- Programa de Pós-Graduação em Educação

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- Programa de Pós-Graduação em Educação
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CAMPUS DO PANTANAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LAYZE APARECIDA HERRERA CASSANHA
HISTÓRIA DO ATENDIMENTO À INFÂNCIA: O SAMC EM CORUMBÁ-MS (1944- 1990)
Corumbá-MS
2015
LAYZE APARECIDA HERRERA CASSANHA
HISTÓRIA DO ATENDIMENTO À INFÂNCIA: O SAMC EM CORUMBÁ-MS (1944- 1990)
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação do Campus do Pantanal
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
como requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Educação, sob a orientação da Profª.
Drª. Edelir Salomão Garcia.
Corumbá-MS
2015
Dedico aos meus pais, ao meu esposo Jailson e à
memória da minha colega de Pós-Graduação Cristine
Novaes Barbosa da Rocha (Cris), com todo o meu
amor.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, por ter me sustentado nessa caminhada, dando-me
força e saúde para prosseguir.
À minha querida orientadora, por ter acreditado em mim. Obrigada por ter me
conduzido na busca pelo saber, me ajudando a enxergar além do que estava diante dos meus
olhos. Realmente, foi uma parceria que deu certo. Sou profundamente agradecida por ter
compartilhado seu tempo e conhecimento comigo. Confesso que será difícil o momento
quando o cordão umbilical for cortado – afinal, são anos de companheirismo e orientação.
À Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, ao Programa de Pós Graduação em
Educação (CPAN) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), por ter me proporcionado a universidade gratuita e a possibilidade de realização de
um sonho.
Agradeço às professoras Magda C. Sarat Oliveira e Anamaria Santana da Silva, pela
leitura cuidadosa e pelas valiosas contribuições no exame de qualificação.
Agradeço a todos os meus queridos colegas de turma, especialmente à minha amiga de
longa data, Vanessa Soares, que têm me acompanhado desde o cursinho pré-vestibular e
compartilhado de momentos de alegrias e aflições da minha trajetória acadêmica.
Aos meus professores da Pós-Graduação em Educação do CPAN, pelo aprendizado do
convívio. Em especial dedico um abraço carinhoso às professoras Ana Lúcia Espíndola,
Anamaria Santana da Silva, Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, Márcia Regina do
Nascimento Sambugari e ao professor Fabiano Antonio dos Santos.
Aos participantes deste estudo, por terem compartilhado comigo as suas histórias.
RESUMO
O estudo teve por objetivo analisar a história do atendimento à infância, institucionalizado no
Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), criado em 1944. Buscou-se
conhecer a organização, o processo de funcionamento da instituição e o tipo de atendimento
prestado. Foram realizadas pesquisas documental e de campo. Na pesquisa documental, foram
levantadas as informações referentes ao Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá a
partir das Leis da Câmara Municipal de Corumbá, os Estatutos da instituição de 1947 e 1972,
e Publicações em Diários Oficiais. A pesquisa de campo foi efetuada com nove participantes
que, de alguma forma, vivenciaram a instituição. O instrumento para a coleta de dados foi a
entrevista, com o propósito de investigar a vivência dos participantes, por meio dos relatos
orais e captar a sua visão sobre o papel social da instituição. As entrevistas foram organizadas
através de temas que trataram da organização e do funcionamento da instituição. A
compreensão da função social da instituição Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá
(SAMC) deu-se a partir do olhar do sociólogo Erving Goffman, através da sua obra
Manicômios, Prisões e Conventos (1974). Este estudo evidenciou que o SAMC seguiu o
modelo institucional brasileiro vigente nos séculos XIX e XX, de higienia social. Como nas
Colônias Agrícolas, construídas frequentemente no campo, afastadas dos centros urbanos, os
menores institucionalizados, em sua maioria, eram recolhidos pelas autoridades competentes
por apresentarem risco à ordem social. O atendimento estava atrelado à ideologia de caráter
moralizador, autoritário, em defesa do bem-estar social. Seu papel educativo
(correcional/repressivo) estava vinculado ao fortalecimento do aprendizado da moral e de
ofícios para a inserção no mercado de trabalho.
Palavras chave: 1. Instituição Total
2. Infância.
3. Educação/ Trabalho.
ABSTRACT
The study aimed at analyzing the history of childcare, institutionalized in the Childcare
Assistance in Corumba (Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá SAMC), founded in
1944. The organization, the institution processes and the type of service provided were
investigated. Documentary and field research were carried out. The documentary research
included the information regarding the service assistance provided to minors of the
municipality contained in the City Council laws, the Statutes of the Institution in 1947 and
1972, and publications in Official Gazettes. The field research was conducted with nine
participants who had some kind of experience in the institution. The instrument for data
collection was the interview, with the purpose of investigating the experience of the
participants, through oral reports and capturing their vision about the social role of the
institution. The interviews were arranged by themes that dealt with the organization and
functioning of the institution. The understanding of the social function of SAMC was based
on sociologist Erving Goffman‟s vision, published in Asylums, Prisons and Convents (1974).
The study showed that SAMC followed the Brazilian institutional model prevailing in the 19th
and 20th centuries, of social hygiene. As in the Agricultural Colonies, often built in the
countryside, away from the urban centers, the institutionalized children were mainly taken to
the institution by the competent authorities, as they presented some risk to the social order.
The services provided were linked to the ideology of moralizing and authoritarian character,
in defense of social welfare. Its educational role (corrective/repressive) was linked to the
strengthening of moral and craft learning for future insertion in the labor market.
Keywords: 1. Total Institution. 2. Childhood. 3. Education/Work.
LISTA DE SIGLAS
ACLAUD
Associação de Pais e Amigos de Prevenção e Assistência aos Usuários de
Drogas de Corumbá e Ladário
COHAB
Companhia Nacional de Habitação
DNCr
Departamento Nacional da Criança
ECA
Estatuto da Criança e do Adolescente
ENERSUL
Empresa Energética de Mato Grosso do Sul
FAO
Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
FEBEM
Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
ILA
Instituto Luiz de Albuquerque
LBA
Legião Brasileira de Assistência
MS
Mato Grosso do Sul
MT
Mato Grosso
ONU
Organização das Nações Unidas
PNBEM
Política Nacional do Bem-Estar do Menor
SAM
Serviço de Assistência ao Menor
SAMC
Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá
SANESUL
Empresa de Saneamento de Mato Grosso do Sul
SENAC
Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SENAI
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
TCC
Trabalho de Conclusão de Curso
UNICEF
Fundo das Nações Unidas para a Infância
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................................
8
1.1 Caminhos da Pesquisa .............................................................................................................
10
1.1.1 As lentes que guiam o olhar sobre o processo de institucionalização........................
10
1.1.1.2 Pedaços de tecido que constituíram a colcha de retalhos: Os documentos............
18
1.1.1.3 Os fios que entrelaçam os pedaços dos tecidos: Os participantes..........................
21
2 HISTÓRIA DAS POLÍTICAS DE ATENDIMENTO À CRIANÇA POBRE,
ABANDONADA E DESVALIDA NO BRASIL ....................................................................
24
2.1 A Infância “abandonada” e “desvalida” no Brasil........................................................
24
2.2 As legislações de atendimento à infância no Brasil .................................................... 30
3. O ATENDIMENTO À INFÂNCIA ABANDONADA E DELINQUENTE: O SERVIÇO
DE ASSISTÊNCIA AOS MENORES DE CORUMBÁ .............................................................
45
3.1 O cenário da pesquisa: a cidade ..................................................................................
45
3.2 Serviço de Assistência aos menores de Corumbá (SAMC): a legalidade em pauta ............
51
3.3 Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC): a voz dos entrevistados ..........
59
3.3.1 SAMC: a instituição.............................................................................................................
60
3.3.2 SAMC: o atendimento.............................................................................................................
62
3.3.3 SAMC: os responsáveis................................................................................................... .......
64
3.3.4 SAMC: a manutenção..............................................................................................................
65
3.3.5 SAMC:o processo educativo....................................................................................................
67
3.3.6 SAMC: rotina..........................................................................................................................
69
3.3.7 SAMC: os finais de semana....................................................................................................
71
3.3.8 SAMC: família ......................................................................................................................
73
3.3.9 SAMC: A sociedade Corumbaense........................................................................................
75
3.3.10 SAMC: Sistema de Punição e Sistema de Privilégio.............................................................
76
3.3.11 Viver no SAMC......................................................................................................................
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................
82
REFERÊNCIAS..............................................................................................................................
85
APÊNDICE...................................................................................................................................... 91
APÊNDICE A: Roteiro da entrevista...........................................................................................
92
ANEXOS..........................................................................................................................................
93
ANEXO A: Estatuto do SAMC – 1947.........................................................................................
94
ANEXO B: Estatuto do SAMC – 1972 ........................................................................................
98
8
1. INTRODUÇÃO
A presente pesquisa teve origem durante o processo de coleta de dados do Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC), realizado em 2011, cujo objetivo foi verificar a visão dos
funcionários das Casas de Acolhimento1, em virtude da alteração da terminologia
Abrigamento para Acolhimento Institucional, promulgada pela Lei Nº 12010, de 03 de agosto
de 2009, chamada “Lei da Adoção”. Foram alterados 54 artigos da Lei N° 8.069, de 13 de
julho de 1990, que dispões sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instaurando,
assim, novas orientações para o atendimento prestado às crianças e aos adolescentes
institucionalizados por motivo de proteção social.
Durante a pesquisa para o TCC, constatei que não havia, nas instituições pesquisadas,
um acervo organizado de registros históricos ou documentações que remetessem à história do
atendimento institucional ou à origem das Casas de acolhimento na cidade de Corumbá,
estado de Mato Grosso do Sul (MS). No entanto, era comum ouvir entre os sujeitos da
pesquisa que a cidade havia contado com uma instituição denominada como “Tromba dos
Macacos” ou “SAMC”.
Para compreender as mudanças estabelecidas pela legislação foi necessário, ainda de
forma inicial, fazer um estudo do histórico das políticas de atendimento à infância e à
adolescência no Brasil, suscitando, assim, o anseio em conhecer a história do atendimento
institucional em Corumbá-MS, e principalmente recuperar a história do Serviço de
Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC), que havia atendido à infância desvalida e
transviada2, durante os anos 1940 a 1990. Esse anseio tornou-se parte de um projeto de
continuidade de estudos. Assim, na tentativa de reconhecer o campo, verificar a viabilidade
do projeto e sua relevância, iniciei um levantamento sobre as produções que tratam da
institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil.
Através desse mapeamento, verifiquei que são poucos os estudos que tratam da
institucionalização de crianças e adolescentes no Brasil e tendem a abordar o processo de
institucionalização (QUITÃNS, 2009; SILVA; MELLO, 2004; SILVA; AQUINO, 2005;
ALBERTO, 2003; ROSSETTI, 2012; ROSA. E, 2012; ARPINI, 2003; MORÉ;
1
2
Casa de Acolhimento é a nomenclatura que substitui o termo Abrigo, definida pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) como “medida provisória e excepcional, utilizada como forma de transição para a
colocação em uma família substituta não implicando privação da liberdade”. (SILVA, 2004, p.28). Trata-se de
proteção especial a crianças em situação de risco pessoal e social, cujos direitos tenham sido desatendidos ou
violados. (SILVA, 2004).
O termo transviado, de acordo com Rizzini, Irene e Rizzini, Irma (2004, p. 91), é “empregado para designar os
menores delinqüentes, durante todo o período da existência do SAM (1941-1964), mas raramente tratado na
literatura especializada”.
9
SPERANCETTA, 2010; SALINA-BRANDÃO; WILLIAMS, 2009; BENELI, 2002;
MORAES. N, 2004; SANTANA et al, 2005; RIZZINI et al, 2007).
Encontrei, ainda, estudos que retratam as vivências em instituições, como Asilo,
Internato, Casa-Lar ou Abrigo, a partir dos relatos das pessoas institucionalizadas (NEGRÃO,
2002; QUINTÃNS, 2009; VASCONCELLOS, 1997). Outras pesquisas evidenciaram a
concepção de institucionalização da criança e do adolescente presente nos discursos da
sociedade (ROSA, 2003; VASCONCELLOS, 1997; NEGRÃO, 2002).
Algumas investigações abordaram o processo educativo nas instituições que atendem a
crianças e adolescentes (MORAES, 2011; QUINTÃNS, 2009). Outras discorreram sobre a
perspectiva histórica do atendimento institucional (RIZZINI; RIZZINI, 2004; MARCILIO,
2006; RIZZINI; PILOTTI, 2011).
Esse breve mapeamento indicou que a maioria dos estudos ficou restrita às áreas da
psicologia e da enfermagem. Outra questão que ficou evidente foi a pequena quantidade de
pesquisas que recuperaram o processo histórico das instituições e do atendimento à criança e
ao adolescente com a finalidade de evidenciar o papel social, o tipo de atendimento e o
reflexo do processo de institucionalização.
A pequena produção, associada à falta da organização da documentação sobre a
história de uma instituição numa cidade do interior de Mato Grosso do Sul, leva à crença da
validade de uma investigação com o propósito de compreender a dinâmica social, histórica,
política e econômica de atendimento à criança e ao adolescente que vivenciaram o processo
de marginalização.
Algumas questões foram emergindo e, ao longo do processo de busca, conduziram a
presente pesquisa, entre elas: Com que objetivo o SAMC foi criado? Qual a sua finalidade?
Que tipo de atendimento era oferecido? Como estava estruturado o atendimento? Qual era a
importância social do SAMC? Havia processo educativo? Em caso positivo, era organizado?
Quem tinha direito ao processo educativo?
Este estudo, por conseguinte, visa contribuir para a recuperação histórica do processo
de institucionalização e da avaliação das políticas de atendimento à infância e à adolescência
no Brasil. Tem por objetivo analisar a história do atendimento a meninos institucionalizados
do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), evidenciando o processo de
funcionamento da instituição, com a finalidade de conhecer seu papel social.
10
1.1 Caminhos da Pesquisa
Nesta subseção, exponho o olhar sociológico que guiou as análises, representado pela
obra Manicômios, Prisões e Conventos (1974), de Erving Goffman. Em seguida, trago o
percurso percorrido para a obtenção das autorizações necessárias à pesquisa, assim como as
providências para a localização dos documentos e dos sujeitos.
1.1.1 As lentes que guiam o olhar sobre o processo de institucionalização
Erving Goffman é reconhecido como um dos sociólogos mais influentes da
modernidade. Sua obra causa um significativo impacto nas ciências sociais no Brasil, pois
está voltada para a análise das representações do eu, das interações sociais e do mundo social
dos internos de instituições totais, além de evidenciar o estigma que o processo de
institucionalização pode gerar nas pessoas que vivenciam algum tipo de institucionalização.
Assim, para a compreensão do funcionamento da instituição e dos discursos dos
sujeitos da pesquisa, mostrou-se pertinente compreender a instituição Serviço de Assistência
ao Menor de Corumbá (SAMC), fundamentalmente, em sua obra Manicômios, Prisões e
Conventos (1974), que abordou o universo dos hospitais psiquiátricos e desvelou os
mecanismos de funcionamento e despersonalização do eu.
Erving Goffman iniciou a obra citada com a teorização da institucionalização,
representando-a como Instituições Totais, que seriam “Um lugar de residência e trabalho onde
um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais
ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente
administrada” (GOFFMAN, 1974, p.11).
Goffman (1974) explana a concepção de instituição total, que destaca seu caráter
fechado e revela a ruptura da vida social das pessoas que integram esses espaços. De acordo
com o mesmo autor, quando um indivíduo integra uma instituição total, passa a viver todo o
seu cotidiano em função de uma autoridade, num mesmo espaço, e com um grupo de sujeitos
que se encontra na mesmo situação, sem contato com o mundo exterior.
No entanto, o autor faz diferenciação entre as instituições totais, caracterizando-as da
seguinte maneira: (1) instituições de atendimento e prestação de cuidados a indivíduos por si
só incapazes de autonomia (lares de idosos, crianças, deficientes, etc.); (2) instituições
dimensionadas para o atendimento de pessoas que representam algum problema para a
11
comunidade (hospitais, asilos, etc.); (3) instituições para indivíduos perigosos para a
comunidade, porque agressivos (prisões); (4) instituições educativas e de formação (quartéis,
colégios internos); (5) instituições de recolhimento e religiosas (conventos). Tais
categorizações são relevantes para este estudo, pois mostram as variedades de atendimentos
prestados pela instituição, que variam conforme seus usuários. (GOFFMAN, 1974).
Goffman (1974) aponta que, independentemente das categorizações das instituições
totais, eles são representadas pela ruptura das barreiras que comumente separam três esferas
da vida: a primeira, quando todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob
uma única autoridade; a segunda, quando cada fase da atividade do dia a dia do participante é
realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas
elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto: e a terceira,
quando as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, tendo em vista que
uma atividade leva à seguinte, e toda atividade é imposta verticalmente, ou seja, de cima para
baixo, por meio de um sistema de regras formais explícitas. As várias atividades obrigatórias
são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos
oficiais da instituição.
Goffman (1974) ressalta que a padronização no tratamento e a obrigatoriedade de
participação de todos os institucionalizados garantem, em princípio, um melhor controle e
vigilância sobre os internos, bem como o processo de obediência, pois a desobediência pode
acarretar sanções. Segundo o autor,
[...] a atividade principal não é a orientação ou inspeção periódica, [...] mas
vigilância - fazer com que todos façam o que foi claramente indicado como
exigido, sob condições em que a infração de uma pessoa tende a salientar-se
diante da obediência visível e, constantemente. (GOFFMAN, 1974, p. 18).
Tal vigilância ocorre por meio de uma equipe de supervisão, em menor quantidade que
o grupo de internados. Nas relações estabelecidas entre os grupos que mandam e os que
obedecem nas instituições totais, Goffman (1974, p.19) elucida:
Cada agrupamento tende a conceber o outro através de estereótipos
limitados e hostis - a equipe dirigente muitas vezes vê os internados como
amargos, reservados e não merecedores de confiança; os internados muitas
vezes vêem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos.
O autor expõe que, quando o internado chega à instituição, vem com uma “cultura
aparente”, derivada do “mundo da família”, caracterizado por uma forma de vida e um
conjunto de atividades aceitas somente até o momento da inserção na instituição. Considera o
12
autor que, para o internado, o sentido completo de estar “dentro” não existe independente do
sentido específico de “sair” ou “ir para fora”. As instituições totais criam e mantêm certa
tensão, certo embate, entre o mundo doméstico e o institucional, e usam essa tensão
persistente como uma forma de controle de homens.
O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo, que
tornou possível, por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo
doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais
disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas
instituições totais, começa uma série de rebaixamentos, humilhações e
profanações do eu. O seu eu é, sistematicamente, embora muitas vezes não
intencionalmente, mortificado (GOFFMAN, 1974, p. 24).
Segundo o autor, a barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o
mundo externo aponta a primeira mutilação do eu. Geralmente, o processo de admissão
também leva a outros processos de perdas e mortificação, como: obter uma história de vida,
tirar fotografia, pesar, tirar impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens
pessoais para que sejam guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir
roupas da instituição, dar instrução quanto a regras, designar um local para o internado.
Quando o internado é admitido numa instituição total, é muito provável que seja
despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e serviços com os quais a
mantém, o que provoca desfiguração pessoal. Roupas, pentes, agulha e linha, cosméticos,
toalhas, sabão, aparelho de barba, recursos de banho, tudo isso pode ser tirado dele ou a ele
negado. Seus objetos pessoais são guardados em armários inacessíveis, para serem devolvidos
se e quando sair da instituição (GOFFMAN, 1974).
Nas instituições totais existem outras formas de mortificação, a partir da admissão,
quando ocorre uma espécie de exposição contaminadora, em que os direitos do internado são
violados, a fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é invalidada e as
encarnações do eu são profanadas. Esclarece o autor que:
Existe, em primeiro lugar, a violação de reserva de informação quando ao
eu. Na admissão, os fatos a respeito das posições sociais e do
comportamento anterior do internado, principalmente os fatos
desabonadores, são coligidos e registrados num dossier que fica à disposição
da equipe diretora. (GOFFMAN, 1974, p. 31).
No entanto, adverte que:
[...] o tipo mais evidente de exposição contaminadora seja a de tipo
diretamente físico - a sujeira e a mancha no corpo ou em outros objetos
13
intimamente identificados com o eu. Às vezes isso inclui uma ruptura das
usuais disposições do ambiente para isolamento da fonte de contaminação
[...] GOFFMAN (1974, p. 32).
Ainda sobre a exposição contaminadora, o autor destaca que pode ocorrer de formas
mais drásticas quando, em algumas ocasiões, o internado testemunha um ataque físico a uma
pessoa de suas relações e, por nada ter feito, amplia o seu processo de mortificação.
Outra forma de mortificação destacada por Goffman (1974) e mais difícil de ser
compreendida no indivíduo é a perturbação na relação usual entre o ator individual e seus
atos, por esses atos serem considerados menos diretos e atenderem a uma regra que não é
explicita e não é de seu conhecimento.
Na sociedade civil, quando uma pessoa precisa aceitar ordens que ultrajem sua
concepção do eu, ela logo pode expressar em sua aparência, por meio de mau humor, de
palavrões, resmungando, com ironia ou com sarcasmo, entre outras reações. No entanto, na
instituição total, segundo Goffman (1974, p. 40), “[...] a obediência tende a estar associada a
uma atitude manifesta que não está sujeita ao mesmo grau de pressão para obediência”, pois a
equipe dirigente pode castigar diretamente os internados por atitudes de mau humor ou de
insolência que, consequentemente, podem levar a outros castigos.
Outro fator que o autor evidencia em seus estudos é o controle da vida do internado,
expresso por regulamentos:
Numa instituição total, no entanto, os menores segmentos da atividade de
uma pessoa podem estar sujeitos a regulamentos e julgamentos da equipe
diretora; a vida do internado é constantemente penetrada pela interação de
sanção vinda de cima, sobretudo durante o período inicial de estada, antes de
o internado aceitar os regulamentos sem pensar no assunto. Cada
especificação tira do indivíduo uma oportunidade para equilibrar suas
necessidades e seus objetivos de maneira pessoalmente eficiente, e coloca
suas ações à mercê de sanções. Violentando-se a autonomia do ato.
(GOFFMAN, 1974, p. 42).
O controle social exercido pelas instituições totais através de um caráter extremamente
organizado, regulamentado e limitador, faz com que o indivíduo necessite pedir autorização
ou solicitar instrumentos para realizar atividades secundárias, que seria capaz de realizar
sozinho, colocando-o no papel de submissão. (GOFFMAN, 1974).
Associada a essas características ligadas ao controle, o autor destaca a conduta, que se
assemelha a uma escola de boas maneiras, porém menos refinadas, e que constantemente
estão em julgamento. Dessa maneira, o internado não pode fugir das regras e pressão dos
julgamentos dos oficiais e de toda a rede que envolve a instituição. O autor aponta, ainda, dois
14
aspectos das regras ativamente impostas: “Em primeiro lugar, tais regras são muitas vezes
ligadas a uma obrigação de executar a atividade regulada em uníssono com grupos de outros
internados. É isso que às vezes se denomina arregimentação”. (GOFFMAN, 1974 p. 44)
Em segundo lugar, essas regras difusas ocorrem num sistema de autoridade
escalonada: qualquer pessoa da classe dirigente tem alguns direitos para
impor disciplina a qualquer pessoa da classe de internados, o que aumenta
nitidamente a possibilidade de sanção. (GOFFMAN, 1974, p. 45).
A autoridade escalonada, juntamente com os regulamentos rigorosamente impostos,
podem levar os internos, principalmente os novatos, a viverem em constante angústia, pois a
desobediência a regras pode ser combatida com sansões, como maus-tratos físicos e
emocionais, humilhações, remoção para espaços piores, entre outras (GOFFMAN, 1974).
Esse procedimento pode, por sua vez, levar à mortificação do eu.
Ao se referir ao processo de mortificação do eu do internado, Goffman (1974) destaca
três maneiras que podem desencadeá-lo. A primeira relaciona-se à autonomia e à liberdade
em suas ações nas instituições. A segunda, às justificativas para o ataque do eu, através de
simples racionalizações que são criadas com o objetivo de controlar a vida diária de grande
número de pessoas em espaço restrito e com pouco gasto de recursos. E a terceira decorre da
relação entre o esquema simbólico de interação para a consideração do destino do eu e o
esquema convencional, psicofisiológico, centralizado no conceito de tensão.
Assim, o processo de mortificação do eu na instituição está associado aos sistemas de
castigos e privilégios. Segundo Goffman (1974, p. 51-52),
[...] os castigos e privilégios são modos de organização peculiares as
instituições totais. [No entanto,] qualquer que seja a sua severidade, os
castigos [...] não é muito aplicado a adultos, pois [...] o fato de não manter os
padrões exigidos leva a consequências desvantajosas indiretas [...] E, deve-se
acentuar os privilégios na instituição total não são favores ou valores, mas
apenas a ausência de privações que comumente a pessoa não espera sofrer.
As noções de castigos e privilégios não são retiradas do padrão da vida civil.
Os internos criam mecanismos para a adaptação no meio institucional, buscando
garantir, no seu cotidiano, o beneficiamento por esse sistema de privilégios. De acordo com
Goffman (1974), o sistema de privilégios e os processos de mortificação constituem as
condições a que o internado precisa se adaptar. Essas condições permitem outras maneiras
individuais de adaptação. Além de qualquer esforço de ação subversiva coletiva, o internado
emprega táticas de adaptação em vários momentos de sua carreira moral, e pode alternar entre
diferentes táticas ao mesmo tempo.
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São quatro os tipos de táticas de adaptação empregadas pelo internado, conforme
analisa o autor. A primeira é a de “afastamento da situação”, que consiste no afastamento do
interno das circunstâncias que se passam ao seu redor, exceto quando os acontecimentos
cercam o seu corpo, mais evidente em hospitais para doentes mentais, que recebe o nome de
“regressão”. A segunda identifica-se como a “tática de intransigência”, caracterizada pelo
desafio intencional do internado na cooperação com a equipe dirigente, resultando em uma
intransigência constante. A terceira tática padronizada no mundo da instituição é a
“colonização”, quando o mínimo que a instituição apresenta ao internado do mundo externo
representa-lhe como um todo, e esse mínimo se torna relativamente satisfatório. A experiência
do mundo externo é utilizada como um ponto de referência para demonstrar o quanto a vida
na instituição é desejável, o que pode causar certo conflito com os outros internos. Por fim, o
quarto modo de adaptação ao ambiente da instituição total é o da “conversão”: o interno
parece aceitar a organização e o funcionamento da instituição, assim como as ordens da
equipe dirigente, e tenta representar o papel do interno perfeito, que segue as normas da
instituição (GOFFMAN, 1974).
Goffman (1974) informa, ainda, que a relação/ligação entre a equipe dirigente e os
internados pode ocorrer de forma ilícita e “pessoal” ou solidária, quando existe um
compromisso conjunto em relação à instituição, na execução da rotina da instituição e de
certas atividades que o autor denomina como “cerimônias institucionais”.
Estas por sua vez, se concretizam em festa anual, confecção de jornal ou revista,
esportes internos, cerimônias religiosas e exibição institucional (teatro, música, entre outros),
vistas como a possibilidade de o internado reaprender a viver em sociedade e ter a capacidade
para realizar tal vivência. A equipe dirigente representa mais que um papel de supervisão; os
internos apresentam um comportamento de acanhamento e respeito, chegando até a
demonstrar um laço paternal.
Diante das discussões apresentadas sobre o mundo do internado nas instituições totais,
o processo de mortificação do eu, a justificativa de promover a disciplina e a ordem de um
grande número de pessoas, assim como as estratégias de adaptação ao mundo institucional,
verifica-se que o momento de saída dos internados é marcado pela dependência criada na
organização da instituição e pela incerteza do que estará por vir, devido ao tempo de
afastamento do universo externo, o que leva alguns ex-internos a pensarem em retornar para a
instituição (GOFFMAN, 1974).
As instituições totais normalmente apresentam a preocupação com o processo de
reabilitação, ou seja, com o restabelecimento dos mecanismos autorreguladores do internado,
16
de forma que, quando o ex-interno estiver fora, conseguirá seguir os padrões estabelecidos
pela instituição. Entretanto, o autor afirma que raramente se consegue essa mudança
permanente. Após a saída da instituição o ex-interno procura se distanciar das lembranças dos
sentimentos de injustiça, amargura e alienação vividos na instituição.
O autor cita, ainda, a diferenciação no que diz respeito ao tipo de instituição total
vivenciada e o momento de saída: o status social da instituição é determinante na relação que
se estabelece entre a instituição total e o ex-internado após a sua saída.
Quando o status é proativo é relativamente favorável, - tal como ocorre com
os que se formam em internatos de elite, escola para formação de oficiais,
conventos aristocráticos, etc. - podemos esperar reuniões oficiais de júbilo,
com proclamações de “orgulho” pela escola. Quando o status proativo é
desfavorável, - tal como ocorre com os que saem de prisões ou hospitais para
doentes mentais - podemos empregar o termo “estigma”, e esperar que o exinternado faça um esforço para esconder seu passado e tente “disfarçar-se”
(GOFFMAN, 1974, p. 68).
Assim, se a instituição total for prestigiada no mundo externo, o ex-interno exibe
orgulho pela sua permanência. Entretanto, quando não possui valor no mundo externo, ele
tende a esconder o período em que lá esteve, para não sofrer retaliações ou estigma por essa
vivência.
Como se demonstrou, o estudo de Goffman contribui para o processo de compreensão
do funcionamento da instituição em estudo, a partir dos conceitos centrais das instituições
totais, como a padronização, o controle e a vigilância, a relação de tensão entre a equipe
dirigente e o interno, e as formas de mortificação do eu. Mais ainda, as análises do autor
proporcionam um entendimento sobre o sistema de castigos e privilégios, a constituição das
cerimônias institucionais e o momento da saída do interno da instituição total.
Quando esta pesquisa foi arquitetada, ao término da minha graduação em Pedagogia,
não mensurei a dimensão do seu alcance ou as dificuldades que enfrentaria durante o
percurso. Pretendo aqui mostrar que, além da vontade e das indagações do pesquisador, foi
necessária uma rede de colaboração para a sua viabilização, pois sem ela não teria encontrado
os documentos, as pessoas e, por consequência, as histórias que constam do estudo.
Para orientar o processo investigativo, utilizei a Pesquisa Documental e a Pesquisa de
Campo. O estudo documental tornou-se uma fonte determinante e incluiu uma análise
cuidadosa e criteriosa, conforme apontado por Oliveira, M. (2007), pois esses documentos
não haviam passado por nenhum tratamento e deveriam ser compreendidos dentro do
processo social e histórico em que estavam inseridos.
17
May (2004 apud SILVA, ALMEIDA; GUINDANI, 2009, p.10) assevera que os
documentos não existem isoladamente; devem ser situados em uma estrutura teórica, para que
o seu conteúdo seja entendido e contextualizado. Feita a seleção preliminar dos documentos, o
pesquisador procede à análise dos dados, momento de reunir todas as partes, como os
elementos da problemática, o quadro teórico, o contexto, os autores, os interesses, a
confiabilidade, a natureza do texto e os conceitos chaves (CELLARD, 2008 apud SILVA;
ALMEIDA; GUINDANI, 2009, p. 10-11).
De acordo com os autores, o pesquisador pode fornecer uma interpretação coerente,
tendo em conta a temática ou o questionamento inicial. A análise é desenvolvida através da
discussão que os temas e os dados suscitam e inclui geralmente o corpus da pesquisa, as
referências bibliográficas e o modelo teórico.
Baseado naquilo que já obteve, o pesquisador volta a examinar o material, com o
intuito de aumentar o seu conhecimento, descobrir novos ângulos e aprofundar a sua visão.
Pode também explorar as ligações existentes entre os vários itens, tentando estabelecer
relações e associações e passando então a combiná-los, separá-los ou reorganizá-los. Por
último, o investigador procura ampliar o campo de informações, identificando os elementos
emergentes que precisam ser mais aprofundados (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p.44).
A pesquisa de campo buscou conhecer a percepção dos participantes que, de alguma
forma, vivenciaram a instituição de atendimento ao Menor de Corumbá no período
compreendido entre 1944 e 1990.
De acordo com Gonsalves (2003, p. 67), a pesquisa de campo busca a informação
diretamente com a população investigada. O pesquisador precisa ir ao espaço onde o
fenômeno ocorre – ou ocorreu – e reunir as várias informações a serem documentadas.
O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista aberta, organizada
através de eixos temáticos ligados diretamente ao funcionamento da instituição. Os temas se
referiram à instituição, ao atendimento, aos responsáveis pelo SAMC, à manutenção, ao
processo educativo, à rotina, aos finais de semana na Instituição, à família, à sociedade, à
punição, ao privilégio, e à vida no SAMC.
Para a apreensão dos dados, optei por ouvir a voz dos participantes da pesquisa por
meio de relatos orais, ou seja, ofereci aos participantes a oportunidade de expressarem e
avaliarem os acontecimentos em suas vidas ligadas ao SAMC. Essa escolha deu-se pela
possibilidade de demonstrarem as formas de ver o mundo e compartilharem a realidade.
Por meio de depoimentos, fiz uma análise das relações que o sujeito tem com seu
grupo e analisei como foi elaborando as regras de permanência e de reestruturação, pois é no
18
processo de (re)lembrar, (re)fazer, (re)compor e (re)construir a história que se dá o
entrelaçamento entre passado, presente e futuro no agora (PÉREZ, 2003).
Cabe ao pesquisador, na condução da entrevista, ouvir, questionar, discutir e
aprofundar nos aspectos de relevância e lacunares, pois é nas falas dos participantes que se
revelam as incorporações das experiências vividas e, ao mesmo tempo, se conhece o reflexo
do processo de institucionalização.
Os relatos orais foram gravados em áudio-cassete. Com a gravação, o entrevistador
presta mais atenção à fala do entrevistado e à interação com ele. Assim, consegui despender
maior atenção à fala do entrevistado e pedir maiores esclarecimentos sobre as dúvidas que
foram surgindo no momento da entrevista.
Após as entrevistas, iniciei o processo de transcrição das fitas. De acordo com Kassar
(2002 apud GARCIA, 2006), no momento da transcrição ocorre um contato mais lento com
os diferentes dizeres; através do registro, volta-se ao discurso novamente, para entendê-lo e
buscar os muitos sentidos que se propiciam.
Ainda sobre a transcrição das fitas, Fontanella, Campos e Turato (2006) esclarecem
que o processo de transcrição de áudio para texto facilita alguns aspectos da análise da
entrevista, através de leitura e releituras, enquanto que as repetidas audições dos registros em
áudio permitem uma recordação mais precisa do contexto afetivo, através do novo contato
com as variações emocionais do tom de voz.
Em seguida, efetuei um estudo pormenorizado das transcrições, buscando
compreender o que cada participante relatou nos temas abordados, verificando em que
aspectos essas respostas se igualavam e/ou divergiam da resposta do grupo. Elaborei um
quadro para visualizar melhor o sentido que cada participante dava ao seu relato, bem como
para compará-lo com os relatos dos demais participantes. Concluída essa etapa, procedi à
análise e interpretação dos dados à luz do referencial teórico-metodológico.
Para a compreensão daqueles que não vivenciaram a busca dos dados, seja ele
documental, seja de pessoas aqui será apresentado, ainda que sucintamente, o percurso da
pesquisa.
1.1.1.2 Pedaços de tecido que constituíram a colcha de retalhos: Os documentos
Os dados coletados por meio das entrevistas, parte essencial deste trabalho, trouxeram
informações fundamentais e satisfação com a sua realização. Não como mérito de desafios
transpostos, mas como fonte imprescindível, pois fazer pesquisa exige muito mais do que
19
questionamentos. Requer do pesquisador persistência, ao ouvir respostas como „não‟, „volta
mais tarde‟, „liga depois‟, assim como outras justificativas que recebi durante todo esse
caminho. A luta contra o tempo foi um fator determinante na pesquisa, não apenas pelos
prazos impostos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES), mas também em decorrência do fato de que meus sujeitos da pesquisa poderiam se
encontrar com idade avançada.
Em 2013, assim que ingressei no Mestrado em Educação/CPAN/UFMS, minhas
preocupações em relação à possibilidade de acesso aos documentos sobre o SAMC
aumentaram, bem como com referência à identificação e ao encontro com as pessoas que
vivenciaram a instituição. Nesse processo de incertezas, iniciei a busca por maiores
informações e o levantamento dos documentos sobre a instituição e as pessoas que poderiam
contribuir com o estudo.
Atualmente, o espaço em que funcionava o SAMC é denominado “Fazenda Bom
Jesus”, instituição de tratamento para usuário de drogas, sob a responsabilidade da Associação
de Pais e Amigos de Prevenção e Assistência aos Usuários de Drogas de Corumbá e Ladário
(ACLAUD). Localiza-se a 35 km da cidade, no local conhecido também como “Tromba dos
Macacos”, na região do Maciço do Urucum.
O primeiro contato realizado foi na ACLAUD de Corumbá, com sede no centro da
cidade. Fui recebida por um dos coordenadores. Após ouvir o meu relato sobre os objetivos
da pesquisa, disse que não poderia me ajudar, pois não sabia nada sobre a instituição. Mas
forneceu-me o nome de uma pessoa que iria providenciar o número telefônico do pecuarista
dono da fazenda vizinha do SAMC. Esse proprietário teria condições de me auxiliar na
pesquisa. No entanto, o número informado não estava em funcionamento.
Segui então para o Centro Cultural, onde estão os arquivos do acervo da história da
cidade, chamado de Instituto Luiz de Albuquerque (ILA). Não logrei êxito. Ao comentar
sobre a minha pesquisa com as bibliotecárias, sugeriram-me que procurasse as informações na
prefeitura da cidade, em especial na Câmara Municipal de Corumbá.
Fui à Câmara Municipal de Corumbá, para a coleta de dados. Pediram-me que voltasse
posteriormente. No dia e horário marcados, retornei à Câmara. Para essa busca de
informações, contei com o auxílio da funcionária responsável pelo setor de arquivos. Iniciei a
investigação com a informação que eu já havia encontrado pela internet, ou seja, o ano da
provável implantação do SAMC. Essa data vinculou ao mandato do então prefeito Arthur
Affonso Marinho. A partir daí, dei início à pesquisa.
20
Em outra visita à Câmara, tive acesso aos arquivos que já havia sido escaneados,
contendo algumas legislações desde 1947 até 2005. Entre essas leis, encontravam-se algumas
que abordavam o SAMC.
Com os documentos em mãos, finalmente, obtive o primeiro registro documental
sobre o Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá, nos anos de 1953, e 1961 a 1969.
Ainda nesse período, realizei a busca novamente na internet, a fim de obter maiores
informações. Foi aí que encontrei o projeto de Lei 1270/1973, publicado no Diário Oficial do
Congresso Nacional, reafirmado também em 1975, que reconheceu o Serviço de Assistência
aos Menores de Corumbá como Entidade de utilidade Pública.
De posse das legislações, documentos oficiais e de materiais retirados dos sites oficiais
referentes ao SAMC, iniciaram-se os estudos dos documentos.
Após as primeiras análises, verifiquei que muitos retalhos estavam faltando, e que
seria necessário continuar a busca de mais documentos que evidenciassem o desenho dessa
colcha chamada de SAMC. Assim, aproximei-me de algumas pessoas que me indicassem
novos caminhos.
Dirigi-me ao cartório de Corumbá, para indagar se havia algum documento sobre a
instituição. Disseram-me que havia documentos, mas era necessário especificar o interesse,
pois não era possível levantar informações no arquivo sem dados precisos.
Passei, então, a levantar quais fontes poderia encontrar aquele arquivo do cartório.
Assim, cheguei ao Estatuto do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá, de 1972.
Após a leitura do material, vi que tal Estatuto modificava o Estatuto anterior, aprovado na
sessão de Assembleia Geral realizada em 10 de dezembro de 1947.
Ao retornar ao Cartório para obter maiores informações sobre o Estatuto de 1947,
solicitei uma nova busca sobre o Regimento e Estatuto da Instituição denominada como
“Centro de Recuperação Maria Pedrossian” tendo em vista que o nome havia sido citado nas
falas de alguns sujeitos da pesquisa, bem como apresentado na dissertação de Girelli (1994, p.
63-64): “[...] a região do sitio MS-CP-04 como próximo ao antigo SAMC [...] sendo
atualmente chamado de Centro de Recuperação Maria Aparecida Pedrossian (CRMAP)”.
Realizada a leitura do material, ainda permanecia a pergunta sobre o momento da
extinção do SAMC. Por isso assim precisei procurar maiores informações, por meio dos
documentos ou dos relatos dos participantes que vivenciaram a Instituição.
21
1.1.1.3 Os fios que entrelaçam os pedaços dos tecidos: Os participantes
Os fios começaram a entrelaçar a colcha de retalhos na aula da disciplina: “Formação
e Práticas Sócio-pedagógicas de Educadores Sociais”, quando soube, por uma colega de
turma, que seus avôs e tios, anos atrás, haviam morado em uma fazenda vizinha ao SAMC. A
surpresa não parou por aí. Disse-me outra colega de turma que tinha um parente que conheceu
a instituição em estudo. Então, quis verificar rapidamente tais informações.
Esse foi o início a construção dessa colcha, fio a fio, pedacinho por pedacinho: entre
os papéis e as histórias vivenciadas pelos sujeitos da pesquisa, foram tomando forma. Como
num jogo de encaixe, as peças foram se acomodando, permitindo pouco a pouco tecer a
colcha do conhecimento, possibilitando a compreensão sobre o funcionamento e a
organização do SAMC.
Conforme combinado com uma de minhas colegas de turma, fui ao encontro do
primeiro sujeito da entrevista. Coloquei-o a par da finalidade do estudo. Ele me disse que
havia tido a vivência de um mês no SAMC, por motivo de prestação de serviço. Assim, iniciei
a primeira entrevista.
Após a conclusão da primeira entrevista, fui à procura da família que havia residido na
fazenda ao lado da instituição. Algumas informações fornecidas foram de grande valia para a
continuidade do estudo, pois foram definidos os nomes e a localização das pessoas que
poderiam colaborar.
De posse desses dados, entrei em contato com a filha de um dos integrantes do
diretório do SAMC. A equipe diretória era composta por representantes e realizava a
administração da instituição. Em contato por telefone, acertei o dia e o local para a entrevista.
Durante a entrevista, a sua mãe se disponibilizou também a fazer parte da pesquisa.
Assim, após a entrevista com a filha do ex-diretor, foi realizada a entrevista com a mãe, que
também tinha sido parte da direção do SAMC. Ambas forneceram informações importantes e
complementares.
A quarta entrevista foi também intermediada pela filha da senhora que havia residido
na fazenda ao lado do SAMC, que me forneceu o contato do senhor que viveu com seus pais
na instituição. Eles eram responsáveis pelo funcionamento organizacional da instituição e me
narraram dados preciosos à análise.
Com a intenção de encontrar quem havia vivenciado como interno, voltei à pessoa que
havia morado na fazenda ao lado da instituição para ver se ela havia se lembrado do nome de
22
algum. Como não conseguiu recordar, ela sugeriu que procurasse o filho da fundadora da
ACLAUD.
Tentei entrar em contato com esse senhor, mas soube que está vivendo em outro país.
Fui informada de que um senhor de um determinado estabelecimento comercial poderia me
dar informações mais precisas. Esse senhor sugeriu que falasse com o delegado de polícia dos
anos 1970 da cidade de Corumbá que, por sua vez, me encaminhou a um repórter da cidade.
O repórter, já citado anteriormente, me indicou o contato de uma das psicólogas do SAMC.
A psicóloga confirmou que havia trabalhado no SAMC. Por isso pedi-lhe autorização
para uma entrevista. Ela não somente concedeu, como também me orientou a conversar com a
cozinheira e a outra psicóloga da instituição. A entrevista foi agendada para o dia seguinte,
mas a outra psicóloga não demonstrou interesse. A cozinheira, após a explicação dos
objetivos do estudo, prontamente aceitou participar.
No decorrer da pesquisa, o apoio da família provou ser fundamental, por meio de
palavras de incentivo e de encorajamento. Além desse tipo de apoio, recebi também com a
colaboração do meu pai na constituição da pesquisa. Durante muito tempo ele foi fotógrafo na
cidade e conhecia muitas pessoas, entre elas dois sujeitos da minha pesquisa: um profissional
que encaminhava os „menores‟ ao SAMC e um interno, dois componentes dessa grande
colcha de retalho.
Obtive o número do telefone e o endereço do local de trabalho do primeiro sujeito. No
contato inicial com esse participante, ele me entregou dois documentos aos quais ainda não
havia tido acesso (Ata de fundação da cidade e Portaria que o designava como Orientador
Social e de menores). O segundo sujeito pertencia a uma igreja, local em que foi feito o
primeiro contato. Agendei a entrevista para o dia seguinte.
Por fim, em meio a tantas buscas, a minha orientadora conseguiu o telefone da filha de
um interno, que informou que ele gostaria de participar do estudo. Após contato, a entrevista
foi agendada em sua casa, localizada na zona rural da cidade.
Nesse movimento ir e vir, contei com nove participantes que vivenciaram o Serviço de
Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC): dois internos; dois filhos de funcionários; um
membro do conselho consultivo; um assistente judicial de menores e três funcionários. Foram
quatro mulheres e cinco homens. Para a preservação da identidade dos sujeitos, foram
adotados nomes fictícios: João, Pedro, Maria, Madalena, Mateus, Tiago, Rute, Lucas, Ester.
Vale enfatizar que todos os participantes foram informados sobre os objetivos da pesquisa e
autorizaram sua participação, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
conforme prevê o Código de Ética em pesquisa com seres humanos.
23
Nesse contexto, esta pesquisa foi organizada em quatro seções. Na primeira, constam:
a introdução, onde apresento a origem do problema; um levantamento da produção científica
referente à temática institucionalização de crianças e adolescentes; a apresentação do
referencial teórico metodológico; os procedimentos metodológicos adotados; e o processo de
coleta de dados.
A segunda seção traz, em seu bojo, a história da política do atendimento à criança
denominada “pobre”, “abandonada” e “desvalida”, desde o Brasil colônia até o final dos anos
1980, com a finalidade de compreender os reflexos dessa organização no atendimento às
crianças e adolescentes que vivenciaram a instituição em estudo.
Na seção três, apresento um panorama da dinâmica econômica, política e social de
1950, a divisão do estado de Mato Grosso do Sul, em 1977, a dinâmica econômica, política e
social dos anos 1980, bem como o atendimento de crianças “pobres”, “abandonadas” e
“delinquentes” prestado pelo Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá, por meio de
documentos e de relatos orais realizados por pessoas que vivenciaram, de alguma forma, a
instituição.
Por fim, nas considerações finais, encerro a dissertação, retomando o objeto de estudo,
as discussões desenvolvidas e o olhar do pesquisador sobre a problemática analisada.
24
2 HISTÓRIA DAS POLÍTICAS DE ATENDIMENTO À CRIANÇA POBRE,
ABANDONADA E DESVALIDA NO BRASIL
A questão da infância e da adolescência institucionalizada tem sido, ao longo dos
anos, foco de estudos e de pesquisas que descrevem, analisam e revelam as nuances da
história introduzida pelas políticas de atendimento à infância e à adolescência no Brasil.
Neste estudo, recupero a história do atendimento à criança e ao adolescente. Para a
melhor compreensão dessa história, utilizo as fases que demonstram a evolução do
atendimento assistencial da infância abandonada e desvalida brasileira, caracterizada por
Marcílio (2006) como uma fase caritativa, que teve início na colônia e se estendeu até meados
do século XIX; uma fase filantrópica, até os anos 1960 e, por último, uma fase do Estado do
bem-estar do menor, que surgiu com a instauração do Estado protetor. Vale destacar que a
implantação da Instituição Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC), na cidade
de Corumbá/MT, em 1944, perpassou pelas fases indicadas acima. Este estudo levou à
compreensão da constituição do atendimento assistencial da infância no Brasil, bem como da
instituição em estudo.
Acredito que a recuperação desse processo histórico e social do atendimento leva ao
entendimento de como a visão dessa sociedade influenciou o encaminhamento do
atendimento na instituição Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC).
2.1 A Infância “abandonada” e “desvalida” no Brasil
No período colonial, compreendido entre os anos de 1500 e 1822, a assistência à
infância no Brasil seguia as determinações de Portugal, aplicadas em meio à burocracia dos
representantes da corte e da igreja católica. O cuidado das crianças indígenas estava sob a
responsabilidade dos Jesuítas, que visavam a tirá-los do paganismo e a discipliná-los,
embutindo normas, costumes cristãos e incorporando-os ao trabalho. Os padres da Companhia
de Jesus ou Soldados de Cristo, como eram chamados, almejavam dois objetivos estratégicos:
converter crianças indígenas em futuros súditos dóceis e obedientes à Colônia Portuguesa e,
consequentemente, influenciar na conversão dos adultos (PILOTTI, 2011).
Marcilio (2006) e Couto Melo (1998) mencionam que os padres da companhia de
Jesus implantaram também os colégios-seminários de meninos índios; as Casas de
25
Muchachos, para atender aos “órphãos da terra”3 e as Confrarias do Menino Jesus, que logo
começaram a receber pequenos órfãos (legítimos) enviados de Portugal. Esses e as crianças
indígenas eram considerados puros e inocentes, diferentemente das crianças desvalidas e sem
família. Mais tarde, por decorrência de pressões da elite colonial, essas instituições
começaram a atender os filhos de luso-brasileiros. Entretanto, com o passar do tempo, as
instituições se desvirtuaram do seu objetivo inicial, passando a ser responsáveis pela formação
dos filhos dos proprietários e da elite da colônia.
De acordo com Marcílio (2006), os jesuítas foram enviados ao Brasil com plenos
poderes missionários e de civilização indígena e atendimento à orfandade4. Assim, não era
atribuição da companhia o cuidado e nem a preocupação com a sorte das crianças
abandonadas, das ilegítimas, das escravas e das mulheres que tinham filhos fora do
casamento.
Ainda para a autora, o atendimento à criança abandonada, no período, ficou a cargo
das Câmaras Municipais, conforme as Ordenações do Reino, quando os pais ou parentes não
assumiam a responsabilidade. As câmaras tinham que encontrar meios para criar as crianças
sem família.
No Brasil, segundo Pilotti (2011) e Marcilio (2006), a primeira Ordenação entrou em
vigor em 1521, por ordem de D. Manuel. Foi chamada de Ordenação Manuelina. Foram
criados impostos para custear os gastos com a assistência à infância abandonada,
caracterizada, em sua maioria, por filhos nascido fora do casamento, que estavam fadados ao
abandono. Mais tarde, essa ordenação foi renovada pela Ordenação Filipinas (1603),
reconfirmando o compromisso com as crianças enjeitadas.
Vale destacar que, assim como no Brasil, a assistência à criança exposta, em Portugal,
ficava sob a responsabilidade das Câmaras Municipais, instituídas primeiramente pelas
Ordenações Afonsinas, renovadas mais tarde pelas Ordenações Manuelinas (1521) e,
finalmente, pelas Ordenações Filipinas. Ao fundar o hospital de Todos os Santos, em Lisboa,
D. João II e D. Manuel estabeleceram nela a Casa de Expostos (MARCILIO, 2006).
No período colonial, nem o Estado nem a Igreja assumiram de forma direta a
assistência à criança abandonada. Apenas atuaram no controle legal e jurídico, com apoios
3
[...] “Órphãos da terra”, crianças oriundas das ligações entre os brancos ou negros e mulheres índias, que
normalmente eram abandonadas por suas mães. Os índios acreditavam que o parentesco verdadeiro vinha pela
parte dos pais; assim sendo estes não faziam parte do seu povo [...] (COUTO; MELO 1998, p. 20).
4
Faz-se necessário ressaltar a contribuição dos Jesuítas no Brasil nesse tipo de atendimento, pois essa era a única
iniciativa de atendimento às crianças órfãs, naquele período.
26
financeiros esporádicos e com estímulos diversos, ficando ao encargo da sociedade civil,
organizada ou não, a preocupação com a criança abandonada (MARCILIO, 2006).
A ilegitimidade não era o único fator responsável pelo abandono de crianças; a
pobreza também era uma grande motivadora. Assim, crianças eram deixadas em locais
públicos, como nos átrios das igrejas e nas portas das casas. Em muitos casos, crianças
chegavam a ser devorada por animais. A mortalidade infantil, à época, era alta, o que
despertou a preocupação das autoridades e levou o vice-rei a propor duas medidas no ano de
1726: a esmola e o recolhimento dos expostos em asilos (PILOTTI, 2011).
Para Marcilio (2006), a assistência e as políticas sociais em favor da infância
abandonada, na fase caritativa, apresentaram-se em três formas básicas de atendimento, duas
formais e uma informal. O primeiro atendimento formal era representado pelas câmaras
municipais, as únicas entidades oficialmente responsáveis pela tarefa de prover a assistência
aos pequenos enjeitados, conforme proposto na legislação de Portugal. As câmaras podiam
delegar os serviços especiais de proteção da criança exposta a outras instituições, por meio de
convênios, representados pelas confrarias das Santas Casas de Misericórdia, que
estabeleceram o aval da coroa portuguesa para a criação das Rodas e Casas de Expostos, além
de recolhimento em estabelecimentos para as meninas pobres e para as expostas. Tais
instituições representaram a segunda forma de atendimento de proteção formal, por meios dos
convênios firmados entre as Câmaras Municipais e as Santas Casas de Misericórdia.
Por fim, a terceira forma de proteção ocorreu de maneira informal no atendimento à
infância desvalida, considerada universal e mais abrangente, desde o século XVI até os nossos
dias. Famílias ou pessoas recolhiam recém-nascidos deixados nas portas de suas casas, igrejas
ou em outros locais, e, por diversas razões, tomavam a decisão de criá-los. Havia, ainda, casos
de pessoas que iam às Rodas de Expostos e pediam para perfilhar ou adotar as crianças
expostas (MARCILIO, 2006).
De acordo com Nascimento (2005), nesse período as obras sociais estavam pautadas
nas ideias caritativas e beneficentes, baseadas nos princípios religiosos de salvação de almas.
Dessa maneira, a questão religiosa esteve por trás, muitas vezes, do ato de recolhimento dos
bebês deixados nas casas, igrejas e locais públicos. O gesto era visto como um ato de
caridade, piedade e compaixão, virtudes que levariam à futura salvação, ideia apregoada pela
própria Igreja, que também exigia o batismo imediato das crianças abandonadas. Entretanto,
não era uma atitude motivada somente por motivos religiosos. Havia também a questão
econômica, já que uma criança abandonada poderia representar mão de obra gratuita, além da
possibilidade de certas vantagens pois, em muitos casos, quem se propunha a cuidar dessas
27
crianças recebia a ajuda financeira da câmara municipal ou da Roda dos Expostos
(MARCILIO, 2006).
Vale destacar que o abandono de crianças foi uma prática que não se concretizou
somente no Brasil. Segundo Marcilio (2006), a prática de abandono foi trazida de Portugal. A
assistência caritativa, em Portugal, se verificou por meio de pequenos hospitais (albergarias,
hospícios, gafarias, asilos, mercearias) 5, mantidos por doações, legados ou com apoio de
instituições religiosas ou corporações de ofícios.
No Brasil, a prática de abandonar crianças esteve vinculada ao nascimento de filhas de
mães negras escravas ou/e de pais brancos colonizadores, tidas fora do casamento
(ilegítimas). As relações sexuais entre senhores e escravas ou índias eram uma prática
comum, mas consideradas imorais e ilegítimas (BERGER; GRACINO, 2005).
A ilegitimidade não era apenas um problema de ordem moral, pois feria os valores
morais cristãos tanto defendidos pela Igreja Católica. O nascimento de crianças negras e
mulatas passou também a ser um problema de natureza econômica para os proprietários de
terras e de escravos.
Ainda segundo as autoras, o custeio com a criação de uma criança escrava era maior
do que a importação de um escravo adulto. Em apenas um ano de trabalho, o escravo adulto já
restituía o valor gasto com a sua compra. Por outro lado, para a criação de uma criança até os
sete anos, idade em que era considerada capaz de trabalhar, os custos eram altos. Assim,
tornava-se mais lucrativo para os senhores o abandono dos filhos de suas escravas.
A Roda de Expostos foi a instituição que levou à compreensão dos princípios que
regeram o atendimento à criança pobre, abandonada e desvalida no período colonial, modelo
institucional vindo da Europa colonialista que melhor ilustra essa fase.
No Brasil a primeira Roda foi criada na Bahia, em 1726, e posteriormente no Rio de
Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo, entre outras cidades. As Rodas só foram extintas,
segundo Berger e Gracino (2005), nos anos 1950.
De acordo com Marcílio (2006), a fundação das Rodas de Expostos no Brasil foi
justificada pela ideia de que a instituição funcionaria como meio para combater o aborto e o
5
As albergarias, criadas originalmente para assistência dos peregrinos que percorriam o Caminho de Santiago, em particular
ao norte do Mondego, serviram também a viajantes, doentes e mendigos. Os hospícios foram estabelecimentos que
primeiramente eram destinados ao assistencialismo de crianças abandonadas. As gafarias eram destinadas aos
internamentos dos gafos ou leprosos. Eram também designadas por leprosarias e, mais tarde, lazarentos. Os asilos tiveram
origem nos hospícios da Idade Média e estavam indissociavelmente ligados à rainha D. Maria I, que decretou, a 6 de julho
de 1853, a criação do Conselho Geral de Beneficência para a criação de medidas relativas à mendicidade. As mercearias
foram destinadas originalmente às pessoas da nobreza empobrecida e, em geral, funcionavam junto às capelas
(HOSPITAL PORTUGUES, 200-?).
28
infanticídio, ações duramente criticadas pela Igreja Católica. Um aspecto que chama a atenção
na implantação das Rodas foi que elas surgiram no Brasil na mesma época em que, na
Europa, estavam sendo combatidas pelos higienistas e reformadores, pela alta mortalidade e
pela suspeita de fomentar a prática de abandono de crianças, conforme destaca Irma Rizzini
(1993 apud RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irma, 2004).
De acordo com Marcilio (2006) e Pilotti (2011), as Rodas de Expostos, no Brasil,
eram destinadas à proteção dos bebês abandonados6. Até os três anos de idade, conhecido
como período de “criação”, os cuidados ficavam quase em sua totalidade nas casas de amasde-leite. Depois, retornavam às casas dos expostos, onde podiam permanecer até os sete anos,
período considerado de “educação”. Essas crianças eram conhecidas, segundo Arante (2011,
p. 176), como: “expostos”, “enjeitados” “desertados da sorte ou da fortuna”, “infância
desditosa” ou “infeliz”.
Para Marcílio (2006), os expostos que eram deixados na Roda, ao chegar encontravam
amas-de-leite em número suficiente para alimentá-los. As amas eram governadas por um
regente, que morava na instituição. A criança recém-chegada era examinada. Abria-se um
registro sobre a hora em que havia sido deixada, com dados referentes ao sexo, cor, sinais de
fato, células ou bilhete, que a acompanhavam para a prestação de contas junto ao tesoureiro.
Este, por sua vez, abria os assentos, com toda a miudeza, colando um número, um nome, e
encaminhava a criança para o batismo na igreja de misericórdia. As crianças que chegavam
doentes eram criadas na instituição, enquanto que as crianças que chegavam “em boas
condições físicas” eram criadas pelas amas que não tinham moléstia. Elas recebiam o “feto”
de cueiros e camisas e mais enxovais.
Faleiros (2011) e Marcílio (2006) explicam que as rodas de expostos das Casas de
Misericórdias sempre buscaram encaminhar meninos e meninas às casas de família, ou
encaminhá-los para o meio profissional, preparando-os para assumirem as suas vidas, antes de
atingirem a idade de sete anos. Após essa idade, a criança ficava como qualquer outro órfão, à
mercê da determinação do Juiz, responsável pelo seu destino.
Marcílio (2006) narra que, se aos sete anos de idade não era encontrada nenhuma
família para acolher as meninas, elas eram encaminhadas aos Recolhimentos, onde
permaneciam à espera de alguma família ou de casamento. Muitas meninas, contudo, não se
casavam e nem eram recolocadas em alguma família, e nos Recolhimentos permaneciam por
6
No entanto, é importante constatar: “As mães que enfrentavam dificuldades para manter seus filhos viam
muitas vezes a roda como única saída. As mães escravas, por sua vez, encontravam na roda uma possibilidade
de livrar seus filhos da escravidão”, conforme enfatiza Civiletti (1991 apud TRINDADE 1999, s.p).
29
anos, responsáveis por algum ofício. Anteriormente à fundação dos Recolhimentos, as
meninas não tinham para onde ir, visto que a Roda não dispunha de quartos para acomodação
de pessoas. Elas ficavam nas ruas, à mercê da piedade alheia.
Pilotti (2011) e Marcílio (2006) apontam a fundação, em 1700, na Bahia, do primeiro
Recolhimento destinado ao amparo das meninas pobres e órfãs, com a intenção de proteger a
honra das meninas, evitando a prostituição e a mendicância por estarem expostas à própria
sorte nas ruas. A instituição lhes proporcionava proteção, instrução e treinamento funcional,
além de oferecer dotes para que logo se casassem.
Em relação ao cuidado dos meninos, foram criados, no século XVIII, seminários para
receber meninos pobres, abandonados e sem família, que funcionavam como colégios internos
e tinham como finalidade o amparo de crianças, o ensino das primeiras letras, a educação
religiosa e a formação profissional. Alguns destes seminários foram: a Casa Pia e Colégio de
Órfãos de São Joaquim, criado em Salvador no ano de 1825, o Seminário de Santo Antônio
do Rio de Janeiro, que entre os anos de 1751 e 1850 acolheu 117 educandos. Ainda no Rio de
Janeiro, houve a criação do Seminário de São Joaquim. Em 1824, foram criados, em São
Paulo, dois seminários: o da Glória, internato para meninas e o de Santana, para meninos.
(MARCÍLIO, 2006).
Marcilio (2006) expõe ainda que os meninos, a partir dos oito anos, podiam ser
encaminhados para a aprendizagem de um oficio na casa de algum mestre artesão, que
usufruía dos serviços da criança, já as meninas, conforme citado anteriormente, eram ser
enviadas para o Recolhimento ou prestavam serviços gratuitos em casas de família, nas
fábricas ou oficinas, sempre a título de aprendizagem. Havia também a Companhia de
Aprendizes Marinheiros, para onde geralmente eram encaminhados os meninos rebeldes.
Ainda para a autora, nessa Companhia, o uso de métodos violentos para “corrigir” os
menores “difíceis” era frequente, daí o pavor das crianças da Roda de serem encaminhadas a
essa companhia. Poderiam ser admitidos na instituição órfãos desvalidos, expostos, meninos
enviados pela polícia e menores pobres. Os pré-requisitos para entrar na instituição seguiam
os critérios do Exército e de outras instituições da época: era preciso estar em condições
físicas e psicológicas perfeitas.
Durante o Período Imperial, não houve grandes mudanças no atendimento
institucional. Entretanto, já se encontravam indícios do processo de escolarização, por meio
da inserção das primeiras Letras, em 1829, na Bahia, como apontado por Marcílio (2006). Até
as primeiras décadas do século XIX, as crianças, tanto da Roda quanto do Recolhimento, não
recebiam nenhuma instrução sistemática.
30
Em relação à legislação do período, Silva, Gustavo (2010) e Rizzini, Irene (2011)
afirmam que o primeiro Código Penal do Brasil foi regulamentado no ano de 1830.
Anteriormente a esse Código, vigoravam as Ordenações do Reino de Portugal, fortemente
severas e punitivas. Sua alteração foi necessária, pois crianças e jovens eram duramente
punidos. Não havia muita diferenciação das punições dos adultos, a despeito do fato de que a
menor idade constituísse um atenuante à pena. A juventude confundia-se com a infância, que
terminava por volta dos sete anos de idade, sem transição para a idade adulta. Dessa maneira,
o Código Criminal de 1830 pode ser considerado um grande avanço. Rizzini, Irene (2011)
comenta que o Código Criminal de 1830 estabeleceu a responsabilidade penal para menores a
partir de 14 anos e previa, no parágrafo primeiro do artigo 10:
[...] se, se provar que os menores de quatorze annos, que tiverem commettido
crimes, obraram com discernimento, deverão ser recolhidos as Casas de
Correção, pelo tempo que ao Juiz parecer, com tanto que o recolhimento não
exceda a idade de dezasete annos. (RIZZINI, Irene, 2011, p.144)
Rizzini, Irene (2011) e Silva, Gustavo (2010) explicitam que, nas primeiras décadas do
período imperial no Brasil, a legislação relativa à infância referia-se, de um modo geral, à
preocupação com o recolhimento de menores em estabelecimento que visassem à sua
correção. Ainda não estavam em pauta as discussões sobre a prevalência da educação sobre a
punição. Essa questão, segundo a autora, só viria à tona no final do século XIX.
Depreende-se que tal preocupação com o recolhimento de crianças órfãs e expostas
fundava-se no cristianismo de amparar os órfãos e abandonados. Essas ações eram de caráter
assistencialista, lideradas pela iniciativa privada e também de cunho religioso, e contavam
com subsídios do Estado. Eram realizadas por meio das Santas Casas de Misericórdia, através
da Rodas de Expostos.
2.2 As legislações de atendimento à infância no Brasil
Na segunda metade do Império, foi instituída uma importante legislação, referente à
preocupação com a formação educacional das crianças, como consta na regulamentação do
ensino primário e secundário no Município da Corte-Decreto nº. 630, de 17 de setembro de
1851 e 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854 e o Decreto que criou dez escolas públicas de
instrução primária, do primeiro grau, no município da Corte – Decreto nº. 5.532, de 24 de
janeiro de 1874. Tal preocupação se expressou nos primeiros anos do Império, quando a
imprensa retratou a movimentação nas ruas do Rio de Janeiro, surgiram as primeiras medidas
31
de controle da educação, em relação às crianças pobres. Os artigos 57 a 64 do Decreto 1.331A de 1854 conferiram as primeiras iniciativas educacionais, de acordo com Rizzini, Irene
(2011, p. 102):
[...] quando em huma parochia, por sua pequena população, falta de recurso,
ou qualquer outra circumstância, não se reunir numero suffuciente de
alumnos que justifique a creação de escolas ou a sua continuação, e houver
no lugar escola particular bem conceituada poderá o Inspetor Geral, ouvido o
Delegado do districto, e com approvação do Governo, contractar com o
professor dessa escola a admissão de alumnos pobre, mediante huma
gratificação razoável (art. 57).
O art. 58 menciona que, na falta de escola privada, o pároco ou seu coadjutor podem
se responsabilizar pelo ensino e, por solicitação do inspetor geral ao governo, podem receber
a gratificação expressa no artigo anterior. O art. 59 trata dos vencimentos dos professores na
situação de ausência de alunos na escola pública.
O art. 60 regula que o expediente interno das escolas deve ocorrer por conta dos cofres
públicos, bem como o oferecimento de livros e outros objetos necessários ao ensino. Consta,
ainda, que:
Aos meninos indigentes se fornecerá igualmente vestuário decente e simples,
quando seus Paes, tutores, curadores ou protetores o não puderem ministrar,
justificando previamente sua indigência perante o Inspetor Geral, por
intermédio dos Delegados dos respectivos distritos. (BRASIL, Decreto n.
1.331 A, de 17 de fevereiro de 1854, p. 57).
E acrescenta:
[...] Se em qualquer dos distritos vagarem menores de 12 anos em tal estado
de pobreza que, além da falta de roupa decente para frequentarem as escolas,
vivam em mendicidade, o Governo os fará recolher a uma das casas de asilo
que devem ser criadas para este fim com um Regulamento especial. (art. 62)
[...] Os meninos que estiverem nas circunstâncias dos Artigos antecedentes,
depois de receberem a instrução de primeiro grau, serão enviados para as
companhias de aprendizes dos arsenais, ou de Imperiais Marinheiros, ou
para as oficinas públicas ou particulares, mediante um contrato, neste ultimo
caso, com os respectivos proprietários, e sempre debaixo da fiscalização do
Juiz dos Órfãos. Aqueles, porém, que se distinguirem mostrando capacidade
para estudos superiores, dar-se-á o destino que parecer mais apropriado à sua
inteligência. (art. 63) (BRASIL, Decreto n. 1.331 A, de 17 de fevereiro de
1854, p. 57)
Apesar das primeiras iniciativas na organização do sistema educacional público,
Rizzini, Irene (2011) esclarece que as políticas de atendimento às crianças eram políticas
discriminatórias de acordo com sua origem social, conforme estabelecia o art. 69 do Decreto
32
n. 1.331 A de 1854: “Não serão admitidos a matrícula, nem poderão frequentar as escolas: os
meninos que padecerem moléstias contagiosas; os que não tiverem sido vaccinados, e os
escravos”. (RIZZINI, Irene, 2011, p.102).
Então, apesar da iniciativa da “escola para todos”, ela estava realmente voltada à
educação das crianças da elite, dos filhos dos pequenos comerciantes e daqueles que tivessem
posse para manter os seus filhos na escola. No entanto, àqueles denominados de “indigentes”
ou em total estado de pobreza, era oferecida, pelo governo, educação limitada ao ensino
primário em 1º grau. Após essa fase de ensino, eles seriam encaminhados aos serviços
militares ou às oficinas de aprendizagem de ofício.
Nos anos 1850 em diante, começaram a tomar corpo as regulamentações relativas aos
escravos e seus filhos, iniciadas em decorrência das graves pandemias que chegavam ao
Brasil com o tráfico negreiro, devastando as cidades da região do litoral e produzindo um
grande número de órfãos e abandonados. Daí a criação da Lei Eusébio de Queirós, de 1850,
que extinguiu o tráfico de escravos, dando início à preocupação da sociedade escravocrata em
perder a mão de obra doméstica.
Em 1855, de acordo com Marcílio (2006), ocorreu a primeira mudança na política
social de assistência, com o primeiro Programa Nacional de Política Pública voltado à criança
desvalida. O Programa incluía o ensino elementar e o ensino profissionalizante nas
instituições de atendimento a meninos e meninas desvalidas, ofertando oficinas para o
aprendizado de ofícios e o aprendizado das primeiras letras. Foi a primeira etapa da
construção de uma assistência filantrópico-científica no Brasil.
O ano de 1871 marcou a segunda fase da institucionalização e da criação da
assistência filantrópica higienista no país, com a instituição da Lei do Ventre Livre, Lei n°
2.040 de 28 de setembro de 1871, gerando uma profunda repercussão nas atitudes diante da
criança exposta e nas políticas voltadas à proteção e à preparação para o mundo do trabalho
(MARCÍLIO, 2006).
Essa lei, de acordo com Rizzini, Irene (2011, p. 103) determinava as “[...] condições
livres os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da
Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamentos daqueles filhos menores e sobre a
libertação annual de escravos”. Ainda segundo a lei, os senhores dos escravos e os
governadores que realizavam a criação dos filhos menores eram proibidos de separar os filhos
menores de 12 anos do pai ou da mãe, prevendo formas de recolhimento para aqueles que
fossem abandonados. Todavia, tal liberdade permanecia sob a vontade do Senhor.
33
Azevedo (2008) destaca que a Lei do Ventre Livre foi a primeira lei brasileira que
trouxe o dispositivo legal protetivo expresso às crianças. A mãe escrava tinha o direito de
criar seu filho até os sete anos. Ao completar sete anos, surgiam duas alternativas: na
primeira, o Estado brasileiro indenizava o dono da escrava com o valor de alguns mil réis e a
criança era retirada da mãe e colocada num orfanato, ou seja, a criança deixava de ser escrava
para ser abandonada; na segunda, continuava na companhia da mãe e trabalhava como
escrava até os 21 anos, quando então era alforriada.
Para Moraes (2011), com a Lei do Ventre Livre, houve a preocupação da elite agrária
em ficar sem trabalhadores, o que reforçou a ideia de preparar as crianças pobres,
abandonadas e sem família para os serviços braçais, trabalhos que antes eram desempenhados
apenas por escravos.
Marcílio (2006) revela que, nesse momento, começou a ser pensada a criação de
grandes estabelecimentos totais de internamento e de separação de crianças e adolescentes
sem família da sociedade, que passaram a se multiplicar após a abolição da escravatura e a
instalação da República, em 1889.
Em 1890, ano posterior à Proclamação da República, foi instituído o Código Penal
Brasileiro, também conhecido como Código Zanardelli, que inclui a premência de se criarem
instituições voltadas à prevenção e à correção. Esse Código foi o primeiro da República a
estabelecer a inimputabilidade absoluta apenas para os menores de nove anos.
Para os infratores entre nove e 14 anos, desde que houvessem agido com
discernimento, indicava-se o recolhimento a estabelecimento disciplinar industrial, até quando
o juiz julgasse necessário, não podendo exceder o limite de 17 anos de idade. De acordo com
Azevedo (2008), apesar de a Lei propor o tratamento diferenciado, as "casas de correção" e as
unidades de "estabelecimento disciplinar industrial" jamais ocorreram.
Moraes (2011) considera que, nas primeiras décadas da Primeira República, médicos e
juristas tiveram uma influência muito forte na sociedade brasileira. Unidos às questões
econômicas e políticas do país, a medicina social e a justiça foram responsáveis por realizar as
transformações no homem, no espaço urbano, nas instituições sociais, além da forma de olhar
para as crianças pobres, abandonadas e sem família.
No final do século XIX e início do século XX, ocorreram profundas mudanças no
caráter da Roda de Expostos, preponderantemente por decorrência de dois sistemas da Roda:
em primeiro lugar, o sistema de amas mercenárias, acusado de ser a principal causa de
mortalidade infantil dos expostos, foi sendo abolido; em segundo lugar, adotou-se nas Casas
de Expostos o sistema de escritórios de admissão aberta, responsável por permitir que se
34
conhecessem os pais ou pelo menos a mãe. Então, a partir dessas mudanças, embora ainda
existissem, as Rodas perderam a sua razão de ser (MARCILIO, 2006), pois acabaram
perdendo a sua característica principal, a proteção da honra privada, tornando-se cada vez
mais difícil esconder a ilegitimidade.
Porém, o fator decisivo para a formulação de uma nova instituição de atendimento à
criança desvalida foi a ocorrência das altas taxas de mortalidade infantil nas Casas dos
expostos. Então, em meados do século XIX, os médicos especialistas responsáveis pelo
cuidado da infância, promoveram várias discussões sobre o cuidado dos expostos, com o
intuito de melhoria nas condições de higiene das instituições que realizavam esse
atendimento. (PILOTTI, 2011).
Sobre as situações verificadas nas instituições de atendimento à criança desvalida,
Marcilio (2006) descreve um cotidiano de ócio, ambientes mal ventilados, com pouca
limpeza, malcheirosos. As mortes por sarnas, diarreias, verminoses, epidemias, entre outros
motivos, eram tão frequentes nesses estabelecimentos que as crianças que conseguiam
sobreviver, ao chegar à idade adulta eram anêmicas, raquíticas, franzinas, de frágil
constituição e saúde, com reduzida disposição e capacidade para o aprendizado e para o
trabalho.
Nascimento (2005) também admite a importância do discurso dos médicos
higienistas7, dando ênfase ao zelo pelos corpos para proteção, garantia da saúde e a denúncia
das condições precárias das instituições asilares, acabando por exercer uma forte pressão
sobre o Estado, para que se estabelecessem políticas públicas de atendimento aos desvalidos,
pois “as condições insalubres ameaçariam a população frente às inúmeras epidemias”
(NASCIMENTO, 2005, p.28-29).
Moraes (2011) avalia que a filantropia foi um meio utilizado para a preservação da
ordem social, pois funcionou como instrumento de controle aos pobres, vistos pela sociedade
como prováveis criminosos. A concepção de criança pobre, futuro da nação, estava encoberta
por ideias com duplos significados:
[...] crianças nascidas e criadas em meio à pobreza, concebida como lócus do
vício e da desordem, tornar-se-iam adultos reprodutores do vício e da
desordem, e a idéia de que se algo fosse feito por estas crianças, por
exemplo, se elas fossem retiradas do meio social pobre, e, portanto,
deletério, e assistidas adequadamente elas poderiam vir a desenvolver
virtudes, como a virtude do trabalho, transformando-se em cidadãos sadios e
trabalhadores. A visão sobre a criança pobre, abandonada e sem-família que
7
“Médicos que lutavam pela melhoria da raça humana, no combate à alta mortalidade e por uma infância sadia,
base para o progresso das nações” (MARCÍLIO, 2006, p. 196).
35
predominou nessa época foi um tanto quanto ambivalente, pois se de um
lado a criança representava a esperança em um futuro melhor, desde que
fosse retirada de seu meio social, tido como enfermiço, e devidamente
reeducada, de outro lado ela representava uma perigosa ameaça, que até
então nunca havia sido descrita com tamanha clareza; a criança passava a ser
concebida não como naturalmente inocente, mas como portadora de
elementos de perversão e vício. A criança proveniente das camadas mais
pobres da população era, portanto, ao mesmo tempo um ser em perigo e
perigoso, e intervir sobre ela tornava-se, aos olhos dos governantes, questão
de ordem pública. (MORAES, 2011, p.53).
Dessa maneira, ouviu-se, por meio do movimento higienista, o discurso
preconceituoso e discriminatório, culpabilizando as pessoas das camadas pobres pela sua
condição social, vendo-os como prováveis criminosos.
Rizzini, Irene (2011) analisa que, nas duas primeiras décadas do século XX, a tônica
dos discursos pareceu, em primeiro momento, em defesa incondicional da criança, “gênese da
sociedade”, como dito pelo senador Lopes Trovão em 1902. No entanto, uma leitura
cuidadosa demonstra a oscilação constante entre a defesa da criança e a defesa da sociedade
contra essa criança que se tornava uma ameaça social à ordem pública.
O círculo vicioso da exclusão das crianças sem família fechava-se, assim, com a
fragilidade de sua saúde e a precariedade da formação socioeducativa que as instituições lhes
proporcionavam. As reformas introduzidas na arquitetura especializada dos grandes
estabelecimentos de abrigo, em fins do século XIX e no início do século XX, resolveram
apenas parte dos problemas. Instituíram-se a disciplina, os horários, os regulamentos dos
grandes internatos, os exercícios físicos, os jogos. Buscava-se transmitir aos expostos não
somente um ensino elementar mais sistemático e abrangente e um ensino profissional mais
diversificado, como também valores caros à filantropia científico-burguesa, ou seja, o gosto e
o hábito pelo trabalho, o amor à ordem e a crença no progresso (MARCILIO, 2006).
Nessa situação, a defesa em favor da sociedade prevaleceu expressa por meio da
criação e expansão de instituições de atendimento a crianças e adolescentes sem família,
tendo que viver sob rígido controle, recebendo uma formação socieducativa, por meio do
trabalho, a fim de evitar que se tornassem um problema social e entrave para o progresso do
país. O discurso, que a princípio poderia ser em favor da criança e do adolescente, mostrou-se
um discurso de ordem social.
A intervenção do Estado se fez mais atuante nas questões da infância nos primeiros
anos da República, impregnada de conceitos de ordem, moral, repressiva e de preparação para
o trabalho, como enfatizam Pilotti (2011); Arantes (2011); Marcílio (2006); Rizzini, Irene
(2011); e Moraes (2011).
36
Para Pilotti (2011), a constituição da cultura institucional, como a prática de recolher
crianças em asilos enraizados nas formas de “assistência ao menor”, perdura até os dias de
hoje. Entretanto, ao longo dos anos, a tônica foi sendo modificada. Assim, as instituições
adotaram novas denominações, substituindo o termo asilo, que representava práticas arcaicas,
para escolas de preservação, premonitórias, industriais ou de reforma, educandários,
institutos, entre outras.
Os asilos de órfãos, abandonados ou desviantes, isto é, daqueles que estivessem
“soltos”, fugindo ao controle da família e ameaçando a “ordem pública”, tornaram-se uma
prática frequente no século XIX, quando a ideia de propiciar a educação industrial aos
meninos ganhou força. Também ganhou força a educação doméstica para as meninas, cuja
finalidade era prepará-las para serem úteis à sociedade. Tais “[...] instituições eram, em sua
maioria, mantidas por ordens religiosas, auxiliadas por donativos e, às vezes, pelos poderes
públicos. Esta tendência manteve-se no século XX [...]” (PILOTTI, 2011, p. 20).
As instituições filantrópicas solicitavam a participação do Estado na assistência e
proteção à infância abandonada e transgressora, por meio da ajuda financeira, mas deveriam
deixar a ação maior por parte da instituição particular (MARCILIO, 2006).
As instituições para recolhimento dos indesejados das cidades foram criadas poucos
anos após a implantação da República e atendiam às políticas repressivas. De acordo com
Rizzini, Irma (2011), em 1893, o governo instaurou a primeira medida para isolar os “vadios,
vagabundos e capoeiras”2, promulgando o Decreto n. 145, de 11 de julho de 1893, que
autorizou o governo a implantar uma colônia correcional “para correção pelo trabalho”
daqueles isolados que, independentemente de sexo e idade, poderiam ser recolhidos: ausentes
do poder paterno; sem meios para subsistência; e os que vagavam pela cidade na ociosidade.
Marcílio (2006) descreve que as “colônias agrícolas para ingênuos”3 ou “colônias
orfanológicas”4, como eram denominadas, mantinham uma forma de funcionamento, de
espaço e atendimento pedagógico, submetendo os menores ao regime total de controle, de
internato. Ainda conforme a autora, as colônias seguiam o modelo adotado na França e de
Red Hill, na Inglaterra (chamadas de colônias de Mettray).
2
No início da República, a repressão era sistemática, e muitos negros que praticavam a capoeira foram presos sob
a acusação de vadiagem e prática de “capoeiragem”. A repressão a essa manifestação cultural foi tão intensa que
os termos “capoeira”, “capoeirista” ou “capoeiragem” eram sinônimos de vagabundagem ou vadiagem, em
outras palavras, sinônimos de crime. Assim, as palavras vadio, vagabundos e capoeiras, representavam termos
pejorativos. A criminalização da capoeira foi assegurada no primeiro Código Penal da República, de 1890
(MARÍLIA, 2012, p. 198).
3
Instituição que realizava o atendimento de ingênuos, que significavam a criança livre de mãe escrava, nascida a
partir de 1871, “Lei do Ventre Livre”.
4
Instituição que realizava o atendimento de meninos e meninas órfãos e abandonados.
37
De acordo com Rizzini, Irma (2011), as colônias agrícolas eram instituições para o
Recolhimento dos indesejados das cidades, criadas logo após a implantação da República,
atendendo a uma política de correção/ repressão aos menores. A autora (2011, p. 227-228)
aponta a disposição do governo em criar colônias correcionais para a resolução dos problemas
de vadiagem no Distrito Federal. Em 1902, foi reforçada pela aprovação da Lei n° 947, de 29
de dezembro de 1902, que realizou a “reformulação do serviço policial no Distrito Federal”,
que empregou a categoria dos “menores viciosos” que, julgados, como tais, deveriam ser
internados nas colônias correcionais. Essa categoria poderia ser ampliada pelos menores
inculpados criminalmente, que tivessem agido “sem discernimento”, “órfãos” e “encontrados
sós na via pública”. Quando internado, o menor só poderia permanecer até que completasse
17 anos, cabendo somente o juizado de Órfãos o poder de sustar a internação.
Marcílio (2011) ressalta que as medidas sobre a criação das colônias agrícolas
afastadas da sociedade mostram conotação arbitrária em relação ao atendimento aos menores,
como pode ser visto em relação ao instituto João Pinheiro, em Belo Horizonte, em 1909:
O tratamento educativo do menino desvalido só é realizado com sucesso em
internato, e este deve ser instalado no campo, porque: a) o regime higiênico é
aí muito melhor assegurado do que na cidade;b) a solicitação da rua, do meio
deletério em que crescia ao abandonado é muito menos intensa; c) a ação
educativa do trabalho agrícola é reconhecido como a mais eficaz; d) o
sistema de internato em pequenos grupos de regime familiar (cottage
system), preconizado pelos educadores modernos, só é viável no
campo.(MARCÍLIO, 2011, p. 212)
Percebe-se que as instituições foram construídas atendendo às normas das instituições
filantrópica e orientações ideológicas da sociedade. Assim, o isolamento dos menores nas
instituições e as edificações construídas afastadas dos centros urbanos evidenciaram a prática
da limpeza social.
A autora (op cit) destaca, entre esses projetos, a fundação de algumas instituições,
como o Instituto G. Bittencourt, para meninas, criado no ano de 1890, em Belém; a Casa São
José, Asilo de Meninos Desvalido, implantado no Rio de Janeiro, bem como a Escola
Premonitória 15 de Novembro, criada no final do século XIX, escola modelo do governo,
destinado a menores abandonados. Assim, quando os menores eram encontrados nas ruas,
eram logo recolhidos pelo juiz de órfãos ou pela polícia. Não sendo reclamados pelos seus
responsáveis após 15 dias, eram encaminhados para essas instituições.
As instituições, segundo Faleiros (2011, p. 43), incluíam em seu discurso um
posicionamento educativo e de encaminhamento à integração do menor ao trabalho e
38
instituíam o objetivo de “dar educação física e moral aos menores abandonados e recolhidos
por ordem das autoridades competentes”, estratégias adotadas também por asilos e orfanatos,
dando ênfase ao trabalho doméstico e aos ofícios. Os menores considerados viciosos,
vagabundos e ébrios habituais eram tratados segundo as estratégias de repressão e levados
pela polícia às prisões comuns. O trabalho ou a repressão eram as estratégias adotadas pelo
Estado.
Em 1901, no estado do Rio de Janeiro, foi estabelecida a colônia penal agrícola,
Fazenda de Santa Mônica, a cargo da Sociedade Nacional de Agricultura. No ano seguinte,
em São Paulo, foi fundada a Colônia premonitória e disciplinar, para a recuperação do menor
abandonado e infrator. Assim, o problema do menor constituía um problema filantrópico
correcional e corretivo, considerado assunto de polícia. Ao Estado caberiam apenas a
fiscalização e o auxílio, enquanto que a atuação maior ficava ao encargo de particulares ou
associações responsáveis. em grande parte, pela internação dos menores.
De acordo com Marcílio (2011, p.212), a colônia Agrícola Orfanológica e Industrial
Isabel do Recife, aberta em 1873, representou o primeiro ensaio de escola agrícola e industrial
no país, com a finalidade de “produzir cidadãos ordeiros e moralizados através do trabalho”.
A instituição oferecia a instrução primária, artística e agrícola, além de cursos de ofícios de
pedreiro, carapina, marceneiro, serrador e cozinheiro.
A expansão dessas colônias, segundo a autora, ocorreu por todo o país: em Fortaleza, a
Colônia Agrícola Orfanológica Cristina (1881); na Bahia, a Colônia Orfanológica Isabel
(1886); no Rio de Janeiro, a Colônia Correcional de Dois Rios (1902); no Pará, a Colônia
Orfanológica, Artística, Industrial e Agrícola Providência (1899); a Colônia Lauro Sodré
(1921), entre outras.
Paralelamente às experiências de educação e reabilitação em colônias agrícolas,
surgiram projetos de grandes institutos de internamento para a recuperação de jovens
infratores e para a proteção de menores desamparados. No entanto, segundo Marcilio (2011),
o que se evidenciou nesses projetos foi o caráter educativo voltado ao trabalho.
A partir desses estudos, depreendi que a política de atendimento aos menores
“indesejados” pela sociedade, à época, estava balizada na institucionalização. Essa, por sua
vez, pautava-se na retirada da sociedade aqueles que destituíssem a “ordem social, moral e
econômica”. Dessa forma, os estabelecimentos deveriam propor ações que divulgassem
normas e hábitos para conservar e aprimorar a saúde coletiva e individual, bem como
fortalecer o aprendizado da moral e de ofícios para a inserção no mercado de trabalho, ou
seja, para serem pessoas de “utilidade social”, e não mais um “problema social”.
39
Londonõ (1996) narra que, no final do século XIX, os juristas brasileiros descobriram
o “menor” nas crianças e adolescentes pobres das cidades que, por não estarem sob o poder de
seus pais e tutores, eram chamados de menores abandonados. Já o que estavam nas ruas dos
grandes centros das cidades, mercados, praças e eram presos ao praticarem delitos, passaram a
ser chamados de menores criminosos.
Ainda segundo o autor, para os Juristas Cândido Nogueira da Motta e Evaristo de
Moraes os menores eram, principalmente, abandonados pelo Estado, que os ignorava e os
tratava como simples caso de polícia. O menor não era filho “de famílias”, sujeito à
autoridade do seus pais, ou mesmo um órfão devidamente tutelado, mas o menor material e
moralmente abandonado.
De acordo com Londonõ (1996), o termo „menor‟ aparecia frequentemente no
vocabulário jurídico brasileiro. Antes dessa época, o uso do termo não era tão comum e seu
significado era restrito. Apenas a partir de 1920 o termo passou a referir e indicar a criança
em relação à situação de abandono e marginalizada e delinquente, além de definir a sua
situação civil e jurídica e os seus direitos.
Assim, o final do século XIX e início do século XX foram marcados por intensas
discussões e transformações no cenário político social e econômico. O problema da infância e
da adolescência que vivenciava os processos de exclusão também passou a fazer parte desses
embates, pois tais pessoas eram vistas como uma ameaça à ordem, aos bons costumes da
sociedade brasileira e um entrave para o desenvolvimento do país.
O período de 1923 a 1927 foi profícuo em termos de leis sobre a assistência e a
proteção à infância desvalida e delinquente. Em 1923, foi instituído o Decreto n° 16.273, que
tratou de reorganizar a Justiça do Distrito Federal, colocando em cena a figura do Juiz de
Menores. José Cândido de Albuquerque Mello Mattos foi o primeiro Juiz de Menores do
Brasil.
O Decreto N° 17.943-A, de 12 outubro de 1927, denominado de Código Mello Mattos,
também conhecido como Código de Menores, apresentou 231 artigos. É considerado o
primeiro dispositivo legal a dar um tratamento mais sistemático e humanizador à criança e ao
adolescente, embora elaborado exclusivamente para o controle da infância abandonada e
delinquentes de ambos os sexos, menores de 18 anos (AZEVEDO, 2008).
O Código de Menores, segundo Berger e Gracino (2005), tratou da assistência e da
proteção ao menor. É considerado o primeiro conjunto de leis estabelecido no Brasil para
crianças e adolescentes, passando para o poder do Estado a tutela legal dos menores
abandonados até os 18 anos.
40
O Estado teve que assumir legalmente a tutela dessa população, ou seja, cuidar tanto
das questões de higiene quanto da delinquência da infância, estabelecendo vigilância pública
aos menores, sejam eles classificados como “abandonados” ou “delinquentes”, conforme
destacam Berger e Gracino (2005).
De acordo com Nascimento (2005), essa regulamentação trouxe a concepção de
controle incorporado ao aparato jurídico-assistencial, com a finalidade de educação
(preparação para o trabalho) e correção dos denominados menores (doutrina). Oliveira, W
(2007) explica que esse Código estava fundamentado na ideia da incompetência das famílias,
culpando-as pelo não provimento da subsistência e do desenvolvimento de seus filhos.
Propunha a medida de institucionalização dos menores órfãos ou filhos de “pais
irresponsáveis”, tendo como objetivo educá-los e discipliná-los sob o ponto de vista físico,
moral e civil. Novamente percebe-se que as crianças pobres e sua família são culpadas pela
pobreza.
Aquele era um período de grande turbulência na economia mundial, que culminou, em
1929, com a queda da bolsa de Nova Iorque. Tal convulsão também foi sentida no Brasil, pois
os Estados Unidos eram o principal comprador do café brasileiro. Houve a diminuição da
importação e a queda dos preços do café (MUZZETI, 1997).
A queda da bolsa de Nova Iorque afetou diretamente a economia brasileira, totalmente
dependente do modelo agrário-exportador. Gerou desemprego, pressões no mundo do
trabalho, sucessão de revoltadas de jovens tenentes do Exército iniciadas ao longo nos anos
1920 e intensas nesse período, crescente insatisfação dos setores oligárquicos pelo
afastamento das decisões políticas, surgimento do proletariado urbano e consecutivo recurso
ao estado de sitio durante a República Velha. Tais fatores contribuíram para a Revolução de
1930 (PAIXÃO, 2011).
Paixão (2011) relata que a figura principal nesse processo foi Getúlio Dornelles
Vargas, ex-ministro da Fazenda do último governo da República Velha e também expresidente da Província do Rio Grande do Sul. Seu desempenho na revolução de 1930 e o
novo direcionamento político e econômico resultaram em seu governo, que durou de 1930 a
1945, período que corresponde ao Estado Novo.
Ferreira (2015) aponta que o Estado Novo foi um período caracterizado por uma
política intervencionista e centralizadora, principalmente quando se trata da questão do
Menor. Nesse período buscou-se a articulação do governo com o setor privado, que passou a
ter um caráter “semioficial”, recebendo verbas e orientações do Estado, privilegiando o
trabalho e o bem-estar coletivo.
41
Ainda para a autora, a educação nesse período estava aliada ao trabalho. Assim, o
governo de Getúlio Vargas criou a Casa do Pequeno Jornaleiro, a Casa do Pequeno Lavrador
e a Casa do Pequeno Trabalhador. Todas essas instituições visavam ao apoio assistencial e,
principalmente, ao caráter socioeducativo de menores de baixa renda ou em situação de risco.
A infância, no Estado Novo, era uma questão de defesa nacional, sendo visto por
alguns membros do governo como uma ligação com o comunismo e o desamparo social das
crianças. O Juiz de Menores, Sabóia Lima, defendia que cuidar da criança fazia parte da
“defesa da pátria e da sociedade”, uma vez que “a criança é um dos elementos mais
disputados pelo comunismo”. Era necessário assistir a criança necessitada, por meio de
métodos científicos, como um instrumento na defesa da nação e da dignidade do país.
(RIZZINI, Irma, 2011, p. 248).
Para Ferreira (2015), no período de 1940 a 1943, o governo de Getúlio Vargas
instaurou uma série de ações voltadas à proteção de crianças pobres e suas famílias, como: A
Legião Brasileira de Assistência (LBA), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
(SENAI), o Serviço Social do Comércio (SENAC) e a Campanha Nacional de Educandários
Gratuitos e o Decreto-Lei nº 2.024, de 17 de fevereiro de 1940, que determinava o modelo de
proteção à infância através da criação do Departamento Nacional da Criança (DNCr).
Rizzini, Irma (2011) e Ferreira (2015) expõem que o DNCr estava vinculado ao
Ministério da Educação e Saúde, responsável pela coordenação da nova política menorista
estabelecida pelo Estado Novo. A prioridade era “manter a estabilidade da família” e o “papel
da mãe é privilegiado: pois ela é responsável pelos cuidados físicos e pela educação moral da
criança”. Mas, com o passar dos anos, o DNCr sofreu pela falta de recursos, o que levou a
associar-se à LBA, que possuía receita própria, advinda de contribuições compulsórias dos
trabalhadores sindicalizados, além de estar vinculada à autoridade da primeira dama. Assim, o
DNCr conseguiu financiar os programas de atendimento à Infância, principalmente os postos
de puericultura.
Ferreira (2015) cita que os postos de puericultura eram responsáveis pelo atendimento
de todas as gestantes, mães e crianças, que recebiam orientações de saúde. Ao tratar das
crianças desvalidas, o tom dado pelo decreto Lei nº 2.024, de 17 de fevereiro de 1940, foi
alterado. A nomenclatura criança foi modificada pelo termo menor, evidenciando uma
diferenciação entre aqueles que seriam atendidos e os que deveriam ser reprimidos. Segundo a
autora, era visível a inadequação do DNCr para a assistência de menores desamparados,
tratando da prevenção e não do controle do desvalido.
42
A assistência pública aos menores, nesse período, foi tratada pela esfera jurídica,
através dos Juízes de Menores e pela atuação isolada de alguns estabelecimentos para
menores. Porém, em 1941, “[...] o governo federal criou um órgão que deveria centralizar a
assistência ao menor, inicialmente no Distrito Federal” (RIZZINI, Irma, 2011, p. 262).
Tal órgão foi instituído pelo Decreto presidencial Lei nº 3.799, de 5 de novembro de
1941, que transformou o Instituto Sete de Setembro em Serviço de Assistência a Menores
(SAM), diretamente subordinado ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores e articulado
com o Juízo de Menores do Distrito Federal (BRASIL, 1941).
O Serviço de Assistência ao Menor (SAM) orientou as políticas públicas para a
infância, investigando os menores com a finalidade de internação e ajustamento social.
Realizava o procedimento de exame médico-psicopedagógico, abrigava e distribuía os
menores para estabelecimentos como o Instituto Sete de Setembro, agora denominado como
SAM. “Incorpora a Escola Quinze de Novembro, a Escola João Luís Alves, o Patronato
Agrícola Arthur Bernardes, o Patronato Agrícola Wenceslau Braz, e também controla e
supervisiona as instituições particulares [...]” (FALEIROS, 2011, p. 54).
Nesse mesmo período, em 1944, foi criado, no então estado de Mato Grosso, o Serviço
de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), na cidade de Corumbá. Era destinado ao
atendimento de menores “abandonados” e “delinquentes” que estavam perambulando pelas
ruas. Eles eram encaminhados à instituição, que se assemelhava ao tipo de atendimento
prestado pelo SAM, pois realizava a internação dos menores, com a finalidade de ajustamento
social.
Por meio do Juizado de Menores, o SAM passou a receber crianças e adolescentes das
classes populares que, pela falta de recurso financeiro ou pelo risco de virem a realizar atos de
delinquência, eram encaminhados pelas autoridades judiciárias para a medida de internação.
Havia também os casos em que os pais pediam a internação dos seus filhos para que
recebessem a devida educação escolar, pois acreditava-se que a “boa educação” era oferecida
pelo Colégio Interno. Tal noção era reafirmada pelo Estado, que incutia nas classes populares
a ideia de que a criança bem-educada deveria estar afastada de suas famílias (COUTO;
MELO 1998).
Segundo Perez e Passone (2010), em 1953 foi criado o Ministério da Saúde, que deu
continuidade à assistência à infância, no modelo do Departamento Nacional da Criança. O
cenário de atendimento à infância passou a se caracterizar pela prática política que aliava
ações assistencialistas, higienistas e repressivas, com a iniciação de ações com caráter mais
participativo e comunitário.
43
Nesse momento, também se verificou um novo enfoque dado aos “Menores”,
principalmente pelas “agências multilaterais, como o Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) e a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação
(FAO)”, e com a discussão do 9º Congresso Pan-americano da Criança, realizado em Caracas,
em 1948, sobre os direitos do “menor”, aprofundado em 1959 (PEREZ; PASSONE, 2010).
O ano de 1959 representou um dos momentos simbólicos para o avanço das conquistas
da infância. Nesse ano, as Organizações das Nações Unidas (ONU) proclamaram a
Declaração Universal dos Direitos da Criança, reafirmando a importância de se garantir a
universalidade, a objetividade e a igualdade na consideração de questões relativas aos direitos
da criança. A criança passou a ser considerada como sujeito de Direito, o que representa uma
profunda revolução. A Declaração ressalta a importância de se intensificarem esforços
nacionais para a promoção do respeito dos direitos da criança à sobrevivência, proteção,
desenvolvimento e participação (MARCILIO, 1998). O hiato entre as documentações que
tratavam do direito universal da criança e a realidade do atendimento que estava acorrendo no
Brasil levou ao questionamento do atendimento oferecido pelo SAM e mesmo do Código de
Menores de 1927.
Vale enfatizar que, nesse período, o SAM já estava sofrendo críticas, pelo número alto
de crianças e adolescentes encaminhados para esse serviço, que crescia assustadoramente. As
instituições não estavam dando conta da demanda. Eram comuns as fugas e as revoltas dos
internos, causadas pelas condições péssimas de moradias, castigos corporais, prostituição e
desvio de verbas. Passaram a ser chamadas popularmente de “Escola do Crime, Fábrica de
Criminosos, Sucursal do Inferno, Fábrica de Monstros Morais e SAM - Sem Amor ao Menor”
conforme destaca Rizzini, Irene (1995 apud COUTO; MELO 2011, p. 32).
Segundo Oliveira, W. (2004) e Marcílio (2006), no contexto do Golpe Militar, em
1964, foi implementado um sistema público „ modernizado‟ e moralizador, comprometendose com a sociedade a realizar uma „limpeza‟ no setor público, em especial devido às
denúncias do mau funcionamento no SAM.
Assim, foi promulgada a Lei 4.513, de 1° de dezembro de 1964, que criou a Política
Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM), extinguindo o SAM. O ponto de partida dessa
política foi a implementação de uma instituição normativa em nível central, a Fundação
Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), que tinha como objetivo elaborar e
implementar Políticas Públicas de Bem-Estar dos menores e redistribuir recursos e apoio
financeiro às instituições comissionadas, em nível estadual, representadas pelas Fundações
Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEMs).
44
Earp (1998) menciona que a FUNABEM propôs internação nos Centros de
Reeducação, criando e desenvolvendo toda uma linguagem e um sistema de seleção de
internos coerentes com a postura funcionalista e científica. Os menores classificados em
„carentes‟ ou que estivessem no início do processo de marginalização ficavam em casas de
permanências abertas.
Os menores que tivessem algum comprometimento
eram
encaminhados a internatos semiabertos. Já os menores que apresentassem maior grau de
periculosidade deveriam ir para estabelecimentos fechados, „estabelecimento educacional que
permite saída de menores somente com autorização especial do Juiz de Menores‟.
Perez e Passone (2010) elucidam que, nos anos 1970, novamente entraram em debate
os “direitos dos menores”. Retornaram ao centro das discussões devido à influência dos
Documentos Internacionais, que propunham que a magistratura favorecesse a promoção da
família e da comunidade no cuidado da criança e do adolescente e a salvaguarda dos seus
direitos. Consideravam crianças e adolescentes como sujeitos de direito, o que reiterava os
princípios enunciados pela Declaração dos Direitos da Criança, de 1959.
A proposta de reformulação da legislação que tratava da questão da Infância explicitou
a divergência entre duas concepções. A primeira, representada pelos legisladores e juristas
que mantinham a concepção de “menor como objeto do direito penal”, e a segunda
representada pelos setores do executivo, que defendiam o “menor enquanto sujeito de
direitos”. Porém, não houve mudanças legais sobre a situação da Infância. Perez; Passone
(2010 apud RIZZINI, 1995, p. 146).
De acordo com Perez e Passone (2010), a proposta de uma Declaração dos Direitos da
Criança não encontrou repercussão política na férrea doutrina militar. O resultado disso foi a
aprovação do Código de Menores, que seguia os moldes do antigo Código de Menores da
primeira República, concretizado na doutrina de situação irregular do menor. Dessa maneira,
verificou-se a ausência da participação política, e a autonomia da burocracia estatal se
fortaleceu pela atuação da tecnocracia e dos militares dentro do estado.
Os anos 1980 foram marcados pelo início da abertura democrática. No período
também se ampliaram as discussões sobre os direitos humanos e sociais, entre elas sobre a
questão da infância e adolescência no Brasil. O Código do Menor de 1979, como exposto por
Vieira (2011), foi duramente criticado e questionado pelo seu caráter estigmatizante e parcial.
Em 1985, com o fim da ditadura militar, assumiu um governo civil, que por sua vez
foi fruto de um processo de mobilização, que culminou no movimento das „Diretas Já‟, de
base comunitária e com participação de amplos segmentos da sociedade, entre eles os
intelectuais e profissionais da área social. Eles, por sua vez, buscaram uma articulação cada
45
vez mais forte entre os diferentes movimentos sociais e a participação da sociedade civil na
construção das novas instituições. Esses movimentos repercutiram internacionalmente e
abriram caminho para a defesa da Doutrina Jurídica de Proteção Integral (OLIVEIRA, 2004).
Segundo Silva e Mello (2004), a edição das Regras Mínimas das Nações Unidas para a
Administração da Justiça da Infância e da Juventude, conhecidas por Regras de BeijingPequim, em 1985, acabaram por estabelecer exigências procedimentais, com o intuito de
diminuir a arbitrariedade na aplicação de medidas aos infratores juvenis.
As discussões no âmbito nacional culminaram na criação da Comissão Nacional
Criança e Constituinte, em 1986. Vale ressaltar que, meses antes da promulgação da Carta
Constitucional, segundo Rizzini, Irene (2000), vários grupos se organizaram na luta em defesa
das mais variadas causas de cunho social, de acordo com o interesse de cada grupo. Esse
cenário fez com que muitas lutas da sociedade passassem a ser incorporadas no texto da
Constituição Federal de 1988 (CF/88). Dessa forma, ela passou ser reconhecida como
"Constituição Cidadã", pois incluiu, entre outros direitos sociais, a proteção integral às
crianças e aos adolescentes. Também introduziu, em relação ao aparato legal brasileiro, o
conceito de seguridade social, agrupando as políticas de assistência, previdência social e
saúde, representando um marco histórico na garantia dos direitos básicos da sociedade
brasileira (BERGER; GRACINO, 2005).
De acordo com Couto e Melo (1998), o modelo FUNABEM acabou por perpetuar os
mesmos erros do antigo estabelecimento, inchando a instituição de crianças, além de desvios
de verba, denúncias de corrupção, prostituição e maus tratos. Foi assim que, com o processo
de redemocratização do país, com os movimentos sociais que solicitavam mudanças e,
especificamente, com as pressões de várias organizações não governamentais, como a
Pastoral do Menor, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e de estudiosos da
questão da Infância, a Constituição de 1988 estabeleceu, no artigo de 227, a proposta da
elaboração de uma nova legislação para a Infância.
Em meio às mudanças, a FUNABEM foi extinta em 12 de abril de 1990, com a
criação do ministério da Ação Social. Em atenção à proposição da constituinte, o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069 de 13 de julho de 1990, foi aprovado, trazendo a
garantia de direitos às crianças e aos adolescentes, entendendo-os como sujeitos de direitos.
Após a recuperação da história do Atendimento à Infância e Adolescência no Brasil,
verifica-se que, ao longo dos anos, houve várias mudanças na política de atendimento, desde
uma perspectiva de assistência caritativa e filantrópica, passando por uma perspectiva
correcional e repressiva, até finalmente chegar à perspectiva atual de garantia de Direitos, cuja
46
finalidade é oferecer a proteção integral às crianças e adolescentes, conforme previsto na
Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990.
Na próxima seção, discorro sobre a dinâmica econômica, política e social da cidade de
Corumbá de 1940 a 1980, período marcado por várias mudanças na área social, política, e
econômica. No setor econômico, ocorreram momentos de auge, como também de crise,
mudanças sentidas pela população corumbaense e na instituição do atendimento institucional
realizado pelo Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC). Disserto, também,
sobre o aporte teórico utilizado na análise dos dados e, para finalizar, sobre os dados
referentes ao funcionamento do SAMC na cidade.
45
3. O ATENDIMENTO À INFÂNCIA ABANDONADA E DELINQUENTE: O SERVIÇO
DE ASSISTÊNCIA AOS MENORES DE CORUMBÁ
O objetivo desta seção é apresentar a dinâmica social, econômica e política da cidade
de Corumbá-MT, no período de 1940 até a divisão do estado5, assim como a dinâmica social,
econômica e política da cidade nos anos 1980. Esse período inclui o momento em que a
instituição em estudo esteve em atividade. Dessa forma, se fez necessário compreender o
contexto da criação, da organização e do funcionamento do Serviço de Assistência aos
Menores de Corumbá (SAMC), com a finalidade de analisar o papel social da instituição.
3.1 O cenário da pesquisa: a cidade
Apresento, nos subitens abaixo, a contextualização da cidade de Corumbá,
organizados da seguinte maneira; no primeiro momento, a dinâmica econômica, política e
social de Corumbá de 1940; depois, a divisão do estado de Mato Grosso e a criação do estado
de Mato Grosso do Sul e, por último, a dinâmica econômica, política e social de Corumbá nos
anos 1980.
Corumbá é um município da região Centro-Oeste do Brasil, situado às margens do Rio
Paraguai, a meio caminho dos centros urbanos de maior destaque em âmbito regional Cáceres e Cuiabá, em Mato Grosso (MT), e Campo Grande, em Mato Grosso do Sul (MS) - é
cidade fronteiriça da Bolívia. Esses dois fatores (sua localização privilegiada na bacia do Alto
Paraguai e a proximidade com a Bolívia) marcaram o desenvolvimento da cidade desde os
seus primórdios, no século XVIII, conforme destacado por Ito (1992).
A autora relata que, através do crescimento da navegação no Rio Paraguai, Corumbá
projetou-se, no final do século XIX, como a principal cidade dentro da hierarquia urbana,
pois, conforme narra Corrêa (1997 apud MORAES, 2011, p.08), diversas companhias de
navegação nacional e internacional se instalaram em Corumbá após a guerra do Brasil com o
Paraguai. Os criadores de gado que haviam se retirado da região no período da guerra
retornaram com suas famílias e desenvolveram a pecuária na região. O comércio local
portuário, favorecido pelo fato de Corumbá se constituir na principal porta de entrada e saída
5
Lei Complementar n. 31, de 11 de outubro de 1977, que criou o estado de Mato Grosso do Sul pelo
desmembramento de área do estado de Mato Grosso.
46
de mercadorias de Mato Grosso, tornou-se o principal centro distribuidor de mercadorias de
Mato Grosso para o resto do mundo.
Brito e Arruda (2007) expõem algumas das atividades comercias e industriais
instaladas na cidade de Corumbá no final dos anos 1940 e início dos anos 1950:
[...] condições favoráveis, como a seca prolongada no Pantanal, facilitando o
criatório bovino, e os incentivos gerados para a atividade comercial e
industrial, no pós-guerra imediato, ainda como conseqüência da política
federal de „Marcha para o Oeste‟ (CORRÊA, 1994), fizeram com que a
cidade de Corumbá se desenvolvesse nas áreas do comércio e indústria. Esse
surto industrial, combinando capitais locais e de outras procedências, trouxe
ao município investimentos que geraram a abertura de indústrias siderúrgicas
(SOBRAMIL, grupo Chamma), fábrica de cimento (Cia. de Cimento
Portland Corumbá), moinho de trigo (Moinho Matogrossense), caieiras
(Caieiras A. Giordano, Freire e São João), curtumes (Curtume Corumbá,
Kassar & Cia.), marmoraria (Santa Blanca), cervejaria e fábrica de
refrigerantes (Cervejaria Corumbaense), entre outras (BRASIL, 1966b).
Corumbá se torna, então, centro de abastecimento destes produtos – cimento,
cal, couro, trigo, entre outros – para as regiões de Coxim, Cáceres e Cuiabá,
ao Norte, além de Porto Murtinho, Miranda e Aquidauana, ao Sul e a Leste
(MICHELS; OLIVEIRA, 1995). Simultaneamente, isso provocou também
um processo migratório diversificado para a região, com populações
oriundas do Nordeste do estado de Minas Gerais e também de outras cidades
mato-grossenses, como Cuiabá e Cáceres, além de bolivianos e paraguaios,
atraídos, pelas oportunidades de emprego surgidas com a instalação desses
empreendimentos.
Devido a esse desenvolvimento, em 1950 o governo estadual publicou o edital de
concorrência para a instalação dos serviços de água e energia elétrica e respectivo
aparelhamento em Corumbá. Já a prefeitura municipal da cidade deu início à implantação da
infraestrutura e de equipamentos em Corumbá e assinou contratos para o calçamento e
arborização do centro da cidade. Também inaugurou o primeiro serviço de transporte público,
denominado “Expresso Cinderela” (ITO, 1992).
Brito e Arruda (2007) comentam que não houve, antes dos anos 1950, preocupação
com a infraestrutura da zona periférica. Mas essa preocupação veio à tona com as mudanças
econômicas e sociais ocorridas no período.
Em fins de 1952, chegaram a Corumbá os trilhos da Noroeste, numa extensão total de
1.330,5 quilômetros. Seu ponto de partida localizava-se em Bauru. Passavam por 150 estações
e paradas, incluindo Porto Esperança8, até finalmente chegar à cidade de Corumbá, o ponto
8
A Estação Ferroviária de Porto Esperança, antes da construção da Ponte Eurico Gaspar (inicialmente chamada
Rio Branco), teve grande importância na região, pois era o fim da linha dos trilhos da NOB. Era um importante
ponto de transbordo de cargas e passageiros que tinham como destino Corumbá, a sede do município e
adjacências, sendo assim um grande ponto de integração do transporte ferroviário com o transporte fluvial.
47
final (GERODETTI; CORNEJO, 2005 apud MORAES, 2011). Brito e Arruda (2007)
apontam que o auge econômico da cidade foi abalado com a construção da Estrada de Ferro.
De acordo com Corrêa (2006 apud MORAES, 2011, p.92), a linha férrea favoreceu o
florescimento e o desenvolvimento de povoados localizados às margens de seus trilhos, como
também Campo Grande, e remeteu Corumbá à posição de mero vilarejo ao final da linha.
Consequentemente, as casas de comércio, antes abastecidas diariamente pelas várias
embarcações, passaram a depender dos trens de carga para o transporte das mercadorias que,
por sua vez, não circulavam com tanta regularidade, além de atrasarem por semanas e até
meses. Os comerciantes começaram a sofrer sérios prejuízos econômicos com a falta de
mercadorias.
Moraes (2011) enfatiza que a chegada da estrada de ferro a Corumbá, nos anos 1950,
não interrompeu o desenvolvimento da cidade. Porém, ela atravessou um processo de
reordenamento, pois perdeu a posição de principal centro comercial de Mato Grosso e buscou
novas alternativas, como a pecuária e atividades ligadas à agroindústria.
Dessa maneira, nos anos 1950, a cidade de Corumbá passou por profundas
modificações, na tentativa de evitar maiores agravos na economia local. Foi necessário criar
novas alternativas, conforme os estudos de Ito (1992), Moraes (2011) e Perez (2012).
Para Ito (1992), o revigoramento da economia local se deu por meio da implementação
da atividade industrial, melhoria da pecuária de corte e instalação da pecuária leiteira.
Simultaneamente a esses acontecimentos foram assinados diversos acordos entre o Brasil e a
Bolívia, de compra e exportação de gás natural e petróleo boliviano. Também foram
negociadas construções de portos, rodovias, ferrovias e áreas de zonas francas. Tais acordos
bilaterais isentaram de taxação diversos produtos brasileiros exportados e consumidos na
Bolívia.
Nos anos 1960, a cidade de Corumbá ainda era considerada local de difícil acesso.
Possuía várias deficiências em sua infraestrutura, como escolas, serviços de saúde,
saneamento básico (água encanada e esgoto), iluminação pública, entre outros, se
assemelhando à zona rural. Contudo, a cidade alavancara seu desenvolvimento econômico
como entreposto comercial, e tivera toda a sua infraestrutura localizada nos arredores da
região portuária, na qual se dera e crescera o fluxo comercial.
Ito (1992) assinala que a extensão ao sul da cidade não apresentou obstáculos para o
crescimento da malha urbana até o início dos anos 1960, quando a expansão da cidade atingiu
a área da morraria. Portanto, ao longo dos anos 1960 e 1970, a população corumbaense se
distribuía em meio aos vales e sopés dos morros.
48
Assim, os anos 1960 foram marcados por um crescimento relativamente menor do que
nos anos 1950. A economia sofreu com a interligação rodoviária entre Campo Grande e
Cuiabá. Como as mercadorias não mais precisavam passar pelo porto de Corumbá, o porto
entrou em um processo de declínio.
Ainda nessa década houve a crise da pecuária de corte, levando os pecuaristas a
implantarem a pecuária de leite. Foi inaugurada uma usina de pasteurização do leite que, ao
final de um ano, entrou em falência. Nos anos 1960 ocorreram muitas dificuldades no setor da
pecuária. Apesar de várias tentativas de superação, a crise se estendeu até os anos 1970.
Ito (1992) ressalta que, apesar da crise no setor regional, a cidade de Corumbá recebeu
muitas melhorias no setor da infraestrutura, como asfaltamento das ruas do centro da cidade,
instalação do sistema de telefonia automática, linha de transporte público, e entrega de 176
casas da Companhia Nacional de Habitação (COHAB), dando seguimento ao crescimento
econômico iniciado em 1950.
Nos anos 1970 houve uma grande euforia com a construção de rodovias. Mesmo sem
asfalto, a estrada Corumbá – Campo Grande representou a autonomia econômica de Corumbá
e a independência da linha férrea Noroeste do Brasil.
No entanto, no final de 1972, ocorreu uma grande enchente, levando os fazendeiros a
destruírem trechos da estrada, a fim de amenizar as perdas na pecuária (a estrada havia sido
construída através da elevação do terreno, que passou a funcionar, em alguns lugares, como
um dique. Impedia o escoamento das águas e deixava as fazendas submersas). A enchente e a
interrupção de trechos da estrada levaram a cidade ao isolamento (ITO, 1992).
Corumbá entrou em um processo de decadência econômica como estampado nos
noticiários da época, que apontaram também a crise gerada em decorrência da grande
enchente, sendo a pecuária a atividade econômica que mais sofreu perdas com o período de
cheia no Pantanal. Outro setor atingido pela enchente foi o comércio, que registrou queda de
40% do movimento, em decorrência do isolamento (ITO, 1992).
Nesse período, houve a reivindicação da instalação do gasoduto, ligando os poços do
oriente boliviano ao estado de São Paulo, passando por Corumbá, motivando os
corumbaenses na luta pela implantação de uma termoelétrica, o que poderia solucionar o
problema da falta de energia elétrica. Ito (1992) explica que a termoelétrica, sob a ótica dos
empresários locais, proporcionaria o desenvolvimento da cidade.
Dessa maneira, a cidade de Corumbá vivenciou, desde a época áurea do pleno
funcionamento do porto, a importação e a exportação de produtos. Passou depois por grandes
mudanças, iniciadas com a construção da estrada de ferro. Reestruturou-se, ainda nos anos
49
1950, com as atividades ligadas ao comércio e à indústria. Nos anos 1960, as atividades
econômicas permaneceram as mesmas da década anterior, porém com o crescimento em ritmo
mais lento. A década seguinte trouxe a construção de estradas ligando Corumbá a outras
regiões. Novas expectativas se abriram, entre elas, a pecuária. No entanto, essa década foi
considerada difícil, principalmente pela enchente que afetou o setor pecuário e o comércio da
cidade.
Em meio à crise que se verificava por todo estado de Mato Grosso do Sul, ocorreu o
projeto de disputa por investimentos, trazendo à tona o debate, que se estendia por quase um
século, sobre a divisão do estado. De acordo com Murtinho (2009), esta luta foi travada por
dois movimentos, representados, de um lado, pelos sulistas favoráveis à divisão do estado e,
do outro, pelos nortistas, que se esforçavam em impedir a consumação desse ato. Assim, a
luta pela divisão esteve inserida na discussão de prós e contras.
Os argumentos pró-divisão, enfatizados pelos sulistas, eram baseados na afirmação de
que o estado de Mato Grosso era sustentado pela arrecadação das cidades do Sul, desprezadas
politicamente pelos administradores do governo que residiam na cidade de Cuiabá (Norte).
Nesse contexto, o movimento sulista argumentava que o estado dividido estaria em melhores
condições de se desenvolver. O movimento representado pelos nortistas manifestava posição
contrária à divisão e enfatizava que o estado de Mato Grosso cresceria mesmo com a divisão,
conforme destaca Murtinho (2009).
Silva, A. (1997) enfatiza também esse desejo do grupo político do Sul, da criação de
uma nova unidade federativa, além das diferenciações econômicas e sociais do Norte em
relação ao Sul. A instauração da soja no sul do estado de Mato Grosso, a partir de 1960,
provocou mudanças
significativas na economia da região,
passando
a assumir
progressivamente um caráter nitidamente comercial, dando início à industrialização no
campo.
No ano de 1977, ocorreu a divisão do estado de Mato Grosso e foi criado o estado de
Mato Grosso do Sul, a partir da assinatura do General Ernesto Geisel da Lei complementar n°
31, de outubro de 1977. Porém, o novo estado só foi instalado em 1979, com a indicação do
governo e as eleições dos deputados estaduais e federais. (SILVA, A. 1997).
Com a criação de Mato Grosso do Sul, seus governantes teriam um papel importante a
cumprir: colocar a sua economia, voltada ao setor da agropecuária, em condições de
contribuir com a estratégia nacional de desenvolvimento, ajudando a reduzir o déficit na
balança comercial e a abrir caminhos para os mercados externos. Assim, o novo estado nasceu
em condições privilegiadas, por estar localizado próximo dos grandes centros econômicos do
50
pais, como São Paulo, Minas Gerais e Paraná e fazer fronteiras internacionais com o Paraguai
e a Bolívia (SILVA, A., 1997).
Com a divisão do estado, em 1977, Mato Grosso do Sul passou a exercer importante
função econômica no cenário nacional, assim como também a cidade de Corumbá,
principalmente por sua localização fronteiriça e pela atividade pecuária (CORUMBÁ, 2010,
p.10).
Em 1980, Corumbá acelerou mais intensamente seu desenvolvimento no plano social.
A construção e a pavimentação das rodovias representaram um aumento da população nos
arredores da cidade, tornando-se necessário criar condições para atender a essa demanda de
migrantes e imigrantes. Assim, diversos segmentos tiveram de ser ampliados: saúde,
educação, transporte, iluminação pública etc., ou seja, com a expansão comercial e industrial,
surgiu a necessidade de urbanização da cidade (ARRUDA; BRITO, 2007).
Em 1980, verificou-se o crescimento populacional na área sul da cidade,
principalmente com a ocupação dos morros pela população de menor poder aquisitivo, como
demonstra Ito (1992, p. 25):
[...] e este avanço ocorreu através de invasão desordenada em que cada
família escolhia um espaço livre e, usando da auto-construção, erguia sua
casa ou barraco. Nestas áreas, os moradores enfrentam muitos problemas
advindos da falta de infra-estrutura urbana. Não há água encanada, energia
elétrica, arruamento, coleta de lixo. A falta de água encanada não pode ser
sanada por poços, pois a constituição geológica (calcária) dos terrenos não
permite a perfuração, exceto usando tecnologia avançada para romper a
rocha, e ainda não há estudos sobre a existência de água e a qualidade desta
para consumo. [...] Apesar do direcionamento do crescimento da cidade estar
ocorrendo para o sul, para a área da morraria, a população usa como termo
depreciativo e muitas vezes pejorativos „morador do morro‟, ou tudo que
implicitamente informe que alguém „mora no morro‟. Na concepção da
população local, isto implica numa imediata associação com a condição
sócio-econômica do cidadão, numa generalização dos moradores como
componentes de um quadro de pobreza e falta de infra-estrutura urbana, e,
sobretudo associando à criminalidade. Essa peculiaridade acontece pelo fato
de Corumbá ser uma das principais rotas de entrada de entorpecentes no
Brasil [...].
Para Ito (1992), o centro da cidade de Corumbá era considerado o “coração‟‟
econômico, pois concentrava o capital comercial e financeiro e era responsável pela
localização, em sua maioria, do comércio varejista, junto às agências bancárias e à prefeitura,
bem como a proximidade e a ligação com o porto, imprescindíveis para sua dinamização.
Apesar da perda da importância do porto nos anos 1950, o setor varejista não apresentou
problemas em adaptar-se à nova modalidade de transporte. Vale destacar que a mão de obra
51
familiar era utilizada na maioria das lojas de propriedade de imigrantes palestinos e seus
descendentes.
Nessa década, as novidades se apresentaram e, gradualmente, modificaram o cotidiano
regional, pelo fortalecimento econômico dos comerciantes palestinos e aumento populacional
do lado boliviano da fronteira, assim como na esfera político-administrativa. Ainda para Ito
(1992), os serviços prestados por empresas brasileiras como a Empresa de Saneamento de
Mato Grosso do Sul (SANESUL), responsável pelo abastecimento de água e a Empresa
Energética de Mato Grosso do Sul (ENERSUL), responsável pela distribuição de energia
elétrica, contribuíram também para a integração regional, ao suprir parte das necessidades da
população da fronteira com a Bolívia (MANETTA, 2009).
Os anos 1980 foram marcados pelo crescimento populacional na região sul da cidade,
constituída, em sua maioria, por moradores com menor poder aquisitivo, vivendo em
precárias condições de vidas, em decorrência da falta dos serviços básicos, como serviço de
água, energia elétrica e saneamento básico. Em contrapartida, no centro da cidade ocorreu
uma melhoria na infraestrutura, através do asfaltamento das ruas e fornecimento de energia
elétrica e serviço de água encanada.
3.2 Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC) – a legalidade em pauta
Durante a seção anterior, foi resgatada a história das políticas de atendimento à criança
pobre, abandonada e desvalida no Brasil, desde o período Colonial, perpassando pelo Império,
República até meados do século XX, levando-nos à compreensão de como foram se
constituindo as Políticas de Atendimento à Infância institucionaliza no Brasil, e gerando o
desejo de conhecer a Política de Atendimento à Infância Abandonada e Delinquente na cidade
de Corumbá, em especial, da Instituição Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá
(SAMC).
Na tentativa de obter informações que remetessem à implantação e ao funcionamento
do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC), obtive os dados em duas
instituições. A primeira, na Câmara Municipal de Corumbá e a segunda, no Cartório do 4°
Oficio da cidade, onde foram encontrados dois Estatutos da instituição, o primeiro registrado
em janeiro do ano de 1947 e o outro, publicado no Diário Oficial do Estado, em outubro de
1972, explicitando os serviços prestados e as finalidades do SAMC.
O quadro 1 foi elaborado com a finalidade de compreender o funcionamento da
instituição, além de verificar as mudanças ocorridas entre os dois estatutos.
52
Quadro 1: Da organização e das finalidades expressas no Estatuto do SAMC
Características
ESTATUTOS
1947
1972
Amparando a Infância abandonada e
Amparando a Infância desvalida e
Da função
delinquente de Corumbá.
transviada.
Manter estabelecimentos destinados à
Da infraestrutura Construir um edifício destinado à
internação provisória dos menores
internação e educação de menores.
abandonados, mantendo uma escola para a
sua educação.
Vigiar, proteger e colocar os menores
Vigiar, proteger e colocar os menores
Dos objetivos
egressos do serviço.
egressos do serviço.
Patrocinar e promover festas de caridade
Patrocinar e promover, por todos os
Do patrocínio
em benefício dos menores internados.
meios, coletas de fundos em benefício dos
menores internados.
Promover, sempre que possível, a
-Dos
encaminhamentos colocação de menores em casas de
famílias e no comércio, mesmo em se
tratando de menores que não tenham
recebido ensinamentos no Instituto.
Estabelecer estágio profissional de
-Da formação dos
educadores médicos e juristas matoprofissionais
grossenses em serviços paulistas
especializados.
Obter do estado recursos para custeio de
Obter recursos oficiais para custeio de
bolsas para o curso especializados em São estudo, em cursos especializados visando
Paulo, de assistentes sociais matoa criar assistentes sociais (matogrossenses.
grossenses).
Formação do pessoal técnico.
-Da relação com a Organizar Centros de Orientação Familiar Organizar Centro de Orientação Familiar e
Granjas Lares
família
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir dos Estatutos de 1947 e 1972. (Anexos A e B).
O quadro mostra as várias alterações de um documento para outro. A primeira
modificação está na terminologia sobre quem seriam os atendidos: o documento de 1947
reporta-se à infância abandonada e delinquente, conforme previa o código de 1927; já o
Estatuto de 1972 traz a infância desvalida e transviada. Essa alteração parece retroceder aos
termos utilizados antes da aprovação do Código de Menores ou reportar-se, ainda, aos
menores desvalidos, termo utilizado pelo Decreto Lei n° 3.799 de 5 de novembro de 1941,
que regulamentava o SAM (BRASIL, 1941), incorporado pela FUNABEM, através da Lei n º
4.513, de 1º de dezembro de 1964, que visa, de acordo com o inciso I do Art. 6º, “à integração
do menor na comunidade, através de assistência na própria família e da colocação familiar em
lares substitutos” (BRASIL, 1964). O fato de contrariedade também pode ser observado em
relação aos encaminhamentos dos menores, pois o estatuto de 1972 não faz referência aos
encaminhamentos dos institucionalizados, o que parece descaracterizar a legislação vigente de
atendimento ao menor.
53
Em relação à infraestrutura, a alteração está vinculada à previsão de construção dos
edifícios de internação para manutenção do estabelecimento destinado à internação. Em
relação aos objetivos, não houve alteração. No que tange ao patrocínio, a alteração se deu na
busca da ampliação de coletas de fundos em benefício dos menores internados. Em ambos os
estatutos, o viés caritativo se manteve.
Sobre a formação dos profissionais, o estatuto de 1947 parece se preocupar com a
formação dos profissionais que atuavam junto aos menores institucionalizados, prevendo
formação desde juristas, médicos, assistentes sociais, até o pessoal técnico. O estatuto de
1972, por outro lado, somente destaca a necessidade de formação do Assistente Social,
profissional necessário para o funcionamento.
Sobre o item que trata da relação com a família, houve a ampliação do serviço no
estatuto de 1972, com a adoção das granjas lares. O estatuto do SAMC de 1947 traz uma
proposta de reencaminhar os meninos o mais rápido possível para famílias substitutas, bem
como uma profissionalização de seu quadro técnico. O Estatuto de 1972, por sua vez, não
reflete a intencionalidade de encaminhamentos dos internos à comunidade, tampouco com a
formação mais ampla de seus quadros. No entanto, tem uma reorganização administrativa,
que indica um “inchaço‟‟ de funções no Estatuto de 1972, conforme quadro a seguir:
Quadro 2: Organização e Competência administrativa nos Estatutos do SAMC
Função
Presidência
1947
convocar as reuniões da diretoria e das
Assembleias Gerais e Extraordinárias;
presidir as reuniões da Associação;
1972
convocar e presidir reuniões da Diretoria e
da Assembleia Geral;
representar a Associação ou fazer-se
representar, em juízo e fora dele, podendo
outorgar procuração;
representar a Associação, ou fazer-se
representar em juízo ou fora dele, podendo
outorgar procuração;
autorizar as despesas extraordinárias;
autorizar despesas, desde que as permitam
as condições financeiras do serviço;
organizar
um
orçamento
para
funcionamento do serviço, submetendo-o à
aprovação da Diretoria;
tomar as contas dos responsáveis pelo
dinheiro e bens da sociedade;
visar os cheques emitidos pelo tesoureiro.
apresentar anualmente minucioso relatório
das atividades do SAMC.
elaborar um detalhado
atividades da Associação;
relatório
das
Vice-presidente
substituir o presidente em seus impedimentos
1º secretário
ter a relação das Atas de reuniões da
Associação;
substituir
o
Presidente
em
seus
impedimentos; e
assessorar o Presidente em todas as suas
atribuições.
redigir e lavrar as reuniões da Diretoria;
54
incumbir-se de toda correspondência da
Associação;
cuidar das correspondências do SAMC;
Fazer a publicidade de avisos ou noticiários
de interesses da Associação;
A organização e manutenção do arquivo de
associados.
tratar da publicação de editais e avisos; e
2º secretário
Auxiliar e substituir o 1° secretário em seus
impedimentos.
assessorar o 1° secretário nos seus
impedimentos; e
manter em dia e em ordem o fichário dos
associados.
1º Tesoureiro
fazer a escrituração de receitas e despesas.
guardar o arquivo da tesouraria,
escrituração do livro de receita e despesas e
emissões
de
cheque
que
terá
obrigatoriamente o visto do Presidente.
pagar as despesas da Associação, ordinárias e
extraordinárias autorizada pelo presidente; e
efetuar os pagamentos das despesas
devidamente legalizadas e autorizadas pelo
Presidente; e
cuidar da organização e manutenção dos
arquivos e registros da associação.
arrecadar as contribuições sociais e as demais
rendas da Associação.
2º Tesoureiro
auxiliar e substituir o 1° tesoureiro.
Encarregado de
Relações
Públicas
--
1 chefe do
Departamento
Jurídico
--
1 chefe do
Departamento
de Saúde
--
1 chefe do
Departamento
de Educação e
Cultura
--
guardar as importâncias pertencentes à
Organização (o Tesoureiro não poderá ter
em caixa importância superior a Cr$ 100,00
(cem cruzeiros). A importância que exceder
deverá ser depositada em um dos bancos
locais, na conta do SAMC).
substituir o 1° Tesoureiro nos seus
impedimentos; e
arrecadar as contribuições e mensalidades,
entregando-as ao 1° Tesoureiro.
fornecer à imprensa e radio as atividades do
SAMC; e
tratar dos interesses públicos em relação ao
SAMC.
dar assistência ao Presidente em assunto de
caráter jurídico; e
ter a seu cargo a defesa dos interesses da
Organização nas questões de justiças.
assessorar o presidente em assuntos
técnicos e sanitários;
dirigir o serviço de saúde da organização;
visitar frequentemente as dependências da
Organização, apresentando ao Presidente as
sugestões que julgar necessárias para a
melhoria das condições higiênicas; e
ministrar aos menores e empregados do
SAMC, assistência médico-hospitalar.
assessorar o Presidente nos assuntos de
instauração e educação dos menores,
dirigir os cursos escolares no SAMC;
ter a seu cargo a seleção e orientação dos
professores a serem contratados para a
Organização; e
desenvolver e aprimorar, dentro do
possível, as condições técnicas de ensino e
55
1 chefe do
Departamento
Agro-Pecuário
--
1 chefe do
Departamento
industrial e de
construção
--
1 chefe do
Departamento
Econômico e
Financeiro
--
1 Almoxarifeaprovisionador
--
1 chefe do
Departamento
Feminino
--
5 Diretores
Auxiliares
--
Mandato
3 anos
meios auxiliares para a transmissão de
conhecimento aos menores.
assessorar o Presidente em assuntos ligado
ao seu departamento;
dirigir os serviços de natureza agrícola e de
criação; e
manter estreita ligação com os órgão
federais, estaduais e municipais que possam
cooperar
nos
assuntos
do
seu
Departamento.
assessorar o Presidente em assuntos de
construção, equipamentos industriais e
máquinas de trabalho agrícola;
realizar inspeção para determinar as
condições de material; e
assegurar a manutenção preventiva do seu
departamento.
assessorar o Presidente nos assuntos de
economia e finanças da Organização;
subscrever com o tesoureiro documentos de
aquisição e transmissão de bens,
autorizados pelo Presidente;
ter sob sua guarda e orientação os trabalhos
da
tesouraria,
almoxarifado
e
aprovisionamento;
coordenar e fiscalizar tudo que se refira à
vida administrativa do SAMC, de acordo
com as Leis em vigor;
receber todos os documentos referentes à
sua atribuição, estudá-los e fazer o
respectivo
expediente,
submetendo-o
diretamente à consideração do Presidente; e
conferir e autenticar com o seu “conferido”,
antes de ser submetido à consideração do
Presidente, todos os papéis que importarem
em receita ou despesa para o SAMC.
ter a relação de todos os artigos
pertencentes ao SAMC;
fazer anualmente levantamento de todo o
patrimônio da Organização; e
providenciar no sentido de suprir o SAMC
em meios materiais e alimentação.
providenciar e organizar festividades com o
fim de arrecadar meios para vestir e calçar
os menores do SAMC;
dar assistência moral as internos do SAMC;
assegurar as condições de higiene
individual e boa vontade.
colaborar com administração em geral e
substituição dos Diretores em seus
impedimentos temporários ou definitivos,
mediante
indicação
dos
membros
remanescentes.
--
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir dos Estatutos de 1947 e 1972. (Anexos A e B).
56
O quadro registra a competência de cada função na organização da administração do
SAMC, nos Estatutos de 1947 e 1972. Ao fazer um paralelo entre os dois estatutos, o que
chama atenção é a enorme quantidade de funções no Estatuto de 1972, o que parece
caracterizar, de um lado, uma especialização no atendimento e, por outro, uma fragmentação
através de departamentalização. Nesse contexto, as questões que surgem diante dessas
informações estão vinculadas à criação de tantos cargos, ou seja: Os departamentos atuaram
efetivamente no SAMC ou apenas estava compondo um organograma? Esse processo de
departamentalização cumpriu as funções estabelecidas em benefício dos menores
institucionalizados, ou só foi um engodo? Essas questões aqui apontadas precisarão de novos
estudos, pois a falta do tempo e a dificuldade de acesso aos documentos impedem que sejam
respondidas neste momento.
Outra informação relevante do Estatuto é o fato de a instituição ser filantrópica,
característica marcante das instituições de atendimento à infância abandonada advindas da
Colônia, marcadas pela ideia de que os recursos públicos é que deviam sustentar as diferentes
iniciativas de ações particulares. Como demonstra Bazilio (1998), o setor privado se aliava a
grupos dentro da administração pública, com o intuito de adquirir verbas e privilégios.
No período da implantação e funcionamento do SAMC em Corumbá, constatou-se
certa semelhança com o atendimento em nível nacional, no SAM, destinado ao atendimento
de menores “abandonados” e “delinquentes” e menores “pobres”, que eram encaminhados à
instituição para internação, com o objetivo de ajustamento social.
De meados do século XIX a meados do século XX, o atendimento às crianças e
adolescentes esteve, em sua maioria, nas mãos do setor privado, de instituições sem fins
lucrativos (filantrópicas). No entanto, elas eram subvencionadas pelo poder público. Essa fase
foi denominada por Marcílio (2006) de fase filantrópica. Essa forma de atendimento se deu
devido às transformações sociais no Brasil, principalmente no que diz respeito à infância
abandonada. O SAMC, instituição de atendimento aos menores em Corumbá, realizou a
filantropia, como ocorreu em outras instituições em outras regiões do Brasil, que prestavam o
atendimento à infância “abandonada” e “delinquente”.
A filantropia, segundo Pilotti (2011), distinguia-se da caridade pelos seus métodos
considerados científicos, por esperar resultados concretos e imediatos, buscando o bom
encaminhamento dos desviantes à vida em sociedade, de modo que fossem cidadãos úteis e
independentes, por meio do trabalho e aprendizado de ofícios como carpinteiro, ferreiro,
marceneiro, pedreiro, entre outros.
57
Marcilio (2006) ressalta que a filantropia buscava preparar a criança pobre e
abandonada para o mundo do trabalho, bem como instruir a família para prevenir a
ociosidade, a prostituição, a mendicância, o crime, o abandono do menor, a criança na rua.
Dessa maneira, estaria controlando e domesticando as “classes perigosas”, por meio da
prevenção e atenção. Quando não era possível, entrava a correção, exercida rigorosamente,
auxiliada também pela polícia, prática que parece que esteve presente na instituição em
estudo.
Além dos Estatutos do Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC) de 1947
e 1972, tive acesso a um documento da Câmara Municipal de Corumbá, que reconhece a
instituição como de utilidade pública, através da Lei n° 89, em 08 de junho de 1953 e outros
documentos que demonstram que o poder público também subvencionava o SAMC através de
recursos financeiros, materiais e humanos, conforme se segue.
A lei n° 105 de 16 de Novembro de 1953 faz o demonstrativo da contribuição e do
apoio financeiro da Prefeitura Municipal para a manutenção da instituição, por meio da
montagem de uma oficina para ministrar o ensino profissional e atender às despesas com o
Ensino Agrícola dos menores internados. O valor inicial da ajuda foi a quantia de CR$
100.000,00 (cem mil cruzeiros), que passou a ser anual, a fim de atender o Serviço de
Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC).
No ano seguinte, em 1962, foi aberto pela Prefeitura Municipal um crédito especial no
valor de Cr$ 20.000,00 (vinte mil cruzeiros) disponibilizados para a instituição, incluindo
outras 12 entidades sociais. Já em 1963, a Prefeitura concedeu uma subvenção anual de Cr$
180.000,00 (cento e oitenta mil cruzeiros) ao SAMC, proposto pela Lei n°433 de 25 de
Outubro de 1963 Após essa data, durante sete anos não houve registros na prefeitura que
fizessem referência ao SAMC, tampouco ajuda de custo à instituição. Apenas em 1969, a Lei
n° 579 de 27 de Novembro de 1969 fixou o auxílio anual a cinco entidades, entre elas o
SAMC, no valor de NCr$ 1.000,00 (hum mil cruzeiros novos)9.
Nos Estatutos vê-se que, no período de implantação e de funcionamento do SAMC, o
Brasil passou por duas políticas de atendimento à infância abandonada e delinquente. Em
1941, a primeira instituição nacional de assistência pública à criança e adolescente, Serviço de
Assistência aos Menores (SAM) e, em 1964, a Política de Bem-Estar, por meio da Fundação
Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), em níveis estaduais representada pelas
Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEMs), instauradas em 1964.
9
Com base na conversão, as doações repassadas à instituição, nesse período, giravam em torno de cinco a quase
nove salários mínimos anuais (http://www.guiatrabalhista.com.br/guia/salario_minimo_1940a1999.htm).
58
Em Corumbá, os serviços do SAMC não foram alterados, nem mesmo diante do novo
estatuto aprovado em 1972. Somente em 1984, Corumbá instaurou a Política de Bem-Estar do
Menor, conforme consta nos documentos da Câmara Municipal. A finalidade era planejar,
orientar, coordenar e fiscalizar o desenvolvimento das políticas voltadas aos menores, junto às
entidades públicas e privadas do município.
Com relação à institucionalização da FEBEM, encontrei no estado de Mato Grosso a
Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor de Mato Grosso (FEBEMAT), na cidade de
Cuiabá, criada por meio da Lei 3.132, de 13 de dezembro de 1971, seguindo a diretriz
nacional, estabelecendo a responsabilidade pela política de assistência social ao menor,
conforme por Miranda (2014). Nesse período, não havia ocorrido ainda a divisão do estado
em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Assim, a hipótese que defendo é que a FEBEMAT
orientou ambos os estados, mesmo após a divisão, até que fosse estabelecida, em Mato
Grosso do Sul, uma nova política de orientação ao atendimento à infância, anos depois.
Na busca pelas documentações escritas sobre o SAMC, desde a sua implantação até a
sua extinção, foram levantados: as Leis da Câmara Municipal de Corumbá, os Estatutos da
Instituição de 1947 e 1972 e Publicações no Diário Oficial. Não foi localizada documentação
escrita com referência ao fim do SAMC. Porém, na documentação produzida pela história
oral, ou seja, a partir dos relatos das entrevistas, o encerramento se deu no final dos anos
1980, bem como a mudança do nome da instituição de SAMC para Centro de Recuperação
Maria Pedrossian. Essa mudança de nomenclatura também foi mencionada na dissertação de
Girelli (1994), ao falar sobre a situação geográfica da instituição. Os participantes também
narraram que, nos anos 1980, a instituição passou a ser administrada pelo governo do estado
de Mato Grosso do Sul.
Há também um documento escrito, que cita essa nova administração e que ratifica, em
1988, os termos do convênio celebrado entre a Prefeitura Municipal de Corumbá e o estado de
Mato Grosso do Sul. O fato provavelmente tem alguma relação com o fechamento do SAMC,
pois a “Associação de Amigos de Prevenção e Assistência aos Usuários de Drogas de
Corumbá e Ladário” (ACLAUD) tem o mesmo endereço do antigo SAMC. A Lei nº 1.095 de
1990, que trata do convênio entre a Prefeitura Municipal de Corumbá e o estado de Mato
Grosso do Sul, declara a ACLAUD como Utilidade Pública. Esses registros parecem
evidenciar o período de desativação do SAMC.
Com a finalidade de compreender melhor o SAMC, optei por ouvir a voz de alguns
sujeitos que vivenciaram de alguma forma a instituição e analisar a história do atendimento a
meninos institucionalizados no SAMC.
59
3.3 Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC): a voz dos entrevistados
Conforme relatado anteriormente, este estudo contou com nove participantes que
vivenciaram o Serviço de Assistência ao Menor de Corumbá (SAMC): dois internos; dois
filhos de funcionários; um membro do conselho consultivo; um assistente judicial de
menores; três funcionários, sendo quatro do sexo feminino e cinco do sexo masculino. Para a
preservação da identidade dos sujeitos, foram adotados nomes fictícios: João, Pedro, Mateus,
Tiago, Lucas, Maria, Madalena, Rute, Ester.
Ao realizar a organização dos relatos sobre a instituição nos anos de 1948 a 1990,
levantei os temas que conduzem a um melhor conhecimento do funcionamento da instituição,
e verifiquei quais as alterações ocorridas durante o seu período de funcionamento.
Os participantes foram escolhidos, primeiramente, porque vivenciaram o SAMC de
alguma maneira. Em segundo lugar, foram selecionadas pessoas que vivenciaram diferentes
épocas, o que favorece a compreensão das nuances da instituição durante o seu
funcionamento. O quadro a seguir mostra o codinome do participante; de que lugar ele tem o
olhar sobre a instituição; o período vivenciado por ele na instituição; e a idade dos
participantes no momento da entrevista.
Quadro 3: Caracterização dos participantes
Nome fictício do
participante
João
Pedro
Maria
Madalena
O olhar sobre a Instituição sob o ponto de
vista do:
Interno
Filho de funcionário - morou no SAMC
Membro do conselho consultivo do SAMC
Filha de Membro do conselho consultivo–
fazia visitas esporádicas.
Mateus
Assistente Judicial de Menores
Tiago
Funcionário
Rute
Funcionária
Lucas
Interno
Ester
Funcionária
Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir das entrevistas.
Ano/Período em
que vivenciou a
Instituição
1948
1958-1965
1962
1962
Idade
60 anos
66 anos
86 anos
47 anos
1966
1968
1980-1984
1988
1989 – 1990
72 anos
76 anos
65anos
43 anos
48 anos
Diante dos relatos, os dados foram organizados e analisados através dos seguintes
tópicos: A instituição; O atendimento no SAMC; Responsáveis pelo SAMC; A manutenção;
O Processo Educativo; Rotina; Os Finais de Semana; Família; Sociedade Corumbaense;
Sistema de Punição e Sistema de Privilégio; Viver no SAMC.
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3.3.1 SAMC: a instituição
Os relatos das histórias de vida dos participantes, apesar de se cruzarem na instituição,
se diferenciam na sua vivência dela. Mas o que os torna tão diferentes, a ponto de falarmos da
mesma instituição, e obtermos informações tão divergentes entre si? Qual seria o motivo
dessa visão tão diferenciada sobre a mesma Instituição?
Em relação à função da instituição, foi registrada a primeira discordância nas falas dos
participantes, que apresentaram formas diferentes de entender o SAMC. A instituição foi
caracterizada como internato, orfanato e centro de recuperação.
Sob o ponto de vista de Pedro, filho do funcionário que viveu na instituição, o SAMC
era um internato. Para Madalena, também filha de funcionário, mas que não morou na
instituição, o SAMC era um orfanato. Já para a funcionária Ester, a instituição era um Centro
de recuperação. Cada um dos participantes entendia a instituição de maneira diferente, bem
como a relação com o seu tempo, ou ainda como gostaria de ser identificado socialmente fora
dela, dando o valor à instituição, como percebido na fala de Pedro:
Pedro - [...] então lá era um internato, as crianças estudavam lá, tinha
professor, tinha lavanderia, tinha refeitório tudo organizado, alojamento
tudo, então, tudo era feito lá mesmo, a plantação, [nome] coordenava tudo lá
dentro, tinha horário para tudo, pra trabalho.
Goffman (1974) assegura que, quando o status proativo é relativamente favorável, o
ex-interno tem orgulho em falar sobre a instituição, como por exemplo, os internatos de elite,
as escolas para a formação de oficiais, entre outros. Quando o status proativo é desfavorável,
o ex-internado realiza um esforço para esconder o seu passado, chegando até a disfarçar, tal
como ocorre com os que saem de prisões ou hospitais para doentes mentais.
Os participantes João, Maria, Mateus, Tiago, Rute, Lucas não relataram sobre o tipo
de serviço prestado pelo SAMC. Mesmo não obtendo uma resposta em comum, o estudo de
Goffman (1974) sobre o caráter da instituição trata da teorização da institucionalização, em
que o SAMC pode ser incluído, pelo tipo de atendimento destinado à infância desvalida e
delinquente, conforme exposto nos seus Estatutos de 1947 e 1972. Assim, o SAMC pode ser
enquadrado no perfil das instituições totais, pois apresenta um caráter fechado, uma vida
regrada sob a autoridade de dirigentes, assim como os demais sujeitos que se encontram na
mesma situação, sem contato com o mundo exterior, a não ser nos momentos de festividades e
visitas.
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O estudo demonstrou que havia diferenciação entre os atendidos, pois eram separados
em dois pavilhões, dos abandonados e dos delinquentes, conforme consta no Estatuto de
1947. Segundo esse Estatuto, os menores receberiam educação adequada às suas
circunstâncias e, quando melhoradas as circunstâncias, ou seja, o comportamento, o menor
passaria a viver com os demais internos do patronato, ou poderia ser encaminhado para
institutos especializados, a critério do Juizado de Menores.
Em relação à idade dos meninos que estavam no SAMC, havia dados sobre crianças e
adolescentes de 6 aos 18 anos, quando então ingressavam no Serviço Militar Obrigatório.
Essa situação reporta aos estudos de Marcílio (2006), que evidencia que essa faixa etária
também era encontrada nas instituições de atendimento de meninos e meninas, como o asilo
de São Cornélio em Fortaleza, para meninas maiores de 12 anos, a Casa de Assistência à
infância desvalida no Rio de Janeiro, destinada ao sexo masculino entre 6 a 21 anos, e a
Escola Premonitória 15 de Novembro, também no Rio de Janeiro, para os menores a partir
dos 9 anos de idade.
Earp (1998) expõe que, ao atingir a maioridade, completando os 18 anos, os internos
eram desligados da instituição e deveriam prover a sua própria subsistência. Conforme relato
nas entrevistas, logo que completavam os 18 anos, os internos do SAMC ingressavam no
Serviço Militar Obrigatório.
Entretanto, houve um caso de um interno que, após ter concluído o Serviço Militar
Obrigatório, retornou para a Instituição, não mais como interno, mas como ajudante, sem
receber qualquer salário, de acordo com as palavras de Madalena:
Madalena - Então quando nós, o SAMC, tava assim numa situação, quem
tomava conta realmente era um casal e mais um moço. Esse moço tinha sido
criado lá no SAMC, tava mocinho e saiu pra fazer o serviço militar depois
ele voltou, e era o casal, ela era cozinheira e ele tomava conta de tudo [...]
pusemos mais um empregado, que era um menino que tinha sido criado lá,
ele ficou trabalhando lá mais ele não recebia nada. Ele [ex-interno] não
queria receber, dizia que pelo que ele tanto tinha recebido, que ele queria dar
uma cota de trabalho. Aí ficou lá mais uns três ou quatro anos, aí foi embora
para Cuiabá.
O que nos chama a atenção foi o retorno à instituição. Mais ainda, sem receber
qualquer pró-labore, apenas pela gratidão. Essa situação provoca questionamentos sobre a
relação do interno com a instituição: será que a instituição preparou para viver em sociedade?
Qual o nível de dependência criada nos internos em relação à instituição? Ou, ainda: será que
seu retorno para o SAMC representou a única alternativa para não voltar para as ruas, pois o
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tempo que vivenciou foi caracterizado pelo abandono e a perda dos vínculos familiares e
comunitários e a sua única referência se constituiu na instituição?
Essas questões remetem à reflexão, a partir do estudo de Goffman (1974), que enfatiza
que a saída dos internos de uma instituição é marcada por vários conflitos, entre eles a dúvida
se conseguirão viver fora da instituição. Como permaneceram por muito tempo afastados do
universo externo, podem não ter a clareza do que vivenciarão ao deixarem esse espaço.
Assim, as preocupações e a dependência criada acabam sendo a razão para que os ex-internos
pensem na possibilidade de não saírem, ou de retornarem à instituição.
3.3.2 SAMC: o atendimento
Em relação a quem eram as pessoas atendidas pelo SAMC, as respostas foram
diversas, desde possibilidade de escolarização, motivos de pobreza, e até mesmo por
decorrência de ordens judiciais, por estarem em situação de rua e/ou por motivos de
delinquência.
Os motivos de ordem social aparecem nos relatos dos sujeitos como a grande
motivadora para o atendimento institucional dos meninos, mesmas características apontadas
em estudos de outras regiões do Brasil. Como exemplo dessa situação, Santos (2000) explica
que uns dos motivos da institucionalização de menores na cidade de São Paulo era a
criminalidade infantil, associada ao chamado crime de “vadiagem‟‟ previsto nos artigos 339 e
400 do Código Penal. As ruas da cidade, ocupadas com atividades informais, eram palco de
várias prisões motivadas pelo fato de meninos e meninas não conseguirem comprovar, perante
as autoridades policiais, sua ocupação. Dessa maneira, grande parte dessas prisões tinha como
alvos os menores que perambulavam pelas ruas e eram capturados pela polícia.
Outro estudo que mostra a situação da infância abandonada revela que a criança e o
adolescente que viviam entre a vadiagem e a gatunice (furto) eram tratados, na opinião dos
juristas, como um caso de polícia e de repressão urbana. A atividade de melhorar as condições
do espaço público era confiada aos delegados, que recolhiam as crianças que vagavam nas
ruas, “limpando” as praias, parques e praças. Elas representavam um perigo para os
comerciantes, conforme a pesquisa de Londonõ (1991).
Situação semelhante era verificada também em Corumbá, conforme expôs Lucas:
Lucas - Aí comecei a roubá, e com oito a nove anos eu já era o terror de
Corumbá, já tava dando muito trabalho pra minha família, pras autoridades,
pra sociedade e, foi com 12 anos que eu comecei a conhecer a droga, que foi
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a pior desgraça e, foi aí que, com 13 anos comecei a ir pra cadeia [...] A
minha turma era muito terrível, então o juiz mandava recolher antes do
Natal, pro presídio, e soltava depois do carnaval, porque esses quatro a cinco
meses era ... nós era o terror, então pelo menos pra dá uma boa segurança pra
população o juiz resolveu juntamente com não sei quem, as autoridades
certamente resolveram, fizeram essa, esse planejamento e começaram a
recolher nós no Natal e soltavam só depois do carnaval.
Pedro - lá tinha criança, lá era tudo, por exemplo, esses caras que trabalhava
na fazenda deixava os filhos tudo lá, que não tinha escola nas fazendas,
naquela época [...] então esses guri que tava solto por ai na rua, ai eles
pegavam e levavam pra lá, por que ficavam ai sem pai largado na ai na rua,
como tem esses ai agora, só que tudo envolvido com droga né, então eles
levavam pra lá, levavam pra lá, já que não tinham família nem nada por ai lá
eles ficavam, até, o tempo, uns tentavam fugir né mas...
João- Eu fui pra lá tava com 12 anos, fui final de novembro assim, mês de
novembro, que eu tava com um pessoal e eles tinham que viajar tudo e eu
não tinha onde ficar então tinha que fazer essas coisas de exame né, e ai
prova de colégio, ai eu fui fiquei três meses com eles lá, lá no SAMC, [...]
bom, teve alguns lá que esse daí já são pessoas desobedientes né, que não
queria obedecer lá na cidade, não quer obedecer mãe e pai.
Pelo depoimento de Lucas, os internos só permaneciam na instituição entre o Natal e o
Carnaval. Corumbá, por ser uma zona de fronteira recebe, no final do ano, uma grande
quantidade de turistas que vêm fazer as compras do Natal. Também há a tradição de ser o
melhor carnaval do estado. Em tais situações, era preciso manter a “cidade limpa”,
protegendo as ruas dos “menores” considerados um mal para a sociedade.
Esse processo de “limpeza” das ruas das cidades reporta aos estudos de Santos (2000),
que retrata o processo de encaminhamento dos menores encontrados nas ruas, vagando, ao
regime de colônias agrícolas. Segundo Marcílio (2006), as colônias agrícolas mantinham uma
forma de organização, de espaço e pedagógicas, submetendo os menores ao controle, sob o
regime de internato.
O ensino agrícola e a vida separada em fazendas eram vistos pela sociedade como a
fórmula ideal para retirar o jovem abandonado ou delinquente das ruas, com a finalidade de
instruí-lo e capacitá-lo para o mundo do trabalho, assim como uma forma de prevenção ou
regeneração da delinquência juvenil. Tal modelo era considerado o caminho ideal para o
desenvolvimento do hábito e do amor ao trabalho, uma forma de preparar meninos e meninas
para serem úteis à sociedade (MARCÍLIO, 2006).
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3.3.3 SAMC: os responsáveis
Em relação aos responsáveis pela instituição, predominaram as informações de que o
cuidado ou a administração do SAMC era realizada por um casal ou por uma família. Essa
situação foi modificada apenas nos relatos referentes aos anos 1980, em que os funcionários
assumiam escalas de rodízio nos serviços. Porém, mencionaram ainda que havia uma família
cuidadora na instituição.
Os participantes João, Pedro, Mateus e Tiago disseram que o SAMC era administrado
por um casal ou por uma família, constituída frequentemente por um homem e uma mulher.
Ele assumia a função de responsável pela organização e ela cuidava da refeição e dos serviços
domésticos.
João – [Refere-se ao nome do responsável] e a família dele, e tinha o senhor
[nome], que era professor.
Pedro - Eu sei que nós chegamos lá em 1958, e lá naquela época não tinha
nada, era mato só, e, tudo era mato. Então, quando nós chegamos, levaram
um ...gado, levaram cavalo, só que o tempo que tivemos lá assim tinha muita
cobra, né, a cobra matou quase tudo, ficou só dois cavalos que servia pro
arado né. Então lá era assim, era um internato na verdade né, [nome] mulher
cozinhava, o [nome] tomava conta. [...] coordenava tudo lá dentro, tinha
horário para tudo, pra trabalho, [...] a mulher cozinhava, e [refere-se ao nome
do responsável] administrava tudo.
Mateus - Tinha gente que era responsável, tinha cozinha, tudo, tudo bem
organizado.
Tiago - O casal de americanos, eles moravam lá no SAMC. [...] Falava o
português, mas meio arrastado sabe.
Tiago relata, ainda, que o casal de americanos era responsável pela instituição e que
ambos falavam português, linguagem que os meninos compreendiam. Em relação aos
funcionários, os testemunhos parecem caracterizar que, até a divisão do estado de Mato
Grosso, o SAMC era administrado pela família que morava na instituição. Com a criação do
estado de Mato Grosso do Sul, a instituição foi assumida pela primeira dama do estado.
Houve um acréscimo de pessoal para trabalhar, conforme depoimentos de Rute e Lucas.
Rute - Fui contratada pela Maria Pedrossian, esposa dele [referindo-se à 1ª
dama do estado, esposa do governador Pedro Pedrossian] que coordenava lá
tudo.
Lucas - O agente que era responsável lá, que era um dos que cuidava lá, era
agente oficial [nome]. [...] Era plantão, né, era três rodízio de plantão, era
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dois agentes, dois homens que ficavam lá, e tinha uma pessoa, tinha o
Diretor, é...tinha a psicóloga, tinha a família do cozinheiro.
Refletindo com os estudos de Goffman (1974), as instituições totais fazem com que a
organização e o controle sejam precisos. Assim, a equipe de supervisão atende às ordens da
equipe dirigente (pessoas renomadas que não vivenciam o dia a dia da instituição). Nesse
contexto, os supervisores acabam criando mecanismos de administração e domínio para que a
ordem seja mantida, pois esses profissionais se encontram em quantidade inferior ao grupo de
internados.
3.3.4 SAMC: a manutenção
Em relação aos subsídios à instituição, dois momentos na administração do SAMC
foram citados. O primeiro, quando foi fundada a instituição, por meio de uma organização
filantrópica, administrada por um Diretório, composto por presidentes e demais membros, que
mantinham a entidade com o apoio também da sociedade, através de doações. Outro momento
da administração do SAMC foi quando o governo do estado se responsabilizou pela entidade,
segundo a fala dos participantes e um artigo de jornal.
No primeiro momento, os documentos referentes ao SAMC o classificavam como uma
instituição filantrópica, administrada por um Diretório da sociedade e da esfera de ação
pública. Todavia, o que chama a atenção, nesse tópico, foram as divergências encontradas nos
relatos dos participantes. Alguns mencionavam desconhecer a situação econômica da
instituição, outros apontavam para a fartura dos alimentos e a ajuda material e financeira da
sociedade, como mencionado pelo participante Pedro. Houve até situações de extrema
dificuldade e miséria vividas pelos internos da instituição, como relatou o participante Tiago:
Pedro [...] quem tomava conta de lá assim,.. Um homem cuidava apenas e
quem movimentava aquilo lá era a diretoria que existia aqui em Corumbá,
que era só de fazendeiros, era Doutor [nome], é [nome], [nome], essa turma
toda ajudava. Na época, tinha um engenheiro na Itaú chamado, [nome], [...]
ele ajudava muito lá, porque lá tinha criança.
[...] e assim nós vivemos todo esse tempo todinho lá assim, só que o começo
foi difícil, né? Difícil, né? Porque tinha apoio, logicamente que tinha apoio
da cidade, porque era serviço de SAMC, Serviço de Assistência aos Menores
de Corumbá.
- [...] ninguém passava dificuldade, e à tarde ela fazia aquele, aquela sopa,
passava aquele feijão no escorredor, tirava até aquela casquinha, aí
engrossava no macarrão, a criançada comia de lamber os beiços,
[...] quando vinha pra cidade, ele doava três, quatro saco de pão, pra levar lá
pra turma lá, salsicha, naquela época em que os americanos traziam aquele
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leite, naquela época de 60, 61, que eles traziam aquele leite de saco, que era
em pó né, trazia chocolate, e doava tudo pra lá, nunca faltou nada, na
verdade a gente tinha uma vida [...] biotônico Fontoura ia com caixas e
caixas.
Tiago [...] Eu só lembro que eles passavam necessidade. Eu saí um dia,
domingo, e fui num churrasco numa fazenda perto de lá, além do SAMC, e
de lá eu consegui trazer pra eles a miudeza do boi, consegui com o
fazendeiro de lá, falei que trabalhava no SAMC e tal e as crianças estavam
passando necessidade, e ele mandou dá tudo. Eu lembro que quando eu
cheguei lá eles viram sabe, ficavam tudo assim, ficavam tudo assim sentados
é... e eles me viram chegar com aquilo foram tudo correndo na porteira,
onde era o curral sabe, alegre que eles ficaram de tarem levando, sabe. Na
mesma hora os mais antigos que entendiam de cozinha alguma coisa
pegaram e foram limpar.
Mas qual será o motivo que leva a olhares tão diferentes sobre o mesmo fato? Será a
administração ou o período? Pedro é filho do funcionário que foi responsável pela
organização e manutenção da instituição de 1958 a 1965. Enxerga-a como um lugar lindo e
maravilhoso, com alimentos fartos para todos. Já o participante Tiago trabalhou por um
período curto na instituição, no ano de 1968. Chegou a presenciar fatos de miséria e
dificuldades, o que indica que, possivelmente, com a mudança de administração, deve ter
ocorrido uma mudança da sociedade em relação ao SAMC, mudança que teria afetado,
principalmente, os donativos. Essa questão também pode estar vinculada à crise econômica
em que Corumbá se encontrava no período, principalmente na pecuária.
Outro momento relatado pelos participantes foi quando o governo do estado se
responsabilizou pela entidade, quando, segundo alguns participantes, não havia dificuldades.
Todavia, Rute apresentou certa discordância em sua narrativa, pois ora destacou não haver
falta de nada na instituição, ora enfatizou a necessidade de pedir agasalhos para as crianças.
Rute- Eu fui contratada pela Maria Pedrossian, esposa dele, que coordenava
lá tudo.
-[...] dona Maria Pedrossian nunca deixou faltar nada. Quando eu trabalhava
lá, eu não tinha (pausa), quando tava frio assim, eu pedia agasalho porque
era pouco e tinha muita criança[...].
A instituição recebeu, por décadas, recursos dos cofres públicos, por ser uma
instituição de utilidade pública. Recebeu também donativos da sociedade. Posteriormente,
passou a ser gestada pelo estado de Mato Grosso do Sul, através da primeira dama.
Pelo depoimento dos participantes, os donativos para a instituição permaneceram.
Assim, depreende-se que o SAMC, ao longo de sua história, assumiu um caráter filantrópicoassistencialista ligado à caridade social.
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3.3.5 SAMC: Processo Educativo
A educação dos internos era efetuada na instituição, mas esse aspecto não foi
amplamente discutido. Os relatos mostram que ela se limitava ao ensino primário, hoje,
primeira etapa do ensino fundamental, em classe multisseriada, conforme informaram Pedro e
João.
João (1948)- Tinha escola. [...] tinha sim, primeiro, segundo, terceiro ano até
quarto.
Pedro (1958-1965) – Então, lá era um internato, as crianças estudavam lá,
tinha um professor, [...] porque naquele tempo só ia até a 4ª série.
Em relação a essa questão, Londonõ (1998) enfatiza que, nesse período, havia a ideia
de que as instituições deveriam formar e educar, com o objetivo de prevenir a criminalidade
do menor. A prevenção supunha que a criança deveria ser retirada da rua e encaminhada para
a escola. Rizzini, Irma (2011) explicita que a educação nos Patronatos agrícolas era
regulamentada pelo Decreto n.13.706 de 25/2/1919: “exclusivamente destinados às classes
pobres e visavam à educação”.
Santos (2000) aborda a deficiência nos projetos de educação dos institutos
disciplinares criados em 1902 pelo governo do estado de São Paulo, que recebiam menores
considerados delinquentes, vadios e viciosos. Os projetos deixavam a desejar, já que eram
frequentes os casos em que os jovens, após longa permanência na instituição, de lá saiam sem
nada aprender, ou seja, analfabetos ou semianalfabetos. O programa educacional dessas
instituições compreendia leitura, princípios da gramática, escrita e caligrafia, cálculo
aritmético, frações e métrico, rudimentos de ciência física, química e natural (aplicada na
agricultura), moral e prática e cívica.
Ainda sobre a escolarização Pedro e Rute relataram que o ensino oferecido no SAMC
ocorria em um espaço específico para o estudo, frequentemente uma sala de aula ou um
refeitório que acomodasse todos os meninos. A participante Rute tende a generalizar os
aspectos “positivos” da atuação da instituição.
Pedro -Tinha sala de aula, era a mesma coisa que existia no alojamento,
porque lá, [...] era tipo um H. Lá na ponta tinha dois alojamentos, aí vem o
corredor no meio, e até lá na ponta (faz o gesto com as mãos) lá, desse lado
era mesma coisa igual no alojamento. Só que era uma sala de aula, tinha
duas salas de aula, [...] uma de um lado e outra do outro, porque tinha
bastante criança, né?
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Rute - [...] era em um refeitório, tinha mesa e tinha cadeira, ele (professor)
dava aula para todo mundo, pra todo mundo por igual, não tinha nenhum
melhor do que o outro.
Sobre o processo escolar, dois participantes mencionaram o uso da palmatória, para
manter a disciplina das aulas, com a intenção de punir e coibir os “maus” comportamentos na
escola, seja pela indisciplina, desobediência ou erro na lição, para forçar os internos a
estudarem.
João - [...] Ahm, ele não era de castigo, chamava atenção dele né, [...] aí o
guri chegava até de chorar, dele fala, [...] Só na palmatória, isso eu vi, [...] só
na palmatória.
Pedro - Tinha disciplina, tudo no seu horário certo, não tinha esse negócio
de... Porque você sabe que antigamente existia a palmatória, isso sempre
existiu, agora que hoje não existe. Graças a Deus! Às vezes é preciso,
porque, eu tomei muito bolo [apanhei], na sala de aula mesmo naquela, eu
tomei muito bolo. O professor reunia a gente e tal, pegava a tabuada,
mandava estudar, você: tanto mais tanto, tanto vezes tanto. Não sabia, se
aquele respondesse, aí dava um bolo na mão daquele outro que não
respondeu, mas isso tudo não era malvadeza. Na verdade, é o seguinte, que
todos que saíram de lá, ninguém nunca reclamou [...].
Vale esclarecer que, no período de 1948 a 1965, em que os participantes relataram o
uso desse instrumento, a palmatória ainda era permitida por lei. Foi introduzida no Brasil
pelos jesuítas, e seu uso só foi abolido definitivamente com a elaboração do Estatuto da
Criança e do Adolescente, em 1990.
As falas de João e Pedro mostram que eles introjetaram a agressão como algo natural e
compreendiam que a obediência e o estudo levavam ao privilégio de não receberem castigos,
o que os colocava em constante conflito, pois, caso não correspondessem à conduta imposta
pelo professor, era aplicada a palmatória, instrumento utilizado como castigo.
O professor, assim com os responsáveis pela organização e funcionamento da
instituição, tinha autoridade, pois também fazia parte da classe dirigente. O fato é denominado
por Goffman (1974) como arregimentação, representada por um sistema de autoridade
escalonada, quando qualquer pessoa da classe dirigente tem alguns direitos para impor
disciplina a qualquer interno, aumentando a possibilidade de sanções, levando os internos a
viverem em constante angústia. A desobediência pode ser combatida por meio de maus-tratos
físicos e psicológicos, humilhação, remoção para lugares piores, entre outras medidas.
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A vida na instituição, para os internos para lá encaminhados, era regrada, marcada por
tensão e angústia. Eles eram sujeitos a receber punição de todas as pessoas que detinham
autoridade.
3.3.6 SAMC: Rotina
O funcionamento da instituição pôde ser verificado de forma detalhada. Os
depoimentos deram visibilidade à rotina na instituição, que era organizada para que todos
realizassem as atividades estipuladas nos horários estabelecidos, seguindo as ordens de uma
autoridade. As atividades dessa instituição estavam organizadas entre a horta e as atividades
escolares, conforme expuseram Pedro, Tiago e Lucas.
De acordo com Pedro, filho de funcionário, que viveu na instituição de 1958 a 1965,
tinha horário para tudo. Logo que clareava o dia, os meninos seguiam para a horta, para
molhar e cuidar, em seguida, tomavam banho e iam para o refeitório tomar o café da manhã,
depois voltavam para a lida na horta. No período da tarde, os meninos estudavam. À noite,
após o jantar, ficavam algumas horas na frente do prédio, brincando, até às 21h, quando
seguiam para os dormitórios. Os meninos eram separados por alojamento segundo a idade. Os
mais velhos, de 10 a 17 anos de idade, ficavam em um alojamento separado dos menores de 6
a 9 anos.
Segundo o depoimento de Tiago, funcionário do SAMC, que vivenciou a instituição
em 1968, às cinco horas da manhã os meninos eram acordados pelo administrador da
instituição e iam correndo pelo mato para caçar. Ele enfatizou que os meninos iam descalços e
que comumente cortavam os pés, enquanto que o administrador ia preparado e usava botas.
Em relação ao período da tarde e da noite, a rotina estava vinculada a serviços também. O
alojamento era composto por beliches e redes.
Tiago - Cinco horas da manhã mandavam todos eles acorda e saia correndo
pelo mato com eles, e ele com bota tudo preparado e as crianças era tudo
descalço, cortava tudo o pé, tinha que ir, ele era ruim, sabe. Eu só sei que a
vida ali era assim, aquele trabalho que eles faziam o serviço de dia e à noite
era tristeza. [...] tudo era tipo alojamento, tinha beliche, rede, não lembro
muito bem, isso é muito vago isso aí pra mim.
O depoimento de Tiago desvela como eram cruéis as atitudes vivenciadas pelos
internados. Enquanto a equipe dirigente estava protegida de cortes, arranhões, e outros
perigos, os internos vivenciavam riscos de contusões, ferimentos, picadas de animais
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peçonhentos, ou seja, riscos de morte. Esse cenário parece evidenciar o quanto a situação da
criança ou adolescente considerado “menor” era negligenciada pela instituição e,
consequentemente, pela sociedade e pelas políticas de atendimento a essa população.
Lucas, interno da instituição, narrou que, em 1988, logo que acordava ia direto para a
cozinha, assumindo o papel de subchefe. Quando o cozinheiro estava de férias, ele assumia o
seu lugar. Quanto à rotina da instituição, durante o período da manhã havia faxina, atividades
na horta e atividades físicas. No período da tarde, eles estudavam, e à noite, sempre havia
alguma atividade como brincadeiras.
Lucas- mas acho que fui direto pra cozinha, e acabei me tornando subchefe
da cozinha né, eu quando a cozinheira ficou de férias, quando seu finado era
meu tio nome ficou de férias eu que fiquei tomando conta,eu que fiquei na
responsabilidade da cozinha, cheguei de ficar sozinho na cozinha, - faxina,
faxina, é...cada um tinha uma área na horta, na chácara lá, e depois tinha a
atividade física . Eu não me lembro, eu não tô conseguindo me lembrar se
tinha escola, se tinha estudo, mas acho que tinha estudo lá, as professora que
iam e voltavam parece. e a noite, tinha sempre as atividades,a brincadeiras
nossa esconde-esconde, pegador, assim, a gente tentamos viver daquilo que a
rua a droga não deixou nóis viver, mas na verdade é não foi fácil não.
As falas dos participantes caracterizam semelhanças na forma de organização das
instituições totais, principalmente por terem que cumprir com um calendário e cronograma
estabelecido a todos, sem possibilidade de alterações. Ou seja, todos acordavam no mesmo
horário, faziam as atividades programadas, como trabalho (horta, caçada, entre outros); escola
e momentos de brincadeiras. Estas atividades eram sempre desenvolvidas sob a
responsabilidade de alguém da equipe supervisora.
Sobre essa questão, Goffman (1974) fala da padronização no tratamento e a
obrigatoriedade de participação de todos os institucionalizados para garantir, em princípio, um
melhor controle e vigilância sobre os internos. As atividades diárias são rigorosamente
estabelecidas em horários, pois levam às atividades seguintes. As várias atividades
obrigatórias são reunidas num plano racional único, planejado para atender aos objetivos
oficiais da instituição.
Esses dados remetem ao que Santos (2000) mostra em seu estudo referente à
regeneração pelo combate ao ócio e a pedagogia do trabalho, moedas correntes no cotidiano
do instituto. Tentava-se, a todo custo, incutir, nas mentes dos menores, hábitos de produção e
convívio aceitáveis pela sociedade que os rejeitava. Por meio de contínuas seções de
exercícios físicos, tentava-se doutrinar os menores para uma vida regrada e condizente com os
desejos de uma cidade pautada pela lógica da produção. Dessa forma, o trabalho agrícola
71
Além de ser mais higiênico, porque é ao ar livre, e desenvolver pelo
exercício as forças físicas, é o que mais absorve, sem fustigar, a atenção do
menor. Enquanto cultiva a terra, enquanto contempla a natureza que o cerca
e encanta, o seu espírito paira muito longe das idéias do mal, para
concentrar-se naquelas outras, que elevem e nobilitam o homem. (MOTA,
1909, p. 31 apud SANTOS, 2000, p. 225).
A partir dos depoimentos, vê-se que a rotina se transformou em um processo de
mortificação, conforme destacado por Goffman (1974), pois ela enfraqueceu, de forma
dissimulada, a autonomia e a liberdade de escolha dos internos. Pelas falas dos participantes,
as obrigações diárias no SAMC tinham a finalidade de manter a ordem, segundo a ideia de
que todos são iguais e, principalmente, para controlar a vida cotidiana dos menores.
Ficou evidente que as atividades diárias da instituição pouco respeitavam a
individualidade e a peculiaridade de menor institucionalizado, pois buscavam padronizar um
determinado tipo de comportamento, a fim de manter a ordem na instituição e instruí-los e
moldá-los de acordo com os padrões sociais estabelecidos à época.
O trabalho na horta era apresentado como um instrumento de capacitação dos internos
para o trabalho, com vistas ao seu retorno para a sociedade. No entanto, essa horta, por vezes,
teve o papel de suprimento das necessidades da instituição na manutenção dos internados.
3.3.7 SAMC: os finais de semana
De acordo com os depoimentos, a rotina nos finais de semana na instituição era
diferenciada, pois nesse período havia visitas de familiares, a presença dos diretores na
instituição, além de visitas da sociedade em geral e das entidades religiosas.
Esses momentos foram descritos como ocasiões de confraternização com a sociedade
e de cordialidade entre os dirigentes e os internos, sem muito controle. Também como um
momento de diversão e resgate dos vínculos familiares, sendo recompensado em forma de
verbas, investimentos, e permanência da instituição.
Houve, ainda, manifestação sobre o fato de que a instituição buscava, nessas ocasiões,
transparecer que desenvolvia um bom atendimento, estava preocupada com o cuidado e se
dedicava à educação dos internos, para que eles não voltassem a ser um problema social.
João - tinha tudo lá pra atendê final de semana. A gente tinha lá o pessoal
que vinha lá visita né [...] era só final de semana.
[...] Sim porque vinha bastante gente passar com a gente, [...] pessoas da
cidade, e fazia um churrasquinho por lá, e passava o dia, levava alguma
72
coisa pra nós, um refrigerante, essas coisas todas, e passava um dia com a
gente [...] brincavam, eram normal, ali era tudo tranquilo, [...] brincava
bastante, final de semana de sábado pra domingo, brincava direto. [...]Não,
não, era só o jogo de bola tal, o pessoal ia lá, e o final tarde o pessoal ia
embora, e continuava tudo novamente.
Pedro - [...] a missa sempre era aos domingos. O padre ia lá, fazia a missa
lá, na capelinha lá, aí a turma ficava tudo fora porque a capela era minúscula.
Aí rezava a missa lá, aí depois terminava a missa, aí era só correr pro abraço,
jogar bola, brincar jogar bolita, [...] era para todo mundo da região, todo
mundo da região dos sítio. O padre [nome] ia sempre lá, levava time de
futebol pra disputar com os times das Trombas, os Trombas que eram mais
conhecido, Trombas do macaco. [...] Assim a gente foi vivendo lá, acordava
cedo, molhava as plantas aí era essa situação era uma rotina né, diariamente.
Aquela rotina só mudava no domingo, [...] que, aí ia o pessoal fazer
piquenique, naquele tempo tinha muito piquenique lá nas Tromba, que a
piscina era grande e a água era corrente. [...] De tudo, era a sociedade, todo
mundo ia pra lá, levavam bala, levavam a bolita, coisas pra as crianças lá,
bolachinha, tudo pra criança.
Madalena - Eu brincava porque era tudo do mesmo tamanho, tinha nome os
meninos, que lá só era guri, e nós tomávamos banho, tinha as brincadeira,
era um tal de falar chuléeee, rsrsr, Mas lá era bom, lá tinha a casa, os
meninos ficavam num antigos dormitório grande, tinha beliche né [...].
Tiago - No dia de domingo, por exemplo, eles faziam umas
apresentaçãozinhas lá, vinham pessoas de fora pra visitante, naturalmente
parente ou alguma pessoa que sabia que existia essa festa lá né,
comemoração, e o casal de americanos 10 ficava perto de uma piscina que
tinha. A mulher ficava cortando cabelo das crianças pra dizer que era boa,
mas na realidade não era nada disso, porque eu presenciava.
Lucas - No domingo, um lazer com as famílias né. Chegavam lá 8 horas.
Parece que ficava até 4 hora, 5 hora da tarde. [...] tinha, tinha, tinha, é tinha
sim a (pausa) o alimento era um alimento com a família ahm..era um dia de
lazer com a família, era somente cada um com a sua família, a integridade
tudo, tipo uma união, tudo, todo mundo ali.
Goffman (1974) esclarece que, para o interno poder vivenciar as “cerimônias
institucionais”, devia comportar-se da maneira esperada pela equipe dirigente que, por sua
vez, representava mais que um papel de supervisão. Já os internos apresentavam um
comportamento de acanhamento e respeito, chegando a demonstrar um laço paternal entre os
internos e a equipe dirigente. Assim, o final de semana no SAMC exibia as mesmas
características das cerimônias institucionais mencionadas pelo autor.
10
Casal responsável pela organização e funcionamento da instituição SAMC, segundo o relato do participante
Tiago.
73
3.3.8 SAMC: família
Em relação à família, três temas apareceram como motivadores da inserção dos
meninos no SAMC: o abandono, a delinquência e a falta de condições materiais para cuidar
dos filhos.
Pedro - Naquele tempo, tinha policia mirin, então esses guri que tava solto
por ai na rua, ai eles pegavam e levavam pra lá, por que ficavam ai sem pai
largado na ai na rua, como tem esses ai agora, só que tudo envolvido com
droga né, então eles levavam pra lá, levavam pra lá, já que não tinham
família nem nada por ai lá eles ficavam, até,o tempo, uns tentavam fugir né
mas.
Maria - teve menino que saiu depois voltou porque não tinha família, não
tinha nada. Uns não tinha pai, não tinha mãe, outros não tinha condições de
criar, outros eram dois que eram muito rebelde fugia de casa, ficava na rua ai
depois voltava pra lá, só sei que quando eu sai de lá era 26 crianças,e quando
eu entrei era menos, e essas 26 crianças agente cuidou, ai depois também não
sei mais.
Mateus- Era (pausa) naquela época eu tô falando delinquente porque [...]. é
o termo que usava né, então eu não gosto de usar esse delinquência, porque a
criança às vezes não é delinquente, quem é delinquente às vezes é o pai, que
não soube levar, o pai às vezes é...usa bebida, usa droga, então ele não dá um
amparo pro filho, não dá respeito pro filho, então o menino começa a pegar
um caminho errado, entendeu? Então, quando a mãe quer fazer as coisas ela
não faz, porque perdeu a força, o poder sobre aquele menor. Então, aí que
acontece já o abandono, mas de não de pai morto, mas pai vivo, né, que fica
perambulado na droga, na bebida, então destrói tudo o alicerce da família.
[...] quando a família dizia, na época, que não tinha poder sobre o filho, aí a
gente pegava ele e encaminhava lá pro SAMC, hoje Tromba dos Macacos, e
esse trabalho foi feito continuamente, tá. [...] No SAMC, eles fazia o
seguinte. A mãe autorizava a ida do menor pro SAMC - Tromba dos
Macacos - e lá eles ficavam e as mães então iam de 15 em 15 dias, mês em
mês, visitar os filhos né, aqueles que gostavam de ficar lá tudo bem, tinham
alguns que não queriam mais, e queriam voltar, aí eles tinham que ir lá no
fórum assinar um termo de responsabilidade, perante a justiça. Então o pai
ou a mãe iam no fórum assinavam o termo de responsabilidade pra ele poder
pegar o menor, né? E levar pra casa, sob já (pausa) já sob o cuidado dos
familiares, né? É assim que funcionava a criação do SAMC [...] As crianças,
a gente recolhia na Kombi, que era levado lá na Tromba dos Macacos, hoje é
SAMC, né? Então daí a gente comunicava pra mãe e pai que essas crianças
estavam lá. Se a mãe não quisesse, ela procurava na época o juizado especial
de menores, assinava um termo de responsabilidade e a gente trazia o menor
e entregava pra ela [...].
[...] tínhamos uma Kombi né, uma Kombi, e essa Kombi era encarregada de
sair na rua onde tivesse um menor abandonado [...] Só o comissário, ou o pai
ou mãe do menor, entendeu, que iam atrás deles, nunca envolvemos polícia
no meio. Nem lá no SAMC, nunca envolvemos policial no meio, a não ser
que era um caso muito, mas nunca usamos policial, usamos só o delegado de
polícia [...].
74
Ester- tinham família, mas eram na maioria meninos que cometiam furtos,
que assim, daquela época eu não lembro de muitos, lembro de alguns,e,
desses alguns vários já faleceram, outros estão presos, outros tem
família,eles tinham família, mas assim, eles não tinham o vinculo familiar
eles perderam então eles preferem acho que pelo uso de droga então eles
perdem o vinculo familiar, e ai eles vivem na rua.
Esses dados remetem ao que Londonõ (1991) mostra em seu estudo sobre a visão dos
juristas em relação à família dos menores delinquentes, apontada como responsável pela
desordem social provocada por seus filhos. Na opinião dos juristas a família que, cedendo aos
vícios (álcool, jogo, vadiagem), não exerce sua autoridade e acaba corrompendo os filhos.
Ainda segundo o autor, as mulheres que, aceitando as propostas obscenas dos homens, trazem
ao mundo filhos sem pai, também promovem a desordem da moral social.
No estudo de Marcilio (2006) sobre a criação de instituições totais de reclusão para a
infância em situação de risco, sendo as famílias incapacitadas, despreparadas (ou inexistentes)
para criar os filhos, o estabelecimento de internamento seria ideal para tirar a criança dos
perigos da rua, do botequim, da malandragem e da vadiagem. Retirada da família e da
sociedade, nas instituições as crianças encontrariam a educação, a formação, a disciplina e a
vigilância que os preparariam para a vida social e para construírem as suas próprias famílias,
segundo as concepções de amor e de preparação para o trabalho.
O relato de Mateus evidenciou que a criança ou o adolescente que fosse detectado
perambulando na rua sem o acompanhamento de seus pais ou responsáveis, em situação
suspeita de atividade ilícita, era recolhido para o SAMC pelos Comissários de Menores, sem a
participação de policiais. Mesmo não havendo a participação de policiais, verificou-se que a
situação dos menores em Corumbá era também um caso de policia.
A fala de Mateus trouxe o mesmo discurso utilizado pelos juristas para justificar a
implantação das instituições de recolhimento no começo da República. Esse discurso,
perpetuado por muitos anos, continha a visão de que a culpa dos problemas relacionados aos
menores era principalmente vinculada à família, que não dava um bom exemplo, tampouco
era capaz de educar seus filhos a partir dos princípios morais e dos bons costumes de uma
sociedade de bem.
75
3.3.9 A sociedade Corumbaense
Duas características foram notadas em relação à sociedade: a primeira, quanto à
caridade que se efetivava através da contribuição para a manutenção e o funcionamento do
SAMC, manifestada por meio de doações de alimentos, roupas, presentes e/ou dinheiro. A
segunda, caracterizada pela lógica da ordem pública, quando a sociedade reclamava para as
autoridades públicas sobre a presença dos menores abandonados e delinquentes perambulando
pelas ruas, gerando transtorno e riscos à sociedade corumbaense.
Mateus - [...] Olha, pelo que eu lembro, a sociedade reclamava muito dos
menores abandonados, então por essa razão que foi criado esse modelo de
de...dessa instituição SAMC, para poder tirar esses meninos da rua. [...].
Naquela época foi da... do juizado dos menores, então foi criado, foi um
conjunto, né? Aí envolveu toda a instituição da nossa sociedade. Entendeu,
né? Aí eles colaboravam com esse povo, né? [...] a sociedade daqui, né?
Mantimentos, aquela coisa toda, até uma mais ou menos uns 20, 22 anos, o
SAMC funcionou bem.
Maria – Então, tinha vinte e pouca crianças. Acho que 22 e aí então, é que a
gente viu que a despensa era praticamente vazia, aí a gente começou a pedir
pra um, pedir pra outro, e assim a gente conseguir normalizar, normalizar
essa parte, né?
- [...] que quase não tinha doador nenhum. Aí fizemos uma horta boa, e aí, e
aí como tínhamos a caminhonete, trazíamos no dia de feira e aí trazíamos,
né? As coisas de lá e vendíamos na feira e era uma ajuda boa.
Mateus recordou que a sociedade reclamava muito dos menores e, por essa razão, foi
criada a instituição do SAMC, a fim de tirar os meninos da rua. A sociedade ajudava com
mantimentos até mais ou menos 22 anos do SAMC, que funcionou de 1944 a 1966. A
participante Maria, que vivenciou a instituição em 1962, relembrou que chegou a presenciar a
despensa praticamente vazia, sendo necessário pedir ajuda da sociedade para normalizar a
situação. Nesse sentido, Lucas já havia relatado anteriormente que as pessoas reclamavam e
as autoridades recolhiam as crianças e os adolescentes considerados uma ameaça à sociedade.
Novamente ficou claro que a instituição enfrentou dificuldades para sua manutenção,
especialmente nos anos 1960. Como sugerido anteriormente, o fato deve estar ligado à crise
econômica por que Corumbá passava.
Na mesma linha da fala anterior de Lucas, na temática do atendimento e a junção da
sociedade com as autoridades para recolher os “menores”, Santos (2000) narra sobre os
menores que perambulavam pelas ruas, integrando as estatísticas da criminalidade e da
delinquência nas ruas da cidade de São Paulo, causando problemas e transtornos à sociedade,
76
fatos comprovados nas matérias publicadas no jornal. Esse episódio remete à mesma situação
apontada por Mateus, quando a sociedade reclamava da situação dos menores na rua,
pressionando as autoridades a criarem a instituição SAMC. A preocupação da sociedade com
crianças e adolescentes nas ruas estava relacionada aos perigos que representavam.
A retirada dos menores das ruas efetivou assim, nas entrelinhas, uma “limpeza social”.
Foram tirados do centro, onde havia uma maior movimentação populacional e econômica.
Não era interessante que aqueles garotos fizessem parte da paisagem da cidade, pois
desnudavam uma realidade que não desejavam que viesse à tona.
3.3.10 SAMC: Sistema de Punição e Sistema de Privilégio
Sobre o comportamento dos internos, duas atitudes exercidas pela administração do
SAMC ficaram visíveis, para manter a ordem e o bom funcionamento da instituição: a
punição e o privilégio.
João, que era interno da instituição, comentou que não havia castigo, apenas
chamavam a atenção, levando o menino até a chorar, e que havia a palmatória. Segundo ele,
dentro da instituição havia a separação dos meninos, uma turma que trabalhava na granja
(trabalho leve) e a outra turma dos rebeldes, que trabalhavam com a ferramenta (trabalho
pesado). João era da turma da granja e não soube informar ao certo o que ocorria com os
meninos que trabalhavam com as ferramentas.
João- Ahm ele não era de castigo, chamava atenção dele né, pra ele quando
tava tudo ali, ai o guri chegava até de chorar, dele fala [...] Só na palmatória,
isso eu vi.
[...] Isso, Eu tinha que ficar com a outra turma que eram da granja que eram
separados deles, que eles trabalhavam na ferramenta né, eu não trabalhava na
ferramenta não lá, [...] Estudavam, estudavam, como eu falei, tinha a parte
de de manhã, e a parte da tarde né, quem era da parte da manhã tudo bem,
quem era a parte da tarde era a parte da tarde [...] Faziam a mesma coisa, [...]
É separados, por qual motivo pra não ajuntar pra brigar com outro
O Estatuto do SAMC, de 1947, esclarece a situação da separação. Os menores eram
acomodados em dois pavilhões, conforme proposto no Art.14°, que determinava a separação
dos menores considerados delinquentes daqueles considerados abandonados. Eles recebiam
uma educação adequada às suas circunstâncias. Quando melhoradas as circunstâncias,
passavam a viver com os demais internos do patronato.
77
Pedro, filho de funcionário, relatou que a instituição tinha uma disciplina rígida –
lembrou-se do uso da palmatória. Lucas narrou que a instituição tinha um sistema de castigos
e privilégios, vinculados ao tipo de comportamento assumido. Para aqueles que tivessem mau
comportamento, havia um quarto no porão, em que o garoto ficava no escuro. Mas essa
recordação, para Lucas, era um pouco confusa. Ele recordou também que, dependendo do
comportamento, o menino ficava fora de alguma atividade como piscina, futebol, passeio na
cachoeira. Sobre os privilégios, Lucas relembrou que, às vezes, os garotos que tinham bom
comportamento podiam ir para a casa na sexta-feira, retornando à instituição na segunda-feira.
Pedro - Tinha disciplina, tudo no seu horário certo, não tinha esse negócio
de, por que você sabe que antigamente existia a palmatória, isso sempre
existiu, agora que hoje não existe graças a Deus, as vezes é preciso, porque,
eu tomei muito bolo (bater), na sala de aula mesmo naquela, eu tomei muito
bolo, o professor reunia a gente, e tal, pegava a tabuada, mandava estudar,
você tanto mais tanto, tanto vez tanto, não sabia, se aquele respondesse ai
dava um bolo na mão daquele outro que não respondeu, mas isso tudo não
era malvadeza, na verdade é o seguinte que todos que saíram de lá, ninguém
nunca reclamou
Pedro Rebelde sempre teve, mesmo porque aqueles que não queriam ficar
lá, esses que pegavam na cidade, fugiam, ai viam atrás pegava na estrada e
levava de volta, ai não fugia mais, porque sabe que iam atrás deles mesmo,
então saiam os mais velhos, ai buscavam eles, ai faziam entender que aquele
ali era melhor para eles, ai tinha tudo, no horário tudo certo.
- uns tentavam fugir né mas...
Lucas- De manhã tinha os afazeres a tarde tinha outra atividade né e assim,
conforme o comportamento de alguns tinha algum privilégio é isso têm em
todo lugar quem tem comportamento bom tem alguns privilégios, quem tem
um comportamento mal tem algumas punição, isso nunca vai mudar, [...]
Ahm era... Castigo lá, tinha um negócio..tipo um quarto lá lá num porão, e
essa pessoa ficava lá, eu não me lembro muito bem mesmo, ou ficava fora de
alguma atividade, parece que relembrando na minha memória é algo que
ficava fora de uma atividade, fica fora de alguma piscina, futebol, essas
coisa, passeio no.. na cachoeira lá, [...] Não, não, é..ouve eu não sei não me
lembro bem, um, quando assim..passou do limite, passou do limite,assim,
ouve umas duas vezes a três vezes, mas nada que pudesse resolver ali
mesmo né, Graças a Deus não teve danos nenhum né.
Lucas- porque as vezes as pessoas que chegavam ficavam três a quatro
dias, depois fugiam de novo, [...] Fugia, porque a gente que vem do vicio, é
muito difícil [...] .
Lucas- Eu lembrando também acho que as vezes nos podia ir quem tinha um
bom comportamento podia ir pra casa na sexta, é só voltava na segunda, eu
acho que era assim é... todo mês é... toda semana ia dois passava um final de
semana e depois voltava.
78
Tiago não presenciou nenhuma punição, mas ouviu dos meninos alguns casos de
castigos. Um deles foi quando o diretor do SAMC levou a compra para a instituição e pediu
para os garotos formarem uma fila, porém um garoto não obedeceu. O diretor pediu mais uma
vez e o garoto o xingou. O diretor, então, pediu para o garoto ficar próximo do jipe e começou
a chicoteá-lo para que aprendesse a respeitá-lo. Tiago repetiu que não havia presenciado a
cena; apenas soube por um interno.
Tiago- me contaram que o diretor do SAMC, era o diretor,é que levava acho
que ele que levava compra,aqueles negocio, então ele era muito bom na
época,não era ele que estava lá quando eu estava lá, e um dia ele chegou e
pediu pro cara mandar formar os guri e tinha um rebelde lá,dizia eu não for
formar nada, ai ele falou com o guri e o guri xigou ele sabe, xingou ele,e ele
era tão bom,ai nesse dia mandou pega ele,ai pegaram ele, põe ele aqui,pois
ele no jipe dele,isso ai eu não vi,isso me contaram o que aconteceu lá, pegou
um chicote, ai disse larga ele, ai largou e ai começou chicoteou o guri no
chicote ai depois disse isso ai é pra quando eu falar com você é pra aprender
a respeitar.
Uma questão comum entre os participantes referente a essa temática (castigos e
privilégios) foi o processo de fuga. Cada um expôs alguma situação, que às vezes se
entrecruzava com outra narrativa.
João e Pedro disseram que, quando os menores fugiam, eram capturados e não havia
punição, somente conversa, para que entendessem que não era permitida a fuga. No entanto,
João disse que os meninos, no meio da conversa, se punham a chorar. Apesar de os
participantes não relatarem o motivo pelo qual choravam os meninos, a hipótese é de que
havia algum tipo de punição. Mesmo que não estivesse evidente a violência física como forma
de punição, poderia haver a violência psicológica, num processo de mortificação do eu,
conforme explicitado por Goffman (1974).
João- [...] fugiu por dentro da maninha( risos) , entrou por dentro do
maninhão saiu não sei da onde e foi embora, [...] ahm por que era um
muleque safado mesmo, não queria ficar lá e não tinha como sair ,então na
hora do banho, esse ai era da parte da tarde cinco hora ia tomar banho,ai essa
era a hora,[...] ahm, eles iam atrás, seu nome ia atrás ia atrás , no lugar onde
morava, [...] não fazia nada, chegavam conversava com eles lá, conversava
com eles, pra poder voltar com ele, ai voltava, e ficava numa boa.
João- Ahm ele não era de castigo, chamava atenção dele né, pra ele quando
tava tudo ali, ai o guri chegava até de chorar, dele fala [...] Só na palmatória,
isso eu vi.
79
Tanto Maria, que era membro do conselho consultivo do SAMC, quanto Madalena,
filha de funcionário, testemunharam que havia uma marca que representava um castigo para
aqueles que fugiam da instituição, que era raspar o cabelo dos considerados “fujões”.
Madalena – Fugia, raspava a cabeça.
Maria- Eu sei que teve menino que fugiu.
Ester e Rute, que vivenciaram a instituição como funcionárias no período de 1980 a
1990, depuseram que os garotos fugiam da instituição para fazer uso da droga. Porém, eles
eram capturados e obrigados a retornar para a instituição. Ambas garantiram que os agentes
policiais estavam lá apenas para a segurança dos funcionários, dos menores, e não para a
punição.
Rute- tinha cobertor, tinha calça, casaco, tudo. Mas só que eles pegavam e
vendiam trazia pra cá por causa da porcaria (se refere ao uso de droga)
fugiam da gente, e dona Maria Pedrossian não autorizava a gente e os
policiais judiarem deles né, pesquisadora; Lá trabalhava policial? Não, era só
pra segurança nossa, nossa segurança, não pra segurar eles.
Ester- eu não sei se a horta chegou de dar alguma coisa, mas tinha sim, era
até uma horta grande, pra eles, mas pra eles era mais difícil despertar neles o
gosto pelas coisas, [...] Eles não fugiam muito de lá não, eram poucos que
tentavam fugir, eles não ficavam num lugar fechado eles tinham liberdade lá
dentro, eles tinham pelo menos no período que eu estive lá eles saiam por 15
dias 20 dias voltava, ficava lá por um tempo e depois voltava, então era essa
a rotina, [...] Tinha um rapaz eu não recordo o nome dele que era como se
fosse..uma pessoa responsável pra ficar ali cuidando deles, no sentido de não
deixar fugir, se ferir, porque eles tentavam né, como eles usavam droga né,
mas não pra punição.
Goffman (1974) define a relação de castigos e privilégios nas instituições totais. O
privilégio pode também representar a ausência de privações que comumente a pessoa não
espera sofrer. Os internos criam mecanismos para a adaptação no meio institucional,
buscando garantir, no seu cotidiano, o beneficiamento por esse sistema de privilégio, bem
como não sofrer castigos e mutilações em seu eu, nesse caso, “ficar careca”.
Uma estratégia utilizada por Lucas na busca de um sistema de privilégios foi aliar-se à
equipe dirigente.
Lucas: Uma vez fugiu todo mundo. E eu saí com o segurança, o agente que
era responsável lá, que era um dos que cuidava lá, era agente oficial [nome
80
do agente]. Cheguei de sair com ele pra poder recuperar um daqueles jovens
lá, conseguimos recuperar uns três, e levar de volta, mas já viemos recuperar
lá no Urucum. Já, uns quatro ou cinco quilômetros de distância já. Aí, foi, foi
muito bom, Graças a Deus.
Segundo Goffman (1974), essa situação está ligada à tática de intransigência, pois o
interno coopera com a equipe dirigente como mecanismo utilizado para adaptação ao meio
institucional, a fim de garantir benefícios no cotidiano, ou mesmo para não sofrer castigos.
3.3.11 Viver no SAMC.
Sobre o tema “O que foi viver no SAMC”, as respostas obtidas foram de que a vida na
instituição era muito boa, demonstrando um sentimento de aparente gratidão ao SAMC, aos
serviços oferecidos na entidade, desde a educação até o aprendizado de um ofício.
João - Ah, pra mim eu gostei, por causa do velho lá. Ele ensinou bastante
coisa pra gente, explicava, eu gostei daquele lugar, do ensino e sobre o
ensino que deu pra [...]. O estudo, é verdade [...]. Foi bom, bom mesmo.
Pedro - Eu às vezes converso com a minha esposa, dizendo, poxa vida, se eu
pudesse voltar atrás né, o lugar que eu gostaria de estar é o SAMC. [...] Lá
todo mundo era igual, né? [...] A regra era pra todo mundo, pra escola, pro
trabalho, e de lá você vê, não saiu um cara que não prestasse, um ladrão, ou
coisa assim, saiu todo mundo direitinho [...].
Lucas - [...] Uhum, (vibrou) senti alegria, porque nunca tinha morado nem
vivido no mato, nunca tinha morado fora da cidade, a primeira vez que tinha
acontecido isso [...] Uhm...[pausa] foi um bom projeto do governo, de todos
que tiveram envolvido no projeto foi um bom projeto.[...] Como todo
investimento, tipo uma Fundação Bradesco, o SAMC por si, da maneira que
estavam, tem que ter mais...mais oportunidade de profissões para os que vão
ser internado lá ou passar por lá [...].
Essas falas remetem à mesma questão de apropriação do discurso da instituição, como
exposto nos estudos de Negrão (2002), Vasconcellos (1997) Rosa (2003), Quintãns (2009) e
Silva e Mello (2004), que incluem narrativas sobre vivências nas instituições denominadas
como Asilo, Internato, Casa-Lar ou Abrigo. Sobressai o caráter de gratidão dos internos,
repetido através de um discurso assistencialista-caritativo apregoado, principalmente, pela
instituição como uma mãe que os acolheu, quando mais precisaram, tirando-os dos perigos e
moléstias da rua. Tais instituições seriam um lugar de proteção, para que se estivesse a salvo
de perigos ou que contribuísse para a geração de homens de bem, discurso também
81
apresentado por João, Pedro e Lucas, que acreditam que o SAMC foi uma instituição muito
boa.
Esses discursos referendam o que Goffman (1974) caracteriza como a tática de
adaptação, representada pela tática de colonização. Concretiza-se quando a instituição
representa ao interno como um todo e esse mínimo apresenta-se satisfatório; é a referência do
mundo externo, utilizada para demonstrar o quanto a vida na instituição era desejável.
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve por objetivo analisar a história do atendimento a meninos
institucionalizados do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC),
evidenciando o processo de funcionamento da instituição, com a finalidade de conhecer o seu
papel social.
Para a análise, utilizamos o olhar do sociológico Erving Goffman, que contribuiu para
compreender o processo do funcionamento da instituição em estudo, a partir dos conceitos
centrais das instituições totais como a padronização, o controle e a vigilância, a relação de
tensão entre a equipe dirigente e o internado e as formas de mortificação do eu. Mais ainda, as
considerações do autor favoreceram um entendimento sobre o sistema de castigos e
privilégios, a constituição das cerimônias institucionais e o momento da saída do interno da
instituição total.
A partir de 1944, a cidade contou com uma instituição que visava a prevenir os males
sociais, amparando a infância desvalida e transviada, instaurando um estabelecimento
destinado à internação e à educação de menores, assim como aconteceu também na história do
atendimento institucional no Brasil.
Em especial, de meados do século XIX ao século XX, era forte o discurso em defesa
incondicional da criança, “gênese da sociedade”. Porém, uma leitura minuciosa patenteou que
a defesa era, na realidade, em favor da sociedade contra essa criança, que se tornava uma
ameaça social à ordem pública. Tal defesa era expressa por meio da criação e expansão de
instituições de atendimento a crianças e adolescentes sem família, que passavam a viver sob o
rígido controle de uma formação socioeducativa, em um modelo de educação voltada para o
trabalho. A intervenção do Estado se fez mais atuante, impregnada de conceitos de ordem,
moral, repressão e preparação para o trabalho, como discutem Pilotti (2011); Arantes (2011);
Marcílio (2006); Rizzini, Irene (2011); e Moraes (2011).
O SAMC portava características das colônias agrícolas, pois ficava afastada dos
centros urbanos, na zona rural. Os menores que perambulavam sozinhos pelas ruas, sem
acompanhamento de seus genitores e desprovidos de documentação, além dos menores que
cometiam furtos, envolvidos com o mundo do crime, considerados “delinquentes”, “vadios” e
“vagabundos”, eram recolhidos e ficavam internados na instituição. O modelo institucional
estava baseado na ação educativa (vinculada à aprendizagem das primeiras letras e à formação
moral) e na preparação para o trabalho (desenvolvimento de atividades agrícolas). Tal modelo
83
era considerado mais eficaz na formação dos internos, pois os retirava da rua, meio
considerado deletério, bem como suprimia o ócio, através de atividades laborais.
A instituição, por muito tempo, foi impulsionada e financiada pela sociedade, que
entendia que essa era a solução para a minimização dos males que assolavam a sociedade e a
cidade, que vivenciava um momento de auge econômico.
Para atender às solicitações da sociedade, a instituição propunha-se a formar hábitos
para conservar e aprimorar a saúde social, bem como para fortalecer o aprendizado da moral e
de ofícios, com o propósito de inserção no mercado de trabalho, ou seja, para que os internos
se tornassem pessoas de “utilidade social”, e não mais um “problema social”.
A instituição era gestada por uma equipe dirigente que não vivenciava cotidianamente
a instituição. No entanto, durante seu funcionamento, mantinha uma família responsável pelo
cuidado e pela ordem da instituição e dos menores.
A dinâmica do SAMC sofria mudança somente durante os finais de semana e/ou em
momentos de festividade, quando era aberto para a sociedade, familiares e entidades
religiosas. Nessas oportunidades, as atividades da instituição eram preenchidas com lazer,
piquenique e apresentações, diferentemente da vida diária, marcada pelo estudo e pelo
trabalho.
A abertura do SAMC para as festividades e nos finais de semana parece caracterizar
uma demonstração de que a instituição mantinha um funcionamento perfeito, harmonioso e
preocupado com a educação dos internos, para que fossem devolvidos à sociedade livres dos
males que os tornaram institucionalizados. Reforçava-se a ideia de que as doações eram
necessárias para que a instituição conseguisse se manter e cumprir o seu papel educador. Era
essencial o processo de ajuda mútua, ou seja, a sociedade pagava, através de donativos, a
“limpeza da cidade”, enquanto que a instituição mantinha os internos sob controle.
Notou-se esse controle nos depoimentos em relação à vida diária. A instituição
mantinha uma regra que era cumprida por todos, sob a vigilância de funcionários. O número
de funcionários era escasso, em relação ao número de internos. A consequência dessa
discrepância era que todos deveriam cumprir as atividades programadas no tempo exigido,
pois logo viriam as atividades seguintes, que também deveriam ser cumpridas por todos no
lugar e na hora marcados.
A relação entre internos e equipe de dirigentes foi expressa, pela maioria, como uma
relação de cordialidade. Porém, lendo nas entrelinhas, ela era realmente marcada por tensões
no processo de mortificação do eu, seja pelo controle através de violência física e/ou
psicológica, denunciada pelas punições, humilhação, maus-tratos físicos e emocionais, seja
84
pela construção de mecanismos de adaptação do interno ao meio institucional, na tentativa de
não sofrer punição e garantir, no cotidiano, benefícios por meio dos privilégios. Outra forma
de mortificação do eu constatada no SAMC esteve relacionada à ausência de autonomia e
liberdade dos internos, sempre enfraquecidas nas e pelas atividades diárias no processo de
arregimentação.
O discurso de alguns de nossos participantes estava embebido das ideias de seu tempo,
seja pelo caráter moralizador, seja pela culpabilização da família, ou pela educação através do
trabalho, numa perspectiva saudosista. Outro fato que merece destaque é a aparente gratidão
pela instituição, o que parece caracterizar um processo de colonização, ou seja, a instituição,
apesar do tempo, é referência, principalmente em relação aos dias agradáveis de festa.
Assim infere-se que a criação da instituição teve o papel social de higiene social, pois
efetuou a “limpeza da cidade”, retirando de circulação os menores que perambulavam pelas
ruas, assim como ocorreu em outras cidades do Brasil.
Dessa maneira, o objetivo da presente pesquisa, de analisar a história do atendimento a
meninos institucionalizados do Serviço de Assistência aos Menores de Corumbá (SAMC),
com a finalidade de conhecer o papel social da instituição e o tipo de atendimento prestado
por ela, foi atingido. No processo de garimpagem e montagem deste estudo, novas questões
foram evidenciadas, que poderão fazer parte de uma nova colcha, entre elas: Como se deu o
processo de entrada na instituição? Quais foram as histórias dos internos durante o processo
de institucionalização? Como ocorreu o processo de desinstitucionalização dos internos?
Esses temas trariam novos complementos à dissertação, ampliando o seu alcance, atingindo
novas extensões.
85
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91
APÊNDICE
92
APÊNDICE A: Roteiro da entrevista
Pergunta 1: Instituição
Pergunta 2: Atendimento no SAMC
Pergunta 3 : Responsáveis do SAMC
Pergunta 4 : Manutenção
Pergunta 5: Processo Educativo
Pergunta 6: Rotina
Rotina manhã
Rotina tarde
Pergunta 7: Finais de semana na instituição
Pergunta 8: Família
Pergunta 9: Sociedade
Pergunta 10: Sistema de punição e sistema de privilégio
Pergunta 11:Viver no SAMC
Rotina noite
93
ANEXOS
94
Anexo A
95
96
97
98
Anexo B
99
100
101
102

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