Da retroatividade das leis civis

Transcrição

Da retroatividade das leis civis
REYNALDO PORCHAT
LENTE DA FACULDADE DE DIREITO DE SÃO PAULO
DA RETROACTIVIDADE
DAS
LEIS CIVIS
São Paulo
Duprat & Comp - Rua Direita. 26
1909
DA RETROACTIVIDADE
DAS
LEIS CIVIS
CAPITULO I
Do conceito da retroactividade
1. A efficacia e o imperio da
lei têm um
determinado limite de tempo, que é fixado pelo
momento inicial da sua publicação o pelo mo-mento
final da sua abrogacão. Dentro nesse espaço de tempo,
são regulados pela lei vigente todos os actos que nelle
se realisam produzindo relações juridicas. Mas quando
uma lei é abrogada por uma outra lei. acontece geralmente que certos
actos que furam praticados no do-minio da primeira,
produzem consequencias ou effeitos que se projectam
pelo tempo posterior a abrogação e vão eífecttvar-se
ou tornar-se exigiveis quando já se acha em vigor a
nova lei prerrogativa.
—4—
E se é verdade que a autoridade da lei cessa
quando é ella abrogada, parece, á primeira, vista, que
não póde mais ser invocada para regular quaesquer
relações de direito, uma vez que pela publicação de
uma nova lei começou esta a exercer plenamente a sua
autoridade. Entretanto o direito permitte que, mesmo
dentro no periodo de tempo em que domina a lei nova,
seja invocada a lei antiga para reger certos actos que
nasceram sob o seu imperio, e que ainda pão se acham
de todo consummados, bem como as consequencias e
os effeitos resultantes desses mesmos actos.
2. Quando a lei nova em vigor não attinge com a
sua autoridade esses actos e suas consequencias, e os
deixa inteiramente regulados pela lei antiga, sob cujo
dominio tiveram nascimento, se diz que não ha
retroactividade, isto é, que a lei nova não retroage, não
tem acção alguma sobre taes actos praticados no
passado, antes do momento da sua publicação, embora
só depois desta se tornem exigíveis as respectivas
consequencias e effeitos. Ao envez, quando a
autoridade da lei nova se exerce sobre actos que foram
praticados sob o dominio da lei antiga, e regula os
effeitos e consequencias que venham a produzir-se já
sob o imperio da nova lei, se diz que ha
retroactividade, isto é, que a lei retroage, e que
debaixo de sua acção cáem
—5—
os actos que. nasceram antes da sua publicação, mas
cujos effeitos venham a tornar-se exigíveis depois
delia.
3. Quaes sejam os actos que escapam á acção da
lei nova, e quaes sejam os que a ella se submettem —
é o importantíssimo problema juridico, que deu logar á
construcção da theoria da retroactividade das leis,
chamada por alguns ctheoria da não retroactividade
das leis», (¹) por outros, «theoria da irretroactividade»,
(2) «theoria dos direitos adquiridos» (3) e que outros
denominaram «questões de direito transitorio». (4)
4. O assumpto, quer sob o ponto de vista
puramente theorico, quer sob o ponto de. vista do
interesse prático, é dos que têm des-pertado as maiores
controversias, ou, como diz Clovis Bevilaqua, é um
dos pontos mais obscurecidos pela discussão jurídica.
(5)
Já no dar o nome á theoria, como acabamos de
ver, não se harmonisam os escriptores.
5. E o desaccôrdo ainda se manifesta com maior
inconvenieacia para o estudo da materia no definir-se
o que seja retroactividade da lei.
(¹) Baudry Lacantinerie—Trait. de Droit. Cio., % ed. v. I n. 125,
nota I
(²) Pacifici-Mazzoni — Ist. di Dir. Cio. Ital., v. I n.° 85 e segs.
(³) Lassalle—Théor. Systém. d.s Droits. Acguis., trad. franc. 1,904—
v. 1.
(45) Chabot de 1'Allier—Quest. trans. sur le Cod. Civ.
( ) Clovis Bevilaqua—Th. Ger. do Dir. Civ. pag. 19.
7. Os actos ou relações jurídicas perante os
quaes a lei nova não retroage, são os convencionalmente chamados — direitos adquiridos.
Quando, ao executar-se uma lei nova qualquer, depara-se um direito adquirido que possa ser
lesado, a lei não tem applicação ao caso, porque a
retroactividade seria injusta. Quando não se
encontra direito adquirido, applica-se a lei, mesmo
retroactivamente, porque a retro-actividade é justa.
A expressão — direito adquirido— é usa-da
de longa data, geralmente adoptada, e exprime
com clareza a idéa que nella se quer incluir.
Não têm razão, portanto, Planiol, (¹) Vareilles Sommières (2) e os que com elles criticam
o uso dessa expressão, sem lhe apresentarem
substitutivo satisfactorio.
Se, em alguns casos, ha difficuldade em
decidir se se trata de um direito adquirido ou de
uma espectativa, isso não autorisa a declarar
inexacta ou falsa a distincção.
£' verdade que pode ser ella tomada em
sentido differente quando se trate de outra materia
jurídica; mas, empregada em qualquer questão
pertencente á theoria da retroactividade das leis,
tem um significado proprio, technica-mente
firmado, e que não se confunde com qualquer
outro.
(1) Planiol— Trait. de Dr. Civ., 4 ed., v. I, n. 24I.
(2)
Vareilles Sommières — Une theor. nouv. sur la no* re-troact. des
lois, apud Baudry, ob. cit., n. 125, n. I.
CAPITULO II
Do direito adquirido ; direito consumma-do ; faculdades ;
espectativas.
8. Direito adquirido — Se é pelo reconhecimento da existencia ou inexistencia do direito
adquirido, que se conclue pelo effeito não retroactivo
ou retroactivo de uma lei nova, cumpre fixar, de
modo claro, o que seja — direito adquirido.
Ingentes têm sido as tentativas feitas para o
definir; e os mais notaveis jurisconsultos têm tomado
parte na tarefa. Quasi sempre falhos ou incompletos
os resultados, Planiol (¹) ainda modernamente chegou
a chamar de artificial e viciosa a doutrina do direito
adquirido, julgando impossível dar-lhe uma definição
satisfactoria. (2).
Mas não. pensamos com Planiol. Depois do
preciosíssimo contingente trazido pelo insi(1) Planiol—loi-, cit.
(2) Guilherme Alves Moreira, na sua substanciosa obra
ultimamente publicada, applaude a critica de Planiol; e para não
empregar a expressão consagrada— direito adquirida —usa de outras
equipollentes : «direito definitivamente individualisado >, « situação
subjectiva definitivamente constituída >, etc.—Inst. dt Direito Civil
Português—1907—v. I m. 36, 37 e 38.)
— 12 —
121. Mais do que todas, a noção dada por
Savigny, (1) contribue efficazmente para for-mular-se
uma definição do direito adquirido. Para elle, direitos
adquiridos são consequencias de factos juridicos
passados, mas consequencias ainda não realisadas,
que ainda não se tornaram de todo effectivas. Direito
adquirido é, pois, todo o direito fundado sobre um
facto juridico que já succedeu, mas que ainda não foi
feito valer, são «as relações jurídicas de uma pessoa
determinada, isto é, os elementos de uma esphera de
independente domínio da vontade individual, e não
as faculdades abstractas de todos os homens ou de
classes inteiras de homens», nem as «espectativas,
que se fundam sobre uma antiga lei, mas são
destruídas pela
lei nova».
Nessa noção, vem se destacados alguns característicos do direito adquirido: — consequencias de
facto realisado sob a lei antiga, constituindo relações
de direito, onde se manifesta o domínio da vontade
individual, mas que ainda não se fizeram valer.
13. Posteriormente Lassale, imprimindo uma
orientação profundamente philosophica ao estudo da
materia, em sua admiravel monogra-phia sobre o
assumpto (2) veiu, com idéas inteiramente novas,
accentuar uma das feições
(1) Savigny—ob. cit. v. 8 § 385, pags. 382, 385, 386 e 387. (2)
Lassalle— ob. cit.
— 13 —
mais características do direito adquirido, mostrando a
razão por que elle se impõe ao respeito perante
quaesquer disposições de uma legislação futura. Para
Lassale, o direito adquirido se apresenta como a
effectuação da livre 'vontade do individuo. Quem o
adquiriu, obrou como um ente livre que pensou e quiz,
sabendo o que queria, conhecendo a lei vigente, e
acceitando voluntariamente as consequencias do seu
acto. Uma lei nova que o violasse, constituiria uma affronta á inviolabilidade da personalidade humana.
Este cunho da individualidade da pessoa, que
assignala o direito adquirido, deante do qual deve
desapparecer qualquer effeito de uma lei nova, é um
dos pontos em que mais realça a theoria de Lassalle, e
em que mais proveitosamente elle contribue para o
conhecimento da natureza desse direito.
A theoria do eminente escriptor pecca, porém,
por ter elle, arrastado pelas exagerações da sua escola
philosophica, affirmado que o direito adquirido
resulta exclusivamente de um acto da liberdade
individual, da acção livre da vontade, e não póde
nascer de uma simples determinação legal
independentemente do concurso da vontade do
individuo.
E' um pequeno senão, que torna incompleta a
sua brilhante doutrina, excluindo da categoria dos
direitos adquiridos alguns direitos, que devem ser
incontestavelmente considerados taes.
— 14 —
Porque, como justamente observa Gabba (l)
comquanto seja verdadeiro que a maior parte das
relações jurídicas sejam postas em existencia pela
vontade humana, e por isso a maior parte dos direitos
adquiridos o sejam por meio de actos voluntarios, é,
entretanto, certo que alguns direitos nascem directa ou
indirectamente ipso jure, isto é, por obra da lei, e
constituem verdadeiros direitos adquiridos.
14.. Foi com o aproveitamento dos elementos
colligidos nas difinições precedentes, que o insigne
Gabba, corrigindo e completando as idéas
anteriormente expostas, conseguiu formular a su.t
longa definição do direito adquirido.
«E' direito adquirido», define elle, «todo o
direito — a) que é consequencia de um facto idoneo a
produzil-o em virtude da lei do tempo em que esse
facto foi realisado, embora a occa-sião de o fazer
valer não se tivesse apresentado antes da existencia de
uma lei nova sobre o mesmo objecto, e —b) que nos
termos da lei sob o imperio da qual se deu o facto de
que se originou, entrou ímmediatamente a fazer parte
do patrimonio de quem o adquiriu.»(2).
(2) Gabba— ob. cit. p- 175.
(2) Gabba—eb. cit p. 191. Espínola—Syst. de Dir. Civ. Brasil, pag.
170 nota 5—reconhece que esta definição apresenta um criterio
distinctivo sufficiente não só sob o ponto de vista theorico, como
tambem para as necessidades da prática. Não pensa assim o douto
Lacerda de Almeida—que a critica com rigor, em substancioso artigo
publicado no Jornal do Commecio de 28 de fevereiro de 1909.
— 15 —
Essa definição, desde que seja completada com
esta frase final, que lhe offerecemos em
additamento,— «ou constituiu o adquirente na posse
de um estado civil definitivo»,— encerra todos os
característicos distinctivos do direito adquirido, que
são:
1.° um facto acquisitivo, idoneo a produzir
direito, de conformidade com a lei vigente;
2.0 uma lei vigente no momento em que o facto
se realise;
3.0 capacidade legal do agente ;
4.0 ter o direito entrado a fazer parte do
patrimonio do individuo, ou ter constituído o
adquirente na posse de um estado civil definitivo;
5.0 não ter sido exigido ainda ou consum-mado
esse direito, isto é, não ter sido ainda realizado em
todos os seus effeitos.
15. I.° o facto — A expressão facto, segundo
observa o autor da definição, deve ser tomada no seu
mais amplo sentido, comprehen-dendo os factos e as
relações jurídicas. E esse facto deve ser realisado
completamente, de ac-cordo com a lei em vigor,
porque se o facto) não tiver sido perfeito, como exige
essa lei, não será apto a fazer adquirir um direito. O
direito de uma pessoa determinada nasce do facto —
jus oritur ex facto. Emquanto não se verifica o facto,
que produz a acquisição de um direito, ha apenas
possibilidade de direito, simples faculdade jurídica
abstracta, ou mera espectativa.
Para que o facto acquisitivo possa produzir
direito, deve consistir em uma modalidade da situação
em que o homem está pelo simples facto de ser
homem.
Essa modalidade pode provir ou de acto positivo
da vontade humana, ou de fortuitas contingencias da
vida social, de que a lei faz originar-se um direito.
O acto voluntario pode ser praticado por uma só
pessoa, seja a propria que adquire o direito, seja um
terceiro, ( actos unilateraes ), ou por mais de uma
pessoa (convenções); e pode ainda ser praticado ou
com o proposito de fazer surgir um direito, ou sem o
escopo de crear direito
A palavra—facto—comprehende, pois, essas
tres modalidades indicadas. Donde se conclue que um
direito adquirido póde provir ou de um acto da propria
vontade do adquirente, ou de um acto voluntario de
outra pessoa, ou da determinação da lei, em virtude de
uma cir-cumstancia qualquer ou caso fortuito.
16. Para que o facto acquisitivo seja apto a
produzir direito adquirido, deve reunir certos
requisitos essenciaes, que são os seguintes :
a) Deve ser praticado de conformidade com a lei
vigente, sendo observadas as condições e as
formalidades prescriptas sob pena de nullidade. E'
claro que um facto realisado
— 17 —
contra o disposto na lei em vigor seria inválido ou
nullo, e de facto nullo não póde resultar nenhum
direito. E desde que a lei estabelece certas
fórmalidades especiaes internas ou externas, para que
um acto seja idoneo a produzir direito, é certo que o
facto acquisitivo deve ser posto em existencia com
observancia dessas fórmalidades que a lei do tempo
exige. E' perante esta lei que se deve verificar se o
facto é legal, quer quanto á materia, quer quanto á
fórma, e se está apto a produzir effeitos juridicos —
tempus regit actum. Se não contiver as condições e as
fórmalidades exigidas pela lei do tempo em que teve
existencia, é nullo e não produz effeito algum.
17. Entretanto, alguns autores sustentam que,
embora seja nullo um facto por ter sido praticado com
falta de alguma condição ou fórmal
idade exigida pela lei do tempo, esse facto
convalescerá quanto á substancia ou quanto á fórma,
isto é, se tornará válido, desde o momento em que
appareça uma lei nova dispensando a condição e a
fórmalidade que não foi observada. Assim, por
exemplo, se um testamento fôr feito por um menor, e
sómente perante quatro testemunhas, o que será
motivo de nullidade perante a lei actual, tornar-se-á
válido se, por occasião da morte do testador, houver
uma nova lei permittindo que os me-
— 18 —
nores façam testamento e que os testamentos sejam
feitos perante quatro testemunhas.
Lassalle argumenta em prol dessa opinião, no
tocante á convalescença material, embora) quanto á
convalescença fórmal a restrinja só ao que elle chama
—fórmas probatorias, e diz que, desde que a lei nova
aboliu
a disposição prohibitiva que impedia a
manifestação da vontade, não ha razão para que essa
manifestação da vontade não produza effeito, uma
vez que ella ainda subsiste, e que desappareceu o unico
obstaculo que havia.
E procurando
encontrar
fundamento para a sua opinião no direito romano,
mostra que, se entre pessoas de differente religião,
ou ligadas por parentesco em gráu proximo, se
realisasse um casamento prohibido, e, portanto, nullo
perante a lei vigente, esse casamento tornar-se-ia
válido desde o dia em que apparecesse uma nova lei
abolindo taes impedimentos.
Gabba rebate com vantagem a opinião de
Lassalle, proclamando um principio inteiramente
opposto. (1). Diz elle que, assim como a lei nova não
póde apagar os effeitos das relações jurídicas
validamente concluidas sob o imperio de uma lei
precedente, assim tambem não póde, salvo em casos
excepcionaes e expressamente determinados, attribuilos a actos que são nullos
(1)
Gabba—ob. cit., v. I, p. 243
— 19 —
em virtude da lei sob cuja autoridade foram
concluídos.
Realmente, quem praticou um acto juridico
violando as disposições imperativas da lei vigente,
não póde esperar que esse acto venha algum dia a
produzir effeito, como se a lei houvesse sido
observada.
Pode acontecer mesmo que uma pessoa viole a
lei intencionalmente, certo de que o seu acto nunca
produzirá effeito juridico. E seria uma violencia que a
doutrina viesse válidar um acto contra a vontade de
quem o praticou.
18. Nada faz para o caso o exemplo que
Lassalle pretendeu encontrar no direito romano, onde,
no fr. 4 e no fr. 65 § 1—de ritu nupt. (23-2) se declara
que, embora originariamente inválido o casamento de
um impubere, ou de um magistrado provincial com
uma mulher da província por elle administrada, esse
casamento se torna valido, desde o momento em que
o impubere se torne pubere, ou o magistrado deixe o
cargo que exercia.
Em verdade, nesses casos, o direito romano
admitte que se torne válido um acto que
originariamente era nullo, não porque appare-cesse
uma lei nova abolindo os impedimentos, como faz
suppor Lassalle, — pois, não ha, nas hypotheses
figuradas, nenhuma mudança de legislação, — mas
sim, porque, como bem claramente se vê pelos
exemplos, cessaram as cir-
— 20 —
cumstancias de facto que produziam a nullidade
perante a lei vigente.
Antes, o direito romano proclama o principio
contrário, de que não convalescem os actos nullos, o
que se vê estabelecido não só em materia de legados e
fideicommissos pela regra cataniana (D. 34-7 ),
segundo a qual o que é vicioso desde o principio não
póde ter força nem effeito em qualquer tempo, como
tambem nas regras geraes de direito, onde diz Paulo
que—quod initio vitiosum est, non potest tractu
temporis convalescere (fr. 29—de reg.jur. (50-17), e
L. Rufino que—quæ ab initio inuti-tilis fuit institutio,
ex postfacto convalescere non potest. (fr. 210 h. t.)
O instituto da ratihabitio tambem em nada apoia
a doutrina de Lassalle, porque, na ratihabitio—ratum
habere,—ha uma approvação e ratificação daquillo
que foi feito por falso procurador1,— rem haberi
ratam hoc est comprobare adgnoscereque quod actum
est a falso procuratore. (1) Está claro que não se
cogita ahi de mu-dança de legislação.
Savigny diz positivamente que a fórma de um
negocio juridico deve julgar-se exclusivamente
segundo a lei existente no tempo em que foi elle
realisado de modo que uma lei posterior não influe
sobre a sua válidade, quer simplifique, quer
complique a antiga fórma. Esta
(1)
Ulpianus, fr. 12 § —rat. rem haberi (46—8).
— 21 —
maxima póde exprimir-se com as palavras — tempus
regit actum, —• que correspondem, e aliás com maior
gráu de certeza, á regra de direito local — locus regit
actum (1).
18. b) O facto deve realisar-se em tempo
proprio, isto é, deve ser posterior á publicação, e
anterior á abrogação da lei que lhe dá effeito juridico.
Realmente, o effeito juridico de um facto só lhe pode
ser reconhecido pela lei dentro de cujo período de
obrigatoriedade elle teve existencia. Algumas vezes
acontece que uma lei nova attribue effeitos juridicos
diversos a um facto dado no domínio da lei antiga.
Mas isso só se pode verificar a respeito de um facto de
natureza permanente, começando os effeitos jurid
icos depois da publicação da nova lei, e sob a
condição de não serem lesados direitos adquiridos.
19. c) Deve ser perfeito, isto é, reali-sado
completamente e em todas as suas partes. Diz-se
assim, porque o facto acquisitivo pode ser simples ou
complexo. Simples é aquelle que se realisa em um só
momento, não apresentando partes successivas,
separadas por um intervallo de tempo, (compra e
venda, mutuo, etc.) Complexo é aquelle que se
compõe de partes, as quaes vão tendo existencia
separadamente, com intervallos de tempo. O facto
complexo ainda
(1) Savigny, ob. cit. v. 8 ( 388. p. 409.
— 22 —
pode verificãr-se de tres modos: ou posto em
existencia por uma só pessoa, que praticou a série de
actos em um período mais ou menos longo de tempo :
(a usucapião); ou por duas ou mais pessoas,
praticando cada uma separadamente, uma parte
distincta do facto: (a suc-cessâo testamentaria); ou por
um acto humano qualquer, ao qual se ligue um
acontecimento posterior, que a pessoa não tem o poder
de evitar: (os factos condicionaes).
Emquanto o facto não está realisado era todas as
suas partes, não póde produzir um di-reito adquirido.
20. Os autores discutem se, estando rea-lisada
apenas uma parte do facto complexo quando appareça
uma lei nova, pode a pessoa ainda realisar as outras
partes para o fim de adquirir um direito. Gabba (1)
responde fazendo distincções: E' permittido
aperfeiçoar o facto, quando a parte que falta seja
infallivel, devendo necessariamente verificar-se, (2) ou
quando seja uma verdadeira e propria condição, cujo
implemento não possa ser evitado pela pessoa contra
quem se fórma o direito adquirido, ou quando seja um
desenvolvimento ou transfórmação de um direito
adquirido anterior em que ella tenha a sua base.
(1) Gabba— ob. cit. p. 229.
(2) Conf. Papinianus, fr. 79 princ. — de cond. et demonst.
(35—O Ulpianus, fr. 921—de novat— (46—2).
— 23 —
Fóra dessas tres condições, não é permit tido
completar ou aperfeiçoar o facto, pois a parte
realisada pode conter apenas uma espe-ctativa e não
um direito adquirido, visto que «não se póde admittir
direito adquirido a adquirir um direito».
21.
2.° A lei vigente — Gabba (¹) diz
que todas as vezes que affirmamos a existencia
concreta de um direito, essa affirmação tem dois
objectos: i.° a existencia de um facto do qual, ou em
virtude do qual nós consideramos que surgiu o direito,
2.° a existencia de uma lei que daquelle facto faz
nascer um direito.
A lei nova, embora affirmando ou negando
alguma cousa, deve referir-se a um objecto con-Icreto,
visando determinados factos ou circum-stancias.
Antes de concretisado no facto, o direito existe apenas
em abstracto, em um simples estado de possibilidade
na lei que dá a norma de agir e reconhece nos
indivíduos uma faculdade jurídica. E formulando uma
proposição fundamental na theoria da retroactividade,
o eminente escriptor observa que não se pode admittir
um direito concreto, que não tenha o seu fundamento
em uma lei ou norma jurídica positiva, (
comprehendendo os usos e costumes), vigente no
tempo em que o direito surge, e não provenha de um
facto ao qual essa norma [jurídica attribue a virtude de
produzir direito.
(¹)
Gabba—ob. cit. p. 195.
A lei do tempo é que regula o facto. E não é
possível applicar a um mesmo caso juridico
duas leis emanadas em tempo diverso, salvo quando o
facto juridico é complexo, e se decompõe em partes
distinctas que tiveram existencia em tempo e sob leis
differentes.
22.
3.° Capacidade legal do agente
— Para que um facto seja idoneo a produzir direito, é
necessario que o agente tenha capacidade jurídica
reconhecida pela lei vigente no momento em que
surgiu o facto. As questões de dolo, violencia ou erro,
que podem viciar a vontade e influir sobre os effeitos
de um acto praticado, devem ser tambem julgadas de
accor-do com a lei do tempo.
A capacidade de agir, diz Savigny, deve ser
julgada exclusivamente segundo a data do facto
juridico, seja . no tocante ao estado do facto, seja no
que concerne á lei existente. Assim, se um menor
conclue um contracto sem assistencia do tutor, este
contracto é e permanece nullo, ainda depois que o
menor tenha attingido a maioridade, e mesmo que
uma lei posterior antecipe a epoca da maioridade. E
da mesma fórma, o contracto feito por um maior de
21 annos é e permanece válido, mesmo que depois
seja adoptada a legislação romana que fixa o começo
da maioridade em 25 annos. (1)
(¹)
Savigny—ob. cit. v. 8 § 387 p. 408.
— 25 —
23. 4.° Caracter patrimonial ou concreta utilidade
resultante da posse de um estado civil definitivo — (¹)
Nem de todos os direitos se pode dizer que são
adquiridos. Para verificar-se a existencia de um direito
adquirido, é necessario que elle constitua uma utilidade concreta da pessoa, utilidade que pode traduzirse ou por vantajosas condições pessoaes subjectivas,
resultantes da posse de um estado civil definitivo, ou
por vantagens patrimoniaes, comprehendidas estas na
sua mais ampla accepção. (2)
A primeira fórma de utilidade attinge as
qualidades constitutivas do estado da pessoa, (3) a
segunda
o
patrimonio
propriamente
dito,
concretisando-se em cousas externas, objectos de
direito.
O direito adquirido é, pois, individual, ou por
fazer parte do patrimonio material de uma pessoa, ou
por ligar-se intimamente á individualidade de alguem
como um dos seus caracteres distinctivos.
Limitando cuidadosamente o conceito do direito
aquirido, adverte Gabba (4) que <direitos concretos e
adquiridos são sómente aquelles
(1) Filomnsi Guelfi— ob, cit- § 32 p. 111—diz que o direito
adquirido, que deve ser respeitado, pertence ao domínio do direito
privado devendo ter sido produzido de modo legitimo e fazer parte do
patrimonio
da pessoa.
(2) Huc—Code Civil v. I n. 66.
3
( ) Baudry Lacantinierie—ob. cit., v. 1 n. 146.
(4) Gabba—ob. cit. p ato.
— 26 —
que, dentro da esphera do poder facultado pelas leis
concernentes ás pessoas e ás cousas, visam a um
determinado e vantajoso effeito, por essas leis
contemplado de modo explicito ou implícito, e surgem
nos indivíduos, ou por virtude da operosidade humana,
ou por virtude directa da propria lei, em seguida a
factos e circumstan-cias, nos modos e condições por
ella preestabelecidas. >
24. 5.° Não estar ainda consumma-
do o direito.—Como ultimo elemento caracteristico do
direito adquirido, exige a definição que o direito ainda
não tenha sido feito valer, isto é, que ainda não tenha
sido realisado em todos os seus effeitos. Nesta
condição está o criterio pelo qual se distingue o direito
adquirido daquelle que já foi consummado. Desde que
o titular de um direito já o fez valer contra quem elle
existia, e desde que já se realisaram os effeitos delle
decorrentes, esse direito entrou para a classe dos factos
consummados. deante dos quaes nem é possivel cogitar
de acção re-,-troactiva de lei alguma. O direito
adquirido é um direito que pertence a alguem, mas que
ainda não produziu todos os seus effeitos, e que, por
isso, póde ainda ser exigido judicialmente pelo seu
titular. O direito consummado é aquelle que já se fez
inteiramente effectivo, é um facto acabado, totalmente
realisado, e a respeito do qual nada é possivel reclamar
senão
— 27 —
o respeito ao que já aconteceu e que já produziu
todos os seus effeitos.
25. Por dois modos o direito se consumiria : por
solução amigavel (transacção), ou por sentença
judicial.
Já dizia Paulo, nos arts. 229 e 230—de verb. sig.
(50-16) que, pelas expressões transacta ou finita
devemos entender não só aquellas cousas sobre as
quaes houve controversia, mas tambem aquellas que se
possuem sem ter havido controversia. Pertencem a esse
numero os negocios terminados por um julgamento, os
que se resolveram por uma transacção, ou os que Analisaram por um silencio de longo tempo. Transacta
finitave intelligere debemus, non solum quibus
controversia fuit, sed etiam quæ sine controversia sint
possessa : ut sunt judicio ter-minata, transactione
composita, longioris tempo-ris' silentio finita.
Na c. 7—de leg. (1-14), Theodosio e Valentiniano determinaram que as leis e as constituições
só regulam os casos futuros e não podem revogar os
factos passados—leges et cons-titutiones futuris
certum est dare fórmam ne-gotis: non ad fada
prceterita revocari; e na c. 2 § 23—de vet. jur. enucl.
(1-17) Justiniano, promulgando as Instituías, o
Digesto e o Codigo, ordenou que só tivessem força de
lei para os casos futuros e pendentes, e não para os
— 28 —
que estivessem terminados por sentença judicial ou por
composição amigavel, pois que estes de nenhum modo
devem ser resuscitados—et suum vigorem in judiais os
tendentes in omnièus causis, sive quæ postea
emerserint sive in judiciis adhuc pendent nec ea
judicialis vel amicalis forma com-pescuit. Quæ enim
jam vel judiciali sententia finita sunt vel amicali pacto
sopita, hæc resus-citari nullo volumus modo.
E neste sentido, muitos outros textos se
encontram affirmando todos que as leis novas não
podem affectar os casos que já terminaram por
transacção ou por sentença, isto é, os factos
consummados—(c. 16—de transac. (2-4), c. 22 § I
— de sacr. -eccl. ( 1-2 ) c. 17 § 1 —de fide instrum,
(4-21), c. 15 § 5—de legit. hæred. (6-58), nov. 19 pr.
e cap. 1.
26. Releva notar que os autores divergem
quanto á questão de saber se se deve applicar ao caso
uma lei publicada posteriormente á sentença judicial,
quando sobre esta pende ainda decisão de um tribunal
superior, por ter sido contra ella interposto recurso de
appellação. Gabba (1) diz que, na sua opinião, não ha
duvida que sobre tal sentença deve influir toda e
qualquer lei retroactiva por mera vontade do
legislador, emanada pendente a causa.
Em direito romano, porém, não póde ser
admittida semelhante opinião, porque Justiniano
(¹) Gabba, ob. cit. p. 37.
— 29 —
declarou expresssamente, em a nov. 115. pr. e cap. I
que «se se interpuzer appellação contra a sentença
pronunciada em uma causa, os juizes a devem julgar
observando as leis vigentes no momento em que a
sentença foi pronunciada, mesmo quando appareça,
depois da sentença, uma lei nova, cujas disposições
sejam applica-veis a casos anteriores.»
Savigny justifica a disposição romana, di-zendo
que o juiz da primeira instancia sómente podia decidir
segundo a lei vigente no tempo da sua sentença, e ao
tribunal de appellação só é permittido modificar uma
sentença errada, mas nunca uma sentença justificada
por si mesma. (¹).
Tratando se de recursos contra a sentença que
ainda não passou em julgado, a regra geralmente
admittida é que uma lei nova não póde abolir, com
effeito retroactivo, um recurso que a lei antiga
admittia quando foi pronunciada a sentença. E Gabba
entende que um recurso introduzido por lei nova não
póde ser adoptado contra uma sentença pronunciada
sob a vigencia de uma lei que o não admittia. (2).
27. Faculdades e expectativas.—Conhecida a
natureza do direito adquirido, pelo estudo dos seus
elementos constitutivos, podemos distinguil-o não só
do facto consummado,
(12) Savigny, ob. cit. § 397 p. p18.
( ) Gabba, ob. aí. v. 4 p. 539.
— 30 —
como acabámos de vêr, mas ainda das simples
faculdades e das meras espectativas, conforme a
technica usada pelos autores, repellida modernamente, sem razão alguma, por Planiol (1) e os
que o acompanham.
Faculdade, como a palavra bem claramente
significa, é a simples capacidade, não exercitada, de
praticar actos juridicos; é um direito que a lei
reconhece, mas que nunca foi posto em prá-tica, do
qual ainda não foi feito uso pela pes-soa de quem se
trata, como, por exemplo, a faculdade de contrahir
casamento, ou a faculdade de testar. Essa faculdade se
mantém como tal, emquanto a pessoa não a exercita
por meio de um facto acquisitivo de direito. Ella é
anterior ao direito adquirido, e simples meio para o
adquirir.
Espectativa é a mesma esperança de um direito
que, pela ordem natural das cousas, e de
accordo com uma legislação existente, entrará
provavelmente para o patrimonio de um individuo
quando se realise um acontecimento previsto. A
espectativa se distingue da faculdade,porque se
transfórma em um direito que entrará para o
patrimonio
do individuo independentemente de
qualquer acto deste. A faculdade só produz
acquisição de direito quando exercida pelo titular
O conceito da espectativa está para
(1) Planiol, ob. cit. v. I n. 249. Clovis Bevilaqua.—Theor, do Dir.
Civ. pag. 21.
— 31 —
o de faculdade, como o conceito de probabilidade
está para o de possibilidade.
A espectativa se distingue do direito adquirido
porque este, como vimos, já entrou para
o patrimonio da pessoa, ou, ao menos, já se
concretisou em uma utilidade pessoal ou real para o
individuo, ao passo que aquella é apenas uma
esperança. Não ha direito adquirido, diz Filomusi
Guelfi, quando um direito está no seu
fieri ou devenire. (1) O direito em espectativa pode ser
alterado por lei. O direito adquirido nem a lei o pode
alterar. Um exemplo de espectativa de direito é a que
tem o filho sobre a legitima paterna, porque em
virtude de um acontecimento previsto, e de accordo
com uma legislação vigente, elle espera que essa
legitima entre para o seu patrimonio e constitua um
direito adquirido.
28. Cumpre notar que o direito adqui-rido pode
ser condicionado. E é preciso maior attençâo, neste
caso, para não o confundir com a espectativa. Para
isso, deve-se observar que o direito adquirido
condicionado tem todos os elementos de um direito
adquirido, e já se concretisou em utilidade para o
individuo, dependendo apenas da realisação de uma
condição ou de um termo para que possa ser exigido.
Por isso, no direito condicionado o adimplemento
(1)
Filomusi Guelfi -obr. cit. $ 32.
— 32 —
da condição, mesmo que se verifique sob o dominio de
uma lei nova, tem effeito retroacti-vo, de modo que o
direito se considera como real e effectivo desde o
momento em que nasceu sob condição. Como diz
Savigny, a diffe- rença está nisto : na espectativa o
exito depende inteiramente do mero arbítrio de uma
outra pessoa ao passo que na conditio e no dies não
tem logar este arbítrio. (1)
29. Feitas essas distincções indispensa-veis,
podemos repetir, com segurança, a regra fundamental
já exposta: — que a lei nova não pode ferir direitos
adquiridos. Ou, em outros termos, deixando de parte os
factos consumma-dos, que, como dissémos, estão
inteiramente fóra de qualquer questão de direito
transitorio, podemos dizer: — que a lei nova é
retroactiva quando encontra simples faculdades ou
meras espectativas; — não é retroactiva quando encontra direitos adquiridos. (1)
No primeiro caso, a retroactividade é justa,
porque, como já foi demonstrado, as faculdades e as
espectativas são direitos in abstracto, que ainda não
se realisaram por um facto, e ' que não constituem
parte do patrimonio, nem con(1) Savigny—obr. cit. v. i $ 385, p. 388, $ 392 p. 434. (2) Dernburg—
obr. cit. $ 43 n. 8—manifesta-sa contrário á opinião dos que dizem que
a nSo retroactividade só se verifica em face dos direitos adquiridos;
mas as poucas palavras do notavel jurisconsulto não bastam para
produzir convicção. Elle mesmo reconhece que ta simples espectativas
não têm defeca (cit. § in fin).
— 33 —
creta utilidade pessoal do individuo. Uma lei nova
pode justamente extinguil-as sem causar damno
algum, porque, como ensina Gabba, (1) desde que não
haja lesão a direitos adquiridos, toda lei nova deve
receber a mais ampla appli-cação a tudo o que
concerne ao seu objecto, quer se trate de factos ou
relações juridicas inteiramente novas, quer de
consequencias de factos e relaçOes jurídicas
anteriores. E ninguem se pode dizer lesado pela
applicação da lei nova, pondera Baudry Lacantinerie,
desde que ella não o despoja de algum direito
adquirido. (2)
No segundo caso, a retroactividade é injusta,
porque, desde que o direito foi realisado, tornou-se
adquirido, entrando a fazer parte do patrimonio de
uma pessoa, ou constituindo-a na posse de um estado
civil definitivo, e qualquer effeito retroactivo de uma
lei nova seria uma offensa á pessoa, e grave lesão ao
seu patrimonio, o que o direito não pode admittir.
30. Lassalle, com aquella profundeza philosophica que caracterisa o seu importante trabalho
sobre esta materia, diz mesmo que — não
retroactividade das leis e respeito aos direitos
adquiridos são conceitos identicos. A retroactividade
é inadmissível porque ella importa em uma invasão
sobre a liberdade e a responsabi(1) Gabba— ob cit\ v. I p. 182.
(2) Baudry Lacantinerie—ob. cit. v. 1 n. 127.
— 34 —
lidade do homem. Aquelle que agiu livremente,
conhecendo a lei vigente, e de conformidade com ella
adquiriu um direito, sujeitando-se a todas as
consequencias do seu acto nos termos dessa mesma
lei, por confiar na ordem jurídica existente, não póde,
sem violencia, ser, por disposição de uma lei nova,
privado desse direito adquirido. O effeito retroactivo
da lei, neste caso, seria uma affronta á personalidade
do individuo, desrespeitando a vontade por elle manifestada de accordo com a lei que conhecia. E a lei
nova que declarasse expressamente ter effeito
retroactivo, seria, na expressão de Las-salle, não uma
lei, mas «o não direito absoluto, a destruição da idéa
do direito em geral». O verdadeiro fundamento do
respeito aos direitos adquiridos, está, pois, na
inviolabilidade da personalidade humana, e na
inseparabilidade do conceito do direito e do de uma
pessoa que pensa e quer livremente. (1)
31. Mas não basta essa inviolabilidade da
personalidade humana para justificar o respeito aos
direitos adquiridos, diz proficientemente Gabba (2),
completando a doutrina de Lassalle: «na
retroactividade injusta os homens não vêm sómente
offensas á personalidade, a qual, ás vezes, é
sacrificada á razão de Estado,
(1) Lassalle— ob. cie. v. I cap. II p. 65 e segs. (2)
Gabba—ob. cie. p. 177.
— 35 —
mas elles vêm, além disso, verdadeiros damnos,
verdadeiras diminuições de seu patrimonio pessoal e
material. E isto porque o direito adquirido não é
sómente uma manifestação do pensamento e da
vontade do homem, mas é tambem um positivo
augmento ou melhoramento da sua situação jurídica;
e, porisso, o não direito que nasce da injusta
retroactividade da lei, não é tolerado pelos homens,
não só porque offende a dignidade humana, mas
tambem porque di-minue o bem estar e produz um
positivo prejuízo. » E' uma exigencia racional do
direito, diz Filomusi Guelfi, que a lei não declare
injusto ou nullo um acto exercido pela vontade sob a
garantia de uma lei anterior. Desde que o primeiro
direito formal, (a primeira lei) garantia o acto ou o
facto, elle reconhecia a sua conformidade com a
justiça e o direito; ora, se appa-rece um novo direito
formal, com um conteudo diverso da justiça ou do
direito, elle não pode nem deve desconhecer que a
primeira lei correspondia ás exigencias historicas da
justiça; e quem, na prática de um acto, se
tem
conformado com as prescripções do velho
direito formal, prestou a homenagem devida ao proprio
direito, donde resulta a exigencia de
que seja
1
respeitado o seu acto. ( ) O
principio da não
retroactividade é, segundo Planiol, a salvaguarda
necessaria dos direitos individuaes. Não haveria
(1) Filomusi Guelfi—ob.cit. § 32—Dernburg—ob. cit. v. I p. 43.
— 36 —
nenhuma segurança para os particulares, escreve elle,
se seus direitos, sua fortuna, sua condição pessoal, os
effeitos de seus actos e de seus contractos pudessem, a
cada passo, ser postos em questão ou supprimidos por
uma mudança de vontade do legislador. O interesse
geral, que não é aqui senão a resultante dos interesses
individuaes, exige, pois, que aquillo que foi
regularmente feito sob o imperio de uma lei, seja
considerado como válido, e, por consequencia,
estavel, mesmo depois da mudança da legislação. (1)
32. O que se diz do direito adquirido, isto é, que
a lei nova não retrotrahe o seu effeito quando o
encontre, porque a retroactividade seria injusta,
applica-se tambem ás consequencias do direito
adquirido, porque ellas participam da mesma natureza
deste. (2)
Assim, adquirido um direito qualquer, todas as
faculdades que delle decorrem como consequencias
ou effeitos, são tambem direitos adqui-ridos e fórmam
com elle uma só entidade.
De facto, seria illusorio o respeito em que se
deve ter o direito adquirido, se se pudesse impedir,
por uma lei nova, a realisação das consequencias ou
dos effeitos delle derivados, pois, um
direito
adquirido, como diz Gabba,
(1) Planiol—ob. fit. v. I n. 240.
(2 ) Alves Moreira—ob. cit. v. I n. 37.
— 37 —
algumas vezes se apresenta como uma unidade
simples, mas outras vezes se apresenta como um
complexo de muitas faculdades ou direitos que, ou
coexistem, ou se exercitam successiva-mente em
dadas circumstancias. (1)
Neste ultimo caso, quando os direitos se
exercitam successivamente uns como consequencias
dos outros, estas consequencias participam da mesma
natureza do direito adquirido, se contêm os mesmos
caracteres deste e se se apresentam como um seu
desenvolvimento ou transformação.
Não importa que essas consequencias sejam
previstas pelas partes contractantes, ou sejam
exclusivamente estabelecidas pela lei vigente ao
tempo em que se deu o facto.
E' um desses princípios que se podem chamar
fundamentaes e sagrados, porque têm por base a
razão, a justiça e a fé inviolavel dos contractos, diz
Chabot de 1'Allier, esse pelo qual se reconhece que
nada deve ser alterado por uma lei nova relativamente
aos effeitos de uma convenção irrevogavel. (2)
Com a conclusão do contracto, escreve Savigny,
as duas partes contractantes adquirem um direito á
efficacia constante de todas as regras concernentes ás
questões delle deriva-das. E esse direito é um direito
adquirido, que
(1) Gabba—ob. cit. v. I p. 276. (2)
Chabot de I'AIlier—ob. cit.
— 38—
deve ser mantido em frente de qualquer leí nova.
Esta maxima é verdadeira e tem applica-ção
tambem aos contractos cujo effeito é diffe-rido pela
dependencia de um termo, ou tor-nado incerto em
virtude de uma condição. Além de estar de accordo
com o principio fundamental da theoria, tem ella uma
verdadeira importancia prática, porque é só pela sua
appli-cação que se póde inspirar a confiança indispensavel á segurança do commercio, de que a
efficacia dos contractos se manterá inalteravel. (1)
33. Grande divergencia tem dividido os autores
quanto ao caracterisar quaes sejam as consequencias
dos actos e contractos juridicos, que devem ser
consideradas como direitos adquiridos para
escaparem a qualquer acção da lei nova. Não nos
sendo possível, pela natureza desta exposição,
acompanhal-os nas longas discussões sustentadas a
respeito, basta-nos declarar que a doutrina hoje
triumphante é a de Gabba, que, deixando de parte a
distincção entre consequencias e effeitos, e entre
consequencias immediatas e remotas, affirma que
«todas as vezes que nas consequencias dos
(1) Savigny — ob. cit. § 392 p. 434-435 — Dernburg,—ob. cit. § 43.
reconhece que, uma vez constituídas as relações juridicas, mau grado a
entrada em vigor de novas leis, continuam perennemente a desenvolver
os effeitos juridicos produzidos segundo a lei do tempo de sua
constituição, a cujo domínio ficam sujeitas.
— 39 —
direitos adquiridos, isto é, nos effeitos destes, não
directos e immediatos, mas occasionaes e eventuaes,
ou posteriores aos immediatos e directos, queridos e
postos como taes pelos contractantes e pela lei, todas
as vezes que, em taes consequencias se encontre o
caracter de desenvolvimento ou transfórmação do
originario direito adquirido, ellas têm o caracter de
outros tantos direitos adquiridos, e qualquer outra
distracção se torna inutil. (1) Só com esse criterio é
possível fixar a extensão do direito adquirido.
(1) Gabba—ob. cit. p. 295.
CAPITULO III
Das leis expressamente retroactivas
34. A exposta razão fundamental que determina
a inviolabilidade do direito adquirido, repellindo, em
qualquer hypothese, a retroactividade injusta, faz com
que, de accôrdo com Struvius e Lassalle, e a despeito
da opinião contrá-ria de grande numero de
autoridades, não admitíamos a acção retroactiva por
disposição expressa do legislador, quando este tenha
por escopo ferir direitos adquiridos. Admittir a
retroactividade pela simples intenção do legislador, é
renunciar a todo ponto de vista scientifico, é duvidar
da sciencia. (1)
Como diz Berriat Saint Prix, o proprio poder
legislativo não pode despojar um cidadão dos direitos
que compõem seu patrimonio; elle não pode graval-o
com um onus que diminua a sua fortuna. (2)
(1) Lassalle—ob. cit., v. I, p. 45.
(2) Berriat Saint Prix — Ther. du Dr. Constit—1851 —ns.
736 e 737.
— 42 —
Filomusi Guelfi que, conforme o direito] positivo
italiano, reconhece no legislador a fa-culdade de
declarar expressamente retroactiva uma lei, adverte,
ponderosamente, ser de bôa politica que elle não abuse
desse poder, por-quanto o principio da não
retroactividade, ge-ralmente acceito, que exige o
respeito aos actos praticados de conformidade com a
lei antiga, deve tambem ser attendido pelo proprio
legis-lador. (1).
35. E' tão procedente pela sua legitimidade
jurídica esse principio, que, em alguns paizes, já foi
elle acolhido como preceito constitucional para servir
de salutar aviso aos legisladores ordinarios. A França,
embora sem exito, já tentou collocal-o em uma das
suas constituições. (2) Nos Estados Unidos da America
do Norte, a constituição federal prescreve, no art. I
sec. 9 n. 3, que não poderá ser votada lei que tenha
effeito retroactivo (ex post facto). (3). E entre nós tem
sido esse principio acceito desde a organisação do
Imperio, como uma das garantias dos direitos do
homem. Assim, a constituição imperial estabeleceu,
no art. 179 § 3, que a disposição da lei não terá effeito
retroactivo, e a constituição federal republicana,
(1) Filomusi Guelfi— ob. cit., § 32.
(2) Constituição de 5 fructidor anno III (22 de agosto de 1795) (3)
Tambem a const. da Noruega, art. 97, a da Grecia, art. 7 e a carta
constitucional portugueza, art. 145 § 2.
— 43 —
no art. II n. 3, prohibe aos Estados, como á União, o
prescrever leis retroactivas.
E', portanto, inadmissível no Brasil, de accôrdo
com a verdadeira doutrina, a acção retroactiva da lei
por disposição expressa, que muitas legislações
permittem, e de que tanto abusou a legislação romana
no tempo dos imperadores. Como bem pondera
Savigny, é sum-mamente importante que se possa ter
uma confiança segura na autoridade das leis existentes. Cada qual deve poder estar certo de que os
negocios juridicos que fez, conforme as leis
existentes, para adquirir direitos, produzirão os seus
effeitos ainda no futuro. (1).
36. Deve-se notar que o dispositivo
constitucional citado refere-se ao legislador e não ao
juiz. A sua fórma não deixa nenhuma duvida sobre
isso, porque véda que elle, quer nos Estados, quer na
União, prescreva leis com effeito retroactivo
expresso. Ao juiz não fóra possível prohibir que
applicasse as leis com ef-feito retroactivo nos casos
em que ellas o tenham pela natureza do objecto sobre
que recáem. Desde que uma lei nova não encerre
disposição expressa sobre acção retroactiva,—e entre
nós isso é impossível, como vimos — o juiz deve
dirigir-se, na applicaçâo das leis, guiado apenas pelos
princípios doutrinarios já expostos,
(1)
Savigny—ob. cit., § 385, p, 390.
— 44 —
que determinam que uma lei nova deve ser
applicada do modo o mais completo, abrangen-do
todos os casos que se incluam na esphera do seu
objecto, e respeitando apenas aquelles em que se
verifique a existencia bem caracte-risada de um
direito adquirido.
CAPITULO IV
Dos institutos juridicos de duração perpetua
37. Um dos pontos em que alguns es-criptores
têm procurado justificar a retroactividade expressa, é
aquelle referente ás leis que têm por fim abolir certos
institutos de duração perpetua, como a emphyteuse,
os feudos, a servidão da gleba, a escravidão, etc.
Realmente, os progressos da civilisação,
impulsionando o aperfeiçoamento do direito, têm
determinado a necessidade de abolir os institutos
juridicos, que não se adaptam mais ás novas
condições, á indole, aos costumes do povo. Ao
mesmo tempo, não é possível deixar de reconhecer
que a abolição desses institutos produz effeitos
directos sobre o patrimonio dos indivíduos,
constituindo um verdadeiro ataque aos direitos
adquiridos.
Ora, se, de conformidade com o principio
fundamental da theoria da retroactividade, as leis
novas não podem retrotrahir o seu effeito de modo a
lesar direitos adquiridos, segue-se
— 46 que, uma vez resalvados da acção retroactiva da
nova lei esses direitos, e sendo elles de natureza
perpetua, como é o direito do emphyteuta sobre o
immovel emphyteuticado, ou o do senhor sobre o
escravo, a lei abolitiva não poderia realisar o seu
fim, seria uma lei inefficaz.
39. A' vista disso, alguns autores esforçam-se
por demonstrar que semelhantes leis têm effeito
retroactivo completo, levando de vencida os
direitos adquiridos; e assim deve ser, dizem elles,
porque, desde que seja reconhecida a necessidade
de abolir institutos de natureza per-i petua, por nao
estarem mais de accôrdo com as idéas e as
condições da sociedade civil, é que esses institutos
nao têm mais legitimidade perante os princípios
superiores do direito, da justiça e da razão (1). E
em nome desses princípios, póde ser considerada
como justa, nesses casos excepcionaes, a
retroactividade com offensa aos direitos
adquiridos (2). No caso em que a lei positiva é, de
facto, a negação do direito e da justiça, dizia o
notavel profes-sor Conselheiro Justino de
Andrade, a lei nova, que a revoga, tem effeito
retroactivo, em face de um principio irrefragavel,
que é o seguinte :
(1) Struvius chama-lhes «horrores, vergonhas moraes injus
tiças que não têm por si existencia jurídica. — Apud Savigny, ob,
cit. p. 527.
(2) Vincenzo Simoncelli— Sui limitti della legge nel tempo —
Studii di diritto in onore di Vittorio Scialoja— igo5, v. 1 p. 382.
— 47 —
— « as leis que restabelecem o direito natural le
reparam os direitos imprescriptiveis da humanidade,
devem receber immediata applicação por todos os
meios possíveis.»
39. Para outros, a inviolabilidade dos [direitos
adquiridos é um dogma tão respeitavel, que, mesmo
nesses casos figurados, não é admissível que a lei
nova os extinga sem que los indivíduos prejudicados
sejam devidamente recompensados pelo Estado com a
competente indemnisação pelo damno que soffrerem.
No Brasil, quando foi abolida a escravidão, pela
lei de 13 de maio de 1888, os poderes publicos
entenderam do primeiro modo, a despeito do preceito
constitucional vigente, achando justa a retroactividade
da lei para o effeito de extinguir, como extinguiu, sem
indemnisação alguma, os direitos adquiridos dos
senhores so-bre os escravos, que constituíam uma
propriedade garantida pelas leis.
Na Inglaterra, quando foi abolida a escravidão
nas possessões inglezas, entendeu-se do segundo
modo, que está mais de accordo com o rigor do
direito, despendendo o governo in-glez avultadas
sommas para indemnisar os damnos causados aos
senhores dos escravos.
O certo é que, a despeito das divergencias
quanto ao dever de indemnisação, que nos pa-rece um
consectario do respeito aos direitos
— 48 —
individuaes, todos concordam em que as leis
abolitivas de institutos de duração perpetua necessitam, para a realisação do seu fim, do mais
amplo effeito retroactivo, extinguindo mesmo os
direitos adquiridos.
E', segundo pensamos, uma excepção á
doutrina exposta, excepção justificada pela necessidade jurídica que dictou a nova lei.
CAPITULO V
Das leis sobre prescrlpçíio
40. A materia concernente á prescripção, quer
acquisitiva, quer extinctiva, tem despertado a attenção
especial dos auctores, porque ella se concretisa
sempre em um facto complexo, a respeito do qual
sérias difficuldades se apresentam ao tratar-se da
applicação de uma lei nova. Sendo a prescripção o
instituto jurídico em virtude do qual, decorrido um
certo lapso de tempo, e verificadas certas condições
legaes, uma pessoa adquire ou perde direitos, é claro
que» quando apparecem leis novas alterando o espaço
de tempo, ou modificando os requisitos da
prescripção, surge logo a questão de saber se uma
prescripção começada no domínio da lei antiga e
ainda não terminada ao apparecer a lei nova, continúa
a ser regulada por aquella lei, ou se será regulada pela
lei nova, ao menos quanto a parte que falta para
completar o tempo.
41. Os escriptores divergem, dizendo uns,
inspirados pelo cod. civ. francez, art. 228I,
— 50 —
que, começada a prescripção, tem o prescri-bente
um direito adquirido a que ella seja re-gida pela lei sob
a qual teve começo, e, por-tanto, a lei nova não pode
retroagir, alcançando uma prescripção já começada.
Dizem
outros, influenciados pelo antigo
cod.
prussiano, que, se a prescripção começada ainda não
está finda ao apparecer uma nova lei, fica ella
subrnettida ao
regimen
desta,
porque,
na
hypothese, o facto acquisitivo, que é complexo, não
se reali-sou perfeitamente, e, portanto, não produziu
um] direito adquirido.
42. De conformidade com o que já foi dito a
respeito do facto acquisitivo complexo, não temos
dúvida em admittir, em geral, esta segunda opinião,
porque, como ficou anterior-mente explicado,
emquanto não se realisam todas as partes do facto,
não pode elle produzir um direito adquirido.
Como pondera Windscheid, o começo da
prescripção não imprime ainda ás relações o seu
perfeito cunho jurídico; portanto, a nova lei domina a
prescripção em curso, e aquelle que está prescrevendo
não pode pretender terminar a prescripção segundo a
norma juridica antiga, desde que a nova norma não
admitta tal prescripção, ou requeira uma condição que
o direito anterior não exigia, como, por exemplo, a bôa
fé. (1)
(1) Windscheid—ob. vit. vol. I $ 32 nota 10.
— 51 —
43» Assim, applica-se retroactivamente a
uma prescripçao em curso:
a) A lei nova que abolir a prescripçao re
lativa ao mesmo objecto regulado pela lei anb) A lei nova que augmenta o prazo
prescripcional estabelecido pela lei antiga, de
modo qne a prescripçao em curso sómente pode
produzir os seus effeitos depois de decorrido o
novo prazo, embora, por equidade, deva
computar-se o tempo já realisado sob a lei antiga,
porque, como diz Windscheid, o direito novo só
exige que um determinado estado de cousas haja
durado um certo tempo, mas não que tenha
durado um certo tempo sob o seu imperio, (I)
c) A lei nova que abrevia o tempo prescripcional estabelecido pela lei anterior, de
modoque a prescripçao se completa uma vez
decor
rido o menor prazo estabelecido por aquella
lei,computado, tambem por equidade, o tempo de
corrido no domínio da lei antiga, (2) salvo se fôr
brevíssimo o tempo que faltar depois de
publicada a nova lei, ou se, no dia da publica
ção, já estiver decorrido todo o prazo ' exigido
(1) Windscheid, lod. cit.
(2) A solução mais jurídica, diz
Planiol (ed. cit. a. 248) é
estabelece uma proporção entre o tempo decorrido e o tempo a
decorrer. Em contrario: Savigny, (ob. cit. § 391 p. 430) que entende dever deitar-se ao adquirente s escolha aa cxplicação de lei
antiga ao de nota.
— 52 —
por esta, pois, nestes casos, a prescripçãol deria
produzir surprezas gue o direito não admittiria, e
poderia dar-se mesmo o absurdo de realisar-se
uma prescripção em um prazo menòf do que o
exigido pela lei vigente ao tempo emj que ella se
verificou.
d) A lei nova que dispõe sobre requisitos para a
prescripção, quer exigindo mais quer exigindo
menos, de modo que a parte que faltar para
completar-se a prescripção em curso, deve ser
julgada de accordo com os requisitos determinados pela lei nova. Pela mesma razão de
equidade se tem admittido que a parte já decorrida
da prescripção deve ser apreciada conforme os
requisitos da lei antiga, pois seria impossível
exigir, relativamente a facto passado, a
observancia de requisitos que só mais tarde fóram
reclamados por uma lei nova, salvo se se tratar de
um novo requisito que se refira ao principio ou a
todo o período da prescripção/ como, por
exemplo, o requisito da. boa fé, caso em que a
parte decorrida perde todo o valor para o effeito
da prescripção. (l) Quanto á lei nova que dispensa
certos requisitos exigidos pela lei antiga, não ha
dúvida que tem effeito retroactivo para reger a
prescripção em curso, mas nao pode validar a
parte da prescripção já de-decorrida no domínio
da lei antiga, se nao fo(1) Windscheid, loc. cit.
— 53 —
ram observados os requisitos que esta lei exigia.
Applica-se aqui o que já dissémos a respeito na
convalescença dos actos juridicos, onde já ficou
demonstrado que uma lei nova, abolindo
requisitos que a lei antiga exigia, não pode fazer
válido aquillo que perante esta lei era nullo.
e) A lei nova que introduz novos modos de
interrupção da prescripção.
Todas essas regras, em virtude das quaes
uma prescripção em curso fica sujeita ás disposições da lei nova, são consectarios da affirmação, anteriormente feita, de que emquanto não
está terminado o tempo da prescripção não ha
direito adquirido para o prescribente.
CAPITULO VI
Das leis interpretativas
44. As leis interpretativas merecem uma ligeira
referencia ao tratar-se da theoria da retroactividade,
não porque sejam ellas leis retroactivas, mas
porque, em virtude da sua applicação aos factos
anteriores, que se deram no dominio da lei
interpretada, e que aindanão foram consummados,
tem ellas uma acção apparentemente retroactiva.
Não existe uma verdadeira retroactividade, porque
entre a lei novainterpretativa e a lei antiga
interpretada nãoha um conflicto de leis no tempo ;
aquella apenasesclarece o sentido obscuro desta,
confirmando-lhe, porém, todas as disposições; nihil
dat sed datum significai (1); não é propriamente
uma lei nova differente da antiga, mas surge, por
uma necessidade geral, sem estatuir nada de novo,
para fazer um só corpo com a lei interpretada e ter
applicação desde a data em que esta entrou em
vigor.
(1) Ulpianus fr. 21 § I—qui testam, fac. poss. (28-1)
— 56 —
45. Justiniano, em a nov. 19 pref. in fin.,
resolvendo dúvidas levantadas ácerca do effeito
retroactivo da lei interpretativa pela qual esclareceu o
sentido das leis anteriores relativas á legitimidade dos
filhos nascidos antes do contracto dotal, decidiu que a
nova lei deveria ser applicada mesmo aos filhos nascidos
antes da sua promulgação, embora não estivesse isso
declarado expressamente, porquanto, se é verdade que
quando se quer dar effeito retroactivo a uma lei, deve
isso ser dito de modo expresso, não é, todavia,
necessario fazer o mesmo quando seja promulgada uma
segunda lei que não seja senão um complemento da primeira. Por isso, e para não encher o codigo de cousas
superfluas, deixou de declarar, na terceira lei sobre o
assumpto, o tempo em que devêra entrar em vigor,
porque é sabido geralmente que uma lei interpretativa
dispõe para todos os casos regidos pela lei a que se refere — cum omnibus manifestum sit oportere ea, quae
adjecta sunt, per interpretationem in illis valere, in
quibus et interpretatis legibus fit locus. E em a nov. 143
cap. 1, fixando a verdadeira interpretação da lei relativa
á punição dos dè-lictos de rapto de mulheres,
determinou que a interpretação constante dessa novella
se ap-plicará não só aos casos futuros, senão tambem aos
passados, como se a lei interpretada tivesse sido
promulgada ab initio com essa in-
— 57 —
terpretação—quam interpretationem non in futuris tantummodo casibus, verurn in prateritis
etiam valere sancimus, tamquam si nostra lex
ab initio cum interpretatione tali promulgata
fuisset.
46. Não alcança, porém, a lei interpre-tativa
aquillo que já estiver terminado por tran-sacção
ou por sentença judicial.
Dil-o positivamente a citada nov. 19 cap. 1
— exceptis illis negotiis, quae contingit ante leges
a nobis positas aut decreto judicum aut transactione determinari. Esse decreto judicial a que se
refere o texto é, sem duvida, aquelle que já passou
em julgado, porque a sentença sobre a qual pende
um recurso de appellação, fica sujeita á unica
interpretação verdadeira, que é a fixada pela nova
lei, a qual os juizes supe- riores têm o dever de
applicar como parte in- tegrante da lei interpretada,
reconhecendo como
falsa qualquer interpretação differente que
houvesse sido dada pelo juiz de primeira
instancia.
Esta
conclusão
é
uma
consequencia do principio de que a lei
interpretativa se considera como vigente desde a
data da lei interpretada, postos fóra do seu
alcance apenas os factos consummados. (1)
(1) Espínola—ob. cit, p, 181 n.° 33—observa, com razão, que
não pode haver direito adquirido baseado na interpretação falsa da lei.
— 58 —
47. Cumpre fazer aqui a mesma observação
que fizemos no paragrapho em que estudámos as
leis interpretativas, isto é, que uma lei não é
interpretativa só porque assim a denomina o
legislador, mas sómente o é quando tem por fim
simplesmente interpretar uma outrae nada
innovar. (1)
Aquellas que apparecem com esse nome,
mas innovam as 4eis interpretadas, modifican-dolhes as disposições, não devem ser tratadas, em
sua applicação, como leis interpretativas.
(1) Bacon—aphor. n. 51.
CAPITULO VII
Doutrinas diversas
48. Os princípios até aqui expendidos, que
constituem,
segundo
pensamos,
as
bases
fundamentaes de uma verdadeira theoria da retroactividade das leis, patenteam desde logo que,
filiado á exacta doutrina tão admiravelmente exposta
por Gabba, cujos ensinamentos nos vêm guiando em
toda esta materia, não podemos acompanhar a alguns
dos mais notaveis jurisconsultos, que têm construído
differen-tes doutrinas sobre tal assumpto.
49. Assim, para começar pelo maior de todos
em saber e em autoridade, não acceita-mos como
principio basico aquelle que Savigny estabelece
como fundamento de sua doutrina, dizendo, que são
retroactivas as leis que se referem ás instituições
jurídicas, isto é, que dispõem sobre a existencia, a
não existencia, ou o modo de existir dessas
instituições em geral, e que não são retroactivas as
leis que se referem á acquisição de direitos, isto é,
as
— 60 —
que regulam as concretas relações de direito entre
pessoas determinadas. (1)
Não ha dúvida que, a
despeito de certas) difficuldades mostradas por
Lassalle, (2) e de dizer Dernburg (3) que o limite entre
essas duas classes de leis não se manifesta claro nem
estavel, é theoricamente verdadeira a distincção feita
por Savigny entre leis que se referem ao ser ou não ser
das instituições jurídicas, e leis que se referem á
acquisição de direitos. Com effeito, as primeiras são
aquellas que cream ou extinguem certos institutos
juridicos, como, por exemplo, o da emphyteuse, o do
divorcio, o do fideicommisso, o da tutela da mulher,
etc, as segundas são aquellas que regulam as relações
jurídicas concretisadas entre as pessoas que, por meio
delias, adquirem ou perdem direitos. Mas não é
possível admittir-se que só em virtude do seu objecto,
as leis tenham ou deixem de ter acção retroactiva.
50, Na verdade, as leis sobre existencia de institutos
juridicos, segundo Savigny, ou têm por fim crear
novos institutos, ou abolir os que existem, ou alterar o
seu modo de ser, No primeiro caso, não se pode
cogitar de retroactividade, porisso que, antes da nova
lei,
(1) Savigny, ob, cit. v. 8 § 383 e segs Sobre a comprehen-são
dessas duas categoria de leis. veja-se o largo e interessante estudo de
Simoncelli na monographia cit. pag. 355.
(2) Lassalle, loc. cit.
(3) Dernburg, loc. cit.
— 61 —
pada podia haver concernente ao instituto creado. No
segundo caso, a lei que decreta a abolição de instituto
juridico, é uma lei prohibitiva, pela qual se ordena que
nada mais se faça relativamente ao instituto abolido.
Mas é Savigny mesmo quem demonstra que nem
todas as leis prohibitivas são retroactivas.
Imagine-se uma lei abolindo o instituto do
divorcio, ou o da adopção de filhos. Essa lei poderá,
juridicamente, ter effeito retroactivo ? Sem dúvida
que não: todos os divorciados, bem como os filhos
adoptados no regimen da lei antiga, escapam á acção
da lei nova, e podem fazer valer, em qualquer tempo,
os seus direitos adquiridos.
51. Quanto ás leis sobre o modo de ser dos
institutos juridicos, não é possível dis-tinguil-as das
que se referem á acquisição de direitos, pois, como diz
Gabba, o modo de ser dos institutos juridicos não
consiste senão na qualidade e nos limites dos direitos
que, por occasiâo e em virtude dos mesmos institutos,
podem ser adquiridos. A celebre const. 27—de usuris
(4-32) serviu de objecto para demonstrar como foi
impossível a duas intelligencias privilegiadas
concordarem na qualificação desse preceito do
imperador Justiniano. Savigny (1) con-demnou a lei
por entender que ella se referia
(1) Savigny, ctí. p. 435.
— 62 —
á acquisição de direitos; ao passo que Lassalle (1) a
applaudiu não pensando do mesmo modo.
52. Lassalle refuta a Savigny dizendo que a sua
distincção repousa apenas em abstractas categorias
intellectuaes, que não servem de segura base, e
accrescenta que as leis, con-forme sejam consideradas
sob o ponto de vista do individuo ou do objecto,
podem classifícar-se como leis sobre acquisição de
direitos, no primeiro caso, e no segundo, como leis
sobre existencia de direitos. Realmente se nota, na
obra de Savigny, um certo arbítrio no classificar as
leis em uma ou em outra categoria. (z)
53. Quanto á não retroactividade das leis que se
referem á acquisição de direitos, é doutrina perigosa
e falsa, porque essas leis têm por objecto relações
jurídicas entre pessoas determinadas, e, como já
longamente demonstrámos ao expôr a verdadeira
theoria, é certo que nem todas as relações de direito
produzem direito adquirido, e quando não ha um
direito adquirido, sabemos que as leis novas retrotrahem o seu effeito.
54. Entretanto, se não é possível accei-tar
como um principio fundamental da theoria da
retroactividade a distincção a que acabamos de
alludir, devemos, todavia, reconhecer a grande
(1) Lassalle, cit. p. 289.
Pandette (trad ital.) v. I § 32 nota 6.
(2) Windscheid. —Dirit. delle
— 63—
Importancia da doutrina savigniana, já pelas vastas
idéas com que ella enriqueceu o assumpto, já porque
aprofundou a noção do direito adquirido, distinguindoo das simples faculdades e das meras espectativas.
Releva notar, porém, que Savigny, admittindo ao
seu principio, para justificar a ampliação ou a estricção
da efficacia da lei nova, certas excepções que, segundo
elle, devem ser determinadas expressamente pelo
legislador, (1) deixa vacillantes as bases da sua
doutrina, che- gando mesmo ás vezes a perdel-as de
vista. E é digno de nota, que, nos resultados praticos
da applicaçâo das leis novas, e nas consequen- cias
finaes de suas minuciosas lucubrações, Savigny,
em regra geral, põe-se de accordo com a
verdadeira theoria do respeito ao direito adquirido.
Isto nos permitte observar com Gabba que, attendendo
mais aos factos que ás pala-vras, pode-se dizer que a
verdadeira doutrina de Savigny não é aquella que
parece contida nas formulas por elle inventadas;
é, porém, uma doutrina muito mais simples, e que
todos podem cornprehender, isto é, que, em regra
geral, todas as leis se podem
applicar
a consequencias de factos e relações juridicas anteriores,
desde que com isso não se offendam direitos
adquiridos. (2)
(1) Savigny, cit § 397 (2)
Gabba, cit. p. 170.
— 64 —
55. A doutrina dos que sustentam que são
retroactivas as leis prohibitivas, tambem não assenta em
fundamento solido. Esse criterio deduzido da fórma da
lei, é completamente accidental, e extranho aos
princípios que regem a efficacia da lei no tempo, sendo
certo, como já referimos acima, que innumeras leis
prohibi-tivas não podem ter effeito retroactivo, se a sua
applicação importar em offensa a direitos adquiridos. Por
exemplo, uma lei que prohiba os contractos de quota
litis, ou uma lei que prohiba o emprestimo de dinheiro a
juro maior do que seis por cento, não se applicam aos
contractos já feitos e ainda não exigidos. (1) Os
exemplos apontados pelos adeptos dessa doutrina,
referem-se todos a institutos juridicos de duração
perpetua, ácerca dos quaes só por excepção se justifica o
effeito retroactivo, como já foi anteriormente
demonstrado, (cap. IV)
56. Uma outra conhecida doutrina prégada por
Odilon Barrot, na Assembléa nacional franceza,
declarava que não é verdadeiro o principio de que as
leis não são retroactivas, porque a verdade é que as leis
favoraveis são retroactivas. Isto pode ser até certo
ponto admittido, desde que se considerem leis
favoraveis aquel-las que não ferem direitos adquiridos.
Sé, po(1) A c, 27 de uzuris (4-32) foi uma violencia aos direitos.
adquiridos, só tendo applicação por forca. da vontade expressa de
Justiniano.
— 65 —
rém, ao applicar-se uma nova lei favoravel a um
individuo, houver lesão ao direito adquirido de
outrem, não é possível dar a essa lei effeito
retroactivo. Tudo se resolve, pois, em uma questão de
direito adquirido. A theoria da retroactividade das leis
favoraveis ao individuo sómente pode ser acceita na
esphera do direito criminal, em virtude do principio
— nulla poena sine lege, e em homenagem á
humanitatis causa. (1)
57. A doutrina que estabelece como criterio para
a retroactividade a intenção do legislador
expressamente manifestada na lei, é insubsistente por
arbitraria, submettendo a razão jurídica aos dictames
autoritarios dos legisladores. Já expuzémos,
anteriormente, os motivos por que entendemos que o
legislador não tem o direito de impôr effeito
retroacivo ás leis que promulga, (cap. III).
58. A doutrina de Lassalle é de inesti-timavel
valor em virtude do seu profundo estudo philosophico
ácerca do direito adquirido. Já fizemos ver que,
segundo elle, é a inviolabilidade da pessoa humana o
verdadeiro fundamento do respeito devido ao direito
adquirido. Para elle, respeito ao direito adquirido e
não retroactividade da lei são conceitos identicos.
Como vemos, essa base geral da sua doutrina é quasi
egual
Cod. Penal, art. 3.0
— 66 —
á de Gabba. Mas afasta-se deste autor no ponto
fundamental em que Lassalle expõe o conceito do
direito adquirido, affirmando que elle sempre) resulta
de um acto da vontade humana. Ora, conto já ficou
demonstrado que ha direitos adquiridos que nascem
por obra da lei, e indepen-, dentemente de qualquer
manifestação da vontade, é logico que, a despeito dos
justos encómios que merece, a doutrina de Lassalle
não é admissível em todas as suas partes.
59. Uma das doutrinas mais generalisa-das, e que
de longo tempo vem conquistando foros de verdade, é
a que sustenta que são retroactivas as leis de ordem
publica ou as leis de direito publico (1). Esse criterio é,
porém, inteiramente falso, (2) tendo sido causa das
maiores confusões na solução das questões de
retroactividade. Antes de tudo, cumpre ponderar que é
difficilimo discriminar nitidamente aquillo que é de
ordem publica e aquillo que é de ordem privada. São
tão intimas as relações de direito publico e de direito
privado, que já Bacon observava no seu aphorismo III
—jus privatum, sub tutela juris publici, latet.
O
interesse pu(1) Simoncelli, na monographia citada, defende com brilhantismo essa doutrina, cercando-a de limitações derivadas da distincção entre leis absolutas ou cogentes e leis simplesmente dispo-sitivas
facultativos, Applaudindo, com algumas restricções, a doutrina de
Savigny, procura demonstrar que ella assenta, em ultima analyse, no
principio de que são retroactivas as leis de ordem publica absolutas.
(2). Alves Moreira, ob. cit. n. 36.
blico e o interesse privado se entrelaçam de tal fórma,
que as mais das vezes não é possivel separai-os. E
seria altamente perigoso proclamar como verdade que
as leis de ordem publica ou de direito publico têm
effeito retroactivo, porque mesmo deante dessas leis
apparecem algumas vezes direitos adquiridos, que a
justiça não permitte que sejam desconhecidos e apagados (1). O que convém ao applicador de uma nova
lei de ordem publica ou de direito publico, é verificar
se, nas relações juridicas já existentes, ha ou não
direitos adquiridos. No caso affírmativo, a lei não
deve retroagir, porque a simples invocação de um
motivo de ordem publica não basta para justificar a
offensa ao direito adquirido, cuja inviolabilidade, no
dizer de Gabba (2) é tambem um forte motivo de
interesse publico.
60. Porisso é que, no direito judiciario e no
direito processual, se é verdade que as novas leis se
applicam geralmente aos casos pendentes, onde não
se vêm senão simples faculdades, entretanto
deparam-se algumas vezes, mesmo nesses
departamentos juridicos, certos direitos adquiridos,
que escapam á acção das leis novas.
(1) Simoncelli mesmo o reconhece, confessando que no direito pri
vado prevalece a irretroactividade, e no direito publico prevalece a
retroactividade (pag. 361.)
(2) Gabba, 06. cit, p. 151.
— 68—
Assim, se o direito de acção, em regra, não é um
direito adquirido, podendo ser abolido pelas novas
leis, emquanto não foi exercitado, como, por exemplo,
a acção de divorcio, a de dissolução de casamento, a
de investigação da paternidade, etc, ha casos, todavia,
era que constitue elle um verdadeiro direito adquirido,
quando a acção faz parte da essencia desse direito
sendo uma consequencia delle, ou sendo a
transfórmação desse direito no meio indispensavel
para o fazer valer, como são as acções que nascem de
um titulo de credito. Nestes casos, uma lei nova não
pode, sem injusta retroactividade, declarar
inadmissível a acção concedida pela lei anterior,
porque seria illusoria a acquisição de um direito se
não houvesse para o seu titular a segurança de o poder
exigir judicialmente no futuro. (1)
Assim tambem os actos processuaes, em regra,
não attribuem direitos adquiridos aos litigantes, de
modo que uma lei nova se applica sempre
retroactivamente aos processos pendentes, visto que a
fórma de processo não é da essencia do direito dos
indivíduos, e pode ser alterada em qualquer tempo
pelo legislador.
(1) Essa verdade foi reconhecida pala sentença da Côrte de
Cassação de Paris applicando aos creditos dos judeus a disposição do
celebre decreto de Napoleão I, de 17 de março de 1808, em que foi
declarado que não tinham acção perante os tribunaes os emprestimos
feitos por judeus a menores sem auctorisação dos tutores, etc. A Côrte
decidiu que o decreto não era applicado aos emprestimos anteriores á
tua publicação.
— 69 —
Mas certos casos ha em que, praticado um acto
processual, elle faz nascer, em quem o praticou, um
verdadeiro direito adquirido aos effeitos decorrentes
do acto, e uma lei nova, sem injusta retroavidade, não
pode impedir que taes effeitos se realisem.
61. O principio fundamental da theoria da
retroactividade, adverte Cabba, (1) deve applicar-se
egualmente ao direito privado e ao direito publico; e,
portanto, as leis novas, de quaesquer especies que
sejam, devem respeitar os direitos adquiridos. O que
ha de singular no tocante ás leis de direito publico é
que, nas relações jurídicas por ellas creadas, visando
especialmente funcções de interesse publico ou de
indole politica, os indivíduos em geral se sujeitam ás
publicas exigencias, e não nascem tão facilmente os
direito adquiridos, que são de indole privada. (2)
Dahi o dizer-se geralmente que as leis
concernentes ao interesse publico ou politico se
applicam immediatamente com effeito retroactivo.
(1) Gabba—eit. p. 140.
(2) Baudry Lacantinerie 06. eit. n. 143.
CAPITULO VIII
Doutrina romana
62. Na exposição que fizemos, em largos
traços, dos princípios fundamentaes da theoria da
retroactividade das leis, não nos prendêmos aos
textos da legislação romana, porque, dos seus
diversos dispositivos esparsos pelas colle-cções, fóra
impossível deduzir systematicamente uma doutrina
completa e acceitavel sobre a retroactividade.
Certamente não passou despercebido aos
romanos o alto interesse juridico que se liga a este
importantíssimo assumpto, que já tinha despertado a
attenção dos philosophos antigos. Na Grecia, Platão e
Socrates já prégavam, como verdade philosophica,
que as leis, cujo fim é o util, sómente podiam dispôr
para o futuro. Mais tarde Cicero, na sua segunda
oração contra Verres, referindo-se á lei Voconia,
fazia ver que as leis não deviam reger actos do passado. (1) O direito canonico tambem elaborou
(1) Cicero—In Verrem. I—42—In lege Voconia non est, Fe-cit Fecerit:
neque in ulla prateritum tempus reprehenditur, nisi ejus rei, qum sua
sponte tam scelerata ac nefari est, ut etiamsi lex non esset, magno
opere vitanda fuerit... De Jure vero civili si quis novi instituit, is non
omnia quae ante acta sunt, rata este patietur
— 72—
regras a respeito do assumpto. No corpo da legislação
de Justiniano deparam-se muitissimos textos no
Codigo e nas Novellas, contendo diversas regras sobre
applicação da lei relativamente ao tempo, que não
offerecem base, po-rém, para a construcção de uma
theoria homogenea e logica.
63. Parece que o verdadeiro fundamento romano
para uma doutrina da retroactividade, é a celebre c.
7—de leg. (1—14) em que os imperadores Theodosio
e Valentiniano decretaram que—é certo que as leis e
as constituições sómente regulam os negocios futuros,
e não podem revogar os factos passados, salvo se
expressamente for declarado que os seus, preceitos se
extendem ao tempo passado e tambem aos negocios
pendentes.—Leges et consti-tutiones futuris certum
est dare fórmam negotiis, non ad facta praeterita
revocari, nisi nominatim etiam de praeterito tempore
adhuc pendentibus negotiis, cautum sit. (1)
Desse claro preceito se deduzem dois princípios
reguladores da acção da lei no tempo. O primeiro é
que a lei não tem effeito retroactivo, visto que só rege
os negocios juridicos futuros, não devendo applicar-se
aos negocios
(1) Este preceito já tinha sido proclamado como norma legislativa
por Theodosio (I) como consta da c. 3—Cod. Theod.—de const. (I - I)
Omnia constituía non praeteritis calumniam faciunt sed futuris regulam
imponunt.
— 73—
passados, mesmo que os seus effeitos não se possam
exigir senão no futuro. (1) O segundo é que a lei tem
effeito retroactivo quando assim o determina
expressamente o legislador.
64. Roborando o primeiro principio en-contramse varias outras disposições especiaes, quer no
Codigo, quer nas Novellas : —a c. 66 (65) § I.°—de
Anastacio—de decur.(IO-31- 32), referindo-se á const.
de Zenon relativa á causa de isenção dos cargos
curiaes, diz que essa constituição só terá vigor desde
o dia em que se publicou, porque convém que as leis
imponham regras para o futuro e não para o passado—cum conveniat leges futuris regulas im-ponere,
non praeteritis calumnias excitare. O mesmo declara
Justiniano na c. un. § 13— de lat. libert. (7-6),
dispondo sobre a extincçâo da liberdade latina e a
transmissão dos bens dos libertos latinos fallecidos
antes da data da lei —maneant apud eos jure antiquo
firmiter detenta et vindicanda: in futuris autem
libertis praesens constitutio locum sibi vindicet.
Tambem na c. un. § 16—de rei uxor. (5-13),
legislando sobre a natureza do dote e as acções
respectivas, determina que as disposições dessa lei
são sómente applicaveis aos dotes que se dêm ou
promettam ou se recebam sem documento depois da
sua data, pois que os instrumentos
(1) Savigny, ob. cit. nota, b ao § 386 pag. 393.
— 74—
já preparados nada devem perder quanto aos seus
effeitos e força— qua omnia in his tan-tummodo
dotibus locum habere censemus, quae post hanc
legem data fuerint vel promissa vel etiam sine scriptis
habitae : instrumenta enim jam confecta viribus suis
non patimur, sed suum expectare eventum; na c. un. §
16 — de cad. toll. (6-51), legislando sobre legados,
ordena que as innovações feitas só se appliquem ás
disposições de ultima vontade dos
que morrerem
depois data da lei, e que as dos que já morreram sejam
reguladas pelas leis antigas —locum autem
constituimus in his de-functorum elogiis, quae post hac
composita fuerint: anteriores etenim casus suo Marte
discurrere concedimus, na nov. 18, cap.
5,
introduzindo um novo direito ácerca da successão das
concubinas e dos filhos naturezas, diz que essa lei
sómente valerá para o futuro. . . e não tem força
para os casos0 passados, porque estes não podiam estar
sujeitos a regras que ainda não existiam: — valebit
itaque lex nobis in futuris, et maxime omnium
haec,quoniam earum, quae dudum non recte tenebant,
plurima et eme-davit et explanavit, et quod prtoeriit, no
potest ab ea, quae nondum erat, regulis subici. Na nov.
54. pref. e cap. I, declarou que a lei que decretou a
liberdade dos filhos de escravo com mulher livre só
teria aplicação ao filhos que nascessem depois da lei, e
não aos que houves-
— 75 —
sem nascido antes —propterea sancimus omnes qui
nati sunt a tempore legis Aos solos (liberos) esse
adcripticia fortuna, si ex liberis nascantur matribus,
omne prozteritum antiquce servandum legi; na nov.
66, cap. I § 4 declara validas as disposições
testamentarias feitas de conformidade com a
legislação anterior, accrescentando que seria na
verdade absurdo que aquillo que foi feito
correctamente tivesse de ser mudado posteriormente
por causa que então não existia— erit namque
absurdum, ut quod factunt est recte ex eo quod tunc
non erat factunt postea mute-tur; na nov. 99, cap. 1,
legislando sobre a exigibilidade de obrigações
solidarias, prescreve, no § 2 in fin, que essas
disposições sómente são applicaveis aos contractos
celebrados depois da data da lei, regendo-se as
anteriores pelas leis então vigentes — Ais omnibus
incipientibus in contractibus sequentis temporis et ab
hujus legis positione; quod autem proeteriit (et) ante
eam posi-tis pro his relinquimus legibus. Esse
dispositivo confirma o principio geral que, em
materia de contracto, manda attender sempre ao seu
inicio e a sua causa—uniuscujusque enim contractus
initium spectandum et causam. (1)
Relativamente ás leis que prescrevem fórmas
para os actos juridicos, tambem Justiniano
proclamou a mesma regra sobre a não retro(1) Ulpianus, fr, 8 princ — mandati v.contra (17-1).
— 76 —
actividade. Assim, na c. 7 —de curat.fur. (5-70),
depois de se referir á nomeação de curadores ao
alienado, e ás fórmalidades com que devera ser
nomeados, diz no § 11, que essas innova-ções
estabelecidas pela nova lei só se applicam aos casos
futuros —futuris casibus imponantur devendo as
anteriores nomeações reger-se pelo direito antigo —
sed antiquo ordine statuti in antiquos quantum ad
creationent permaneantterminos.
Tambem na c. 29— de testam. (6-23), depois de
determinar que, na confecção dos testamentos, sejam
observadas certas fórmalidades, ordena no § 7, que
essa lei sómente seja obrigatoria para o futuro; e
dando ahi a razão fundamental da não retroctividade,
pergunta: como poderia ter peccado aquelle que, não
conhecendo a lei nova, observou a disposição da lei
antiga? —qua in posterum tantummodo observari
cencmus, ut, quae testamenta post hanc
novellamnostri numinis legem conficiuntur, hesc cum
tali observatione procedant: quid enim antiquitas
peccavit, quce pressentis legis inscia pristinam secuta
est observationem ?
Tendo-se em vista todos esses textos, e muitos
outros que poderiam ser citados, parece que a
legislação romana guardava o principio da não
retroactividade das leis.
65- Entretanto, ao lado desse principio assim
acceito de modo absoluto e exagerado.
— 77 —
sem cogitar de distincçao alguma, lá está proclamado,
na cit. c. 7—de leg. (1-14), um outro principio
opposto ao primeiro, pelo qual se reconhece no
legislador o poder de dictar a acção retroactiva de
qualquer lei por meio de uma declaração expressa. A
vontade do legislador tornou-se, pois, supremo arbitro
para quebrantar as diversas regras que pareciam
cuidadosamente resguardar as relações juridicas
anteriores do effeito retroactivo das leis novas. E de
tal fórma abusou elle dessa faculdade, promulgando
leis com retroactividade expressa, que Struvius
chegou a dizer que a legislação romana assegurava a
retroactividade da lei mais com palavras do que com
factos. E Dernburg observa que o principio
proclamado expressamente pelos romanos, de que as
leis não são retroactivas, não constitue uma
insuperavel barreira á legislação, mas é simplesmente
uma maxima que o legislador póde por bons motivos
desprezar. (1)
66. Entre as diversas leis romanas, retroactivas
por disposição expressa, destacam-se as celebres
constituições 3 —de partis pign. (8-34), (35), e 27 —
de usuris (4—32), que contêm injusta retroactividade
por offenderem incontesta-, veis direitos adquiridos
derivados de contractos feitos de conformidade com as
leis anteriores vigentes.
(1) Dernburg— ob. cit., v. I § 43.
— 78 —
Pela c. 3, publicada no anno 326, Constantino
com o intuito de melhorar a sorte dos devedores,
aboliu os pactos commissorios, pelos quaes era
emmittido ao credor pignoraticio, para pagamento da
divida, fazer-se proprietario do objecto apenhado,
qualquer que fosse o seu valor. E decretando essa
abolição, determinou expressamente que a lei não só
prohibia que se fizessem no futuro pactos dessa
natureza, mas ainda mandava que ficassem sem effeito
os pa- ctos presentes e passados, podendo os credores
apenas cobrar a importancia que deram de emprestimo.
Pela c. 27, publicada no anno 529, Justiniano,
querendo corrigir a interpretação dada á c. 26— h. t. do
anno 528, em que estabeleceu o maximo possivel das
taxas de juro nos contractos, ordenou que aquelles que
antes da publicação desta lei houvessem contractado
juros mais elevados do que o permittido por ella, os
reduzissem ao typo nella fixado, a contar da data da
publicação, embora pudessem exigir, até essa data, os
juros anteriormente convencionados.
Por tudo quanto já sabemos á respeito da theoria
da retroactividade, evidencia-se a injus- trça que se
encerra no effeito retroactivo attri-buido pelos
imperadores a essas constituições, que extinguem e
modificam contractos feitos de accordo com as leis
vigentes no tempo em que fóram elaborados.
79
Essas constituições, como ponderosamente diz
Bergmann a proposito da c. 27, constituem mm
verdadeiro desvio do principio da não retroactividade,
que só poderia justificar-se em virtude das
circumstancias especiaes produzidas pelo abuso da
usura. (1)
Alguns autores têm querido enxergar um caso de
retroactividade expressa nas compilações de Justiniano,
porque na c. Tanta § 23, determina elle que as
Instituías, o Digesto e as constituições do Codigo
tenham perpetuo vigor, devendo reger não só os casos
futuros senão tambem os pendentes, exceptuados
apenas os que já estejam terminados por sentença
judicial ou transacção amigavel. Não é possível,
porém, ver ahi um caso de retroactividade, porque»
não se trata propriamente da applicacão de leis no- vas,
mas sim de simples compilação de um di- reito já
vigente. (2)
A doutrina romana é, pois, a que está synthetisada na referida c. 7 — de leg. (1-14), dou- trina
que não se compadece com os princípios científicos do
direito, já porque, exagerada em sua primeira regra,
nega á lei nova qualquer Perfeito retroactivo, sem
distinguir a natureza dos actos ou relações jurídicas que
ella póde encon-
(1) Savigny, cit. § 392 p. 435.
(2) Savigny, cit. § 383 p. 373.
— 80 —
trar, já porque, autoritaria em sua segunda regra
contradicente á primeira, faz da vontade do legislador o arbitro do effeito retroactivo das leis, o
que não pode ser legitimado em frente da
verdadeira theoria jurídica.
CONSELHEIRO RUY BARBOSA
PROBLEMAS
DE
DIREITO
CONFERENCIA REALISADA
POR
CONSELHEIRO RUY BARBOSA
NA FACULDADE DE DIREITO
DE
BUENOS-AIRES
1916.
LONDRES: JAS.
TRUSCOTT & SON, LTD.
Conferencia realisada em 14 de Julhe
de1916, na Faculdade de Direito de
Buenos-Aires, pelo Embaixador do
Brasil Conselheiro Ruy Barbosa.
PROBLEMAS DE DIREITO INTERNACIONAL.
Sr. Ministro.
Sr. Decano.
Senhoras.
Senhores.
A insigne honra, com que hoje me confundis, não cabe na minha pessoa: só a póde
receber dignamente a minha nação. O valor
inestimavel do vosso acto e as palavras, de
immerecidissima
liberalidade,
commoventes, além do mais, pela sinceridade da
sua benevolencia e pela sua intenção affectuosa, com que me acabais de acolher pela
boca do mestre eminente, a quem commettestes a missão de me saudar, calaram no
mais intimo de minha alma; as não obscureceram, na minha consciencia, a certeza da
2
PROBLEMAS DE DIREITO
minha desvalia, da minha insuficiencia, da
minha mesquinhez, diante do espectaculo em
que me envolve esta assembléa magnifica,
entre os accentos da eloquencia que ainda
nella resoam e sob a impressão da grandeza
do apostolado que se professa nesta casa.
Que sou, afinal, para me tocar, neste
scenario soberbo, o papel a que me elevastes ?
Apenas um velho amigo do direito, um cultor,
laborioso, mas esteril, das lettras, um
humilissimo obreiro das sciencias. Nada mais.
Toda a significação da minha vida se reduz
ser exemplo de trabalho, de perseverança, de
fidelidade a algumas idéas sãs.
Espirito continúamente em busca de um
ideal, nunca cheguei a divisal-o senão do
fundo obscuro da minha mediocridade, muito
ao longe, como esperança que se esbate num
sonho de realidade. Na politica, bem que os
meus concidadãos, nimiamente generosos, me
hajam cumulado, por ta complacencia, de
mercês e dignidades, para as quaes me
fallecem títulos de merecimento, as
circumstancias me têm circum-scripto á
condição de um elemento pertinaz
INTERNACIONAL.
de resistencia, talvez prestadio, algumas
vezes, para obstar ao mal, mas quasi sempre
sem autoridade para conseguir o bem.
Porque, nos paizes de educação civica
escassamente desenvolvida, só os detentores
do poder tém nas mãos a força do bem ou do
mal.
Collocado momentaneamente no Governo
por uma revolução, tive a parte que não podia
evitar nos serviços dos que a organi-saram e,
seguramente, um quinhão mais crescido nos
seus erros. Depois, collabora-dor na fundação
das instituições que desses acontecimentos
nasceram, devotei o resto da minha
existencia, com pouco resultado e diligencia
extrema, ao labor de as interpretar, de as
submetter a um como curso de lições de
cousas, para lhes facilitar o uso, pondo ao
alcance de todos, e de as defender contra os
sophismas, equívocos ou abusos.
No merito dessa lida, porém» ingrata e
ordinariamente infrutífera, não vejo nada que
me enalteça acima da minha propria
vulgaridade, na qual envelheci, cada vez mais
consciente da minha fraqueza, da
4
PROBLEMAS DE DIREITO
minha ignorancia, da minha desautoridade,
assim no terreno das idéas, como no dos
factos, cujo torvelhinho nos arrebata, nos
flagella, nos consome, para, ao cabo nos
abandonar, já inuteis, á margem da eternidade, por onde a torrente da vida corre para os
seus destinos ignorados.
Na cerração que os encobre, entretanto, ha,
de vez em quando, clarões grandes, que
rasgam o espaço do inundo moral, e nos
deixam vêr, além das fronteiras das nossas
desillusões, nos longes mais remotos do nosso
descortino, os espigões de serra do futuro,
dourados pelo sol de promessas divinas.
Sorprendido, então, nessas entre abertas de
luz, o homem, reconciliando-se com a fé, que
se lhe esmorecia, sente se ajoelhado aos céos
no fundo mysterioso de si mesmo, passando
pela visão de que a obscuridade das cousas
não é senão o véo do templo, no vão
silencioso de cuja infinita nave a mão de
Deus, insensível ás nossas impaciencias,
reserva os thesouros incalculaveis da sua
bondade para as raças e as nacionalidades que
os souberam merecer
INTERNACIONAL.
5
E' justamente num desses momentos que
eu me sinto agora, transpostas essas portas,
que da contemplação do firmamento argentino na transparencia do seu azul e na pureza
da brancura das neves dos seus horizontes
andinos, nos conduz a este santuario do
estudo, do saber e da justiça. Direis que se
assiste a uma transfiguração, que a presença
de um sacerdocio evocou a de uma divindade,
que dos gabinetes e salões da academia
surgiram as ogivas, as cupulas, as cariatides
silenciosas de uma cathedral, erguendo nas
mãos e sustentando no dorso o peso dos
tectos sagrados, que a tribuna se converteu
em pulpito, um incenso subtil bebe o
ambiente, e os portadores invisiveis das
preces murmuradas no segredo das consciencias evolam para o regaço do Criador o
holocausto das orações, como a evaporação
balsamica das manhãs ergue no ar limpido o
aroma dos prados, o cantico das flores, a
embriaguez dos jardins. As vozes do nosso
egoísmo emmudeceram, e no recolhimento
das almas, na sua vibração interior, nas ondas
de emoção que as percorrem, se ouve
PROBLEMAS DE DIREITO
o sussurro de uma aspiração transcendente e
de uma confiança nova. Sacrificate sacrificium justitiae, et sperate in Domino.
E' sob a influencia de uma dessas com
moções, bem raras na minha edade crestada
pela aridez da experiencia, que entro á vossa
hospitalidade, e saúdo os lares augustos desta
casa. Por aqui passaram gerações e gerações, á
cata desses veios preciosos da sciencia das
sociedades, em cujas ramificações profundas a
incognita doe problemas da organização da
família humana e suas condições de evolução
na face da terra aguarda o trabalhar
incansavel dos mineiros, que as difficuldades
renascentes e recrescentes da eterna tarefa não
desani mam. Aqui se muniram com o primeiro
traquejo no commercio das leis os vossos
magistrados, os vossos parlamentares, os
vossos estadistas de mais nota. O fôro, a
administração, o magisterio dessas vastas e
complexas disciplinas, sobre as quaes assenta a
estructura dos Estados, têm aqui o viveiro das
capacidades, o laboratorio das soluções, a
escola dos systemas, das theorias.
INTERNACIONAL.
7
das verdades apuradas e das questões em
estudo. Todo o progresso intellectual da
vossa patria transitou, na sua gestação, na sua
expansão, na sua consolidação, na sua
fructificação, por estas salas, por estes
bancos, por estas cathedras venerandas, que o
lustre de annos gloriosos reveste dessa
santidade com que a patina do tempo consagra os bronzes antigos.
Todas essas imagens, as sombras dessas
tradições, o concurso dessas memorias, aureoladas pela admiração e pelo reconhecimento
dos contemporaneos, todas ellas, convocadas
agora pelas datas patrioticas e pelos fastos
liberaes de Julho, cuidaríeis que enchiam o
vestibulo desta Faculdade, quando, pouco ha,
lhe transpuzeram o limiar os meus passos
hesitantes de fórasteiro, acabrunhado pela
vossa generosidade e pela convicção
invencivel de não ter com que vol-a saiba
retribuir. A longa e lustrosa theoria dos
vossos immortaes, o seu longo prestito de
laureados, desáobrando-nos aos olhos a
historia da intellectual idade argentina,
misturou-se e confundiu-se com as
8
PROBLEMAS DE DIREITO
galas desta festa. Mas a vista interior me
continúa a discernil-os aqui juntos, envolvendo a multidão rumorosa dos viventes na
muda turba dos redivivos, e interrogando com
a sua curiosidade penetrante a temeridade do
extranho, que não teve a discrição de se
escusar ao vosso chamado. A que viria aqui o
extrangeiro, o desconhecido, o incompetente?
Senhores, ao trazer á soberania de grandeza
argentina o tributo da obediencia de um
coração livre, que não sei se vos deve mais
hoje nas honras desta solemnidade, quando
me recebeis como o mensageiro do meu
Governo e da minha nação, ou ha vinte e tres
annos, quando nao negastes ao expatriado o
asylo da vossa hospedagem, o refugio das
vossas leis, a segurança da vossa protecção.
Foi então que as leituras do meu exílio me
levaram a estrear os volumes do vosso
Alberdi, o primeiro escriptor vosso que me
poz em communhao com o pensa mento
liberal argentino, e que, nao obstante as suas
prevenções antí-brasileiras, cada vez mais
admiro, e ainda hoje tenho por uma
INTERNACIONAL.
9
das intelligencias mais selectas da littera-tura
americana. O illustre tucumano, uma das
glorias da antiga Universidade de Buenos
Aires, no segundo quartel do seculo passado,
por duas vezes, nos máos dias de sua terra,
experimentou as tristezas do fóragido, indo
buscar, successivamente, em Montevidéo e
no Chile, á sombra do agasalho extrangeiro, o
abrigo, onde exercer os seus direitos de
pensar e escrever livremente.
Foi em condições como essas, que vim
conhecer, em 1893, as plagas argentinas.
"Yo dejé mi pais," dizia elle mais tarde,
' yo dejé mi pais en busca de la libertad de
atacar la politica de su gobierno, quando ese
gobierno castigaba el ejercicio de toda
libertad, como crimen de traicion á la patria."
Não lhe bastava, como a outros,
"el deseo de ser libre." Não tinha para com a
liberdade esse "amor platonico." Era "de un
modo material y positivo " que lhe queria.
"Amo-a, para a possuir," ac-crescentava.
"La amo, para poseerla. .. .
Pero no hay mas que un modo de poseer su
10
PROBLEMAS DE DIREITO
libertad, y ese consiste en poseer la seguridad
completa de si mismo. Libertad que no es
seguridad, no es garantia, es un escolio."
Era assim que a definia a Inglaterra, que a
definem os Estados Unidos, e o espirito
argentino, interpretado nos escriptos de um
dos seus mais luminosos pensadores, já então
não sabia definir de outro modo. "La
civilizacion política es la libertad. Pero la
libertad. ... no es otra cosa que la seguridad :
la seguridad de la vida, de la persona, de la
fortuna. Ser civilizado, para un sajon de raza,
es ser libre. Ser libre es estar seguro de no ser
atacado en su persona, en su vida, en sus
bienes, por temer opiniones desagradables al
gobierno. La libertad que no significa eso, es
una libertad de comedia. La primem y ultima
palabra de la civilizacion es la seguridad individual."
Toda a civilização, pois, te encerra na
liberdade, toda a liberdade na segurança dos
direitos individuaes. Liberdade e segurança
legal tio termos equivalentes e
INTERNACIONAL.
11
substituíveis um pelo outro. 0 estado social
que não estriba nesta verdade, é um estado
social de oppressão : a oppressão das
maiorias pelas minorias, ou a oppressão das
minorias pelas maiorias, duas expressões em
substancias irmãs da tyrannia, uma e outra
illegitimas, uma e outra absurdas, uma e outra
barbarizadoras. As Republicas latinas deste
continente, que se desnaturaram das suas
constituições mais ou menos livres, e se
afundaram na selvageria, não devem essa
infausta sorte senão á desgraça de
menosprezarem e não praticarem este
singelíssimo rudimento de philosophia
constitucional.
Olvidada ou abolida essa noção elementar,
os Governos, dedicados pelas suas cartas á
fórma republicana, mas realmente assentados
na intolerancia, derivam acceler-adamente
para esse estado singular de chronicidade na
epilepsia, cujos pheno-menos o Sr. Lucas
Ayarragaray descreveu com lampejos de
Tacito no seu livro La Anarquia Argentina y
el Caudillismo, e um dos vossos maiores
historiadores, o Sr.
12
PROBLEMAS DE DIREITO
Vicente Lopes, caracterizou em termos
frisantes, quando se occupa, na sua grande
"Historia de la Republica Argentina, com "el
descenso fatal del organismo politico hacia la
tirania absoluta."
A dominação espanhola nao havia apparelhado os povos, como a colonização britannica da America do Norte, para o regimen da
liberdade. Da sujeição absoluta ás fórmas
embryonarias da obediencia passiva não se
havia de chegar, sem transições dolorosas, á
autonomia no governo do povo pelo povo. A
semente cultivada pelo truculento despotismo
dos reis absolutos germinou logicamente no
brutal despotismo dos caudilhos. Dahi, esse
"poema barbaro " de servidão e da desordem,
essa " subversão cyclopea," a " gauchocracia,"
que requintam a anarchia até a demencia,
exaltam a crueldade até o delírio, produzem a
mashorca e o caudilho, tingem de sangue a
historia das pompas, e, com a superstição de
um militarismo selvagem, com os costumes
de um partidarismo atroz, dividem a
sociedade em verdugos e
INTERNACIONAL.
13
proscriptos, classificam os cidadãos em
patriotas e traidores, enthronizam no poder os
mandões sanguisedentos, e ermam de
espíritos cultos o paiz, provocando com elles
o desterro, onde rutilam, em constellações
deslumbrantes, as vossas estrellas de primeira
grandeza: os Sarmientos, os Al-berdis, os
Rivadavias, os Tejedores, os Lopez, os
Mitres, os Varelas, os Canes, os Echeverrias,
os Lavalles, os Gutierres, os Indartes, os
Irigoyens e tantos e tantos outros, onde se
concentram, e de onde se derramam os raios
mais luminosos da in-telligencia argentina.
Todos os que não se alistam nessa demagogia de crueza e pilhagem, estão " fóra da
protecção das leis," são " execrandos criminosos," nutrem "sentimentos infames,"
passam pelos "entes mais vis da sociedade,"
formam a categoria dos " immun-dos" e
"selvagens." Na litteratura virulenta, que
emana desses paroxismos sinistros, a
plethora do odio fratrioida introduz esse
vocabulario monstruoso, onde cada ultraje
reflecte as paixões mais tene-
14
PROBLEMAS DE DIREITO
brosas da vesania da força, armada com as
"faculdades omnimodas," as dicta-duras
tumultuarias, os plebiscitos grotescos, em que
a unanimidade dos votos recolhidos pelo
Terror corôa "os restauradores das leis," e os
decretos de traição, que fulminam os mais
nobres representantes da cultura jurídica,
então nascentes ainda, mas já viva, exuberante
e radiosa.
Bem longe vão já, para a Argentina, esses
dias malditos, de inenarravel negrume. Para
ella passaram, se bem não hajam passado para
outras regiões deste continente. Ainda ha
vinte e tres annos, republicas havia, debaixo
do Cruzeiro do Sul, onde os expatriados
políticos eram alvejados do destino pelos
estygmas de traições, vibrados em actos
officiaes, para enxovalhar no extrangeiro os
perseguidos.
Vós, porem, muito ha que consolidastes a
vossa civilização. Vinte e cinco annos, pelo
menos, de governo estavel, ordem constante e
ininterrupto progresso vos libertaram para
sempre das recahidas no mal da anarchia. Um
desenvolvimento colossal da riqueza, as
INTERNACIONAL.
15
accumulações do trabalho na prosperidade,
uma transfusão abundante de sangue europeu,
um civismo educado nos melhores
exemplares da liberdade conservadora,
grandes refórmas, escolhidas com discrição,
adoptadas com sinceridade e praticadas com
inteireza, escoimaram, nos derradeiros
vestígios da antiga doença, o vosso robusto
organismo, talhado para um crescimento
gigantesco, asseguraram-vos no mundo uma
reputação definitiva, e fixeram na Republica
Argentina um dos centros da civilização
contemporanea, uma nação cujo invejavel
adeantamento se póde resumir numa palavra,
dizendo que a Republica Argentina é um paiz
organizado.
Quando se conquista e se firma uma situação destas, bem se póde volver a memoria
para os máos dias de outro tempo com tranquillidade e orgulho. Por esses máos dias não
responde a raça, nem o territorio, nem o ceu
americano. Respondem as influencias da
conquista, da colonização e da oppressão
ultramarina. Saturados de uma educação
monastica e despotica, supersticiosa e
16
PROBLEMAS DE DIREITO
servil, os povoadores destas terras nellas
implantaram, com o peccado original da sua
descendencia, o atavismo dos vicios enviscerados no organismo dos povoe ibericos
por seculos desse absolutismo, cuja malignidade culminou sob o Demonio do Meio-Dia e
seus degenerados successores. Como ao Sr.
Bartolomeu Mitre, a mim tambem me parece
que "ningun pueblo se hubiese gobernado
mejor a si mismo en las condiciones en que se
encontraron las colonias hispano-americanas,
al emancipar-se y fundar la Republica, que
estaba em su genialidad pero no en sus
antecedentes y costumbres."
O Sr. Luis Varela, na sua notavel Historia
Constitucional de la Republica Argentina,
evidenciou, com a differença entre os dous
movimentou emancipadores, quanto excedia
era difficuldades o das Provincias Unidas do
Rio da Prata, no começo do seculo dezenove,
ao dos Estados Unidos da America do Norte,
no ultimo quartel do seculo dezoito. Os
Norte-Americanos de fenderam direitos, em
cuja posse estavam
INTERNACIONAL.
17
desde o seu estabelecimento, ao passo que os
Argentinos entraram em revolução, para haver
direitos, a que aspiravam, e nunca haviam
tido. Os puritanos que povoaram as colonias
norte-americanas, para ali se transplantavam
com as instituições civilisa-doras da GrãBretanha. Mas os Espanhoes, que occupavam
as regiões platinas, eram conquistadores dos
territorios, que senhoreavam, dobrando-se á lei
das armas. Nas cartas outorgadas pela corôa
da Inglaterra as
povoações
norteamericanas tinham . verdadeiras constituições,
nas quaes se ex-tendiam aos emigrados todas
as liberdades fruidas na mãe patria.
As
colonias hes-panholas não eram mais que
feitorias, dis-cricionariamente administradas
pelos vice-reis,
em nome -do soberano
europeu. Quando se redimiram da metropole,
os domínios inglezes ja eram entidades
autonomas, dotadas
politicamente, de
governos republicanos representativos.
Os
Argentinos, ao desligarem-se dos vínculos
coloniaes, não encontraram, no acervo com
que entravam á vida autonoma, senão
18
PROBLEMAS DE DIREITO
as tradições da centralização hespanhola, as
leis das índias, e um esboço rudimentar de
municípios nos cabildos das cidades. Ali, todo
o poder local nascia do povo, cujos suffragios
elegiam os governos. Aqui, os governados
não tinham voto, individual ou collectivo, na
escolha da sua administração. Lá, para
constituir a nação, bastou que os Estados se
unissem, abdicando uma diminuta fracção da
sua soberania. Cá, estava tudo por crear em
materia de instituições, locaes, provinciaes e
nacionaes, que a Republica, assomando a um
fiat popular, evocava do chãos, e improvizava
do nada.
Não admira, pois, que os homens de visão
clara tremessem pela obra, que se ia emprehender, e o Dr. Manuel Castro, antes do
Congresso de Tucuman, exprimisse os seus
receios, dizendo:
"Demos que se organize la más bella
Constitucion Federal que han conocido los
Estados. Qual será el genio, que acerte á
ponerla en ejecucion ? Momento peligroso; el
tiempo resolverá esta gran cuestion."
A questão, com o tempo, acabou por se
INTERNACIONAL.
19
resolver.
Mas não a resolveu o genio de
ninguem.
O milagre de a ter resolvido
pertence ao genio do povo argentino. Foi o seu
instincto democratico, as suas quali- dades
poderosas de assimilação, as suas dis- posições
naturaes para se familiarizar com
as
instituições livres, o que apparelhou, através de
longas provações, o vosso ingresso franco e total
ao consenso das nações realmente emancipadas.
Quando o drama da revolução estalou, em 1810,
no vasto scenario da America latina, com as
insurreições que rebentaram desde o Prata até
ao Chile, desde Venezuela até ao Mexico, num
impulso geral que abrange todas as colonias
hespanholas, a dynastia de Fernando VII e
Carlos IV, desthronados, em 1808, pela invasão
napoleonica,
vê
reali-zarem-se
os
presentimentos do Conde de Aranda que, já em
1783, aconselhava ao seu soberano abrir mão,
espontaneamente, do domínio de todas as suas
profissões nas duas Americas, fundando ali tres
reinos distinctos, sobre os quaes se estendesse a
sombra da velha monarchia européa, elevada á
dignidade Imperial.
20
PROBLEMAS DE DIREITO
O celebre homem de Estado, num rasgo de
admiravel descortino, annunciara desde
aquella epoca a desaggregação dos latifundios
internacionaes, que a Corôa de Cas-tella
imaginava submettídos ao seu senhorio por
uma dependencia indissoluvel. A separação
das colonias norte-americanas lhe não abalara
a confiança na vassalagem das suas. Mas o
Presidente Conselheiro do Governo de
Madrid, pelo contrario, medindo o alcance
dessa lição, buscava desilludir o throno
hespanhol. "Acabamos," dizia elle, "acabamos
de reconoecer una nueva potencia, en un pais
en que no existe nin-guna otra en estado de
cortar su vuelo. Esta republica Federal nació
pigmea. Llegará un dia, en que crezca y se
torne un gigante y un coloso en aquellas
regiones. Dentro de poços anos veremos con
verdadero dolor la existencia de ese coloso.
Su primer paso, quando haya logrado
engrandecimiento, será apoderar sede la
Flórida y dominar el golfo de Mejico. Estos
temores soo muy fundados, y deben realizar
se dentro de poços anos, sino presenciamos
otras
INTERNACIONAL.
21
commociones más funestas en nuestras
Americas."
As fontes coroadas nao costumam escutar
avisos destes. Carlos III nao dá ouvidos ao
seu previsto aconselhador. Mas no encalço da
revolução da America do Norte, ahi vinha a
revolução franceza, e no da revolução de
1780 o diluvio napoleonico, em cujos
tormentos sossobra na Hespanha ia casa de
Bourbon. As scentelhas de Washington e
Pariz nao tardam em crepitar nos ares do
Prata. Os animos embebidos pelos lescriptos
de Moreno e Belgrano, na philo-sophia
franceza do seculo XVIII, se agitam
inflammados, e os acontecimentos vôam de
tropel numa carreira vertiginosa para o
advento desta nacionalidade, desde 1806,
quando, com a reconquista de Buenos Aires,
o Cabildo Abierto da Plaza Mayor e a entrada
triumphal de Liniers, se teve "la primera
aparicion del pueblo argentino," até 1816.
quando a assembléa de Tucuman proclama
definitivamente a emancipação nacional. Em
10 de Fevereiro de 1807 uma Junta
22
PROBLEMAS DE DIREITO
de Notaveis deliberara a suspensão do vicerei, a sua prisão e a apprehensao dos seus
papeis. E' o que os vossos historiadores
chamam, com razão, o primeiro triumpho do
povo soberano. De 2 a 5 de Julho se peleja o
ataque e defesa desta cidade. As forças
inglezas de mar e terra capitulam, embarcam,
abandonam o Rio da Prata. ' Buenos Aires,"
dizia Don Cornelio de Saavedra, " Buenos
Aires con sus solos hijos y sus vecindarios,
hizo esta memorable defensa, y se cubrió de
gloria."
A revolução do 1 de Janeiro de 1809,
desarmando as forças hespanholas, rendidas
á milícia popular, dá mais um grande passo
no caminho da independencia. Com essa
victoria das armas de Buenos Aires se olhava
a estrada á revolução do anno seguinte. A de
1810, encetada a 20 de Maio, já se pode ter
por consummada em 22, quando o Cabíldo
Abierto. que recebeu o nome de Congresso
Geral, derriba o vice rei e as autoridades
hespanholas. Já então o sentimento geral se
pronuncia na phrase memoravel de Moreno:
"La Espana ha caducado en America."
INTERNACIONAL.
23
Dous dias depois uma reacção momentanea
tenta restabelecer as leis do reino. Mas, nessa
mesma data, pela noite, a povo da cidade,
entregue
a
si
mesmo,
se
agita
ameaçadoramente nas ruas, e, ao amanhecer
do dia seguinte, as massas populares quebram
as cadeias da sujeição colonial, proclamando,
com a eleição da Junta Governativa, a
constituição
da
primeira
autoridade
estabelecida para gerir as Províncias Unidas
do Rio da Prata.
£' a revolução de 25 de Maio, com a qual
expira o vicereinado de. Buenos Aires. As
outras cidades e villas, convidadas por esta,
concorrem com os seus deputados á organização de um governo federal, de um executivo, estabelecido em Dezembro de 1810, no
qual já se esboça a federação, o systema representativo, a fórma republicana, que outros
actos da grande revolução não se demorariam
muito em desenvolver, concluir e solidificar.
Nos dous annos subsequentes cresce a agitação redemptora e organizadora. Em 1811 a
Junta Governativa dá á republica nas-
24
PROBLEMAS DE DIREITO
cente, com o Regulamento Organico de 22 de
Outubro, a sua primeira constituição, cujas
disposições, na sua maioria, antecipam as da
constituição actual. E' ahi que a nação recebe
o seu baptismo com o nome de Províncias
Unidas. Já nesse documento primitivo da
vossa existencia constitucional se reserva ao
poder legislativo a declaração de guerra, a
celebração dos trabalhos, a tributação do paiz,
a creaçao dos tribunaes e empregos publicos, a
inviolabilidade dos membros do congresso, a
responsabilidade legal do poder executivo, a
independencia da justiça, as garantias
individuaes e, entre essas, a maior de todas, a
do habeas-corpus, que, entre nós outros, no
Brasil,
tem
adquirido
o
maior
desenvolvimento mas não se nacionalizou na
legislação brasileira, senão vinte e um annoe
depois de estar consagrada no vosso primeiro
tentame de constituição. Mezes depois, em
Abril de 1812, um acto do Governo fecha o
territorio do paiz ao trafico de carne humana :
"Se prohibe absolutamente la introdnccion de
expedíciones de esclavos en el territorio de las
Províncias
INTERNACIONAL.
25
Unidas"' E' a grande aspiração humanitaria,
que o Brazil só havia de realizar trinta e nove
e os Estados Unidos cincoenta e dous annos
mais tarde, á custa da mais espantosa das
guerras civis que têm ensanguentado o
mundo.
Quarenta e oito annos depois do acto de
1812, a Constituição argentina de 1860
estatuiu : "Não ha escravos entre a nação
argentina : os poucos hoje existentes ficam
livres desde o juramento desta Constituição."
Ainda então os Estados Unidos não haviam
logrado essa conquista, que, justamente
nessa epoca, estava em vesperas de originar a
tremenda revolução intestina, que, durante
um lustro, ameaçou dissolver a União Norte
Americana, e o Brazil só vinte e sete annos
mais tarde conseguiu realizar.
Commentando este parallelo, senhores,
escrevia eu, ha sete annos, na imprensa
brazileira:
"Se o Brazil tivesse imprimido na pedra
angular da sua independencia e da sua
organisação politica o mesmo principio
christão, o rumo da nossa civilisação, a
26
PROBLEMAS DE DIREITO
celeridade do nosso progresso, a índole do
nosso caracter, seriam outros. Infelizmente
bem diversa era a sorte que nos reservava a
inconsequencia original dos autores da nossa
emancipação. Os nossos futuros historiadores
não poderdo dizer, como, já ha doze annos,
diziam, em relação á Republica Argentina, o
historiador da sua independencia, que a
escravaria, como instituição, mui pouco
alterou as condições economicas e moraes da
sociedade nascente. Longe disso, entre nós,
pelo contrario, toda cadeia da nossa historia
vae prender com o anel de ferro da escravidão
africana. Dahi emanaram os maiores
contrastes entre o homem e a natureza, que
enxovalham a nossa reputação e abatem a
nossa frente, diante do estrangeiro. Durante
tres gerações fomos livres, prosperos e ricos á
custa da op-pressão doa nossos semelhantes.
Vamos atravessando hoje a grande expiação
que nfto falta jamais, que não perdôa aos attentados historicos, aos crimes capitaes contra a
humanidade. A carcassa do captiveiro morto
hontem está em decomposição no meio
INTERNACIONAL.
27
de nós, a nos envenenar do miasma cadaverico, almas, idéas, instituições. Por isso nos
fallece, até hoje, do aspecto dos homens e das
cousas o lustre, o donaire, o esmalte da
civilisação européa. Estes estygmas são
tenazes, e não se dissimulam. Elles representam a justiça divina, de cujas sentenças os
povos, como os individuos, não se resgatam
senão pelo soffrimento.
"O que para a extirpação desse cancro
devemos ao contacto argentino não passou
despercebido ao nosso reconhecimento.
O Conselheiro Saraiva, em 1865, previa
que a alliança do Imperio com as Republicas
platinas daria em resultado neces
sario a eliminação de escravatura no Brazil.
Seis annos mais tarde, Paranhos, advogando
o projecto, de que sahiu a lei de 28 de
Setembro, confirmava eloquentemente esses
presentimentos. "Achei-me, ao terminar a
guerra do Paraguay, em relações com
cincoenta mil Brazileiros, que estavam em
contacto com os povos vizinhos; sei, por
confissão dos mais illustrados dentre elles,
quantas vezes a instituição odiosa
28
PROBLEMAS DE DIREITO
da escravidão no Brazil nos vexava
humilhava ante o estrangeiro; e póde
perguntar-se aoe mais esclarecidos dos nossos
concidadãos que fizeram essa campanha, se
todos elles regressaram, ou não, desejando
ardentemente ver iniciada a refórma do
elemento servil, se se deve, ou nao, em parte a
elles, o mais poderoso impulso, adquirido pela
idéa nestes ultimos tempos.
Desse titulo de precursor da manumissAo
geral dos escravos na America, referendado
pelos maiores estadistas brasileiros," e dessa
sua collaboraçao, pela influencia, na obra da
nossa regeneração social, tinha toda a razão em
se nao esquecer, nos festejos de Maio de 1888,
a nação Argentina. Foi com a consciencia do
seu contingente superior nessa conquista
humana que ella nos abrio os braços
fraternalmente, celebrando comnosco o ultimo
acto da sup-pressão do captiveiro no mundo
civilizado.
Mais vale entre dons povos, uma tradição
destas na sua historia, que a escriptura de um
tratado de allianca nas suas chancellarias.
INTERNACIONAL
29
Na ordem usual e natural das cousas a
independencia dos povos antecede a sua
emancipação. Entre nós, porém, os successos
alteraram notavelmente a sequencia habitual
da evolução politica no curso da humanidade.
Quando o brado final da vossa emancipação
reboou de Tucuman pelas regiões do Prata,
em 1816, já estava elaborada a Constituição
inicial da Argentina, a matriz das suas
Constituições ulteriores, na obra de Deão
Funes, nesse Regulamento Organico dos tres
poderes, que, desde 1811, adoptára e
promulgára a Junta Conservadora de Buenos
Aires.
Tal era a impaciencia em que ardia,
fremente na consciencia do seu vigor, a
antiga colonia espanhola por entrar logo, em
cheio, no gozo da sua maioridade, com o seu
Governo organizado e os seus direitos
definidos, e tantos os elementos de cultura já
desenvolvidos nas camadas superiores da
nova sociedade, o escol de homens capazes
que ella reunia, o acatamento popular que os
cercava, a intuição do futuro que os
esclarecia.
30
PROBLEMAS DE DIREITO
Nem por isso, entretanto, desmerecem do
seu reconhecido valor os fastos civicos de
Tucuman, onde o movimento encetado em
1806 e glorificado em 1810 culminou com aj
sua terminal em 1816. O triumpho imprevisto
de Belgrano, em Setembro de 1812, renovára
a face da revolução, batendo os exercitos
espanhoes, e arremessando para o Perú as
forças do General Tristan. O povo daquella
cidade historica acudira inflammado ao
appello do libertador, toda a população viril
pegára em armas, e as proprias mulheres se
associaram activamente ao enthusiasmo geral,
trabalhando no amanhar do cartuchame.
Passando por sobre as ordens categoricas do
Governo, o arrojado General deu a batalha
desaconselhada pelos seus superiores, na qual
joga a vida a tudo perder, em um duello de
honra inevitavel. "Algo es preciso aventurar, y
esta es la ocasion de hacerlo. Felices nosotros,
si podemos conseguir nuestro fin, y dar á la
patria un dia de satísfacion, despues de las
amarguras que estamos passando!"
INTERNACIONAL.
31
Não enganava o coração presago. Os
soldados realistas são recassados. As forças
"del ejercito chico," na ironia de Belgrano,
derrotam "el ejercito grande" tem toda a
insolencia da presumpção, que encarecera
com a jactancia deste appellido as tropas
inimigas. Tucuman, a bem fadada província
septentrional, ganhára a divisa do seu escudo
de armas. Era o tumulo dos tyrannos, como
propheticamente lhe chama, na solemnização
da victoria, o General laureado.
O Estatuto Provisional, decretado em Maio
de 1815, pela Junta de Observacion, designára,
"como lugar intermedio no territorio das
Províncias Unidas," para a reunião da
Constituinte que se projectava, . a capital
celebrizada pelos ultimos revezes do poder
militar estrangeiro. Ia-se con-summar assim a
revolução de 15 de Abril, que, em 1813,
mandára convocar para logo um Congresso
Geral, onde se formulasse a Constituição do
Estado. O Paraguay não responde. A Banda
Oriental, Entre Rios, Comentes e Santa Fé
jazem sob o jugo de
1
32
PROBLEMAS DE DIREITO
Artigas.
Mas as outras provincias,
incluídas, afinal, a de Cordoba e a de Salta,
concorrem pressurosas ao chamado.
A assembléa dahi resultante não iguala em
cultura politica a de 1813, composta dos
patriotas de 1810; mas reflecte com
exactidão as localidades que representa, e
congrega no seu seio, geralmente, os homens
de mais prestimo e estima em cada província,
avultando,
entre
elles,
algumas
individualidades superiores, e sobresahindo
neste numero tres monges tão illustres pelas
virtudes e letras quanto pelo seu civismo e
pelas suas idéas liberaes. No fervor destas o
clero anda á competencia do fôro e o
commum do povo. Producto comparativamente venturoso de uma eleição, a que a
indifferença publica de certas localidades e
os odios regionaes de outras não parecia
augurarem bom resultado.
Três correntes distinctas se lhe debatem no
seio, tres credos a dividem: a centra lização,
federação, a restauração dos Incas Mas as
opiniões, divergentes nessas tendencias
locaes, se incluiu na generalidade, para
INTERNACIONAL.
33
a monarchia, que entre os seus adeptos conta
Rivadavia, San Martin e Belgrano. E'um
corpo heterogeneo, desunido, fluctuante, e o
quadro social que o cerca, elle mesmo o
debuxa, mediante a penna de Frei Caetano
Rodrigues:
as
províncias
divididas;
desavindos os povos; rotos os laços da união
social; os governos mal seguros; uma luta
geral de interesses; as forças do Estado
vacillantes; esgotadas as fontes da
prosperidade commum; '' armada,'' no
horizonte, 'una negra tempestad" e a nação
em caminho de ' una espantosa anarquia."
Felizmente as divergencias, que, em
materia de fórma de governo, agitam a
heterogenea assembléa se retrahem, e desarmam todas, á voz dos grandes patriotas,
ante a suprema aspiração de todas as almas :
a proclamação da independencia nacional por
acto nacional de uma assembléa nacional.
"Hasta quando esperamos para declarar
nuestra independencia?" pergunta San Martin
occupado, então, em Mendoza, com a
organização do
34
PROBLEMAS DE DIREITO
exercito dos Andes. Com elle insta e urge
Belgrano. E' o sentimento unanime. A autoridade
dos dous oraculos o estimula. A pressão augmenta
ainda com as diligencias de Pueyrredón, o Director
Supremo, que o Congresso acaba de nomear. A
assembléa já não póde resistir ou retardar. A
independencia das Províncias Unidas é a Ordem
do Dia para a sessão de 9 de Julho. O Congresso
não a discute: acclama-a entre os applausos da
multidão que a victoria, num acto da mais elevada
linguagem e entrega ás Províncias, ás populações,
aos exercitos, que o vão jurar em paroxismos de
enthusiasmo.
Deverei aqui repetir-vos essas nobr palavras?
Deixae-me, senhores, a gra commoção de vol as
repetir.
"Nós," diziam os vinte e nove deputados,
"Nosotros los representantes de las Províncias
Unidas de Sud America invocando al Eterno que
preside a Universo, en el nombre y por la
autoridad de los pueblos que representamos, protestando al ciclo, a las naciones y hombres
INTERNACIONAL
35
todos del globo la justicia que regia nuestros
votos, declaramos solemnemente a la faz de la
tierra que és voluntad unanime y indubitable
de estas províncias romper los vínculos que las
ligaban á los reyes de Espana, recuperar los
derechos de que fueron despojados, e
revestirse del alto caracter de una nación libre
e inde-pendiente del rey Fernando VII, sus
sucesores e metrópoli. Quedan en consequencia, de hecho y derecho, con amplio e
pleno poder para darse las fórmas que exija la
justicia e impere el cúmulo de sus actuales
circunstancias. Todas y cada una de ellas asi lo
publican,
declaran
y
ratifican,
comprometiéndose, por nuestro medio, al
cumplimiento y sostén de esta su voluntad,
bajo el seguro de sus vidas, haberes y fama."
Antes de assim proclamada, a independencia já era facto consummado. Declarada
até se devia ella considerar pelos actos das
assembléas de 1811 e 1813. Esses actos
affirmam que nas duas assembléas "reside a
soberania das Províncias Unidas do Rio
36
PROBLEMAS DE DIREITO
da Prata," estabelecem que "os deputados das
Províncias Unidas são deputados da nação em
geral," e mandam cunhar moeda com o exergo
de armas nacionaes.
Mas essa vontade assente e irretractavel do
povo ainda não recebera, num acto especial, a
consagração distincta e solemne, que a devia
sellar, nem se imprimira a necessaria
centralização do Governo, que tinha de
presidir á marcha das armas victoriosas na
consolidação militar da independencia
declarada. Taes sacas unicas resoluções em
que o consenso unanime dos povos que ella
representa lhe dão a força de se impor á
obediencia de todos. Cingindo-se a essas
medidas capitaes, a assembléa inspira-se nesse
bom senso, nesse tacto, nesse instincto
pratico, de que Belgrano, escrevendo a
Rivadavia, em Fevereiro de 1810, a gabava
com
encarecimento
neste
expressivo
testemunho : " Creo que hay muy poços, que
no deseen lo mejor, y por eso son las
cuestiones; y, quando parece que van a
devorarse, basta que uno hable con juicio,
aun que no
INTERNACIONAL.
37
tenga la voz de un estentor, para que todos le
sigan. Siempre será una eterna gloria para
nuestro país esa deferencia a la razon."
Eis a obra do Congresso de Tucuman, cuja
existencia interior se desdobra numa luta de
contradicções
inconciliaveis,
cuja
physionomia se compõe das antitheses mais
radicaes, mas cujos actos dominantes
salvaram a revolução, tornando irrevogavel a
redempçao argentina, imprimindo unidade
nacional ao governo das províncias
emanoipadas e estabelecendo, com esses
dous factos, os alicerces da construcçáo
majestosa, cuja data inaugural celebramos no
augusto anniversario destes dias.
E' assim que o tempo, o maior e o mais
certo factor da justiça na ordem das cousas
humanas, vinga a sagrada memoria desses
bemfeitores de sua nacionalidade, os seus
illustres patriarchas, das injurias da espantosa
guerra social, ás mãos de cuja anarchia, mais
tarde, cáem vencidos, quando a demagogia
militar, no anno vinte, dissolve o Congresso
de Tucuman e o
38
PROBLEMAS DE DIREITO
directorio por elle constituído, impondo aos
fundadores da independencia e aos salvadores
da revolução a vilta de traidores, cobrindo-os
de ultrajes, e sub-mettendo-os a um processo
monstruoso, onde os accusados se vêem
condemnados de antemão, em termos brutaes,
pelos caudilhos, a que nem a revolução, nem a
independencia deve o menor serviço.
Paremos aqui, senhores. Não me caberia
seguir, destas alturas em deante, a trajectoria
dessa revolução, que renascendo sempre das
suas catastrophes, e multiplicando sem cessar
os seus loiros, transpõe os Andes, levanta o
Chile, espraia a sua inundação até as costas do
Pacifico, insurge o Peru, estende a marcha
redemptora até o Equador, onde se vai
associar á revolução colombina, ao mesmo
passo que das extremas septentrionaes da
America do Sul, outra vaga revolucionaria
desce, varrendo os Exercitos de Hespanha, e,
encontrando se com as ondas victoriosas do
movimento argentino, junta com as delle as
suas forças na ultima batida ás armas
INTERNACIONAL.
39
da metropole, cuja resistencia agoniza nas
montanhas peruanas, após os golpes mortaes
que lhe infligiram as batalhas de Chacabuco e
Maypú, Carabobo e Boyacá.
Essas façanhas medem, a contar de 1816,
os seis annos transbordantes de victorias
libertadoras, ao termo dos quaes, D.
Bartholomeu Mitre, depois de os resumir
nesta synthese eloquente, capitula a situação
deste modo: "Las colonias his-panoamericanas eran libres de hecho y de derecho
por su proprio esfuerzo, sin auxilio extrano,
luchando solas contra los poderes absolutos
de la tierra coligados en su contra; y del caos
colonial surge un nuevo mundo—ordenado,
coronado de las dobles luces polares y
equatoriales de su cielo. Pocas veces el
mundo presencio un génesis politico
semejante, ni una epopea histórica mas
grandiosa."
Bem natural era que na America do Norte
encontrasse agrado e sympathia a
emancipação das colonias da America do
Sul, reconhecida, em 1822, pelos Estados
Unidos. Mas onde parece que se teve a
40
PROBLEMAS DE DIREITO
comprehensão mais nitida, mais viva, mais
completa do interesse, que representavam
para a humanidade os extraordinarios
successos, de que era theatro este continente,
foi na Europa liberal, especialmente na
Inglaterra, a mãe de todas as liberdades
modernas, a grande escola da sciencia dos
homens de Estado. As palavras do Marquez
de Lansdowne, em 1823, na Camara dos
Communs, propondo que a Grã-Bretanha
reconhecesse a independencia das províncias
hispano-americanas, são um verdadeiro
hymno ao futuro da America.
"A grandeza e relevancia do assumpto de
que vou tratar, é tal," diz elle, em accentos
commovidos, "que raro se terá submettido
maior, nem igual, á consideração de um corpo
politico. Os resultados abrangem um
territorio, cuja magnitude e capacidade de
progresso como que abysma a imaginação,
quando o tenta abraçar, porque se estendem a
regiões, que vão dos 37 gráos de latitude norte
aos 41 de latitude meridional, numa linha,
portanto, não
INTERNACIONAL.
41
menor que a de toda a Africa, com a mesma
direcção e mais largura que todos os
dominios nossos na Asia e na Europa. Nessas
regiões se cruzam rios majestosos, com
variedade tanta de clima e de tal maneira
temperados os calores equatoriaes, que
disposta se acha, ali, a natureza, para dar, em
resumo, tudo quanto ha mais de appetecer em
todo o mundo. Habitam essas terras vinte e
cinco milhões de almas, de varias, raças, que
sabem guardar a paz, viver em harmonia, e,
que debaixo de condições mais propicias do
que as em que até ágora têm lidado, bem
depressa acabariam por encher os amplos
vazios de terreno inculto, cuja fertilidade as
prosperaria rapidamente, povoando aquelle
vasto continente de nações poderosas e bem
afortunadas. Os seus habitantes levaram aos
labios a taça da liberdade, e ninguem poderá
mais atalhar o rumo á sua civilização, nem
aos sentimentos nobres e grandiosos, que se
levantaram na sua carreira. A regeneração
desses paizes ha de ir adeante."
Não se
poderia falar mais
42
PROBLEMAS DE DIREITO
divinamente. Era como que a propria
sabedoria, prenunciando, abraçada com a
liberdade, os destinos do Novo Mundo.
A re-monarchização da America era, a esse
tempo, um dos sonhos do absolutismo
europeu. A assembléa da reacção assentára o
seu programma no congresso de Verona. Um
exercito francez, invadindo a Hes-panha,
restaura o throno de Fernando VII Não resta
senão que a Santa Alliança estenda o braço
através do oceano, para arrebatar ás colonias
hispano-americanas recémlibertas os fóros da
sua liberdade, sagrada em tantas campanhas
por sacrifícios tão sublimes. No Governo da
senhora dos mares, vela, porém, o genio de
um grande amigo da humanidade. A sua
autoridade oppôz o veto britannico ao infernal
attentado. "A America hespanhola é livre,"
diz elle. "Novos seculorum nascitur ordo." E é
assim que esse grande ministro adquire jús a
exclamar, tres annos mais tarde, no
Parlamento inglez: "Eu chamei á vida um
novo mundo, para restabelecer o equilíbrio do
antigo."
INTERNACIONAL.
43
Estas palavras de uma altiloquencia
religiosa e uma uncção prophetica, ouvi-as eu
citar, senhores, poucos annos ha, em
circumstancias que tocam especialmente á
Republica Argentina, e adquirem singular
relevancia entre os acontecimentos que
infelicitam e enoitecem os nossos dias. Nas
minhas reminiscencias, tão diversas e
interessantes, da ultima conferencia de Haya,
uma das que mais acaricio, é a das relações
cordiaes, em que ali me achei sempre com os
vossos tres eminentes delegados, entre os
quaes me permittireis destacar agora o
estadista, por tantos titulos illustres, que,
chamado, pouco depois, a governar este paiz,
deixou da sua administração um sulco
luminoso de refórmas, cujos benefícios estaes
sentindo, e hão de ter longa influencia no
vosso progresso constitucional.
Na sessão plenaria com que, vai fazer nove
annos, se encerrou, em Haya, a famosa
assembléa das nações, o eloquente delegado
argentino proferiu um discurso dos mais
apreciados, logo no começo do qual se
44
PROBLEMAS DE DIREITO
evocava a imagem do celebre estadista inglez
e as suas palavras immortaes. "De ora
avante," dizia o Sr. Saenz Pena, "de ora
avante poderemos affirmar que a igualdade
politica dos Estados cessou de ser uma ficção,
e está consagrada como realidade evidente Já
não existirá, de futuro, um direito das gentes
para a Europa, outro direito das gentes para a
America. A historia da Grã Bretanha registou
esta sentença memoravel, pronunciada, no
parlamento de Westminster, pela voz de um
precursor : "Chamei á vida o Novo Mundo,
para restabelecer o equilíbrio do antigo."
Proferiu elle estas palavras no primeiro
quartel do seculo XIX, e, ao alvorecer do
seculo XX, está consum-mada a evolução; os
soberanos da Russia e dos Paizes Baixos,
convocando-nos a este recinto, são os
executores testamentarios da prophecia de
Jorge Canning. O equilíbrio está restaurado
pela virtude do direito e pela harmonia das
leis historicas, que concertam e juntarm os
dois mundos como as duas metades de
orna só esphera,
INTERNACIONAL.
45
allumiada por uma só justiça e pela mesma
civilização."
Não eram transcorridos muitos annos,
senhores, que estas expressões traduziam
com singular felicidade as esperanças de todo
o genero humano, quando acontecimentos
sem parelha na memoria dos homens vieram
descobrir com estrondo a miseravel fallacia
das nossas previsões. Uma dessas metades do
globo, o nosso hemispherio, continúa (se
tambem nisto nos não enganamos), a
sustentar-se tranquilla na divina estructura do
planeta. Mas a outra, sacudida nos eixos por
catastrophes de grandeza desmarcada, estala
e vacilla sobre si mesma, sacudida por um
cyclone de calamidades. Os grandes Estados
chofram uns contra os outros, em prodigiosa
collisão, ao impulso das suas massas, como
pedaços de corpos celestes que se
encontrassem e entrebatessem, apagados os
luzeiros do Senhor, nos espaços da noite
infinita. Os Estados pequenos, varridos como
a palha ao açoite do vento, ou inquietos ao
sopro da rajada
que lhes
roça as
fronteiras,
46
PROBLEMAS DE DIREITO
perderam a segurança, ou a existencia,
entregues aos azares da luta entre os maiores.
Mãos poderosas, desencadeando a procella,
quebraram as amarras eternas do futuro das
nações, ameaçadas agora pelas incertezas de
uma situação que aboliu todas garantias da
confiança dos homens nos homens, dos povos
nos povos. Terriveis sorpresas vogam no
oceano tenebroso do inesperado, onde até as
nuvens de ceo cospem destruição, e os
recessos do abysmo se associam á cegueira
exterminadora, que lhe coalha a superfície, ao
largo, dos destroços de todas as tradições
christas. Nega-se o direito, bane se a justiça,
elimina-se a verdade, contesta-se a moral,
proscreve-se a honra, crucifica-se a
humanidade, o vendaval de ferro ataca os
symbolos sagrados, a arte, os thesouros da
sciencia accumulada, os grandes archívos da
civilização, os sanctuarios do trabalho
intellectual. Nada mais subsiste, de todas as
leis, senão a lei da necessidade, a lei da força,
a lei do sangue, a lei da guerra. O Evangelho
substitue-se pela religião da polvora e do aço.
INTERNACIONAL
47
Os Scythas barbaros, nos templos de
Marte, diz-nos o testemunho de Herodoto, no
quarto livro da sua Historia, erguiam por
idolo, em cada uma das suas azas, um alfange
desembainhado. Eis o nume dos nossos
tempos: uma espada erecta no grande altar do
Universo, onde outrora os christãos
adoravam a caridade, a clemencia e a doçura
de um Deus que se entregou á morte, por nos
livrar do mal, e nos fazer irmãos.
Onde, pois, hoje, essa "virtude do direito,"
essa "harmonia das leis historicas," esse
"equilíbrio restaurado" entre as nações, que
ao vosso representante na Conferencia da Paz
inspiravam aquellas palavras memoraveis?
Onde esse direito das gentes, que elle
celebrava com orgulho ? Onde o terreno
juridico
deparado
aos
"executores
testamentarios da prophecia de Canning," na
mutua collaboração dos dous continentes ?
Onde a igualdade no direito entre os
pequenos Estados e os Estados poderosos ?
Emquanto naquelle concilio dos povos,
48
PROBLEMAS DE DIREITO
com o concurso de todas as nações constituídas, supponhamos estar codificando num
corpo de leis os usos internacionaes, que o
consenso unanime das sociedades santificava,
o meio moral do seculo estava passando, e já
de longos annos antes, desde o terceiro quartel
do seculo findo, por um surdo trabalho de
adaptação aos interesses que haviam de
irromper neste conflicto, e com elle abalar até
aos fundamentos a machina da terra. O
cataclysmo actual, antes de acabar a sua
preparação nas forjas de canhões, começara a
ser preparado no ar que as consciencias
respiram. Os grandes exterminios de homens
pelas epidemias nos vêm da atmosphera
envenenada pelos miasmas e dos vehiculos
imperceptíveis, que nos introduzem nas veias,
ou nos insinuam nos pulmões os germens
homicidas. Foi, analogamente, com uma
profunda saturação atmospherica de venenos
moraes e com uma vasta diffusão de parazitas
malignos que se dispoz o mundo para a
erupção do flagello, cuja crueldade o devia
afogar em tantas des-
INTERNACIONAL
49
graças. Primeiro que sahisse das fabricas de
armamentos, das casernas e dos estadosmaiores, esta guerra tinha accumulado os
fluidos, que a viriam animar, nos livros, nas
escolas, nas academias, nos laboratorios de
pensamento humano. Para entrar em luta com
a civilização, a força comprehen-dera que era
necessario constituir-se em philosophia
adequada, corrompendo as intelligencias,
antes de subjugar as vontades.
Tudo nos mostra que "a guerra e a paz,
bem como todas as cousas, bôas ou más, nas
relações humanas, e, com ellas, os problemas
concernentes ao bom ou máo uso nosso da
materia prima, que a natureza ministra ás
nossas acções, dependem sempre da justiça
ou falsidade encerradas nos ideaes dos
homens." Uma das feições características da
guerra
actual
está
no
sentimento,
generalizado hoje entre os proprios combatentes, de que "esta guerra é, essencialmente,
uma guerra de idéas." Os povos, cuja
fortuna se joga nesses embates
50
PROBLEMAS DE DIREITO
furiosos e descompassados, acabaram por ver
que o medonho conflicto, em cujo sorvedouro
se engolem nações e territorios como barcos
desarvorados, "tem, fundamentalmente, por
causa as theorias, as aspirações, os
devaneios," de uma propaganda nutrida por
um nucleo de espíritos cultos, mas pervertidos
e desvairados por um nacionalismo doentio.
Graças a esses influxos perniciosos é que se
converteram nos mais figadaes inimigos uns
dos outros grandes povos christãos—
irmanados pela raça, pelas affinidades de
idioma, pelas tradições religiosas, pelos
interesses economicos, pelas alliançAs regias,
pela collaboração nos campos de batalha,
pelas
sympathias
intellectuaes,
pelas
inclinações populares.
As doutrinas precedem aos actos. Os factos
materiaes emanam dos factos moraes. Os
acontecimentos resultam da ambiencia de
erros ou verdades. A guerra, debaixo da qual
se estorce a Europa mutilada, teve por origem
um montão de theorias disformes
e
virulentas, que, durante
INTERNACIONAL.
51
meio seculo, nas regiões mais acreditadas
pela sua cultura, encheram os livros dos
philosophos,
dos
historiadores,
dos
publicistas, dos escriptores militares. As
nações ameaçadas pela pullulação desses
germens peçonhentos não perceberam os
signaes que lhes manifestavam a tendencia e
o objecto. Deixaram que a torrente epidemica
se avolumasse nas suas matrizes, por não
darem a importancia devida á relação de
causalidade inevitavel entre essas influencias
apparentemente abstractas e o curso dos
negocios humanos, os sentimentos dos povos,
os actos dos governos, os destinos do mundo.
Os professores, os jornalistas, os tribunos
são, hoje, os que semeiam a paz ou a guerra.
As bocas de fogo succedem ás bocas da
palavra. A penna desbrava o campo á espada.
Voltaire, repartindo o mundo entre as tres
mais cultas nações de sua epoca, distribuía a
uma o domínio da terra, a outra o dos mares,
á terceira o das nuvens. Mas, se é nas nuvens
que habitam os meta-physicos, os ideologos,
os utopistas, tambem
52
PROBLEMAS DE DIREITO
dessas alturas, onde se condensam emanações
de idéas, pode chover sangue.
Não é, porém, das nuvens que se pregou,
em nossos dias, o catecismo da guerra. E' das
cadeiras donde se proporcionava a instrucçao
á mocidade, donde os sabios fallavam aos
sabios, donde a historia dictava os seus
oraculos ás escolas, donde se dava aos
cidadãos a lição do dever, aos governos a da
soberania, aos soldados a da obediencia, aos
generaes a do mando.
Dahi é que um dos mais graduados mestres
da
sciencia
nova
professava
estes
ensinamentos: "A guerra é a sciencia politica
por excellencia. Provado está. muitas e muitas
vezes, que só pela guerra vem um povo
deveras a ser povo. Só na pratica em
commum de actos heroicos a bem da patria é
que uma nação logra tornar se, real e
espiritualmente, unida." Não é a guerra esse
mal necessario, de que Aristoteles fallava.
Nfto; pelo contraria, "no eterno conflicto
entre os Estados é que a Historia tem a sua
belleza.
Simplesmente insensato é
INTERNACIONAL.
53
pretender acabar com essa rivalidade. Os
civis têm emasculado a sciencia politica,"
desconhecendo que a guerra é a segunda
funcção do Estado. "Essa concepção
sentimental desvaneceu-se no seculo XIX
depois de Clausewitz. Os povos mais
civilizados são os que melhor pelejam, e esta
" é a cousa principal da historia.'' A grandeza
depende mais do caracter que da educação; e
é nos campos de batalha que se fórma o
caracter.
Assim dogmatiza o historiador, o cathedratico official. Ouviremos, depois delle, o
philosopho? "A guerra," diz elle, "é a
divindade, que consagra e purifica os
Estados...... Uma boa guerra santifica todas
as causas. Contra o risco de que o ideal do
Estado se corrompa no ideal do dinheiro, o
unico remedio está na guerra e, ainda uma
vez, na guerra."
Quereis escutar, agora, o estrategista, o
general, o chefe de exercitos ? Escutai-o
:Sem a guerra as raças inferiores e
desmoralizadas ligeiramente eliminariam as
raças saudaveis e longevas. Sem ella o
54
PROBLEMAS DE DIREITO
mundo acabaria numa decadencia geral. A guerra
é um dos factores essenciaes da moralidade."
Nao basta ? Attentai ainda: " O peior de todos
os erros na guerra é o mal entendido espirito de
benevolencia . . . . Porque aquelle que usa de sua
força inexoravelmente, sem medir o sangue
derramado, levará sempre vantagem grande ao
adversario, se este nao se houver do mesmo modo.
A estrategia regular consiste, primeiro que tudo, em
descarregar no exercito do inimigo os mais terriveis
golpes que se possa, e depois em causar aos
habitantes do seu territorio soffrimentos taes, que
os obriguem a desejar cora anciedade a paz, e
constranjam o seu governo a solicital-a. As
populações não tê devem deixar senão os olhos,
para chorar a guerra."
Um general, dos promovidos á notoriedade por
esta guerra, formula em synthese expressiva a lei
dessa alchimia moral, que transfórma em rasgos de
clemencia as mais barbaras impiedades. "Dureza e
rigor, diz
INTERNACIONAL.
55
elle, se convertem nos seus contrarios, desde
que com ellas se logre incutir no adversario a
resolução de exorar a paz." Donde
inevitavelmente se conclue que, como, sob
este ponto de vista, quanto mais torturadas as
populações não combatentes, mais anciosas
pela paz, tanto mais caridade haverá na
guerra, quanto mais crueza nella se use. " O
paiz soffre," dizia um dos heroes dessa
tragedia, philosophando sobre as agonias de
uma região condemnada á fome. "A
população vê-se faminta. E' deploravel; mas
é um bem. Não se faz a guerra com
sentimentalidades, Quanto mais implacavel
fôr, mais humana será, em substancia, a
guerra. Os meios de guerra que mais de
prompto forçarem a paz, são, e hão de ser os
mais humanos."
Tão consubstanciada se acha a luta pelas
armas, aos olhos dessa philosophia
truculenta, com as exigencias essenciaes do
nosso destino, que só em graduação differe a
guerra da paz. Toda a vida se reduz á guerra,
desde a que nos circula nas veias, até a
que assola a
56
PROBLEMAS DE DIREITO
terra entre os povos invasores e os invadidos.
E, como, segundo um dos artigos desse credo,
"o justo se decide pelo arbitramento da guerra,
pois as decisões da guerra são biologicamente
exactas, desde que todas ellas emanam da
natureza das cousas" ; como, por
consequencia, sendo a mesma guerra o criterio
da guerra, sendo ella só quem se julga a si
mesma, a sentença das armas constitue a
expressão inelutavel da justiça—toda a
historia vindoura dos homens se teria de
resumir numa palavra : a invasão. Invasão
obtida pela força, ou repellida pela força.
Invasão exercida contra a fraqueza e aturada
pela fraqueza; visto como, na lei proclamada
oracularmente pelos infalliveis da nova
cultura, a guerra é o processo de legitima
desapropriação das raças incapazes pelas
capazes. Pela guerra nos salvaremos, ou nos
extinguiremos pela guerra, eis o dilemma em
ambas as pontas do qual, a guerra, com
principio de todas as cousas, desaba sobre nós
com o peso da sua inevitabilidade. Guerra
ou gr terra. Guerra
INTERNACIONAL-
57
em acção ou guerra em ameaça. Luta contra a
guerra ou guerra. Sujeição á guerra ou
extermínio pela guerra.
As consequencias do terrivel argumento
são irrecusaveis. O essencial agora ao
homem não consiste em aprender a pensar, a
sentir, a querer, de accôrdo com esses
mandamentos, que as crenças de nossos pais
nos habituaram a considerar sagrados, que os
nossos proprios instinctos por si sós nos
dictariam, que o primeiro balbuciar da razão
nascente nos ensina pela vóz do coração, que
nos levam a respeitar a infancia, a velhice, a
debilidade, o infortunio, a virtude, o talento.
Não; o essencial, agora, não é amarmo-nos
uns aos outros, como nos prescrevia o antigo
Deus dos christãos, varejado hoje em dia nos
seus templos, bombardeado nas suas
cathedraes, profanado nas suas imagens,
espingardeado nos seus sacerdotes. Não. O
essencial é que emulemos entre nós a quem
mais se distinguir nas sublimes artes de nos
espionarmos, nos saltearmos, nos invadirmos, nos mentirmos, nos espoliarmos
58
PROBLEMAS DE DIREITO
nos fuzilarmos, de nos trahirmos, nos
extinguirmos.
Dahi a mais absoluta inversão do que se
chama direito internacional. Se a guerra é a
pedra de toque do justo e do injusto, o
arbitramento do licito e do illicito, a
instancia irrecorrível do direito entre as
nações, a guerra é a razão, a absolvição, a
canonização de si mesma. Dahi o principo
de que a necessidade, na guerra, sobrepuja
a todas as leis divinas e humanas. Dous
elementos compunham o direito internacional : a contraposição de um codigo de
leis á doutrina da necessidade na guerra e a
limitação das exigencias da necessidade na
guerra pelas normas da humanidade o da
civilização. E' com isso, justamente, que se
acaba, declarando peremptoriamente que
"a necessidade na guerra prevalece aos
usos da guerra."
A lei da necessidade na guerra manda
que se atraiçôem os tratados? Atraiçoarse-hão. A lei da necessidade na guerra
exige que se viole a neutralidade ? Violarse há A lei da necessidade na guerra quer
INTERNACIONAL.
59
que se afundem navios neutros, afogando
passageiros e tripulantes? Afundar-se-hão e
afogar-se-hão. A lei da necessidade na guerra
aconselha que se matem, ás cegas, velhos,
mulheres e crianças, lançando bombas sobre
a população adormecida em cidades pacificas
e indefesas? Matar-se-hão.
Para se chegar a esta moralidade, não valia
a pena atravessar vinte seculos de
Christianismo. Muito antes da éra christã, na
Republica de Platão, já o cynismo de
Thrasymacho afírontava a logica de Socrates,
dizendo-lhe: "Eu proclamo que a justiça não é
senão o interesse do mais forte." Mas
Socrates mesmo nos conta que, ao discutir
desta proposição, via no sophista o que nunca
lhe vira. Viu-lhe córar as faces. Outrotanto
não succederá, talvez, com os de hoje, bem
que os paradoxos do grego não derramavam
sangue, ao passo que os do militarismo actual
cobrem de luto a face do globo.
A mesma corrente de idéas, que põe, nas
relações internacionaes, a guerra acima de
60
PROBLEMAS DE DIREITO
todas as leis, começára por collocar, nas
relações internas, o Estado acima de todos os
direitos. O culto do Estado precedeu o culto da
força militar, a estratolatria. O vosso Alberdi
escreveu um excellente pamphleto sobre A
omnipotencia do Estado, encarada alli como " a
negação da liberdade individual. Mas nas
doutrinas que hoje emprestam e deshonram a
intelligencia humana, a religião do poder o
sublima ainda mais alto: segundo ellas, pairando
numa região de arbítrio sem fronteiras, o
Estado, alpha e omega de si mesmo, existente
por si proprio e a si proprio sufficiente, é ''
superior a todas as regras moraes." Ampliado a
muitos diametros, o super-homem nos dá o
super-Estado, o Estado isento dos freios e
contrapesos, a que a democracia e o systema
representativo o submettem aos Governos
limitados pelo elemento parlamentar ou pelas
instituições republicanas. E, entendido assim,
vem o Estado a ser uma entidade " independente
do espirito e da consciencia dos cidadãos." E'
"um organismo amoral e predatorio.
INTERNACIONAL.
61
empennado em se sobrepór aos outros
Estados mediante a força." Nem tem por onde
se reja senão a sua vontade e soberania.
O systema, presentemente, está completo :
na politica interior, a força traduzida na razão
de Estado: na politica exterior, a força
exercida pela guerra. Nas relações internas
duas moraes: uma para o individuo; outra
para o Estado. Duas moraes, igualmente, nas
relações inter-nacionaes: uma para os
Estados militarmente robustos; outra para os
Estados militarmente debeis.
Para autorizar este retrocesso as idades
primitivas, foi necessario decantar em todos
os tons as virtudes civilizadoras da guerra,
negar o alto valor dos pequenos Estados no
desenvolvimento e no equilíbrio do mundo,
reivindicar exclusivamente para as theorias
do predomínio da força o caracter de
exequibilidade, negando a efficacia das
sancções moraes nas relações entre os
povos. Ora, nenhuma dessas tres pretensões
consulta á verdade ou se mantem perante o
senso commum.
62
PROBLEMAS DE DIREITO
Pôr em duvida, hoje, a autoridade da imoral
no direito das gentes é riscar de um traço vinte
seculos de progresso christao. As conferencias
de Genebra e de Haya o revestiram de fórmas
positivas, que os; terremotos internacionaes
lograrão abalar passageiramente, mas que
os hão de atravessar renovadas e victoriosas.
Em Haya, quarenta e quatro potencias;
deliberaram sobre o direito internacional,
sujeitando-o a uma vasta codificação de
estipulações, que se comprometteram a
observar.
Se essas normas passaram ultimamente por
transgressões violentas, não é porque sejam
abstracções vãs. Na existencia interior de cada
Estado tambem se quebram a miude as leis
nacionaes; e, se a condição habitual delias nao
é a de serem burladas pela força
constantemente, esta vantagem se deve ao
apparelho tutelar da justiça, mais ou menos
bem organizada em todas as constituições. E'
o que ainda está por organizar, mas nao será
impossível que se organize, por ventura mais
do que
INTERNACIONAL.
63
se cuida entre as nações independentes.
Emquanto, porém, não se organiza, forças
moraes ha que, se não abrigam os povos das
contingencias da guerra, mantêm, pelo
menos, em torno e acima desta, um conjunto
de restricções e impossibilidades, oppostas ao
excessos
extremos
do
militarismo
desencadeado.
Não se diga, pois, como se tem dito, que,
na esphera onde se agita a politica das
potencias maiores, as noções usuaes da moral
doutrinaria se não acolhem senão depois de
alteradas por uma grosseira liga de vil
egoísmo. Não ha duas moraes : a doutrina e a
da praxe. A moral é uma só : a da consciencia
humana, que não vacilla em discernir entre o
direito e a força. Os interesses podem
obscurecer transitoriamente esse orgão da
visão interior : podem obscurecel-o nas
relações entre os povos, como nas relações
entre os indivíduos, no commercio entre os
Estados, como no commercio entre os
homens, nos Governos como nos tribunaes,
na esphera da politica internacional, como na
dos codigos civeis e
64
PROBLEMAS DE DIREITO
penaes. Mas taes perturbações, taes
anomalias, taes crises nao provam que nao
exista em nós, individual ou collectivamente, o senso da moralidade humana, ou
que as suas formulas sejam meras theorias.
Nao é á nossa, pois, que cabe a qualificação de moral theorica. Á baixa liga de
egoísmo entra em quasi todos os negocios
liumanos, e o risco de ser annullada a lei
pela força é commum a todos os domínios de
nossa vontade, individual ou collectiva.
Isso, porém nao demonstra que o mundo
real se reduza todo elle a violencia e arbitrariedade. E tanto assim nao é, que, postos
nesse terreno, os conflictos entre os povos
são insoluveis. A propria victoria das
armas, quando nao embebida na justiça, nao
dirime solidamente: apenas se suffoca, e
adia para, ulteriormente, renascer em novas
guerras. Se a de 1870 nao houvesse tomado
á França a Alsacia-Lorena, nao teria
perpetuado entre os vencidos o sentimento da
desforra entre os vencedores o da conquista.
Só a moral, portanto, é pratica, só a justiça
INTERNACIONAL
65
efficaz. Só as creações de uma e outra
perduram.
"A sociedade humana, escrevia, o anno
passado, um auctor americano, dos mais
notaveis, não póde estribar em ultima alçada
por via da força. Quando numa eleição os
republicanos votam fóra do poder os
democratas, de onde fiam elles que os
democratas entregarão o poder ? Do Exercito
e da Marinha, direis. Mas quem manda no
Exercito e na Marinha, quem dispõe desses
instrumentos do poder são os democratas, que
se acham no Governo. Não ha outra
segurança de que os democratas delle
desçam, e entreguem esses instrumentos de
poder; não ha outra, senão o accôrdo, a convenção existente nas leis. Se elles não estivessem por esse accôrdo, os republicanos
levantariam um Exercito de insurgentes, para
tanger do Governo os democratas,
precizamente como occorre em certas Republicas sul-americanas: obtido o que,
occupariam o poder, até que os democratas,
por sua vez, reunissem outro Exercito. De
maneira que a sorte reservada aos Norte-
66
PROBLEMAS DE DIREITO
Americanos seria, destarte, a mesma dos
outros paizes, onde as revoluções succedem
uma á outra, de seis em seis mezes. O que o
evita é, unicamente, a confiança geral que
todos nutrem de que nenhum dos parceiros ha
de falsear as regras do jogo. Forçoso é
confessar que se estenda a mesma convenção
ao campo das relações internacionaes; e o
militarismo nao perecerá, senão quando vier a
ser geralmente reconhecida a necessidade para
as nações de se regerem pela mesma norma.
Toda a esperança de que elle acabe por
extinguir está em vermos triumphar uma
doutrina melhor, reconhecendo se que a luta
pelo ascendente militar deve ser abandonada,
nao por uma só das partes, mas por todas.
Prescreva se o anarchismo internacional, a
supposiçao de que entre as nações nao existe
sociedade, trocando-se esses erros no
reconhecimento franco de um facto obvio,
qual o de que as nações fórmam uma
sociedade e de esses princípios, onde toda a
gente assenta a esperança da estabilidade da
civilização dentro em cada Estado, se devem
applicar igualmente como a unica
INTERNACIONAL
67
esperança de se manter a civilização nas
relações dos Estados uns com os outros."
Para fazerem do direito da força e da
excellencia da guerra os dous pólos da
civilização, necessario será lavarem ao
mundo superior da consciencia as devastações com que se tem assolado o mundo, onde
reinam as conquistas materiaes do nosso
progresso. Abala-se pelos seus fundamentos
a razão humana, destruindo as fronteiras que
separavam o bem e o mal, o justo e o injusto,
a violencia e o direito. O mundo está farto de
ouvir cantar em todos os tons de enthusiasmo
a apologia do extermínio systematizado. Mas,
quando, para a caracterização da guerra, não
chegassem as maldades innominaveis, que
essencialmente a definem, qualificada estava
ella de sobra, sem mais nada, com essa
aberração, que inventou, em benefícios dos
interesses da guerra, o privilegio de legitimar
a immo-ralídade, e que, deste modo, põe em
conflicto duas moraes antagonicas, uma
reservada aos fortes, com a garantia
executiva das armas, outra consignada aos
fracos, com a
68
PROBLEMAS DE DIREITO
miseria da sujeição illimitada ao capricho
dos fortes.
Não existia a moral senão, justamente,
para moderar os grandes e estudar os
pequenos, refreiar os opulentos e abrigar os
pobres, conter os fortes e garantir os
fracos. Com a dualidade que introduziram,
porém, na concepção da moral, a força e a
guerra, apoderando-se do mundo, assentaram a moral no dinheiro, na soberba e no
poder, fizeram da moral a humilhação, o
ergástulo, o captiveiro dos fracos, dos necessitados e dos pequenos. Duplicando a
moral, aboliram a moral; e como a moral é
a barreira das barreiras entre as sociedades
civilizadas e as sociedades barbaras, abolindo a moral, proclamaram implicitamente
por ultimo destino do genero humano a barbaria. Barbaria servida pela physica e pela
chi mica, barbaria adulada pelos sabios e
doutos, barbaria dourada pelas artes e
lettras, barbaria disciplinada nas secretarias
e quarteis, barbaria com a pre-sumpçao da
sciencia e o genio da organização, mas nem
por isso menos barbaria,
INTERNACIONAL.
69
antes, por isso mesmo, barbaria ainda peor.
Maldita seja a guerra, que, reduzindo a moral
a lacaia da força, rebentou o senso intimo dos
povos, envolveu em trevas a consciencia de
uma parte da humanidade! Não, não ha duas
moraes. Para os Estados como para os
indivíduos, repetirei, na paz ou na guerra, a
moral é uma só. Nos campos de batalha, nas
cidades invadidas, no territorio inimigo
occupado, no oceano solapado pelos
submarinos, nas incursões das bellonaves
aereas, é ella quem protege os lares
tranquillos nas cidades inermes, quem
resguarda nos transantlanticos as populações
viajantes, quem não deixa semear de minas as
aguas reservadas ao com-mercio innocente,
que livra dos torpedos os barcos de pesca e os
hospitaes fluctuantes, quem abriga dos
bombardeios as enfer- marias e bibliothecas,
os monumentos e os templos, quem veda a
pilhagem, a execução dos refens, a trucidação
dos feridos, o envenenamento das fontes,
quem guarda as mulheres, as crianças, os
velhos, os enfermos, os desarmados.
A
moral é só esta.
70
PROBLEMAS DE DIREITO
Não póde conceber outra. Se o mundo vir
erguer-se agora um systenia, que lhe usurpe a
ella o nome, revogando todos esses canones
da sua eterna verdade, nao é a moral que se
está civilizando : é a immoralidade acobertada
com os títulos da moral destruída, a
malfeitora occulta sob o nome da sua victima;
e todos os povoe, sob pena de suicídio, se
devem unir, para lhe oppor a unanimidade
incondicional da sua execração.
"O que nos importa a nós, antes de tudo, a
nós pacifistas e democratas allemaes," dizia,
ainda hontem, um destes num livre
recentíssimo, "o que nos importa, é isto: não
ha preço, a troco do qual possamos tolerar por
mais tempo, em pleno seculo vinte, a
coexistencia de duas moraes, uma a par da
outra : uma para uso do cidadão, outra para
uso do Estado. Machiavel é morto, e morto
para todo o sempre. Os povos, os Estados, as
dynastias estão submettidos. hoje em dia, á
mesmas concepções moraes, As mesmas leis
moraes que os simples cidadãos.
INTERNACIONAL.
71
Devem proceder como gente honesta.
Quando não, hão de vir a ser, em nome da
justiça e da segurança publica, citados á
presença da justiça, como qualquer outro
delinquente. Não lhes é licito allegarem, para
se defender, outros motivos, que não os do
direito penal. Porque, actualmente, já não
deve haver razão de estado nem direito
publico especial, sobranceiros á discussão e
extranhos ás noções da moralidade corrente.
O que disso resta nos papeis diplomaticos e
nos cerebros de certos sabios, a guerra actual
o destruirá. Já não existe, nem poderá mais
existir, na Europa, senão uma só moral: a
moral juridica, ligando a todos e regendo
tudo: reis e dynastias, cidadãos e paizes."
Mas, senhores, a guerra não merece o reconhecimento do genero humano, nem
mesmo pelas acções heroicas e virtudes
sublimes, de que são theatro os seus campos.
As influencias que elevam os homens a essas
alturas da abnegação, a esses gloriosos extremos do sacrifício, não são os appetites
sanguinarios do combate: é a preoccupa-
72
PROBLEMAS DE DIREITO
ção dos interesses e direitos da paz, p zelo
dos seus thesouros inestimaveis, que cada um
dos combatentes cuida periclitantes com a
guerra. Esses sentimentos, essas affei-ções,
essas nobres qualidades se inflammam e
deflagram na luta armada, que abre aos
ameaçados o ensejo da resistencia ao perigo
imininente. Mas o que illumiua essa luta, o que
a engrandece, o que a santifica, é o amor da
patria, o amor da familia, o amor da liberdade,
o amor de tudo o que as com-moções militares
inquietam e aniquilam. Ora esses sentimentos
não se desenvolvem com maior intensidade em
parte nenhuma do que entre os povos pacíficos,
as
nações
liberaes,
os
governos
democratizados. Haja vista a Inglaterra. Haja
vista os Estados Unidos. Haja vista a Belgica.
Haja vista a Suissa. Haja vista a França.
A França, despercebida para a guerra, oppoe
ao genio da organização o genio da mprovizaçao;
as faculdades criadoras que este encerra, e quella
não possue, cria, para se armar, uma metallurgia
nova, improviza uma-resistencia sorprendente,
desenvolve
INTERNACIONAL.
73
virtudes inesperadas, excede-se a si mesma
nos campos de batalha. A Inglaterra, militarmente desorganizada, obrigada a se attestar
com o inimigo em sete ou oito frentes
diversas, sobrecarregada no oceano com a
policia dos mares, inquietada no seu territorio
mesmo pela campanha aerea, entrega
serenamente á morte a flor da sua aristocracia
e da sua cultura, cobre-se de louros nos
combates e levanta, pelo voluntariado, em
dezoito mezes, um exercito de cinco milhões
de homens. A Belgica, salteada pela mais
imprevista das invasões, levanta mão da
industria, para tomar a espada, a carabina, a
lança, e, sobre os restos do torrão patrio,
lacerada, incendiada, atormentada, mas não
acobardada, não deshon-rada, não esmagada,
enche a historia com os incomparaveis
assombros da sua nobreza, da sua energia e
do seu heroísmo. A Suissa, irreductivel na sua
liberdade e na sua democracia, impõe-se, com
o civismo das suas milícias, ao respeito dos
belligerantes, cujas fronteiras a sitiam por
todos os lados. Os Estados Unidos, sem
Exercito nem Marinha
74
PROBLEMAS DE DIREITO
correspondentes ás suas responsabilidades, aos
problemas du sua politica externa, ás
condíções da sua situação internacional, não
receiam pela segurança da sua posição no
continente, nem tentem achar esgotado, quando
o buscarem, esse reservatorio de virtudes e
energias, onde os povos livres esperam
encontrar, ao primeiro grito de necessidade, os
elementos da sua defensiva.
Um escriptor desse paiz, discorrendo da
historia de uma das mais agitadas re-publicas
sul -americanas, apurou que ella, durante os
primeiros vinte annos da sua
existencia independente lidára em mais de
cento e vinte batalhas. Com esse campo de
exercicio constante para as qualidade "viris e
aventurosas "que se preconizam rume a
vantagem das nações militarizadas, quem
admittira, todavia, cotejo entre essas
democracias batalhadoras e a dos Estados
Unidos, inimiga da guerra pela ínodle.
pela historia, pelas instituições, pelos costumes! A
Turquia é a mais militarizada nação de toda a
Europa: a Inglaterra, a menos militarizada. Qual
das duas, pelo
INTERNACIONAL.
75
que é, daria, dos princípios que a modelam,
idéa mais favoravel!
Dirão que a guerra estimula a industria e o
commercio ? As vezes, mas passageiramente.
Foi o que occorreu, por exemplo, depois da
campanha russo-japoneza. Paizes houve,
como os Estados Unidos, cujas vendas ao
Japão, á Russia e á China cresceram após essa
guerra. Mas, á excitação succedeu, logo em
seguida, uma depressão profunda. Matára ella
centenas
de
milhares
de
homens,
empobrecera milhões; e os dous paizes
abatidos com a sangria tiveram de
economizar por muitos annos na proporção
correspondente ao de-crescimento dos seus
recursos com os sacrifícios da luta.
Naturalmente é o que succederá tambem,
passada a guerra actual.
Os algarismos em que se houvessem de
calcular os prejuízos desta conflagração
inaudita, seriam de uma immensidade quasi
astronomica. Já se computam em treze
milhões os homens que ella ceifou, sumiu, ou
poz fóra de combate.
Mas, quando abaixo
dessa parcella
76
PROBLEMAS DE DIREITO
tremenda inscrevermos em milhares de mi-lhões
as sommas de moeda consummida, as
indemnizações, as requisições, as associa-ções,
as cidades arrasadas, as províncias taladas, o
incalculavel das culturas, das florestas, dos
campos, onde aos povoados sobreveio a
solidão, ás colheitas succedeu o morticinio e
as terras que o arado revolvia são lavradas hoje
pelos canhões, a imagina-çao recuará
espavorida, Não fizeram tanto esses antigos
despotas chineses, cuja carni-çaria mal
chegava a tirar um milhão de vidas em
dezenas de annos de reinado, nem esses
conquistadores orientaes, que assigna-lavam
com pyramides de cranios humanos a
passagem das suas armas.
Se "as guerras da resistencia á aggres-são,
ou as de socorro aos opprimidos terem dado
ensejo a esplendidas irradiações heroísmo, é
que elle nasce da consciência juridica doa que
se defendem, ou da abnega-ção pela
solidariedade humana dos que sacrificam.
Mas essas mesmas proezas do verdadeiro
heroísmo, o dos que se matam pelo direito,
seu ou alheio, constituem a
INTERNACIONAL.
77
mais directa condemnação da guerra, que
tripudia sobre essas virtudes, e junca dessas
vidas preciosas o campo abominavel dos seus
matadouros.
Tirae essas excepções, nas quaes o que
brilha nao são os benefícios da guerra, mas as
palmas dos seus martyres, e o que a historia
nos ensina é que a guerra nasce da tyrannia,
ou a gera, que a guerra collide com as
instituições livres, e as destroe, que a guerra
deshumana as almas, e as corrompe, que. a
guerra deschristianiza as sociedades e as
asselvaja, que a guerra divide os povos e
castas e os escraviza, que a guerra attenta
contra Deus e lhe profana o nome, associando
o ás mais horrendas barbarias. As nações que
se dizem organizadas por ella, constituídas
para ella e por ella engrandecidas, sao
machinas de combate, mecanismos de
aggressao, onde na pelle de cada individuo
está mettido o sargento instructor, onde se
reduz a sciencia a um papel diminuído e
subalterno, onde a educação militarista mata a
iniciativa, proscreve o ideal, automatiza a
vida, arregi-
78
PROBLEMAS DE DIREITO
menta a sociedade, imprime a tudo a nota da
dependencia militar, faz da guerra a
verdadeira religião nacional.
A militarização das potencias divide o
mundo em nações de presa e nações de pasto,
umas constituídas para a soberania e a rapina,
outras para a servidão e a carniça. A politica
da guerra é a aggressao organizada quoerens
quem devoret. Mas onde se pronuncia a seu
caracter superlativamente aggressivo é na
guerra preventiva, invenção digna da barbaria
distillada pela cultura. Um paiz declara guerra
a outro, invade-o e devasta-o, embora delle
não haja recebido offensa alguma, e apenas se
defenda contra o invasor depois da invasão.
Mas nem por isso exorbitou. Estava no seu
direito, e muito bem fez; porque lá tinha as
suas razões, para acreditar que, se não se
antecipasse, outros paizes, inimigos seus, lhe
tomariam a deanteira em occupar o territorio
daquelle. E' como se eu me apoderasse da
casa do visinho e a incendiasse, por acreditar
que outro da visinhança, não me apressando
eu em a
INTERNACIONAL.
79
queimar, se me anteciparia em praticar o
mesmo attentado. Essa escusa, entre indivíduos, não livraria o criminoso da responsabilidade e da cadeia, senão da morte.
Mas, entre nações, é a base de uma theoria o
fundamento de uma generalização, a
justificação de uma lei nova.
Quatrocentos e dezeseis annos antes de
Christo, narra Thucydides que Athenas,
debatendo com o povo da pequena ilha de
Meios o dilemma de sujeição ou exterminio,
que lhe impunha, cortou a questão, dizendo : '
Bem sabeis, como nós, que na ordem do
mundo só se fala em direito entre iguaes em
força. Entre fortes e fracos, os fortes fazem o
que podem e os fracos soffrem o que devem."
Na ultima Conferencia de Haya, senhores,
o contrario sustentaram todas as nações
hispano-americanas. Com o maior ardor ali
nos batemos todos pela igualdade jurídica de
todos os Estados soberanos : e tal prestigio
assumiu ali esse principio naquella assembléa
incomparavel, que, por não o acceitar, caiu,
com estrondo, o pro-
80
PROBLEMAS DE DIREITO
jecto de organização da corte de justiça
arbitral, comquanto fórmado pelas grandes
potencias, que depois, quasi todas, o abandonaram, nao o podendo salvar.
E' que os termos do pleito jã não eram os
mesmos que no quinto seculo antes de
Christo, quando a poderosa Athenas discutia
com os ilhéos de Melos.
Quando se fala hoje de Estados pequenos,
são os não inscriptos no rol das grandes
potencias, isto é, todos os Estados mais fracos.
De sorte
que,
além dos
Estados
territorialmente pequenos da Europa, a lista
abrange a America inteira, excep-tuada a
União Norte-Americana e o Domínio do
Canadá. Toda a America) latina, portanto,
entrará, com a Belgica, a Hollanda, a
Escandinavia, a Suissa, Por-tugal, a Grecia, a
Servia, a Bulgaria, a Rumania, o Montenegro,
na lista dessas entidades inferiores, cujo
destino, pela lei de que o poder é o direito, se
acha á mercê dos senhores da força.
Não importa que os pequenos Estados
tenham sido, talvez. ,(o conceito é de Bryce)
INTERNACIONAL.
81
"os mais poderosos e uteis factores no
adeantamento da civilização." Não importa
que a esses pequenos Estados'' deva o mundo
mais do que ás monarchias militantes," desde
Luiz XIV. até hoje. Não importa que a GrãBretanha fosse, dada a sua população, um
pequeno
Estado,
quando
produziu
Shakespeare, Bacon e Milton; como um
pequeno Estado eram os Estados Unidos,
quando produziram Washington e Franklin,
Jefferson e Marshall. Nâo importa que em um
desses dous pequenos Estados se laborasse o
direito commum anglo-saxonio, no outro a
carta da União Americana. Não importa que
em pequenos Estados haja vindo á luz o
Antigo Testamento, os poemas Homericos, a
Divina Comedia, a Renascença Italiana. Não
importa que a Allemanha de Kant e Lessing,
de Goethe e Shiller não fosse mais que um
grupo de principados e cidades livres. Não
importa que a pequenos Estados, como o de
Athenas, o de Florença, o de Weimar esteja
ligada a humanidade por dividas inestimaveis.
Não importa que pequenos Estados
82
PROBLEMAS DE DIREITO
hajam dado á terra espectaculos e lições de
incommensuravel grandeza moral, como o da
emancipação helvetica, ha seiscentos annos, e
o da luta das Províncias Unidas dos Paizes
Baixos contra o colosso da mo-narchia
hespanhola. Não importa que o valor da
Hollanda e o da Belgica, como elementos
essenciaes do equilibrio europeu, esteja
consagrado pelos actos da politica ingleza no
seculo XIV, no seculo XVI, no seculo XVII,
no seculo XVIII, e no seculo XIX,
defendendo nos Paizes Baixos, desde Fellipe
II, Luiz XIV, Napoleão I, até hoje, a liberdade
européa. Não importa o papel dos pequenos
Estados, na America latina, quando a sua
insurreição, no começo do seculo transacto,
atalhando o vôo á Santa-Alliança, tanto
contribuiu para a desoppressão da Europa.
Não importa que entre esses Estados, paizes
haja, como a Republica Argentina, o Chile, o
Brazil, de immensos territorios, grandes populações, riquezas maravilhosas, alta cultura
politica e factos que honram a historia da
especie humana.
INTERNACIONAL.
83
Nada importa; porque só uma consideração
importará : a da sua inferioridade militar, a da
sua insufficiencia guerreira, a da sua
desvantagem em uma comparação de forças
com as grandes nações armadas. Para estas
nenhuma lei existe, segundo a hodierna moral
bellica, a nao ser a de que a força prima ao
direito, a de que o direito é apenas um
accessorio da força. Segundo os magnates do
systema, os pequenos Estados constituem
para a tranquillidade dos grandes um risco
perpetuo; são entre as potencias o pomo da
discordia; dão frequente causa á guerra, e lhe
deparam campo habitual no seu territorio mal
defeso.
Quando foi (a pergunta é de Geffken, que
não tem a suspeição da ser latino) "quando
foi que a Hollanda, a Belgica, ou a Suissa
fomentaram jámais a discordia entre os
Estados visinhos? "Certo que nunca. Mas
La raison du plus fort est toujours la
meilleure.
A fabula de La fontaine encerra em si toda
a evolução contemporanea do direito las
gentes culto. Que vale ao cordeiro
84
PROBLEMAS DE DIREITO
estar bebendo abaixo do lobo, no veio da
corrente, si, a despeito da evidencia, o
appetite do carniceiro voraz o argue de lhe
turvar as aguas?
Treitschke, o mestre de Bernhardi,
considera "uma desgraça que o direito
internacional tivesse por patria, durante tanto
tempo, paizes como a Belgica e a Hollanda."
"Esses paizes," diz elle, "em continuo risco de
ser atacados, teem uma concepção sentimental
dessa materia, e, por isso, a sua tendencia é
appellar para o vencedor em nome da
humanidade, como si taes appellos não fossem
desnaturaes e insensatos, pela contradicção em
que se acham com o poder do Estado."
Aos olhos dos superhomens, que o insigne
professor representa, " a Belgica, sendo um
Estado neutro, é por sua natureza um listado
emasculado." O epitheto é do insigne
historiador. Vêde que tal desvirili-dade nas
legiões do Rei Alberto! Ora, naturalmente,
como, perdendo a virilidade, mudou ipso
facto de sexo, o Estado neutro, precisamente
por ser neutro, variou de
INTERNACIONAL
85
estado pessoal. A condição dos que perderam
a qualidade viril é a de protegidos ou
captivas, como a mulher ou o eunuco. A
noção da neutralidade, pois, já não poderia
ser a que até hoje se tinha por tal. Quando os
Estados poderosos neutralizarem uma nação
culta e livre, não seria para lhe assegurarem a
independencia, mas para a sujeitarem á tutela
dos fortes.
Nada obsta que essa independencia tenha a
fiança de um tratado, e não só de um tratado
especial, mas da convenção geral de Haya,
que declara inviolaveis os territorios neutros.
Nada obsta, porque os tratados são farrapos
de papel. Assignar farrapos de papel foi, pois,
tudo o em que nos estivemos occupando, nas
conferencias de 1899 a 1907, os quarenta e
tantos Estados, que alli sisudamente nos
detivemos. O mundo inteiro se indignou
contra a franqueza da nova doutrina. Mas não
tinha razão. E' uma doutrina sincera. Não
illude a ninguem. E tem o methodo de
compendiar em uma só palavra a immensa
revolução, por que passou, mani-
86
PROBLEMAS DE DIREITO
pulada pelos interesses da guerra, a moral
humana.
Se os tratados são trapos de papel, porque
se consignam em papeis, trapos de papel são
contratos, porque todos em papel se escrevem.
Se, celebrando-se no papel, os tratados, por
isso, não são mais que trapos de papel, mais
que trapos de papel não são tambem as leis,
que no papel se formulam, discretam e
promulgam. Se os tratados, porque recebem
no papel a sua fórma visível, a trapos de papel
se reduzem, as Constituições, que no papel se
paetuam, não passam de trapos de papel.
Trapos de papel maiores ou menores, mas
tudo papel e em trapos. De maneira que todo
o commercio humano, todas as relações da
sociedade, todos os direitos e deveres, a
familia, a patria, a civilização, o Estado, toda
a fabrica do mundo racional, bem lançadas as
contas, outra cousa não é que uma traparia de
papel, valioso ou inutil, conforme se trate de
impor aos fracos ou servir aos fortes.
Menos do que papel é a palavra, porque
INTERNACIONAL
87
é sopro; e todavia se imaginava outr'ora que
ella vincula os reis e os povos, os homens e
os numes, O verbo de Deus, antes de
registado nas Santas Escripturas, o juramento
na sagração dos soberanos, na inauguração
das Constituições, na investidura das
dignidades; no depoimento das testemunhas,
a poesia homerica no canto dos aedos, a
tradição na memoria das gentes, a eloquencia
na voz dos oradores, tudo é palavra, cujo fiat,
na Genesis, criou o mundo, cuja vibração, na
historia, transfórma e revoluciona a terra.
Quando a palavra se transfere da voz ao
papel, cuidava o vulgo ingenuo que ella subia
um gráo na escala da segurança, não porque a
consciencia valha mais escripta do que
falada, mas porque, falada, não deixa na
escripta o rastro da sua authen-ticidade. Dahi
o valor do papel, que não communica a sua
destructibilidade, ao seu conteúdo, antes
recebe do que elle contem a sua
inviolabilidade. Essa a nobreza do papel. No
papel se salvaram todos os monumentos das
letras antigas. 'Nò|
88
PROBLEMAS DE DIREITO
papel se perpetuavam os antigos fóraes dos
municípios livres ... no papel se escreveu a
Magna Carta. No papel fixa o mathematico os
seus calculos, a chimica as suas formulas, a
geographia as suas posições, a astronomia as
suas medidas. No papel é que Leverrier
descobriu Neptuno. Ao papel é que a amizade,
o direito, a honra confiam os seus segredos, as
suas dividas, os seus compromissos. No papel
é que as sciencias, as litteraturas, as
instituições eternizam as suas obras primas, os
seus titulos de estabilidade, os archivos do seu
passado, as garantias do seu porvir. Todo o
universo moral, todo o universo politico, todo
o universo humano assenta, hoje, em trapos de
papel. As ventanias da guerra por elle passam,
e o arrebatam, o dispersam, o somem. Ahi está
porque ella começa incendiando biblio-thecas.
São congeneres do papel, asylos do pó dos
vermes e da intelligencia. A guerra,
entregando-os ás chammas, saneia o globo.
Deus não o creou para o verbo, mas para o
ferro.
INTERNACIONAL.
89
Si houvesse de acatar esses papelejos, esses
papelioos, essa papelagem, a guerra estaria
desalmada. A cada passo o fantasma de um
direito, o tropeço de uma convenção, a
impertinencia de uma garantia. Cedant arma
togae, dizia outr ora o mundo. Mas, hoje, o
que se diz ao mundo; é que cedat jus armis:
ceda o direito á força. E como a força tem a
sua culminação na guerra, a guerra é a lei das
leis, a justiça das justiças, a soberania das
soberanias.
Essa grandeza não tolera a liberdade, nem a
humanidade, nem a honestidade. Si um
individuo repudiasse a sua assignatura em um
contracto legitimo, a titulo de ser um trapo de
papel, ninguem o trataria por homem de bem.
Mas, si uma nação repudiar tratados
solemnes, a titulo de serem papeletes,
ninguem ousará dizer que fez o que n&o
devia. Porque a força é o juiz dos seus
direitos, a guerra é o arbitro dos seus poderes,
e todas as convenções internacionaes
encerram a clausula, subtendida, sempre do
rebus sic stantibus.
90
PROBLEMAS DE DIREITO
Emquanto as circumstancias não mudarem,
isto é, emquanto outra não seja a vontade
soberana do mais forte.
E' pela guerra," diz Bernhardi, 'e só pela
guerra que se póde realizar a expropriação
das raças incompetentes. Domina o mundo a
idéa de que a guerra é um instrumento
politico antiquado, já indigno de povos
adiantados em civilização. Nos outros, nos
não devemos deixar seduzir dessas theorias.
Os tribunaes de arbitramento são perigo, visto
como podem tolher os movimentos ás
potencias envolvidas no caso."
"Raças incompetentes ''! Quaes são
ellas!
As nações desarmadas ou mal armadas. A
competencia ou a incompetencia são as armas
que as dão, ou as tiram. Não está no direito a
competencia, porque o direito é apenas um
expoente do poder. Não está na intelligencia,
porque a intelligencia não é a machina de
matar. Não está na riqueza, porque o mais
rico dos Estados pode ser reduzido a um
cemiterio pelo vendaval de
INTERNACIONAL.
91
uma invasão. Não está nas convenções,
porque o papel não vale senão pelo punho
que o defende. Eis, senhores, os benefícios da
guerra. Não se limita a exterminar as vidas.
Acaba-nos com o senso moral.
No lugar onde elle existia, um hediondo
cancro prolífica as suas ironias monstruosas.
A guerra não é um mal, mas um bem; '' uma
necessidade biologica da mais alta
importancia." Com ella não perde a cultura;
pelo contrario, no desenvolvimento da cultura
a guerra é o maior dos factores." O genero
humano a não deve temer. Longe disso,
"Deus ha de prover a que se renove sempre
essa medicina drastica do genero humano."
As diligencias tendentes á extincção da
guerra não só insensatas, senão tambem
immoraes, se devem estygmatizar como
indignas da humanidade. "Cogitar em
tribunaes de arbitramento é alimentar idéas,
que
representam
uma
presumpçosa
intervenção no domínio das leis da natureza,
e acarretarão, para a especie humana em geral
as consequencias
mais
desastrosas'
Bem
92
PROBLEMAS DE DIREITO
fóra de arruinar os povos, a guerra os
desenvolve e enriquece, pois, a historia inteira
nos ensina que o commercio medra á sombra
da força armada." Bem haja, pois, "o saudavel
egoísmo que dirige ainda a politica da maioria
dos Estados; porquanto graças a elle se
baldarão os esforços envidados para
estabelecer
a
paz,
esforços
extraordinariamente perniciosos," que contrariam "a idealidade, a inevitabilidade, as
bençãos da guerra; estimulo indispensavel ao
desenvolvimento do homem."
Da paz, sim, é do que nos devemos recear; .
porque a paz, se fosse acaso exequível, "nos
conduziria á degeneração geral."
Ella "não deve, nem poderá ser nunca o
objecto da politica de uma nação "; visto
como na guerra consiste "a lei natural, a que
se podem reduzir todas as outras leis da
natureza." Heraclito de Epheso dizia que " a
guerra é a mãe de todas as cousas "; e os
sabios da nossa idade não topam outra
expressão mais digna de resumir a obra
divina. "Os grandes armamentos constituem a
mais necessaria precondição da salubridade
nacional."
INTERNACIONAL.
93
" O fim de tudo e a essencia de tudo, em
um estado, é o poder; e quem não fôr astante
homem, para encarar de resto esta verdade,
renuncie a politica." O mais sublime dever
moral do Estado não é guardar a justiça, nem
sustentar a moral, "é augmentar o seu proprio
poder." Da moralidade das suas acções o
Estado é o unico juiz. "Os direitos
reconhecidos," como os que se estipulam nos
tratados, não são jamais direitos absolutos:
sua origem humana os torna imperfeitos e
variaveis; e condições ha, que não
correspondem á verdade actual das cousas."
"Todo o trabalho em favor da existencia de
uma humanidade collectiva fóra dos limites
dos Estados e nacionalidade é irrealizavel."
"As nações fracas não têm o mesmo
direito de viver que as nações poderosas e
robustas." Eis, senhores, os axiomas da
escola destinada a regenerar o mundo pela
força.
Si esse é o verdadeiro direito publico,
ninguem se poderá queixar de que a guerra
actual tenha dilacerado todas as convenções
94
PROBLEMAS DE DIREITO
de Haya. As convenções de Haya são as mais
solemnes de quantas a historia tem visto, são
os actos juridicos da maior gravidade em que
se tem manifestado reciprocamente a vontade
livre dos Estados. Porque nunca se celebrou
conselho de nações tão numeroso quanto esse,
onde poderemos dizer que se reuniram, em
numero de mais de quarenta, todos os
governos regulares, nunca se debateram tão
attentamente em commum entre Estados os
seus mutuos direitos na paz e na guerra;
nunca se deliberou com tanta luz, com tanta
isenção, com tanta harmonia sobre essas
questões supremas, nunca se erigiu ás leis da
paz e da guerra uma construcçâo tão vasta,
solida e excelsa.
Dessa construcção, porém, o conflicto que
ora rasga as entranhas da Europa não deixou
pedra sobre pedra.
Os factos se accumulam, descompassados,
e tremendos. Como conciliar as convenções
de Haya com a violação do territorio de
nações neutras, invadido, occupado, talado,
annexado? Com o uso de gases
INTERNACIONAL.
95
asphyxiantes e jactos de petroleo inflamnado? Com o emprego de projectis
explosivos e o envenenamento de fontes?
Com o abuso da bandeira parlamentar e dos
signaes da Cruz Vermelha? Com a imposição
de requisições e indemnizações exorbitantes
ás regiões occupadas? Com o bombardeio de
povoados, cidades, villas, predios e vivendas
indefesas ? Com o fogo dirigido contra
edifícios consagrados aos cultos, ás artes, ás
sciencias, á caridade, monumentos historicos,
hospitaes
e
enfermarias?
Com
o
constrangimento dos prisioneiros a tomar
parte nas operações militares contra a sua
patria, ou a servir de escudo vivo ao inimigo?
Com o systema de obrigar os refens-a
responderem por actos de hostilidade, a que
são alheios, e que não podem evitar ? Com as
penas
collectivas,
as
contribuições
esmagadoras, os exodos forçados, as
exterminações implacaveis de populações
inteiras, a pretexto de factos individuaes, por
que não são responsaveis? Com a destruição
desnecessaria de propriedades particulares e
96
PROBLEMAS DE DIREITO
publicas, de bairros, aldeias e cidades inteiras,
de estabelecimentos votados á religião, á
beneficiencia, ao ensino, de mercados,
museus, officinas indus-triaes, obras artísticas
e laboratorios de saber, a titulo de castigos
geraes? Com a pilhagem e o incendio, a
expatriação e a deportação de habitantes
innocentes, sem consideração de sexo, idade,
condição ou soffrimento? Com o fuzilamento
de prisioneiros ou feridos, e a execução em
grosso de pessoas não combatentes? Com o
ataque a navios-hospitaes, e a disseminação de
minas fluctuantes pelo alto mar? Com a
ampliação arbitraria da zona maritima da
guerra? Com a destruição de barcos de pesca?
Com o torpedeamento o afundamento de vasos
neutros mercantes, e sacrifício das suas
equipagens e dos seus passageiros, sem aviso,
nem soccorro, ás centenas, aos milhares? Não
me occupo, senhores, com a politica, mas com
o aspecto juridico desses acontecimentos. Não
é o Embaixador do Brazil que vós recebestes
e elegestes
INTERNACIONAL.
97
membro honorario do vosso corpo docente; é
unicamente o jurista. Mas, para trazer o
espirito absorto nestas questões, accresce
ainda ao jurista a consideração da parte,
modesta mas notoria, da parte assídua,
laboriosa, intensa, que tomou nos trabalhos
da ultima conferencia da Paz, e o cargo em
que, ha nove annos, está, de membro da Côrte
Permanente de Arbitramento. O meu caso
vem a ser o do juiz que pergunta pelo codigo
das leis cujas normas póde ter de applicar, e
do legislador que
estremece
pelas
instituições, em cuja elaboração cooperou, o
de um signatario desses contractos que busca
saber se entendia o que fez, se não se observa
o que ajustou, se contribuiu para melhorar os
seus semelhantes, ou se para os illudir e
fraudar.
A especie, assim considerada, suscita aos
meus olhos uma questão de consciencia.
Qual será, senhores, a situação dos que,
tendo concertado e subscripto essas convenções, as vêem hoje rotas e conculcadas?
Ante esse repudio total delias, só terão o
direito de se magoar e clamar aquelles
98
PROBLEMAS DE DIREITO
contra quem directamente se perpetram as
transgressões? Ou, pelo contrario, da
communhão dos contrahentes na elaboração e
na assignatura decorrerão para todos as
obrigações e os direitos de uma verdadeira
solidariedade ?
As convenções de Haya, tão bem o sabeis
vós, senhores, quanto eu, não fóram celebradas separadamente entre nação e nação,
duas a duas, em tratados bilateraes. Si o
fossem, as outras poderiam cruzar os braços.
Cada grupo teria a sua situação jurídica
distincta e indifferente aos outros. Res tua
agitur, non nostra.
Mas, bem diversamente, essas convenções
internacionaes se estipularam entre todas
nações, e todas as nações em um convenio
universal. Cada uma, portanto, das infracções
dessa concordia geral interessa a todos os
contractantes, e cada um dos seus signatarios
recebe na sua individualidade, em cheio, o
golpe desfechado em qualquer dos outros.
Nenhum delles é ferido individualmente.
Todos o são virtual e simultaneamente, na
communhão
INTERNACIONAL.
98
de compromissos e direitos que entre todos se
instituiu.
Nem é tudo. Evidentemente, senhores,
quebrada a inviolabilidade jurídica de um
pacto desta natureza, prova um ou mais
dentre os pactuantes, com o silencio, e, pelo
"silencio, o implícito assentimento dos
demais (quis tacet, consentire videtur), que
annullada está ella a respeito de todos os
outros. Os que emmudecerem terão sanccionado caladamente o attentado, terão
renunciado a invocar amanha, em seu proveito, a garantia, cuja fragilidade hoje
admittiram, terão, portanto, convindo na
fallencia da situação contractual, em que eram
compartes. Com o desacato que soffreu sem
reclamação dos cointeressados, o convenio
decahirá inteiramente da sua autoridade. Era
um systema de garantias, que se organizara e
sagrara. Mas, na primeira occasião de exercer
o seu imperio tutelar, e mostrar a sua efficacia
protectora, uns o espezinharam e rasgaram
com o maior desprezo, outros o viram romper
e pisar, sem o menor abalo. Maltratado e
100
PROBLEMAS DE DIREITO
enxovalhado assim, o venerando instrumento
desse acto juridico sem par na sua grandeza
moral valerá tão pouco amanhã, para abrigar
os que hoje o não defendem, quanto na
actualidade está valendo para conter os que
agora o não respeitam.
Na ultima conferencia de Haya a situação
da maior responsabilidade coube ao
Presidente dos Estados Unidos, o Sr.
Theodoro Roosevelt, que, accedendo á
iniciativa do Congresso pacifista de 1904,
assumiu a de convidar as outras nações para a
assembléa reunida na capital da Hollanda, e
sobre os trabalhos dessa assembléa exerceu a
influencia mais activa. Ninguem havia,
portanto, mais autorizado para interpretar o
espirito e alcance dos compromissos ali
estipulados, que o illustre ex-Presidente da
grande Republica norte-americana.
Pois é elle, senhores, quem, escrevendo no
New York Times, aos 8 de novembro do anno
atrasado, assim nos esclarece acerca desses
pontos : " Os Estados Unidos e todas as
grandes potencias ora em guerra, fóram
INTERNACIONAL.
101
partes no Codigo Internacional criado pelos
regulamentos annexos ás convenções celebradas em Haya em 1899 e 1907. Como
presidente da Republica, obrando no caracter
de chefe do governo, e de accôrdo com os
desejos unanimes do nosso povo, ordenei que
se oppuzesse a essas convenções a assignatura dos Estados Unidos. Ora, eu não
consentiria, de modo mais categorico o
declaro, que se consummasse um tal farça, se
me entrasse na cabeça que o governo do meu
paiz se não considerasse obrigado a tudo
quanto lhe estivesse ao alcance, para que as
normas, em cuja determinação teve parte,
recebessem a devida execução, quando
occorresse a emergencia de serem executadas.
Não posso conceber que nunca mais uma
nação que se estima a si mesmo, entenda valer
a pena assignar outras convenções de Haya,
se nem os neutros de tamanho poder como os
Estados Unidos lhes dão a importancia de
reclamar contra a sua violação manifesta."
Demos, porém, senhores, como eliminadas
as convenções de Haya, e supponhamos que
102
PROBLEMAS DE DIREITO
nada temos, as nações não belligerantea, com
a liquidação de contas entre os bellige-rantes
sobre as transgressões, reaes ou imaginarias,
das leis de guerra. Inda assim, um ponto ha
em que a indifíerença dos neutros não poderá
deixar de cessar; é, pelo menos, quanto ás
violações do direito dos neutros, commettidas
pelos bellige-rantes. Todo e qualquer acto
dessa natureza constituo uma negação geral
dos direitos da neutralidade, e, conseguintemente, interessa a todos os neutros.
Nos tempos de hoje, senhores, com a
internacionalização crescente dos interesses
nacionaes, com a permeação mutua que as
nacionalidades exercem umas nas outras, com
a interdependencia essencial em que vivem
umas das outras as nações mais remotas, a
guerra já não se póde insular nos Estados
entre quem se abre o conflicto. Suas
commoções, seus estragos, suas miserias
repercutem ao longe, sobre o credito, o
commercio, a fortuna dos povos mais
distantes. E' mister, pois, que a neutralidade
receba uma expressão, uma
INTERNACIONAL.
103
natureza, um papel diverso dos de outrora. A
sua noção moderna já não póde ser a antiga.
Até onde a concepção da neutralidade,
pondera um escriptor norte-americano, até
onde essa concepção estriba no sup-posto de
que as nações não-participantes em uma
guerra nella nada tem que vêr, nem estão
obrigadas a cousa alguma para com os
belligerantes, se se podem isolar dos seus
effeitos, essa concepção assenta em uma série
de ficções. Pela expansão das suas relações
mutuas, e com o argumento da reciproca
dependencia entre ellas, as nações
constituem, de facto, uma sociedade, e,
reconhecidas as consequencias que nesse
facto se envolvem, já não é possível a neutralidade em sentido real, no caso de uma
grande guerra."
Nas condições actuaes do mundo, não ha
meio, com effeito, para os neutros, "de se
esquivarem a pagar duro tributo por guerras,
em que não teem parte nem responsabilidade." As operações militares, com o
bloqueio, o exercicio do direito de visita,
104
PROBLEMAS DE DIREITO
a repressão do contrabando, sejam quaes
forem as reservas e attenções com que procedam os belligerantes, hão de magoar e
desgostar os neutros. Por outro lado, o
commercio de armas e munições bellicas,
exercido abertamente por nações neutras com
uma das partes combatentes em detrimento da
outra, estabelece differenças incontestaveis na
maneira
de
tratar
os
belligerantes.
Theoricamente a lei é de igualdade. Na pratica
a desigualdade é flagrante. Pode succeder,
como tem succedido, que, dadas as
circumstancias da luta, esse concurso da
industria dos neutros seja decisivo para a
victoria de um dos lados; e, dest'arte, paizes
pelos quaes não se considera nem se deve
considerar violada a neutralidade, contribuem
directamente para a superioridade militar de
uma das partes belligerantes, em prejuízo da
outra.
Daqui se concluirá que se devam refórmar
as leis de neutralidade, para vedar o commercio particular de armas entre os neutros e
os belligerantes? Não; porque, para
chegarmos ahi á igualdade real na obser-
INTERNACIONAL.
105
vancia das leis da neutralidade, necessario
seria cortar, não sómente o commercio de
artefactos militares, mas todo o commercio
entre belligerantes e neutros. De outro modo,
assegurado esse commercio a uns pelo
domínio dos mares e tolhido a outros pelo
bloqueio, o simples trafego de mantimentos,
que vão abastecer um dos belligerantes, não
abastecendo o outro, póde actuar decisivamente para o aniquilamento dos bloqueados e
o triumpho dos bloqueantes. Mas, levada até
ao extremo de suspender inteiramente o
commercio com todas as nações em guerra,
para estabelecer entre todas um pé de igualdade absoluta, a neutralidade importaria na
abolição do bloqueio o que é absurdo;
porquanto seria desarmar, na guerra naval, os
combatentes
das
suas
superioridades
naturaes. Toda a neutralidade, pois, hoje,
encerra em si restricçoes e differenças que
negam a neutralidade.
Demais, instituída a prohibição absoluta do
commercio de armas, o que lograva era
unicamente assegurar á paz armada as conspirações da ambição militar, resultados
ainda mais certos.
106
PROBLEMAS DE DIREITO
As nações pacificas seriam, assim mais
facilmente victimas da sua desambiçâo, da sua
boa fé, da sua confiança na honra dos tratados.
Não se poderiam valer, contra a guerra
inesperada e subita, do recurso nos mercados
productores de armamentos. Todas, portanto,
se veriam obrigadas a dar-lhe, na paz, as
maiores proporções extremas, para se
acautelarem das surprezas da guerra; com o
que a paz viria a tornar-se cada vez mais
inevitavelmente um estado virtual de guerra.
Não restaria então outra escolha na vida
internacional, sinão entre guerra e guerra;
guerra apparelhada, ou guerra declarada,
guerra imminente, ou guerra presente.
Não é, pois, nessa declaração absurda que
se hão de alterar as regras da neutralidade;
porque seria alteral-as em beneficio da
militarização do mundo. A refórma a que
urge submettel-as deve seguir a orientação
opposta: a orientação pacificadora da justiça
internacional. Entre os que destroem a lei e os
que a observam não ha neutralidade
admissível.
Neutralidade
INTERNACIONAL
107
não quer dizer impassibilidade : quer dizer
imparcialidade; e não ha imparcialidade entre
o direito e a justiça. Quando entre ella e elle
existem
normas
escriptas,
que
os
discriminam, pugnar pela observancia dessas
normas não é quebrar a neutralidade : é
pratical-a. Desde que a violencia pisa aos pés
arrogantemente o codigo escripto, cruzar os
braços é servil-a. Os tribunaes, a opinião
publica, a consciencia não são neutros entre a
lei e o crime. Em presença da insurreição
armada contra o direito positivo, a
neutralidade não póde ser a abstenção, não
póde ser a indifferença, não póde ser a
insensibilidade, não póde ser o silencio.
Se o fosse, a obra de Haya não seria
sómente um capricho futil: seria uma cilada
atroz. Porque, descansados no sup-posto
valor dos seus dictames como limites á força
e garantias do direito, os povos se entregaram
á espectativa do regimen juridico alli
cuidadosamente regulado, para accordarem
de repente ao troar dos canhões, que os
despedaçaram.
108
PROBLEMAS DE DIREITO
Os Estados soberanos não se reuniram
durante longos nezes na capital da Hollanda
para examinar didacticamente os problemas
do direito internacional, e redigir em
collaboração um manual theorico do direito
das gentes. A Conferencia da Paz não foi uma
academia de sabios, ou um congresso de
professores e jurisconsultos, convocados para
discutir methodos e doutrinas: foi a assembléa
plenaria das nações, onde se converteram os
usos fluc tuantes do direito consuetudinario
em textos fórmaes de legislação escripta, sob a
fiança mutua de um contracto solemne. Desde
então, os governos que o assignaram, se não
se constituíram em tribunal de justiça, para
sujeitar os transgressores á acção coercitiva de
sentenças executorias, contraíram, pelo
menos, a obrigação de protestar contra as
transgressões.
Essa é, portanto, uma situação inquestionavel,
que os Estados firmaram pelas
convenções de Haya. Esse é um direito que a
neutralidade, mediante ellas, conquistou, e um
dever, a que por ella se sub-
INTERNACIONAL
109
metteu : o direito e o dever de constituir um
tribunal de consciencia, uma instancia de
opinião, uma alçada moral sobre os Estados
em guerra, para lhes julgar os actos, e lhes
reprovar os excessos. A neutralidade inerte e
surdamuda cedeu a vez á neutralidade
vigilante a judicativa.
Renunciando a essas funcções, tão benignas, tão salutares, tão conciliadoras, a neutralidade actual commetteria o mais lamentavel dos erros: immolaria ao egoismo de
uma commodidade passageira, de uma
tranquillidade momentanea e apparente, o
futuro de toda a especie humana, os interesses
permanentes
de
todos
os
Estados.
Desmoralizando a obra das cortes da civilização celebrada em Haya, inutilisaria, de
agora para sempre, todos os tentamens
ulteriores de organização da legalidade
internacional; e deixando triumphar sem
sancção alguma, todas as enormidades, todas
as absurdidades, todas as monstruosidades
concebiveis contra a lei consagrada,
incorreria em uma cumplicidade excepcionalmente grave, se não em verdadeira coau-
110
PROBLEMAS DE DIREITO
toria com os réos dessa anarchia estupenda
nas relações entre os Estados.
Porque, senhores, é immensuravel, é
incalculavel, é inestimavel a somma de poder,
que esse consenso das nações neutras
representa, a intensidade e a efficacia de
pressão, com que esse poder actuaria no
procedimento dos belligerantes. Se. logo ás
primeiras explosões de revolta insana contra o
direito constituído nas convenções de Haya, os
signatarios dessas convenções levantessem o
clamor publico da censura universal contra o
arrojo das paixões de-sembridadas e
embriagadas no delirio do orgulho, a torrente
da desordem ter-se-hia moderado, si não
recuasse, e não continúaríamos a ver
submergir-se a civilização de um continente
inteiro nesse diluvio da soberba, cujas
cataractas alagam a Europa como vagalhões
de pampeiro em praia rasa.
Ainda não passou de todo a occasião, ainda
não seria de todo tarde para esse movimento
reconciliatorio da neutralidade com a justiça.
Se as nações christãs, as nações humanas que
a guerra não enlaçou
INTERNACIONAL
111
no seu redomoinho, não espertarem do abstencionismo, a que os seus escrupulos as
condemnaram, estou por saber quem afinal de
contas, mais terá peccado contra Deus, e
maior mal terá causado: se os que immergiram o presente nos horrores da mais
medonha das guerras, se os que, deixando
apagar-se na consciencia dos povos as
ultimas esperanças no direito, houverem
mergulhado o porvir na mais escura das
noites. .
A imparcialidade na justiça, a solidariedade
no direito, a communhão na mantença das
leis escriptas da communhão : eis a nova
neutralidade que, se deriva positivamente das
conferencias de Haya, não decorre menos
imperativamente das condições sociaes do
mundo moderno. A neutralidade recebeu
nova missão, e tem agora uma definição
nova. Não é a expressão glacial do egoimo. E'
a reivindicação moral da lei escripta. Será,
pois, a neutralidade armada ? Não: deve ser a
neutralidade organizada. Organizada, não
com a espada, para usar da força, mas com a
lei,
112
PROBLEMAS DE DIREITO
para impôr o direito. O direito não se
compõe sómente com o peso dos exercitos.
Tambem se impõe, e melhor, com a pressão
dos povos.
Indubitavelmente,
forças
capazes
de
organização ha maiores e mais certas no seu
resultado que as forças militares. São as forças
economicas e as forças sociaes, com que as
forças de força não podem lutar. E' o que se
sente nos proprios actos dos belligerantes,
nessa anciedade, com que todos cortejam a
opinião dos Estados Unidos, e, ainda, a das
outras nações americanas, de muito menos
importancia militar que a grande Republica do
Norte. Porque todo esse empenho em conciliar
a boa vontade e as sympathias do Novo
Mundo? Simplesmente para não magoar
sentimentos, atráz dos quaes não se ergue a
imminencia da guerra. Os Estados em guerra
temem o mau juizo do universo, porque a sua
reprovação poderia traduzir-se em elementos
de resistencia desastrosos aos intuitos que
operaram a declaração deste conflicto : a
expansão commercial e a
INTERNACIONAL.
113
infiltração economica, a immigração ultramarina e a conquista dos mercados.
Quando se pretende que a civilização
assenta, em ultima alçada, na força, policial
ou militar, não se adverte em que o exercito e
policia, eliminada a lei que os mantem, não
existiriam, ou teriam ajuntamentos informes,
anarchicos e ingovernaveis. Quem sujeita as
fileiras á docilidade? Quem adscreve a
oficialidade á jerarchia? Quem assegura a
obediencia das massas armadas ao mando
supremo de um homem ? Qual, em summa, o
elemento compulsivo, a que se move o poder
das armas? A fé jurada, os textos escriptos, a
certeza de um regimen commum a todos, o
contracto de associação, de organização, de
sujeição a que todos se consideram
vinculados. Remova-se esta base, diz um
americano, '' e não haverá differença entre os
Estados Unidos e o Mexico ou o Haiti." Não
porque os norte-americanos sejam mais
militares que se preservam de certos defeitos
da civilização sul-americana. E' justamente
por serem menos militares.
114
PROBLEMAS DE DIREITO
Já se disse que a força é quem reivindica os
direitos da Belgica. Mas quem poz a força em
movimento? Quem deliberou á Inglaterra a
correr em soccorro dos belgas ? Um influxo
do espirito, uma cousa moral, uma idéa: a
tradição da santidade dos tratados, a theoria
das obrigações interna-cionaes, o senso de um
contracto
existente.
A
noção
de
contractualidade, mais ou menos juridica,
mais ou menos moral, está nos fundamentos
de todas as associações humanas. Sem ella,
nem mesmo no crime pode haver
sociabilidade. Contestado sempre como
inexequivel entre Estados soberanos, o
principio de mutua dependencia social, que o
liga, vae, todavia, demonstrando, cada vez
mais, a sua realidade e o seu
desenvolvimento. O commer-cio não é, como
irreflectidamente se acredita, uma origem de
rivalidades aggressivas entre as nações. A lei
predominante na existencia delias é, presentemente, a cooperação, dia a dia, mais
intensa, cooperação que nas relações commerciaes tem o maior dos seus factores; e
INTERNACIONAL.
115
esse factor conduz sensivelmente o mundo
para uma sociedade internacional.
A guerra actual evidenciou que, seja qual
fôr o poder e grandeza de um Estado,
circumscripto elle aos seus proprios recursos,
não poderá nem ter uma posição de
autoridade no mundo, nem contar com a
propria segurança. Cada um dos paizes
alliados, entregue exclusivamente ás suas
forças, estaria perdido. Nenhum delles
resistiria á portentosa concentração de
energias organizadas, que a Europa central
accumulára contra a Europa saxonia, a
Europa latina e a Europa slava. A coassociação desses tres elementos europeus foi a
salvação de cada um delles e de todos, no
choque gigantesco a que, ha dois annos,
vacilla o antigo continente. Tambem, do outro
lado, nenhuma das potencias do grupo austrogermanico, limitada aos seus meios, arrastaria
o conflicto, a despeito das maravilhas de
organização militar accumuladas em quasi
meio seculo de absorpção de toda a vitalidade
nacional na cultura da guerra.
Essas vantagens amontoadas pelos titães
116
PROBLEMAS DE DIREITO
da força durante quarenta e cinco annos de
aguerração ininterrupta, não levaram em conta
um elemento moral, com que, em taes
calculos, se não costumam contar: a opinião
do mundo, isto é, a consciencia da
humanidade, que nunoa, em toda a historia do
homem, se pronunciou com tamanha
grandeza, com tamanha intensidade, com
tamanha soberania.
A confiança absoluta na certeza da vic-toria
pela excellencia dos armamentos, pela
incubação da guerra na paz, não surtiu o exito
esperado; e do meio das batalhas, das
entranhas do sólo revolvido pelos canhões,
dos estupendos morticínios em que se alastra
a safra da morte, desses abysmos de miseria e
horrores, de luto e pranto; de gemidos e
torturas; de assolação e ruínas, o olhar do
crente, do philosopho, do homem de Estado
sente vir surgindo uma força ignorada, o
principio de um mundo novo, a regeneração
da terra pela intelligencia do ideal christão.
A imagem ainda mal definida assume
fórmas diversas mais ou menos bellas, mais
INTERNACIONAL
117
ou menos consoladoras, mais ou menos
precisas; mais ou menos praticas, segundo a
luz a que os olhos de cada observador
attentam no phenomeno singular. Para uns
seria a união das nações democratizadas, no
seio de uma vasta federação, onde as
soberanias convivam, renunciando unicamente os elementos essenciaes á harmonia
internacional. Para outros é a constituição
desse tribunal das potencias, que o Sr.
Roosevelt esboçava, ha dous annos, com a
base assentada no convenio commum de lhe
sustentarem executivamente os julgados.
Alguns, ainda, anteveem a inauguração de um
systema, no qual os Estados soberanos se
obriguem, por convenções praticamente
garantidas, a não entregar os seus litígios de
qualquer natureza á decisão das armas, antes
de os haver submettido ao exame de uma
junta internacional. Outros, enfim, menos
adeantados no vôo das conjecturas, enxergam
a barreira ás inundações da violencia militar
na opposição dos neutros ás exorbitancias dos
poderes belligerantes. No meio dessas
divergencias, porém, um
118
PROBLEMAS DE DIREITO
elemento ha commum a todas as opiniões : o
sentimento de que as sociedades civilizadas
não podem continúar á mercê dos interesses
immoraes e desorganizadores da força. Não
são os governos democratizados os que
turbam a paz do mundo. Os povos amam o
trabalho, estremecem pela justiça, confiam na
palavra, teem no mais alto gráo o instincto da
moralidade, aborrecem as instituições
oppressivas, sympathizam com o direito dos
fracos. A democracia e a liberdade são
pacificas e conservadoras. As castas, as
ambições dynasticas, os regimens arbitrarios é
que promovem a zizania, a malevolencia e a
desharmonia entre os Estados.
A guerra
actual seria impossível,
se os povos, e não o direito divino das corôas,
dominassem a politica internacional.
Mas esse poder, inconsciente e inerme como
as grandes forças da natureza, entra agora em
scena com toda a energia da lei irresistível
que elle representa. Se as instituições livres,
as instituições parlamentares e as instituições
representativas não forem esmagadas nesta
campanha, a
INTERNACIONAL.
119
Europa ha de ser restituída ao domínio do seu
direito, os pequenos Estados recuperarão a
sua integridade, as nacionalidades captivas
resurgirão emancipadas, o movimento dos
povos
libertos
levantará
muralhas
insuperaveis ao espirito de conquista.
Os povos já se não illudem com os famosos
qualificativos de "resultado necessario,"
"imperativo historico," ou "intervenção da
Providencia," com que se entrajam no manto
de santidade as infernaes hecatombes
humanas, em cuja orgia de sangue se apascentam as guerras diabolicas de hoje, guerras
onde a sciencia, servindo aos appe-tites da
furia militar, multiplica ao rancor e á cobiça,
nas mãos do homem, a potencia homicida. Os
povos sabem que as guerras, em nossos dias,
nem sempre são resultados espontaneos de
causas sociaes. Ordinariamente são actos de
vontade,
resoluções
individuaes,
amadurecidas no arbítrio dos potentados,
encaminhadas pela diplomacia secreta, e
rebuçadas pela mentira politica na linguagem
dos grandes sentimentos de
120
PROBLEMAS DE DIREITO
honra, direito e salvação nacional. A
catastrophe actual, ha quasi dous annos lhes
agita aos olhos o facho dessa evidencia,
accelerando com ella a democratização dos
governos, o advento das nações á posse dos
seus destinos e a comprehensão dos vínculos
sociaes que entrelaçam uns com os outros os
varios ramos da civilização christã.
A facilidade e a brutalidade com que se
metteram debaixo dos pés da politica de
conquista os compromissos de Haya, parecendo aniquillar em uma catastrophe irremediável o principio de um regimen juridico
entre os Estados, não vieram senão ensinar os
povos a reforçar as garantias da sua
tranquilidade, buscando novas sancções á
moralidade internacional. Esta pavorosa e
phantastica subversão das leis estabelecidas
na magna carta da paz e da guerra, descobriu
em toda a sua hediondez a natureza das
influencias, á sombra das quaes se conspiram
estes crimes contra a humanidade, e ha de
levantar,
no
espirito
dos
povos
escarmentados, uma reacção irre-
INTERNACIONAL.
121
sistivel contra o predomínio dessas forças
malfazejas. Os amigos do direito das gentes
não temos, pois, que desanimar da sua
utilidade : o que nos cumpre é cavar-lhe os
alicerces mais fundo. "Not to despair but to
dig deeper for its foundations."
E' uma realidade obvia que as nações, no
sentido economico já constituem uma sociedade. Para que de uma sociedade pelos
interesses mercantis, pelos interesses industriaes, pelos interesses agrícolas, pelos
interesses financeiros, passe ella a ser uma
sociedade constituída moral e politicamente,
para
esse
auspicioso
resultado
as
circumstancias deste cataclismo estão concorrendo com um poder incontrastavel. Essas
circumstancias ergueram a opinião publica,
nos dous continentes, daquelles interesses
para os interesses ainda mais altos da justiça
universal, em que os outros assentam, e que
se não podem consignar seguros, emquanto
se não criar uma legalidade internacional com
as suas sancções indispensaveis.
Romperam-se tratados, arvoraram-se
122
PROBLEMAS DE DIREITO
doutrinas funestas á existencia dos contractos
entre Estados, escogitaram-se requintes de
malignidade nos meios de guerra prohibidos,
nivelaram-se as populações não combatentes
com os exercitos em armas, para autorizar
essa caçada ímpia, desencadeada contra a
propriedade, a honra e a vida humana. Dirieis
que o mal tragou de uma vez o bem. Dirieis
que no vortice dessa tormenta desappareceu,
expirou o direito das gentes. E comtudo, esse
direito não pereceu. E pur si muove. Caiu nos
campos de batalha, para se reerguer na
consciencia humana, de onde ha de vir,
restaurado, a reinar e reconstruir o mundo. E'
elle quem está qualificando, nos factos desta
guerra, as acções dos belliger-antes e as
inacções dos neutros; elle quem já impoz aos
attentados inconcebíveis desta guerra, os seus
nefandos nomes; elle quem, depois desta
guerra, ha de vir a julgar os vivos e os mortos,
separando os martyres dos perversos, os
heróes dos malfeitores; elle quem, ao
alvorecer da paz almejada, presidirá aos
congressos onde se ha de
INTERNACIONAL
123
resolver sobre a causa do mundo; elle quem,
nas convenções dessa liquidação final,
definirá e garantirá o fóral da civilização
moderna; elle quem sepultará em uma condemnação irrevogavel as heresias do imperialismo e do militarismo; elle quem reintegrará, nas relações entre as potencias e as leis
da fidelidade, a palavra empenhada da
lealdade aos meios de hostilizar o inimigo, da
protecção aos fracos, do respeito aos inermes,
da igualdade jurídica dos Estados:
A esse desideratum salvador e necessario,
a liga dos preconceitos e interesses oppõe a
exaggeração actual das idéas de independencia e soberania. Mas essas noções, como a
noção de neutralidade, teem de passar pela
modificação irrecusavel que o bom senso lhes
dicta. Os povos não são menos independentes, nem os Estados menos soberanos,
porque renunciem ao direito insensato de se
odiarem e destruírem, de se acom-metterem e
devorarem, submettendo os seus litígios a
uma justiça constituída pela sua escolha, do
mesmo modo como os indivíduos
124
PROBLEMAS DE DIREITO
não são menos livres e sui juris, por se não
lhes reconhecer o direito bestial de se aggredirem e trucidarem, de se pilharem e
assassinarem, sem responder aos tribunaes
estabelecidos pelas leis de cada paiz. Pelo
contrario, essas apparentes limitações da
liberdade e da soberania, são as condições
essenciaes e as garantias impreteriveis da
soberania e da liberdade; porquanto, sem
ellas, a liberdade se perde nas convulsões da
desordem, e a soberania se condemna aos
azares da guerra.
A America, senhores, não pode encolher os
hombros de desdem ao curso destas questões,
embora o theatro onde ellas presentemente se
agitam seja o do outro continente. Os oceanos
que nos circumdam não nos insulam moral,
jurídica e politicamente do resto do globo. Da
cordilheira em que a natureza deu a sua
columna vertebral a este corpo gigantesco,
desde as montanhas Rochosas até aos Andes,
desde a California até á Patagonia o egoismo
dos homens não lograria extrahir massas
bastante vastas de granito para cercar de uma
impenetravel
INTERNACIONAL.
125
muralha chineza o Novo Mundo. Correntes
mysteriosas, profundas e indestructiveis
como essas que atravessam continúamente os
mares, transportando nas suas aguas o calor
de um ao outro hemispherio, entretem nas
relações intellectuaes, economicas e politicas
dos Estados a communhão dos interesses,
tendencias e sentimentos.
Nunca essa identidade intima entre os
destinos das duas metades do genero humano
se demonstrou com circumstancias mais
concludentes do que no correr desta guerra.
Cada pulsação que entumece as arterias
européas vem latejar immediata-mente nas
nossas. Si fosse possível que a Europa se
extinguisse pelo extermínio das suas raças,
ou pelo sossobro definitivo da sua
civilisação, os membros, conservados aqui,
desse immenso organismo, que hoje abrange
todas as regiões da esphera terrestre, se
reduziriam, durante seculos e seculos, a um
mallogrado troço paraplegico e decadente da
especie humana, como esses decepados, cujo
corpo a mutilação desmedra e cujo cerebro se
atrophia pela insufficien-
126
PROBLEMAS DE DIREITO
cia de uma circulação prejudicada com a
eliminação de orgãos necessarios a uma
actividade normal. Semelhantemente a Europa
receberia um golpe mortal no seu
desenvolvimento, si a America fosse dormir
debaixo das ondas ao lado da Atlantide
sumida, ou os seus habitantes voltassem á
existencia selvagem dos aborígenes que
receberam os seus descobridores.
A bandeira do nacionalismo, do chauvinismo, do jingoismo, desfraldada por certos
patriotas, alguns, aliás, muito illus-tres, muito
dignos e muito eloquentes, é uma bandeira de
egoísmo, desconfiança e retrocesso, que não
resolve nada e nada garante.
A America tem nas veias o sangue, a
intelligencia e a riqueza dos seus antepassados, que não são os apaches, os
Guaranys ou os africanos, mas inglezes, e os
iberos, os saxonios e os latinos cuja
substancia vivente, cujas tradições, cujas
idéas, cujos capitaes nos geraram, nos
criaram, nos educaram, nos opulentaram, até
sermos o que hoje somos. Ao jingoismo
guerreador se oppõem, nos Estados Unidos,
INTERNACIONAL.
127
duzentos e cíncoenta annos de puritanismo, e,
no resto da America, um seculo inteiro de
experiencia do flagello militar sob as variadas fórmas do caudilhismo e da anarchia. O
direito e a liberdade fizeram a America do
Norte. De liberdade e direito são os bons
exemplos com os quaes ella affirma a sua
superioridade. No seu direito e sua liberdade
é que a America do Sul póde encontrar
modelos. Com essa liberdade e esse direito é
que ao grande exemplar da politica
americana se offerece agora a missão de
actuar na politica européa, levando, sob a
influencia da sua attracção jurídica e moral,
em torno de si as nações latino-americanas,
como astros gravitantes ao redor de um
grande ideal, para as regiões da paz e da
justiça.
A vocação, pois, que para este continente
se está delineando, não é nem a de se retrahir na pendencia travada além entre a
civilização e a militarização do mundo, nem
grandes armamentos nas ruínas de uma
guerra por elles imposta. Onde essa vocação
está é em procurar assumir a
128
PROBLEMAS DE DIREITO
iniciativa e contribuir influentemente para a
constituição do novo systema de vida
internacional, pela associação ou approximação das nações, mediante um regimen que
substitua a lei da guerra pela da justiça. Não
se evita a guerra preparando a guerra. Não se
obtem a paz, sinão apparelhando a paz. Si vis
pacem, para pacem.
O symbolo do militarismo sequestra os
povos, para os supplantar. Divide et impera.
Os mandamentos do christianismo unem as
nações, para as dirigir.
Entzwei und gebiet! Tiichtig Wort.
Verein und leit! Besser Hort.
Quem tem razão não é Machiavel, é Goethe,
que Nietsche repudia.
Se a distancia e a differença de meio nos
alongam da Europa, abrigando-nos das
paixões e agonia da guerra, seria absurdo; que
seja para nos contaminarmos das idéas a que
a guerra se deve, em vez de assumirmos o
papel que as circumstancias nos reservam, de
elemento activo na creação de um mundo
internacional mais bem organizado.
INTERNACIONAL.
129
A America, senhores, já tem no rumo deste
oriente os títulos de precursora. Antes das
conferencias de Haya, em 1899 e 1907, antes
da Declaração de Bruxellas, em 1901, antes
da Declaração de S. Peters-burgo, em 1868,
antes da Convenção de Genebra, em 1864, já
o Governo dos Estados Unidos da America,
nas suas Instrucções para o serviço dos
Exercitos em campanha, articulava as leis
fundamentaes da guerra moderna.
Sujeitar a guerra á disciplina do direito e
da humanidade é crear uma situação, em
ultima analyse, fatal á guerra, porque a
guerra é, de seu natural, deshumana, rebelde,
indisciplinavel.
O pendor natural da guerra é sacudir as
leis da guerra. Desde que, portanto, se
começou a trabalhar por submetter a guerra a
leis, começou-se a trabalhar "pela paz do
genero humano." E' o que o Presidente
Roosevelt reconhecia, em 1904, na circular
onde esboçava os intuitos da conferencia, que
se realisou cinco annos mais tarde.
130
PROBLEMAB DE DIREITO
Dessa direcção não permitta Deus que
regressemos. A guerra actual vae acabar por
uma reorganisação, que assentará o direito
internacional mais amplamente do que nunca
em principios de solidariedade entre as
nações, sinão todas, pelo menos as de um
grupo, onde avultarão as mais cultas, as mais
poderosas e as mais interessadas na liberdade.
Buscarmos alargar o mais possivel esse
nucleo, contribuindo para lhe augmentar, até
onde se possa, o numero dos Estados que o
compuzessem, seria obedecer á indole das
nossas instituições, ao genio dos nossos
povos, á tradição da nossa historia, aos
interesses da nossa segurança, aos deveres da
nossa honra, desde que o objecto dessa
revolução pacifica, nas relações internacionaes, seja difficultar a guerra e organisar a paz, solidarisando as nações em um
regimen onde ellas se associem, para se oppôr
ás violações do direito das gentes.
Grande fortuna, senhores, a que me proporcionastes, de falar esta linguagem de paz e
justiça em uma das mais brilhantes capitaes
do mundo, sob o tecto hospitaleiro
INTERNACIONAL.
131
de uma congregação de sociologos e juristas,
a um dos mais cultos auditorios deste continente. Commigo reconhecereis, creio eu,
que "todos somos interessados '' (as palavras
são de um publicista norte-americano), ''que
todos somos interessados, repito, nos
problemas da reconstrucção subsequente á
guerra, e devemos envidar toda a influencia,
de que disponhamos (e é immensa), para
assegurar que essa reconstrucção observe o
legitimo rumo."
Parecerá, talvez, excesso de optimismo
discorrer destas opiniões de reconstituição do
mundo pelas idéas generosas de volta ao
direito e reconciliação com a moral christã,
quando a mais febril actividade multiplica as
fabricas de armas, o metal candente rutila nas
forjas em laminas esbraseadas, ou rechina em
catadupas de aço na fusão dos canhões,
quando todas as industrias se substituem pela
dos instrumentos de carniça, quando o
sangne escorre das asas tenebrosas da guerra
sobre os continentes desde o Baltico e o Mar
do Norte até ao Mediterraneo e o Mar Negro,
desde a Grã-
132
PROBLEMAS DE DIREITO
Bretanha e a Belgica até á Grecia, á Palestina e
ao Egypto, desde as stepes moscovitas até ás
extremas plagas africanas, desde a França até á
Persia, desde a península dos Balkans até os
desertos da Arabia, desde os fundos do oceano
até os vertices dos Alpes, desde o mundo
antigo, onde a morte estende o sudario das
suas batalhas, até o novo, arrastado a
collaborar com suas offi-cinas e os seus
estaleiros na faina tremenda. Mas é justamente
do excesso do mal que me parece vir surgindo
a esperança de cura. Assim como ha as visitas
da saude, que precedem a ultima agonia,
agonias ha que se resolvem na volta da saude.
A mais terrivel das enfermidades moraes de
que tem soffrido, nos ultimos seculos, a nossa
especie, é a militarização do mundo civilizado,
a hypertrophia dos armamentos. Dessa
doença mortal não se podia sair senão por
uma crise quasi mortal.
Mas, felizmente, a
consciencia christa não entrou em coma, Pelo
contrario, as energias do bem se vão
reanimando, os symptomas de uma grande
reacção crescem a olhos
INTERNACIONAL.
133
vistos e do coração da humanidade, traspassado pelas sete espadas da dôr, brota a
vontade, a confiança, o alvoroço do triumpho,
com o sentimento, o consolo, a certeza da
regeneração. Os horizontes estão ainda
singularmente
carregados.
Formidaveis
agglomerações caliginosas ainda pejam o
céo. As scentelhas riscam a atmosphera baixa
e torva. Um ambiente pesado e electrizado
comprime e inquieta. Mas já se sentem os
primeiros indícios do cansaço na lucta dos
elementos enfurecidos, e uma corrente de ar
rijo e puro como os grandes sopros destas
planuras começa a descondensar as trevas,
limpando as regiões superiores do
firmamento. E' o instincto da conservação
humana que desperta, o tino intimo das
cousas, que acorda no animo dos povos, e os
restitue ao senso da vida. Ou pôr freios á
guerra, ou renunciar á civilização. E' o que
quasi todos sentem.
Antes desta guerra, o mundo contemporaneo ainda não conhecia a guerra. Comparadas com esta, até as campanhas napoleonicas se despem dessa grandeza épica
134
PROBLEMAS DE DIREITO
em que a imaginação LOl-as contemplava
assombrada. Seria mister recuar até ás
invasões dos barbaros, para ver a furia das
armas chammejar em áreas tão vastas, e o
genio da ferocidade rugir com violencia tâo
horrenda. Agora, porém, depois que se viu o
alude ensanguentado rolar por sobre o velho
continente em massas immen-suraveis,
sumirem-se no vortice das batalhas, em menos
de dous annos, mais de doze milhões de
almas, e atirar-se á face dos céos a
proclamação ostentosa do culto da força
absoluta, depois que se experimentou assim
até onde pode chegar o inferno das paixões
militares vasado e espalhado entre os homens,
a família humana, entrada indi-zivelmente de
espanto e terror, sentiu que era a sua propria
existencia a que estava em questão, viu que a
eliminação dessa maldade organizada já não
podia ser unicamente um anhelo do pacifismo,
convenceu-se de que o mundo não supportaria
outro accesso desta loucura desapoderada e
vertiginosa.
Mas desde que a impressão entrou a calar
INTERNACIONAL.
135
nos animos, um movimento espontaneo e
instinctivo, entre os proprios combatentes,
volveu os olhos de todos para os longes deste
hemispherio, onde tremula ao Norte a
bandeira astrigera dos Estados Unidos, ao Sul
o pendão ceruleo da Republica Argentina,
onde, no caminho dos Andes, ás portas do
Chile, se levanta a imagem colossal do
Christo, e ás margens do Atlantico, no
estandarte brasileiro, se desfraldam as
insígnias de ordem e progresso. Outros
fizeram as suas bandeiras das cores da terra.
Vós compuzestes a vossa das côres do céo.
Os matizes do céo não podem mentir á sua
origem celeste. As estrellas do céo não
podem transigir com os interesses do inferno.
O progresso e a ordem não podem servir á
desordem e á força. A evocação do
Crucificado não póde cobrir a ferocidade, a
barbaria. O Mundo Antigo, pois, não se
enganou, deixae-me crer, em voltar os olhos
para o Novo Mundo, em esperar que,
erguendo-se do seio destas democracias, a
opinião christã dos povos e governos tome o
lugar, que lhe cabe, na resistencia
136
PROBLEMAS DE DIREITO
á dominação da terra pela violencia, no
trabalho para a renovação da vida internacional pelo direito.
Mais uma vez se joga a sorte do Universo
entre os falsos rumos e o culto verdadeiro,
entre os ídolos dos barbaros e o symbolo dos
christãos, entre o paganismo dos conquistadores que dividiu os homens em senhores e
captivos, e o espiritualismo dos martyres que
irmanou os homens na caridade, entre o verbo
da força e o Verbo de Deus. Por elle clama
aos céos o sangue vertido no martyrologio
destes dois annos, por elle, senhores, pelo
espirito que se liberava, no principio dos
tempos, sobre a desordem chaotica dos
elementos, e agora baixará sobre a desordem
chaotica dos interesses, para extrahir desta
anarchia um mundo regido pelas leis da
consciencia, como daquella suscitou um
mundo ordenado pelas leis da materia. Na
ordem material, como na ordem moral, SÓ o
espirito organiza, só o espirito regenera, só o
espirito cria.
Nas Mensagens d Nação Allemã, que
INTERNACIONAL.
137
escrevia, em 1808, entre as dolorosas provações de sua patria, Fichte appellava do
poder da força para o poder do espirito. E' da
força para o espirito que nós appellamos
tambem; e não o poderíamos fazer em
expressões mais sentidas ou verdadeiras.
"Não luteis," dizia elle, "por conquistar com
armas corporeas; mas tendo-vos firmes e
erectos na dignidade do espirito ante os
vossos antagonistas. Vosso é o destino
superior de fundar o imperio do espirito e da
razão, destruindo aos rudes poderes da
materia o seu domínio de regedores do
mundo. . . . Sim: em todas as nações ha
intelligencias, nas quaes não calará jamais a
crença de que as grandes promessas, feitas, á
especie humana, de um reino do Direito, da
Razão e da Verdade, sejam illusões vãs. Essas
intelligencias nutrem a convicção de que este
regimen de ferro é apenas uma transição para
ura Estado mais bem constituído. Em vós
confiam esses e, com elles, as raças mais
novas da humanidade. Em sossobrando vós,
comvosco sossobraria na
138
PROBLEMAS DE DIREITO
humanidade a esperança de uma regeneração futura."
Estas palavras, reiteradas agora, cento e
cinco annos depois, não teem senão que variar
de endereço. O philosopho tinha razão. O
patriota não tinha. As raças mais novas
confiam em si mesmas. E' em si propria que a
humanidade espera. A ella é que nos
dirigimos. E quando o reino do espirito vier,
será pelo enlace da liberdade européa com a
liberdade americana, em uma communhão
hostil á guerra e armada contra ella, de
garantias inquebrantaveis.
— 62 —
á acquisição de direitos; ao passo que Lassalle (1) a
applaudiu não pensando do mesmo modo.
52.
Lassalle refuta a Savigny dizendo que a
sua distincção repousa apenas em abstractas categorias
intellectuaes, que não servem de segura base, e
accrescenta que
as
leis,
con-forme sejam
consideradas sob o ponto de vista do individuo ou do
objecto, podem classificar-se como leis sobre acquisição
de direitos, no primeiro caso, e no segundo, como
leis sobre existencia de direitos. Realmente se nota,
na obra de Savigny, um certo arbítrio no classificar as
leis em uma ou em outra categoria. (2)
53.
Quanto á não retroactividade das leis que
se referem á acquisição de direitos, é doutrina perigosa
e falsa, porque essas leis têm por objecto relações
jurídicas entre pessoas de terminadas, e, como já
longamente demonstrámos ao expôr a verdadeira
theoria, é certo que nem todas as relações de direito
produzem
direito adquirido, e quando não ha um direito adquirido,
sabemos que as leis novas retrotrahem o seu effeito.
54. Entretanto, se não é possível accei-tar como
um principio fundamental da theoria da retroactividade
a distincção a que acabamos de alludir, devemos,
todavia, reconhecer a grande
(1) Lassalle, cit. p. 289.
(2) Windscheid.—Dirit delle
Pandette (trad ital.) v. I § 32 nota 6.
— 63 —
Importancia da doutrina savigniana, já pelas vastas
idéas com que ella enriqueceu o assumpto, já porque
aprofundou a noção do direito adqui-rido,
distinguindo-o das simples faculdades e das meras
espectativas.
Releva notar, porém, que Savigny, ad-Imittindo
ao seu principio, para justificar a am-pliaçào ou a
restricção da efficacia da lei nova, certas excepções
que, segundo elle, devem ser determinadas
expressamente
pelo
legislador,
(1)
deixa vacillantes as bases da sua doutrina, che gando
mesmo ás
vezes a
perdel-as de vista.
E é digno de nota, que, nos resultados praticos da
applicação das leis novas, e nas consequencias finaes
de suas minuciosas lucubrações, Savigny, em regra
geral, põe-se de accordo com a verdadeira theoria do
respeito ao direito adquirido. Isto nos permitte
observar com Gabba que, attendendo mais aos factos
que ás pala- vras, pode-se dizer que a verdadeira
doutrina de Savigny não é aquella que parece contida
nas formulas por elle inventadas; é, porém, uma
doutrina muito mais simples, e que todospodem
comprehender, isto é, que, em regra geral, todas
as leis se podem applicar a consequencias de factos e
relações juridicas anteriores, desde que com isso não
se offendam direitos adquiridos. (2)
(l) Savigny, cit. 397. (2)
Gabba, cit. p. 170.
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