Por uma arquitetura virtual - MOM. Morar de Outras Maneiras.
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Por uma arquitetura virtual - MOM. Morar de Outras Maneiras.
aU | Arquitetura e Urbanismo - Por uma arquitetura virtual 28/07/10 17:53 Por uma arquitetura virtual Uma crítica das tecnologias digitais Ana Paula Baltazar dos Santos Desde meados dos anos 60 as tecnologias digitais vêm ganhando importância cada vez maior na arquitetura. Já na primeira grande conferência sobre computadores na arquitetura, no Boston Architecture Center, em dezembro de 1964, o computador, embora ainda muito caro, apontava para uma diversidade de possibilidades, desde ferramentas interativas para desenho na tela até possibilidades de análise e geração de projetos automatizados. Um exemplo disso é o sistema Yona, no qual o usuário criava sua própria casa com o auxílio do computador. Analisado por Nicholas Negroponte e Guy Weinzapfel em Architecture by Yourself, o sistema permitia ao usuário articular digitalmente as conexões dos espaços internos e externos da casa e o computador checava possíveis incompatibilidades considerando parâmetros de circulação, ventilação e iluminação, e posteriormente sugeria uma forma de agrupamento dos espaços. Infelizmente, tamanha gama de possibilidades foi canalizada para reproduzir o processo de projeto perspectívico fundado no Renascimento, ainda que, desta vez, com maior racionalidade, precisão e agilidade. Assim, nos anos 80, com o surgimento dos computadores pessoais e dos programas de CAD, começa a se tornar popular nos escritórios de arquitetura o uso do computador como ferramenta de desenho. Os "desenhos digitais" acabam ganhando o nome de "projeto digital" que rapidamente é considerado "projeto virtual" e atualmente é também chamado de "arquitetura virtual". file:///Users/ana/Desktop/aU%20%20%20Arquitetura%20e%20Urbanismo%20-%20Por%20uma%20arquitetura%20virtual.html Page 1 of 7 aU | Arquitetura e Urbanismo - Por uma arquitetura virtual 28/07/10 17:53 Na verdade, a maioria do que é considerado hoje projeto ou arquitetura virtual nada mais é que um conjunto de desenhos feitos no computador usando aplicativos de CAD que espelham o processo de construção perspectívica. O processo de projeto ainda não acomodou as possíveis mudanças permitidas pelas tecnologias digitais e, ainda que os desenhos possam ser visualizados em 3D, animados ou percorridos em tempo real, são geralmente apenas "desenhos digitais" e não "projetos ou arquiteturas virtuais". A distinção entre digital e virtual faz-se necessária para que não haja uma simplificação de ambos em detrimento de uma discussão mais rica tanto do processo de projeto quanto da própria arquitetura. O VIRTUAL NA ARQUITETURA Virtual e digital não são sinônimos, embora o termo virtual seja bastante usado para qualquer coisa digital. Virtual não é necessariamente digital, embora possa ser. E o digital, na maioria das vezes, não é virtual. Autores de diferentes áreas, como Bergson, Deleuze, Guattari, Lévy, Latour, Kwinter, e outros, vêm trabalhando uma noção de virtual que é particularmente interessante para a arquitetura, como em Architectures of Time: Towards a Theory of the Event in Modernist Culture, de Sanford Kwinter. Em O que é o virtual?, Pierre Lévy sintetiza num sistema quádruplo uma espécie de inserção do virtual no mundo. Para Lévy, existem duas ordens para as coisas: uma da substância, em que estão situados o potencial e o real, e uma do evento, onde estão situados o virtual e o atual. Porém, ambas as ordens permeiam todas as coisas, se concordamos que essas existem em suas relações com o mundo e não como objetos absolutos. Assim, podemos identificar as duas ordens atuando também na arquitetura. No cotidiano, podemos dizer que sempre que usamos um espaço estamos ativando a ordem do evento, ou seja, estamos atualizando o espaço. E, quando projetamos, estamos trabalhando geralmente apenas com a ordem da substância, potencializando e realizando espaços. O problema é que a arquitetura projeta a substância representando nesta uma gama restrita de usos (atualizações) previstos. Ou seja, o projeto arquitetônico não se ocupa de projetar o evento em si, não lida com o virtual a ser atualizado quando do uso, embora tome o evento como referência para representá-lo, quase como inspiração para a substância. O que acontece geralmente é que a ordem do evento é considerada como uma camada separada que pode ser sobreposta aos objetos e espaços no mundo quando do uso, perdendo de vista que toda a virtualidade a ser atualizada é intrínseca aos próprios objetos e espaços - isto é, substância e evento são continuidades intrínsecas às coisas, não são excludentes nem anunciam rupturas. Quando projetamos espaços geralmente pré-definimos suas possibilidades de uso deixando muito poucas alternativas para usos que não foram pré-determinados. Assim, estamos, no mínimo, limitando muito, senão desconsiderando totalmente, a virtualidade da arquitetura, por estarmos preterindo do projeto eventos que não foram definidos a priori. Porém, podemos projetar espaços-eventos, ou seja, espaços virtuais. Podemos vislumbrar tanto um processo de projeto quanto uma arquitetura que sejam verdadeiramente virtuais, que sejam pensados como processo aberto estabelecendo continuidade entre projeto e uso, e não como produto acabado estabelecendo ruptura entre projeto e uso. file:///Users/ana/Desktop/aU%20%20%20Arquitetura%20e%20Urbanismo%20-%20Por%20uma%20arquitetura%20virtual.html Page 2 of 7 aU | Arquitetura e Urbanismo - Por uma arquitetura virtual 28/07/10 17:53 OS PRIMÓRDIOS DA REALIDADE VIRTUAL: DIGITAL X VIRTUAL Resgatando os primórdios da dita "realidade virtual", encontramos dois sistemas distintos desenvolvidos nos anos 60. Um primeiro, o capacete (helmetset) de Ivan Sutherland, chamado de "realidade virtual" na terminologia computacional, isto é, simulação da realidade em sistemas imersivos e sua experiência. O segundo seria a obra de Lygia Clark, Máscara com Espelhos (1967), que pode ser considerada um sistema de realidade virtual no sentido proposto neste artigo. Os modelos de reprodução e seqüência, tomados de Deleuze e Guattari em Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, ajudam a entender a diferença da apropriação do termo realidade virtual nos dois contextos distintos. O helmetset de Sutherland é um exemplo de realidade virtual criada para reproduzir aspectos isolados do mundo físico no mundo digital. Assim, na terminologia computacional, o virtual geralmente se enquadra no modelo de reprodução, trazendo para sistemas de imersão uma representação de aspectos do mundo físico que passam a ser experienciáveis pelos usuários via aparato digital. Em contraponto, a Máscara com Espelhos de Clark aponta para um entendimento mais abrangente da realidade virtual. Como na maioria de suas obras, Clark cria um sistema aberto que só se completa temporariamente quando da experiência do espectador, enquadrando-se, assim, no modelo de seqüência ao estabelecer continuidade entre a obra e sua fruição. Estão também implícitas no trabalho de Clark as dissoluções dos limites entre sujeito e objeto e a busca do desaparecimento do autor. A Máscara com Espelhos de Clark promove uma interatividade real entre sujeito, objeto e mundo, a partir de pequenos espelhos móveis colocados na frente dos olhos sobrepondo e fragmentando reflexões do entorno e do próprio sujeito. Tanto a Máscara com Espelhos de Clark quanto o helmetset de Sutherland podem ser considerados como primitivos da realidade virtual. Se, por um lado, como no caso de Sutherland, espectadores experienciam uma reprodução, por file:///Users/ana/Desktop/aU%20%20%20Arquitetura%20e%20Urbanismo%20-%20Por%20uma%20arquitetura%20virtual.html Page 3 of 7 aU | Arquitetura e Urbanismo - Por uma arquitetura virtual 28/07/10 17:53 outro, como no caso de Clark, espectadores são partes vivas necessárias para completar a obra temporariamente, dando seqüência a ela. Pode-se dizer que nos sistemas de realidade virtual, como o de Sutherland, o foco volta-se para a substância, ou seja, para o potencial digital pré-programado a ser realizado, enquanto a obra de Clark tem como cerne o virtual a ser atualizado pelo espectador. Assim, o sistema de Sutherland, apesar da tecnologia digital, não pode ser considerado virtual no sentido exposto acima, sendo na verdade apenas reprodução digital de uma possível realidade, enquanto a obra de Clark prenuncia uma realidade virtual de fato virtual, ainda que sem usar tecnologia digital. Helmetset, de Ivan Sutherland (à esquerda), e a Máscara com Espelhos, de Lygia Clark, considerados por Simone Osthoff como sistemas de realidade virtual O FAMILISTÉRIO DE GODIN COMO ARQUITETURA VIRTUAL No caso da arquitetura, o Familistério de Godin, na França do século 19, pode ser visto como precursor da arquitetura virtual. O Familistério é considerado por Foucault um projeto feliz da intenção de liberdade. Segundo o filósofo francês, não há como garantir liberdade na estrutura das coisas: a única garantia da liberdade é a própria liberdade. Foucault considera liberdade uma prática, um evento, e toda tentativa de garantir essa prática apenas por meio da substância tende a falhar. O Familistério garantia a liberdade por não ser um projeto baseado na substância, mas no evento. A arquitetura do Familistério proporciona os meios necessários para uma nova abordagem social da vida, garantindo o bem-estar dos trabalhadores, sem limitar formal e materialmente os eventos que garantiriam tal bem-estar. Em contraponto às arquiteturas de sua época, o Familistério permitia, por exemplo, uma certa emancipação feminina por proporcionar desde pequenas facilidades domésticas, como pontos de água e de disposição de lixo nas habitações, a equipamentos coletivos como cozinha e espaços adequados para crianças, liberando as mães para o trabalho. Embora tais facilidades não impusessem mudanças sociais, eram capazes de acomodá-las. Esse projeto é baseado nas características latentes do evento, tendo por objetivo a liberdade sem que esta seja reproduzida formalmente, mas criando uma forma onde tal liberdade possa ser temporariamente manifesta quando do uso do espaço. O uso do Familistério segundo seu projeto social, assegurando a continuidade entre projeto e uso, faz com que se destaquem suas características virtuais e garante a almejada liberdade. Mas se o espaço é encarado como um edifício qualquer, como acontece hoje (tornou-se uma espécie de museu-hotel), file:///Users/ana/Desktop/aU%20%20%20Arquitetura%20e%20Urbanismo%20-%20Por%20uma%20arquitetura%20virtual.html Page 4 of 7 aU | Arquitetura e Urbanismo - Por uma arquitetura virtual 28/07/10 17:53 suas características substanciais ganham destaque e pode parecer tão opressivo quanto o Panóptico de Jeremy Bentham. A liberdade, enquanto evento, é garantida pelo virtual e não pela substância. Como o Familistério não ecoa atualmente a continuidade entre projeto social e físico, podemos dizer que não existe mais a simultaneidade entre evento e substância, e, por isso, tal arquitetura que foi um dia virtual, hoje não se deixa ler como tal, embora tenhamos subsídios históricos para resgatar-lhe a virtualidade. Vista geral e berçário-escola do Familistério de Jean-Baptiste André Godin, em Guise, França. Concebido e construído em meados do século 19 como uma cooperativa, pretendia ser um palácio para o povo. Visava ao desenvolvimento social cooperativo, sem ignorar o capitalismo, mas gerando uma alternativa aos espaços capitalistas. Ilustrações da publicação Associated Homes: A Lecture by Edward Van Sittart Neale with Three Engravings of the Familistère at Guise and a Biographical Notice of M. Godin, its Founder. Londres: MaCmillan & Co., 1880. ARQUITETURA VIRTUAL FACILITADA PELO DIGITAL A arquitetura virtual pode ser atualmente discutida a partir da crítica do uso das tecnologias digitais diante da possibilidade de virtualização, problematizando a arquitetura à luz das tecnologias de comunicação e informação. Ou seja, em vez de assumir as tecnologias digitais na arquitetura sem questionamentos, reproduzindo o processo de projeto criado na Renascença, podemos pensar uma arquitetura que seja realmente virtual, cujo processo de projeto seja repensado à luz das possibilidades do digital. Em A Sociedade em Rede, Manuel Castells chama essas possibilidades de "paradigma da tecnologia da informação" e, segundo ele, este paradigma apresenta cinco características: informação como matéria-prima penetrabilidade das tecnologias lógica de rede flexibilidade dos processos e do produto convergência para um sistema integrado Analisando alguns exemplos de arquiteturas contemporâneas que usam tecnologias digitais a caminho do virtual, fica claro que digital e virtual, apesar de não serem sinônimos, não são excludentes, além do digital ser um facilitador do virtual. Vale mencionar dois exemplos, um primeiro exaustivamente citado na file:///Users/ana/Desktop/aU%20%20%20Arquitetura%20e%20Urbanismo%20-%20Por%20uma%20arquitetura%20virtual.html Page 5 of 7 aU | Arquitetura e Urbanismo - Por uma arquitetura virtual 28/07/10 17:53 literatura sobre digital na arquitetura, o Fresh Water Pavilion, do escritório NOX, na Holanda, onde a interação dos usuários é essencial para que o edifício aconteça, sendo completado temporariamente. Um segundo, menos conhecido, é a Tenda Digital desenvolvida no Lagear da EAUFMG (Laboratório Gráfico para Ensino da Arquitetura da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais). A exemplo das tendas nômades, que funcionam mais como evento que como substância, a Tenda Digital também opera no intuito de criar um espaço-evento, ou seja, confere a um espaço existente a virtualidade que ele não tem. A Tenda Digital emerge a partir da projeção de um ambiente multimidial interativo em um ambiente físico, respondendo em tempo real à presença e ao movimento dos usuários. A Tenda Digital acontece pela transformação de um ambiente real em um ambiente virtual de imersão, sendo ao mesmo tempo ferramenta e ambiente virtuais, ou seja, o produto final não está pre-determinado, depende da interação. Em ambos os casos, podemos ver as características apontadas por Castells presentes na problematização da interação entre usuários e espaços físico e digital. Esta problematização do espaço é entendida como a virtualização da arquitetura, apontando para o trabalho conjunto de digital e virtual. Fresh Water Pavilion (1997), do escritório holandês NOX. Equipado com sensores de peso dispostos em sua superfície interna, o espaço simula o efeito de ondas sempre que perceber a passagem de pessoas Assim, podemos concluir que grande parte dos projetos e arquiteturas produzidos a partir de tecnologias digitais não devem ser chamados de virtuais se levarmos em conta o conceito de virtual apresentado antes. Uma arquitetura realmente virtual não é necessariamente digital, como exemplifica o Familistério de Godin. Contudo, o digital facilita a arquitetura virtual por permitir a flexibilidade, a lógica de rede, a integração e abertura do sistema, a emergência do ambiente em tempo real, além do estabelecimento de continuidade entre projeto e uso. Dessa forma, o digital pode ser tanto ferramenta quanto ambiente ideal para o desenvolvimento da arquitetura virtual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Negroponte, N. e Weinzapfel, G., Architecture by yourself, Architecture Machine Group, Department of Architecture, MIT, Cambridge, 1978. file:///Users/ana/Desktop/aU%20%20%20Arquitetura%20e%20Urbanismo%20-%20Por%20uma%20arquitetura%20virtual.html Page 6 of 7 aU | Arquitetura e Urbanismo - Por uma arquitetura virtual 28/07/10 17:53 Kwinter, S., Architectures of time: towards a theory of the event in modernist culture, MIT Press, Cambridge, 2001. Lévy, P., O que é o virtual?, Editora 34, São Paulo, 1996. Osthoff, S., Lygia Clark and Hélio Oiticica: a legacy of interactivity and participation for a telematic future, in: Leonardo: journal for the international society for the arts, sciences and technology, MIT Press, Cambridge, 1997, 30(4), 279-289. Deleuze, G. e Guattari, F., Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, volume V, Editora 34, São Paulo, 1997. Dallet, E., ed., Twenty-eight years of co-partnership at Guise, Labour Copartnership Association, London, 1908. Foucault, M., Space, knowledge, and power: interview conducted by Paul Rabinow, in Faubion, J. D., ed., Power: essential works of Foucault, 1954-1984 (vol. 3), Penguin, London, 2002, 349-364. http://perso.wanadoo.fr/familistere.godin/index.html [25-01-2003] Castells, M., A Sociedade em Rede: A Era da Informação - Economia, Sociedade e Cultura (vol. 1), Paz e Terra, São Paulo, 2003. Spuybroek, L., FreshH2O eXPO, in: Beckmann, J., ed., The virtual dimension: architecture, representation, and crash culture, Princeton Architectural Press, New York, 1998, 264-267. Tenda Digital - http://www.arquitetura.ufmg.br/lagear/verde/principal/index.htm Flusser, V., Shelters, screens and tents, in Flusser, V., The shape of things: a philosophy of design, Reaktion, London, 1999, 55-57. Ana Paula Baltazar dos Santos é arquiteta, mestre em arquietura pela UFMG, doutoranda na Bartlett School of Architecture em Londres, membro fundador do IBPA (Instituto Brasileiro de Performance Arquitetura) e atualmente atua como pesquisadora na Escola de Arquitetura da UFMG no grupo de pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras) e no Lagear no projeto HBH (Habitar Belo Horizonte: ocupando o centro), onde colabora no desenvolvimento de interfaces digitais e na criação de ambiente virtual de imersão para projetos participativos. [email protected] file:///Users/ana/Desktop/aU%20%20%20Arquitetura%20e%20Urbanismo%20-%20Por%20uma%20arquitetura%20virtual.html Page 7 of 7