Os cus de Judas

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Os cus de Judas
Análise de obras literárias
Os cus de Judas
AntÓnio Lobo
Antunes
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SumÁrio
1.
Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7
2.Estilo literário da época............................................................ 8
3.O AUTOR.................................................................................................. 11
4.
A OBRA..................................................................................................... 12
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5.Exercícios............................................................................................ 19
Os cus de Judas
AntÓnio Lobo
Antunes
Os cus de Judas
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1. Contexto social e HISTÓRICO
Portugal vivenciou um dos mais longos regimes ditatoriais do século XX na Europa. De 1932 a 1968, ocorreu o salazarismo, isto é, a liderança de Antônio de Oliveira
Salazar, porém o final desse período histórico só ocorreu em 1974 com a chamada
Revolução dos Cravos, quando o sucessor indicado por Salazar foi destituído.
O ditador conduziu o país com mãos de ferro: censura da imprensa, pouca
liberdade política, autoritarismo, além de exílio e tortura para seus oponentes.
O maior exemplo da repressão era a chamada Pide, a polícia política de Salazar,
a qual chegava a ter mais poder do que o próprio exército.
Enquanto isso, nas colônias portuguesas da África, na década de 60, começava um movimento de libertação em relação à metrópole. As guerras coloniais
pela independência levaram a uma ofensiva militar portuguesa. Cerca de 150 mil
portugueses foram enviados para as colônias rebeldes, comprometendo ainda mais
o orçamento português e aumentando a crise econômica. Nesse período, centenas
de milhares de portugueses emigraram, sobretudo para França, EUA, Canadá e
Brasil. Grande parte desses emigrados era de jovens que desertavam da guerra.
Em Angola, local em que ocorre o enredo da obra, a Unita (União Nacional
pela Independência Total de Angola), a FNLA (Frente Nacional de Libertação de
Angola) e o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) exigem a retirada das tropas portuguesas. Usando técnicas de guerrilhas, treinados, armados
e financiados pelos líderes da Guerra Fria (URSS e EUA), esses movimentos de
resistência vão causando baixas no exército português, mandando centenas de
corpos de volta para Portugal, aumentando a pressão popular na Metrópole pelo
fim da guerra. Angola se libertará em 1975, entrando num período de guerra
interna, dado que esses três movimentos (Unita, FNLA, MPLA) se degladiarão
entre si para obter o poder no país.
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2.Estilo literário da época
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O surgimento do Modernismo em Portugal está associado à grande instabilidade política da primeira República, iniciada em 1910, depois do assassinato do
rei Carlos X. O movimento constitui uma espécie de resposta estética dos setores
sociais urbanos mais cosmopolitas e inovadores à situação político-social.
Além dessas questões, os anos da Primeira Guerra Mundial foram bastante
árduos, pois Portugal teve dificuldade para manter suas colônias ultramarinas,
cobiçadas pelas grandes potências.
A instabilidade interna, agravada por greves frequentes, o deflagrar da
guerra e a disputa pelas colônias fizeram com que se desenvolvesse um forte
sentimento nacionalista, baseado no saudosismo das antigas glórias marítimas
e no arraigado sebastianismo.
Percebe-se por aí como, em Portugal, o início do século XX foi um momento
de crise aguda, de dissolução de muitos valores.
Os artistas reagiram ao cepticismo social, marcado por um laxismo próximo do laissez-faire, laissez-passer, por meio da agressão cultural, do sarcasmo, do
exercício gratuito das energias individuais, da sondagem, a um tempo lúcida e
inquieta, de regiões virgens e indefinidas do inconsciente ou, então, por meio
da entrega à vertigem das sensações, emoldurada pela grandeza inumana das
máquinas, das técnicas e da vida gregária nas cidades.
No início desse século, as minorias criadoras manifestaram impulsos
de ruptura com diversas ordens vigentes. As forças de aventura romperam
as crostas das camadas conservadoras e tentaram redescobrir o mundo por
meio da retomada da linguagem estética. Na área da poesia, recusaram temas
recorrentes já desgastados e as estruturas vigentes da poética ultrapassada.
A arte entrou numa outra dimensão: os objetos não estéticos e o dia a dia na
sua dimensão multiforme passaram a integrar a arte. Rejeitou-se o código linguístico convencional e, sob o signo da invenção, surgiram novas linguagens
literárias: desde a desarticulação deliberada até a densamente metafórica,
quase inacessível ao entendimento comum.
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É toda esta recusa, este desejo de ruptura e redescoberta do mundo através
da linguagem estética que se chama Modernismo ou movimento modernista.
Parece mesmo que toda a trajetória do Modernismo português foi marcada
pela instabilidade política e social, refletida nas artes, tanto que a obra em estudo,
Os cus de Judas, apesar de distante no tempo da ambiência histórica que tipificou
as manifestações modernistas das primeiras décadas do século XX, é consequência
do latejar inconformista e do desejo de protestar, denunciando mais uma tragédia
humana do “reino português”, ou seja, oportunamente remete a toda essa trajetória
modernista.
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António Lobo Antunes
Logo, mesmo sendo contemporâneo, a obra Os cus de Judas apresenta traços
de modernidade como a preocupação social, bastante documental, a estrutura
narrativa em que os limites tradicionais de tempo, por exemplo, são questionados,
além de forte investigação de caráter psicológico (fluxo de consciência).
É claro que, com tantos problemas vividos por Portugal nesse período, esses
seriam o principal foco dos autores da chamada Geração de Abril (pós-Revolução
dos Cravos), da qual António Lobo Antunes faz parte, os quais escreveram obras
concebidas ainda sob o impacto do retorno de colonos e soldados portugueses,
ao fim da guerra colonialista.
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3.O AUTOR
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António Lobo Antunes é psiquiatra, nascido em Lisboa em 1942. Aproveitando-se do período de liberdade pós-ditatorial, expressou na ficção literária seus
questionamentos relativos ao destino português e ao passado da nação.
Considerado por muitos críticos como um dos maiores autores europeus
vivos, já teve várias vezes seu nome indicado ao Prêmio Nobel. Não são poucos
os que acreditam que ele deveria ter recebido o primeiro Nobel de Literatura de
Língua Portuguesa no lugar de José Saramago.
O romance Os cus de Judas é considerado sua obra-prima. Entre outros
livros de sua autoria, destacam-se Fado alexandrino e Exortação aos crocodilos, já
publicados no Brasil.
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4.A OBRA
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Apocalipse Now luso ou Nascido a 4 de julho português (referência a dois
filmes americanos que mostram as feridas provocadas pela Guerra do Vietnã
na alma do povo americano)
(...) a mata, onde a MPLA, inimigo invisível, se escondia, obrigando-nos a uma
alucinante guerra de fantasmas. A cada ferido de emboscada ou de mina a mesma pergunta aflita me ocorria, a mim, filho da Mocidade Portuguesa, das Novidades e do Debate,
sobrinho de catequistas e íntimo da Sagrada Família, que nos visitava a domicílio numa
redoma de vidro, empurrado par aquele espanto de pólvora numa imensa surpresa: são
os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam. Lisboa, os americanos, os russos,
os chineses, o caralho da puta que os pariu combinados para nos foderem os cornos em
nome de interesses, que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de pó
vermelho e de areia (...)
A publicação de Os cus de Judas foi um escândalo no início da década de 80,
já que tocava em feridas ainda abertas na sociedade portuguesa. Como reagiriam
os cidadãos que apoiaram Salazar durante tantos anos diante do que o autor
relata – num estilo em que não teme dizer palavrões nem descrever com crueza
– a versão de quem viveu a Guerra e não a viu apenas como notícia nos jornais?
Estariam os portugueses prontos para debater as feridas de um período que
dividiu o país? A obra acaba por ser uma denúncia: a voz silenciada de alguém
que lá esteve irá nos contar a sua versão, que vai além da versão oficial.
Os cus de Judas é uma expressão de dupla significação: para os portugueses, refere-se a um lugar distante (no caso, Angola), para os angolanos, é uma
expressão para designar os traidores.
Enredo
Em 23 capítulos que vão de “A” a “Z”, o narrador relata suas impressões e
memórias, num longo fluxo de consciência, do que ocorreu em sua trajetória de
27 meses servindo como médico-soldado em Angola, quando tinha pouco mais
de vinte anos, fato do qual advêm as fortes marcas autobiográficas reconhecidas
pela crítica literária, já que o narrador é uma espécie de alter ego do autor: um
homem culto que foi a um país não como alguém que deseja trocar experiências
e informações culturais, mas que é visto como invasor.
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(...) ocupantes involuntários em país estrangeiro, agentes de um fascismo provinciano que a si mesmo se minava e corroía(...)
O protagonista conta de forma irônica e amarga para sua interlocutora,
Maria José, num extenso monólogo iniciado num bar e terminado em sua casa,
ao longo de uma noite, aquilo que ocorreu com sua vida durante o pós-guerra.
Para encorajá-lo nesse relato, tem papel fundamental o álcool, que
vai mudando a realidade e sua percepção “conforme a tonalidade do álcool
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que engolimos”, já que “a vodca confunde os tempos e abole as distâncias”.
O absurdo da guerra é descrito com detalhismo impressionante, com forte caráter
expressionista (quando a emoção é tão forte que acaba por “deformar” a realidade). O narrador relata, sob forte emoção, o que passou, rompendo a linearidade,
misturando passado e presente:
O passado, sabe como é, vinha-me à memória como um almoço por digerir nos
chega em refluxos azedos à garganta.
Deito um centímetro mentolado de guerra na escova de dentes matinal e cuspo no lavatório a espuma verde-escura dos eucaliptos de Ninda (ponto geográfico de
Angola) (...)
O protagonista, a partir desse contato com a situação na África, vê sua vida
e seus valores sendo destruídos. Ele que havia se casado apenas quatro meses
antes de embarcar para a África verá seu casamento com Isabel ser destruído e,
quando narra a obra, está sozinho, separado, com a vida profissional em franca
decadência, vivendo encontros esporádicos com mulheres que encontra nas
longas e contínuas noitadas que passa em bares, refugiando-se numa angústia
sem saída.
A obra é a luta inglória do narrador em rememorar – sem recuperar – um
mundo destruído. ”A dolorosa aprendizagem da agonia” – assim classifica
Lobo Antunes a guerra de Angola, parte da guerra colonial portuguesa, a
guerra ultramar.
No início, ele conta um pouco de sua infância, ambientando-nos no seio
de sua família, religiosa e com tradição militar, que poderia sintetizar, na época
das guerras coloniais, uma parcela significativa da opinião pública portuguesa,
parcela esta que se protegia à sombra de três alicerces irretocáveis: Salazar,
Nossa Senhora de Fátima – padroeira de Portugal – e a Família.
Essas instituições tão caras ao povo português (Igreja, família e governo)
são constantemente atacadas pelo narrador:
A Pide prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra
de democracia, (...)
Aos domingos, a família em júbilo vinha espiar a evolução da metamorfose da larva
civil a caminho do guerreiro perfeito (...)
(...) os agentes da Pide superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em
punho do catecismo.
A crítica é unânime em indicar o caráter antiépico da obra, rompendo
com a tradição secular da literatura portuguesa de exaltar as glórias e o destino
promissor de Portugal. Desde a publicação de Os lusíadas, de Camões, até o livro
Mensagem, de Fernando Pessoa, era comum encontrar uma visão ufanista sobre
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Portugal. O livro Os cus de Judas é polêmico, entre outros motivos, por mostrar
que a intervenção lusa pelo mundo não foi assim tão positiva:
(...)em toda parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença
aventureira através de padrões manuelinos e de latas de conservas vazias, numa sutil
combinação de escorbuto heróico e de folha de flandres ferrugente. Sempre apoiei que se
erguesse em qualquer praça adequada do país um monumento ao escarro, escarro-busto,
escarro-marechal, escarro-poeta, escarro-homem de Estado, escarro-equestre, algo que
contribua, no futuro, para a perfeita definição do perfeito português: gabava-se de fornicar
e escarrava.
Entenda-me: sou homem de um país estreito e velho.
Quer um uísque? Este banal líquido amarelo constitui, nos tempos de hoje, depois
da viagem de circunavegação e da chegada do primeiro escafandro à Lua, a nossa única
possibilidade de aventura (...)
Um dos momentos marcantes do início da obra é quando, numa visita a
uma de suas tias antes de embarcar para Angola, esta diz para o narrador de
forma profética: Felizmente que a tropa há de torná-lo um homem. O protagonista
arremata com ironia:
De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas,
para me tornar finalmente um homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava,
grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de
fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anônima semelhante à do
quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, à sua própria morte.
Veja a conclusão do narrador sobre o “transformar-se” em homem como
profetizava a família:
De fato, ( ...) tornara-me um homem, uma espécie de avidez triste e cínica, feita
de desesperança cúpida, de egoísmo, e da pressa de me esconder de mim próprio, tinha
substituído para sempre o frágil prazer da alegria infantil, do riso sem reservas (...)
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Uma das marcas mais tocantes dessa obra são as belas imagens que o
autor constrói, mesmo utilizando vocabulário às vezes agressivo para leitores
mais sensíveis. Mas o que esperar de um homem que sofreu os horrores de
uma guerra que se tornou marca indelével e que nunca mais o abandonará?
Veja a descrição que ele faz sobre suas primeiras impressões de Luanda, capital
de Angola, onde:
(...) putas cansadas por todos os homens sem ternura de Lisboa ali vinham beber
os últimos champanhes de gasosa, à maneira de baleias agonizantes ancoradas numa
praia final (...)
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Outras metáforas e comparações surpreendentes aparecem ao longo do
texto.Veja este exemplo:
(...) e a pequena vesga do strip-tease a despir-se no palco no mesmo alheamento
cansado com que uma cobra velha muda de pele.
A partir daí há o relato de momentos ocorridos na África que marcaram e
que insistem em não abandonar a mente do protagonista, mesmo anos depois
de estar em Lisboa. Ao ler os relatos, palavras como morte, putrefação, decadência, cinismo, canalhice e violência saltam aos nossos olhos. Entre essas marcas,
destacam-se as seguintes:
1) O fato de a guerra animalizar (marca naturalista) os soldados, jovens que
veem seus sonhos e esperanças de retornarem com vida a Portugal diminuírem.
(...)quando se amputou a coxa sangrenta ao guerrilheiro do MPLA apanhado no
Mussuma, os soldados tiraram o retrato com ela num orgulho de troféu, a guerra tornounos em bichos, percebe, bichos cruéis e estúpidos ensinados a matar (...)
2) A morte do primeiro soldado sem que ele pudesse ajudar.
(...) o hálito de nosso primeiro morto na desesperada esperança de que respirasse
ainda, o morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meu quarto, era a seguir ao
almoço e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei: Dorme
bem a sesta, cá fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada. Desta vez não há
milagres meus chuchus, pensei eu, fitando-o. Está a dormir a sesta, expliquei-lhes, está
a dormir a sesta (...)
Ingrata missão recebeu: salvar vidas no meio de uma guerra insana e
sem quaisquer condições materiais para conseguir um mínimo de dignidade
no tratamento dos feridos e doentes. Doenças, como o paludismo, atacavam
soldados e angolanos. Observe a mistura do discurso do narrador e do discurso
direto. Essa cena foi tão marcante para o narrador que ele vai retomá-la em
outros momentos da narrativa, até mesmo quando voltou a Portugal na ocasião
em que sua filha nasceu.
(eu chegado de África deitado com ela no meu colo tardes a fio, sorrindo uma para o
outro o riso de entendimento antigo e sábio que as crianças de quatro meses herdaram dos
álbuns e demoram anos e anos a perder. Está a dormir a sesta e não quero que o acordem,
declarei eu para os soldados(. ..)
3) A crítica constante ao fato de haver nítido contraste entre os militares de
escritório e os do front ou, ainda, entre os filhos das autoridades (que não eram
enviados para a guerra) e do cidadão comum português.
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(...) sinto-me livre para retomar a minha narrativa no ponto onde há momentos a
deixei: estamos em 71, no Chiúme, e a minha filha acaba de nascer. Acaba de nascer e a
essa hora as senhoras do Movimento Nacional Feminino devem estar pensando em nós
sob os capacetes marcianos dos secadores dos cabeleireiros, os patriotas da União? Nacional pensam em nós comprando roupa interior preta, transparente para as secretárias(...)
os homens de negócios pensam em nós fabricando material de guerra a preço módico, o
Governo pensa em nós atribuindo pensões de miséria às mulheres dos soldados, e nós,
mal-agradecidos (...)
(...) os generais no ar condicionado de Luanda inventavam a guerra de que nós
morríamos e eles viviam (...)
(...) por que o fascismo felizmente é estúpido, suficientemente estúpido e cruel para
se devorar a si mesmo (...)
4) A pouca importância dada ao destino daqueles soldados. Há um trecho
na obra em que o narrador afirma que ordens superiores mandavam que soldados fossem a pé diante dos jipes para que estes não fossem destruídos por minas
terrestres. Logo, a vida da juventude portuguesa enviada para lutar nas florestas
tropicais era menos importante do que os bens do exército.
Com o passar do tempo, o narrador declara que foi tomado por um estranhamento em relação ao seu país, aos valores aprendidos na infância e juventude, ao catolicismo e ao patriotismo, fato que o transformará em estrangeiro
em qualquer lugar, já que não era angolano e Portugal se tornava cada vez mais
algo distante, um mundo que a lonjura tornou estrangeiro e irreal. Quando sua filha
nasce, o protagonista recebe licença para retornar a Portugal para conhecer sua
primogênita. Surgem vários questionamentos sobre esse retorno neste momento
da obra e em outros. Nem mesmo o seu retorno a Lisboa faz com que ele recupere
a sensação de pertencer àquele mundo, já que as pessoas são indiferentes ao seu
sofrimento ou, pior, temem aqueles que voltam d´África. A obra revela a difícil
reconstrução pessoal dos retornados.
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(...) e veio-me de súbito à ideia o sorriso de Gagárin (astronauta) no regresso.
Quando eu chegar que sorriso farei?
(...) eu procurava desesperadamente reconhecer a minha cidade (...). A minha lembrança grandiosa de uma capital cintilante de agitação e de mistério (...), que alimentara
fervorosamente durante um ano nos areais de Angola, encolhia-se envergonhada defronte
de prédios de subúrbio onde um povo de terceiros-escriturários ressonava entre salvas de
casquinha e ovais de croché. (...) o medo de voltar ao meu país comprime-me o esôfago, porque, entende, deixei
de ter lugar fosse onde fosse, estive longe tempo demais (...) Flutuo entre dois continentes
que me repelem, nu de raízes, em busca de um espaço branco onde ancorar (...)
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(...)A vida dos meus amigos que se programou sem mim na minha ausência ,
acomodar-se-á a custo a este ressuscitar de Lázaro desnorteado, que reaprende penosamente o uso dos objetos e dos sons.
Após uma noite de insatisfatório prazer com Maria José, o narrador faz
considerações sobre a sua má performance sexual, pede-lhe uma segunda chance
e novamente mistura presente e passado, como fizera ao longo de toda noite.
Até os contornos do corpo da amante o remetiam à paisagem africana. Combina
um novo encontro com Maria José, mesmo sabendo que isso provavelmente não
ocorrerá. As lembranças de Angola não o abandonam. O pior é que, depois de
ter passado tudo isso, teve de ouvir o seguinte de uma de suas tias quando foi
visitá-la:
– Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo
não há nada a fazer.
Foco Narrativo
O narrador está em primeira pessoa e para muito, é o alter ego do autor.
Culto e sensível, em vários momentos expressa seu refinamento artístico ao
fazer referências em suas reflexões e comparações. Entre outras, destacam-se
aquelas feitas:
a) ao cinema: Chaplin, Humphrey Bogart , Lauren Bacall
b) à literatura: Camões, Fernando Pessoa, Camilo Pessanha, Antero de Quental,
Bocage, Eça de Queirós.
c) à música: Mozart, Maria Bethânia, Louis Armstrong, Dizzie Gillispie
d)à pintura: Cézanne, Rembrandt, Picasso, Matisse, Miró
Em muitos momentos, o narrador elabora parágrafos longos, como se essa
fosse a melhor maneira de expressar suas reflexões. Há poucos momentos com
discurso direto.
Há também uma interlocutora, Maria José, que não intervém na narrativa,
mas se posiciona como se fosse ouvinte ou leitora.
Espaço
No presente, a narrativa se dá em Lisboa; nas memórias, em Angola (Luanda, Chiúme, Gago Coutinho). Entretanto, não há separação rigorosa, visto que
elementos do presente remetem a paisagens africanas.
Tempo
O tempo predominante é o psicológico, em que o passado domina os momentos presentes, invadindo a narração em todos os capítulos.
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Os cus de Judas
Personagens
a) Narrador: seu nome não é mencionado, mas muitos críticos afirmam que seria
o alter ego do autor. Ele é um homem sensível e culto.
b) Maria José: mulher que o narrador conheceu num bar e com quem travará
um longo monólogo. Ela não faz intervenções ao longo do livro.
c) Isabel: esposa do narrador
d)Sofia: amante do narrador em Angola, será acusada de colaboradora dos revoltosos, motivo pelo qual será presa e, a seguir, estuprada por praticamente
toda a tropa.
e) Tia Tereza: outra amante do narrador em Angola, é descrita como uma mulher
gorda que o recebia com afetos quase maternais.
5. Exercícios
1.
Leia o seguinte trecho, em que o narrador relata
o que ocorria no cais do porto na hora do embarque antes de ir para Angola:
As senhoras do movimento Nacional Feminino
vinham por vezes distrair os visons da menopausa
distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar,
acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico(...)
Nesse trecho, observa-se que o narrador capta a presença de três elementos
que, juntos, formam uma união a quem ele indiretamente acusa ao longo da
obra de ser a responsável pela situação que vivenciou na África. Quais são
esses três elementos?
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2.
Leia o seguinte trecho e a seguir responda ao que se pede.
Quem sabe se acabaremos a noite a fazer amor um com o outro, furibundos como rinocerontes com dores de dentes, até a manhã aclarar lividamente os lençóis desfeitos pelas
nossas marradas de desespero? Os vizinhos do andar de baixo cuidarão, atônitos, que
trouxe para casa dois paquidermes que se entredevoram num concerto de guinchos de
ódio e de parto, e quem sabe se tal novidade despertará neles humores há muito tempo
adormecidos e os leve a engancharem-se à maneira das peças desses puzzles japoneses
impossíveis de separar, a não ser pela infinita paciência de um cirurgião ou a faca expe19
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dita de um capador definitivo.(...)É capaz de amar? Desculpe, a pergunta é tola, todas
as mulheres são capazes de amar e as que o não são amam-se a si próprias através dos
outros (...)
O narrador parece ter preservado apenas um sentimento protegido da amargura
advinda da guerra: seu amor e admiração pelas mulheres.
a) A quem o narrador faz o convite presente no trecho anterior? Qual é sua importância na narrativa?
b) Cite duas mulheres que propiciam alguns poucos momentos de ternura ao
protagonista em Angola.
3.
Quando o protagonista retorna pela primeira vez a Portugal, por conta do nascimento de sua filha, ele relata o seguinte diálogo que teve com um funcionário
da Alfândega que vasculhava sua mala no aeroporto de Lisboa.
– Trago um feto de oito meses escondido no meio das camisas – informei-o amavelmente
para lhe aguçar a irritação e o zelo. (...)
– Vocês vêm de Angola convencidos que são uns grandes homens mas isto aqui não é o
mato, seu tropa.(...)
– Se fosse, dava-lhe um tiro nos tomates.
O burocrata idoso que seguia à minha frente voltou-se para trás assarapantado, uma
senhora disse para outra Chegam todos assim lá de África, coitadinhos, e eu senti
que me olhavam como se olham os aleijados que rastejam de muletas nas cercanias do
Hospital Militar(...)
Podemos perceber, nesse diálogo, o tipo de acolhida que os soldados portugueses
da guerra colonial recebiam ao retornar ao seu país depois de meses lutando
pela Pátria. Nesse trecho, há a representação de dois tipos de postura da opinião pública portuguesa com relação aos combatentes. Cite-os e justifique-se
com o texto.
4.
Num trecho de suas reflexões, o narrador se dirige diretamente ao presidente
português.Vejamos:
Angolénossa senhor presidente e vivapátria claro que somos e com que apaixonado
orgulho os legítimos descendentes dos Magalhães dos Cabrais e dos Gamas e a gloriosa
missão que garbosamente desempenhamos é conforme o senhor presidente acaba de
declarar no seu notabilíssimo discurso parecida sonos faltam as barbas grisalhas e o
escorbuto mas pelo caminho que as coisas levam eu seja cego se não lá iremos, e já agora
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Os cus de Judas
e se me permite porque é que os filhos dos seus ministros e do seus eunucos, dos seus
eunucos ministros e dos seus ministros eunucos, dos seus miucos e dos seus euinistros
não malham os cornos aqui na areia como a gente (...)
O romance Os cus de Judas é uma obra contemporânea que traz as marcas da
modernidade na sua linguagem.
a) Cite três marcas modernas presentes no texto anterior.
b) Cite a crítica social feita nesse trecho.
c) Transcreva o trecho que faz referência ao período mais glorioso da História
de Portugal.
5.
Leia os trechos da obra abaixo e, a seguir, responda ao que se pede.
Cá estamos. Não. Não bebi demais mas engano-me sempre na chave, talvez por dificuldade em aceitar que este prédio seja o meu e aquela varanda lá em cima, às escuras, o andar
onde moro. Sinto-me, sabe como é, como os cães que farejam intrigados o odor da própria
urina na árvore que acabaram de deixar, e acontece-me permanecer aqui alguns minutos,
surpreendido e incrédulo, entre as caixas do correio e o elevador, procurando em vão um
sinal meu, uma pegada, um cheiro, uma peça de roupa, um objeto, na atmosfera vazia do
vestíbulo, cuja nudez silenciosa e neutra me desarma. Se abro meu cacifo não encontro
nunca uma carta, um prospecto, um simples papel com o meu nome que me prove que
existo, que habito aqui, que de certa maneira esse lugar me pertence. Não imagina como
invejo a segurança tranquila dos vizinhos, a decisão familiar com que abrem a porta (...)
e eu continuo em Angola como há oito anos atrás.
a) Nesse trecho, podemos perceber como o protagonista se sente após o retorno
a Portugal. Que sensação é essa?
b) O narrador apresenta uma relação especialíssima com o aspecto temporal.
Justifique essa afirmação.
c) Qual característica naturalista está presente nesse trecho?
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(...) queria estar a treze mil quilômetros dali, vigiar o sono da minha filha nos panos
do seu berço, queria não ter nascido para assistir àquilo, à idiota e colossal inutilidade
daquilo, queria achar-me em Paris e fazer revoluções no café, ou a doutorar-me em
Londres e a falar do meu país com a ironia horrivelmente provinciana do Eça (...)
A revolução faz-se por dentro, e eu olhava o soldado sem cara reprimir os vômitos que
me cresciam na barriga, e apetecia-me estudar Economia, ou Sociologia, ou a puta
que o pariu em Vincennes (França), aguardar tranquilamente , desdenhando a minha
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António Lobo Antunes
terra, que os assassinados a libertassem, que os chacinados de Angola expulsassem a
escória covarde que escravizava a minha terra, e regressar, então, competente, grave,
sábio, social-democrata, sardônico, transportando na mala dos livros a esperteza fácil
da última verdade de papel.
No trecho anterior, o narrador destila sua ironia contra um grupo específico de
portugueses. A quem ele se refere?
GABARITO
1.Parte da Igreja Católica (Senhora de Fátima)
que deu sustentação ao governo salazarista
(Salazar) e a própria sociedade portuguesa
(Movimento Nacional Feminino), que apoiava
em grande parte o regime.
2.
a)O convite foi feito à sua interlocutora , Maria
José, com quem “dialoga” ao longo do livro.
Em muitos momentos, é como se ela representasse o leitor com quem o protagonista
conversa diretamente.
b) Foram amantes do médico Sofia e tia Tereza.
3.Alguns tratavam os ex-combatentes não
como heróis, mas como dignos de pena
(coitadinhos). Outros eram agressivos, pois
viam nos soldados seres provavelmente
violentos e sem regras, vide o tratamento
dispensado pelo funcionário da Alfândega.
4.
a) Pontuação inusitada (a ausência de vírgulas
remete ao ritmo do fluxo de consciência, um
verdadeiro turbilhão de ideias), a criação
vocabular (eunistros, miucos) e a tentativa de reproduzir aspectos da oralidade
(Angolénossa).
b) O narrador critica o fato de os filhos dos
ministros e da cúpula do regime não irem
à guerra como os filhos de qualquer outro
cidadão português.
c) Há referência explícita à época das Grandes
Navegações , momento glorioso da história
portuguesa: somos e com que apaixonado orgu-
lho os legítimos descendentes dos Magalhães dos
Cabrais e dos Gamas.
5.
a)O narrador não se sente mais pertencente
àquela realidade. É como se ele fosse estrangeiro em todos os lugares: em Angola é o
invasor e em Portugal é aquele cuja presença
relembra o que deve ser esquecido: a dor e a
derrocada do Império Luso. Está separado da
esposa e da filha e todos começam a olhá-lo
com desconfiança, já que passa a beber e,
cada vez mais, a trocar o dia pela noite.
b)Durante toda a narrativa, o protagonista,
diante de qualquer objeto ou cenário, até
mesmo nos momentos de intimidade com
a esposa ou com Maria José, por exemplo,
se vê atirado para as lembranças quase
obsessivas daquilo que viveu em Angola.
Há uma fusão que se dá no plano psíquico
entre passado e presente : (...) e eu continuo
em Angola como há oito anos atrás.
c) O chamado zoomorfismo, ou seja, a comparação com animais que ocorre ao longo de
toda a obra (como os cães).
6.O narrador refere-se àqueles portugueses
que saíram de Portugal e não estiveram no
front, seja em Angola, seja lutando em Portugal para libertar o país da ditadura, e ainda
se achavam no direito de ironizar o país
e voltar com verdades prontas e soluções
rápidas para o país pós-regime.
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