Apresento neste artigo algumas reflexões sobre o trabalho de

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Apresento neste artigo algumas reflexões sobre o trabalho de
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PRODUÇÃO AUDIOVISUAL INDÍGENA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA
Vandimar Marques Damas1
Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual (FAV/UFG) Brasil
RESUMO:O objetivo deste artigo é refletir sobre a experiência na produção de um vídeo
com os alunos indígenas do curso de formação de professores indígenas da Universidade
Federal de Goiás. Qual é a função que a câmera pode exercer entre esses povos? Que
mudançasa produção videográficapode provocar na cultura de comunidades indígenas? A
reflexão que os cineastas indígenas fazem sobre o uso desses instrumentos serve para
pensarmos as diversas formas de resistência e críticas que podemos fazer acerca das
engrenagens do poder, pois assim como o xamã, o cineasta indígena atua com alguma
autonomia em relação à articulação teórica ocidental, na direção de elaborar discursos e
versões próprias sobre o mundo.A câmera insere uma nova lógica sobre a produção de
novas imagens, repercutindo, de diversas maneiras, nas relações que essas comunidades
estqabelecem com as imagens e o mundo.Do mesmo modo, aperformance, no ato de
filmar, insere uma nova concepção de xamanismo.
Palavras-chave: produção audivisual indígena; vídeo etnográfico;pós-colonialismo.
Apresento neste artigo algumas reflexões sobre o trabalho de campo que realizei
duranteo curso de mestrado em Cultura Visual. A pesquisa teve como objetivo
trabalhar o uso da linguagem audiovisual como prática de autorrepresentação e a
reflexão que os professores indígenas fazem dela. O trabalho foi desenvolvido de
forma prática através de oficinas de produção de vídeo, oferecidas aos alunos do
curso
Licenciatura
Intercultural,
da
UFG.
Este
curso
é
destinado
à
formaçãosuperior de professores e professoras indígenas. Iniciado no ano de
2007, atualmente conta com 220 estudantes pertencentes a doze povos:Tapirapé,
Karajá, Javaé, Krahô, Xerente, Apinajé, Gavião, Krikati, Guarani, Guajajara,
Canela e Tapuia.
Participei de quatro etapas, como pesquisador, no curso de Licenciatura
Intercultural,durante os anos de 2009, 2010, 2011. Durante esse período, tive a
oportunidade
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de
produzir,
juntamente
com
os
estudantes
indígenas,
Vandimar Marques Damas é graduado em iências sociais pela UFG e mestre em cultura visual pela faculdade de artes
visuais da UFG. Atualmente doutorando a Faculdade de Artes da Universidade Federal de Goiás. Email.
[email protected]
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aproximadamente, 3 mil fotografias e cerca de 10 horas de gravação, o que
resultou num vídeo de 20 minutos, intitulado “Intelectuais indígenas”.
Na produção audiovisual, observa-se uma espécie de deslocamento no espaço de
produção das imagens, uma mudança de foco. Em outras palavras, trata–se de
saber como desconstruir as antigas metáforas de representação dos povos
indígenas,construídas pelo discurso ocidental, e, deste modo, possibilitar o
surgimento de novas referências imagéticas desses povos. Nesse sentido, a
recusa na aceitação do nativo como um sujeito, ou ainda como sujeito
pensante,dificulta o exercício efetivo de uma relação de alteridade, ou, como
afirma Stratern, “o modo como cada um compreende o outro é comprometido pelo
modo de como cada um imagina que o outro compreende, mas quenão pode
saber [como é]”. (STRATERN, apud VIVEIROS DE CASTRO, 2007, 34).
Isaac Pinhata (2004, p. 17) diz que “o vídeo, para toda a comunidade, é um
sistema para todo mundo olhar, não é um sistema formal. Todas as crianças os
jovens [...] Todo mundo assiste e dá a sua visão, o seu ponto de vista”. Deleuze
(1995, p.79), a seu turno, observa que “[É] o ponto de vista que permite que o Eu
e o Outro acedam a um ponto de vista”. Este aspecto é fundamental, porque tal
experiência visual, pretérita e atual, indica que o vídeo serve antes para ver o
outro do que para ser visto. Parafraseando Lévi-Strauss, finalmente, compreendo
que o vídeo é uma arte indígena por excelência, não por que são bons para roubar
e mostrarimagens, mas por que são bons para pensar sobre o outro (LÉVI STRAUSS, 1985).
Rubem Caixeta (2004) relata que, no início das produções dos vídeos pelo projeto
Vídeos nas aldeias, os indígenas ficavam preocupados com o que filmar, como
filmar e o que mostrar para os não indígenas. Experimentavam dúvidas tais como:
“será que devemos mostrar issopara eles?” Tinham em mente, por exemplo,
alguns mitos e rituais sagrados que não podem ser mostrados para os brancos, e
o xamã que não gosta de ser filmado. A relação de alguns povos indígenas com a
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máquina fotográfica ou filmadora ainda está atrelada a uma dimensão espiritual.
Persiste, muitas vezes, o temor de perderem a alma ao serem fotografados, pois a
câmera captura a alma e a leva para dentro daquela caixa ou câmera escura.
Toda imagem tem um autor, por trás de toda câmera está um observador. Esse
fato ressalta a ausência dos sujeitos que são observados: trata-se da ausência de
uma performance de um corpo político diante das câmeras. A câmera reduz a um
olhar periférico tudo o que filma, de modo que “a máquina de filmar tem um único
ponto de vista: o próprio. Todo o resto, pessoas, animais e coisas devem ser
reconduzidos a sua centralidade” (CANEVACCI, 1990, p 101).
Durante uma mostra do Vídeos nas Aldeias, realizada em Goiânia no ano de
2009, Maricá, cineasta Kuikuro, observou que um branco não filmaria um ritual
indígena da mesma forma que um índio, uma vez que aquele faz parte de outro
universo cosmológico e portanto terá um outro olhar sobre o que está sendo
filmado. Retomando a dúvida trazida pelos indìgenas durante o trabalho com o
projeto Vìdeos nas Aldeias(“Seráque podemos mostrar isso a eles?”), pode-se
inferir que nem tudo deve ser mostrado para os outros, aqueles que ainda não
entendem, ou não compartilham determinados níveis de relações.
Duplicidade e multiplicidade das relações desaparecem quando se olha apenas
para um dos extremos. A teoria do cinema deveria considerar esse fator. É por
isso que precisamos de um novo ponto de partida para pensar o cinema, e de uma
teoria é feita a partir dele (STAM, 2003). Devo confessar que é uma idéia bastante
tentadora tomar o cinema indígena e o que os índios pensam dele como ponto de
partida para pensar uma nova teoria do cinema ou até mesmo um novo cinema.
Como afirma Deleuze, “não somos nós que fazemos cinema, é o mundo que nos
parece um filme ruim” (DELEUZE, 2005, p 296).
Os cineastas indígenas empregam uma grande variedade de elementos da sua
cultura na produção audiovisual: cantos, mitos e a arte indígena concorrem para
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criar um cinema inscrito em sua cosmogonia. Portanto, como ressalta Benjamim,
para evitar qualquer tipo generalização ou dúvidas, “não preciso dizer nada, só
mostrar” (2006, p. 462).
Os povos indígenas, ao se apropriarem de equipamentos e máquinas
fabricadospelos brancos para fins comerciais, subvertem os objetivospara qual
foram destinadas em sua origem, atribuindo-lhes novas funções, a serviço das
questões indígenas. O cinema, a fotografia, o vídeo e o computador são exemplos
deinvenções criadas por nãoindígenas, dentro da lógica da sociedade de
consumo,que, que quando apropriadas pelos povos indígenas, ganham outras
formas de inserção sociocultural. A reflexão que os cineastasindígenas fazem
sobre o uso desses instrumentos serve para pensarmos asdiversas formas de
resistência e críticas possíveis acerca dasengrenagens e dinâmicas do poder.
Pois, assim como o xamã, o cineasta indígena escapa, em alguma medida, à
vinculação teórica ocidental, na direção de construir discursose versões próprias
sobre
o
mundo.
Para
tanto,
fazem
uso
de
aparatos
culturais
dos
brancos,exercitando traduções interculturais que, dentre outros formatos, também
tomam a forma de vídeo.
O interesse desse tipo de produção cinematográfica reside nacolisão de
perspectivas, demonstrando a necessidade de novas imagens que se desdobram
numa crise de categorias e imagéticas. Essa crise decategorias refere-se à
consolidação da produção de suas próprias imagens,imagens políticas, por parte
dos povos subalternos. Vemos aqui arelevância de continuarmos a confrontar as
estruturas coloniais, cujosefeitos ainda são sentidos nos planos político
eepistemológico. Isso nos instiga a buscar pensamentos que operemcontra a
corrente das idéias dominantes do contextoda cultura contemporânea.
O uso das imagens cinematográficas por esses povos provocam aemergência de
novas críticas sobre a produção e utilização das imagens,interrogando os modos
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de realização veiculação, divulgação, consumo, bem como sua autoria e
assinatura.
Nessas relações, os indígenas ampliam o seu campo de visão,recuperando e
atualizando suas práticas discursivas,bem como o seu lugar de enunciação.Essa
estratégia de luta pelo lugar de enunciação coloca em evidência asreivindicações
desses povos. Essas ações não se configuram, de modoalgum, como elemento
secundário, mas como fator crucial na plataformade luta e reivindicações
anticolonialistas.
O discurso colonial representa os colonizados como inativospoliticamente, ou
incapazes. Esse discurso está tão entranhado no nosso cotidiano,que o
internalizamos de tal forma, que mal podemos percebê-lo. (SHOAT, STAM, 2006).
Segundo Canevacci, a “investigação antropológica nasce junto com a necessidade
doartista e dos fotógrafos documentarem o mundo desconhecido”(CANEVACCI,
1990, p. 52). Trazendo isso para o universoda produção imagética, observamos
que, entre quem filma e quem éfilmado, se estabelece uma relação de poder.
Entre quem olha e quem éolhado, constrói-se uma relação dicotômica e
hierárquica não explicitada,ligada ao momento de observação. Este conhecimento
exige oreconhecimento do outro e por parte do outro, ao mesmo tempo, narelação
que se procura estabelecer no vídeo etnográfico.
Mas podemos testemunhar o surgimento de uma atuante e significativa esfera
públicaindígena, cujoobjetivo é a apropriação do conhecimento dos não indígenas
e utilizá-lo em seu favor. A educação não indígenaopera com conhecimentos
considerados indispensáveis, por muitos povos, para a defesa de seus territórios e
reivindicação dos seus direitos e garantia de sobrevivência. Bruce Albert (2002)
afirma que, como estratégia, osYanomami apropriaram-se do termo “terras
indìgenas” como mecanismoessencial na formação das “etnias” da Amazônia e
dasua organizaçãopolítica. Vemos aqui que a ação empreendida pelos povos
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indígenas pelacaptura de novas formas de saber e conceitos é uma espécie de
guerra deguerrilha seja no plano da cosmogonia ou no plano do concreto.
A economia da filosofia indígena é composta de várias formas deagências. A
categoria agência é evocada, aqui, como significado de agir e fazer agir.Recorro
àantropologia polìtica de Clastres (2003), citado porSztutman (2009), para pensar
no agir ou no poder político não no sentidode exercer de forma legítima a
violência, mas no sentido que umadeterminada sociedade se organiza de forma
que todos detenham o poder,exercendo uma ação contra o monopólio legitimo da
violência, é aSociedade contra o Estado (2003).
Os povos ameríndios, portanto, constroem as suas próprias agências,ou melhor,
os seus modos de agir, seja diante do Estado, seja diante dasociedade
envolvente. Nas relações travadas entre eles mesmos,mas também com os outros
seres cosmológicos, e com oselementos citados anteriormente,é que estabelecem
os seusagenciamentos.
As narrativas míticas constituem importantes elementos cuja observação pode
propiciar adentrarmos e compreendermos o universo cosmológico dos povos
ameríndios. Oxamanismo e as relações de parentesco são fatoresfundantes
quecompõem o universo cosmológico desses povos. O xamã é um intelectual eum
artistabricoleur. O processo de fazer artístico é omomento de refletir sobre esse
fazer e o momento de fazer é também e de abstrair sobre o que está fazendo. A
busca pelo conhecimento é vital para esses povos, consequentemente é preciso
recorrer a todosos instrumentos e saberes dos quais dispõe o branco, mesmo que
isso acarrete mudanças na sua cosmologia.
Um exemplo de mudanças possíveis está na alteração provocada pela inserção
das câmeras de vídeo entre os povos ameríndios, no caso desta pesquisa,
referencialmente os brasileiros. O que tem sido possível constatar é que se
estabelece, entre xamanismo e vídeo etnográfico, uma relação deafinidade. O
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ponto de partida do pensamento do Xamã é a experiência intelectual advinda
dediversas viagens para outros contextos geográficos ou cosmológicos. Ovídeo
etnográfico e o xamanismo pensam como Riobaldo: “tudo que euconto, é porque
acho que é sério preciso” (...), pois, para o jagunço, "oreal não está na saída nem
na chegada: ele se dispõe para a gente é nomeio da travessia." (ROSA, 2000, p
114). Isso me leva a refletir sobre como foi a minha relação com os sujeitos da
minha pesquisa.
Logo que iniciei meu percurso etnográfico, no que diz respeito àprodução de
imagens, percebi que eu não estava apresentando nada denovo para a maioria
dos indígenas, uma vez que eles e elas já estavam bem familiarizados com o uso
de câmeras fotográficas e celulares. Alguns até já haviam participado da produção
de alguns vídeos.
Durante a aula de produção de vídeo, decidi não apresentar nenhum roteiro
e nem discutir algum tema. Aguardei que eles utilizassem as câmeras da forma
que eles escolhessem. Assim eles saíram pelo campus da UFG, à procura de
alunos e professores que estivessem dispostos a serem entrevistados.
Essa postura, todavia, não eliminou a minha participação e interferência no
processo degravação. Primeiramente, há que se considerar que tal decisão foi
tomada por mim. Antes de ir a campo, eu já havia estruturado como seria a minha
pesquisa, ouseja, embora eu tinha a pretensão de que o trabalho levasse em
conta oponto de vista deles e que fosse uma antropologia simétrica (LATOUR,
1991). Penso que, se sentássemos para discutir sobre os rumos da
minhapesquisa ou mesmo do filme, as diferenças gravitariam em torno do
processo de elaboração e decisão sobre qual caminho a seguir.
Durante o meu trabalho de campo, eu me perguntava: como elaborar um
roteiro de um filme nessa complexa teia de relações? De que forma os diferentes
conhecimentos possíveis estarão presentes no filme? Considerei que a melhor
alternativa seria deixar que cada grupo tomasse a decisão sobre o que filmar e
como filmar e, posteriormente, decidíssemos em conjunto sobre os rumos da
montagem. Por outro lado os resultados no trabalho de campo nunca
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são,exatamente, os esperados pelo pesquisador. Eles são sempre incertos e
surpreendentes, fazendo com que a pesquisa ganhe múltiplos contornos.
Observando pelas margens, fui tentando fazer a montagem do filme em minha
mente, utilizando o universo no qual estava tentando me inserir.
À medida que o tempo foi passando, comecei a perceber que, para eles,a
câmera justificava o meu estar em campo, a ponto que a primeira pergunta que
geralmente faziam era "cadê câmera fotográfica?". Eu era o homem com a
câmera. Sem ela, eu não tinha muita importância para os indígenas. Eles haviam
descoberto o poder e a magia de fotografar, de olhar o outro pela lente de uma
câmera, disparar um raio para capturar a alma de alguém. Essa descoberta do ato
de fotografar me conecta de novo a Benjamin que cita Tzara sobre ainvenção da
fotografia: “Ele tinha descoberto o poder de um relampejar eterno e imaculado,
mais importante que todas as constelações oferecidas para o prazer dos nossos
olhos” (2008, p. 105).
Assim, acredito que vivenciamos uma nova economia das imagens, em
quea produção de fotografias e a possibilidade de alterá-las dá-se num ritmo muito
mais elevado do que há alguns anos. Pode-se alterar a cor de uma fotografia, a
sua textura no mesmo momento em que ela éproduzida. Não precisamos mais de
uma película para produzir uma fotografia: agora basta que o fotógrafo altere a
configuração da máquina.
A questão das imagens me leva a fazer uma conexão com Vilém Flusser
(1985) que, na sua filosofia da caixa preta, contribui para o pensamento e reflexão
sobre a automatização e o consumo da informação. Flusser faz uma análise da
fotografia não do tipo convencional,mas como conceito de informática e modelo
básico para a análise do modo de funcionamento de todo e qualquer aparato
tecnológico ou midiático.
O autor expõe a outra face do funcionamento e função das máquinas,
especialmente das câmeras fotográficas. Para ele é o engenheiro quem define o
formato das imagens que o fotógrafo produz. O autor denomina imagens técnicas,
que são aquelas imagens produzidas por aparelhos, estes, por sua vez,
produzidos por textos científicos. Por trás da intenção do fotógrafo de produzir
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determinada imagem está a intenção de quem produziu e programou a câmera
fotográfica.
Ao produzirem imagens de si mesmos, os videastas indígenas utilizaram
uma estratégia reflexiva, o que permite novas formas de representações sobre
seus mitos. Eles são diretores e atores dos filmes produzidos e isto pode vir a
permitir o descentramento da imagem eurocêntrica acerca dos grupos indígenas
como um todo. Observo também, que para eles o vídeo é mais uma das diversar
formas possíveis para romper o circulo das relações internas e partir para um
círculo de relações mais vastas e complexas.
Nas palavras de um dos participantes da pesquisa, as máquinas
fotográficas são importantes para os índios, pois “precisamos nos preparar com
isso pra que a gente possa documentar os nossos conhecimentos tradicionais por
meio desses instrumentos”. A reelaboração do processo de narrar e olhar o
“nativo”, através das imagens, é, sem dúvida, um desafio para o processo de
criação das narrativas videográficas. A elaboração de um vídeo pelas alunas e
alunos indígenas permitirá que eles aprendam e compreendam a técnica, a
criação e a transmissão de conhecimentos através da linguagem audiovisual.
Assim pensava, por exemplo, o próprio Jean Rouch (ROUCH, 1979,apud,
QUEIROZ 2004, p. 49).
Amanhã será o tempo do vídeo colorido autônomo, das
montagens videográficas, da restituição instantânea dai
magem registrada, ou seja, do sonho conjunto de Vertov
eFlaherty, de uma câmera tão participante que ela passará
automaticamente para as mãos daqueles que até aqui
estavam na frente dela. Assim, o antropólogo não terá
mais o monopólio da observação, ele mesmo será
observado, gravado, ele e sua cultura .
Assumir essa perspectiva não se trata de esconder-se atrás deuma
objetividade ou encerrar-se em uma suposta ciência mas, sobretudo, sublinhaa
possibilidade de se estabelecerem relações entre mundos diferentes. A partir
disso sinto que, também ocupando o espaço da teoria, e dialogando com ela, está
a minha subjetividade e dos demais sujeitos que participam da pesquisa.
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Uma das funções da ciência é classificar, e ao classificar, inevitavelmente,
hierarquizam-se informações. Isso oferece elementos para afirmar queas
classificações científicas serviram de pretexto para continuidades e exclusões, ou
para as classificações binárias como ciência e magia, primitivo e civilizado.
Em uma das aulas da disciplina Cosmologia e visões religiosas, um
estudante
indígena fez a seguinte indagação: “Professora mito é a mesma
coisaque imitação?” A professora respondeu que não. Mas então ele contestou:
“Mas se o mito foi criado antes de mim, pelos meus antepassados e foram eles
quem me contaram esse mito, então, paracontar o mito para as pessoas que
vieram depois de mim eu tenho que imitar as pessoas que me contaram o mito,
por isso mito para mim é mesmo que imitação”.
A cosmogonia indígena tem o mito como principal organizador da estrutura
social e política. Toda sociedade, seja ocidental, indígena, africana, tem o mito
com base para a sua cosmogonia. Um dos grandes objetivos pretendidos pela
ciência moderna foi se distanciar do mito, supondo-se que o pensamentocientífico
devesse primar pela racionalidade, objetividade e verdade. Por isso, o
pensamento mágico mítico passou a ser visto com preconceito pelo pensamento
científico asism instaurado. KulikaraKarajá (2010) apresenta a seguinte reflexão
sobre arelação entre o pensamento do branco e do indígena “Neste
momentoestamos diante de dois quadros: Ou olhamos para o conhecimento
dosmais
velhos,
ou
olhamos
para
o
conhecimento
dos
brancos,
e
conseqüentemente perdemos a nossa cultura”.
Ao mesmo tempo em queos povos indígenas buscam aprender o
conhecimento dos brancos, esses povos também sabem que ao entrar em contato
com esse conhecimento o seu sistema cosmológico passa por transformações. A
relação com novas paisagens discursivas possibilita o surgimento da produção de
novas narrativas ou uma poética de fronteiras. Isso possibilita garantir a posse de
seus territórios e a conquista demais direitos, tais como as vagas na universidade,
postos em instituições do Estado, dentre outros.
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Como exemplos de novas possibilidades e dimensões críticas, temos, na
terceira margem do rio, os índios que utilizam a câmera através de um ângulo
diferenciado de abordagem a partir de uma nova relação com as tecnologias para
a produção de imagens. E os gestos e performances dos cineastas indígenas
produzem mudanças significativas no lugar que a arte ocupa na esfera pública e
privada na nossa sociedade.
Ao assistir diversos vídeos indígenas, observei que entre eles ovídeo é
compreendido como um objeto imitativo ou uma espécie de representação
figurativa, ou uma cópia de algo dos tempos primeiros, de algo que já existiu,
como um fato mítico ou ritual que não é mais praticado, mas que é reencenado
para que seja lembrado pelos mais jovens.
Filmar significa experimentar, e experimentar o diferente é uma forma de
xamanismo.Seguindo essa premissa, procurei verificar, nas gravações, se havia
ângulos e movimentos de câmera realizados pelos professores indígenas que se
aproximassem da estrutura do pensamento cosmogônico indígena. Percebi que
não havia nada que pudesse relacionar de forma mais direta àquela idéia. No
entanto, lembrei-me de um fato ocorrido com Chaplin que, ao ser indagado por
que em seus filmes não havia nenhum movimento de câmera interessante, teria
respondido da seguinte forma “eu sou interessante”.Tomando essa resposta como
referência, é possível pensar que, de fato, os cineastas indígenas não inovam na
forma de filmar e narrar. O grande diferencial nesse campo e contracampo é quem
filma.
Finalmente, a partir das questões apontadas neste trabalho, as reflexões se
encaminham no sentido de que a estética ameríndia insere-se num modelo
avesso à idéia de limites e métodos, de dualidades tais como interior e exterior.
Ela é suficientemente flexível para receber novas formas de conhecimento no qual
podemos denominar uma concepção moderna de xamanismo, mas ao mesmo
tempo capaz de inseri-las de forma a contribuir pela manutenção da unidade
cosmológica do grupo.
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