Música e Cultura Religiosa em Itu - MUSEU DA MÚSICA

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Música e Cultura Religiosa em Itu - MUSEU DA MÚSICA
Música e Cultura Religiosa em Itu
Luís Roberto de Francisco
Durante o período colonial e em todo os Império o papel da Igreja Católica foi
preponderante na organização da cultura brasileira. Religião oficial do Estado
português e brasileiro (1822-1889), O Catolicismo enraizou-se nas práticas e nas
formas de representação espiritual, sobrepondo-se às crenças nativas e africanas.
Não tenha sido uma religião “pura”, no mesmo formato praticado na Europa, pois
esteve plena de elementos da cultura dos vencidos (indígenas e africanos), mas foi
hegemônica enquanto conceito de Deus europeu, de rituais, reproduzindo formatos
ibéricos.
Na Capitania de São Vicente a força da religião católica tornou-se ainda maior,
pela distância física em relação ao poder do Estado, organizado no Nordeste até
meados do século XVIII. Por estas bandas paulistas, enfiadas na Boca do Sertão, a
religião católica assumiu papel preponderante na vida cultural. Era a maior referência
de poder e organização.
Itu foi a sétima vila criada na capitania (1657) e se tornou ponto de apoio para
os vai-e-vens dos bandeirantes, naqueles primeiros tempos. Formou-se, por assim
dizer, um núcleo fixo e representativo de civilização, que se desenvolveu em meados
do século XVIII com a cana de açúcar. Mas a porção urbana da Vila de Nossa
Senhora Candelária de Itu só irá conhecer maior desenvolvimento sócio-político meio
século depois, pelos anos de 1810. Em todos os momentos a cultura religiosa,
representada nas diversas parcelas da sociedade local, movimentou o incipiente
ambiente da comunidade.
A vida da sociedade açucareira, no século XVIII, era praticamente rural. Nos
laços sociais ligados à produção econômica, cada indivíduo – livre ou escravo –
exercia um papel próprio, uma atividade determinada ao longo do ano, obedecendo o
ritmo da natureza e de suas forças. O mundo girava em torno da terra, de sol a sol.
O grande dia de descanso, para os livres e escravos, era o domingo, dia do
Senhor (dies Domini) quando a vila era dinamizada; tomava vida. Charretes, carros de
boi e cavalos traziam da zona rural a população dos engenhos, a fim de cumprir o
preceito religioso. O comércio se intensificava, dividindo espaço com os ambulantes,
espalhados pelos largos, defronte às igrejas. Não eram mais que meia dúzia os
templos, espaços de reunião para a comunidade hegemonicamente católica. A missa
dominical era o maior encontro da sociedade, um desfilar das melhores roupas, das
últimas notícias, liteiras carregadas por homens escravizados, que aguardavam o
término dos eventos, longos, longuíssimos porque não havia outra diversão na cidade.
O sentimento religioso misturava-se à beleza das cores e alfaias, das imagens de
santos, aos paramentos e à prédica dos oradores.
Esses encontros sociais – as missas e as “rezas” – não aconteciam sem a
música religiosa, condição especial e própria da liturgia católica. A música é parte
integrante do rito, como determina a Igreja desde o período medieval. É uma
expressão de louvor e fé da comunidade, intrínseca à religião católica.
Apesar do certo isolamento paulista, havendo em Itu serviço religioso e templo
próprios, haveria também atividade musical religiosa, na Paróquia, centro da vida
espiritual católica e nos conventos, de São Francisco e do Carmo, surgidos em 1692 e
1716 respectivamente. Ali a música sustentava o Ofício Divino das Ordens
Conventuais, na música própria, que chamamos Canto Gregoriano.
Quem eram os oficiais da música daquele tempo? Talvez uns tocadores de
cordas (violino, viola e baixo), outros de madeiras, sobretudo flauta, alguns metais e
cantores. Um órgão parece ter surgido somente em fins do século XVIII na Igreja
Matriz de Nossa Senhora Candelária.
A liderança da atividade musical estava na figura do Mestre de Capela, o
músico que melhores condições reunia para produzir e reproduzir música sacra na
localidade.
A função de Mestre de Capela era ampla: executor de instrumentos, cantor,
professor de música, ensaiador, regente e compositor. Estava a serviço tanto da igreja
matriz-paróquia, como das capelas e suas irmandades, que em Itu já eram muitas,
uma dezena, pelos anos de 1750. O Mestre era incumbido da formação de cantores e
novos músicos. Valia-se de métodos rudimentares, algum repertório europeu ou da
própria colônia, verdadeiros “achados” para a manutenção do serviço da música na
vila.
Com a união entre Igreja e Estado (Padroado), muitas festas religiosas eram
também oficiais, merecendo cuidado para sua celebração. Não poderia faltar música
sacra para as cerimônias. Cada irmandade também promovia sua festa própria, em
louvor a uma das invocações tradicionais à Virgem Maria ou ao santo padroeiro da
agremiação religiosa. Havia ainda os serviços religiosos particulares: fúnebres, os
mais freqüentes.
Em todas as situações o músico era remunerado pela Paróquia, Irmandade
contratante ou pela Câmara de Vereadores, que administrava a Vila. A Diocese
estipulava uma tabela de valores para os serviços, pagos ao Mestre de Capela, que
repartia com seus pares. O valor era relativo à qualidade de cada músico: um aprendiz
recebia menos que um músico mais experiente. Alguns tocavam gradiosamente, como
forma de estudo e ensino. Os mestres-de-capela funcionavam também como
empresários de atividades musicais, organizavam os programas, escolhiam os
intérpretes e mantinham virtual monopólio musical em sua respectiva jurisdição.1
Fica claro que os ofícios do Mestre de Capela e músico cantor ou executor
eram profissões, meios de vida que, em alguns casos, sustentavam o indivíduo e sua
família, como o Mestre, ou eram ganhos além das aulas, para os músicos. Em uma
vila com tantas irmandades e festas, quase era possível, ao músico, viver de sua arte,
em meados do século XVIII, como comprovam os inúmeros recibos de contratos com
a Igreja ou com particulares, preservados nos arquivos da Cúria Metropolitana de São
Paulo, da Cúria Diocesana de Jundiaí ou no Arquivo Central da Comarca de Itu.
A definição de quem seria o Mestre de Capela era uma determinação superior
à vila. Não seriam tantos os concorrentes em Itu, nos séculos XVII e XVIII, mas era
necessária a nomeação. Esta sempre vinha da estrutura da Igreja, geralmente o bispo
ou uma nomeação provisória do próprio pároco.
No final do primeiro século de ocupação da região ituana, aí pelos anos de
1690, eram moradores de Itu o professor de música Francisco de Barros Freire e o
mestre de banda Antonio Machado do Passo. Aquele, talvez, o primeiro mestre de
Capela em Itu. É certo, pelo seu testamento, escrito em 1704, que foi professor de
música e dirigiu música sacra em Itu, pois declarou àqueles que cantaram consigo e
que, porventura não foram pagos, que se apresentassem aos seus testamenteiros.2
Pelo mesmo documento percebe-se que Antonio Machado do Passo mantinha contato
com o novel Convento de São Luís de Tolosa, dos Franciscanos, no qual desejou ser
enterrado, pelo pertencimento à Ordem Terceira de São Francisco. Poderíamos
sugerir que o convento, construído em 1692, pudesse servir como um lugar de
reprodução de música e talvez de aprendizado musical.
Antonio Machado do Passo manteve duas bandas de música, uma de brancos
e outra de negros escravos. 3
Quanto à formação desse músico, Sergl sugere que tenha sido aluno de
Manuel da Costa Pino, Mestre de Capela da Igreja Matriz da Vila de Sant’Anna de
Parnahyba, matriz cultural ituana. Certamente ele se tornou um reprodutor de
1
MARIZ, Vasco. Op. cit., p, 24.
SERGL, Marcos Júlio. Op. cit., p. 44-5.
3
REZENDE, Carlos Penteado de. Op. cit., p. 189-191
2
conhecimentos musicais em Itu, seja através de música marcial ou religiosa. Não se
pode dizer, porém, que tenha sido compositor, outra atribuição própria do Mestre. É
possível sugerir, talvez, que algumas obras executadas foram sendo transformadas ao
longo do tempo, com arranjos, reinterpretações. Esta foi uma prática comum aos coros
das igrejas até meados do século XX, em função das limitações da realidade local.
Uma banda de música de negros possibilitaria muitas reinvenções, dada a diferença
de ambiente musical entre a colônia e as civilizações africanas. Quantos músicos dela
também tocariam na igreja?
Na passagem dos séculos XVII e XVIII havia em Itu quatro templos, o do
Senhor Bom Jesus, antiga matriz (1657-1669), a matriz nova, construída em 1669, o
de São Luis de Tolosa (1692) e o de Santa Rita, construído em 1728. Todos eram
bastante acanhados. A matriz, maior de todas, seria um pouco mais distinta. É
provável que todos tivessem coro, não simplesmente conventual, como se vê hoje
ainda na igreja do Carmo, mas o coro como um mezanino, suspenso, no fundo da
igreja, com ingresso próprio. Era a parte do templo destinada aos cantores leigos e à
sua música.
Não seriam muitos os executantes da música sacra, nem mesmo os cantores,
diferente dos coros nos séculos XIX e XX, bastante grandes. O grupo não passaria de
meia dúzia, ou muitas vezes um único cantor, chamado tiple, de voz aguda. O grupo
ou solista era acompanhado por instrumento harmônico, cordas e/ou madeiras. É certo
que havia, nas disposições legais da Igreja e da colônia, restrições para vozes
femininas.
E o repertório? Uma dúvida que permanece. Não há clareza quanto a sua
natureza. O estilo das obras executadas, porém, para não ousar sugerir que se tenha
composto alguma coisa em Itu no final dos 1600 e início dos 1700, é o ponto maior de
discussão. Um enigma. A falta absoluta de material para avaliar impõe sérias dúvidas.
Enquanto na Europa as características do Barroco ainda não estavam absolutamente
definidas, como as conhecemos, da Península Ibérica, fonte maior de influência
cultural para a colônia, os jesuítas já haviam trazido para o Brasil obras corais e
instrumentais contrapontísticas do Renascimento, que certamente foram interpretadas
e reinterpretadas em alguns cantos, mormente nas missões do Sul.
O hiato de duzentos anos entre o patrimônio jesuítico e a conhecida música
brasileira do final do século XVIII não permite uma definição de características para
esse período da música colonial brasileira. Portanto, as informações a respeito da
música sacra em Itu, no período sugerido (século XVII e início do XVIII), estão mais
relacionadas aos nomes e funções dos executantes e seu ambiente sócio-cultural, que
propriamente do repertório e das características culturais às quais a comunidade
estava ligada. Somente na segunda metade do século XVIII é que conheceremos
alguma obra sacra escrita em Itu, que abre outros caminhos para a contextualização
do universo musical ituano.