O limite e a potência

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O limite e a potência
O limite e a potência
Comentários - Escutar o corpo, o que ele recorda e ensina
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire dia 02/06/2013
Para voltar a criar trabalho e desenvolvimento, temos que encontrar um novo
relacionamento com o corpo. Mas com o corpo real, não com os imaginários e
imaginados, nossos e dos outros, que exaltamos, adulamos, idolatramos,
consumimos enquanto jovens e prósperos, mas que depois recusamos, em nós e
nos outros, quando adoecem, murcham, envelhecem. O tema do corpo, particularmente do seu
eclipse, é fundamental para compreender também algumas dinâmicas decisivas no mundo da
grande empresa e da grande finança.
As instituições, econômicas e de todo o tipo, podem tornar-se desumanas quando perdem de vista
o ser humano concreto, ou seja, corpóreo.
As culturas agrícolas e industriais foram culturas duras, mas humanas, também porque estavam
baseadas em encontros e desencontros, entre seres humanos de carne e osso.
Quando os trabalhadores, os clientes e os fornecedores e, quem sabe, os colegas, se tornam
realidades abstratas e distantes, e assim quem decide sobre eles não os encontra e não os vê (se
não, se calhar, em teleconferência), acontece que as pessoas inexoravelmente se tornam somente
números, algarismos, custos.
Perdem o corpo e, por isso já não são verdadeiramente pessoas.
Quando não vejo o rosto do outro, a cor da face, o brilho dos olhos ou não sinto o seu perfume;
quando não lhe aperto a mão e percebo se está suada ou trêmula, torna-se impossível fazer
escolhas justas e boas e que dizem respeito àquelas pessoas. Cortam-se assim ‘cabeças’ porque não
são cabeças de pessoas verdadeiras, mas de marionetes, de ícones no PC, de recursos humanos.
Mas quando não se vê no outro o seu corpo, não se vê nada de verdadeiramente humano, porque
dizer ser humano é dizer corpo.
O humilde corpo fala melhor e muito mais do que tratados de teologia ou de filosofia, a rica
ambivalência da condição humana: algo de frágil como a erva do campo, mas feito “pouco menos
do que os anjos” (Salmo 8). O corpo é o da aurora do Cântico dos Cânticos, mas também aquele em
declínio de Qoelet: só juntos compreendemos o que seja verdadeiramente o corpo e a relação
humana. No declinar, também do corpo, vislumbram-se horizontes invisíveis na aurora. É a
consciência carnal desta nossa ambivalência que nos impede de nos sentirmos anjos sem corpo e
por isso imortais, ou unicamente erva a calcar. Levar a sério o corpo significa dar dignidade a todos
os seus sentidos, porque somente os encontros que os ativam aos cinco, são encontros verdadeira
e plenamente humanos. Inclusive o sentido do paladar: é bem conhecido que as comunidades
humanas – da família às comunidades religiosas e às empresas – entram em crise quando deixam
de comer juntos. Fazer comer à mesma mesa Don Abbondio e Agnese, patrão e operários, é
operação entre as mais difíceis e raras.
É o corpo que dita o nosso limite e o dos outros, portanto, a verdadeira alteridade e reciprocidade.
Quem não fez a (triste) experiência de escrever e enviar, vítima de uma crise de irritabilidade, e-
mail ou sms com palavras e ‘tons’ que não teríamos dito, ou teríamos dito de modo diferente e
melhor, se tivéssemos tido diante de nós o outro em carne e osso? Expressões como ‘quero-te
bem’ ou ‘deixa-me em paz’ dizem realidades muito diferentes se escritas batendo um teclado, ou
pronunciadas olhando o outro nos olhos, ou, no primeiro caso, pegando na sua mão. Não seremos
capazes de um novo welfare, muito menos economicamente sustentável e, por isso, de um novo
pacto social para a saúde, se não encontrarmos uma amizade com o corpo em todas as suas
etapas, com os seus limites. Um doente verdadeiramente incurável é aquele que não aceita o
envelhecimento, a decadência e a morte, ou seja, a lei do corpo e da sua linguagem própria. Não
nos salvamos verdadeiramente das doenças pela amputação de corpos ainda sãos, mas acolhendo,
fazendo entrar em nossa casa, habitando a realidade do limite e, por isso, do sofrimento, da
vulnerabilidade, da ferida (vulnus) e da morte, que só assim se pode tornar «nossa irmã morte
corporal».
O primeiro e mais profundo conhecimento do mundo passa pelo corpo, e não só para as crianças.
Conhecemos as coisas tocando-as, impondo sobre elas as mãos. O trabalho está em crise porque
está em crise o verdadeiro corpo, as suas mãos e o seu típico conhecimento fecundo. Nunca
conheci um intelectual gerador de vida, que antes de escrever palavras não as concebesse
(conceitos) no labor.
A nossa civilização nunca será uma civilização capaz de fidelidade, enquanto não se reconciliar com
o corpo em todas as suas etapas. Cada pacto, a partir do matrimônio, é um sim dito também a um
corpo, às suas bênçãos e às suas feridas: é sempre uma fidelidade encarnada.
Como toda verdadeira reconciliação tem necessidade de longos abraços e de choros comuns: não
bastam telefonemas, e-mail, skype, cartas de pedido de desculpa dos advogados. «E choraram
juntos», diz-nos o livro do Gênesis no seguimento da reconciliação entre Jacob e o seu irmão Esaul,
após longas lutas, feridas e enganos.
Toda cultura que foi capaz de ressurgir, soube antes reconciliar-se com o limite e com a morte,
porque cada verdadeira ressurreição traz em si os estigmas das feridas.
Temos que nos reconciliar com o corpo, se quisermos reaprender a arte dos relacionamentos
encarnados, os únicos verdadeiros, uma arte que hoje tem poucos alunos, também porque são
raríssimos os mestres. E assistimos assim, a um crescente analfabetismo relacional que, muitas
vezes, é diretamente proporcional ao papel ocupado na hierarquia empresarial e organizativa. São
as mulheres e de modo especial e único as mães, as sábias do corpo, do seu limite e na sua
potência vital extraordinária. Como o são os enfermeiros e as enfermeiras, que os doentes
conhecem porque – e quando – os tocam. «A primeira cura é o médico», disse-me um médico
quando veio a casa para me curar e os sintomas desapareceram logo que começou a visitar-me.
Nos conselhos de administração dos hospitais gostaria de ver as enfermeiras, as irmãs e os carismas
que têm olhos capazes de ver a bênção para além da ferida do corpo, lugares hoje ocupados por
pessoas lautamente remuneradas que em muitos casos os doentes verdadeiros não vêem nem
muito menos tocam. Voltemos então à escuta do corpo, de todo o corpo e de todos os corpos:
ainda têm muitas coisas para nos contar.
Muitas esquecidas, algumas belíssimas. Todas essenciais para a qualidade da nossa vida.