness are part of this hell now. As an example, we use Blade Runner,
Ridley Scott, 1982, to demonstrate how this hell is being rebuilt every day for new actors and
authors. We demonstrate that these new interpreters have not abandoned the notion of hell,
but updated and brought it to the present day, including in an inferno that all hope to avoid in
the afterlife.
Keywords: hell, Blade Runner, Dante Alighieri
Introdução
“hell disappeared and no one noticed”3
Apesar da epígrafe acima afirmar que o inferno desapareceu, e discutir ou conversar
sobre o tema inferno nos dias atuais parece anacrônico - e pesquisar e estudá-lo mais ainda Trabalho apresentado no Seminário Temático “Narrativa Audiovisual”, durante a I Jornada Internacional
GEMInIS, realizada entre os dias 13 e 15 de maio de 2014, na Universidade Federal de São Carlos.
1
2
Paulo de Tarso Coutinho Viana de Souza é arquiteto formado pela PUC-Campinas, é artista plástico e designer gráfico.
Atualmente é mestrando em Multimeios pelo Instituto de Artes da UNICAMP, e seu foco de estudos é o inferno e suas
representações. Estuda as imagens contemporâneas, especificamente no cinema.
3 BLANCHARD JOHN. Whatever Happened to Hell? Foreword by J.I. Packer.England: Evangelical Press 1993
1
não há dúvida que o assunto continua chamando a atenção, para isto basta ver pesquisas de
opinião que volta e meia a mídia publica. De alguma forma as pessoas continuam a ter uma
noção, ainda que vaga, sobre o inferno e suas representações, menos religiosas e mais
calcadas no dia-a-dia, como mostra a pesquisa feita pelo site da UOL, no seu caderno Mulher
04 de agosto de 2014:
"Inferno me remete automaticamente à obra de Dante Alighieri. Mas
também não tem como não pensar no trânsito nosso de cada dia. Se o
inferno é quente, abafado e irritante, então, o diabo criou o trânsito sem arcondicionado". (AV, 29 anos)
"Inferno é não poder ligar no dia seguinte. Inferno é não entrar naquela
calça. Inferno é ter que se controlar com sexo e comida". (A.D., 52 anos)
“Leiam e a Bíblia e saberão o que é inferno. Neste livro que é o manual
para o ser humano também está escrito: "O meu povo sofre por falta de
conhecimento". Trocado por miúdos, o inferno é sepultura, ou, o mesmo
que hades. Esse negócio de ficar queimando por uma eternidade é conto da
carochinha, pois não há nada que queime para sempre”. (I, sem idade
mencionada)
Muitas das visões apresentadas pelas pessoas são na verdade os desconfortos da vida
moderna tais como congestionamento, violência, insegurança temor e medo. Entretanto o
inferno desde sua origem era bem mais do que as consequências da vida, era o supremo
castigo que ultrapassava todas as dificuldades do presente, para se tornar um suplício no
futuro. Atualmente, o inferno deixou de ser algo que iria acontecer no futuro, para se tornar
um tormento presente. O inferno não é mais lá, mas sim o aqui e agora.
Ainda que seja o alvo preferencial das religiões, o inferno ocupa atualmente um lugar
relativamente maior do que ocupava no passado graças às novas formas de visualização, mais
acessíveis, veiculadas através de vídeo games quadrinhos, filmes, livros. Esse fenômeno
ocorre porque até o começo do século XIX as imagens sobre o inferno estavam condicionadas
ao âmbito da religião e somente a partir do começo do século XX essas visões começaram a
ser acessíveis através de outros meios de comunicação.
Esta passagem se deu provavelmente na conjunção de uma série de fatores, dentre
eles o crescente cientificismo do século XIX, o surgimento da fotografia e o consequente
aparecimento do cinema. Os antigos representadores - pintores, desenhistas e gravadores - do
inferno deixaram de atuar e surgiram em cena roteiristas, diretores de cinema, desenhistas de
quadrinhos e, mais recentemente, “games designers”. Por que isto aconteceu? Ora o inferno
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sempre exerceu uma enorme fascinação entre os artistas, pois a busca de sentimentos
estremados, paixões e sensações mórbidas sempre fizeram parte do processo visionário dos
artistas.
Além de presença nas expressões artísticas, o inferno é uma das crenças
fundamentais das religiões ocidentais, sendo de interesse estudá-lo do ponto das ciências
humanas, pois a crença neste lugar de pagamento de penas se tornou um dos pilares do
controle social no ocidente. O medo da punição é uma forma efetiva do controle social e tem
funcionado há séculos (ARIES, 1989).
Uma vez que não é possível estudar diretamente o inferno, a investigação aqui
proposta é desvendar como o inferno e suas representações foram se transformando com o
passar dos séculos, e o que/quem hoje o representa do ponto de vista da imagem (e não
institucional, cuja primazia continua a pertencer ao âmbito religioso). Para que possamos
investigar esse tema é importante, portanto, voltarmos no tempo para descobrirmos como a
noção do inferno foi pouco a pouco passando de religião em religião, tendo grande destaque
na visão medieval apresentada por Dante Alighieri.
Estudar a formação da ideia de inferno requer longo tempo e muitas páginas para
explicar desde as origens de suas concepções, passando pela tipologia de castigos, até sua
própria topografia e tamanho, o que acarretaria extensões não permitidas no espaço de
publicação deste artigo. Por essa razão a apresentação feita aqui sobre o inferno será breve,
focando em aspectos que auxiliaram ao leitor observar como esse lugar foi sendo criado e
recriado. Para refletir sobre leituras mais contemporâneas do inferno, neste texto a escolha
da produção cinematográfica Blade Runner (EUA, 117 min.,1984), um filme de ficção que
se transformou num estrondoso sucesso após uma carreira que despontava para o fracasso,
reside na presença de inúmeras referencias ao inferno, porém com mudanças na formas de o
representarem pictoricamente. A análise desse material será baseada na abordagem
semiótica, assim como na hermenêutica profunda.
A escolha desses dois referenciais teóricos se deve a uma série de fatores. O
primeiro foi a dificuldade que um estudo que busca uma abordagem científica sobre o tema
inferno enfrenta. A função da ciência é medir, contar, prever, determinar, repetir, esclarecer,
em outras palavras, a ciência providencia um substrato mensurável para as coisas e, assim,
ficamos seguros delas por serem científicas. Mas quando se trata do inferno, as reações
rapidamente surgem: isso não é cientifico! Entretanto este é nosso ponto de partida. A
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pesquisa não se concentra existência ou não do inferno, mas na sua (des)crença 4 e nas
interpretações e visões encontradas sobre ele.
Mas o que é a crença? “Encontramo-nos, sem dúvida, entre os principais animais
lógicos”1, portanto precisamos acreditar em algo ou alguém que nos tire do estado de dúvida
e nos coloque no conforto da crença, qualquer que seja ela. Vale aqui dizer que a própria
ciência é de alguma forma uma crença que nos faz acreditar que as coisas são como ela as
descreve. Outra definição sucinta de crença poderia ser: “estado ou processo mental de
quem acredita em pessoa ou coisa”2, assim precisamos da crença e da dúvida para existir.
Para abordar a crença no inferno (e seus desdobramentos, como as criações
artísticas relacionadas a esse tema), precisamos submetê-la a um processo científico.
Acreditamos que esse procedimento seja possível, pois qualquer crença pode ser observada,
medida, contada, descrita, enfim analisada, e o inferno é apenas é uma dentre outras
respostas sobre a dúvida do que nos aguarda.
Todo investigador precisa de ferramentas para análises cientificas. Da mesma
forma que um arqueólogo precisa de pás e espanadores para investigar camadas, nossa
pesquisa irá utilizar ferramentas para investigar as camadas que se depositam sobre a crença
ou noção de inferno e suas representações atuais.
Partimos, portanto, do princípio que a construção do nosso mundo ocorre pela
justaposição de camadas, que não passam de semioses, assim como transformações
temporais em busca de novas significações.
A exemplo da arqueologia, façamos da semiótica peirciana e da hermenêutica
profunda nossas ferramentas de investigação, pois elas nos ajudarão no processo de
investigação das camadas que estão submetidos os signos. Uma investigação ao fundo de
um tema por vezes requer mais que uma única ferramenta, uma vez que o tema se enraíza
rizomaticamente, trazendo outros elementos para o debate sem que possamos escapar deles.
A ciência dos signos nos dará a possibilidade de investigar o processo de significação por
trás do signo “inferno”, pois o processo lógico que Peirce nos legou nos permite investigar
toda a simbologia que podemos encontrar no filme Blade Runner. Porém, precisamos de
algo a mais para compreender como estas crenças e estes símbolos se relacionam e para isto
precisamos buscar a ajuda da hermenêutica profunda. A hermenêutica nos ajudará com todas
4
Um indivíduo não precisa necessariamente crer no inferno para ser capaz de imaginar como ele seria.
4
as relações estabelecidas no que diz respeito ao inferno, sejam elas de ordem histórica,
social, religiosa e etc.
Como aponta Thompson (1995) “... a análise dos fenômenos culturais, isto é a
análise das formas simbólicas em contextos estruturados” nos possibilidade enxergar os
fenômenos da cultura através de três fases. A primeira uma analise socio-histórica, que
analise o fato dentro do contexto onde ele acontece e de como ele é percebido. Já a segunda
uma análise formal ou discursiva, que estuda como estes símbolos se apresentam e que
procura entender suas estruturas, aspecto importantíssimo para compreender que estas
formas simbólicas “tem a possibilidade de e afirmam representar algo, significar algo, dizer
algo sobre algo” (THOMPSON, 1995), portanto ela não pode estar de maneira alguma
desvinculada de sua análise histórica. A última fase da hermenêutica profunda pode ser
chamada de interpretação, ou reinterpretação, pois “esta fase se interessa pela explicitação
do que criativa do que é dito ou representado pela forma simbólica” (THOMPSON, 1995).
I. E o inferno surgiu....
As primeiras referências escritas a respeito do inferno se encontram nas lendas
sumerianas, datadas do século XI antes da era comum, que contam a história de Inanna,
rainha do céu e da terra, chamada de Ishtar, Astarte e Ashthoreth pelos povos babilônicos
(VAN SCOTT, 1998). Inanna queria visitar sua irmã que vivia no mundo inferior (em geral
conhecido como o mundo dos mortos), chamado de Ereshkigal. Antes de partir ela
preventivamente avisou o vizir o que deveria ser feito caso ela não retorna após ter
ultrapassado os seis portões que regulavam a passagem até o mundo inferior. O tempo que
ela fica no reino inferior varia de acordo com as culturas da região (sumérios, assírios,
caldeus e acadianos diferem de três dias a uma estação, reproduzindo aqui o mito da
fertilidade e das estações). Mas a irmã de Inanna não está disposta a liberá-la, mantendo-a
no mundo inferior, então o vizir consegue junto aos deuses um resgate. Dumuzi, um pastor
consorte de Inanna, vai buscá-la e um acordo é feito: ele passa seis meses com Inanna e
outros seis com sua irmã. Este mito tornar-se-á recorrente em todas as culturas e trás consigo
as explicações para a mudança das estações e a visão de um mundo após a morte.
Talvez a mais importante contribuição para a representação do inferno,
principalmente o católico, tenha sido dada pelo zoroastrismo3, religião nascida no oriente
5
médio, criada por um profeta chamado Zoroastro. Dentre as influências do zoroastrismo
sobre o catolicismo está a visão de inferno, pois a religião de Zoroastro se baseia numa
concepção dualística do mundo, onde há uma luta permanente entre o bem e o mal, que tem
seres como o demônio Ahriman, o senhor das mentiras que habita a escuridão do inferno. É
importante notar que já no zoroastrismo há a noção da ausência de luz no inferno, onde suas
chamas gerariam um calor insuportável, mas não luz.
No zoroastrismo a alma ronda a cabeça do morto durante três dias após sua morte e
somente terminado esse período é que se inicia o julgamento onde as ações boas são créditos
e as más débitos. Tal julgamento acontece na entrada da ponte “chinvat”, ou ponte da
contagem, e se a pesagem for boa, ou seja, os atos bons forem mais numerosos do que os
maus, a deusa Daena acompanhará a alma através da ponte para a casa das canções. Porém,
se for negativa, ou seja, as más ações pesarem mais do que as boas, ainda que seja por uma
fração mínima, a alma cai no inferno, que no zoroastrismo não é eterno, mas dura até o
período de resignação das almas.
O processo descrito acima, com os condenados indo para o inferno, faz parte de um
processo educativo, uma tentativa de se conter comportamentos transgressores da sociedade.
É uma forma coercitiva de manter o conjunto da sociedade em um comportamento ditado
pela religião e pelo poder. Outro exemplo forte desse funcionamento é encontrado na mais
importante obra de Dante Alighieri, escrita em 1304 e 1308, conhecida como a Divina 5
Comédia6.
Essa obra retrata a viagem do poeta e de seu mentor Virgilio, poeta da antiguidade
clássica, ao périplo que vai do inferno ao paraíso com sua Beatriz e Dante usa inúmeras
referências para compor seu inferno, desde a mitologia grego-romana com seus deuses,
passando pelas características do inferno der Zoroastro até a descrição atormentada do novo
testamento.
4
Parte da trilogia poética comédia, posteriormente chamada de divina por Boccacio.
Para os gregos, tudo que começa bem e termina mal é uma tragédia e aquilo que começa mal e termina bem é uma comédia.
Por tanto o termo comédia não está relacionado ao senso atual, que seria algo temperado pelo humor. Dante vivia o inicio da
descoberta da importância das civilizações grego-romana, ou seja, o começo do Renascimento na Itália, conhecido como
“trecento”.
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1.1 Representações infernais
Imagem 1: Santuário de Notre-Dame des Fontaines, La Brigue. Julgamento final: alma dos
danados Século XV.
Fonte: Wikipedia
Há poucas imagens sobre o inferno antes do século VI, pois somente após a
consolidação da Igreja como religião oficial do estado é que toda uma cultura imagética irá
surgir e perdurará por mais de 1200 anos. Sabemos que a pintura, a partir do século VI, será
uma importante forma de transmitir a mensagem da igreja a uma massa enorme de iletrados
na Europa medieval (MONTEIRO, 2009).
A imagem ocupará o centro de irradiação do conceito de inferno, visto que somente
após a implantação da impressão, um forte impulso da educação, é que o texto se tornara um
importante veículo de difusão dos dogmas da igreja.
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Imagem 2: O julgamento final, Bosch,
Fonte: Hierophant
A imagem, seja ela impressa, pintada ou desenhada será importante até o impacto
sofrido pelas artes com a invenção da fotografia nos anos 30 de 1800, e irá perdurar até
nossos dias. A fotografia foi um impacto tal na forma de se representar o inferno que é
possível dizer que a partir do início do século XX tais representações iriam diminuir
substancialmente, migrando para outras artes que não a pintura, o desenho e a gravura. A
fotografia impactou consideravelmente as artes clássicas, uma vez que a capacidade de
reproduzir o real ultrapassou em pinto ao mais habilidoso artista. As artes tiveram que
buscar novas formas de representação, e não por acaso que os grandes movimentos artísticos
surgiram após 1870, como o impressionismo, e logo no começo do século XX os
movimentos artísticos se acumularam, dentre eles o dadaísmo, o surrealismo e o
abstracionismo. Todos esses movimentos são frutos da necessidade de uma nova
representação, que não abranja apenas o real, mas também o irreal.
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Como o inferno foi representando por inúmeras expressões artísticas, não haveria
aqui espaço suficiente para falarmos sobre todas elas. Por essa razão o foco deste artigo
cairá sobre as representações infernais feitas pela sétima arte. O cinema, desde seu princípio,
devotou uma parcela significativa de seu imaginário ao medo e ao terror (com exemplos
temos o Faust aux enfers e le cake-walk infernal, de Georges Méliès, ambos de 1903;
L’inferno de Giuseppe De Liguoro, de 1911, entre muitos outros) substrato inerente ao medo
pelo castigo eterno (VUILLAUME, 2013). Não é a toa que Félix Gattari o chamou o divã do
pobre, uma vez que massas tiveram acesso ao cinema a baixo custo - uma diversão barata,
que hoje movimenta bilhões.
O cinema nasce em 1895, ou seja, tem pouco mais de 100 anos, porém nesse curto
período de tempo ele se tornou de importância capital para a cultura. Essa forma de arte é
uma grande impulsionadora de crenças e hábitos, pois quando entramos no cinema, temos
aquilo que se chama a suspensão da crença (COLERIDGE, 2001) e passamos a crer
absolutamente no que nossos olhos estão vendo, estando abertos à incorporação de visões,
ideologias e crenças que vemos nos filmes.
Atualmente as representações do inferno não se situam mais no rol das coisas que
fazíamos no dia a dia e que poderiam nos conduzir à danação eterna, como fora na Idade
Média, onde a preocupação religiosa com o pós-morte ocupava um espaço considerável na
vida das pessoas12. Agora ela se resume a uma mistura de situações do cotidiano envolvendo
mais a ausência de Deus e uma forma indefinida de tormentos!
II. O Futuro do inferno
Blade Runner é um filme do diretor Ridley Scott, de 1982, que tem em seu elenco
atores como Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, Daryl
Hannah, Brion James, William Sanderson e M. Emmet Walsh, seu roteiro é de Hampton
Fancher e David Peoples, tendo sido vagamente baseado no livro Sonham os andróides
com ovelhas elétricas? (Do the androids dream with eletric sheeps?) de Philip K. Dick,
escritor de ficção científica.
O filme se passa em 2019, em Los Angeles, local para o qual seis “replicantes” –
seres artificiais com aparência totalmente humana - retornam ao planeta Terra, em busca de
uma alteração em sua programação que visa a extensão de seu tempo de vida, pois são
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programados para terem somente quatro anos de vida. Os replicantes são criados para diversas
funções para as quais os humanos não têm a capacidade necessária, por serem perigosas ou
então para darem prazer. Por representarem perigo, essas criaturas foram banidas da Terra e
só podem se estabelecer nas colônias de exploração extraterreste. No caso de uma fuga, eles
são caçados e aposentados (como não são humanos, não são mortos) por caçadores
especializados chamados blade runners.
Jonh W. White em um artigo para o agregador de blogs e portal “The Huffington
Post”, reproduzindo um comentário de Ridley Scott, diz comentando seu filme, que uma das
razões do insucesso de seu filme junto a audiência foi a esmagadora complexidade e
escuridão que foi o resultado da “acumulação caleidoscópica de detalhes... em cada canto de
cena”. O filme, segundo ele, é um “bolo de 700 camadas”.
Ao se analisar Blade Runner é exatamente essa sobreposição de camadas que
encontramos e que nos cabe investigar. A ilusão começa com o próprio filme – matéria na
qual gravam-se as imagens – que é tão somente uma sequência determinada de fotogramas,
fixos, posicionados e ordenados de tal maneira que, a 24 quadros por segundo, temos a
sensação de movimento. O olho humano e o cérebro não são capazes de notar a sequência de
fotos estáticas que passam em sucessão, portanto, a rigor, o cinema é uma série finita - ainda
que grande - de fotos paradas. Mas se pudéssemos fazer como Dick Deckard - o personagem
de Harrison Ford em Blade Runner - e conseguíssemos entrar na foto para investigar do
ponto de vista semiótico o que se esconde por trás destes fotogramas, ganharíamos uma
capacidade muito interessante e que muito revelaria sobre o cinema.
A primeira coisa que podemos notar ao “entrarmos” em um filme é que nada é
exatamente o que parece, e o que parece não é exatamente o que é. O cinema é produzido em
inúmeras camadas, umas sobrepostas às outras, sem que uma necessariamente uma atrapalhe
a outra. São camadas e cabe ao público ou ao pesquisador desvendar.
Embora seja possível afirmar que há camadas em todos os filmes, em alguns elas se
encontram achatadas pela falta de maiores significações. Essa é uma diferença de filmes como
Blade Runner e outros7: as camadas de significação são muitas. As coisas não são somente o
que são, mas significam outras coisas e guardam referencias importantes para o observador
7
Outro exemplo muito citado é a triologia Matrix (1999-2003) dirigido pelos irmãos Wachowskis. Para mais detalhes ver,
por exemplo, SILVA, FC. The matrix: a aventura da formação no mundo tecnologizado. Educação e Sociedade, Campinas,
vol. 28, n. 101, p. 1545-1561, Set./Dez. 2007 e GIRON, LA. A verdade oblíqua – entrevista com Jean Baudrillard. Revista
Época. Edição 264, de 09 de junho de 2003. Disponível no endereço <http://revistaepoca.
globo.com/Epoca/0,6993,EPT550009-1666,00.html>
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atento - em Blade Runner uma cadeira não é apenas um objeto de se sentar, ela uma cadeira
Makintosch. A seguir iremos demonstrar como um único fotograma de Blade Runner contém
uma série de sentidos, assim como as maneiras que o inferno se encontra representado nesse
filme.
Imagem 3: O apartamento de Deckard,e ao fundo peças moldadas a partir do projeto de Frank Lloyd
Wright
Fonte: Blade Runner (1982)
Na imagem acima é possível observar que o personagem de Harrison Ford veste uma
roupa que não é uma peça qualquer, ele veste uma roupa de um período que não é o mesmo
do filme. A trama acorre em um futuro não muito longínquo - Los Angeles de 2017 enquanto o filme é de fato filmado em 1982, ou seja, uma diferença de 35 anos. Essa é a idade
sugerida de Dante, no meio de sua caminhada.
Para que o protagonista vista como um investigador de filme “noir” da década de
1940/50, alguém pensou e idealizou a vestimenta, pois personagens não usam roupa própria.
Antes do figurinista criar as roupas, o roteiro aponta claramente qual é o estilo de vestimenta a
ser usado, estabelecendo um padrão para todo o filme. Esta é uma camada que poderíamos
chamar de figurino.
Dick Deckard mora num apartamento que também não é um apartamento qualquer,
ele foi projeto para ser um lugar específico com referências (ver imagem 3). O apartamento
em questão utiliza fragmentos da arquitetura de Frank Lloyd Wright 8 , não por acaso, um
8
Arquiteto norte-americano (1987-1959) passou pelas profundas transformações do final do século XIX e as grandes
revoluções tecnológicas do século XX, incorporando a tecnologia em seu design. Ele é considerado um dos mais
proeminentes arquitetos do século XX. Informação disponível em <http://www.franklloydwright.org/about/Overview.html>
Visitado 20/08/2014.
11
arquiteto tardio, que começou aos 42 anos. Isso pode ser um reflexo de umas das questões
centrais do filme, que não é a idade, mas o tempo. Todas as referências arquitetônicas do
filme poderiam ser agrupadas em uma camada chamada decor. O espaço é pensado de forma
integral, a decoração, a iluminação e cada detalhe são pensados como uma camada
independente.
Toda a parte de equipamentos da casa (televisão, telefone, geladeira) é pensada sob
uma ótica sígnica 9 , ou seja, existe um significado em cada elemento do cenário. Os
componentes não estão colocados em cena por acaso, eles foram desenhados e construídos
não para compor o cenário, mas, sobretudo, para criar uma espécie de futuro do pretérito. Essa
afirmação se baseia na seguinte observação: os equipamentos apesar de se situarem em um
futuro (o filme foi feito em 1982, mas projeta um futuro de 2019) têm a aparência de
equipamentos do começo do século XIX e XX, adotando uma estética conhecida como
steampunk10.
Imagem 4: Iluminação de neo.
Fonte: Blade Runner (1982)
Com relação à iluminação, toda a narrativa do filme se dá sob uma ótica específica:
tudo é escuro, sombrio e úmido, ou seja, existe uma camada chamada iluminação onde os
dados de quantificação de luz são pensados de maneira a imprimir no espectador uma
sensação de opressão exercida pelo espaço. Essa sensação envolve todos os personagens e
objetos em cena, sendo que nada é claramente iluminado. Porém, há a presença constante de
letreiros em neon, o que, juntamente com o tipo de iluminação presente, estabelece um ar
9
Ou seja, utilização de signos na produção artística.
Steampunk é um sub-gênero da ficção científica que caracteriza tipicamente máquinas a vapor, especialmente em um
ambiente inspirado pela civilização ocidental industrializada durante o século 19. Informação disponível em
<http://en.wikipedia.org/wiki/Steampunk>. Visitado em 23/08/2014.
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excessivamente cosmopolita a cidade de Los Angeles. A iluminação em neon poderia ser
outra camada, visto que ela está em todos os lugares do filme. A introdução do personagem
Decard a câmera passa por uma imagem de um dragão todo ele em neon.
A temperatura é outra camada. Todos os ambientes possuem ventiladores e
curiosamente não possuem ar condicionado, o que acentua a sensação de calor à qual todos os
personagens estão sempre submetidos.
Outra camada encontra é a névoa. Em todo o filme uma constante fumaça envolve os
personagens, principalmente na presença marcante da personagem Raquel, interpretada pela
atriz Sean Young. Sem a presença de uma ordem antitabagista, Raquel lança fumaça,
reforçando o ar noir do filme. Além disso, praticamente todos os ambientes são enfumaçados
e escuros, o que serve para compor aquilo que podemos definir como um ambiente típico de
filmes “noir”, bem anos 1950, sendo um exemplo no em Blade Runner a sala de
interrogatório, claramente inspirada em Casablanca (1942), dirigido por Michael Curtiz.
Outro exemplo é a forma como a cidade de Los Angeles no ano de 2019 é representada:
envolta em jatos de fogo, fumaça e névoa11.
A linguagem é também uma camada. Todos na cidade parecem falar, além do inglês,
uma variedade de línguas, o que cria quase que uma nova língua. Um exemplo é a linguagem
do investigador Gaff (interpretado pelo ator Edward James Olmos), que fala uma mistura de
chinês, tailandês, húngaro e inglês. Ao misturar as línguas se cria a imagem de uma babel,
que, assim como na Bíblia. Sofre os castigos provenientes de Deus, o que ressalta a ideia que
o paraíso não está mais na Terra, mas fora dela.
A música que permeia todo o filme é uma camada específica, onde as ações
acontecem por um ritmo ditado pela sucessão de sons. O responsável pela trilha sonora, o
compositor Vangelis, que é de origem grega - algo pouco usual no rock dos anos 1960/70,
produziu uma música etérea, bem de acordo com a atmosfera do filme.
Com relação à presença do inferno em Blade Runner, ela é encontrada desde o
momento iniciais do desenvolvimento do filme, a maquete da cidade de Los Angeles foi
chamado pela equipe de filmagem e por Ridley Scott de “Hades”, nome dado ao inferno em
grego. Ou seja, houve a intenção deliberada de se criar um inferno em uma Los Angeles
ambientada em 2019. A abertura do filme já mostra esta visão, onde as estruturas das
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Ridley Scott, além de querer imprimir mais densidade ao filme, disse que a escuridão ajudava a disfarçar e economizar no
set de filmagem.
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possíveis refinarias jogam ao ar explosões com fogo e
gazes, além da cidade estar envolta permanentemente
em uma névoa e chuva12. Estas montanhas de camadas
servem para ressaltar a cuidadosa construção de um
espaço onde os personagens vivem como um
verdadeiro inferno moderno, não mais com fogo, mas
água, frio e lágrimas.
Outro elemento que nos remete ao inferno é o
nome da empresa que cria os replicantes. A palavra
“tyrell” pode ser lida como “ty hell”, sendo que “ty”
pode ser interpretado como uma variação do inglês
antigo “thy” (pronome possessivo da segunda pessoa
Imagem 5: Prego
Fonte: Blade Runner (1982)
do singular) mais a palavra “hell”, ou seja, “eu
inferno”. Reforçando essa interpretação observamos no logotipo da empresa, além da imagem
dos olhos de coruja, um tridente invertido. Reforçando a ideia de algo diabólico e infernal.
Uma empresa que tenta fazer algo mais humano dos que os humanos, tal qual satanás que
tenta ser mais que Deus ou se equiparar a Ele.
Uma cena que também trás elementos cristãos é a que Roy Batty (interpretado pelo
ator Rutger Hauer) aparece com um prego transpassando a sua mão.
Claramente uma analogia teológica, essa imagem nos remete à crucificação de
Cristo. O criador de Roy Batty não evita a sua morte, assim como Deus não evitou a morte de
Cristo, Porém Batty mata o outro elemento que nos
chama a atenção é a pomba branca que ele segura em
suas mãos, o que parece completar a divina trindade: o
pai (que ele incorpora ao matá-lo), ele como filho
(Cristo) e o Espírito Santo.
Encerrando, a ação final do filme se dá na
Zona 9, uma única vez citada no filme, quando o corpo
de Sebastian - o genetiscista que trabalha na Tyrell - é
identificado. Sabe-se que ele mora nesta zona e o
12
Imagem 6:Tyrel.
Fonte: Blade Runner (1982)
Cabe notar que no livro de Philip K. Dick é uma poeira que cai constantemente.
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personagem de Harrison Ford é enviado para lá. No inferno de Dante o nono círculo é o ponto
mais profundo do inferno, não há fogo nele, mas há o lago Cocite, constituído de lágrimas. A
questão das lágrimas é retomada nas falas finais de Batty: “todos aqueles momentos serão
perdidos no tempo, como lágrimas na chuva. Tempo de morrer!” (Blade Runner, 1982).
Considerações Finais
O inferno em verdade nunca deixou de estar entre nós, faz parte da concepção de
vida, onde serve de parâmetro para nossos comportamentos. Ele, de alguma forma, continua a
nos infligir temor e de certa maneira pauta nossa vida. A diferença entre o que chamaríamos
de inferno antigo e inferno novo, é que o novo, trazido pelos roteiristas, diretores de cinema,
desenhistas de histórias em quadrinhos e game designers, não é mais um inferno lá, após a
morte, mas um inferno aqui. Não é mais um inferno para onde se vai, mas um onde se está.
Ao contrário da epígrafe coloca no início deste artigo, o inferno não desapareceu, ele continua
em nosso meio e todo mundo, se quiser, pode notar.
Referências
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